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ENFOQUE RESTAURATIVO E PROCESSOS CIRCULARES NOATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO Nirson Medeiros da Silva Neto! Josineide Gadelha Pamplona Medeiros? RESUMO © artigo abordaas possibilidades de utilizacao de praticas restaurativas e nao violentas no 4mbito do atendimento socioeducativo, com particular atencdo a metodologia dos circulos de construcao de paz (originalmente conhecida como peacemakingcircles). A Justica Restaurativa é uma abordagem de prevencdo e tratamento de conflitos expressamente prevista na legislacdo que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), sendo atualmente um standard internacional no tangente a justica juvenil, recomendado em diversos documentos que versam sobre os direitos de adolescentes em conflito com a lei. Recentes marcospolitico- normativos nacionais a tém consideradoum enfoque que deve orientar o atendimento socioeducativo no Brasil. Palavras-chave: Justiga restaurativa. Atendimento socioeducativo. Processos circulares. TPossui pos-doutorado pelo Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Instituto de Psicologia, da Universidade de S30 Paulo (USP). Doutor em Ciencias Sociais, area de Antropologia, e mestre em Direito pela Universidade Federal do Para (UFPA). Professor da Universidade Federal do Oeste do Para (UFOPA). 2Doutoranda no Programa de Pés-graduacdo em Sociedade, Natureza ¢ Desenvolvimento da UFOPA. Mestre em Direito, area de Direitos Humanos, pela Universidade Federal do Paré (UFPA), Juiza de Direito no Tribunal de Justica do Estado do Para (TJPA) 194 Acées Socioeducativas: Sadde Integral dos Adolescentes em Medida SocioeducativaeJustica Restaurativa 1INTRODUGAO Nas linhas abaixo, apresentamos o resultado de aprendizados oriundos tanto de pesquisas sociais quanto de experimentac6es empiricas acerca da utilizacao da metodologia dos processos circulares ou cfrculos de construcao de paz (em lingua inglesa, conhecida como peacemaking circles), tipica de uma forma restaurativa de se imaginar e praticar a justica, voltada para © fortalecimento e a qualificacdo do carater socioeducative do atendimento prestado a adolescentes em conflito com a lei que se encontram em cumprimento de Medidas Socioeducativas. Embora nossa experiéncia vivencial e de investigacao social com as praticas restaurativas na Socioeducacao este} uma especifica regido do Brasil - 0 oeste do Para, mais circunscrita a detidamente o municipio de Santarém, onde atualmente exercemosas fungdes de professor de uma universidade pablica e juiza de direito, com atribuicdes na seara da infancia e juventude =, as reflexdes contidas a seguir transcendem esta esfera local, posto que objetivam compreender experiéncias que vém sendo realizadas em diferentes unidades da Federacao. A despeito da diversidade de realidades econémicas em que estado situados, os programas que se utilizam de praticas restaurativas na Socioeducacao encontradigos em socioculturais, institucionais e diversos estados brasileiros compartilham algumas caracteristicas, desafios ¢ esperancas comuns na busca por se construir um sistema de atendimento socioeducativo mais humanizado e menos violento, em que de fato um enfoque restaurativo seja cotidianamente praticado, reconhecido e observado pelos atores que vivenciam a dura rotina institucional da execucdo de Medidas Socioeducativas. Esperamos que as consideragdes que seguem possam ser titeis ou, ao menos, servirem como inspiracao aos leitores e atores interessados em construir um trabalho socioeducativo mais congruente com o principio restaurativo que, apés a Lein?12.594/2012, por disposicao legal e obrigacdo institucional, deveria orientar a Socioeducacao, transcendendo a tradicao correcional, retributivi sta e disciplinadora que tem caracterizado ‘Actes Sacioeduativas: Sade Integral dos Adolecentes em Media Socioeducatva e Justice Restaurativa 195, atendimento socioeducativo e servido como obstaculo ao desenvolvimento de estratégias inovadoras capazes de contribuir para a edificacdo de perspectivas reintegrativas ~ no sentido atribuido a este termo por John Braithwaite (1989) -, nao apenas na dimensao discursiva, sendo igualmente no cotidiano vivenciado por socioeducandos, gestores, técnicos, monitores e demais servidores que experimentam a realidade deste mundo social a parte que sao as unidadessocioeducativas. Para tanto, o presente artigo traz reflexdes em torno dos usos de processos circulares na Socioeducagao como estratégia metodolégica capaz de promover intervengées que se alinham ao conceito de justica restaurativa e auxiliam no processo de construcao de espacos intencionais favorecedores de interagées sociais empiaticas, auténticas e, portanto, nao violentas, contribuindo para o aperfeigoamento do atendimento a adolescentes em cumprimento de Medidas Socioeducativas e para 0 robustecimento do cardter socioeducacional dos servigos prestados pelas instituigées que integram o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Em decorréncia das herancas do paradigma da situacdo irregular e da legislacao menorista que vigeram no Brasil por longas décadas, assim como, mais contemporaneamente, das tendéncias expansionistas do sistema repressivo e do recrudescimento do combate a criminalidade e a delinquéncia juvenil, a sociedade brasileira tem conhecido uma intensificagao do labeling approache das respostas do tipo lawandorder que inclinam-se ao etiquetamento dos adolescentes que praticaram atos infracionais ea sua desintegracao do contexto social, familiar e comunitério. A concepcao restaurativa de justica, em sentido contrario, sem negar a importancia de uma firme reprovacio dos comportamentos danosos, compreende a necessidade desta ser acompanhada de esforcos para se reintegrar os adolescentes em conflito com a lei a familia e A comunidade, através de abordagens que evitem a estigmatizacéo, na medida do possivel preservando a identidade dos adolescentes de etiquetas que os associem a trajetérias delitivas eassim distinguindo suas 196 Asses Socioeducativas Sa ntegal dos Adolescents em Medida Socieducativae Justica Restaurativa personalidades das condutas lesivas por eles praticadas. Deste modo, as Medidas Socioeducativas consistiriam na imposicao de sancées temporarias que deveriam ser aplicadas de tal sorte que nao se abrisse mao de expressdes de consideragdo e respeito durante 0 periodo finito que 0 cerceamento ou restrigao da liberdade viesse a ser imprimido como reacao social e estatal ao comportamento desviante das expectativas sociais generalizadas eprescritas em lei (BRAITHWAITE, 1989) A justica restaurativa no campo dos direitos de criangas e adolescentes em muito inspira-se na reforma do sistema dejustica juvenil experimentada na Nova Zelandia através do Children, Young Personsand Their Families Act, de 1989, que instituiu as conferéncias de grupo familiar como centro do sistema voltado ao processamento das infragées praticadas por adolescentes em conflito com a lei. Fundada em formas tradicionais de resolugao de conflitos do povo Maori, originario daquele pais, 0 uso das conferéncias segue o principio de evitar procedimentos criminais para o tratamento de conflitos relacionados a delinquéncia juvenil, incluindo, além dos atores estatais, as familias das vitimas e dos ofensores no processamento das frustracées as normas Jegais, fortalecendo assim a estrutura familiar e a vinculacao dos adolescentes a comunidade, ademais de poupa-los do encarceramento, optando-se, sempre que possivel, pela sangao menos restritiva de direitos e, sobretudo, da liberdade (ZEHR; MACRAE, 2015). Embora 0 Estatuto da Crianga e do Adolescente (ECA), de 1990, seja praticamente contemporaneo a lei que instituiu o sistema juridico neozelandés de protecdo aos direitos das criancas, pessoas jovens e suas familias, no contexto brasileiro, 0 enfoque restaurativo na justica juvenil ¢ no atendimento socioeducativo constitui um fenémeno bem mais recente, cujas primeiras iniciativas datam de aproximadamente uma década e meia atrds, quando, durante a gestao do presidente Luiz Indcio Lula da Silva, um convénio entre o Ministério da da Justica e o Programa da Nacées Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) financiou trés projetos-piloto de justica restaurativa no Brasil, nos municipios de Porto Alegre (RS), S40 Caetano do Sul (SP) e Brasflia (DF). A partir destes projetos inaugurais, um conjunto de outras experiéncias no Ambito do sistema de justica e para além dele foram Aces Socioeduativas: Sade Integral dos Adoescentes em Media Socioeducatva e Justice Restaurativa 197 desenvolvidas, disparando uma hist6ria efeitual que levou a justica restaurativa a transformar-se em um movimento social em franca expansao na atualidade, alcangando tanto a esfera institucional de administracao de conflitos quanto espagos nao institucionais voltados a prevencao ¢ enfrentamento da violéncia em diferentes cendrios sociais. No campo socioeducativo propriamente dito, foi apenas em 2012, coma Lei do SINASE, que se deu o passo inicial no sentido de incluir a exigibilidade da adocao de um enfoque restaurativo no atendimento dispensadoa adolescentes em cumprimento de Medidas Socioeducativas, visando a uma mais efetiva responsabilizacao, a participacao das pessoas direta ¢ indiretamente afetadas por atos infracionais e ao fortalecimento dos lacos afetivos ¢ sociais dos socioeducandos com suas familias ecoma comunidade. 