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@ ANTONIO ARNONI PRADO, 2004 © COSAC NAIFY, 2004 Preparaao SANDRA BRAZIL Revisao MARCIO ARAUJO Projeto grafico RAUL LOUREIRO Editoragae eletrénica NEGRITO DESIGN EDITORIAL. Capa MARCOS BRIAS Imagem da capa CLAUDIO MUBARAC Foto do autor RICARDO GELLMAN-PRABO ‘As pesquisas que deram origem a este llvro receberam 0 Dados Internacionais de Catalegacao na Publicagao (CIP) 5 {tenet ore ea | Prado, Antonio Arnont Trincheira, palco ¢ letras: critica, literatura e utopia no Brasil / Antonio Amoni Prado. Sao Paulo: Cosac & Nalfy, 2004 Bibliografa, 11. Anarquismo na literatura 2. Critica literdela 3. Imigrantes ~ Linguagem 4 Literatura brasileira ~ Historia critica 5, Modernismo (Literatura) ~ Brasil ~ Historia e critica 6. Utopias 1.Titulo ISBN 85+7503-354-9 coo 869.909008 1. Moderrsro: Séeula 20: Literatura brasiia:Histéria critica (91223-010 SAD PAULO SP Fax (55 11] 3257-8164 Apoio: ‘wwwn.cosacnaify.com.br Um fantasma na noite dos vencidos AK! Esta éa noite dos Vencidos! E-a podridéo, meu velho! Augusto dos Anjos 1 “Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu no engenho de Pau @’Arco, estado da Paraiba, em 20 de abril de 1884, e morreu de tubercu- Jose na cidade mineira de Leopoldina, no dia 12 de novembro de 914, poucos meses depois de ter assumido o cargo de diretor de um grupo es- colar, Estinoulado pelo pai bacharel, que Ihe incutiu bem cedo 0 gosto da leitura e dos estudos, descobriu no campo, em contato com a natureza, 0s primeitos sinais de uma vocagao intelectual profundamente marcada pelos poetas do romantismo, cujos delirios e tormentos impressionaram fando a imaginagio do menino enfermigo e triste que ele era, devassan- do-a das obsessdes que vineariam os primeiros versos da adolescéncia nos bancos do Liceu Paraibano. Por esse tempo, aproximadamente 1900, a crer no depoimento de Orris Soares, seu amigo e contempordneo de licen, Augusto, um rapaz de magreza esquilida, faces reentrantes eolhos fundos, indiciava na propria Fsionomia os tons de catdstrofe que trairiam a psique — a boca fazendo #2 catadura crescer de sofrimento, por contraste do olhar doente de tris- tura, nos labios uma crispagiio de deménio torturado”.' Torturava-o, jé entdo, vagando pelos corredores do licev, os olhos mergulhados na quimera impossivel da libertacio, a busca do equilibrio que os primei- 10s romanticos burilavam a partir de uma nova concepgio da lirica, até entio cortada pela razao e o sentimento como verdades inconciliaveis, ¢ 1. Cf, a zespeito Soares (1944: 21-22). A primeira publicagio do Zi fot feita, em edigo par- ticular, no ano de 1912, financiada pelo poeta e por seu irméo Odilon, numa época em que Augusto dos Anjos lecionava como professor interino de Geografia na Escola Normal en0 Colégio Pedro n. 183 que um poeta como William Wordsworth, no preficio da segunda edi- Gio das Lyrical Ballads, transgredia com lucidez, ao propor a combina- gfo entre intuigio ¢ conseiéneia como saida harménica que permitiria 20 poeta ler o significado espiritual da natureza partindo do reino das idéias como tinico pressuposto.’ ' Jf iniciado em humanidades e aluno da Faculdade de Direito do Recife desde 1903, Augusto experimenta os primeiros sinais de in- quietagZo intelectual diante desse desvio que corroia fando a nebulosa amena da tradico romantica. Ao mesmo tempo que trava contato com 0 lévico ciensffico de sua época, entra para a esfera de influéncias desen- cadeada pelo idedtio filos6fico da chamada Escola do Recife, de grande presenga no panorama cultural do Nordeste no final do século xrx. f © momento em que descobre, a partir de Exnst Haeckel, que a morte é tum fato material e a vida “um processo quimico dentro do qual 0 corpo Inmano nio é mais que a organizagio de sangue ¢ cal, condenado ina- pelavelmente ao apodrecimento e & desintegragaio”.* Como um ouesider que vinha para o impasse da representagao num periodo que aparente- mente se esgotava na propria exaustdo dos eddigos que o simbolizavam, 0 poeta isola-se numa crise de identidade que antecipa, em muitos de seus aspectos, as contradicdes abertas pela modernidade.