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(2017-PT) Aniversário 2 - Observador
(2017-PT) Aniversário 2 - Observador
especial de
aniversário
3,9 0 € / M A IO 2 017 / PU B LIS H E R: J OS É M A N U E L F E R N A N D ES / DI R ETO R EX EC UTIVO: M IG U E L PI N H EI RO / DI R ETO RA-A DJ U N TA: FI LO M E N A M A RTI N S
Salgado
Dias Loureiro
Sócrates
Vara
Bataglia
Zeinal Bava
Vasco Pulido Valente sobre o Presidente Marcelo / José Manuel Fernandes sobre fazer 60 anos
Rui Ramos sobre Fátima / Maria João Avillez sobre Mário Soares / Mais: uma investigação sobre
como os boys assaltam o Estado / 10 novos restaurantes que tem de conhecer / A fuga dos irmãos Cavaco
4
Editorial
Miguel Pinheiro João Miguel Tavares
Olá, João, como vai tudo? A revista de aniversário Textos melhores do que o teu não há. Apenas mais
já fechou ou ainda estás a escolher os melhores pertinentes, mais actuais, mais originais e mais
artigos publicados pelo Observador neste último interessantes. Temos um artigo sobre todas as
ano? Tendo em conta que és tu quem está a editar ex-grandes figuras nacionais que estão a braços
isso, tenho uma sugestão que te pode ajudar (não com a justiça, há uma investigação sobre a forma
que tu precises). Com toda a humildade que sabes como os boys invadem o Estado, contamos a história
que me caracteriza, queria só lembrar-te que do jornalista italiano que foi o pai dos Comandos
a 20 de fevereiro escrevi o texto “‘Estás despedido!’ portugueses, recordamos a fuga dos irmãos Cavaco,
O que eu aprendi sobre o Presidente Trump ao ver temos a Maria João Avillez e o Vasco Pulido Valente
todos os episódios de O Aprendiz”. Era capaz a escreverem sobre Mário Soares, o Rui Ramos a
de não ficar mal numa revista como esta... fazer a história de Fátima, o José Manuel Fernandes
a contar como é ter 60 anos. Até temos uma
entrevista ao Quim Barreiros.
João Miguel Tavares
Miguel Pinheiro
Miguel Pinheiro
Traduzindo a tua prosa longa, embrulhada e
entediante: achas que há textos melhores do que João, ainda estás aí?
o meu, certo? Não quererás, talvez, dar pelo menos
um exemplo que ajude a sustentar essa afirmação
levemente injuriosa?
Editorial
Miguel Pinheiro João Miguel Tavares
Olá, João, como vai tudo? A revista de aniversário Textos melhores do que o teu não há. Apenas mais
já fechou ou ainda estás a escolher os melhores pertinentes, mais actuais, mais originais e mais
artigos publicados pelo Observador neste último interessantes. Temos um artigo sobre todas as
ano? Tendo em conta que és tu quem está a editar ex-grandes figuras nacionais que estão a braços
isso, tenho uma sugestão que te pode ajudar (não com a justiça, há uma investigação sobre a forma
que tu precises). Com toda a humildade que sabes como os boys invadem o Estado, contamos a história
que me caracteriza, queria só lembrar-te que do jornalista italiano que foi o pai dos Comandos
a 20 de fevereiro escrevi o texto “‘Estás despedido!’ portugueses, recordamos a fuga dos irmãos Cavaco,
O que eu aprendi sobre o Presidente Trump ao ver temos a Maria João Avillez e o Vasco Pulido Valente
todos os episódios de O Aprendiz”. Era capaz a escreverem sobre Mário Soares, o Rui Ramos a
de não ficar mal numa revista como esta... fazer a história de Fátima, o José Manuel Fernandes
a contar como é ter 60 anos. Até temos uma
entrevista ao Quim Barreiros.
João Miguel Tavares
Miguel Pinheiro
Miguel Pinheiro
Traduzindo a tua prosa longa, embrulhada e
entediante: achas que há textos melhores do que João, ainda estás aí?
o meu, certo? Não quererás, talvez, dar pelo menos
um exemplo que ajude a sustentar essa afirmação
levemente injuriosa?
