Você está na página 1de 12
FCONOM|. nea URBANZACAO O mérito dos trabalhos do Professor Paul — Singer publicados neste volume, ao contrario da abordagem tradicional, consiste em examinar o problema da explosio do crescimento urbano pela migracéo da populagéo rural, A correlagio entre o desenvolvimento econdmico, as contradi- des das classes sociais e as formas de dominacao. editora brasiliense 8 PAUL SINGER ES OMIA Inger ECONOMIA POLITICA DA URBANIZAG. ¥ P= 'S <)> Capa ‘MOEMA CAVALCANTI ALVES Revisio ANTONIO SERGIO GUIMARAES editor breasiliemse soc. an. 01042 — rua bardo de itapetininga, 93 ‘so paulo — brasil INDICE A GUISA DE INTRODUGAO: URBANIZACAO E CLASSES SOCIAIS MIGRAPOES INTERNAS: CONSIDERAGOES TEORICAS SOBRE O SEU ESTUDO - aes URBANIZAGAO, DEPENDENCIA E MARGINALIDADE NA AME. RICA LATINA . CAMPO, E CIDADE NO CONTEXTO HISTORIOO LATINOLAME- RICANO .... URBANIZAGAO E DESENVOLVIMENTO: © CASO DE SKO PAULO” ....- Reine ae: a ECONOMIA URBANA . ASPECTOS EOONOMIOOS DO PLANEJAMENTO METROPOL a a us 135 M5 Quando se pensa qualquer sociedade humana que tenha atingido © estigio da civilizacio urbana — em que a produgfo c/ou a captura de um excedente alimentar permite a uma parte da populacio viver aglomerada, dedicando-se a outras atividades que no & producio de alimentos — a divisio entre urbe e campo aparece claramente 0s olhos. So também aparentes as relagSes que se estabelecem entre os que vivem nas zonas urbanas € os que vivem na zona rural, ‘mediante as quais os segundos fornecem aos primeiros parte da sua produgo, em troca de produtos da cidade ou de certos servigos reais ou imagindrios (governo, segtiranca, religifo etc.). J& a divisio das mesmas sociedades em classes nem sempre aparece com a mesma clareza, Embora haja sempre uma*estrutura social explicita, em castas, estamentos, grupos raciais ou religiosos etc., via de regra a divisio em classes néo é Sbvia. Um assalariado, por ene per- tence a uma classe diferente que o seu empregador, mas sendo am moradores da cidade (ou do campo) 0 seu “status” como membros da mesma comunidade ecoldgica € mais “‘evidente” que sua partici- pagdo em classes diferentes. Somente em determinados momentos Cruciais da histéria, quando a dindmica da sociedade inclusiva enseja © enfrentamento giobal de classe contra classe, estando 0 futuro de toda sociedade em jogo, somente nestes momentos a estrutura de classes aparece a luz, sobrepujando as demais divisdes sociais, inclusive a ecolégica. Quando os camponeses da Franca arrasevam castelos, em apoio aos “‘sans-cullotes” de Paris, ou quando os Jun- kers prussianos se aliaram aos industriais do Ruhr em apoio a0 na- zismo — para apontar apenas um momento revolucionétio ¢ outro contra-revoluciondrio — ninguém deixou de perceber que o anta- gonismo entre campo ¢ cidade (ou entre agricultura e industria) ‘tinha um cardter historicamente muito menos decisivo que as con- tradigées de classe. ‘Acontece, no entantd, que mesmo durante o desenvolvimento “normal” das sociedades de classe, as relagdes entre as classes cons- tituem 0 processo que molda a evolugéo da sociedade, decidindo a forma como as comunidades ecol6gicas se desenvolvem ¢ se inter- Economia Politea da Usbasttagie 11 relacionam, constituindo a bipoleridade cidade e campo apenas um feito secundétio, por assim dizer “superestrutural”, daquele pro- cesso bisico. Este fato fundamental é quase sempre obscurecido pela mancira como a organizacio ecoldgica da sociedade & anali- sada, A histéria das relagdes campo x cidade & quase sempre escrita abstraindose as relagBes de classes ou entio na suposicio de que hd dois sistemas de classes, um urbano e o outro rural, que se con- trapdem, A hist6ria, assim formulada, torna-se ininteligfvel na me- ddida em que as relagées de dominacéo entre cidade e campo apenas deixam entrever, sem revelar em sua inteireza, as relagdes de domi- acto de classe’ que, estas sim, “‘explicam” ‘as diferentes formas assumidas pelas primeiras, A cidade 6, via de regra, a sede do poder e portanto da classe dominante. Tsso € fécil de entender, desde que se tenha em mente a diferenca fundamental entre campo e cidade. “Campo” é 0 lugar onde se dé a atividade priméria, onde o homem entra em contato direto, primério, com a natureza, dela extraindo as substincias que vio lhe satisfaze> as necessidades. A transformacio final destas substincias pode-se dar no campo ou na cidade, mas a sua pro- dugio primeira, sua sepatagéo do meio natural, mediante extrasio, cultivo ou criagio, se dé necessariamente no campo. Este tipo de atividede 6, portanto, um monopélio do campo. Nao importa se na cidade também vive cultivadores, entre as atividedes. urbanas fundamentais ndo se inclui a agricultura. Uma comunidade de agri- ccultores, por mais densamente aglomerados que vivam seus habi- tantes ¢ por maior que ela seja (de fato, ela no pode ser muito grande, devido so cardter extensivo das atividades primfrias) nfo pode ser considerada uma cidade.? O que caracteriza 0 campo, pottanto, em contraste com a cidade, & que ele pode-ser—-er-de fato, muitas vezes tem sido — auto-suficiente. A economia natural um fenémeno essencialmente rural. No campo se pratica a agri- ‘cultura e, em determinadas condigées, todas as demais atividades frias ao sustento material da sociedade. O campo pode, por tanto, subsistir sem a cidade e realmente, na histéria, precedeu cidade. Esta s6 pode surgit a partir do momento em que o desen- volvimento das forgas produtivas é suficiente, no campo, para per- mitir que 0 produtor primério produza mais que o estritamente 1 As cidades de mineradores constituem uma excesfo, que confirma a regra, A mineragio € atvidade primdria, mas faltzlhe 2 possibilidade da auto- -suficincia. Disto decore que, em determinadas condicbes, a mineragio ctie Cidades que, como as demais, tm