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Castro, C. F. S. A atuação do psicólogo no contexto do SUS: repensando práticas.

A atuação do psicólogo no contexto do SUS: repensando práticas

The Performance of the Psychologist in the SUS Context: Rethinking Practices

La actuación del psicólogo en el contexto del SUS: repensando prácticas

Crystiane França Silva Castro1

Resumo

O artigo problematiza a atuação do psicólogo no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A partir do
entendimento de princípios norteadores do SUS e das práticas integrativas da Política Nacional de Humanização,
considera-se suscitar a interação do saber acadêmico a saberes e práticas locais. Argumenta-se que a procura por
soluções conectadas às distintas realidades encontradas no SUS deve tomar parte da prática do psicólogo,
orientada para a transformação social. O tema é tratado sob uma perspectiva crítica, mobilizando visões teóricas
com vistas ao rendimento analítico.

Palavras-chave: Humanização. Saúde. Psicologia.

Abstract

The article problematizes the performance of the psychologist within the scope of the Unified Health System
(SUS). Based on the understanding of guiding principles of the SUS and the integrative practices of the National
Humanization Policy, it is considered to raise the interaction of academic knowledge with local knowledge and
practices. It is argued that the search for solutions connected to the different realities found in SUS should be
part of the psychologist’s practice, oriented toward social transformation. The subject is treated from a critical
perspective, mobilizing theoretical views with a intent to analytical performance.

Keywords: Humanization. Health. Psychology.

Resumen

El artículo problematiza la actuación del psicólogo en el ámbito del Sistema Único de Salud (SUS). A partir del
entendimiento de principios orientadores del SUS y de las prácticas integrativas de la Política Nacional de
Humanización, se considera suscitar la interacción del saber académico a saberes y prácticas locales. Se
argumenta que la búsqueda de soluciones conectadas a las distintas realidades encontradas en el SUS debe tomar
parte de la práctica del psicólogo, orientada a la transformación social. El tema es tratado desde una perspectiva
crítica, movilizando perspectivas teóricas con vistas al rendimiento analítico.

Palabras clave: Humanización. Salud. Psicología.

1
Graduanda no curso de Psicologia no Centro Universitário Tiradentes (Unit-AL).

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Introdução medida, procura estabelecer uma relação


horizontal com a comunidade. Tendo essas
O Sistema Único de Saúde (SUS) é disposições por referência, ao profissional
uma das maiores conquistas sociais de Psicologia caberia alinhar o esquema de
consagradas na Constituição Federal de seu campo de formação a outras formas de
1988, embora os avanços na saúde pública cuidado inerentes, de modo que a atuação
apontem desafios ainda a serem superados. seja advertida para o trabalho com grupos
Constituído por um conjunto de ações e historicamente constituídos. Assim, o
serviços de saúde prestados por órgãos e argumento procede para a elaboração de
instituições públicas federais, estaduais e formas de atuação que não estejam
municipais, da administração direta e dissociadas do aspecto político que
indireta, o SUS tem o mérito de atuar a permeia o fazer da Psicologia, assim como
favor da democratização nas ações e nos o do SUS. Para tanto, importa atentar-se
serviços, que deixam de ser restritos e para a existência de modalidades de
passam a ser universais e, por conseguinte, enunciação, entendida como o alargamento
deixam de ser centralizados. que ultrapassa marcas formais linguísticas
Entre os princípios do SUS, a em direção a manifestações enunciativas
integralidade está presente tanto nas individuais (Benveniste, 2006), por um
discussões quanto nas práticas na área da lado, e a humanização no cotidiano dos
saúde e relaciona-se à compreensão do ser serviços de saúde, por outro. O caráter
humano de maneira integral, antepondo-se integrador nos processos discursivos é um
ao entendimento parcial. Se melhor dito: o ponto importante que acompanha a
sistema de saúde deve estar preparado para discussão, uma vez que pautar a
a escuta ativa do usuário, conhecendo o diversidade nos processos de construção de
contexto social no qual está inserido e, novas formas de cuidado implica em vê-las
nesse compasso, passa a atender as suas como potencial social transformador.
demandas e necessidades.
O princípio da integralidade permite Notas históricas
pensar a implantação de ações em saúde
que incorporam as práticas integrativas da Nos períodos colonial (1500-1822) e
Política Nacional de Humanização, as imperial (1822-1889), o brasileiro não
quais demandam dos profissionais da tinha, de fato, uma política pública de
saúde pública a realização de atividades saúde. As ações tinham basicamente o
interdisciplinares, de modo a efetivar o intuito de minimizar as ocorrências de
princípio da integralidade em seu epidemias e doenças endêmicas, de forma
cotidiano. Em particular, a aplicação desse a não impactar a economia e o comércio
princípio procura, de modo geral, assegurar internacional, uma vez que atingiam parte
a atenção em saúde integral à população da mão de obra local, diminuindo a
como estratégia de ampliação do direito e produção. As medidas adotadas se
cidadania das pessoas. restringiam aos centros urbanos – como
O acolhimento da demanda recebida Rio de Janeiro, Recife e Ouro Preto – e
nas unidades de saúde requer não apenas a estavam relacionadas à infraestrutura,
adoção de discursos e práticas que visam à urbanização, saneamento e controle de
transdisciplinaridade, quando da epidemias que pudessem afetar a produção
interlocução com outros campos de saber, ou prejudicar a imagem do Brasil perante
mas também busca compreender o escopo seus parceiros comerciais. Era grande a
tangível de cada localidade, atenta-se para procura pela medicina popular entre a
a importância do reconhecimento das população de baixa renda, já que não havia
narrativas individuais produzidas nos muitos médicos atuantes em território
processos de saúde/doença e, em alguma nacional, além do fato de que eles

