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_ do Jogo Como Fendémeno Cultural mais complexas, verdadeiras competigdes, belas representagoes destinadas a um pablico. Desde jé, encontramos aqui um aspecto muito importante: ‘mesmo em suas formas mais simples, ao nivel animal, 0 jogo & mais do que um fendmeno fsioldgico ou um reflexo psicologico, Ultrapassa os limites da at idade puramente fisica ou biolégica. & ‘uma funcao significante, isto 6 encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa “em jogo” que transcende as necessi- dades imediatas da vida e confere um sentido a ago. Todo jogo significa alguma coisa. Se denominarmos o principio ativo d jogo, aquilo que Ihe confere esséncia, de “espirito” ou “vontade’, diremos muito; se o denominarmos “instinto’, nada expressare- ‘mos. Seja qual for a maneira como 0 considerem, o simples fato deo jogo encerrar um sentido implica a presenga de um elemento no material em sua propria essencia. INSUFICIENCIA DAS ANTIGAS DEFINIGOES DE JOGO {A psicologia e a fisiologia se ocupam em observar, descrever ¢ cexplicar o jogo dos animais, de criangas e adultos. Procuram determinar a naturera eo significado do jogo, atribuindo-Ihe um }) lugar no sistema vital. & que isso possui uma importincia con- sideravel e preenche uma fungag.ittil e necessaria, constituindo © ponto de partida de todas as investigagoes Ou consideragbes cientificas do género, Hi uma extraordindria divergéncia entre as numerosas tentativas de definigao da fungio biolégica do jogo. ‘Umas definem as origens ¢ o fundamento do jogo em termos de descarga da energia vital superabundante, outras como satis- facao de um certo instinto de imitagao, ou ainda simplesmente como uma necessidade de distensio. Segundo uma teoria, 0 jogo constitui uma preparagio do jovem para as tarefas sérias que mais tarde a vida dele exigirds segundo outra, trata-se de um exercicio de autocontrole indispensavel ao individuo. Outras vyeem o principio do jogo como um impulso inato para exercer ‘uma certa faculdade, ou como desejo de dominar ou competir: ‘Teorias ha, ainda, que oc: um escape para impulsos prejudiciais, um restaurador da energia dispendida por uma atividade unilateral, ou “realizagao do desejo’, ov uma "ficcao destinada a preservar 0 sentimento do valor pessoal etc." Ha um elemento comum a todas essas hipéteses: elas partem Pd pressuposto de que o jogo se acha ligado a alguma coisa que Iho seja o proprio jogo, que nele deve haver alguma espécie de as be interrogam sobre a razio ¢0_ sstas tendem mais a completar- Jo que a excluir-se mutuamente. Seria perfeitamente possivel seitar quase todas sem que isso resultasse numa grande confuso fe pensamento, mas nem por isso nos aproximariamos de uma Verdadeira compreensio do conceito de jogo. Todas nao passam solucdes parciais do problema. Se alguma delas fosse realmente ecisiva, ou eliminaria as demais ou englobaria todas em uma tinidade maior, A grande maioria, contudo, preocupa-se apenas iperficialmente em saberlo que o jogo € em simesmole 0 que significa para os jogadores. Abordam diretamente 0 jogo, do-se dos métodos quantitativos das ciéncias experimentai antes disso prestarem atengao ao seu caréter profundamente tético, Por via de regra, deixam praticamente de lado a caracteris- a fundamental do jogo. A todasas “explicagées” acima referidas ider-se-ia perfeitamente objetar: “Esti tudo muito bem, mas 0 sue ha de realmente divertido no jogo? Por que razao o bebé grita prazer? Por que motivo o jogador se deixa absorver inteira- jente por sua paixio? Por que uma multidao imensa pode ser ada até a0 delirio por um jogo de futebol?” A intensidade do 0 e seu poder de fascinagio nao podem ser explicados por Alises biologicas. E, contudo, é nessa intensidade, nessa absor- , nessa capacidade de excitar que reside a prépria esséncia € caracteristica primordial do jogo. O mais simples raciocinio mos indica que a natureza poderia igualmente ter oferecido a suas criaturas todas essas titeis fungdes de descarga de energia wxcessiva, de distensdo apés um esforco, de preparagao para as prigéncias da vida, de compensacio de desejos insatisteitos et. b a forma de exercicios e reagdes puramente mecinicos. Mas io, ela nos deu a tensio, a alegria ¢ o divertimento do jogo. inalidade biol6gica. 'Todas ela: Pois bem, esse tiltimo elemento, o divertimento do jogo, resistea toda anzlise e interpretagao légicas. Como conceito, nao pode ser reduzido a qualquer outra categoria mental, Nenhuma utra lingua moderna por mim conhecida possui uma equival cia exata com o inglés fun. A palavra holandesa para divertimento, aardigheid, talver se aproxime disso (derivada de card ~ natu reza, ser, esséncia ~ em alemao, € mostra bem que a ideia no pode ser submetida a uma explicagio mais prolongada. Podemos notar, de passagem, que em seu uso atual fun é de origem ba: tante recente. O francés, curiosamente, nao tem nenhum termo correspondente, O alemio compensa com “Spass” e “Witz” jun tos.’ Encontramo-nos aqui perante uma categoria absolutamente primévia da vida, que qualquer um & capaz de identificar desde 6 proprio nivel animal. E legitimo considerar 0 jogo uma “tota- lidade’, no moderno sentido da palavra, e como totalidade que devemos procurar avalié-lo e compreendé-Lo. ‘Como realidade do jogo ultrapassa a esfera da vida humana, é impossivel que tenha seu fundamento em qualquer elemento racional, pois nesse caso, imitar-se-ia humanidade. A existéncia do jogo nao esta ligada a qualquer grau determinado de civili- zagio, ou a qualquer concepgao do universo. Todo ser pensante é capaz de entender a primeira vista que 0 jogo possui uma rea- lidade autonoma, mesmo que sua lingua nao possua um termo_ geral capaz.de definiclo. A existéncia do jogo é inegivel. f possivel hegar, se se quiser, quase todas as abstracdes: a justiga, a beleza, a verdade, o bem, espirito, Deus. possivel negar-sea seriedade, mas nao 6 jogo.) 7 ‘Mas ao se reconhecer 0 jogo, se reconhece o espirito, pois o que quer que seja 0 jogo, ele nao é algo material. Ultrapassa, mesmo no mundo animal, os limites da realidade fisica. Do ponto de vista da concepgao determinista, de um mundo regido pela agaio de forcas cegas, 0 jogo seria inteiramente supérfluo. Sé se torna possivel, pensivel e compreensivel quando a presenga do espirito destr6i o determinismo absoluto do cosmos. A propria existéncia do jogo é uma confirmagao permanente da natureza supral6gi da situagao humana. Se 0s animais sto capazes de brincar, é por que sao alguma coisa mais do que simples seres meciiicos. Se 3 Talvezse possa pensar, em por tracia?