2 DA CULTURA DA VIOLENCIA AO MOVIMENTO DA JUSTICA RESTAURATIVA Nos tltimos anos, temos visto emergir na sociedade brasileira um verdadeiro culto a violéncia com sérias consequéncias em termos de ameacas e violacdes de Direitos Humanos de um conjunto ampliado de individuos e segmentos sociais, especialmente daqueles que se encontram nas posicées sociais mais vulneraveis, entre os quais destacamos os adolescentes em conflito com a lei, que serao 0 foco das atencées deste texto. A cultura de violéncia encontra justificagdo e legitimagao no fato de o medo eo sentimento de inseguranga, em tempos recentes, haverem se tornado experiéncias liquidas (BAUMAN, 2008), istoé, socialmente difusas a0 ponto de discursos radicalizados de combate a criminalidade ¢ a delinquéncia juvenil facilmente contaminarem a opiniao publica, a despeito da completa auséncia de lastro técnico-cientifico ou de qualquer base racional por detras das ages violadoras de direitos reconhecidos e estandardizados internacionalmente. Entre os movimentos de reacdo a esta cultura da violéncia, encontramos 0 quese alinha a nogao de justica restaurativa. 198 Acées Socioeducstivas: Sadde Integral dos Adolescents em Medida Socioeducativae Justice Restaurativa, As ideias e praticas sustentadas por este movimento apresentam- se como alternativas contra-hegeménicas nao somente as formas tradicionais de administracdo de conflitos, mas também a discursos midiaticos e as dinamicas do sistema politico que se inclinam no sentido do endurecimento e da expansao das estruturas punitivas, exigindo um tratamento dos conflitos que envolvem adolescentes em confronto com a lei sob uma 6tica rigidamente retributivista que cobra do Estado respostas cada vez mais violentas, mediante uma austera linguagem de culpabilizacao e de moralizacao, através da propagagao da repressdo e do encarceramento. Esta orientacdo expansionista do sistema penal olvida que os conflitos inter-humanos, sobretudo ‘os vivenciados na adolescéncia, sao partes do processo de socializagao de pessoas em desenvolvimento (SIMMEL, 1983), 0 que significa dizer, em outras palavras, que, sob o véu dos conflitos, ocultam-se a complexidade e as contingéncias do estar no mundo de adolescentes inseridos, freqiientemente, em contextos sociais permeados pela violéncia, por estruturas sociais atravessadas por desigualdades e pela precariedade do atendimento de necessidades humanas basicas. O movimento da justica restaurativa acredita que o tratamento destas conflitualidades, ao contrario da visao encontradiga nas perspectivas tradicionais de administracao de conflitos, tendentes a etiquetar os adolescentes em conflito com a lei como inimigos sociais, seria melhor equacionado em se buscando, a partir delas, aprendizados que nos levassem a solucées criativas capazes de enriquecer e fortalecer a todos os envolvidos, nomeadamente as vitimas, ofensores, familiares e comunidades afetadas. Parafraseando John Paul Lederach (2013), poderiamos dizer que 0 movimento da justica restaurativa compreende os conflitos como oportunidades de transformacao de situacées de crise em solugdes desejadas, néo somente para os atores diretamente afetados pela conflitualidade, mas igualmente para a sociedade mais amplamente considerada. Nos processos restaurativos, as solugées séo construidas através do didlogo e mediante praticas comunicativas estruturadas de sorte a favorecer que os participantes da interacdo sintam-se seguros para revelar seus sentimentosenecessidades, expondo Aces Socioeduativas: Sade Integral dos Adoescentes em Media Sacioeducatva e Justice Restaurativa 199) 200 sua vulnerabilidade e sendo estimulados a exercitar a empatiae a compaixao pelo outro, seu interlocutor e, comumente, portador de uma pretensdo de validade diversa, com sua particular interpretacdo dos fatos e com reagées sentimentais a estes também singulares, de consonancia com suas préprias vivéncias pessoais (ROSENBERG, 2006). Neste sentido, os programas de justica restaurativa promovem encontros em espacos intencionalmente construfdos com fito a desbloquear os canais de comunicacao colapsados por situacées contflitivas, e isto sob a condugao de profissionais treinados para intermediar conversas dificeis em que os interlocutores se acham tensionados e/ou com dificuldades de falar honestamente e exercer uma escuta empatica. Isto porque a conflitualidade, recorrentemente, motiva os individuos a comportamentos defensivos ou mesmo manipuladores, conduzindo-os a acdes que objetivam a subjugacdo do outro, a negacdo de suas experiéncias com a verdade ou ainda a supressao de suas pretensdes de validade, posto que o interlocutor é visto como um concorrente, um adversério a ser vencido, e nao como um parceiro na construcao cooperativa e consensual de uma solugao que atenda a todos os conflitantes, levando-os ao entendimento. Em outras palavras, diante de uma situacdo conflitiva, sem uma conducao que favoreca este processo, os envolvidos tendem a agir de forma nao comunicativa, procedendo com vistas 4 autopreservacao, quando nao de modo patentemente estratégico, isto é, ponderando os melhores meios para alcancar o éxito dos fins visados ou imaginados, em total desconsideracdo ao outro e a seus pontos de vista, sentimentos e necessidades, 0 que elimina qualquer possibilidade de acordo e enfraquece os processos de compreensao mtitua (HABERMAS, 2010). Neste sentido, é uma dinamica relativamente comum nos conflitos inter-humanos a tendéncia de eliminagao da alteridade, isto 6, daqueles que apresentam vivéncias e pretensdes de validade diferentes daquelas que possuimos. Com frequéncia, os atores de uma controvérsia se extremizam, isto é, vao paraas extremidades e por vezes para comportamentos extremos, Actes Socioeducstivas Sade Integral dos Adolescents em Medida Socoeducativn e Justice Restaurati polarizando a conflitualidade e produzindo dualismos que lhes distanciam de hipéteses de entendimento, ao perceberem o conflito como a oposigao entre a sua consciéncia e a do outro. Enquanto se mantém neste dualismo classificatério, so parcas as chances de alcangarem um acordo satisfatério e uma solucao que transforme o conflito em aprendizado, com vistas ao fortalecimento e enriquecimento dos envolvidos. A justica restaurativa, através do uso de técnicas especificas de estruturacdo de condicées nao violentas de comunicabilidade, auxilia os conflitantes na construgdo de uma consciéncia mais ampla do conflito em que esto emaranhados, contribuindo para © despertar de atitudes cooperativas na busca por solugdes, o que pode passar por uma compreensao mais dilatada da situacao conflitiva, percebendo ponto de discordancia apenas como © epifendmeno de um processo mais profundo, que tra: subjacentes sentimentos e necessidades pessoais, além de aspectos relacionais, questdes culturais e outras circunstancias tocantes a estrutura social, todos em grau relevante para a edificagao de uma solucao desejada para o conflito (LEDERACH, 2013). Mediante a promogao de encontros face a face, em condigdes seguras de comunicagao, os programas de justica restaurativa proporcionam ambientes e circunstancias favoraveis a vivéncia de um didlogo verdadeiro, quer dizer, quando os interlocutores tornam-se capazes de tratar um ao outro como Tu, de forma respeitosa e dignificadora da pessoa que se encontra perante si, do ser humano com quem se est a interagir naquele momento, abandonando assim o impulso, inflamado pelo conflito, de traté-lo como