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atendiam apenas poucas famílias (Aguiar, compulsória, o que viria a gerar mais tarde
2015). a Revolta da Vacina.2 A partir de 1920,
A organização da Sociedade de tem início a Previdência Social para
Medicina do Rio de Janeiro, em 1829, determinadas categorias de trabalhadores,
torna-se um marco para a Medicina Social tais como ferroviários e portuários. O
no Brasil, iniciando um extenso programa segmento da população que não contribuía
que inclui ações educacionais e para o sistema previdenciário era atendido
reguladoras, tais como Educação Física por hospitais filantrópicos ou pelos
para crianças, assim como procura também curandeiros populares (Aguiar, 2015).
normatizar farmácias e a assistência Segundo Paim (2009), o nascimento do
prestada em hospitais (Nunes, 2000). As sistema público de saúde ocorreu por três
ideias da referida Sociedade contribuíram vias, sendo elas a saúde pública, a
para um ordenamento social, uma vez que Medicina Previdenciária e a Medicina do
atentavam para os aspectos ambientais e Trabalho, que, como subsistemas, além de
sociais que geravam e perpetuavam atender a diferentes demandas, eram
doenças na população. Da mesma forma, buscados em paralelo com os sistemas
contribuíram para a naturalização o liberal e popular.
discurso médico sobre a cidade,
diagnosticando e buscando soluções para A organização dos serviços de saúde no
os males da cidade, tal como se fosse um Brasil antes do SUS vivia em mundos
separados: de um lado, as ações voltadas
organismo adoecido. para a prevenção, o ambiente e a
coletividade, conhecidas como saúde
Os médicos, depois de espacializar a doença, pública; de outro, a saúde do trabalhador,
depois de localizar os ambientes insalubres inserida no Ministério do Trabalho; e, ainda,
(hospitais, prisões, matadouros, cemitérios, as ações curativas e individuais, integrando a
quartéis, barcos, instalações portuárias, casa medicina previdenciária e as modalidades de
do pobre etc.), isolam no sistema urbano as assistência médica liberal, filantrópica e,
regiões a “medicalizar” de urgência e que progressivamente, empresarial. (Paim, 2009,
devem constituir pontos de aplicação de um p. 31).
exercício do poder médico. Elaboram
também medidas de tipo higiênico-social
que possam contribuir para a melhoria da
O acesso à saúde, mesmo garantido a
saúde e das condições de existência da determinado segmento do operariado, por
população. Propõem o ordenamento do meio dos fundos previdenciários, ainda
espaço urbano e a intervenção no meio tinha a contribuição previdenciária como
doentio. Ou seja, fazem propostas de condicionante para sua utilização,
“medicalização” da cidade. Medicalizar a
cidade, higienizar, significa controlar,
excluindo de sua tutela grande parte da
intervir nos ambientes suscetíveis de população. A noção de saúde pública, por
prejudicar a saúde. (Costa, 2002, p. 68).
2
A Revolta da Vacina foi uma reação popular
Ao longo da assim chamada ocorrida no período de 10 a 16 de novembro de
República Velha (1889-1930), a situação 1904 na cidade do Rio de Janeiro, motivada pela
da saúde pública teve poucos avanços; as regulamentação da lei que decretava
obrigatoriedade de vacinação contra a varíola em
condições de saneamento básico ainda todo o território brasileiro. A população, já
eram deficientes e as medidas tomadas insatisfeita com as desapropriações e demolições
visavam a evitar que a produtividade dos de moradias, além das ações das brigadas
setores da economia agrária e a política de sanitaristas, como remoção de doentes e inspeção
imigração fossem afetadas. Foi adotada residenciais com apoio da força policial, se
manifestou contra as medidas, o que resultou num
como medida de combate às epidemias conflito reprimido com forte ação da polícia.
urbanas e rurais a campanha sanitária, a Depois do episódio, a vacinação passou a ser
qual foi inspirada em um modelo militar opcional (Aguiar, 2015; Carvalho apud Paim,
que impunha ações como a vacinação 2006).