€ jcosidade” (Na brincamos e jogamos, ¢ temos consciéncia disso, é porque somos ‘ais do que simples seres racionais, pois o jogo ¢ irracional, (0 JOGO COMO FATOR CULTURAL. {Ao se abordar a funcao do jogo como uma fungao real da cul- lura, e nao como ele aparece na vida do animal ou da crianga, comegamos a partir do ponto em que as abordagens da biolo- gia e da psicologia chegam ao seu termo. Encontramos 0 jogo ha cultura como um elemento dado, existente antes da propria cultura, acompanhando-a e marcandlo-a desde as mais distantes origens até a fase atual, Em toda a parte encontramos presente 0 jogo, como uma qualidade de agio bem determinada e distinta da vida “comum’, Podemos deixar de lado 0 problema de saber se até agora a ciéncia conseguiu reduzir esta qualidade a fatores quantitativos. Em minha opiniao, nao o conseguiu. De qualquer modo, o que importa é justamente aquela qualidade caracteris tica da forma de vida a que chamamos “jogo” O objeto de nosso csludo6 0 jogo como forma especifica de atividade, como “forma significante’, como fungao social. Nao procuraremos analisar 08 Impulsos e habitos naturais que condicionam 0 jogo em geral, tomando-o em suas miiltiplas formas concretas, enquantoestru- {ura propriamente social. Procuraremos considerar 0 jogo como 0 fazem 08 proprios jogadores, isto é, em sua significagao pri- India. Se verificarmos que o jogo se baseia na manipulagao de certas imagens, numa certa “imaginagio” da realidade (ou seja, \transformagao desta em imagens), nossa preocupacao funda mental ser4, entao, captar o valor €0 significado dessas imagens € dessa “imaginagao”. Observaremos a agio destas no proprio jogo, procurando assim compreendé-lo como fator cultural da vida. ‘As grandes atividades arquetipicas da sociedade humana sao, desde o inicio, inteiramente marcadas pelo jogo. Tome-se, por exemplo, o caso da linguagem, esse primeiro e supremo instru mento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar ¢ comandar. Fa linguagem que Ihe permite distinguir as coisas, «lefini-las e constaté-las; em resumo, designa-las e com essa desig- axito elevé-las ao dominio do espirito. Na criagio da fala e da linguagem, jogando com essa maravilhosa faculdade de designan mente saltando entre a de toda expresso abs~ ora é jogo de palavras. ‘Assim, ao dar expressio a vida, o homem cria um outro mundo, ‘um mundo poético, ao lado do da natureza. Outro exemplo é 0 mito, igualmente uma transformagio ou ‘uma “imaginagio” do mundo exterior; 86 que aqui o proceso é mais elaborado ¢ complexo do que ocorre no caso das palavras isoladas, O homem primitivo procura, 0, dar conta do mundo dos fendmenos, atribuindo a esse um fundamento divino. Em todas as caprichosas invengoes da mitologia, ha um espirito fantasista que joga no extremo limite entre a brincadeira ea seriedade. Se, finalmente, observarmos 0 fenémeno do culto, verificaremos que as sociedades primitivas celebram seus ritos sagrados, seus sacrificios, consagragdes ¢ mistérios, destinados a assegurarema tranquilidade do mundo, dentro de um espirito dle puro jogo, tomando-se aqui o verdadeiro sentido da palavra. Ora, é no mito e no culto que tém origem as grandes forgas instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, 0 comércio € 0 lucro, a indistria ea arte, a poesia, a sabedoria ea ciéncia. Todas clas tém suas raizes no solo primevo do jogo. [A finalidade deste estudo consiste em mostrar que o exame da cultura sub specie ludi é mais do que uma comparagio retérica Nao se trata de modo algum de uma ideia nova. Houve uma época em que era geralmente aceita, embora num sentido limitado ¢ muito diferente daquele que aqui se adotou: no inicio do século xvii, quando surgiu o grande teatro laico. Numa brilhante série de figuras, desde as de Shakespeare até as de Calderén ¢ Racine, o teatro dominava a literatura ocidental, Era costume comparar ‘0 mundo a um palco, no qual cada homem desempenhava seu papel. Isso significava que o elemento lidico da civilizagao fosse Glaramente reconhecido? Em absoluto. O costume de comparar a vida a um palco, bem analisada, revela-se como pouco mais do que um eco do neoplatonismo entaio dominante, com um tom moralista fortemente acentuado. Era uma variante do velho tema do cariter vao de todas as coisas. O jogo ¢ a cultura estdo realmente entretecidos, mas nao era observada nem expressa essa analogia. Hoje, ao contrario, importa mostrar que o puro € es jogo constitu uma das principais bases da civilizagio. é como se 0 espirito estivesse const \téria eas coisas pensadas. Por det ravés dom (JOGO COMO CATEGORIA AUTONOMA ‘0 jogo é diretamente oposto serie: _ Bm nossa maneira de pens jivel a dade, A primeira vista, esta oposigao parece téo irred butras categorias como o préprio conceito de jogo. Todavia, caso =p examinemos mais de perto, verificaremos que o contraste entre | jogo e seriedade nao é decisivo nem imutivel. f licito dizer que 0 “Jogo éa nao seriedade, mas esta afirmagao, além do fato de nada “hos dizer quanto as caracteristicas positivas do jogo, é extrema- P ynente facil de refutar. Caso pretendamos passar de “o jogo nao ‘a seriedade” para “o jogo nao é sério’, imediatamente 0 con te tornar-se-A impossivel, pois certas formas de jogo podem ger extraordinariamente sérias. Além disso, encontramos varias | putras manifestagdes de vida que também sio abrangidas pela “pio seriedade” e nao apresentam qualquer relacéo com 0 jogo- “0 riso, por exemplo, esta de certo modo em oposicio a serie~ dade, sem de maneira alguma estar diretamente ligado 20 jogo. 05 jogos infantis, o futebol ¢ o xadrez sao executados dentro da mais profunda seriedade, nao se verificando nos jogadores a enor tendéncia para oriso. F curioso notar que o ato puramente | fisiolégico de rir é exclusivo dos homens, a0 passo que 2 fungao © significante do jogo é comum aos homens e animals. O animal tidens de Aristételes caracteriza o homem, em oposica0 aos ani- © mais, de maneira quase tio absoluta quanto o homo sapiens J Oquevale parao iso vale igualmente para o cdmico. O comico * bcompreendido pela categoria da nao seriedade e possui certas ‘finidades com o riso, na medida em que o provoca, mas sua © relagao com o jogo & perfeitamente secundaria. Considerado © em si mesmo, o jogo ni é comico nem para os jogadores nem para o piblico. Os animais muito jovens ou as criangas podem ‘por vezes ser extremamente cmicos em suas brincadciras, mas © observar cdes adultos perseguindo-se mutuamente dificilmente © guscita em nés o riso. Quando chamamos “cOmica” a uma farsa © ua uma comédia, fazemo-lo levando em conta nio o jogo da representagao propriamente dito, mas, sim, a situagéo € os pen samentos expressos. A arte mimica do palhago, cOmicae risivel ‘custo pode ser considerada um verdadeiro jogo. ‘A categoria do cémico esti estreitamente ligada & da lou- ‘cura, ao mesmo tempo no sentido mais elevado € no mais baixo clo termo, Mas nao ha loucura no jogo, jé que se situa para além da antitese entre a sabedoria ea loucura. Na baixa [dade Média, 05 dois modos fundamentais de vida, 0 jogo e a seriedade, eram expressos de maneira bastante imperfeita pela oposigio entre folie cet sons (loucura e senso), até Erasmo, em seu Laus stultutiae, ter mostrado a inadequagao desse contraste. “Todos os termos aqui livremente reunidos num mesmo grupo - jogo, riso, loucura, piada, gracejo, cémico ete aquela mesma caracteristica que devemos subscrever para o jogos isto é, a de resistir a qualquer tentativa de redugao a outros ter- ‘mos. Sem diivida, sua ratio e sua miitua relagao residem numa camada muito profunda de nosso ser espiritual. Quanto mais nos esforgamos por estabelecer uma separa- gao entre a forma a que chamamos “jogo” ¢ outras que Ihe so aparentemente relacionadas, mais se evidencia a absoluta inde- pendéncia do conceito de jogo. E a separacao do jogo das grandes categorias antitéticas nao para por ai, O jogo mantém-se fora da antitese entre sabedoria e loucura, ou das que opéem a verdade ea falsidade, ou o bem eo mal. Embora seja uma atividade nao ‘material, nao desempenha uma fungao moral, sendo impossivel aplicar-Ihe as nogdes de vicio e virtude Se, portanto, nao for possivel ao jogo referir-se diretamente as categorias do bem ou da verdade, nao poderia ele talver ser incluido no dominio da estética? Aqui o nosso julgamento hesita porque, embora a beleza nao seja atributo do jogo enquanto tal, este tem tendéncia a assumir acentuados elementos de beleza. {A vivacidade e a graca esto originalmente ligadas as formas ‘mais primitivas do jogo. E nele que a beleza do corpo humano em movimento atinge seu apogeu. Em suas formas mais comple- xxas 0 