Isso, como alguém passivel de utilizacao, experimentacao, instrumentalizacéo, como se apenas uma coisa fosse, nada mais, em completa negacao de sua dignidade, de seu valor em si mesmo, de sua humanidade nao objetificdvel (BUBER, 2001). Em outras palavras, as experiéncias de justica restaurativa visam restaurar a eticidade nas relacdes sociais, isto 6, as condigdes necessarias para que aqueles que agem em uma determinada situacao social atuem, em face do outro, objetivando ao bem viver com a alteridade que encontra sua Actes Sacioeduativas: Said Integral dos Adoleacentes em Media Socioeducatve Justiga Restaurativa 20] 202 frente, 0 que implica um necessario reconhecimento mtituo, experiéncia esta que Martin Buber (1982) designara como dilogo, mas que poderiamos simplesmente chamar de resgate da visada ética na interacao social (RICOEUR, 2014).E aconstrugao de um padrao superior de eticidadenas relacées inter-humanas traz per se © potencial deproduzir transformagées de padrdes que alcancam a escala mais amplada sociedade, gerando desenvolvimento em termos de instituicdes mais justas, equitativase eficazes (HONNETH, 2009). ‘As préticas restaurativas visam propiciar a ambiéncia necesséria para que uma relacdo genuina se estabeleca entre os participantes do momento restaurativo, 0 que, conforme veremos, pode envolver nao apenas os protagonistas diretamente engajados em um conflito, mas também seus familiares ¢ outros membros da comunidade, na qualidade de interessados ou apoiadores. Alias, s6 i acontecer até mesmo de as praticas restauradoras serem utilizadas em situacdes nao conflitivas, destinadas a gerar compreensao de uma dada pessoa esuas acées, restabelecer ou oferecer suporte a vitimas de comportamentos ofensivos, realizar celebracdes, tomar decisdes consensuais, desenvolver discussdes sobre temas delicados, favorecer ocasioes de aprendizagem, entre outros objetivos. Como pano de fundo, cremos nao ser despropositado afirmar que as praticas restaurativas acreditam no pressuposto de que o entendimento sobre algo no mundo parte do potencial humano para - e aqui lembramos uma memordvel obra de Carl Rogers (2009) - sermos auténticos e transparentes, manifestando nossos sentimentos reais quanto a uma dada questdo, buscando compreender outro em sua diferenga e singularidade, e isto tudo na medida de nossa capacidade para exercitarmos a empatia, ou seja, para estarmos sensiveis e abertos a ver 0 outro e seu mundo tal qual ele se autocompreende e como percebe seu universo demasiado particular. Este exercicio revela a nossa humanidade bem como a humanidade do outro, tornando o Eu e o Tu pessoas concretas, em seu poder e emsua vulnerabilidade, alijados das mascarase Ais Socioeducstivas: Sadde Integral dos Adolescents em Medida Socoeducativae Justica Restaurativa armaduras que utilizamos no dia a dia para nos proteger das ameacas, violéncias e adversidades inerentes As interagdes sociais. A humani: zacao da interacdo, a que tanto Buber quanto Rogers chamam de relagiio, constitui a condigdo para que um didlogo franco aconteca. As praticas restaurativas, sobretudo as baseadas na metodologia dos circulos de construcao de paz, que seré por nés aqui privilegiada, seguem esta orientacao na busca por estruturar espacos onde pessoas podem se encontrar e conversar abertamente e com seguranga, travando uma comunicacao fundada na transparéncia, autenticidade e empatia. fo chamariam Alguns autores, como Jiirgen Habermas (2010), a is de condigées ideais de fala. Preferimos, acompanhando Marshall Rosenberg (2006), falar de uma ocasiao em que podermos praticar a comunicagao nao violenta, isto é, expor sentimentos, necessidades e pontos de vista com a garantia de que estes serdo respeitados pelos demais participantes da interacao, que terdo igual oportunidade para manifestar suas visdes, emoces e aquilo de que precisam e gostariam de pedir, a fim de enriquecer suas vidas e atender suas necessidades patentes ou Jatentes no momento da conversacao. 3 JUSTIGA RESTAURATIV. DEFINIGAO : CONTORNOS DE UMA Feitas estas consideracées gerais, ¢ importante acentuar alguns aspectos conceituais que entendemos fundamentais paraa compreensao do objeto das reflexes contidas neste artigo. ‘Apesar da semelhanca com outras estratégias de administracio de conflitos, Howard Zehr (2007) leciona que, por definicao, a justica restaurativa constitui um modelo baseado na busca de que os ofensores reconhecam o mal causado eaceitem,emalguma Actes Sacioeduativas: Said Integral dos Adolescente em Media Sacioeducatva e Justice Restauratva 203, 204 medida, a responsabilidade por sua acdo, assumindo obrigacées que objetivem a reparagao dos danos. De acordo com o autor, 0 modelo restaurativo distingue-se pelo envolvimento, dentro do possivel, de todos os que tenham interesse em um conflito particular, visando identificar e enfrentar coletivamente os problemas, as necessidades e as obrigacdes deles derivadas, com 0 propésito deliberado de sanar e endireitar, da melhor forma, os prejuizos eventualmente causados. Nao se trata, portanto, apenas do estabelecimento de acordos entre partes, mediados por terceiros imparciais, atravésdos quais chega-se a resolugdo de conflitos intersubjetivos,reforcando assim a estrutura normativa vigente. Ao contrario, a justica restaurativa nao considera os envolvidos como litigantes que podem transacionar seus interesses e até mesmo alguns de seus direitos, a fim de alcancar 0 entendimento sobre uma contenda. O foco do modelo restaurativo no sao as regras violadas nem os interesses das partes, sendo os danos que emergiram de uma situagao conflitiva, que devem ser reparados, assim como as condigées e relacées anteriormente existentes que precisam ser restauradas (se este for um empreendimento factivel) ¢ as vezes inclusive transformadas em termos qualitativos. Por isso, 6 uma das principais diretriz entimentos do modelo restaurativo conferir especial atengao a enecessidades das pessoas que figuram como vitimas dos atos de outrem, com vistas a auxilid-las na recuperagaio de sua estrutura psicoemocional, oferecendo-Ihes subsidios para a superacao dos danos que sofreram. Nas palavras de Zehr: Em vez de definir a justica como retribuicio, nés a definiremos como restauracao. Se o crime é um ato lesivo, a justia significaré reparar a lesdo epromoveracura. Atos de restauracao-aoinvés de Agies Socioeducativas Sade Integral das Adolescents em Media Sociveducativa eu mais violagdo ~ deveriam contrabalangar os danos advindos do crime. E impossivel garantir restauragio total, evidentemente, mas a verdadeira justica teria como objetivo oferecer um contexto no qualesse processo pode comecar. [.] © primeiro objetivo da justica deveria ser, portanto, reparacao ecura paraas vitimas Cura para as vitimas ndo significa esquecer ou minimizar a violacéo. Implica num senso de recuperagao, numa forma de fechar o ciclo. A vitima deveria voltara sentir que a vida faz sentido eque ela esté segura e no controle. © ofensor deveria ser incentivado a mudar. Ele ou ela deveriam receber a liberdade de comegar a vida de novo. A cura abarca um senso de recuperagao e esperanga em relacdo ao futuro (ZEHR, 2008, p.176). A justica restaurativa, por seguimento, diferencia-se da justica tradicional, centrada na retribuigao do mal ao ofensor ena busca pela confirmacao da norma através da repressao exemplar, capaz. de gerar a um s6 tempo as chamadas prevencao geral ¢ prevengao especial de outros comportamentos desviantes. Trata-~ se de um paradigma de administragio de conflitos voltado mormente a satisfacdo das necessidades das vitimas ¢ ao reconhecimento de seus direitos, percebendo a ofensa como danos causados a pessoas concretas, a certos relacionamentos, a famili ea comunidades determinadas, ao invés de uma violacdo a leis e regras abstratamente consideradas. Apesar disso, a lente restaurativa 6 atenciosa igualmente aos ofensores, que também sao vislumbrados de forma contextualizada e sistémica, enquanto sujeitos de direitos, portadores de necessidades e de estruturas psicoemocionais, frutos de um dado ambiente social, cultural, afetivo e familiar, detentores de certas condigdes socioecondmicas e de trajetérias de vida singulares, membros de comunidades, de Actes Sorioeduatvas: Sade Intel dos Adolecetes em Media Socleducative Justia Restaurativa 205 206 grupos especificos ¢ da sociedade. Conquanto estes fatores nao sejam tradicionalmente considerados no tratamento de conflitos, por certo nao