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sua vez, se restringia a ações pontuais e população de classe média e os sindicatos,


normativas, visando a manter as cidades em alguns casos associados aos partidos
políticos de esquerda, ilegais na época. A
livres de epidemias que enfraquecessem o concepção política e ideológica do
comércio local ou de exportação. Todas as movimento pela reforma sanitária brasileira
ações do sistema oficial de saúde estavam, defendia a saúde não como uma questão
portanto, atreladas aos possíveis impactos exclusivamente biológica a ser resolvida
que doenças ligadas ao modo de trabalho e pelos serviços médicos, mas sim como uma
questão social e política a ser abordada no
também às enfermidades de contágio espaço público. (Paim, Travassos, Almeida,
poderiam causar na economia, restando à Bahia, & Macinko, 2011, p. 18).
parcela majoritária da população buscar
outros modos de assistência não oficiais O sistema de saúde brasileiro, até
(Aguiar, 2015). então, era ineficaz sob diversos aspectos:
Em 1953, o então Ministério da era restrito e excludente, concentrava-se na
Educação e Saúde é desmembrado com a eliminação de doenças ou sintomas, era
promulgação da Lei n. 1.920, que institui centralizador, inadequado em relação às
os Ministérios da Saúde e Ministério da demandas locais e mal distribuído. Em
Educação e Cultura. A partir de então, as 1979, foi elaborada a primeira proposta
campanhas sanitárias foram centralizadas para criação do Sistema Único de Saúde
em órgãos ou serviços, a exemplo das (SUS) – e mais tarde, a partir de debates
campanhas de combate à lepra, à encampados por associações, como a
tuberculose e à febre amarela. As Associação Brasileira de Pós-Graduação
atividades pertinentes ao Departamento em Saúde Coletiva (Abrasco) e do Centro
Nacional de Saúde (DNS) foram Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes),
absorvidas pelo Ministério da Saúde, essa proposta viria a ser incorporada à
porém sem acréscimo de infraestrutura que Constituição Federal, momento em que a
permitisse ampliar o alcance de ação do saúde passa a ser de fato um direito social
departamento, que já era deficiente. (Paim, 2009). A criação do SUS foi,
Destaca-se a atuação do Instituto Oswaldo portanto, fruto de mobilização social.
Cruz, na produção de vacinas e pesquisas A partir desse breve histórico, pode-
em saúde, e da Escola Nacional de Saúde se perceber a mudança de concepção sobre
Pública, na formação e aprimoramento de saúde e ações nesse campo. Os temas
profissionais de saúde. foram tratados durante muito tempo
No período após o golpe militar de superficialmente, com foco na localização
1964, houve uma ampliação do sistema de e eliminação de sintomas, de forma
saúde predominantemente privado nos autoritária e vertical, sem considerar os
centros urbanos, estendida aos aspectos socioeconômicos que impactam
trabalhadores rurais. Ainda assim, apesar nas condições de vida e saúde da
do crescente número de instituições população. A partir da década de 1970,
destinadas ao serviço de saúde, o acesso à ganha força o discurso da democratização
saúde não se democratizava de fato. do acesso à saúde, oriundo dos debates
sociais que evidenciavam as mudanças
A reforma do setor de saúde no Brasil estava profundas necessárias para a garantia de
na contramão das reformas difundidas
naquela época no resto do mundo, que
um acesso à saúde, que está expressa na
questionavam a manutenção do estado de forma dos princípios da universalidade,
bem-estar social. A proposta brasileira, que equidade e integralidade. É também nesse
começou a tomar forma em meados da momento que passa a haver a busca pela
década de 1970, estruturou-se durante a luta descentralização como uma forma de
pela redemocratização. Um amplo
movimento social cresceu no país, reunindo
aproximação e convite à população local
iniciativas de diversos setores da sociedade – para construir em conjunto com o poder
desde os movimentos de base até a