jogo esta saturado de ritmo e de harmonia, que sio os mais nobres dons de percepgao estética de que o homem dispoe. Sao muitos, ¢ bem intimos, os lagos que unem 0 jogo com a beleza, tém em comum, CARACTERISTICAS FORMAIS DOS JOGOS Apesar disso, nao podemos afirmar que a beleza seja inerente a0 jogo enquanto tal. Devemos, portanto, limitar-nos ao seguinte: ‘0 jogo é uma fungi do ser vivo, mas nao é passivel de definigao ) exata em termos logicos, biologicos ou estéticos. O conceito de jogo deve permanecer distinto de todas 2s outras formas de pensa- mento através das quais exprimimos a estrutura da vida espiritual e social. Teremos, portanto, de limitar-nosa descrever suas prin. cipais caract Dado que nosso tema sao as relagdes entre 0 jogo €acultura, isticas. indo é indispensivel fazer referencia a todas as formas possiveis de jogo, sendo possivel limitarmo-nosa suas manifestagoes socials Poderiamos considerar estas as formas mais elevadas de jogo. Geralmente sio muito mais ficeis de descrever do que 0s jogos mais primitivos das crtangas e dos animais jovens, por possuirem forma mais nitida e articulada e tragos mais variados ¢ visiveis, a0 $50 que na interpretacio dos jogos primitivos nos deparamos imediatamente com aquela caracteristica irredutivel, puramente Kidica, que em nossa opiniao nao é mais verificavel por anali- ses posteriores. Faremos referéncia aos concursos € as corridas, ds representagdes ¢ aos espetaculos, & danga ea miisica, ds mas caradas e aos torneios. Algumas das caracteristicas que vamos indicar sio proprias do jogo em geral, enquanto outras perten- cem aos jogos sociais em particular. ; “Antes de mais nada, o jogo ¢ umalatividade voluntaria. Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo no maximo ser uma imita io forgada. Basta esta caracteristica de iberdade para afasti-lo definitivamente do curso de um processo natural. E um elemento acrescentado, que a recobre como floragio, oramento ou roupa~ gem. B evidente que, aqui, se entende liberdade em seu sentido ‘ais lato, sem referéncia ao problema filosofico do determinismo. Poder-se-ia objetar que esta liberdade nao existe para o animal ea crianca, por serem eles levados ao jogo pela forga de seu instinto e pela necessidade de desenvolverem suas faculdades fisicase sele- tivas, Todavia, 0 termo “instinto” introduz algo indeterminado «, além disso, pressupor a utilidade do jogo é responsabilizar-se por uma petigao de principio (petitio principi). As criangas ¢ os nimais brincam porque se divertem, e € precisamente em tal {ato que reside sua liberdade Seja como for, para o individuo adulto ¢ responsivel 0 jogo é uma fungao que facilmente poderia ser dispensada, é algo supérfluo. S6 se torna uma necessidade urgente na medida em uieo prazer por ele provocado o transforma numa necessidade. Jamais ¢ imposto pela necessidade fis nunca constitui uma tarefa, sendo sempre praticado no “tempo livre”, Liga-se a nogoes de obrigagao e dever apenas quando cons- titui uma fungao cultural reconhecida, como no culto eno ritual. ‘Chegamos, assim, & primeira das caracteristicas fundamen- tais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele proprio liberdade. Uma segunda caracteristica, intimamente ligada 4 primeira, € que 0 jogo nao é vida “corrente” nem vida “real”. Pelo contrario, tra- ta-se de umalevasio.da.xidal'real” para uma esfera temporéria de atividade com orientagao propria. Toda crianga sabe perfei- tamente quando esta “s6 fazendo de conta’ ou quando esta “86 ia, que me foi contada pelo pai de um menino, constitui um excelente exemplo de como essa cons- ciéncia esté profundamente enraizada no espirito das criangas. pai foi encontrar seu filhinho de quatro anos brincando “de trenzinho” na frente de uma fila de cadeiras. Quando foi beijé-lo, disse-the o menino: “Nao dé beijo na maquina, Papai, sendo os vagoes nao vio acreditar que é de verdade’ Esta caracteristica de “faz de conta” do jogo exprime um sentimento da inferiori- dade do jogo frente & “seriedade’, a qual aparece como priméria. Todavia, conforme ja salientamos, esta consciéncia do fato de “sé fazer de conta” no jogo nao impede de modo algum que ele se processe com a maior seriedade, com um enlevoe um entusiasmo que chegam ao arrebatamento e, pelo menos temporariamente, tiram todo o significado da palavra “sé” da frase acima. Todo jogo € capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente 6 jogador. O contraste entre jogo e seriedade ¢ sempre fluido. ‘A inferioridade do jogo é sempre compensada pela correspon- dente superioridade de sua seriedade. O jogo se torna seriedade e a seriedade, jogo. E possivel ao jogo alcancar extremos de beleza ede perfeigao que ultrapassam em muito a seriedade. Voltaremos ‘anos referir a problemas dificeis desse tipo quando analisarmos mais minuciosamente as relagbes entre 0 jogo eo culto. No que diz.respeito as caracteristicas formais do jogo, todos os observadores dao grande énfase ao fato de ser ele desinteressado. ‘Visto nao pertencer a vida “comum ele se situa fora do proceso de satisfacao imediata das necessidades ¢ dos desejos , pelo con- trdrio, interrompe esse processo. Ele se insinua como atividade {emporiria, que tem uma finalidade auténoma e se realiza tendo Hom vista uma satisfacao que consiste nessa propria realizacao. B elo menos assim que, em primeira instncia, ele se nos apresenta: ino um intermezzo, um interltidio em nossa vida cotidiana, em sua qualidade de distensdo regularmente verificada, torna um acompanhamento, um complemento e, em tltima se, uma parte integrante da vida em geral, Ornamenta a vida, Jiando-ae, nessa medida, torna-se uma necessidade tanto para dividuo, como fungao vital, quanto para a sociedade, devido ido que encerra, & sua significagao, a seu valor expressivo, associagbes espirituais e sociais, em resumo, como fun- Lultural. DA satisfacao a todo o tipo de ideais comunitirios. ‘medida, situa-se numa esfera superior aos processos estrita- Diol6gicos de alimentagao, reproducao e autoconservasao. ‘afirmacio é aparentemente contraditada pelo fato de que os ligados a atividade sexual se verificam justamente ne época (o, Mas seria assim tio absurdo atribuir ao canto, & danga e Bpavonear das aves um lugar exterior a0 dominio puramente falagico, tal como no caso do jogo humano? Seja como for, este 0 pertence sempre, em todas as suas formas mais elevadas, dominio do ritual e do culto, a0 dominio do sagrado, Mas o fato de ser necessério, de ser culturalmente itil e, até, tornar cultura diminuiré em alguma coisa o carter desin- sado do jogo? Nao, porque a finalidade a que obedece ior aos interesses materiais imediatos e a satisfagao indivi- das necessidades biolégicas. Em sua qualidade de atividade tada, o jogo naturalmente contribui para a prosperidade do bo social, mas de outro modo e através de meios totalmente tentes dos da aquisigao de elementos de subsisténcia. {0 jogo distingue-se da vida “comum tanto pelo lugar quanto duracao que ocupa. f esta a terceira de suas caracteristicas io, F “jogado até ao fim” mites de tempo e de espago}Possui um enca- e {Ojjogo comeca e, num momento preciso, termina. Joga-se se chegue a um certo fim. Enquanto ocorre, tudo é movi- fo, mudanga, alternancia, sucessio, associagao, separagao. diretamente ligada a sua limitagdo no tempo, uma outra feristica interessante do jogo, a de se fixar imediatamente como fenémeno cultural. Mesmo apés ter chegado ao fim, ele permanece como uma criagao nova do espirito, um tesouro a ser conservado pela meméria. E transmitido, torna-se tradigao, Pode ser repetido a qualquer momento, quer seja “jogo infan- til” ou