que contsr com um suprimento alimentar externa, 12 Paul Singer L, ecessério A sua subsisténcia, $6 a partir daf & que o campo pode’. , transferir A cidade 0 excedente alimentar que possibilita sua exis- téncia. ‘A produsio do excedente alimentar ¢ uma condigio necess mas no suficienie para o surgimento da cidade. preciso. ginda que se € de distribuigao, ou seja, uma sociedade de classes. Pois, de outro modo, a transferéncia de’ mais-produto nfo seria possivel. Uma so- ciedade igualitiria, em que todos participam do mesmo modo na pproducio e na apropriagio do produto, pode, na verdade, produzir tum excedente, mas nio haveria como fazer com que uma parte da sociedade apenas se dedicasse A sua produgo, para que outra parte dele se apropriasse. Na anélise deste processo de constituigio da cidade a partir da diferenciagio de uma sociedade rural auto-suficiente, & preciso colocar, como um segundo momento, a divisio do trabalho entre campo e cidade. Esta divisio de fato se dé, mas s6 depois que a cidade jé existe. No momento de sua ctiagio, a cidade nfo pode surgit com uma atividade produtiva propria. Esta se desenvolve, “ pouco a poco, como resultado de um processo de constituigio de } ‘enfim, que assegure a transferéncia do mais-produto do i ‘cidade. Isto significa que a existéncia da cidade pressupoe “/ uima participacio diferenciada dos homens no processo de produgio ~*~ a realizacio de obras de irrigacio e outras que elevam o nivel das forgas produtivas, 0 povo dominador eleva o volume dos tributos, ‘© que lhe permite, pouco a pouco, abandonar o exercicio das ativi dades produtivas, dedicando-se exclusivamente & tarefa da domina- ‘so, como guerreiros, sacerdotes, juizes, administradores etc., desta maneira se tormando classe dominante, Seja como for, a diferenciagio social tinha que preceder a dife- renciagéo ecolégica, Nas palavras de V. Gordon Childe: “Agora é preciso admitir que a realizacéo da segunda revolugo (a revolucio urbana) requeria a acumulacio de capital na forma primeiramente de alimentos, que a acumulacio de alimentos tinha que ser em certa ‘medida concentrada para tornéla efetivamente disponivel para fins sociais ¢ que no Egito a primeira acumulagéo concentracéo foi aparentemente o resultado de conquista. Mas nfo é demonstravel ue tal conquista foi em todos os casos a causa efetiva para a neces- séria acumulacio € concentracio de capital. Na Mesopotamia vere- ‘mos que foi nominalmente um deus nativo (na pritica, é claro, a corporacio de seus auto-nomeados sacerdotes) que administrava a riqueza acumulada de uma cidade sumeriana...”? Childe sustenta que a estrutura de classes tanto poderia ter surgido como resultado de diferenciacfo interna como de conquista externa. De uma forma ou de outra, o que importa aqui € que a ctiacio da cidade requeria ‘uma acumulagéo prévia, entendida nfo como a formagéo de um cestoque inicial (o que ndo teria sentido para a existéncia continua de utha populaglo urbana nfo produtora de alimentos), mas como uum fluxo permanente de um excedente alimentar do campo & cidade. Este fluxo permanente, que poe repe as condigses de sobrevi- véncia da cidade, pressupde a existéncia de uma estrutura de classes ‘e, mais ainda, de uma classe dominante que resolveu isolar-se, com © seu séquito, espacialmente do restante da sociedade. E s6 a partir desta resolugio, que pressupSe, repita-se, dominacio, é que se pode cespeculur sobre a “racionalidade” ou a “funcionalidade” da segre- ‘gacfo urbana. { Uma destas especulagSes € que a cidade surgiu ao redor do mer- cado enquanto sitio (marketplace), em funcéo do desenvolvimento do comércio, ¢ assim pode ter sido em numerosos lugares. Mas a ‘idade comercial pressupte, para que possa surgir, um outro tipo de cidade, que assegute as caravanas de mercadores’ contra 0 roubo ‘0s metcadores individualmente contra a fraude. A cidade comercial 2 Man makes bimself, p. 107. 14 Poul Biager | ie € fruto, portanto, de uma cidade-estado, que domina um certo terri- tério, dele extraindo um-mais-produto que possa ser trocado pelo mais-produto de outros territérios. A cidade nfo inventa o comércio, mas muda-lhe o carter, transformando-o de mero escambo irregular de excedentes agricolas em intercimbio regular de bens de luxo, fem getal manufaturados. Com a cidade surge a producio regular e especializada de bens mais sofisticados (amuletos, jolas, armas) de cujo intercimbio generalizado se destaca uma mercadoria que, pouco 4 pouco, se transforma em equivalente geral de todas as outras, tornando-se moeds,)e & a troca monetéria que finalmente torna pos- fvel a ampliagio da divisio social do trabalho. Mas por detrés de tudo isso, é sempre bom lembrar, se encontra necessariamente uma classe dominante, capaz de extrair um excedente alimentat suficien- temente amplo d> campo para sustentar nfo sé a si mas também artfices, cuja produsio constitui a razio de ser do comércio, Onde a classe dominante se mostrou impotente para concentrar um mais- -produto agricola suficiente, a manufatura nio se desenvolveu nem © comércio prosperou. O ‘longo intervalo entre o surgimento da cidade-fortaleza, no inicio da Tdade Média européia, e 0 surgimento da cidade comercial, no fim da mesma, testemunha a importinc desta condigao, [. A constituigfo da cidade €, 20 mesmo tempo, uma inovacio \na técnica de dominagio e na organizagao da producdo. Ambos os aspectos do fato urbano sio analiticamente separdvels mas, na rea- lidade, soem ser intrinsecamente interligados. A cidade, antes de ‘mais neda, concentra gente num ponto do espago: Parte desta gente € constitulda por soldados, que representam ponderdvel poténci militar face 4 populacio rural esparsamente distribuida pelo territé- rio. Além de poler reunir maior niimero de combatentes, a cidade aumenta sua eficéncia