sao de somenos importancia para sua compreensao, a assuncao de responsabilidades ¢ a administracéo de conflitualidades, posto que as situagdes conflitivas normalmente costumam apresentar relages, mais ou menos diretas, com alguns destes fatores que, com frequéncia, combinam-se para formar inclinagées, momentaneas ou duradouras, para comportamentos potencialmente lesivos a outrem. O reconhecimento do carater complexo e plurifacetado dos conflitos em nada obsta, na dtica da justica restaurativa, que os ofensores recebam a responsabilizacaio por seus comportamentos, podendo inclusive tornarem-se participes da transformacao da conflitualidade e da restauracao, ao tomarem ciéncia dos efeitos funestos de suas condutas e serem chamados a contribuir ativamente paraa reparacdo dos danos e paraa cura das vitimas. (© modelo restaura 1 de prevencao e tratamento de conflitos, entao, singulariza-se por nao tratar os delitos, as infragGes ou os comportamentos desviantes como ofensas ao Estado e a sua estrutura normativa, Esta perspectiva convencional, assumidamente legalista, desconsidera por completo os personagens reais envolvidos nas problematicas, os contextos em que as violéncias sao produzidas, suas consequéncias para as vitimas, as familias, as comunidades e os prprios ofensores, os sentimentos em questdo e as efetivas necessidades das pessoas afetadas pelo conflito, assim como a melhor maneira de reparar os danos ocasionados, objetivo que, no mais das vezes, nao € sequer aventado no processamento realizado tradicionalmente, quando muito sendo considerado no célculo da pena ou da medida a ser imposta. A justica restaurativa, diferentemente, inaugura um novo paradigma de administracéo de conflitos que ‘Acies Socioeducativas Sade Integral das Adolescents em Medida Sociveducativae Justica Restaurativa guarda especial atencao as pessoas concretamente abrangidas por uma situacao conflitiva, com vistas a resguardar sua dignidade humana (SILVA, 2009), correntemente lesada pelo ato de violéncia que costuma transmitir um sentimento de insegurancae de auséncia de controle sobre os acontecimentos (e desapontamentos) da vida, afetando as interacées sociais dos envolvidos, sobretudo das vitimas diretas, mas também das familias e de outros membros da comunidade. O modelo restaurativo entende a justica, portanto, como a reparacao da lesdo e a cura dos males causados a todos os envolvidos no conflito, entre os quais, em certos casos, podemos inclusive inserir os autores das ofensas processadas, os familiares e os comunitarios que nao sofreram diretamente os efeitos da acio ofensiva, muito embora se ressentiram de suas consequéncias secundarias, como a desestabilizagao familiar e a instauragdo do sentimento de medo e inseguranca na comunidade. Deste modo, a realizacao da justica perpassa muito mais pela restaurago da dignidade de pessoas reais, de sua qualidade de vida, satide fisica, psicoemocional e ambiental, de sua seguranca e esperanca em um futuro confidvel, do que por quaisquer outras razées, tio discutidas academicamente para se entender ajustica. A despeito de alguns autores a apresentarem como um simples método alternativo ou consensual de solucao de conflitos, compreendemos a justica restaurativa como uma forma de se imaginar e praticar a justica que inclui, na medida do posstvel, vitima, agressor, familias e comunidades no processo de construcdo de respostas ativas a atos que violaram pessoas e relacionamentos, gerando obrigagdes de reparacao e atendimento denecessidades humanas que podem ser encaminhadas de modo ase evitar a reincidéncia de atos danosos ese enfrentar os fatores Aces Socioeduativas: Said Integral dos Adoleacentes em Media Sacioeducatva e Justice Restauratva 207 subjacentes ao conflito - em outras palavras,putthingsright, como costuma dizer Zehr (2007 e 2008). Numa acepsao restaurativa, puttingright significa, entre outras coisas, promover-se a responsabilizacao ativa do agressor (accountability), obter-se reparacao para a vitima (ainda que meramente simbélica), bem como favorecer-se a participacao de familias e comunidades no tratamento do conflito com fito a construgdo de encaminhamentos e prevengao de novos incidentes lesivos. Desta forma, a justica restaurativa implica o uso de metodologias colaborativas e inclusivas que trazem para o processo todas as pessoas e/ou grupos interessados que podem contribuir para 0 desenvolvimento de solucées e planos de agao, partilhando responsabilidades e assumindo obrigacdes que visem satisfazer as necessidades de todos os envolvidos numa determinada situacao conflitiva (ZEHR, 2007 e 2008). Mas, para além disto, a experiéncia também nos mostra que a justica restaurativa possui um grande potencial para estimular a estruturacao de redes, a conexao entre pessoas e instituicées, incentivando assim o trabalho interdisciplinar e multi-institucional na prevencao e enfrentamento de conflitualidades sociais. Assim, um resultado secundario, mas nao menos importante, das abordagens restaurativas é sua contribuicao para a articulacdo do sistema de justia com outros servicos, instituicées e grupos que atuam em diversos setores da sociedade, como escolas, universidades, prisées, policias, servicos de assisténcia social, atendimento a adolescentes em conflito com a lei, assisténcia a vitimas de violéncia doméstica/familiar e sexual, apoio a vitimas de violéncia de género (populagao LGBT+, por exemplo), comunidades e grupos religiosos, envolvendo profissionais de diferentes areas do conhecimento e, nao em menor grau, membros de comunidades - estes iiltimos, inclusive, na condicao de facilitadores dos processos restaurativos (SILVA NETO ; MEDEIROS, 2018). Na literatura que versa sobre a temética, a forma de imaginar e praticar ajustica que contemporaneamente chamamos de restaurativa é correntemente associada a sistemas de justica de base comunitéria ou, para usar uma categoria cunhada e 208 Aces Sociveucativa: aie Ineraldos Adolescente em Meda Socoeducatva Justia Restaura notabilizada por Clifford Geertz (1997), a sensibilidades juridicas locais que caracterizam povos e comunidades tradicionais como im alguns gruposamerindios e os Maori da Nova Zelandia, a: como a ideias de justiga de comunidades confessionais da América do Norte, especialmente as menonitas. Porém, a despeito de como a tematica é tratada por vasta literatura que versa sobre este campo, compreendemos que o conceito de justica restaurativa corresponde a uma unidade narrativa que da coesao e sentido a uma diversidade de experiéncias sociais a priori desconectadas e produzidas em contextos distintos, por vezes nominadas através de outras categorias (conferéncias vitima- ofensor, Programas de Reconciliagao Vitima-Ofensor, conferéncias de grupo familiar, peacemaking circles, Escolas do Perdao e da Reconciliacao, fambultoks, Comissdes de Verdade e Reconciliacao etc.), mas que se unificam a medida que sao associadas como correspondendo a uma determinada forma de se imaginar e praticar a justica?. Todas estas experiéncias,com diferentes designacées, de alguma forma emergem da insatisfacdo com © sistema de justica moderno-ocidental que tradicionalmente nao considera a participagéo das pessoas e grupos diretamente interessados na solucdo de situagdes conflitivas em razao da centralizacao da responsabilidade pela resolugao das contendas na figura do Estado, bem como no papel dos especialistas do campo do direito, a saber, advogados, zes e demais defensores piblicos, promotores de justica, ju profissionais do mundo juridico. Ademais, o sistema de justia 3 Nossa compreensao da justica restaurativa parte da teoria narrativa de Paul Ricoeur (2014), inaugurada na coletanea Tempo e Narrativa e presente em obras, posteriores. A perspectiva metodolégica de Ricoeur compreende a hist6ria ‘como um conjunto de acontecimentos nao necessariamente coesos, sequenciais, € interconectados que, porém, adquirem significado e unicidade a partir daquilo que autorchama de unidade narrativa. Aces Socioeduativas: Sade Integral dos Adolescente em Media Sacioeducatva e Justice Restaurativa 209) moderno, sob uma rigida estrutura moral que caracteriza as culturas ocidentais, correntemente focaliza a culpabilizacao individual dos autores de ofensas (ofensores) ¢ a concorréncia entre os atores envolvidos, deixando de lado as necessidades reais dos receptores das ofensas (vitimas), das familias e das comunidades afetadas pelo conflito e/ou nas quais este tenha