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público intervenções adequadas às pensamento anátomo-patológico nas


necessidades locais. escolas médicas (Mattos, 2001).
Com a implantação do SUS, no A integralidade na Constituição
entanto, outros questionamentos e Federal brasileira aparece como uma via de
reivindicações foram suscitados. A seguir, articulação de atividades preventivas e
veremos como demandas em relação ao assistenciais. O movimento da Reforma
acolhimento e direcionamento passaram a Sanitária Brasileira (RSB) se inicia em
fazer parte da saúde pública. meados da década de 1970, a partir das
discussões sobre democratização da saúde,
O SUS e o princípio da integralidade tendo como marco a 8ª Conferência
Nacional de Saúde, ocorrida em 1985.
Com a implantação do SUS, foi Nesse movimento, que fomentou os
possível a participação popular na gestão debates que culminaram na formação do
da saúde, pactuada por meio das diretrizes SUS, a integralidade é percebida como
descritas no art. 198 da Constituição uma noção polissêmica que, embora parta
Federal de 1988. São princípios de diferentes leituras e sentidos, aglutina
norteadores do SUS: a universalidade, a em seu entorno críticas semelhantes.
equidade e a integralidade, e suas diretrizes Num aspecto prático, o princípio da
são a descentralização, atendimento integralidade pode orientar recursos
integral e participação da comunidade técnicos como tratamentos e ações
(Ministério da Saúde, 2000). preventivas, o que significa dizer que a
O princípio da universalidade, em ação integral viabiliza a produção do
relação ao modo de assistência de saúde cuidado. A ideia de uma ação integral
anterior à Constituição Federal de 1988, garante visibilidade a outros aspectos que
retira o condicionante do acesso à saúde não só os biológicos, visto que as
apenas dos contribuintes de fundos necessidades em saúde não se restringem
previdenciários, garantindo assistência a ao bem-estar físico do indivíduo. Além
todos os cidadãos. O princípio da disso, em se tratando das ações de saúde no
equidade, por sua vez, reconhece que as âmbito do SUS, a demanda pode ser
diferenças presentes na sociedade civil são recepcionada e tratada não apenas no
importantes fatores para que se estabeleça consultório médico e a partir da relação
uma relação equânime entre as pessoas médico-paciente, visto que todos os
(Barros & Sousa, 2016) e evoca a redução profissionais de saúde podem operar o
das diferenças regionais e sociais por meio princípio da integralidade (Mattos, 2001)
de políticas que promovam uma melhora produzindo cuidado.
nas condições de saúde da população O cuidado, num sentido político,
(Ministério da Saúde, 2000). refere-se às ações que emancipam o
Já o princípio da integralidade tem indivíduo por meio da conscientização dos
nuances que merecem destaque nessa seus problemas, conferindo a ele lugar
discussão. Esse princípio, que provém da fundamental nas decisões que serão
Medicina Integral, teve origem nos Estados tomadas acerca de seu próprio processo de
Unidos, como crítica à formação e à saúde e doença (Ballarin, Ferigato, &
prática médica de fragmentar o indivíduo e Carvalho, 2010). Cuidado e integralidade
reduzi-lo a um conjunto de sintomas. No são, assim, noções indissociáveis, que
Brasil, essa noção de integralidade concretizam os “valores emancipatórios
influenciou o movimento sanitário e, em tecnologias a serem operadas no
depois da década de 1970, indicou os cotidiano das práticas de saúde” (Ayres,
limites a serem superados em relação às 2009, p. 12). São, em outras palavras,
práticas médicas e a reprodução do formas de buscar nas interações, ou
encontros, nas palavras de Paim (2006), os