* / ‘Assim, se no horizonte da lirica a sensagio é de paralisia ante a li- mitagdo da experiéncia, o ponto de ruptura esta na propria leitura que cle faz da tradigdo. A yerdade é que do contato com o lirismo idealista Augusto conservaré apenas as primeiras impress6es de uma rebeldia que cle acaba diluindo diante do estranhamento ¢ da aversio pelas convengdes ornamentais que a exteriorizavam. Embora obcecado pela busca do equilibrio entre a razdo e o sentimento, depois desdobrado no meticuloso estudo da harmonia entre as leis fundamentais da natureza e de seu reflexo no proprio significado da condigsio humana, a forga de seus versos vai situar-se no pélo oposto ao do focus postico que Wor- 2. Paulo Vizzioli aprofunda o tema no ensaio “O sentimento e a razo nas poéticas e na poc- sia do romantismo” (1978: 14285). Ainda sob este aspecto, Dante Milano (1941) €0 primeira a falar do “super-individualismo roméntico do autor do Ev”, mateado por um “pessimismo dopreciativo” fortemente determinante na sua “poética de autodissecagio 3. Ferreira Gullar (1978: 15-60), edigio a que se remetem as demais citagbes do autor. 4, Jodo Alexandre Barbosa (1977: 20), apoiado em Francisco de Assis Barbosa, lembra quea leitura do Zu foi desvirtuada a partir da edigio de 1920, quando a énfase na extragio parna- siana do poeta abtiu caminho para que os modernistas o renegassem. 184 dsworth preconiza em seu prefiicio, quando, ao refletir sobre as relagoes entre a natureza e o destino do homem, fala da necessidade de descrever as situagdes da vida o maximo possivel com a linguagem usada pelos homens, mas ao mesmo tempo “langando sobre eles um certo colorido de imaginac&o gragas ao qual as coisas familiares seriam apresentadas i mente sob um aspecto incomum” (Cf. Vizzioli op. cit.: 144). Ocorre que em Augusto dos Anjos justamente as coisas incomuns € que vo se tornar familiares. Anatol Rosenfeld, num estudo definitivo, fala da sedugio erética que os termos cientificos exerciam sobre o poeta, lembrando a notavel convergéncia de estilos que aproximava a obra de Augusto dos Anjos da terminologia clinico-literaria de alguns expres- sionistas alemaes como Georg Trakl, Gottfried Benn e Georg Heym. No entanto, mais importante que tais afinidades, mero acaso no plano das homologias literdrias, é que diante dessa poesia de necrotério se desin- tegram nio apenas a sensibilidade e os valores humanos do poeta, como também a palavra e a expressio literdria que os exprimem, jé em forma de um novo instrumento literdrio a escavar na coincidentia oppositorum indicada por Anatol Rosenfeld a chave tematica de um novo estado poé- tico, esdrixulo e dissonante, fragmentado pela experiéncia do dualismo e mareado por antagonismos inconciliéveis (Cf. Rosenfeld 1973). Se por ele é possfvel lastrear a vertente que conduz Augusto dos Anjos ao cerne da poesia, na origem de sua nebulosa esta o deslocamen- to do poeta para um outro plano imaginario, mais préximo do idedrio decadentista, mas ainda tributdrio da alma duplice do heréi romantico, cuja face mistica tende a dissolver o individuo no todo, apesar de a face intelectual continuar submetendo o universo aos caprichos do indivi- duo. A inevitével frustrac3o que dai decorre é diretamente proporcional intuiggo dos valores absolutos que o poeta procura compensar, dou- rando a imagem da derrota “como um luxo do homem superior cuja morte tragica equivale 4 compulsio tragica e magnifica de todo grande ideal e de toda grande paixdo” (Cf. Gobetti 1971: 57-58). Essa hesitagao entre o sonho e o tormento, que Albert Béguin de- finiu como uma aspiragao de regresso a0 Nada e ao Absoluto, mediante a supressio do Tempo enquanto redengio suprema,,g que Anatol Ro- senfeld pareée ajustar aos antagonismos essenciais do canto dissonante como traco expressionista, na verdade sé sera compreendida levando-se em conta que 0 poeta chegou a ela porque viveu a experiéncia do “Par- naso”. Deste, além da concisao do verso, da marcacio rigida do metro 185 e da “tendéncia ao prosaico ¢ ao filosofante”, Augusto