ocorrido, muitas vezes de forma duradoura e nao raro até mesmo intergeracional, com consequéncias, traumas ¢ sequelas para um numero ampliado de atores sociais (ZEHR; AMSTUTZ; MACRAE; PRANIS, 2015; ZEHR, 2007 ¢ 2008) Em resposta a verdadeira “desapropriagao” dos conflitos experimentada pelos sujeitos individuais ¢ coletivos mais diretamente afetados, empreendida pelo Estado modernoe tao bem criticada por criminologistas como Nils Christie (1977), principios e praticas de justica restaurativa passaram a ser disseminados por muitos paises, inicialmente no contexto da justica criminal, mas posteriormente vindo a ser usados, em diversas partes do mundo, em diferentes cendrios onde sao correntes situagdes conflitivas geradoras de danos, reais ou potenciais, a pessoas e relacionamentos, bem como a tessitura social. Hodiernamente, concepgées ¢ iniciativas de justica restaurativa so encontradas em contextos conflitives tanto de baixa como de alta complexidade para a prevencao e 0 enfrentamento de conflitualidades que vao desde disputas no interior de grupos de parentesco, em escolas e comunidades, até experiéncias de justica de transigao, em conjunturas de pés- guerra, pés-apartheid, qual é 0 caso das Comissées da Verdade ¢ da Reconciliacao na Africa do Sul, dos FambulTok sem Serra Leoa e das Escolas de Perdao ¢ Reconciliagao (ESPERE) na Colémbia. Embora nao deva ser considerada uma panacéia aplicavel a todo e qualquer tipo de conflitualidade social, a amplitude de sua aplicagao demonstra a versatilidade e a adaptabilidade das praticas restaurativas a variados contextos e propésitos que envolvem questées de conflito e atos danosos. A despeito de originalmente se constituir como um modelo de justica de base comunitéria, no Brasil, a administracao de situagdes deconflito 210 Actes Socineductivas: Side Integral dos Adbescentes em Medida Socioeductiva «Justice Restaurativ fundada em ideais de justica restaurativa passou a ser adotada ha cerca uma década e meia tendo o Poder Judiciério como principal protagonista e centro irradiador, 0 que nao deixa de ser uma caracteristica do modo como incorporamos a nosso sistema sociocultural e juridico um modelo a priori exégeno, pautado em padrdes até muito recentemente desconhecidos na sociedade brasileira. Apesar da preexisténcia de experiéncias em espacos comunitarios, a narrativa histérica mais convencional da justica restaurativa no Brasil acentua como marco inicial da utilizagao deste modelo no pais a instituicéo de trés projetos-piloto que decorreram do convénio firmado entre o governo brasileiro e 0 PNUD, que financiou as primeiras experimentagdes no ambito do Poder Judiciario, a partir de 2005, tendo um de seus mais recentes importantes capitulos com o advento da Resolucao n. 25/2016, do Conselho Nacional de Justica (CNJ), que instituiu a Politica Nacional de Justica Restaurativa no ambito do Poder Judiciario. 4 ENFOQUE RESTAURATIVO E PROCESSOS CIRCULARESNO ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO Conforme visto anteriormente, 0 modelo restaurativo, desde sua origem historica na contemporaneidade, organizou-se em torno de preocupacgées quanto a reestruturacdo das formas tradicionais de prevencao e tratamento de conflitos configurados como crimes ou atos infracionais, especialmente aqueles que produzem danos a pessoas e relacionamentos, o que, no entanto, nao obstou sua aplicagio em outros contextos, tendo ele encontrado na justica juvenile no atendimento socioeducativo terrenos férteis para sua disseminagao de forma sistémica ¢ generalizada, néo somente no Brasil como também em outros paises, sendo por isso hoje considerado um standard para os sistemas juridicos de protecéo de direitos de criancas e adolescentes. Isto se justifica pelo fato da justica restaurativa ir a0 encontro de principios basilares que orientam este subsistema juridico, taiscomoa nao discriminacao, 0 direito de ser escutado, Actes Socioeduativas: Sade Integral dos Adoleacentes em Media Sacioeducativa eJustiga Restaurative 2] ] adiversion, o tratamento nao criminal, o envolvimento da familia, © fortalecimento dos lacos com a comunidade, a opcao pela minima restricao de direitos e da liberdade e a consideracao dos adolescentes como pessoas em desenvolvimento. Nao por outra razdo, em Ambito internacional, encontramos um conjunto de diplomas normativos que recomendam o uso de processos restaurativos pelos sistemas de justica juvenil, os quais sio identificados como o subsistema de justica mais propicio ao desenvolvimento de programas de justica restaurativa. E de fato, em diferentes paises, de forma anéloga ao Brasil, a justica juvenil tem se demonstrado um campo para a inovacaéo em matéria de praticas restaurativas, diversamente do subsistema abrangente dos adultos, mais rispido e fechado a inputs de perspectivas dialégicas, nao violentas e humanizadoras, em face de seu carater ador disciplinador (de corpos e mentes), retributive e moral (orientado a correcdo moral do delingiiente), como muito bem descreve Michel Foucault (1987; 2005). A outro turno, no tangente ao sistema de atendimento socioeducativo brasileiro, as praticas restaurativas, desde a Lei n. 12.594/2012, apresentam-se como um dos principios do SINASE (ao lado de princfpios tradicionais como o da legalidade, da proporcionalidade e da minima intervengao, entre outros), 0 que denota a importancia conferida pelo legislador nacional a justica restaurativa nos processos de Socioeducacao, um input trazido ao sistema com o propésito de reforcar a orientacao socioeducativa ~ ao invés de simplesmente punitiva, disciplinar e correcional ~ das medidas impostas aos adolescentes em conflito comalei. Este cardter socioeducativo de fato (e nao apenas de direito), contudo, nem sempre é um traco da cultura institucional emuitos sdo os obstaculos para sua efetivagéo no cotidiano das 212, Acdes Sociveducstvas: Sade integral dos Adolescents em Medida Socioeducativae ustica Restaurativa instituicdes do sistema de atendimento socioeducativo, 0 que justifica acdes de fomento estimuladoras do sistema, a fim de que este se volte verdadeiramente para processos socioeducacionais ¢ para a construgdo de melhores condigées a insercao social dos socioeducandos, sobretudo no que tange a reducao da probabilidade de reincidéncia em atos infracionais. Neste sentido, mediante a adocao de perspectivas de concretizacao dos Direitos Humanos de criangas e adolescentes, vemos Brasil afora, em diversas unidades da Federacao, 0 desenvolvimento de um conjunto de acdes direcionadas a incentivar o Judiciario e as instituigdes de atendimento socioeducativo 4 estruturacao de sistemas restaurativosvoltados ao fortalecimento e qualificagao do carater socioeducativo do atendimento prestado a adolescentes em conflito coma lei que se encontram cerceados ou restringidos em sua liberdade. Conquanto nossa compreensao da tematica parta das vivencias e pesquisas sociais que construimos em uma regiao especifica da Amazénia oriental, sem pretensao de descrever uma experiéncia localizada nem revisitar cada um dos programas nacionais que tém construfdo aprendizados no que toca ao uso de praticas restaurativas na Socioeducacao, no presente t6pico, pretendemos apresentar como este processo vem. ocorrendo em muitas unidades socioeducativas brasileiras, a fim de edificarmos reflexdes sobre sua pertinéncia A implantacao e implementacao de um sistema de atendimento socioeducativo da limitages deste método para explorarmos uma tematica tao taurativo no Brasil. Estamos cient com enfoque 1 complexa e carente de mais consi porém os anos de experiéncia com justica restaurativa na Sociveducacéo e em outros cenarios nos tém levado a acreditar, cada vez mais, no potencial da sabedoria pratica para a tentes investigacées sociais, Aces Socioeduativas: Said Integral dos Adoleacentes em Media Socioeducatva e Justice Restauratva 213, emancipacao e transformacao de estruturas violentas e de longa duracdo, assim como dos padrées culturais que as sustentam duradouramente, obstaculizando mudancas significativas do tipo long-term que demandam, além de um conjunto de estratégias conscientemente elaboradas, algum grau de serendipidade necessario para se acreditar em soludes que por vezes nos aparecem do fortuito e dos saberes praticamente compartilhados (LEDERACH, 2011; SCHIRCH, 2004) ~ a phronesis aristotélica, como diria Hans-Georg Gadamer (2015) -, que nem sempre adquirimos por intermédio de conhecimentos técnico-cientificos,metédica