jogo de xadrez, ou em periodos determinados, como um mistério, Uma de suas qualidades fundamentais reside nesta capa- cidade de repetigao, que nao se aplica apenas ao jogo em geral, ‘mas também a sua estrutura interna. Em quase todas as formas mais elevadas de jogo, os elementos de repetigao e de alternancia, como no refrao, constituem como que o fio ea tessitura do objeto. A limitagao no espago é ainda mais surpreendente do que a mitagao no tempo. Todo jogo se processa e existe no interior de um campo previamente delimitado, de maneira material ou imaginaria, deliberada ou espontanea. Tal como nao ha dife- renga formal entre 0 jogo ¢ 0 culto, do mesmo modo o “lugar sagrado” nao pode ser formalmente distinguido do terreno de jogo. A arena, a mesa de jogo, o circulo magico, o templo, 0 palco, a tela, 0 campo de ténis, o tribunal etc. tém todos a forma ea fungao de terrenos de jogo, isto é, lugares proibicos, isolados, fechados, sagrados, em cujo interior se respeitam determinadas regras. Todos eles sio. mundos temporarios dentro do mundo habitual, dedicados a pratica de uma atividade especial, Reina dentro do terreno de jogo uma ordem especifica absoluta, E aqui chegamos a uma outra caracteristica sua, mais positiva aindaele cria ordem e é ordem\Introduz na confusio da vida e na imperfeicio do mundo uma perfeigao temporaria e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobe- digncia a cla “estraga o jogo’, privando-o de seu carater proprio ede todo e qualquer valor. F talvez devido a esta afinidade pro- funda entre a ordem ¢ 0 jogo que este, como assinalamos de passagem, parece estar em tao larga medida ligado ao dominio da estética, Ha nele uma tendéncia para ser belo, Talvez este fator estético seja idéntico aquele impulso de criar formas ordenadas que anima o jogo em todas as suas configuragées. As palavras que empregamos para designar seus elementos pertencem quase todas a estética. S40 as mesmas palavras com as qua desctever os efeitos da beleza: tensio, equilibrio, compensagao, contraste, variagao, solugio, unio e desuniao. O jogo vincula ¢ desprende. Fascina. Ele conjura, quer dizer, cativa, Esta investido procuramos das duas qualidades mais nobres que somos capazes de ver nas coisas: o ritmo e a harmonia ‘Oelemento de tensio a que acabamos de nos referir desempe ‘nha no jogo um papel especialmente importante. Tensio significa ncerteza, acaso. Ha um esforgo para levar o jogo até ao desen lace, ojogador quer que alguma coisa “va” ou “saia’, pretende “ter sucesso” a custa de seu proprio esforgo. Uma crianga estendendo a mio para um brinquedo, um gatinho brincando com um novelo, tuma garotinha jogando bola, todos procuram conseguir alguma coisa dificil, ganhar, acabar com uma tensio. O jogo € “tenso’, ‘como se costuma dizer. E esse elemento de tensio e solugao que domina em todos os jogos solitarios de destreza e aplicagao, como ‘0s quebra-cabecas, as charadas, os jogos de armar, as paciéncias, 6 tiro ao alvo, ¢ quanto mais estiver presente o elemento com petitivo mais apaixonante se torna o jogo. Essa tensio chega 20 extremo nos jogos de azar e nas competigdes esportivas. Embora 0 jogo enquanto tal esteja para além do dominio do bem e do mal, 0 elemento de tensao Ihe confere um certo valor ético, na medida em que sao postas. prova as qualidades do jogador: sua forcae tenacidade, sua habilidade e coragem e, igualmente, suas capacidades espirituais, sua “lealdade’. Porque, apesar de seu ardente desejo de ganar, deve sempre obedecer &s regras do jogo AS REGRAS DO JOGO Por sua ver, essas regras sio fator de grande importancia para 0 conceito de jogo. Todo jogo tem suas regras. Sao elas que deter- minam aquilo que “vale” dentro do mundo temporario por ele circunscrito. As regras de todos os jogos so absolutas e nao per- item discussio. Uma vez, de passagem, Paul Valéry exprimiu tuma ideia das mais importantes: “No que diz respeito as regras de um jogo, nenhum ceticismo € possivel, pois o principio no qual elas assentam é uma verdade apresentada como inabakivel Sem duivida, tio logo as regras sejam quebradas, todo o mundo do jogo entra em colapso. O jogo acaba: 0 apito do arbitro que brao feitigo ea vida “real” recomega. 0 jogador que desrespeita ou ignora as re mancha:prazéres”. Esse, porém, difere do jogador desonesto, ‘as é um “des do trapaceiro, ja que o tltimo finge jogar seriamente 0 jogo € aparenta reconhecer o circulo magico. F curioso notar como os jogadores siio muito mais indulgentes para com 0 trapaceiro do que com 0 desmancha-prazeres; 0 que se deve ao fato de este Ultimo abalar o préprio mundo do jogo. Retirando-se do jogo, denuncia 0 carater relativo e fragil desse mundo no qual, tem porariamente, se havia encerrado com os outros. Priva o jogo da ilusdo ~ palavra cheia de sentido que significa literalmente “em jogo" (de inlusio, illudere ou inludere). Torna-se, portanto, neces- sirio expulsé-lo; pois ele ameaga a existéncia da comunidade de jogadores. A figura do desmancha-prazeres desenha-se com mais nitidez nos jogos infantis. A pequena comunidade nao procura averiguar se o desmancha- prazeres abandona o jogo por incapa- cidade ou por imposigdo alheia, ou melhor, nao reconhece sua incapacidade e 0 acusa de falta de audicia. Para ela, 0 problema da obediéncia e da consciéncia é reduzido ao do medo ao castigo. O desmancha-prazeres destréi o mundo magico, portanto, é um covarde e precisa ser expulso, Mesmo no universo da seriedade, os hipécritas e 0s batoteiros sempre tiveram mais sorte do que os desmancha-prazeres: os apéstatas, os hereges, os reformadores, 0s profetas ¢ os objetores de consciénci Pode acontecer, entretanto, que os desmancha-prazeres fundem, por sua vez, uma nova comunidade, dotada de regras proprias. Os fora da lei, os revolucionsrios, os membros das sociedades secretas, os hereges de todos os tipos tém tendéncias fortemente associativas, se nao socidveis, ¢ todas as suas agoes sio marcadas por um certo elemento liidico. ‘As comunidades de jogadores geralmente tendem a tornar-se permanentes, mesmo depois de acabado o jogo. F claro que nem todos os jogos de bola de gude ou de bridge levam a fundagao de tum clube. Mas a sensagao de estar “separadamente juntos numa situagao excepcional, de partilhar algo importante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas habituais, conserva sta magia para além da duragao de cada jogo. O clube pertence a0 jogo tal como o chapéu pertence a cabega. Seria demasiado simplista explicar todas as associagdes @ que os antropélogos chamam fratrias (como, por exemplo, 0s clis, as irmandades etc.) apenas como sociedades kidicas. Porém, mais de uma vez se verificou como € dificil estabelecer uma separagao nitida entre, fi de um lado,os agrupamentos sociais permanentes, sobretudo nas cculturasarcaicas, com seus objetivos extremamente importantes, solenes ¢ sagrados, ¢, de outro, a esfera lidica. © MUNDO ESPECIAL DO JOGO O carater especial e excepcional do jogo ¢ ilustrado de maneira flagrante pelo ar de mistério em que frequentemente se cenvolve. Desde a mais tenra infancia, o encanto do jogo é reforgado por se fazer dele um segredo. Isso € para nds e nao para os outros. 