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LIVRO SEXTO

I
AS COISAS
ALGARVE

A luz mais que pura


Sobre a terra seca

Eu quero o canto o ar a anémona a medusa


O recorte das pedras sobre o mar

Um homem sobe o monte desenhando


A tarde transparente das aranhas

A luz mais que pura


Quebra a sua lança
AS CIGARRAS

Com o fogo do céu a calma cai


No muro branco as sombras são direitas
A luz persegue cada coisa até
Ao mais extremo limite do visível
Ouvem-se mais as cigarras do que o mar
PESCADOR

Irmão limpo das coisas


Sem pranto interior
Sem introversão

Este que está inteiro em sua vida


Fez do mar e do céu seu ser profundo
E manteve com serena lucidez
Aberto seu olhar e posto sobre o mundo
BARCOS

Um por um para o mar passam os barcos


Passam em frente de promontórios e terraços
Cortando as águas lisas como um chão

E todos os deuses são de novo nomeados


Para além das ruínas dos seus templos
REINO

Reino de medusas e água lisa


Reino de silêncio luz e pedra
Habitação das formas espantosas
Coluna de sal e círculo de luz
Medida da Balança misteriosa
GRUTA DO LEÃO

Para além da terra pobre e desflorida


Mostra-me o mar a gruta roxa e rouca
Feita de puro interior
E povoada
De cava ressonância e sombra e brilho
A CONQUISTA DE CACELA

As praças fortes foram conquistadas


Por seu poder e foram sitiadas
As cidades do mar pela riqueza

Porém Cacela
Foi desejada só pela beleza
MUSA

Musa ensina-me o canto


Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido

Musa ensina-me o canto


O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto

Musa ensina-me o canto


Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra

Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava

(Eu me lembro do chão


De madeira lavada
E do seu perfume
Que me atravessava)

Musa ensina-me o canto


Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto

Da janela quadrada
E do quarto branco

Que eu possa dizer como


A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no copo
E como os rodeava

Pois o tempo me corta


O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do chão e da parede
Da casa primitiva

Musa ensina-me o canto


Venerável e antigo
Para prender o brilho
Dessa manhã polida
Que poisava na duna
Docemente os seus dedos
E caiava as paredes
Da casa limpa e branca

Musa ensina-me o canto


Que me corta a garganta
MANHÃ

Como um fruto que mostra


Aberto pelo meio
A frescura do centro

Assim é a manhã
Dentro da qual eu entro
PÁTIOS

Pelos dias quadrados corre a brisa


Que nos seus corredores nunca se engana
A VAGA

Como toiro arremete


Mas sacode a crina
Como cavalgada

Seu próprio cavalo


Como cavaleiro
Força e chicoteia
Porém é mulher
Deitada na areia
Ou é bailarina
Que sem pés passeia
CAMINHO DA MANHÃ

Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra.
As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um
muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as
figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma
sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada
nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até
chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo
da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até
encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem
no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica
depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para
o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro
branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e
a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro
corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro
homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra
peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o
homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que
vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente,
realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor
de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as
espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um
caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás
uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar.
E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves
na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que
morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um
ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas
os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles
corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os
teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a
escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás
que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e
comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da
sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e
quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e
o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um
canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do
grande Deus invisível.
AS GRUTAS