e rigorosamente controlados No interim do movimento de justica restaurativa na Socioeducacao, a maioria dos programas brasileiros tem optado por adotar a metodologia dos circulos de construgao de paz ou processos circulares como principal estratégia de implantacao e implementacdo de um enfoque restaurativo no atendimento socioeducative. Como bem recorda Zehr (2007), esta abordagem, que pode ser consultada em diversas obras de Kay Pranis (como, PRANIS, 2010a; 2010b; 2011; e PRANIS ; BOYES-WATSON, 2011 e 2018; PRANIS; STUART; WEDGE, 2003), 6 apenas um entre os varios mapas existentes que podem nos conduzir a experiéncias restaurativas, embora consista atualmente na metodologia mais disseminada entre os praticantes da justica restaurativa no Brasil que frequentemente se revelam entusiasmados com os resultados que observam e com as transformacées promovidas em suas vidas pessoais ¢ nos contextos profissionais em que atuam. Os circulos se valem de elementos simbélicos, de facil assimilacgao, que ajudam a construir espacos extracotidianos que permitem a escuta atenta e empatica, necessidades, bem como aconstrucao de relacdes saudaveis e de decises consensuais. Coma estruturacdo 214. Acies Socioeducativas: Snide Integral dos Adolescents em Medida Socioeducatva e Justice Restaurativ cuidadosa dos processos circulares, observando um conjunto de principios e recomendagdes metodolégico-procedimentais, embora nao menos substantivas (porque voltadas para, antes de tudo, a identificacao de valores e diretriz comuns que conectam 0s participantes uns aos outros e favorecem um didlogo desalienado das mascaras impostas pelas relagdes sociais cotidianas, atrés das quais regularmente escondemos nossa subjetividade, hist6rias de vida e dores do dia a dia), elabora-se nao somente um espaco, mas uma ocasiao sobejamente favoravel prevencao e ao tratamento de conflitos, assim como a abertura dos envolvidos a possibilidades de respeito mituo, empatia, alteridade, compreensao e até mesmo perdao e reconciliacao - embora estes dois tltimos nao sejam objetivos das praticas restaurativas -, capazes de propiciar o entendimento do outro, a consideracao de suas razées, 0 acolhimento de suas emocées e a percepcao da dignidade dos participantes da ocasiao restaurativa, posto que todos sao vistos em sua vulnerabilidade, assim como no que possuem de valor, naquilo que lhes singulariza enquanto pessoas reais e concretas, ao invés de ideais e abstratas, como se tende a tratar os individuos nas iniciativas retributivistas e moralizadoras de resolugao de conflitos. Nas palavras de Pranis e Boyes ~ Watson (2011, p.16): CO circulo de construcéo de paz é, acima de tudo, um. lugar para criar relacionamentos. & um espaco em que os participantes podem se conectar uns com os ‘outros. Essa conectividade inclui nao s6 a ligacdo com 0 facilitador ou a pessoa que trabalha com 0 jovem (professor, conselheiro, etc), mas também com os outros participantes. O circulo podeajudar a fortalecer a familia, dandoaseus membros a chance Aces Socioeduativas: Said Integral dos Adoleacentes em Media Socioeducatva e Justice Restauratva 215, 216 de reconhecer seus préprios recursos. Também pode ajudar a redirecionar uma cultura de jovens para uma direcdo positiva, criando oportunidade dos jovens serem uma fonte de apoio e sabedoria um para com o outro, O circulo de construcao de paz é ‘um lugar para se adquirir habilidades e habitos para formar relacionamentos saudaveis, ndo s6 dentro do circulo, mas também fora dele. Alhures, Pranis (2010a, p.10) leciona que: “os circulos so uma forma de estabelecer uma conexao profunda entre as pessoas, explorar as diferencas ao invés de extermind-las”, o que demonstra a intencao das praticas restaurativas de nao resolver os conflitos, no intuito de acabar com as“ diferencas” existentes entre as partes (como as vezes se nomina os conflitos na linguagem popular), mas sim transforma-los e fazer com que as pessoas envolvidas numa situago conflituosa compreendam melhor a si mesmas e aos outros por intermédio da conflitualidade, Por sua caracteristica favorecedora da construcao de relacionamentos saudaveis e do processamento de conflitos de forma dial6gica e consensual, os processos circulares so uma das estratégias metodolégicas recomendadas para a institucionalizacéo de praticas restaurativasno ambito dos sistemas de justicajuvenil e deatendimento socioeducativo, sobretudo apés o advento da Lei n. 12.594/2012, que instituiu 0 SINASE e considerou © processo restaurativo um dos principios que orientam a Socioeducacdo e, por consequéncia, as instituigdes que aplicam e executam Medidas Socioeducativas. Segundo este marco legal, as praticas restaurativas devem informar todas as relagdes que se dao no contexto da justia juvenil e das instituicdes socioeducativas, do processamento judicial do ato infracional, aplicacao da medida e ingresso do adolescente no Sistema Socioeducativo, passando pela construgao do Plano Individualizado de Atendimento (PIA), pelas medidas disciplinares e pela resolucéo de conflitos internos, chegando as visitas familiares e as relagdes dos gestores, técnicos e monitores com os socioeducandos, até por fim sua reintegracao a sociedade. Neste sentido, os circulos de construcao de paz so caminhos possiveis de efetivacao do principio restaurativo previsto no SINASE, posto que estimulam nos participantes desenvolvimento de atitudes, competéncias e habilidades pautadas em relagdes éticas, gerando conexdo entre os envolvidos no processo circulareincentivandoo estabelecimento de interacdes nao violentas cies Socioeducativas Sade Integral das Adolescents em Media Socieducativa eu capazes de aprender sentimentos e necessidades nao manifestos nas conversacées cotidianas, aprendizados estes que sao de suma relevancia para a Socioeducacao, visto que voltada a reeducacao de comportamentos e interagdes sociais de adolescentes em conflitocomalei. No curso do atendimento socioeducativo, com fito a contemplar o prinefpio restaurativo que orienta a Socioeducaco, os processos circulares podem se apresentar sob diversas perspectivas e visando a variados objetivos, que oscilam desde a promogao de didlogos respeitosos sobre tematicas de inter e aos socioeducandos, a aprendizagem de assuntos apresentados ou discutidos pelos educadores nas ocasides de ensino, 0 comprometimento com 0 cumprimento da medida por parte do adolescente ~ no decorrer da elaboracio ou acompanhamento do PIA -, 0 fortalecimento de seus vinculos familiares, 0 enfrentamento de traumas ocorridos anteriormente ou durante a institucionalizagaéo do socioeducando, até o tratamento de conflitos suscitados dentro da instituicdo prestadora do atendimento socioeducativo, envolvendo tanto os adolescentes quanto os gestores, técnicos, monitores e demais servidores que os acompanham, entre outros desideratos. Deste modo, no curso da execucao da Medida Socioeducativa, os circulos se apresentam como estratégias com miiltiplas possibilidades de aplicacao, com potencial de gerar processos e resultados restaurativos aos participantes, bem como de pacificar a violéncia presente nas interacées sociais tanto internas quanto externas as unidades de atendimento socioeducativo. Assim, independentemente da finalidade a que se destinam, os circulos de construgao de paz que ocorrem no Ambito da Socioeducacdo propiciam ocasides deencontro inter-humano que auxiliam sobejamente no processo Aces Socioeduativas: Said Integral dos Adoleacentes em Media Socioeducatva e Justice Restaurativa 217 educacional e de socializac4o experimentado durante o cumprimento de Medidas Socioeducativas. Entre as varias modalidades de circulos aplicaveis ao atendimento socioeducativo e que podem ser utilizadas pel s instituicdes que buscam efetivar o principio restaurativo prescrito pela Lei do SINASE, Pranis (2010b, pp. 13-15) destaca as seguintes: + Circulos de Celebracao ou Reconhecimento - Esses Circulos retinem um grupo de pessoas para prestar reconhecimento a um individuo ou a um grupo e partilhar alegria ¢ senso de realizagao. Em geral nao € necessério gerar valores orientagdes especificas para um Circulo de Celebracao, salvo pela concordancia em usar bastao de fala respeitando-o. O consenso nao elemento relevante num Circulo desse tipo. A preparacéo para um Circulo de Celebracao envolve basicamente logistica e convites. As pessoas usam {ais Circulos para aniversérios, formaturas, prémios, despedidas, e muitos outros