0 que os outros fazem li fora nao nos importa nesse momento. No interior do circulo do jogo, as leis e costumes da vida eoti- diana perdem validade. Somos fazemos coisas diferentes. Essa supressao temporiria do mundo habitual ¢ inteiramente mani festa no mundo infantil, mas nao é menos evidente nos grandes jogos rituais dos povos primitivos. Na grande festa de iniciagao ‘em que 0s jovens sa0 aceitos na comunidade dos homens, nao sio apenas 0s nedfitos que ficam isentos das leis e regras da tribo; hé uma trégua geral de todas as inimizades na tribo. Dessa suspen- sio temporaria da vida social normal, durante a época dos jogos sagrados, existem também numerosos indicios em civilizagoes mais evoluidas. Todas as saturnais e costumes carnavalescos S20 ‘exemplos disso. Ainda recentemente entre n6s, em época de cos- tumes locais mais rudes, privilégios de classe mais acentuados ¢ ‘uma policia mais tolerante, aceitavam-se as orgias dos jovens de classe alta como “estudantadas”, Essas ai \da subsistem nas uni- versidades inglesas, sob o nome de ragging, que o Oxford English Dictionary define como “uma intensa manifestagao do compor- tamento barulhento e desordeiro, levada a cabo num espirito de desrespeito a autoridade e a disciplina’ O carater diferencial e o secretismo do jogo manifestam-se de modo marcante no costume da mascarada, Aqui, a natureza “extraordinaria” do jogo alcanga sua perfeigao. O individuo dis- farcado ou mascarado desempenha um papel como se fosse outra pessoa, ou melhor, é outra pessoa. Os terrores da infancia, ‘alegria esfusiante, a fantasia mistica eos rituais sagrados encon- tram-se inextricavelmente misturados nesse estranho mundo do disfarce e da mascara. is d jogs famos mente tomada como se pode obter qualquer lucro, praticada der 9 de limites espa. Giais ¢ temporais proprios, segundo uma certa ordem e certas regras, Promove a formagao de grupos soc rodearem-se de segredo ea sublinharem com tendéncia a diferenga em rela- o de disfarces ou outros meios 40 ao resto do mundo por m © JOGO COMO LUTA E REPRESENTAGAO, ‘A fungao do jogo nas formas mais elevadas que aqui nos inte ressam pode, de maneira geral, ser definida por dois aspectos fundamentais que nele estao presentes: uma luta por alguma coisa ow a representagao de alguma coisa. Essas duas fungdes podem também por veres confundir-se, de tal modo que o jogo passe a : ou, entdo, se torne uma luta para melhor esentagao de alguma coisa, Representar significa mostrar, e isso pode consistir simples- mente na exibicio, perante um piblico, de uma caracteristica natural. O pavao eo peru limitam-sea mostrar as fémeas 0 esplen- dor de sua plumagem, mas aqui o aspecto essencial é a exibigaio de um fenémeno invulgar destinado a provocar admiragao. Se a ave acompanha essa exibi¢do com alguns passos de danga pas- samos a ter um espetculo, uma fuga & realidade vulgar para um plano mais elevado, Nada sabemos daquilo que o animal sente durante esses atos, mas sabemos que as exibigbes das criangas mostram, desde a mais tenra infancia, um alto grau de imagi- nagao. A crianga produz a imagem de alguma coisa diferente, ‘ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitual mente é. Finge ser um principe, um papai, uma bruxa malvada ou um tigre, A crianga fica literalmente “transportada” de prazer, perando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a acredi- tar que realmente ¢ esta ou aquela coisa, sem, contudo, perder nteiramente o sentido da “realidade habitual’ Mais do que uma q it ; sa realidade falsa, sua re cia: “imaginag' Se passarmos agora das brincadeiras infantis para as repre es primitivas, veremos que nessas uma apareén- no sentido or! sentaces sagradas das ci se encontra “em jogo” um elemento espiritual diferente, embora muito dificil de definir. A representagao sagrada é mais do que 4 simples realizagao de uma aparéncia, uma realidade fing mais do que uma realizagio simbolica: 6 uma realizagao mistica Algo de invisivel e inefavel adquire nela uma forma bela, real € sagrada. Os participantes do ritual estdo certos de que o ato con cretizae efetua uma certa beatificacao, faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela em que habitualmente vivem. No entanto, isso nao impede que essa “realizagio pela represen- tacao” conserve, sob to aspectos, as caracteristicas formais do jogo. £ executada no interior de um terreno de jogo, de um espaco, que éliteralmente circunscrito sob a forma de festa, isto 4 dentro de um espirito de alegria ¢ liberdade. Em sua intengao circunscreve-se um universo prdprio de valor temporario. Mas seus efeitos nao cessam depois de acabado o jogo; seu esplen- dor continua sendo projetado sobre o mundo de todos os dias, influéncia benéfica que garante a seguranga, a ordem ea prospe ridade de todo o grupo até proxima época dos rituais sagrados Em todasas partes do mundo podem-se encontrar exemplos disso. Segundo uma velha crenga chinesa, a miisica e a danga tém a finalidade de manter 0 mundo em seu devido curso ¢ obrigar a natureza a proteger 0 homem. A prosperidade de cad ano depende da fiel execucao de competicoes sagradas na época das festas. Caso essas reunides poderéo amadurecer', Orit ‘a que se faz, u ago. A matéria dessa ago é um drama, sto é, uma ver:mais, um ato, uma acio representada num palco. Essa acao pode revestir a forma de um espeticulo ou de uma competi¢ao. O rito, ou ‘ato ritual”, representa um acontecimento césmico, um evento dentro do processo natural, Contudo, a palavra “representa” no exprime o sentido exato da ago, vaga que atualmente predomina; porque aqui izem, as colheitas nao um dromenon, isto é, uma c na representagao” € realmente identificagio, a repetigao mistica ou a re-apresentagao do acontecimento, O culto produ um efeito que, mais do que figurativamente mostrado, é realmente tanto, a fungiio do rito esta longe de ser simplesmente imitativa, levaa uma verdadeira participagao no proprio ato sagrado, Como diriam os gregos, “é methectic em vez de mimetic”. colaborar com a agao, ou auxilié-la’ eproduzido na agao. Por- ‘A antropologia nao esta particularmente interessada em saber como a psicologia julgard o processo que se exprime nes- ses fendmenos. A psicologia poder resolver a questao definindo a calizagao do ritual como identificagao compensadora, uma espé cie de substituto, “um ato representativo devido a impossibilidade de levar a cabo uma agao real e intencional”’. Os participantes estio zombando ou sio zombados? A fungio da antropologia é procurar compreender o significado dessas figuragoes no espirito dos povos que as praticam ¢ nelas creem ‘Tocamos aqui no proprio Amago da religido comparada: anatureza e a esséncia do ritual e do mistério, Todos os antigos sacrificios rituais dos Vedas basefam-se na ideia de que a cerimé nia de culto - seja ela sacrificio, competigao ou representacao ~» representando um certo acontecimento cosmico que se deseja, compele os deuses a provocar sua realizagao efetiva. Bem pode- riamos dizer: jogando com eles. Deixaremos agora de lado os aspectos especificamente religiosos, concentrando-nos na anslise dos elementos liidicos dos rituais primitivos. JOGO E CULTO. culto (ou ritual) é, portanto, um espeticulo, uma represen- tagao dramatica, uma atualizagao imaginaria de uma realidade vicaria, Nas grandes festas sazonais, 0 grupo social celebra os acontecimentos principais da vida da natureza, levando a efeito representagdes sagradas que expressam a mudanga das esta Ges, 0 surgimento e o declinio dos astros, o crescimento € 0 5 Jane E, Harrison, Themis: A Study ofthe Social Origins of Greek Religion, Cam bridge, 192, p25. 