O esplendor poisava solene sobre o mar. E — entre as duas pedras


erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o
equilíbrio do homem com as coisas é medido — quase me cega a perfeição
como um sol olhado de frente. Mas logo as águas verdes em sua
transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e rápido dos
peixes. Porém a beleza não é só solene mas também inumerável. De forma
em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande rascasso vermelho
passa em frente de mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a luz recorta
promontórios e rochedos. É tudo igual a um sonho extremamente lúcido e
acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras, porém é
tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a
minha cara na superfície das águas lisas como um chão.
As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim.
Talvez eu vá ficando igual à almadilha da qual os pescadores dizem ser
apenas água.
Estarão as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente
a este lugar? Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando
deixou redondo e doirado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã, no
centro do círculo do ar e do mar, no alto do penedo, no alto da coluna está
poisada a rola branca do mar. Desertas surgem as pequenas praias.
Um fio invisível de deslumbrado espanto me guia de gruta em gruta. Eis
o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetrar na habitação secreta da
beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de
frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento.
Deslizam os meus ombros cercados de água e plantas roxas. Atravesso
gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto paira roída sobre o verde.
Colunas de sombra e luz suportam céu e terra. As anémonas rodeiam a
grande sala de água onde os meus dedos tocam a areia rosada do fundo. E
abro bem os olhos no silêncio líquido e verde onde rápidos, rápidos fogem
de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e desenham a claridade dos
espaços matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água. Esta
manhã é igual ao princípio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se
viu.
O meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se
vejam.
E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis
são águas e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu
amor neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de
espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe
dos abismos e surge em suas portas.
Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e
limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de glória
matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar
de gratidão com a cara encostada contra as pedras.
RESSURGIREMOS

Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos


E em Delphos centro do mundo
Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta

Ressurgiremos ali onde as palavras


São o nome das coisas
E onde são claros e vivos os contornos
Na aguda luz de Creta

Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo


São o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a terra de frente
Na luz limpa de Creta

Pois convém tornar claro o coração do homem


E erguer a negra exactidão da cruz
Na luz branca de Creta
II
A ESTRELA
A ESTRELA

Eu caminhei na noite
Entre silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava

Grandes perigos na noite me apareceram


Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
De uma cidade a néon enfeitada

A minha solidão me pareceu coroa


Sinal de perfeição em minha fronte
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era de um ferro
Tão pesado que toda me dobrava

Do frio das montanhas eu pensei


«Minha pureza me cerca e me rodeia»
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu

E a fraqueza da carne e a miragem do espírito


Em monstruosa voz se transformaram
Disse às pedras do monte que falassem
Mas elas como pedras se calaram
Sozinha me vi delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava

E eu caminhei na noite minha sombra


De desmedidos gestos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins desolados caminhavam
Então eu vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava

E assim eles disseram: «Vem connosco


Se também vens seguindo aquela estrela»
Então soube que a estrela que eu seguia
Era real e não imaginada

Grandes noites redondas nos cercaram


Grandes brumas miragens nos mostraram
Grandes silêncios de ecos vagabundos
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava
E eu espantada vi que aquela estrela
Para a cidade dos homens nos guiava

E a estrela do céu parou em cima


De uma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha a cor que tem a cinza
Longe do verde azul da natureza

Ali não vi as coisas que eu amava


Nem o brilho do sol nem o da água

Ao lado do hospital e da prisão


Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais triste e mais sozinha
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado

Nesse lugar pensei: «Quanto deserto


Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens e tão perto»
NO POEMA

Transferir o quadro o muro a brisa


A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem liquidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso

Preservar de decadência morte e ruína


O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa
EIS-ME

Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente


Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não
moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente
DESPEDIDA

Na estação na tarde o fumo


O rumor o vaivém as faces
Anónimas
Criam no interior do amor um outro cais

As lágrimas
O fogo da minha alma as queima antes que brotem
MEIO DA VIDA

Porque as manhãs são rápidas e o seu sol quebrado


Porque o meio-dia
Em seu despido fulgor rodeia a terra

A casa compõe uma por uma as suas sombras


A casa prepara a tarde
Frutos e canções se multiplicam
Nua e aguda
A doçura da vida
O POEMA

O poema me levará no tempo


Quando eu não for a habitação do tempo
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá


Às searas

Sua passagem se confundirá


Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes


Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará


Uma praia onde quebrar as suas ondas
E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo
FELICIDADE

Pela flor pelo vento pelo fogo


Pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia — por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta
TRADUZIDO DE KLEIST

Dizem que no outro mundo o sol é mais brilhante


E brilha sobre campos mais floridos
Mas os olhos que vêem essas maravilhas
São olhos apodrecidos
LABIRINTO

Sozinha caminhei no labirinto


Aproximei meu rosto do silêncio e da treva
Para buscar a luz dum dia limpo
TEMPO

Tempo
Tempo sem amor e sem demora
Que de mim me despe pelos caminhos fora
CAMPO

Estou só nos campos


A doce noite murmura
A lua me ilumina
Corre em meu coração um rio de frescura
De tudo o que sonhou minha alma se aproxima
A PURA FACE

¿Como encontrar-te depois de ter perdido


Uma por uma as tardes que encontrei
Ó ser de todo o ser de quem nem sei
Se podes ser ao menos pressentido?