reteve — para depois transcendé-la — a idéia de que o poeta é sobretudo um eriador de objetividades em face das quais, como disse Giuseppe Gobbetti, 0 humanismo acaba se rendendo & voluntariedade do artifice, a técnica verbal ¢ ao empenho construtor. Distanciando-se do autobiografismo elegiaco ¢ do exibicionismo sen- timental, a Virica de Augusto dos Anjos expande-se para uma diregio que transcende o canon parnasiano, no momento em que recusa a em- postac&o formalista e incorpora a materialidade concreta da vida para mergulhar na “banalidade, bruta, antipoética”, que 6 — nas palavras de Ferreira Gullar — a sua propria matéria. Isto faz de sua obra, no dizer do autor do Poema swjo, uma antecipagio de modernidade na poesia brasileira, no apenas por desprezar os recursos poéticos tradicionais, que j4 nao serviam para expressar a realidade da vida contemporanea, mas sobretndo por “devolver a linguagem & condigao prosaica” de onde emerge a desmistificagio do real e, com ela, um inegavel “aumento da consciéncia do poeta sobre o seu instrumento de expresso”. Tal ruptura esta no frisson galvanigue que vem de Baudelaire, em cujo filo estético tem origem 0 veio lirico que, nos termos de Anatol Rosenfeld, habilita a poesia de Augusto dos Anjos a “tirar uma beleza alexandrina do feio e do horroroso”, como se buscasse 0 tempo todo a palavra incorruptivel para melhor exprimir ¢ superar as visbes da podri- dao (Cf, Rosenfeld op. cit: 268). Dai também que na impassibilidade de seus versos ressoe a regularidade, pendular, que vem do panteismo mistico para um evolucionismo diluido na espiritualizagio e no inte- lectualismo — de um lado, o sonho de desfrutar da paz de Buda sob 0 metapsiguismo de Abhidarma; de outro, 0 tormento de escapar & obscura forma humana e assim chegart & imortalidade das idéias. A fragmentago e 0 caos, o Nirvana eo pulsar inescrutivel da vida da matéria, a unidade e a metamorfose, o horror a incompletude ea ata~ raxia permanente ante as formas que nao chegam a ser, a fala paralisada no molambo da lingua, a fatalidade do apodrecimento e a impossibili- dade de iludir 4 Morte, tudo isto e o riso irénico ante a carne que des- mancha e o verme que a devora—eis os acordes que Augusto dos Anjos vai tirar de sua lira estacionada nas cercanias do nono circulo do infer- no, isto 6, na entrada que elegeu para devassar o coragio da poesia. De fato o poeta chega a ela numa trajetdria descendente, que lembra a des- cida de Dante as paragens infernais do Letes, como que traduzindo, em 186 termos alegéricos, & semelhanga da Divina comédia, a alma inquieta pela obsessio das origens. Mas 0 principio dindmico que organiza o itinerario do poeta do Ex, a0 contrério do percurso de Dante, nao reedita a viagem de uma alma peregrina no tempo, em busca daquele bem infinito no qual Mario Casella viu 0 amor humano enquanto participaséio finita no amor divino que é sindnimo de perfeigdo. Em Augusto dos Anjos, 0 artifice do expressio- nismo é movido por uma espécie de fome ancestral da decadéncia, que transcende de muito o anti-humanismo programético do heréi decaden- tista, mesclando ao verbo esotérico dos simbolistas a distincia académi- ca dos parnasianos e a insubordinagio dos modernos.$ Na verdade, se é possivel ler a litica de Augusto dos Anjos como uma sintese de todos esses cédigos, isso nao significa de modo algum que estejamos integrados aos seus registros. Lendo-os na chave da tra- digdo, o leitor atento perceberd, como se percutisse as cordas de um enigma filarménico, a necessidade de integrar os planos, de recompor © itinerario da trajetéria descendente com que o poeta investe para 0 caos ¢ nele se desintegra, como que auscultando em cada centelha da energia dissipada um gesto critico da inteligéncia que resiste. Isto por~ que, em sua obra, 0 espectro do ew roméntico, que por vezes insiste em flanar por sobre a multidao dos séculos futuros, jamais é atvaido pelo mis- zério da luz que os Céus inflama, tampouco o Firmamento de sua lirica tem qualquer semelhanga com os devaneios de Jean-Paul “dans le Midi ensoleillé”, como os descreveu Albert Béguin, E no obstante perten- cer & mesma linhagem espiritual dos poetas inspirados nas paisagens nativas ¢ ligadas de coragao a sua cultura de origem, ele no compe com a falange dos vates desligados deste mundo e sequer faz as vezes do passante efémero de olhar evanescente.