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elementos que produzem sentido para as Buscando conhecer mais sobre as


práticas em saúde, principalmente no experiências desenvolvidas na rede pública
âmbito local, conferindo dinamismo na estadual e municipal, o Ministério da
produção do cuidado. Saúde realizou em 2004 um diagnóstico
das práticas complementares de saúde,
O princípio da universalidade nos resultando na Política Nacional de Práticas
impulsiona a construir o acesso para todos, o Integrativas e Complementares (PNpic) no
da equidade nos exige pactuar com todos o
que cada um necessita, mas a integralidade
SUS (Ministério da Saúde, 2015). Segundo
nos desafia a saber e fazer o “quê” e “como” o documento, a institucionalização das
pode ser realizado em saúde para responder práticas complementares inicia-se em
universalmente às necessidades de cada um. 1980, mas somente em 2004 foram criados
(Ayres, 2009, p. 14). grupos de trabalho multi-institucionais, a
fim de conhecer, apoiar e implementar
O princípio da integralidade também experiências na esfera da Medicina
pode apontar o modo de organização do Tradicional Chinesa (MTC), acupuntura,
trabalho da equipe de saúde, de modo a homeopatia, fitoterapia, Medicina
contemplar a demanda espontânea e as Antroposófica e termalismo/crenoterapia,
necessidades percebidas no contato com a com o intuito de ampliar a oferta de ações
população local, tanto as que atingem todo de saúde. Em janeiro de 2017, com a
o grupo populacional quanto às Portaria n. 145/2017, novas práticas foram
necessidades de determinada parcela incorporadas à PNpic: arteterapia,
(Mattos, 2001). Nesse contexto de meditação, musicoterapia, naturopatia,
organização do trabalho, é importante osteopatia, quiropraxia e Reiki (Ministério
ressaltar a questão da transdisciplinaridade. da Saúde, 2015). Em março de 2018, o rol
de práticas é atualizado pela Portaria n.
A Política Nacional de Humanização e 702/2018 e passa a totalizar 29
as práticas integrativas modalidades terapêuticas.
A PNpic conta com canais como a
A Política Nacional de Humanização Rede Nacional de Atores Sociais em PICs
(PNH) foi criada em 2003 com o objetivo (RedePics) e a Comunidade de Práticas,
“pôr em prática os princípios do SUS no ambas presentes também no ambiente
cotidiano dos serviços de saúde, virtual. Nessa última, são ofertados cursos
produzindo mudanças nos modos de gerir e gratuitos na modalidade de Ensino a
cuidar”, por meio da interação entre Distância de Introdução à MTC,
gestores, trabalhadores e usuários antroposofia e uso de plantas medicinais
(Ministério da Saúde, 2010). Humanizar, para agentes comunitários de saúde, além
nesse contexto, tem o sentido de inserir a de fóruns, divulgação de notícias de redes
diversidade nos processos de construção de de Atenção Básica, eventos e relatos de
novas formas de cuidado, feita de modo experiências. A RedePics, criada durante o
compartilhado e dialogado entre os três II Encontro de Práticas Integrativas e
atores, todos corresponsáveis pela Complementares do Nordeste, tem um
execução do programa. A humanização, de grupo no Facebook em que são
acordo com o marco teórico da Política de compartilhadas notícias de eventos e
Humanização, diz respeito à troca de práticas dos atores, além de uma
saberes e à possibilidade de gerar plataforma na qual cursos introdutórios são
transformação não só para a realidade oferecidos para agentes de saúde e para a
local, mas para os próprios atores comunidade. No site da rede, é possível
envolvidos, visto que o contato entre eles visualizar os grupos de pesquisas do CNPq
provoca mudanças no outro e em si com temas relacionados à PNpic, em áreas
mesmos (Ministério da Saúde, 2010). como Ciências da Saúde; entre os 57