Não te busquei no reino prometido


Da terra nem na paixão com que eu a amei
E porque não és tempo não te dei
Meu desejo pelas horas consumido

Apenas imagino que me espera


No infinito silêncio a pura face
Pr’além de vida morte ou Primavera
E que a verei de frente e sem disfarce
INSCRIÇÃO

Quando eu morrer voltarei para buscar


Os instantes que não vivi junto do mar
PARA ATRAVESSAR CONTIGO
O DESERTO DO MUNDO

Para atravessar contigo o deserto do mundo


Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo


Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro


Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste


E aprendi a viver em pleno vento
FERNANDO PESSOA

Teu canto justo que desdenha as sombras


Limpo de vida viúvo de pessoa
Teu corajoso ousar não ser ninguém
Tua navegação com bússola e sem astros
No mar indefinido
Teu exacto conhecimento impossessivo

Criaram teu poema arquitectura


E és semelhante a um deus de quatro rostos
E és semelhante a um deus de muitos nomes
Cariátide de ausência isento de destinos
Invocando a presença já perdida
E dizendo sobre a fuga dos caminhos
Que foste como as ervas não colhidas
CARTA AOS AMIGOS MORTOS

Eis que morrestes — agora já não bate


O vosso coração cujo bater
Dava ritmo e esperança ao meu viver
Agora estais perdidos para mim
— O olhar não atravessa esta distância —
Nem irei procurar-vos pois não sou
Orpheu tendo escolhido para mim
Estar presente aqui onde estou viva
Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo que respiro e vejo
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar de frente
Neste país de dor e incerteza
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil

Aqui me resta apenas fazer frente


Ao rosto sujo de ódio e de injustiça
A lucidez me serve para ver
A cidade a cair muro por muro
E as faces a morrerem uma a uma
E a morte que me corta ela me ensina
Que o sinal do homem não é uma coluna
E eu vos peço por este amor cortado
Que vos lembreis de mim lá onde o amor
Já não pode morrer nem ser quebrado
Que o vosso coração que já não bate
O tempo denso de sangue e de saudade
Mas vive a perfeição da claridade
Se compadeça de mim e de meu pranto
Se compadeça de mim e de meu canto
OS ASPHODELOS

Colhe pálida sombra os asphodelos


Roxos do prado onde caminha a vida
Cujo destino foi só não ser vivida
Põe coroas de pranto em teus cabelos
PRIMAVERA

As heras de outras eras água pedra


E passa devagar memória antiga
Com brisa madressilva e Primavera
E o desejo da jovem noite nua
Música passando pelas veias
E a sombra das folhagens nas paredes
Descalço o passo sobre os musgos verdes
E a noite transparente e distraída
Com seu sabor de rosa densa e breve
Onde me lembro amor de ter morrido
— Sangue feroz do tempo possuído
DIA

Meu rosto se mistura com o dia


Nuvens telhados ramagens e Dezembro
Apaixonada estou dentro do tempo
Que me abriga com canto e com imagens

Tão abrigada estou dentro da hora


Que nem lamento já a tarde antiga
Tudo se torna presente e se demora
Será que o dia me pede que eu o diga?
A PEQUENA ESTÁTUA

Presença ritual e tutelar


Companheira da sombra desenho do silêncio
INSTANTE

Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes

Deixai-me com as coisas


Fundadas no silêncio
CIDADE

As ameaças quase visíveis surgem


Nascem
Do exausto horizonte mortas luas
E estrangulada sou por grandes polvos
Na tristeza das ruas
O HOSPITAL E A PRAIA

E eu caminhei no hospital
Onde o branco é desolado e sujo
Onde o branco é a cor que fica onde não há cor
E onde a luz é cinza

E eu caminhei nas praias e nos campos


O azul do mar e o roxo da distância
Enrolei-os em redor do meu pescoço
Caminhei na praia quase livre como um deus