profissionalizando-os. Deste modo, a cidade proporciona a classe dominante a possibilidade de ampliar territo- rialmente seu dominio, até encontrar pela frente um poder armado. equivalente, isto é a esfera de dominagio de outra cidade. Assim, /a cidade é'0 modo de organizagio espacial que permite & classe dominante maxiizar q transformacio do excedente alimentar, nio iretamente consumido por ele, em poder militar e este em domi- \ nagio politica Convém neste ponto levantar a questo: de onde provém os artifices e soldados, gragas a cuja atividade a economia urbana se expande? E preciso considerar que, nos modos de produsio ante- i talismo, as relagdes de’ producio se constituem de tal : 1. os produtores se apropriam das condigées de pro- Economia Politica da Urbanlsagéo 18 dugio, a comegar do solo, de modo direto, no sentido de assegurar-se © seu uso; e 2. este uso tem sempre por finalidade primordial a produgio de valores de uso. E para preservar as condigées de apro- priagio, defendendo-as de ameacas externas ¢ subordinandovas inter- Pamente a determinadas regras que asseguram sua continuidade, que ‘0 camponés se submete A vassalagem, dispondo-se a produzir mais Valores de uso que os necessérios & sua sobrevivéncia ¢ dispondo-se Outrossim a oferecer o seu brago, ou o de seu filho, para as tarefas da guerra e da manutengio da ordem. Com o crescimento da populagdo e a ocupasio cada ver mais adensada do solo agriculturivel, multiplicam-se as exigéncias que decorrem destas atividades de preservagio: os choques mais fre- lentes com povos vizinhos tornam incompativel o exercicio simal- reo da producao ¢ da defesa (ou ataque), levando & profissionali- zasio de uma parte dos ex-produtores como soldados; no mesmo entido atuam os choques internos que se produzem, na medida em {que o crescimento da demanda esgota a capacidade das forgas proc. tivas de satisfazé-la, Nao cresce apenas a populagéo dos produtores, nas também as familias dos senhores e dos seus agregados (servos domésticos, sacerdotes, burocratas), que demandam um crescente volume de mais-produto do camponés. A conscriciio do filho do camponés cria as condigées de coergio que permitem que este vo- lume acrescido de mais produto seja exproptiado. Nas palavras de Marx: “O fim de todas estas coletividades é a preservacao, isto é, a reprodugao dos individuos, que as formam, como proprietérios, {sto &, no mesmo niodo objetivo de existéncia, que, ao mesmo tempo, jormé o relacionanento dos membros entre sie portanto a prOpria Comunidade. Esta reprodugio, no entanto, & sinultaneamente pro- dugio renovada e destruicao da velba forma. Por exemplo, onde cada individuo deve possuir um tanto de solo cultivive, j4 0 pro- jgresto da populacio se atravessa no caminho. Se se deve possibi fitelo, entzo hé que empreender colonizacio, o que torna necessitia ‘a guetta de conquista. Com ela esctavos etc. Ampliagio do «ger Dublicus (érea de uso comum), por exemplo, também, ¢ com ela patticios que tepresentam a coletividade etc. Deste modo, a preser- Yvagao da velha coletividade compreende @ destruigio das condisSes fob as quais ela repousa, transformando-se cm seu contritio. Se Se pensa por exemplo que a produtividade pode ser expandida na mesma drea mediante o desenvolvimento das forcas produtivas etc. (isso na agricultura tradicional € exatamente 0 mais vagaroso), esta alternativa pressupotia novos modos e combinagées do trabalho, ft utilizagio de grande parte do dia na agricultura etc. e com isso 18 Poul Singer | as vlha condigeserontmias da coltvidade seram de novo supe E, no fundo, o éxito no sentido mais profundo, histéri quate biol6gico, do que Marx denomina de “velha Potecndaes isto 6 de modos de produsio que se basciam na aproprasio direta las condigées de produgio pelo produtor; é este éxito que torna ossivel 2 expansio demogrifica trazendo consigo exigéncias cuja ‘atslaio requet a dasolusio dus “velhusrelages de produ, ames ‘eparaso (inicalmente parcial) do produtor das condiGet situacao bisica de tensio entre o crescimento populagic o extgio slcanado pels foras produtas conse done iene ou of conflitos resultantes abrem caminho a um novo desenvolvi- smento das forgas produtivas ou ees aaretam fomese epidemias que detém o crescimento de populasio, dizimando, De uma forma ou dk curs, pare da popuagto tem que ser retraa do campo, a sua gala ara cdade qu posits o salto para dante das frat AA transformasio da cidade em centro de produc de exploragio'do campo) 56: pode resler-de-tinefate-Ge closes entre senhores ¢ servos ou patricios ¢ plebeus, no curso da qual rabes os lados se redefinem, redefinindo 0 conjunto de suas relacées, Neste procesto, parte do malsproduto, que ainda continua vindo luz como valor de uso, transforma-se, na mfo de uma nova clas dominante, em valor de troca, em mercadotia. com base nesta teansformasio, que a cidade s¢ insere na divisio social do trabalho, lterando-a pela base. Surge uma nova classe de produtores urbanos, ‘etradaorigintlmente do campo, ¢ que, por estat na cidade, pode —clevar a um novo patamar as forgas proditivas. Por de cima desta, surge uma nova classe dominante que, em contraste com a velha, no se apropria de um miis-produto formado por valores de uso, mas acumula riqueza “mével”, valores de troca, que podem rein: sressar no circuito produtivo na medida em que se encontram, no mercado, trabalhadores que, de alguma mancira, foram desligados da “velha comunidade” ¢ que, pot isso, nio sio’rmais proptietétios le suas condigées de produsio, se: igados, portanto, a alienar ‘ou 0 fruto do seu trabalho ou sua forga de trabalho, I importante compreender que a otigem desta “‘nova” relagio de producio s6 poderia se dar na cidade, isto é, num lugar em que a pritica da economia natural é, por definiglo, impossfvel. Nas condigées em que Grarisse der