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grupos listados, 20 são de universidades SUS. Vê-se, então, o espraiamento de um


federais localizadas na região Nordeste. campo de questões: qual o nível legítimo
da interpretação? Como integrar o saber
A integralidade e a atuação do psicólogo acadêmico aos diversos saberes e práticas
no SUS locais? Deve-se buscar a construção de
uma saúde pública que atenda
Um dos pilares do SUS, como visto adequadamente à sua demanda ou, por
anteriormente, é o princípio da outro lado, apenas adaptar à realidade os
integralidade. A noção de atenção integral conceitos aprendidos durante a formação
insere nas práticas de saúde a necessidade profissional?
de diálogo entre campos de saber, para Ao optar por essa última via, corre-se
compreender os indivíduos sob outros o risco de perder o vínculo com a
aspectos que não apenas o biológico e, multiplicidade da realidade, nos
assim, identificar a necessidade de aproximando assim da construção de ações
intervenção de outros profissionais e que não só rompem com a visão integral
terapêuticas na produção do cuidado. Indo do sujeito como permitem justificar
um pouco além, a partir da integralidade, o práticas que podem se tornar perversas.
perfil de equipe mais afim a essa noção é o Além disso, torna-se um posicionamento
transdisciplinar, visto que a pouco produtivo, por se pretender estar
transdisciplinaridade evoca uma ação fora da discussão, fora da categoria em
construída por sujeitos que não apenas questão (psicólogos), uma crítica a “eles”,
buscam o diálogo, mas a integração dos e não a “nós”.
saberes das diferentes disciplinas Um dos argumentos diz respeito à
envolvidas. tentativa de despolitização das práticas dos
A Psicologia é uma disciplina que psicólogos e seu desdobramento mais
não se restringe ao campo da saúde; ela nocivo: recortar o indivíduo do contexto
transita em outras áreas, como a das em que está inserido para relacionar-se
ciências humanas, fato que amplia a com uma espécie de tipo ideal, como se
compreensão e as possibilidades de social e individual devessem ser tratados
atuação do psicólogo na saúde pública. em separado por diferentes instrumentos de
Existe, no entanto, desde a década de 1980, análise (Benevides, 2005). Essa
uma forte crítica em relação às práticas dissociação interfere no compromisso
desenvolvidas por psicólogos no âmbito da ético-político do psicólogo na construção
saúde, baseadas na clássica atividade de do SUS. Que tipo de engajamento pode ser
clínica tradicional, como a psicoterapia ou estabelecido pelo profissional da
psicodiagnóstico. Esse fato deriva da Psicologia se ele percebe a realidade e o
manutenção de um currículo acadêmico indivíduo como algo fragmentado? A partir
tecnicista, que não prepara o futuro disso, como esse profissional atuará em
profissional para trabalhos em grupos e uma política que requer a construção de
com grupos. Segundo Romagnoli (2006, p. intervenções em conjunto com a
12), “A clínica aprendida nos cursos população, sem reproduzir a lógica da
universitários ainda é uma clínica prática clínica?
individual, sendo desconhecida ou Na pesquisa feita com psicólogos
desprivilegiada a atuação com grupo, que trabalham na rede básica de saúde das
criando sérios problemas, principalmente cidades de Natal e Teresina, Magda
na saúde pública, que como vimos, é um Dimenstein (2001) procura identificar o
campo que exige novas metodologias”. compromisso social do psicólogo que
É necessário buscar soluções práticas trabalha no SUS. A pesquisadora nota a
e plausíveis para as múltiplas realidades reconstrução da subjetividade do
encontradas, em especial, no trabalho no psicólogo, que precisa se perceber e se