eventos marcantes, + Circulos de Diélogo - Num Circulo de Didlogo os participantes exploram uma questdo ou tépico especifico a partir de muitas perspectivas diferentes. Os Circulos de Didlogo nao buscam consenso sobre a questao. Permitem que todas as vozes sejam ouvidas respeitosamente ¢ oferecem aos participantes diversas visdes para estimular sua reflexdo. O Circulo de Didlogo nao est voltado para um participante em especial. Em geral ndo requer preparacdo individual nem muito trabalho de bastidores. + Circulos de Aprendizado ~ Esses utilizam 0 proceso circular para o ensino ou paraa partilha de informagées. Nele nao se esta preocupado com consenso, nem & necessario preparacéo 218 Actes Socioeducativas Sade Integral dos Adolescents erm Media SocioeducaivaeJusiga Restaurtiva individual. Em geral nao é seguido por acompanhamento do caso. Circulos de Construgao do Espirito Comunitario - Seu propésito & criar lagos construir relacionamentos entre pessoas que tem um interesse em comum. Os Circulos de Construcao do Espirito Comunitario dao apoio a agées coletivas eficazes e a responsabilidade miitua, Fles nao buscam consenso, mas podem ser utilizados como etapa preliminar em preparacdo a um Circulo de Tomada de Decisao onde se buscaré consenso. Os Circulos de Construgao do Espirito Comunitario nao focalizam certos participantes em especial e nao requerem grande preparacao. Circulos de Compreensao - Este é um Circulo de conversa que focaliza a compreensao de algum aspecto de um conflito ou situagao dificil. Em geral ele nao ¢ um Circulo para tomada de decisGes e, portanto, nao é necessério chegar a um consenso. Seu objetivo ¢ desenvolver um quadro mais completo do contexto ou das razdes para um determinado evento ow comportamento. © Circulo de Compreenséo pode focalizar uma pessoa ou pessoas especificas €, portanto, talvez requeira preparagdo e planejamento para garantir apoio adequado a esses participantes. A preparacio também deve garantir 0 envolvimento de pessoas com varias perspectivas, necessérias para uma compreensao mais plena dasituagao. Circulos de Restabelecimento - © propésito deste Circulo € partithar a dor da pessoa ou pessoas que passaram por traumas ou perdas. Dele podera emergir um plano para apoiar, mesmo fora do Circulo,a pessoa que sofre, mas Aces Socioeduativas: Sade Integral dos Adolecentes em Media Socioeducatva e Justice Restaurativa 219) este nao é seu objetivo. Preparativos cuidadosos sao muito importantes para que nao se produza através do Circulo, inadvertidamente, mais dora pessoa atendida. + Circulos de Apoio - Este Circulo retine pessoas significativas para dar apoio a alguém que esta passando por uma dificuldade em especial ou uma grande mudanga de vida. Os Circulos de Apoioem geral seretinem regularmente ao longo de determinado perfodo. Eles podem, por consenso, desenvolver acordos ou planos, mas muitas vezes nao sao Circulos de tomada de decisao. Os preparativos ¢ a organizagio do primeiro Circulo sao trabalhosos, mas os subsequentesnem tanto. + Circulos de Reintegragio - Estes retinem um individuo com um grupo ou com a comunidade da qual o individuo foi retirado a fim de reconstruir ligagdes e integrar 0 individuo de volta ao grupo. Frequentemente estes Circulos desenvolvem acordos consensuais. Sio muito usados para jovens ¢ adultos que voltam para suas comunidades vindo de prisoes ou instituigdes correcionais. Os Circulos de Reintegracdo podem ser usados para ajudar na transigéo de militares que vollam para suas comunidades depois de servir em regides de conflitoarmado. + Circulos de Tomada de Decisao -Um Circulo de tomada de decisdo em grupo se concentra em chegar a uma decisdo consensual. Neste caso a preparacdo é parte importante do processo, ¢ poderé exigir a realizagao de Circulos de Compreensao ¢ Circulos de Formacao de Espirito Comunitério antes que se retina o grupo para a tomada de decisao. Gruposde trabalho, 220 Actes Soioeducativas: Sade Integral dos Adolescents ern Media SocioeducaivaeJusign Restaurtiva conselhos diretores, conselhos consultivos familias vem usando estes Circulos de Tomada de Deciséo para tomar decisées importantes no escopo de suas comunidades. + Circulos de Conflito - Este Circulo retine partes em conflito para resolver suas diferencas. A resolugdo se forma através de um acordo consensual, Nestes casos é comum haver uma prolongada preparagao individual. Também é possivel langar mao de outros tipos de Circulo como preparagio ao Circulo de Conflito. Em geral ¢ preciso investir muito tempo na construgdo de relacionamentos antes de discutir as questdes centrais. Estes Circulos sio usados para resolver conflitos no bairro, no local de trabalho, na escola, na igrejaenas familias. Ainda no campo do atendimento socioeducativo, doi: outros tipos de circulos podem ser e vém sendo utilizados pelas instituicées socioeducativas brasileiras, quais sejam: (1) os Circulos Familiares ou de Fortalecimento de Lagos Familiares, que correspondem a encontros do socioeducando com sua familia ¢ comunidade de apoio, com vistas ao fortalecimento de seus vinculos familiares ¢ a partilha de responsabilidades pelo ato infracional, sua reparagao e/ ou preparacao a reinsercao social do adolescente, Nestes circulos também € possivel a abordagem do processo de vitimizacao secundaria da familia e da comunidade de apoio do adolescente em conflito com a lei, bem como das formas de restauragéo destas pessoas e relacdes, sendo ainda recorrente o tratamento dos danos produzidos ao préprio ofensor € 0 estabelecimento de planos de vida para prevenir outros atos infracionais, favorecer autonomia e empoderar o adolescente. E (2) 0s Circulos de Compromisso, que consistem em reuniées do Actes Socioeduativas: Sade Integral dos Adoleacentes em Media Sacioeducatva eJustiga Restauratva 22 ] 222 socioeducando, sua familia e comunidade de apoio com técnicos e, por vezes, monitores e outros servidores da instituicao socioeducativa, tendo por objetivo a construcao e acompanhamento do PIA, que especifica condicées para o cumprimento da Medida Socioeducativa, podendo ocorrer em qualquer de suas etapas, que compreendem a claboracao, 0 ajustamento ea implementacao do plano de atendimento. Nestes circulos, o adolescente e os demais participantes avaliam as agdes que podem ser empreendidas para favorecer a efetividade da medida, sobretudo no que tange a seu cardter socioeducativo e A reducio da probabilidade de reincidéncia ¢, por conseguinte, retorno do jovem em conflito com a lei ao sistema de atendimento socioeducativo, em condicdes quicd ainda mais precdrias de reintegracao social e reconstrugdo de projeto de vida do que as encontradas naquela ocasiao. Finalmente, os circulos de compromisso sao utilizados também, e com certa recorréncia, como ritual de passagem do socioeducando nas dinamicas de progressaio de medidas e de desinstitucionalizacao, isto 6, safda do Sistema Socioeducativo e reinsercao do adolescente a sociedade. ‘Ademais destas possibilidades, os processos circulares ainda apresentam enorme potencial de realizacdo na esfera judiciéria, durante o curso de processos judiciais (ou seja, na fase processual de conhecimento) que virdo ou nao a redundar, conforme o caso, na aplicacao de Medidas Socioeducativas e/ou de medidas protetivas aos adolescentes em conflito coma lei, Em muitas unidades jurisdicionais brasileiras com atribuicdes voltadas ao processamento de infracées praticadas por adolescentes, processos restaurativos sao realizados no procedimento de remissao de autores de atos infracionais de pequeno ou baixo potencial ofensivo, com vistas a promover a assuncao de responsabilidade pelo jovem ofensor, bem como areparacao dos danos causados vitima,o que contribui para a cies Socioeducativas Sade Integral das Adolescents em Media Socieducativa eu aescuta dos sentimentos da pessoa vitimizada eo atendimento de suas necessidades, promovendo a restauragao pessoal e, por vezes, da relagdo daquele que foi agredido com seu ofensor. Contudo, os processes circulares podem ainda ser aplicados a circunstancias judiciais de maior complexidade, como é o caso da tomada de decisées quanto a definicao de Medidas Socioeducativas a serem administradas a adolescentes em conflito com a lei que praticaram atos infracionais de natureza grave, de grande ou alto potencial ofensivo: trata-se, pois, do que chamamos de Circulos Restaurativos (originalmente designados de circulos de sentenciamento), no ambito dos quais a