§ O seu alvo é perseguir em voo aberto a mosca alegre da putrefagao. Sobre este aspecto, Zenir Campos Reis — cujo trabalho admira- vel de edigo ¢ revisiio da obra de Augusto dos Anjos veio acrescentar agem de uma 5: Liicia Helena, uma das intérpretes mais aplicadas da obra de Augusto dos Anjos, afirma que, embora se possa reconhecer no conjunto dela a presenga de eleggntos simbolistas (a musicalidade, o eabalisnio, a numerologie, 0 orientalismo), naturalistas ou parnasianos, im- pressionistas ou expressionistas —e mesmo “a presenga de marcas antecipadoras das trans- formagdes que vieram a aclarar-se e radicalizar-se com os modernos” ~ “ainda assim neces- sitariamos ir além” (1984: 42-43). 6, Sobre a topica do passante efémero, ef, Albert Béguin (1974: 151-52). a0 Eu, 208 Poemas esquecidos ¢ a Oucras poesias os textos inventariados dos Poemas dispersos, da Prosa dispersa e de mais dois Poemas apécrifos — apresenta, entre outras pistas e notagdes reveladoras, um caminho inédito para acompanhar a outra face do verbo discordante do poeta, vazado no conjunto de erénicas e de artigos dispersos que recolheu em livro em fins da década de 1970 (Cf. Reis 1977: 38-53). De fato, a prosa dispersa por ele coligida mostra o intelectual combativo expressando-se com uma voz social empenhada (“a larva do caos teliirico”) que permite ampliar a visio do carter histrico da existéncia, no centro da poética de Augusto dos Anjos. Mais ainda: tal como na diegiio de seus versos, prosa deixa igualmente de ser alusiva para se converter numa in- tervengdo na vida conereta. Num primeiro momento, quando 0 poeta revida aos ataques de seus criticos (“o critico é um ente mérbido no él- timo periodo de asthenia cerebral”), ¢ em seguida quando reflete sobre o tema da optessio e da luta pela liberdade. Aos seus olhos, © martitio de Tiradentes (“alma de luz adormecida sob 0 brando dossel da Liber- dade”) brilha como um contraste retérico diante do “velho corvo do feudalismo que, para a nossa desventura, crocita ainda no destino de tantos povos”. “Ha peripherias roxas em torno de nossos olhos”, escre- ve num outro texto. “E porque vamos pensando nessas coisas tristes”, prossegue, “assoma-nos a idéia torturada a imagem do Brasil arquejan- tel”, aquela mesma que nos versos do “Ave libertal”, por exemplo, vem misturada ao “despotismo entre escombros” e ao “labéu da escravidao” (nossa “mancha da gléria publica”) que a patria acabava de liquidar. Nem mesmo aqui, no entanto, a retérica do idealismo se sobrepde ao pessimismo do olhar decadente, Na prosa estranha de Augusto dos Anjos 6 libelo vem como azedume que brota para ressoar num silencio enigmético, em contraponto acirrado com as vores da lirica, na qual 0 poeta finge estar “satisfeito com essa morbidez que me isola, como um symbolo neutro, de todos os ajuntamentos sadios”. Sob a mascara dessa aparente neutralidade é que o eronista documentado por Zenir vai aus- cultar na carne do povo exausto as marcas do atraso e da miséria que © consomem: comeram-lhe os intestinos, em massa, cortaram-lhe brutalmente 05 ca- bellos da testa, mas as entranhas ficaram ahi, 4 mostra, decompondo-se aos poucos, lambidas pelos cachorros 20 sabor furibundo da primeira lin- gua adventicia que appetecer defloral-as! 188 Diante desse universo degradado, os cédigos da convengao e da arte pela arte sero meros artificios para maquilar 0 poema e descaracteri- zar a mairiz. que os preceitua. Assim, em lugar do éndio herdico ¢ varo~ nil, o “filho podre de antigos goitacazes”; ao inyés do poeta enquanto artifice que cinzela o poema como se ferisse o mdrmore com 0 camartelo, surge o virtuose da aberracéio, que mata o sonho e 0 ideal e sente o cheiro do cadéver no perfume;’ contra o andamento harménico do decassilabo, que modula a eurritmia dos temas pelo