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permitir ser flexível o suficiente para se cuidado sem discutir a gestão desse
reinventar em resposta às demandas que cuidado (Benevides, 2005).
surgem diariamente, sem com isso perder Em relação ao significado do
sua identidade profissional. Como afirma compromisso social, a percepção dos
Benevides (2005, p. 23), “o processo de profissionais está muito ligada ao
inventar-se é imediatamente invenção do cumprimento de regras e aos atendimentos
mundo e vice-versa”. É no processo de individuais, aos moldes do modelo clínico.
interação com o mundo que nos Ater-se à psicoterapia expressa uma
constituímos como atores e construímos estratégia de conferir identidade ao
nossas percepções acerca de nós mesmos e trabalho do psicólogo, que também faz
do universo que nos cerca. parte de uma certa disputa de poder com os
No processo constante de construção psiquiatras, uma vez que eles utilizam a
e desconstrução de ideias, de escuta para a prescrição farmacológica
conhecimento e de afirmação de si e do (Dimenstein, 2001). A escolha de uma
outro, surgem possibilidades de atuação, atividade clássica da Psicologia, ao que
seus limites e espaços do campo ainda não parece, está também vinculada a interesses
explorados. É um contínuo refazer, não de de uma categoria de afirmar-se perante os
forma aleatória e responsiva, mas orientada outros profissionais de saúde, demarcando
pelo desejo genuíno de afirmação da seu lugar nesse campo, mesmo que se
existência, a fim de possibilitar uma ação fechando em suas próprias práticas.
humanizada e humanizante. Ocorre Essa atitude perde de vista o
também o desejo de rompimento com uma princípio da transversalidade, assim como
relação sujeito-objeto, mecanizada e o da integralidade. Ao não buscar a
repetitiva, que não se adequa às interação com outros campos de saber, não
especificidades da população atendida. Isso só deixa de haver intervenções que melhor
igualmente serve para a relação da atendam à população, mas perde-se
Psicologia com outros campos de saber, também a oportunidade de cada vez mais
como será discutido adiante. construir-se como um campo de saber. Da
mesma forma, é uma demarcação de seu
Considerações finais lugar hierárquico em relação ao usuário do
SUS, uma vez que também diz respeito ao
A questão da identidade do reconhecimento da sociedade, do seu lugar
profissional de Psicologia na saúde pública como profissional da área de saúde. Cabe
é algo que parece perpassar toda a questionar o tipo de cuidado que se produz
discussão acerca do seu posicionamento na nessa relação.
construção do atendimento prestado à A postura acrítica dos psicólogos em
população e mesmo do SUS. Ao relação a si e aos papéis que desempenham
reconhecer sua identidade – e, portanto, (e podem desempenhar) oferece apenas,
seu lugar no sistema –, posicionar-se em se tratando especificamente aqui do
profissionalmente implica em reconhecer serviço de saúde pública, velhas práticas
também a própria responsabilidade pela para novos contextos e, ainda, defasadas
cogestão do SUS e, assim, um formas de se pensar uma realidade
posicionamento político diante da dinâmica, a qual se tenta encaixar em
realidade. Percebe-se, assim, que a prática modelos teóricos que não dão conta de
do psicólogo orientada para a compreendê-la. Dessa forma, a Psicologia
transformação da realidade se articula opta por ser um instrumento que tenta
fortemente com a atuação política quando explicar uma realidade sem se comunicar
apresenta o princípio ético da de fato com ela, limitando sua visão e,
inseparabilidade: não há como se falar em consequentemente, as possibilidades de
criar em conjunto com a população a que