Medida Socioeducativa é deliberada de modo compartilhado pelos diversos agentes interessados na solucao satisfatéria do conflito, como é o caso da vitima, do ofensor e suas familias e comunidades de apoio, acompanhados de membros do sistema de justica juvenile do facilitador. Parece claro que este tipo de circulo somente é aplicdvel, ou ao menos recomendavel, a situacdes em que as circunstancias factuais ¢ juridicas do ato infracional - ou seja, a autoria e a materialidade delitivas - nao estejam mais em questdo, sendo apenas 0 modo como melhor processar as frustragdes das vitimas (primarias e secundarias), reparar os danos causados, responsabilizar 0 ofensor e partilhar aces que possam atender as necessidades de todos os envolvidos prevenir a reincidéncia do adolescente em atos infracionais. Nos Circulos Restaurativos, escreve Pranis (2010b, p.15): A pessoa que sofreu 0 dano, a pessoa que causou 0 dano, familia e amigos de ambos, e outros membros da comunidade se reinem, junto com representantes do poder judiciério Gjuiz, promotor, advogado de defesa, policia, oficiais de condicional) e outros profissionais auxiliares, para discutir: 1) 0 Aces Socioeduativas: Said Integral dos Adoleacentes em Media Sacioeducatva e Justice Restauratva 223, que aconteceu; 2) por que aconteceu; 3) quais foram as conseqiiéncias e4) o que énecessério para reparar odanoeimpedir que aconteca novamente. Destarte, pelo que j4 foi possivel expor até aqui, resta evidente a transformacao paradigmatica que 0 modelo restaurativo traz aos sistemas de justica juvenil e de atendimento socioeducativo, 0 que demonstra a pertinéncia social de iniciativas como as que tém sido experimentadas em diversos estados brasileiros, muitos dentre os quais com enorme déficit de politicas piiblicas voltadas para instituicao e disseminacao desta forma nao violenta e dialégica de prevencao e tratamento de conflitos, em uma conjuntura de aumento do sentimento de inseguranga, crescimento das taxas de criminalidade em éreas urbanas e expansao do sistema de seguranga publica, cada vez mais endurecido tanto quanto ineficaz na construgao de uma paz social duravel e na protecao dos cidadaos. Nesta conjuntura, as unidades de atendimento socioeducativo, embora por obrigacao funcional devam promover processos restaurativos - dados os atuais termos da Lei do SINASE, como ressaltado anteriormente ~, apresentam imensas e variadas dificuldades para implantar ¢ implementar novos conceitos e praticas inovadoras em sua esfera de atuacao. Em alguns lugares, estas fragilidades vém sendo enfrentadas mediante o estabelecimento de parcerias interinstitucionais com o Poder Judiciério, universidades e organizacées nao governamentais destinadas a oferta de formac6es, capacitacées e desenvolvimento de outras estratégias de disseminagao social da justica restaurativa, tais como treinamentos de facilitadores, promocao de minicursos, oficinas, didaticos, eventos académicos, produgao de livros e materiais entre outras. Em outros, as praticas restaurativas continuam 224, Actes Socioeducativas Sade Integral dos Adolescenes em Media Sociveducativa eu sendo, parafraseando as palavras de Paulo Freire (1980), uma utopia realizavel ainda nao realizada, requerendo um pensamento radicalmente ut6pico, embora néo menos ancorado na realidade, capaz de dar inicio ao processo transformador de libertacdo das estruturas e padres culturais que reproduzem a violéncia e a opressao no atendimento socioeducativo a despeito de suas orientacdes politico-normativas de cardter socioeducacional. 4. PARA UMA CONCLUSAO Inerente as praticas restaurativas no curso do atendimento sociveducativo, se encontra © propésito de transformagao da Socioeducacao em um servico verdadeiramente reintegrativo (BRAITHWAITE, 1989), através da construgéo de espacos comunicacionais nao violentos que favorecam encontros inter- humanos pautados no respeito a dignidade de todos os participantes, sejam eles voltados para o tratamento de conflitos, sejam para o simples didlogo destinado ao enriquecimento ¢ crescimento pessoal dos envolvidos, ou ao reconhecimento miituo. Por evidente, esta nao € a experiéncia da maioria das unidades de atendimento socioeducativo no Brasil, nem mesmo das unidades jurisdicionais que atuam na seara da justica juvenil, ainda fortemente marcadas pelo carter correcional e disciplinar, que mais aproxima a Socioeducacao do sistema prisional do que deum sistema especial voltado a educacao para o favorecimentoe fortalecimento de interacies sociais saudaveis, capaz de prevenir a reincidéncia juvenil em atos infracionais. Contudo, ainda que contra-hegemonicamente, as praticas restaurativas sao experiéncias que vém sendo construidas em alguns contextos localizados ~ embora cada vez mais difundidas no Brasil ~ que, todavia, podem funcionar, no ambito dos sistemas em questo, como interessantes inputs capazes de trazer novas perspectivas e horizontes inovadores a universos cerrados em um paradigma de disciplinamento e correcao moral dos individuos que adotam comportamentos vistos como socialmente desviantes ou divergentes que, portanto, destoam das expectativas sociais generalizadas. Aces Socioeduativas: Sade Integral dos Adoescentes em Media Sacioeducatva e Justice Restauratva 225, 226 ‘As experiéncias dos programas brasileiros de justica restaurativa com incidéncia na Socioeducagao sao recentes e, podemos dizer, encontram-se ainda em fase gestacional, conquanto seja patente que em franca expansao no pais. Entretanto, os resultados de suas acées, mesmo que até aqui apenas precéria e esparsamente mensurados, de acordo com pesquisas desenvolvidas nos tiltimos anos (reconhecidamente de alcance limitado, subjetivo ou local, poucas sendo aquelas que se propéem a oferecer um retrato em escala nacional), so qualitativamente significativos para aqueles adolescentes, familiares e apoiadores, incluindo entre estes gestores, técnicos, monitores e os préprios facilitadores que participaram e vém participando das praticas restaurativas as unidades socioeducativas. No campo da Socioeducacao, os cfrculos revelam-se como formas dialégicas nao violentas de se promover oportunidades de comunicacao e interacao social com elevado potencial pedagégico para os participantes que, durante os processos circulares, exercitam atitudes, competéncias e habilidades comunicacionais em um espaco ético e seguro, permeado por valores compartilhados que funcionam como reguladores das falas e da relagao estabelecida ao longo de todo o proceso. Para além de seu reconhecido papel na construcao de um atendimento socioeducativo mais humanizado e atravessado por um enfoque restaurativo, os circulos em si mesmos constituem ocasides socioeducativas, porque estimulam os participantes a se ancorarem em valores subjetiva e socialmente partilhados, ordenando seus comportamentos por diretrizes democraticamente acordadas e ouvindo empaticamente as historias de vida dos demais interlocutores, ademais dos compartilhamentos de sentimentos e necessidades relacionados as problematicas abordadas que levaram a realizacao do processo circular. Isto per se j seria uma justificativa suficiente para que maiores investimentos na disseminacao de praticas circulares no campo da Socioeducacao fossem realizados, dada a necessidade de se desenvolver, no ambito do atendimento aos adolescentes em cumprimento de Medidas Socioeducativas, estratégias metodoldgicas que de fato apresentem um carater socioeducacional e nao apenas correcional ¢ disciplinador. Nao obstante, 0s circulos no atendimento socioeducativo cies Socioeducativas Sade Integral das Adolescents em Media Socieducativa eu demonstram-se ferramentas que transcendem a dimensao metodolégica e pedagégica, pois auxiliam na transformagao de estruturas durdveis relacionadas a uma cultura institucional fortemente violenta e opressiva, s6 muito parcamente favorecedora de mudangas pessoais ¢ nos relacionamentos com os atores do mundo exterior. Sem duvida, a adogdo de um enfoque restaurativo nao resolverd todos os entraves cotidianos da Socioeducagao, um servico complexo e repleto de obstéculos que se revelam diariamente, porém constituiuma proposta humanizadora e emancipatéria, marcada por um firme compromisso com os Direitos Humanos dos adolescentes em conflito com a lei, em um cendrio em que a esperanca precisa ser uma escolha ética regularmente revisitada e corresponde ao mais radical desafio. 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