Kritik der Politischen Okonomie, i 1a, pp B3)A: Salcheds oo ogi = Pe ee ee eonomla Politica da Urbantsaqéo 17 o campo ainda permanece dominado pelas ‘‘velhas” relagées de pro- dugio, o modo de assegurar que 0 produtor se dedique sistemética definitivamente & producio de valores de troca € separé-lo do seu fundo de subsisténcia, coagindo-o a obter, mediante a venda, os meios pata comprar os viveres de que necessita, Nesta fase, a cidade deixa de ser meramente a sede da antiga classe dominante para tornar-se 0 centro de uma nova classe rival de mercadores, usurétios, especuladores, coletores de impostos ete. Nio se trata de capitalistas ainda, pois’ sua existéncia depende, no fundo, da simbiose entre as novas ¢ as velhas relagdés de explorasio. ‘A grande maioria da populacio vive no campo e produz um excelente alimentar que é, em grande parte ainda, apropriado pela velha classe dominante, a qual passa, no entanto, a aliend-lo em troca dos pro- dutos de luxo trazidos do exterior pelos mercadores, Estes, por sua vez, usam a parcela do excedente alimentar assim adquirido para obter do artesanato urbano local (organizado geralmente em cotpo- rages) mercadorias que, exportadas, proporcionam recursos com os ‘quais novos carregamentos de artigos de luxo podem ser importados. ‘Ao mesmo tempo, o camponés € induzido a aumentar a producéo de alimentos de diversos modos: mercadores trazem-lhe novas vatie- dades de plantas e animais (introdugio da batata na Europa, do agicar na América etc.); 0s terratenentes elevam as rendas, para dispor de mais produtos a serem alienados em troca de manuls- turas; estas também acabam sendo desejadas pelo camponés, que procura trazer um maior volume de seus produtos so mercado, para poder adquiri-las, Tudo isso colocou os pressupostos socials e econdmicos que pos- sibilitaram um notével avango das forgas produtivas. Vejamos, agora, como isso ocorren. A aglomeracio urbana permite uma expansfo imensa da divisio do trabalho. Como jf 0 mostrou Adam Smith, 0 limite da divisio do-trabalho é o tamanho do mercado, Este tamanho € dado por frontciras politicas e pelos cuctor des transportes. A cidade rompe esta Ultima barreira, ao aglomerar num espago limitado uma nume- rosa populagio, O’ stendimento dos mercados urbanos possibilita a especializagio dos oficios, com 0 conseqiiente desenvolvimento das téenicas (metalurgia, cerimica, vidraria etc.), que chega a atingir grande esplendor ainda na Antiguidade. Até 0 surgimento do trans- porte mecanizado, © custo do transporte constitui um impedimento efetivo da expansio dos mercados, exceto para produtos de grande densidade de valor (geralmente bens de luxo). Nestas condigbes, a proximidade entre produtores ¢ consumidores, propiciada pelo con- vivio urbano, retine num mesmo mercado uma considerdvel massa | 18 Poul Singer populacional, cuja demanda permite a multipliagio das atividades especializadas. O efeito sobre o desenvolvimento das forcas produ- tivas € tio ponderfvel que & licito se pensar numa “revolucio tho intraurbana, ensejada urbanos. Este desdobramento eleva as forgas produtivas a um novo patamar, pois permite 0 surgimento de atividades expeciaizadas que suprem uma demanda muito mais ampla sue a mercado local. y\\ A condigao para tanto, porém, € que a\Fec urbana }integrada nesta divisio do trabalho esteja_politicamente_unificada, ou scja, sob’ , isto 6, transagbes entre sociedades politicamente independentes, este comércio estava sujelto a uma série de acordos (quase sempre precérios) entre esta- dos, o que limitava sua expansio. E a unificagio de uma série de Cidades-estado em impérios que, de fato, cria as condiges para 0 florescimento de uma ampla divisio interurbana do trabalho. Neste sentido, o exemplo de Roma é dos mais marcantes. Escrevendo a respeito da constituigdo € apogeu do império romano, diz Childe: “Jilio e Augusto puseram fim aos piores excessos dos governadores senatotiais. Eles deram ao império uma administragao razoavelmente cficiente € honesta. Acima de tudo lhe deram paz. Por cerea de 250 anos a grande unidade gozou de paz interna num grau até auele momento jamais gozado por uma frei fo grande... O resultado imediato foi um renascimento da prospetidade e, a0 menos nas novas provincias do oeste, um aumento da populacio.’ Em todas, as novas provincies na Gélia (Franca e Bélgica), Alemanha (0 Vale do Reno) e Britinia (Inglaterra), assim como na Espana e Africa do Notte, cidades do padréo greco-romano foram estabelecidas. .. Rostontzeff chamou uma vez as novas cidades de “colmeias de zan- gies”, mas clas foram também colmeias de indSctria ¢ comérc Os oficios exercidos nelas supriam nio apenas os cidadaos e a popu Jago rural da vizinhanga de bens manufaturados, mas também bér- baros bem além das fronteiras do império. Cagarolas de bronze feitas em Capua por exemplo apareceram na Escécia, Dinamarca, Suécia, Hungria e Russia... O comércio circulava livremente através do império. “As cidades estavam ligacas por uma rede de soberbas estradas. Portos foram, em todos os lugares, melhorados ‘ou construidos ¢ as vias maritimas estavam agora livres de piratas. Cerimica manufaturada na Teélia foi encontmda na Asia Menor, Palestina, Chipre, Egito, Africa do Norte, Espanha e sul da Rissia; eonomla Politea da Ubanlsagée 19 certo momento, | w os produtos das fabricas da Franga aleangavam a Africa do Norte € © Egito, assim como a Espanha, a Itdlia e a Sicilia.” + (© império romano talvez tenha sido a mais ampla economia urbana préindustrial que jamais existiu, entendendo-se por cco- rnomia urbana uma organizacio da produgio que se baseia na divisio | do trabalho entre campo e cidade e entre diferentes cidades. A economia urbana, ao mesmo tempo em que requer um espaso politico para seu desenvolvimento, proporciona os tos materiais para que