6 Rabert Ranulph Maret, The Threshold of Rfigion, London, 1912 p48 madurecimento das colheitas, a vida ¢ a morte dos homens € dos animais, Como escreve Leo Frobenius, a humanidade arcaica “joga’, representa a ordem da natureza tal como ela esté impressa em sua consciéncia’. Num pasado remoto, segundo Frobenius, ‘oshomens comegaram por tomar consciéncia dos fendmenos do mundo vegetal e animal e depois adquiriram as ideias de tempo c de espago, dos meses e das estagdes, do percurso do Sol e da lua, E agora ele desempenha esta grande ordem processional de existéncia em uma ceriménia sagrada, na qual e através da qual ele atualiza de novo, ou “recria’, os eventos representados, ajudando asim a manter a ordem césmica, Frobenius tira con- lusdes ainda mais abrangentes desse “brincar com a natureza ‘As formas desse jogo litérgico deram origem a ordem da propria comunidade, as instituigoes politicas primitivas. O rei é 0 Sol e seu reinado é a imagem do curso do Sol. Durante toda sua vida, o rei “encena’ o papel do Sol e, no final, sofre o mesmo destino que 0 Sol: deve ser morto, de forma ritual, por seu proprio povo. Podemos deixar de lado o problema de saber até que ponto essa explicagao do regicidio ritual e toda a concepgao subjacente podem ser consideradas “provadas’. O problema que aqui nos interessa é « seguinte: que devemos pensar dessa projegio concreta da primi tiva consciéncia da natureza? Como devemos encarar um process ‘mental que se inicia com uma experiéncia inexpressa dos fendme- hnos césmicos e conduz. sua representagao imaginaria no jogo? Frobenius tem razo ao rejeitara facil explicagéo que se con- tenta com a nogao de um “instinto de jogo” inato. Alega ele que 6 termo “instinto’é “um expediente, uma confissao de impotén cia perante o problema da realidade”’, Com idéntica clareza, com mais razao ainda, rejeita, como vestigio de uma maneira ultrapassada de pensar, a tendéncia para explicar todo progresso cultural em termos de uma “finalidade especial’, de um “porqu ‘ou um “por que razio”, como critério para julgar a capacidade criadora de cultura ce uma comunidade. Qualifica esse ponto de vista como “tirania da causalidade’, ou pior, como “utilitarismo antiquado”®. xu einer hisorschen Gestaltlere, Wien, 8 Kulturgeschihte Afrika: Prolegome 1933; Schicksashunae im Sinedes Kulturwerdens, Leipzig, 932. > KultrgeschichteAfibas 2312 Yo. Thidem, p21. [A concepgao desse processo espiritual defendida por Frobe- hius € mais ou menosa seguinte:a experiéncia, ainda inexpressa da natureza e da vida, manifesta-se no homem primitivo sob a forma de captura, sendo captura o “arrebatamento ou comogao" “A capacidade criadora, tanto nos povos quanto nas criangas ou em qualquer individuo criador, deriva desse estado de arrebata- mento.” “Os homens sao arrebatados pela revelagao do destino. [...] A realidade do ritmo natural da génese e da extingio arre~ bata sua consciéncia e esse fato 0 leva a representar sua emocao ‘em um ato, inevitavel e como que reflexo”” Assim, segundo ele, trata-se aqui de um processo mental de transformagao que é absolutamente necessério. A captura, o arrebatamento perante os fendmenos da vida e da natureza é condensado pela agao reflexa ¢ elevado a expressio poética e & arte. & dificil descrever-se 0 processo da imaginagao criadora em palavras que sejam mais bjetivas, ¢ assim se esté longe de uma verdadeira “explicagac’ Continua tao obscuro como antes o caminho que leva da per cepeao estética ou mistica, ou pelo menos metaldgica, da ordem cosmica até os rituais sagrados. ( grande estudioso da cultura emprega frequentemente 0 termo “jogo”, sem contudo definir com exatidio que sentido Ihe atribui. Parece até por vezes aceitar subrepticiamente aquilo mesmo que tao energicamente repudia e que, de maneira alguma, corresponde & caracteristica essencial do jogo: 0 conceito de fina- lidade, Porque na descrigao proposta por Frobenius, 0 jogo serve explicitamente para representar um acontecimento cosmico, de certo modo tornando-o presente. Ha um elemento quase racio- nalista que irresistivelmente se impoe. Afinal de contas, 0 jogo € a representagio tém para Frobenius sua razao de ser na expressao de qualquer coisa de diferente, que é 0 “arrebatamento” por um acontecimento césmico. Mas o proprio fato dea dramatizagio ser uidica, representada, parece ter para cle importancia secundaria Pelo menos teoricamente, a emogio poderia ser transmitida de maneira diferente. Do nosso ponto de vista, pelo contrario, o que é importante é o proprio jogo. O ritual nao difere de maneira essencial das formas superiores dos jogos infantis ou animals, cdificilmente poderia afirmar-se que essas duas tiltimas formas 11 Mhidemnp. saa Sahiksulseende in Sines Kulturwerden ie tenham sua origem numa tentativa de expressio de qualquer emogao césmica. Os jogos infantis possuem a qualidade lidica em sua propria esséncia, e na forma mais pura dessa qualidade Talver,pudéssemos descrever o processo que conduz do “arte: batamento” pela natureza até & realizagao do ritual em termos que evitassem a mencionada inadequagao, sem, no entanto, pte tender revelar o inescrutavel. Diriamos entio que, na sociedade primitiva, verifica-se a presenga do jogo, tal como nas criangas fe nos animais, ¢ que, desde a origem, nele se verificam todas as caracteristicas lidicas: ordem, tensdo, movimento, mudanga, solenidade, ritmo, entusiasmo. $6 numa fase posterior da socie- dade, e de modo sério, o jogo se encontraré associado a expresso de alguma coisa, nomeadamente aquilo a que podemos chamar “yida’ ou “natureza’. O que era jogo desprovido de expressio ver~ bal adquire agora uma forma poética. Na forma e na fungao do jogo, que em si mesmo é uma entidade independente, desprovida de sentido e de racionalidade, a consciéncia que © homem tem de estar integrado a uma ordem cosmica encontra sua primeira expressio, a mais alta e mais sagrada. Pouco a pouco, 0 jogo vai adquirindo a significagao de ato sagrado, O ritual enxerta-se no jogo: mas o evento primario é permanece o jogo. SERIEDADE SAGRADA NO JOGO Movimentamo-nos aqui em esferas de dificil acesso tanto & psi- cologia quanto a filosofia, So questdes que tocam 0 que hi de mais profundo em nossa consciéncia. O ritual é a forma mais alta e mais sagrada da seriedade, Pode ele, apesar disso, ser jogo? Comegamos por dizer que todo jogo, tanto das criangas como dos adultos, pode efetuar-se dentro do mais completo espirito de serie- dade, Mas iri isso a ponto de implicar que o jogo continua sempre ligado & emogio sagrada do ato sacramental? Quanto a isso, nos sas conclusdes sao de certa maneira obstruidas pela rigidex. de nossas ideias habituais. Estamos habituados a considerar 0 jogo easeriedade como constituindo uma antitese absoluta, Contudo, parece que isso nio permite chegar a0 coragao de nossa materia. Consideremos por um momento o seguinte argument. A crianga joga ou brinca dentro da mais perfeita seriedade, que ajusto ti brinca n 0 esportista joga com © mais fervoroso entu: siasmo e, a0 mesmo tempo, sabe que joga. O ator, no palco, se deixa absorver inteiramente pelo jogo da representagao teatral, a0 mesmo tempo que tem consciéncia de sua natureza.O mesmo vale para o violinista, embora ele possa elevar-se a reino deste mundo. © personagem do jogo, portanto, pode se ligat formas de agao mais sublimes. Podemos agora este ao ritual e dizer ser sacerdote que executa 0s ritos do sacrificio? A primeira vista isso ido nos obrigaria a lo podemos considerar sagrada, Mas brinca e sabe que amt era linha mbém meramente hidica a atividade do lopa sacramento e mistério seriam todas abrangidas pelo conceito de jogo. Ora, quando lidamos com abstrages devemos sempre evitar o exagero de sua importancia, ¢ estender demasiadamente 0 con- ceito de jogo resultaria em mero jogo de palavras. Mas, levando em conta todos os aspectos do problema, nao creio que seja um. erro definirmos o ritual em termos hidicos. O ato ritualistico possui todas as caracteristicas formais e essenciais lo jogo, que anteriormente enumeramos, sobretudo na medida em que trans- fere