compasso das emogdes que eles sugerem, vem a corrosio da terminologia cientifica, que parece anular a estrutura das estrofes ¢ do proprio poema pela rigidez do argumento que os transforma em meros suportes de conceitos, esvaziando a forma literdria de qualquer efeito litico. Lendo com atengao o universo erudito e as fontes que 0 poeta mo- biliza em sua obra, percebe-se o ofhar dessacralizador que os descostura, em favor da neutralidade e da terminologia cientifica. A parte, é claro, a referéncia as fontes classicas, que se ajustam ao tom dos poemas que ilustram (caso da crueldade de Tantalo, que serve as carnes do préprio filho num festim, no poema “Vozes de um timulo”, ou do assombro de Parfeno ao arrancar os olhos de Dionisos, em “Gemidos da arte”, ambos utilizados como complementos metaféricos do pessimismo e da fatalidade), e cuja fungao é claramente a dissondncia que as arranca para fora do género, como a conferir A dindmica dos poemas um desenho que os articula pela jungio de signos ou de matrizes incompativeis, como nos versos: Sem tet, como Ugolino, uma cabega que possa mastigar na hora da morte... do poema “Os doentes”, ou estes do poema “Sonho de um monista”: Eu eo esqueleto esqualido de Esquilo Viajévamos com uma dnsia sibarita, ... ' Yo poema “Cismas do destino” ha uma definicfio do poeta como sindnimo da fatal este- rilidade: “Poeta, feto mals, eriado com os sucos / De uma leite mau, carntvoro asqueroso, / Gerado no atavismo monstruoso / Da alma desordenada dos malucos; / Vitima das cria- turas infesiores / Governada por &tomos mesqquinhos, / Teu pé mata a uberdade dos cami- nihos / E esterliza os ventos geradores!”. f 189 Outras vezes o desfiguramento do ato poético resulta da propria de- genereseéncia dos temas que o enformam, contaminando as figuras de linguagem como num mérbido cliché em que a natureza, as coisas ¢ por vezes os prdprios astros aparecem destituidos de todo brilho natu- ral, reduzidos a mérbidos sintomas, como nos versos de “Os doentes”, em que os asiros mitidos reduzem 0s céus sérios ¢ rudos a uma epiderme cheia de sarampos. Tudo é dito com a inflexao do desespero, ¢ cada arroubo traz con- sigo a banalizagao da remissao literdria de origem. Para o poeta nem mesmo Pedro Américo pintaria o quadro de afligdes em que ele vive, ¢ ele puxa os cabelos como o rei Lear perdido na floresta ou vaga pelas estradas a uivar hoffmaniacos dizeres. Os amiacios das casas de comér- cio parecem-lhe mais tristes que as elegias de Propércio. Ele se imagina uma sobrevivéncia de Sidarta por vezes julga-se maior que Dante na canonizagio das dores do mundo, Para o leitor que 0 acompanha estu- pefato, uns poucos indices a modular a linhagem literaria dos tormen- tos, entre eles: a referéncia ao eterno leito de Procusto a que se resume a existéncia, ou, noutro tom, as alusdes & libertacao shopenhaueriana ou as antifonas assimétricas do wagnerianismo aziago. Através delas, 0 poe- ta resume 0 afi de sua arte: como Belerofonte fez com a Quimera, ele mata o ideal e cresta os sonhos.* n Lticia Helena, em seu belo ensaio sobre a poética de Augusto dos Anjos, & uma das poucas vozes a arriscar uma visio sistematizada do processo criador do poeta. Partindo da nogio de que a obra de Augusto dos An- jos é um mergulho espiritual nas origens e na evolugio do universo, a 8, Nao é raro, dentro de um mesmo poema, alternarem-se a uma construgio de fino apuro —como a dos versos: “Bruto, de errante rio, alto e hérrido, 0 urro / Reboava ros enunciados narrativos, que parecem anulay a fisionomia poética das estincias, como na estrofe: “Vinha as vezes, porém, 0 anclo instivel / De, com 0 auxilio especial do osso mas- seter / Mastigando homoemerias neutras de éter / Nutsir-me da matéria imponclerével” (“Os doentes”). Outras vezes, no entanto, mais préxima do rigor parnasiano, é a estrutura da estrofe que impde, como uma exigéncia do espectro rimatico, a escolha de determinada palavra, raziio, por exemplo, da presenga de Plinio na sexta estrofe do poema “Gemidos de arte”, como termo necessério para rimar com a palavea racioeinio, fine 199 ensaista analisa o conjunto de seus versos distinguindo quatro etapas de composigiio. Na primeira ela situa o surgimento de wm eu, que se mani~ festa pelo que denomina de forma vermicular desconhecida que provém do cosmopolitismo das moneras, na qual 0 foco de origem é dado pela ima~ gem da escuridao do césmico segredo, originaria das instancias do caos.’ Nessa primeira etapa da nebulosa que se expande, em que é possivel localizar 0 inicio da trajetéria descendente do poeta, cruzam-se na ex- petiéncia heuristica do ew lirico a rememoragao do mito cosmogdnico da criag&o e a intuigo monistica, que evoluem em diferentes nticleos tematicos da visio intuitive para 0 transformismo o fagismo. A primeira referéncia & imagem do poeta no livro Hw é uma es- pécie de epifania cosmogénica, que nos remete ao cosmopolitismo das monetas ¢ aos limites de outro tempo. O poeta é 0 detentor do césmico segredo ¢ paira acima da humanidade como um tragico demiurgo que manipula os movimentos de todas as substancias. Pairando acima dos mundanos tetos, Nao conhego 0 acidente da Senectus — Esta universitaria sanguessuga Que produz, sem dispéndio algum de virus, O amarelecimento do papirus E a miséria atémica da ruga.” Numa segunda etapa, materializa-se a gradativa transformagdo do caos origindrio em cosmo, marcada pelo despertar de um povo subterraneo, cujo impeto inaugura a estranha fenomenologia das forgas que se articulam sob uma nova diseiplina, captada pela intuigao do poeta. E o momen- to do transformismo em que se combinam as impresses intelectuais do autor (adepto do evolucionismo de Darwin e das teorias de Haeckel Spencer) e 2 mecinica das coisas vistas da perspectiva da ciéncia, defi- nindo as diferentes vozes em que se alternam “a aut6psia da amarissimna 9. Informa Lécia Helena (CE. op. cit: 66) que 0 interesse do poeta pelo tema da criago pode estar vinculado ao panorama cultural nordestino de fins do século x1x, marcado, con- forme assinala, pela “difusio das idéias de Haeckel, que, em sua obra Enigmas do ussiverso, faz uso de uma ‘filosofia’ incipiente, de mitolégica animagao da matéria, no que recorda 0 hilozoismo dos jénios (doutrina que atribui 4 matéria qualidades espirituais), bem como a doutrina de Empédocles sobre o ddio e o amor entre os elementos”. 10. “Monélogo de uma sombra”, 3. 191 existéncia, 0 choque da forca centripeta e do movimento para vencer esta mesma forga, a genealogia dos séculos e do cosmo e a dissolugao panteistica”" de que 0 poema “Os doentes” serve como espécie de em- blema. Nele a doenga é a forea atroz que destri a natureza ea paisagem através de efeitos estéticos impressionantes, entre os quais a visio da cidade como uma cascavel pegonhenta de morféticos, convertendo a ci- vilizagao num achincalhe: Como uma cascavel que se enroscava, A cidade dos kézaros dormia, Somente, na metrdpole vazia, Minha cabeca autonoma pensaval Mordia-me a obsesstio mé de que havia, Sob os meus pés, na terra onde eu pisava, Um figado doente que sangrava E uma garganta de orf que gemia! © fatalismo de que o universo haverd de desintegrar-se numa glusone- ria hedionda ¢ no préprio esgotamento do cosmo marca a terceira etapa da evolugdo tematica, 0 fagismo, em que “o verme (¢ suas variantes: a lepra, o roer, a podridao, o esterco, os residuos ruins) 6a imagem cons- titutiva da transformacao con-sumidora”, responsdvel pela desagrega- go que se expande desarticulando por dentro as dicotomias aparentes eas relagdes de causalidade de que se reveste 0 mundo (corpo-alma, nascimento-desenvolvimento-morte, vida animal, vegetal, decompo- sigdo) e revelando 0 que “a legislacZio genealégica da ciéncia tende a ocultar: o fato de que consistem numa pintura desasticulada da totali- dade do real”, a que s6 a arte, como instncia suprema da criagéo, tem o dom de aspirar (Id. ibid.: 72). 