este espago se constitua. Uma vez estabelecida, a economia ‘urbana integra as diferentes partes do territério, ao especializé-las produtivamente, tornando-as interdependentes, o que reforca sua unificagio politica. Pode-se entender, desta maneira, como 0 res- surgimento da economia urbana, na Europa, no fim da Idade Média, tenha coincidido com a criagao dos primeiros estados nacionais. Quando a divisio do trabalho entre cidade e campo se estabe- lece firmement], a cidade deixa de set apenas a sede da classe domi nante, onde o mais-produto do campo somente € consumido (in natura ou transformado), para se inserit-no~cireuito, metabélico homem-natureza. A transformacéo dos elementos da natureza pelo homem passa a ser apenas iniciada no campo mas é completada na cidade, Desta maneira, 0 homem do campo passa a ser consumidor “de produtos urbanos, estabelecendo-se uma verdadeira troca entre cidade e campo. Ocstabelecimento da so do trabalho entre cidade ¢ campo & um processo longo, que depende, em iiltima andlise, do ritmo de desenvolvimento das forgas produtivas urbanas. O centro dinimico deste processo & a cidade, que multiplica suas atividades de duas maneitas: a) capturando atividades antes exercidas no campo e as incorporando a sua economia e b) criando novas atividades mediante 1 produgio de novas técnicas e/ou de novas necessidades. A dis fo entre as duas maneiras € dificultada pelo fato de que as ativi- dades anteriormente exercidas no campo ressurgem, na cidade, trans- formadas mediante inovagSes técnicas e/ou organizacionais, de modo ‘que se confundem com atividades inteiramente novas, de cunho cexclusivamente urbano, Seja de que maneira for, o estabelecimento desta divisio de trabalho é assistida, ou melhor, sofrida passivamente pelo campo, Na medida em que as forcas produtivas urbanas se desenvolvem, 0 camponés aumenta a producio de mercadorias que a5g, 7B! barren in history. New York, Penguin Boos, 146, p. 256 20, Pou! Singer vende a cidade © adquire mais produtos urbanos. claro que este ptocesso raramente é espontiineo, no sentido de que o comporte- mento do camponés seja pautado por algum tipo de céleulo econd- mico de “‘custos ¢ beneficios”. Em geral, o camponés aumenta a sua producio de mercadorias porque lhe elevam a renda que paga pela terra, a carga tributéria ou os juros. Em casos extremos ele é expro- priado, transformando-se em escravo, servo ot assalariado, O desenvolvimento das forgas produtivas urbanas, por sua vez, nfio pode ser pensado como um processo apenas econdmico. Ele é condicionado pela expansio da divisio de trabalho intra e interur- bana, portanto pelo tamanho e qualidade do espaco politico, no qual a cidade se insere. Entendemos por “qualidade” do espago politico a natureza das relagbes de producto que se estabelecem no campo ena cidade, que vio condicionar a composigio e o tamanho do mais- -produto, extraldo dos produtores diretos do campo e da cidade, € a proporgio dele que retorna a0 processo produtivo com o fito de ampliélo ou diversificé-Jo, As relagGes de produso decorrem dos modos de produsio que prevalecem no campo e na cidade © que colocam determinadas barreiras 4 expansio das forcas produtivas. Quando se examinam realidades histéricas concretas, percebe-se que na civilizago urbana coexistem, freqiientemente, diferentes modos de produc. Em Roma, a produgio simples de mercadorias, praticeda por camponeses ¢ artesios, se desenvolveu paralelamente economia escravagista. Na Europa, durante a Tdade Médi vidio no campo e as corporaces nas cidades continuaram por muito tempo, enquanto o capitalismo comercial, baseado na inckistria do- méstica € no sistema do “putting-out”, se desenvolvia nas aldeias. Em cada momento ¢ lugar, a estrutura de classes concreta resulta dda presenca simultinea de diferentes modos de produsio. As ten- ses € conflitos entre classes so produzidos por duas diferentes Jinhas de ruptura, que sc cntrecruzam, De um lado, ce tem a con tradigio entre dominadores e dominados: senhores € escravos, se- nhotes ¢ servos, mestres ¢ oficiais (nas corporasies) etc. Do outro, surge a contradiclo entre as classes dominantes dos diferentes modos de produgio coexistentes na mesma sociedade e que disputam a apropriago das mesmas condigées de produao (basicamente terra ¢ forga de trabalho): donos de escravos e mestres de oficio, senhores feudais e comerciantes capitalistas etc. Este ltimo tipo de luta de classes pode ser entendido como um conflito entre diferentes mados de produgéo, cada um dos quais incorpora uma certa potencialidade no que se refere ao desenvolvi. Economia Politica 4a Ucbaalsagée 21 mento das forgas produtivas. Do resultado deste conflito, que nem sempre constitui a hegemonia de um modo de produsio e a dex iruigio dos outros, podendo se dar vérios tipos de acomodagio ¢ coexisténcia conflitante, depende a continuidade ou nao do desenvol- vimento das forcas prodativas. A luta entre dominadores ¢ domi- nados, dentro de cada modo de producio, influi poderosamente neste resultado, na medida em que enfraquece a classe dominante de um modo de produgdo pode reforcar 0 grupo dominante rival. Pode-se interpretar deste modo o surgimento do capitalismo no seio da sociedade feudal, sua longa luta para se desenvolver € 0) seu triunfo final como uma etapa histérica do desenvolvimento das, forgas produtivas urbanas. O capitalismo surge na cidade, no centro dinimico de uma economia urbana, que lentamente se teconstitui na Europa, a partir do século XIII. Durante os séculos seguintes, 1a Tibertagio de certas cidades do dominio feudal, a fuga dos servos para estas cidades, o estabelecimento das ligas de cidades comerciais € 0 surgimento de uma classe de comerciantes e bangueitos preparam © terreno para a Revolugio Comercial, no século XVI, que estabe- lece, finalmente, uma