Não perguntei por ti à pedra meu Senhor


Nem me lembrei de ti bebendo o vento
O vento era vento e a pedra pedra
E isso inteiramente me bastava

E nos espaços da manhã marinha


Quase livre como um deus eu caminhava

E todo o dia vivi como uma cega

Porém no hospital eu vi o rosto


Que não é pinheiral nem é rochedo
E vi a luz como cinza na parede
E vi a dor absurda e desmedida
III
AS GRADES
PÁTRIA

Por um país de pedra e vento duro


Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência


Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas


Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

— Pedra rio vento casa


Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro
Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo
PRANTO PELO INFANTE D. PEDRO
DAS SETE PARTIDAS

(poema escrito na noite de 17-12-1961, e interrompido pela notícia da entrada dos soldados
indianos em Goa)

Nunca choraremos bastante nem com pranto


Assaz amargo e forte
Aquele que fundou glória e grandeza
E recebeu em paga insulto e morte
PRANTO PELO DIA DE HOJE

Nunca choraremos bastante quando vemos


O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas
EXÍLIO

Quando a pátria que temos não a temos


Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades
DATA

(à maneira d’Eustache Deschamps)


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira


Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro


Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rastro
Tempo de ameaça
A VESTE DOS FARISEUS

Era um Cristo sem poder


Sem espada e sem riqueza
Seus amigos o negavam
Antes do galo cantar
A polícia o perseguia
Guiada por Fariseus

O poder lavou as mãos


Daquele sangue inocente
Crucificai-o depressa
Lhe pedia toda a gente
Guiada por Fariseus

Foi cuspido e foi julgado


No centro duma cidade
Insultos o perseguiam
E morreu desfigurado

O templo rasgou seus véus


E Pilatos seus vestidos
Rasgaram seu coração
Maria Mãe de João
João Filho de Maria
A treva caiu dos céus
Sobre a terra em pleno dia
Nem uma nódoa se via
Na veste dos Fariseus
AS PESSOAS SENSÍVEIS

As pessoas sensíveis não são capazes


De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira


À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»


Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem
O SUPER-HOMEM

Onde está ele o super-homem? Onde?


— Encontrei-o na rua ia sozinho
Não via a dor nem a pedra nem o vento
Sua loucura e sua irrealidade
Lhe serviam de espelho e de alimento
CÍRCULO

Num círculo se move


Num círculo fechado

Sua morte o envolve


Como uma borboleta

Seus verdugos o cercam


Como quem cerca o toiro

Em sua volta não vê


Nenhuma porta aberta

Grandes panos de sangue


Sobre os olhos lhe estendem

A sua hora estava


— Como se diz — marcada

Pegador não houve


Nem pega de caras

E as portas estavam
Sobre o grito fechadas
BABILÓNIA

Com pátios interiores e com palmeiras


Com muros de tijolo com pequenos tanques
Com fontes com estátuas com colunas
Com deuses desenhados nas paredes de barro

Com corredores e silêncios e penumbras


Com vestidos de linho tocando a pedra pura
Com cinamomo e nardo
Com jarras donde corria azeite e vinho

Com multidões com gritos com mercados


Com esteiras claras sob os pés pintados
Com escribas com magos e adivinhos
Com prisioneiros com servos com escravos
Com lucidez feroz com amargura
Com ciência e arte
Com desprezo
Babilónia nasceu de lodo e limo
O VELHO ABUTRE

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas


A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas
CANTAR

Tão longo caminho


Quanto passo andado
E todas as portas
Encontrou fechadas
Tão longo o caminho
Como vai sozinho
Sua sombra errante
Desenha as paredes
Sob o sol a pino
Sob as luas verdes
A água de exílio
É brilhante e fria
Por estradas brancas
Ou por negras ruas
Quanto passo andado
Por amor da terra
País ocupado
Onde o medo impera
Num quarto fechado
As portas se fecham
Os olhos se fecham
Fecham-se janelas
As bocas se calam
Os gestos se escondem
Quando ele pergunta
Ninguém lhe responde
Só insultos colhe
Solidão vindima
O rosto lhe viram
E não querem vê-lo
Seu longo combate
Encontra silêncio
Silêncio daqueles
Que em sombras tornados
Em monstros se tornam
Naquela cidade
Tão poucos os homens

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