os participantes para um mundo diferente. Essa identidade do ritual e do jogo era reconhecida sem reservas por Plato, que va em incluir 0 sagrado na categoria de jogo. “E preciso e éesseo melhor aspecto de su fe a vida de acordo co a, jogando 0 jogos ] Pois eles conside- As estreitas conexdes entre o mistério € o jogo foram men cionadas de modo mais revelador por Romano Guardini nseu 13 “ 796b, mente no capitulo intitu- ado “Die Liturgie als Spiel” Ele, na verdade, nao cita Platao, mas cchega tao perto da citagao acima quanto possa s A liturgia mais de um dos aspectos que considera ristica do brincar, entre outras o fato de que, em seus exemplos mais elevados, a liturgia é “zwecklos aber doch sinnvoll jidade, mas cheio de significado”, Aidentificagao ica entre jogo e sagrado nao desqu: fica este ultimo, reduzindo-o ao jogo, mas, pelo contrario, equivale a exaltar 0 primeiro, elevando-o as mais altas regides do espirito. Dissemos no inicio que o jogo é anterior & cultura; e, em certo sentido, é também superior, ou pelo menos auténomo em relagio_ ala, Podemos como faz a crianga; mas podemos também situar-nos acima desse nivel, quando no reino do belo e do sagrado. Adotando esse ponto de vista, podemos agora definir de maneira mais rigorosa as relagdes entre o ritual ¢ o jogo. A extrema semelhanga das duas formas nao nos deixa mais perplexos, ¢ @ questo é saber até que ponto todos os atos de culto sao abran- gidos pela categoria do jogo. Verificamos que uma das caracterfsticas mais importantes do Jogo é sua separacio espacial em relacio & vida cotidiana. E-Ihe reservado, quer material ou idealmente, um espago fechado, iso lado do ambiente cotidiano, e é dentro desse espago que 0 jogo se processa e que suas regras tém validade. Ora, a delimitacio de um lugar sagrado é também a caracteristica primordial de todo ato de culto. Essa exigéncia de isolamento para o ritual \cluindo a magia e a vida juridica, tem um alcance superior 20 meramente espacial e temporal. Quase todos 0s rituais de consa- {gtagio e iniciagao implicam um certo isolamento artifical tanto dos ministros como dos neéfitos. Sempre que se trata de proferir tum voto, de ser recebido numa Ordem ou numa confraria, de fazer um juramento ou de entrar para uma sociedade secreta, de ‘uma maneira ou de outra ha sempre essa delimitagao de um lugar do jogo. O magico, o dugure e 0 sacrificador comegam sempre por circunscrever seu espaco sagrado, O sacramento €o mistério pressupdem sempre um lugar santificado. 10 OEsp -nos, no jogo, abaixo do nivel da seriedade, De um ponto de vista formal, nao existe diferenga alguma entre a delimitagao ce um espago para fins sagrados e a mesma operagao para fins de simples jogo. A pista de corridas, o campo de ténis, o tabuleiro de xadrez ou o terreno da amarelinha nao se distinguem, formalmente, do templo ou do circulo magico. ‘Aextrema semelhanga que se verifica entre os rituais dos sacrifi- cios de todo o mundo mostra que esses cos! raizes em alguma caracteristica fundamental e essencial do espi rito humano. E costume reduzir-se essa analogia geral das formas nes devem ter suas de cultura a qualquer causa “racional” ou “logica’, explicando a necessidade de isolamento e separagio pela Ansia de protegermos individuos consagrados de influéncias maléficas, pois eles, em seu estado de consagracio, sio particularmente vulneraveis &s praticas dos espiritos malignos, além de constituirem eles mes ‘mos um perigo para os que os rodeiam. Tal explicagao poe na origem do processo cultural em causa uma reflexdo de ordem racional e uma intengao utilitaria, precisamente aquilo que Fro- benius recomendava evitar. Mesmo que nao voltemos aqui. cait na antiquada teoria da invengao da religio pela classe sacerdotal, continuamos, mesmo assim, a introduzir um elemento racio- nalista que deveria ser evitado. Se, por outro lado, aceitarmos a identidade essencial e original do jogo e do ritual, limitamo-nos a reconhecer o lugar santificado como um campo de jogo, sem chegar a colocar a iluséria questo do “por que e para que Se o ritual prova ser formalmente indistinguivel do jogo, uma questio permanece: se essa semelhanga vai além do puramente formal. £ surpreendente quea antropologia e religido comparada tenham prestado tao pouca atencao ao problema de saber até que ponto as praticas rituais, desenrolando-se dentro do quadro for- mal do jogo, so marcadas também pela atitude e pela atmosfera Iiidicas. Mesmo Frobenius, que eu saiba, nao fez esse pergunta. Escusado seria dizer que a atitude espiritual de um grupo social, ao efetuar e experimentar seus ritos sagrados, é da mais extrema e sagrada gravidade. Mas que se enfatize uma vex. mais: 0 jogo auténtico ¢ espontineo também pode ser profundamente sério, O jogador pode entregar-se de corpo e alma ao jogo, € a consciéncia de tratar-se “apenas” de um jogo pode passar para segundo plano. A alegria que esti indissoluvelmente ligada a0 jogo pode transformar-se nao sé em tensio, mas também em arrebatamento. A frivolidade e 0 éxtase sao os dois polos entre (08 quais 0 jogo se movimenta. ‘A disposigao do jogo éa de ser ldbil por natureza. A qualquer momento, é possivel & “vida cotidiana’ reafirmar seus direitos, seja devido a um impacto exterior, que venha interromper 0 jogo, ou devido a uma quebra das regras, seja entao do interior, devido ao afrouxamento do espirito do jogo, a uma desilusio, um desencanto. NATUREZA DAS FESTIVIDADES Quais sao, entio,a atitude e o ambiente predominantes nas cele~ bragdes sagradas? A palavra celebrar quase diz tudo: o ato sagrado 6 celebrado” num “dia sacro’, isto é, participa da festa geral de um dia sagrado. A caminho dos santudrios, 0 povo prepara se para uma manifestacao de alegria coletiva. As consagracoes, 0 sacrificios, as dangas e competigdes sagradas, as representa ies, 08 mistérios, tudo isso vai constituir parte integrante de lima festa, Pode acontecer que os ritos sejam sangrentos, que as provasa que é submetido o iniciado sejam cruéis, que as mascaras sejam atemorizantes, mas tudo isso nao impede que o ambiente dominante seja de festividade, implicando a interrupgao da vida cotidiana, A festa é acompanhada, em toda a sua duragio, por banguetes, festins ¢ toda a espécie de extravagincias. Tanto nas festividades da Grécia antiga como nas das religides da Africa atual, seria dificil tragar um limite preciso entre o ambiente da festa em geral ea emogao sagrada suscitada pelo mistério central ‘Quase ao mesmo tempo que a primeira edigao deste livro, ‘0 sibio hiingaro Karl Kerényi publicou um estudo sobrea natu- reza da festa", cuja ligagao com nosso tema é das mais estreitas. Segundo Kerényi, também as festas possuem aquele carater de independéncia primaria e absoluta que atribuimos a0 jogo. “Entre as realidades psiquicas’, diz ele, “a festa é uma entidade auténoma, impossivel de ser assimilada a qualquer outra coisa que exista no mundo””, Tal como nds, em relagio ao conceito de jogo, também 16. Vor Wesen des Festes,Paidewona, Mitteilungen zur Kutarkwnde, band t, Heft 2 dex. 1938, p.59-74 17 Thidem, p63 Kerényi considera que a festa foi tratada de maneira insuficiente pelos estudiosos da cultura, “O fendmeno da festa parece ter sido inteiramente ignorado pelos etnélogos"*. O fato real da festa é ignorado, “como se nao existisse para a ciéncia’®. Exatamente da mesma maneira que 0 jogo, poderfamos acrescentar. Entre festa e 0 jogo existem, naturalmente, as mais estreitas relagdes. Ambos implicam uma eliminagao da vida cotidiana, Em ambos predomina a alegria, embora nao necessariamente, pois também a festa pode ser séria. Ambos sao limitados no