divisio do trabalho interurbana no plano mun- dial, assegurando um amplo ¢ continuo desenvolvimento das forcas produtivas, Neste processo, a capacidade associativa da cidade me- dieval, ou melhor, de sua classe dominante — a burguesit. — no sentido de se unir dentro da cidade contra as demais classes e de se associat a outras cidades num sistema cada vez mais amplo de divisio do trabalho, ou seja, de se constituir como classe, desempenha um papel essencial. “De fato, esta capacidade aparece como uma con- tradigio destrutiva no interior da sociedade medieval; 0 ‘modo de produsio’, na medida em que ele chega a se constituir com suas fungdes ¢ estruturas, na medida em que 0 pensamento te6rico chega a concebé-lo como um todo, implica uma Bierarguizagao (tio estrita como miltipla: as ordens, a nobreza, 0 clero) que utiliza esmegan- do.as as relagdes conflitantes (entre camponeses € senhores, entre senhores e burgueses, entre principes e reis, entre o Estado nascent € 0s ‘sujeitos’ etc.). Verifica-se que a relacao ‘cidade-campo’ resiste 4 este esmagamento, e por conseqiiéncia ocasiona o desabamento de uma poderosa arquitetura sécio-politica. O cardter associativo ine- rente a cidade acaba por arrastar campo, por engendrar formas rnovas que o superam, Ele triunfou, nfo sem lutas, sobre a hierar- ‘quizaglo inerente a0 fevdalismo e os conflitos sem safda (os dos camponeses contra os senhores, entre outros). O modo de pro- dusio, como totalidade, compreendia uma contradi¢io essencial ‘ou principal, dissolvente ou sobtetudo destrutiva, mas dinamica, pois, concentrava'e tesolvia os demais conflitos. Esta contradigdo era 22 Poul Singer ‘mais poderosa que aquela, que impressiona a primeira vista, entre 10 servos e 0s (senhores) feudais, os camponeses € os senhores.” * Vale a’pena ressaltar 0 fato de que a burguesia comercial co- megou a se desenvolver & base do excedente de produsio do artesa nato, organizado corporativamente. Mas o interesse dos mestres de oficio, abrigado e preservado pela regulamentagio corporativa, logo se opés & expansio das forcas produtivas, que 0 comércio em scala mundial requeria. A posigfo e os privilégios de cada mestre se baseavam na minuciosa observincia das mesmas e imutdveis regras, ‘técnicas de produgio. Deste modo, limitava-se 0 mimero de mestres ¢ exclulase a competigio entre eles. Mesmo quando 0 niimero de trabalhadores urbanos — oficiais, aprendizes ¢ jotnaleiros — se ‘multiplicava, o mimero fixo de mestres e sua restrita capacidade de produgio limitava severamente o volume de produtos colocados a disposigio do mercador. Encontrava-se, assim, a comercial entre duas bar- reiras: 0 monopélio sobre o excedente alimentar exercido pela atisto- cracia feudal e o monopélio sobre a produgtio manufatureira, exercida pela clite cosporativa. A primeita barreira mostrou-se inicialmente ‘mais frégil. A servidio no campo, corroida por dentro pela crescente comercializagio do excedente alimentar, liberava mio-de-obra nas aldeias, que o comerciante passou a aproveitar para a producio de manufaturas, Surge assim a inddstria doméstica: com matérias primas e (muitas vezes) ferramentas fornecidas pelo comerciante, membros da familia camponesa passam a produzit em escala cada vez maior mercadorias, sem estar sujeitos & regulamentagio corporativa, ccuja vigéncia se limitava A frea urbana. Aprofunda-se a divisio do trabalho, com o surgimento de novas fungGes especializadas, ele- vando-se o nivel das forcas produtivas. E a revolugdo da manufatura, que se dé fora da cidade © contra a cidade, A produsio manufatu- teira cai cada vez mais sob © dominio do capital comercial, cuja forca politica cresce na mesma proporsfo que o seu poderio. Forjase a alianga entre o capital comercial e a autocracia real, que se ditige simultaneamente contra a aristocracia feudal, cujo particularismo local entrava 0 comércio, e contra as corporagdes urbanas, cuja resis- téncia a ampliacéo da escala de producto obstaculiza o desenvolvi- mento das forgas produtivas. ‘A politica econdmica posta em pritica por esta alianca, inspi- rada nas doutrinss mercantilistas, visava a ctiagio de monopélios © Hi. Lefebvre, La Pensée Marxiste et la Ville. Casterman, Tournsi, 1972, sublinhado 20 original. Economia Politea da Urbaalsogéo 29 comerciais mediante a expansio colonial, a abolicio dos privilégios feudais no campo ¢ da regulamentagio’ corporativa na cidade. A jaboligéo das barreiras internas ao comércio, as conquistas no além- mar €-0 enfraquecimento das corporagées foram os principais ins- trumentos desta politica. Foi assim que o capital comercial “triunfou \sobre~a hierarquizacao inerente ao feudalismo”, abrindo caminho a novos e formidéveis avangos das forcas produtivas, Se a revolugio. manufatureira se orientou, pelo menos em seu principio, contra a cidade, conquistando-a, de fora para dentro, a » tevolugo industrial teve por palo, desde 0 infcio, a érea urbana. A revolugio industrial tem por base uma alteragao no modo de produgo, que torna o investimento no instrumento de producio, ¢ nfo mais apenas na matéria prima e no produto acabado, altamente lucrative, Até entdo os instrumentos de produgao (de modo geral, simples ferramentas) eram de propriedade do produtor direto, que mangjava, Este era explorado pelo mestre de oficio, na cidade, pelo comerciante, nos subiirbios ¢ nas aldeias. Mas, com a expansio da manufatura, cuja extensa divisio do trabalho tendia a desmembrar os antigos offcios, reduzindo-os a uma mirfade de fungdes especializadas © mutuamente dependentes, tornavacse pos sivel empregar homens sem longo aprendizado anterior, que eram adestrados com relativa rapidez no trabalho € que se inseriam no Proceso produtivo apenas como assalariados. Tais homens nio do- minavam mais as condigdes de produgio nem possuiam os