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atende soluções efetivas para as suas Ayres, J. R. de C. M. (2009). Organização


demandas. das ações de atenção à saúde: modelos e
Ultrapassar esse limite requer pensar práticas. Saúde e Sociedade, São Paulo,
processos que sejam capazes de transgredir 18(2), 11-23.
as representações tradicionais e por vezes Ballarin, M. L. G. S., Ferigato, S. H., &
equivocadas; e essa capacidade, baseada na Carvalho, F. (2010). Os diferentes
articulação dos signos, observa histórias e sentidos do cuidado: considerações
identidades reais. Além de intervir no sobre a atenção em saúde mental. O
processo de significação e interpelar a Mundo da Saúde, 34(4), 444-50.
lógica e os topoi do conhecimento em Barros, F. P. C., Sousa, M. F. (2019).
voga, na maioria das vezes datado, abrem- Equidade: seus conceitos, significações
se os olhos e ouvidos para discursos que e implicações para o SUS. Saúde e
foram elaborados em espaços de Sociedade, 28(2), 6-10.
representação não equivalentes àqueles Benevides, R. (2005). A Psicologia e o
dominantes e homogêneos. Sistema Único de Saúde: quais
Os profissionais da Psicologia devem interfaces?. Psicologia & Sociedade,
estar cada vez mais atentos ao fato de que Porto Alegre, 17(2), 21-25.
os critérios de competência do saber Beneviste, E. (2006). O aparelho formal de
podem ser variados e diferenciar-se dos enunciação. In E. Beneviste. Problemas
habituais. Para que os profissionais de de Linguística Geral II. Campinas, SP:
Psicologia possam atuar com os princípios Pontes Editora.
da transversalidade e integralidade do Costa, M. C. L. (2002). A cidade e o
sistema de saúde pública, é preciso pensamento médico: uma leitura do
reinscrever suas práticas no dinamismo da espaço urbano. Mercator, 1(2), 61-69.
realidade que lhe dá sentido. Ou seja, uma Dimenstein, M. (2001). O psicólogo e o
atuação transversal e integradora voltada compromisso social no contexto da
para uma apreensão dos condicionantes saúde coletiva. Psicologia em Estudo,
sociais que dão conta, nas palavras de Maringá, 6(2), 57-63.
Michel Foucault (2008, p. 24), “ou das Foucault, M. (2008). A arqueologia do
formas ou do gêneros que opõem, umas às saber. Rio de Janeiro: Forense
outras, ciência, literatura, filosofia, Universitária.
religião, história, ficção etc.”. É preciso Mattos, R. A. (2001). Os sentidos da
pôr em questão as sínteses acabadas da integralidade: algumas reflexões acerca
regularidade do discurso e admitir a de valores que merecem ser defendidos.
distinção dos grandes tipos de discurso. In R. Pinheiro & R. A. Mattos (Orgs.).
Finalmente, compreende-se que é Os sentidos da integralidade na atenção
fundamental avançarmos nessa discussão e no cuidado à saúde (pp. 39-64). Rio
aliando o tema ao debate do projeto ético- de Janeiro: Uerj/IMS: Abrasco.
político da profissão, refletindo os limites e Ministério da Saúde. 2010. Cadernos
as possibilidades da atuação profissional. HumanizaSUS. Brasília: Ministério da
Saúde.
Referências Ministério da saúde. (2015). Política
Nacional de Práticas Integrativas e
Aguiar, Z. N. (2015). Antecedentes e Complementares no SUS: atitude de
históricos do Sistema Único de Saúde: ampliação de acesso (2a ed.). Brasília:
breve história da política de saúde no Ministério da saúde.
Brasil. In Z. N. SUS: Sistema Único de Ministério da Saúde. (2000). Sistema
Saúde – antecedentes, percurso, Único de Saúde (SUS): princípios e
perspectivas e desafios (pp. 15-40). São conquistas. Brasília: Ministério da
Paulo: Martinari. Saúde.

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Recebido em: 25/4/2018


Aprovado em: 6/8/2020

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