tempo e no espago. Em ambos encontramos uma combinagio de regras estritas com a mais auténtica liberdade. Em resumo, a festa ¢ 0 jogo tém em comuns suas caracteristicas principais. O modo mais intimo de uniio de ambos parece encontrar-se na danga. Segundo Kerényi, os indios Cora, da costa oriental do M chamam a suas festas religiosas, realizadas por ocasiao da tritu- ragao e da torrefagio do milho, o “jogo” de seu deus supremo". ‘As ideias de Kerényi sobre a festa como conceito cultural auténomo consolidam ¢ ampliam as ideias que servem de base este ivro. Nao se pense, todavia, que o estabelecimento de uma estreita relagao entre o espirito do jogo eo ritual possa servir para explicar tudo. O jogo auténtico possui, além de suas caracteristi- cas formais e de seu ambiente de alegria, pelo menos um outro traco dos mais fundamentais, a saber, a consciéncia, mesmo que seja latente, de estar “apenas fazendo de conta”. Permanece de pé a questo de saber até que ponto essa consciéncia é compativel com 0s atos rituais efetuados dentro de um espirito de devoro. CRENGA E JOGOS Se nos limitarmos aos ritos sagrados das culturas primitivas, no seré impossivel prenunciar o grau de seriedade com que sao efetuados. Tanto quanto me consta, os etndlogos ¢ antropdlogos concordam todos com a ideia de que o estado de espirito que preside as festas religiosas dos povos selvagens nao é de ilusio total. Existe uma consciéncia subjacente de que as coisas “no sio jis’. Podemos encontrar uma viva descricao desta atitude no de Adolf Ellegard Jensen sobre as ceriménias de circunciso erdade nas sociedades primitivas". Os individuos parecem por hos ‘a parte no decorrer da festa e aparecem perante os todos em seu ponto culminante. Nao é de se admirar, pois os as que usam e que, depois de tudo terminado, ocultam- 08 olhos das mulheres. Sao eles que emitem os rufdos que tepassados, que giram os zunidores. Em resumo, conclui an, Sua situagao assemelha-se em tudo a dos pais que brin- Papai Noel com seus filhos: conhecem a mascara, mas jondem-na deles. Os homens contam as mulheres historias s acerca do que se passa nos bosques sagrados™. A atitude ‘neéfitos oscila entre o éxtase, a loucura fingida, o frémito orror e a afetacao dos garotos™. Além disso, nem as mulhe- ;em tiltima andlise, sao inteiramente iludidas. Elas sabem jente quem se esconde por tras desta ou daquela mas- “Apesar disso, quando uma méscara se aproxima em atitude magadora apoderam-se delas uma extrema agitagio ¢ terror, gritando para todas as direcdes. Segundo Jensen, essas, hifestagdes de terror sao, em parte, inteiramente auténticas € ontneas, e, apenas em parte, um papel imposto pela tradi- f assim que “se costuma fazer” As mulheres desempenham I do coro da pega, ¢ sabem que nao podem comportar-se i “desmancha-prazeres”™. -B impossivel determinar de maneira acurada qual é 0 limite 0 a partir do qual a gravidade religiosa se reduz.a mero timento. Entre nds, um pai que seja um tanto ou quanto pue- oder ficar seriamente zangado se seus filhos o surpreenderem sxato momento em que estiver preparando os presentes de CC. Bechnetdung und Refezeremonien bei Naturvélker, Statgar, 1933. idem, prs. idem, p. 156. idem, pass 6 Tbidem, p. 150. ica, um pai Kwakiutl matou a filha por esta o ter surpreendido no momento em que talhava os objetos para uma ceriménia tribal, A natureza instavel do sentimento religioso entre os negtos Loango é descrita por Eduard Pechuel- -Loesche em termos muito semelhantes aos de Jensen. A crenga dlesses selvagens nos espeticulose nas cerimonias sagradas é uma espécie de semicrenga, sempre acompanhada por uma atitude de troga e de indiferenga. O essencial, conclui esse autor, reside na atmosfera ou na disposicao criada””. No capitulo intitulado “Primitive Credulity’, de The Threshold of Religion (O Limiar da Religido), RR. Marett expe a ideia de que em todas as religides primitivas se encontra um certo elemento de “faz.de conta’. Tanto 0 feiticeiro como 0 enfeitigado sio ao mesmo tempo conscientes ciludidos. Mas um deles escolhe o papel do iludido: “O selvagem é um bom ator, capaz de se deixar absorver inteiramente por seu papel, tal como a crianga quando brinca; e também tal como a crianga, é um bom espectador, capaz.de ficar mortalmente assus. tado com o rugido de uma coisa que sabe perfeitamente nao ser tum ‘verdadeiro ledo”*. O indigena, diz Bronislaw Malinowski, sentee teme sua crenga, mais do que a formula de maneira clara para si mesmo”, Emprega certos termos e expressdes, que deve- mos recolher como documentos da crenga, tais como sio, sem procurar integré-los numa consistente teoria, O comportamento dos individuos aos quais a sociedade primitiva atribui poderes sobrenaturais pode frequentemente ser definido como um agindo conforme o papel”. ‘Apesar dessa consciéncia parcial do carater ficticio das coisas nna magia e nos fenémenos sobrenaturais em geral, os mesmos observadores insistem que dai nao se deve concluir que todo 0 sistema de crengas e priticas seja apenas uma fraude inventada por um grupo de “incrédulos’, tendo em vista dominar os “cré- dulos”, E certo que essa interpretagio nao sé é defendida por muitos viajantes, mas aparece até nas tradigoes dos préprios indi genas, mas, mesmo assim, nio é possivel que ela seja correta. “A ‘90, Tbidem, p. 240. " prigem de qualquer ato sagrado s6 pode assentar na credulidade * de todos, e sua manutencao espuiria em defesa dos interesses de “jm grupo s6 pode ser 0 produto final de uma longa evolugio” minha opiniao, também a psicanalise tende a recair nesta iquada interpretacéo das ceriménias de circunscisio e da berdade que Jensen rejeita com tanta razio. ‘De tudo isso decorre claramente, pelo menos para mim, 1a consequéncia: que é impossivel perder de vista, por um omento s6 que seja, 0 conceito de jogo, em tudo quanto diz peito a vida religiosa dos povos primitivos. Somos forsados stantemente, para descrever numerosos fendmenos, a empre- a palavra “jogo”, Mais ainda: a unidade e a indivisibilidade da pnca e da incredulidade, a indissoltivel ligagio entre a gravi- do sagrado ¢ 0 “faz de conta’ e 0 divertimento, so melhor ;preendidas no interior do proprio conceito de jogo. Embora ita a semelhanga entre o mundo da crianga e o do selvagem, Jénsen pretende estabelecer uma distingdo de principio entre a sntalidade de ambos. Quando colocada em presenca da figura Papai Noel, a crianca, segundo Jensen, encontra-se peranteum ito acabado’, no qual “se encontra imediatamente” gracas a si proprio talento elucidez. Mas “aatitude criadora do selvagem im relacdo as ceriménias aqui em questo é algo inteiramente srente. Ele nao se encontra perante conceitos acabados, e sim yerante seu meio ambiente natural, o qual exige uma interpre- 40; ele capta o misterioso demonismo desse meio ambiente procura dar-Ihe uma forma representativa”*. Reconhecemos 10s pontos de vista de Frobenius, que foi professor de Jensen. contudo, das objecdes. Em primeiro lugar, quando afirma ‘0 processo mental do selvagem é “algo inteiramente dife- Fente” do da crianga, Jensen esta se referindo, de um lado, aos riadores do ritual, e, de outro, a crianga de hoje. Mas nada sabe- mnos desses criadores, Tudo aquilo que podemos estudar é uma pmunidade religiosa que recebe as imagens de seu culto sob a rma de um material tradicional, tZ0 “acabado” quanto o mate- Hal no caso de crianga, e que reage a essas imagens de maneira smelhante. Em segundo lugar, e mesmo que desprezemos esse iro aspecto, continua inteiramente fora do alcance de nossa A) AE Jensen, op ci “92. Ibidem,p. 496. 152,

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