instru mentos do trabalho, que Ihes eram colocados a disposigio pelo empregador. A partir deste momento, estio postas as condigSes para sepatar o produtor de suas le produgio, subardinando-as 0 capital. Surge o “fabricante”, cuja meta € a valorizagio do seu capital, tanto em sua forma fixa Como circulante, dando sempre pre- feréncia as técnicas de produgio que permitem obter um dado valor de uso com o menor gasto de tempo de trabalho (vivo e morto) socialmente necessétio. Esta nova classe de fabricantes “‘descobre” que a aplicacio das inovagSes téenicas — a energia do vapor, o teat meciinico, a méquina de fiar etc. — proporciona lucros remunera- dores, dado que a economia de capital vivo (forga de trabalho) Proporcionado pelas novas técnicas mais do que compensa os gastos com capital constante (méquinas). -O.resultado deste processo — a moderna unidade de produsio, # fabrich — € necessatiamente um fenémeno urbano. Ela exige, &m sila proximidade, a presenga de um grande mimero de tabs. yladotes. O seu grande volume de producio requer servicos de | infra-estrutura (transportes, armazenamento, energia etc.), que eons. | tituem o cere da moderna economia urbana. Quando a fabrica Poul Singer rio surge j& na cidade, é a cidade que se forma em volta dela, Mas & em ambos os casos, uma cidade diferente. Em contraste com a ant ga cidade comercial, que impunha 20 campo 0 seu dominio polf- tice, para explorélo mediante uma intrineada rede de monopélios, a cdade industrial se impde gracas 4 sua superioridade produtiva, A burguesia industrial\toma o poder na cidade em nome do libera- lismo e varre para fora do cenério a competisio das formes arcaicas de exploracio. O capital comercial perde seus privilégios. monopo- listicos ¢ acaba se subordinando so capital industrial, reduzido 20 papel de mero intermedisrio. ‘Quando se dé a Revolusio Industrial, a economia mundial, no sentido de uma ampla divisio internacional do trabalho que abrange cidede e campo de miltiplos pafses, jé estava dada. Nesta economia mundial, a posicao dos varios pafses nfo era a mesma. O acesso 40 mercado externo de cada pals dependia do seu poder politico, sobre- tudo de sua capacidade de monopolizar colonialmente territ6rios no além-mar e de dominar rotas maritimas. Neste sentido, a Gra- -Bretanha desponta, no fim. do século XVIII como a poténcia Iider da economia mundial. # 0 dominio inglés de uma ampla gama de metcados externos, a condicio chave da Revolugio Industrial, que se inicia naquele pals. Como o salientaram Marx ¢ Engels: “A coneentragio do comércio e da manufatura, que se desenvolve sem pausa no século XVII, num pais, a Inglaterra, ctiow para este pafs paulatinamente um certo mercado mundial e, com ele, uma demanda_ ples produtos manufaturados deste pals que nfo poderia mais ser satisfeita mediante as forgas produtivas industriais de entio. Esta procura que sobrepujava a capacidade des forcas prodativas foi a forga motriz que fer surgir 0 tetcero periodo da propriedade privada desde a Idade Média, a0 produzir a grande indéttria — a utilizagio de forcas elementares para fins industriais, a maquinaria e a mais extensa divisio do trabalho.” € O uso de novas formas de energia e da maquinaria nfo sé correspondeu & exigéncia de uma demanda concentrada mas exigiu por sua vez, para se tomnar rentivel, em comparasio com as téenicas ‘manufatureiras até entio praticadas, uma demanda muito ampla e, portanto, concentrada. Sem uma produsio em grande escala, o inves: timento em capital fixo nfo pode ser amortizado. Este fato estd na base do caréter desigual ¢ contradit6rio que a Revolusda_Indus- trial assumiu-no plano mundial, praticamente desde o seu inicio, ‘A grande indstia permaneceu apandglbritinico durante cerca de 4 Die Deutsche Ideologie, Dietz Verlag, Berlin, 1957, plgs. 5859, economia Politica da Urbanizogéo 25 um século — dos fins do século XVIII ao iltimo quartel do seguinte. Durante todo este periodo, a economia urbana inglesa permaneceu como centro dinimico de um sistema internacional. de ivisio do trabalho que tinka 0 campo da maior parte dos outros paises como grande drea periférica. A partir de 1875 mais ou menos este quadro se modifica, mas apenas no sentido da substitui¢ao do monopélio industrial inglés pelo monopélio andlogo de um punhado de nagées — Estados Unidos, Alemanha, Japao, Franca, além. da propria Inglaterra etc. = cuja-economia urbana se industrializa, passando a absorver, do campo de seus préprios pafses ¢ dos demais, matérias-primas e alimentos, fornecendo em troca bens industriali- zados. Sendo a concentragio o trago essencial da indiistria fabril, que 0 progresso técnica dos iiltimos 200 anos nfo fez mais que acentuar, era inevit4vel que os paises que nfo pudessem contar com ‘um acesio privilegiado a amplas parcelas do mercado mundial no se industralizassem, passando a constituir, num sentido muito amplo da expressio, 0 “campo” das “‘cidades” industriais do mundo. To- mando-se a industrializagio como a forma “normal” de deseavol- vimento, passou-se a reconhecer a sande maioria da humanidade — permaneceram(‘subdesenvol Para que a industrializagio jeralizasse, tornando possivel fo surgimento de centros industriais em numerosos palses, era pre- iso que a demanda por produtos industriis se ampliasse extraordi- natiamente e pudesse, assim, ser repartida de forma menos concen- trada. E foi o que aconteceu, em virtude, antes de mais nada, da profunda mudanca que a Revolusdo Industrial ocasionou nas relagdes fentre campo ¢ cidade, Como se viu acima, a populasio rural jf se “tinha tornado, mesmo antes do surgimento da indkstria fabril, con- sumidora de produtos manufaturados de origem urbana. Mas, en- quanto a grande industria no barateou estes produtos, a divisio do trabalho entre campo e cidade permaneceu sobremodo