11, “Os trs eixos de tematizacio (a articulagao dos niicleos temiticos: intuigio monfstica, seansformismo e fagismo) atuamn simultanemente em cada um dos temas-chave. TE conju- ggam-nos entre si, ea seus possiveis desdobramentos, pelo duelo terrivel (a angristia instau- radora a que se referiu Manuel Bandeira) que, a0 desencadlear 0 processo de corrosto, pro~ move o questionamento ca dualidade metafisica ea unificagio de todos os temas, elementos ica: a da cosmogonia”. (CE. Liicia ¢ eixos de tematizagio em uma tinica e mesma cena poé Helena op. cit: 72) 192 E neste primeiro circulo da transformagao que o poeta desce a0 império da substdncia universal e constata, no pulsar da vida subter- vanea dos seres inferiores, a emergéncia de um outro tempo, visto na dimensao vertical do mito em oposigio a linearidade do tempo cristo, superado pela destruig&o do cosmo. Nos sinais externos dessa desco- berta, define-se a aversio pela natureza humana, mais ou menos nos termos ja tragados pelos decadentistas, valendo as metéforas de Jean des Esseintes e sua luta pela artificializagao das coisas ¢ 0 culto a ne- vrose como tragos de precedéncia. No entanto, ao contrario do refinamento dirigido aos prazeres € & educagao dos sentidos pela exploracio das sinestesias, préprios do heréi de Huysmatis, em Augusto dos Anjos os sentidos se apuram para registrar a derrocada de um mundo que se degrada por inteiro, Diante do “invencfvel tédio gerado pela abundancia” do lugar-comum — mal de que padecem os decadentistas —, 0 poeta como que aprimora uma nova estética da reprodugao e desenvolve uma gramatica dos sentidos meticulosamente transposta para a sintaxe dos odores, dos ruidos e do proprio tato, sentidos presentes em cada verso que apalpa a desinte~ gracio das coisas. Desde a sensacao primeira da idéia que brota do encéfalo, que a constringe para morrer no molambo da lingua paralitica, 4 intuig&o monistica que fatalmente a aproxima da inconsciéncia atroz dos seres inferiores (lembremos a apéstrofe ao cio, alma de inferior rap- sodo errante,t) os versos do Eu instauram uma espécie de ventriloquia do mundo subterraneo em movimento, transformando as células e as fibras, os vermes e os neurdnios, os bichos e os instintos em auténticas forgas raciocinantes. Desse visionarismo nevr6tico brota o automatis- mo das impressdes, que vai aos poucos substituindo a realidade por réplicas da imaginagao e do delirio. Por ai o poeta assume 0 parentesco com as categorias das organizagées liliputianas e desfruta do prazer de ser larva, enquanto sente as vegetalidades subalternas movendo-se-lhe sob as pernas, a pedir um pedago de lingua com que desencadeassem sua filogenética vinganga. Noutro plano, é a propria obsessiio da ruina que o leva a transformar os espacos em verdadeiros clichés desse docus amoenus ao reverso, de que é exemplo notavel 0 poema “Uma noite no Cairo”, em tudo oposto a expectativa do leitor eventualmente interes- sado nas coisas do Egito, na verdade, mera contingéncia para que 0 poeta reelabore o artificialismo da paisagem sob a dtica devoradora do fagismo (mastins negros sob a lua sinistra, as pirdmides transformadas 193 em sombria interjeigao de medo, em meio ao brado epiléptico de um . saltimbanco...). Outro sintoma dessa atitude o leitor vai constatar na fragmen- tagio da experiéncia que o poeta transpée para o seu proprio corpo, quando pede, por exemplo, para ser cortado pela tesoura bramanica do dr. Ptah Hotep, clamando que sua vida se dissolva na aberragto de tum évulo infecundo, pata assim converter um dos motivos clissicos com que Cam@es cantou a t6pica do desengano (“o dia em que nasci moura e pereca”), num equivalente irénico da imaginagao estdica. Ou ainda nos processos de mutilagio que faz derivar da natureza para a sua proptia pessoa, tais como aparecem no poema “Tristezas de um quarto minguante”, em que a despoetizacio do espago é uma par6dia do grotesco, 2 lembrar uma certa inflexo para o nonsense proprio da poesia moderna: a lua magra, por exemplo, transforma-se num para~ lelepipedo quebrado e depois numa figura que lembra a casca de um ovo; 0 poeta, delirando, molha a fronte com vinagre e quer dissolver- se no semicirculo desses cacos; conta telhas como se fosse um psicopa- ta degenerado e em seguida entra em plena deméncia: numa festa, uma torre cai em sua testa, os vermes ¢ os formigueiros o desprezam, caem- The de uma vez todos os dentes, dois ossos rofdos 0 assombram, € ele chora, desejando beber as proprias lagrimas; nos céus a lua se apaga, répteis silenciosos cortam os campos ¢ 0 poeta rola num tapete persa enquanto ouve os vinte e um tiros que festejam os funerais de Hamlets seu grande desejo é ser a fatia esponjosa da carniga que 0s corvos co- mem sobre as jurubebas. Se fosse possivel pensar numa sintese que desse conta da atitude podtica com que Augusto dos Anjos organiza, de um Angulo inteira- mente inédito, essa etapa de seu delirio desintegrador, talvez valesse a pena recompor a estratégia de leitura que faz do poema “Gemidos de arte” uma espécie de estranha autobiografia literéria. Nele esto presen- tes muitos dos elementos fundamentais que marcaram a singulatidade de seus versos diante da superagio do simbolismo-decadentismo, para os quais o ensaio de Lucia Helena chama a atengio, ao mostrar a sua obra como resultado de um cruzamento de textos culturais, “sintoma de uma cultura de modelo dependente”, baseada em conceitos mal digeri- dos e em misturas de teorias mal assimiladas (Id. ibid.: 75). O primeiro deles € a desilustio com a linguagem e os valores por cla representados, que 0 levam a renegar 0 proprio oficio e a fugir da 194 literatura para viver como um primitivo roendo as unhas pelos ma- tos, cercado apenas pelos ces anénimos da terra, em companhia dos quais deseja beber a 4gua podre dos charcos, dormir com os cavalos nas manjedouras ¢ afastar-se da maldigdio da carne. Poeta, no entanto, detém o poder de apalpar a dlcera cancerosa e beijar a peconha sem ser contaminado, algando-se assim para a ambigio suprema de ascender a um mundo moralmente limpo e liberto da presenga humana, que vai aos poucos se delineando em oposigio & paisagem que agora se degrada numa dimensfo sensacionis 2: 0 poeta é um ser que rasteja coma flexi- bilidade de um molusco e suas forgas emotivas sio como cobras vives; sua volta os juncos cortam como chicotes, modulando a vibragao da alia dos vegetais, que rebenta inteira com a energia dos corpGsculos do pélen, enquanto esguicha um extravasamento de seiva e todos os ovarios se abrem; os musgos pintam caretas verdes nas paredes da ta- peta e as lagartixas ass rae as stem impassiveis a felicidade com que 0 poeta se integra & natureza bruta, do gneiss’ peda, numa alianga com todas as coisas do universo. Ele niio quer mais chamar-se Augusto, quer set uma folha qualquer, um arbusto obscuro da estrada com o infinito en- carcetado na alma. Abre-se af a iltima etapa do percurso em que se dé a epifania de uum outro orbe gerado pela arte, que se define como tnica insinca le gftima capaz. de dar vida d “célula inicial de um cosmos novo — 0 grande feto que viré substituir a Espécie Humana”, que 6 0 renascer do cosmo anteriormente destruido (Ibid: 66). Um de seus emblemas mais expres- sivos o leitor encontra na repentina conversio do poeta em “A ilha de Cipango”, poema no qual as marcas do orbe degradado desaparecem por encanto. Por um momento, o poeta deixa de ser o caminhante que segue pela estrada como tum imenso verme, apodrecendo ao sol perseguido por adagas terriveis que atravessam os ares. De repente, ante os seus olhos abre-se o brilho do arrebatamento e ele ingressa com o génio da Fantasia um pais de eternas pazes, Onde em cada deserto ha mil oasis E em cada rocha um cristalino veio. ‘ Nele o poeta goza numa hora séeulos de afagos, banha-se na agua amena dos lagos e cobre-se de flores. Apenas por um momento, breve instante em que o sonho se alterna com a felicidade e faz da poesia um ritual de 5 esperanga que anuncia 0 recomego, verdadeiro contraponto a resistir aos ventos que a Desgraca espalha como um fantasma na noite dos vencidos. ” 12, Amigo pessoal de Augusto dos Anjos, José Oiticica (1941: 39) —a exemplo de Jozo Al- Phonsus~ revela 2 propésito que a face antimaterialistae, mesmo, “acentuadamente esp: tualista” do poeta éa que prevalecia como tendéncia predominante em seu espirit. 196

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