limitada. Os ‘camponeses efetivamente adquiriam bens manufaturados das cidades, nas mantinham ainda uma ampla producto (sobretudo alimentos, instrumentos de trabalho, construsio) pata seu autoconsumo. Com 1 advento da industria, a superioridade do produto urbano, tanto em reco como em qualidade, pouco a pouco eliminou a producio de Subsisténcia do campo, transformando © camponés num agricultor especializado, A partit de um certo momento, a indistria urbana revolucionou também a tecnologia agricola, passando a fornecer a0 “campo seus principais instrumentos de produgio: arados de ferro, fertilizantes, tratores, colhedeiras, energia elétrica, vacinas etc. Dois foram os efeitos mais gerais deste processo de “industria lizagio” da agricultura. De um lado eliminou completamente a pro- 26 Poul Singer dugio de subsisténcia do campo, 20 menos nos palses industriali- zados: cada exploracio agricola passon a se dedicar a apenas algumas poucas culturas, passando, a partir daf, a no poder mais sequer produzir alimentos para seus trabelhadores. A substituigio dos ani- mais de tiro pelo trator contribuiu muito neste sentido, a0 permitir a dissociagio da lavoura da criagio de gado, Deste modo, a cidade ficou sendo 0 lugar no qual se concentra néo apenas o excedente alimentar produzido no campo, mas foda producio agricola, a qual € comercializada, transformada industrialmente e, em parte, redis- tribuida ao campo a partir da cidade, Do outro lado, a “industrie- lizagio” da agricaltura permitiu imensa expansio das forcas produ- tivas no campo ou, mais precisamente, um aumento formidével da produtividade do trabalho agricola. A conseqiigncia deste fato foi uum amplissimo desemprego.tecnolégico na agricultura, pois a de- ‘manda pelos produtos do campo cresceu muito menos que as forcas produtivas que pudessem satisfazé-la, E preciso acentuar que, embora a “industrializaco” da agricultura jé se dé hf quase um século, 0 seu efeito sobre # produtividade e o emprego no campo 6 se fez sentir, na maioria dos paises industrializados, hi umas poueas décadas. AA divisio do trabalho entre campo e cidade sofreu, deste modo, uma transformagio tio ampla que hoje jé é legftimo se colocar a livida quanto a validade da distingio entre campo ¢ cidade. Néo € dificil prever uma situacio em que a maioria da populacio “rural”, no sentido ecolégico, se dedique a fungdes urbanas ¢ que a prética da agricultura — mecanizada, automatizada, computorizada — em nada se distinga das demais atividades urbanas. Este certamente fo € 0 lugar para se aprofundar este tema. Basta indicar que a populagio do campo nos pafses industrializados foi totalmente inte- srada no mercado da grande inckstria; tanto emigrando para a cidade (tangida pelo desemprego tecnoldgico), como permanecendo no campo. Nos paises nao industrializados surgiram (devidamente fo- mentados pelos representantes de demanda) importantes Setores de ‘Mercado Externo, integrados na divisio internacional do trabalho e caja populagio também passou a demandar produtos da grande indiistria. Se, alfm disso, for lembrado o forte crescimento da po- pulacéo’ mundial, a partir dos dois tltimos séculos pelo menos, nio serd dificil entender como foi possivel expandir a procura pelos pro- dutos industriais num ritmo tio répido que possibilitou, ao mesmo tempo, o avanco da tecnologia (¢ portanto das escalas de produgio) € a difusio da indistria por grande mimero de pafses, inclusive da América Latina, Asia ¢ Africa. Eeonomla Politea da Urbanizagéo 27 Os paises que chegaram tarde ao cenério industrial tendem a sofrer todo esse processo de mudanga em sua estrutura social, eco- némica ¢ ecoldgica de uma forma concentrada. Muitos destes paises ‘nfo passaram pela fase da economia urbana manufatureira (pré- industrial) e os que chegaram a ter este modo de produgio virara-no terminado pelas forsas de penetracio, inicialmente politico- 1s e depois econémicas, dos paises onde ja dominava a grande indvistria, Nas cidades destes paises, 0 aparecimento de uma bur- jguesia capaz de “resist a0 esmagamento e fazer desabar a poderosa arquitetura sécio-politica” da velha ordem colonial. deu-se tardia- mente e em condigdes completamente diferentes das que presidiram seu aparecimento original na Europa. Para mencionar apenas uma estas novas condigGes: enquanto a burguesia medieval européia se defrontava, dentro da cidade, com uma mio-de-obra constitufda por servos fugidos da gleba, incapazes de organizar-se como classe, a burguesia sos peli, que recém se industrializam jé se defronta com uum proletariado que se constitui como classe a0 mesmo tempo que cla, burguesia, Os ensaios que se seguem tratam dos problemas da urbanizacio no contexto do desenvolvimento. Todos eles tm, como traco teé- ico comum, um enfoque globalizador: a problemética urbana s6 pode ser analisada como parte de um processo-mais-amplode mu- dangarestratural; que-afeta tanto cidade como campo, ¢ nfo se espota ‘em-seus aspectos ecolégicos ¢ demogrificos, Na verdade, hoje mais ddo-que-no-passado, estes-aspectos nio passam de uma primeira apa- ‘réncia de um processo mais profundo de transformagio da estrutura de classes © dos modos de produsio em presenca. pot isso que ‘a anilise do processo de utbanizagio nio passa, muitas vezes, de uma abordagem inicial que é obrigada a superar 0 seu prdprio tema se, de fato, descja clucidé-lo. Portanto, quando se pensa cm urba- nizagio numa sociedade que se industrializa, é preciso procurar pelo papel que as classes sociais desempenham nela, pois, em caso contrério, ela tende a ser tomada como um processo auténomo, fruto de mudanca de atitudes e valores da populacio rural, perdendo-se de vista seu significado essencial para o conjunto da sociedade. MIGRACOES INTERNAS: CONSIDERAQOES TEORICAS SOBRE O SEU ESTUDO

Você também pode gostar