Mas, fora isso, que já não era pouco, o livre, Soares tinha tempo e meios para indústria pesada e as grandes propriedades 38 por cento em Soares e à volta de 12 por
pessoal do movimento académico, quan- expandir e fortalecer a ASP, que em 1972 fundiárias do sul). Ao resto de Portugal, o cento no PC.
do não militava no Partido Comunista, a Internacional Socialista admitiu como PC dava licença de ir à sua vidinha, com os Mas nem perante esta arrasadora evi-
exibia – por competição e para defesa membro pleno; e para escrever um livro, sindicatos submetidos à CGTP e a adminis- dência a “festa” terminou. À boa maneira
própria – um radicalismo que Soares já o Portugal Amordaçado, publicado em tração central e local ocupada por militantes leninista, a televisão e a imprensa insulta-
várias vezes rejeitara. A geração de 1962 francês. Mas nem nestes anos de solidão e por “amigos com provas”. vam e caricaturavam a Assembleia, houve
ficou por isso longe da social-democracia se aproximou dos novos “resistentes”, O bom povo compreendeu que este cercos de operários indignados por causa
europeia e do futuro PS até muito depois que haviam fugido à PIDE, à guerra e a magnífico plano o levaria rapidamente à dos representantes do país se atreverem
do “25 de Abril”. Penamacor (uma unidade penal), e que miséria e uma larga parte dos militares, a discutir os problemas do país, Cunhal
De qualquer maneira estas pequenas em Paris se deixaram absorver pelo “re- duramente analfabetos, acharam que na garantia a uma senhora italiana (muito
questões domésticas interessavam pouco nascimento marxista”, conduzido por um sociedade do dr. Cunhal ficariam ao abrigo célebre nessa altura) que em Portugal nun-
perante a guerra de África, que em 1961 louco, Louis Althusser, que acabou por se de qualquer represália, excepto eviden- ca haveria uma “democracia burguesa”.
começou em Angola. Dos políticos por- proclamar um profeta e matar a mulher. temente das represálias que o dr. Cunhal A “inteligência” de cá desceu a abismos
tugueses com uma certa notoriedade só De revista para revista, esta gente discutia resolvesse aplicar-lhes por desobediência de indignidade a que raramente alguém
Soares percebeu que a Ditadura deixara com ódio teológico as miudezas da sua ou “desvio” político. O problema do dr. desceu e a seguir andou anos a comprar
de ser um pequeno problema de um país fé, enquanto Soares tratava do que era Soares era instilar um pouco de bom senso do seu bolso os seus próprios livros, com
pequeno e sem influência para se tornar importante e consequente. e realismo em algumas cabeças do MFA; o fim de purificar o mercado e de aparecer
um problema internacional, em que tarde Por essa altura, já o império soviético e ir resistindo ao assalto do PC ao Estado limpinha ao dr. Mário Soares.
ou cedo as grandes potências se envolve- começava a desfazer-se. A Europa de Leste e às “culminâncias” da economia, uma A atmosfera de medo e de intimidação
riam. A oposição já não se fazia, ou devia e a própria URSS estavam endividadas benemérita actividade a que a “inteligência não parou com as eleições de 75. As manifes-
fazer, em Lisboa ou no Alentejo, mas na ao Ocidente até ao pescoço e a URSS, em indígena” prestou os seus zelosos serviços. tações continuavam, a censura apertou nos
América e na Europa, principalmente na particular, não queria pagar uma segunda Posto isto, o PS precisava também de jornais, na RTP e nas rádios. José Saramago
Europa. Em 1962, Soares transformou a Cuba ao dr. Álvaro Cunhal e mesmo depois reforçar a sua organização e de se estender apelava à revolta no Diário de Notícias.
Resistência Republicana em Resistência do “25 de Abril” foi parca com o PCP e crí- a todo o país. Em 1974, o partido não ia Quem falava no Parlamento ou em votos
Republicana Socialista e, em 1964, criou tica da política “revolucionária”. A Europa além de algumas venerandas figuras da era um puro “burguês” dedicado a esmagar
na Suíça a Acção Socialista Portuguesa, ocidental, pelo contrário, ainda não sentia I República, de alguma Maçonaria e de as “classes trabalhadoras”. E começaram a
uma maneira hábil de se ir ligando aos a gravidade da sua decadência e abria a cinco ou seis dúzias de drs., espalhados correr rumores de guerra civil. Os rumores
grandes partidos europeus. porta a um (ainda modesto) alargamento. pelo Porto e por Lisboa. A geração da crise eram absurdos por três razões. Primeiro,
Estabelecer a credibilidade da oposição Soares já se tornara parte dessa Europa. académica rejeitou quase completamente porque nenhuma das partes tinha dinheiro.
portuguesa num Ocidente anticomunista e Conheceu Brandt, Schmidt, Callaghan, o que lhe parecia ser um instrumento do Segundo, porque a “revolução” indisciplina-
desconfiado era uma extraordinária tare- Nenni, Mitterrand e a generalidade das “sub-imperialismo” alemão. Não achava ra as tropas do PC (e a URSS proibira dispa-
fa para um extraordinário homem. Sem a grandes personagens que, tarde ou cedo, o PS “revolucionário” que lhe chegasse e rates). Terceiro, porque a gente de Otelo não
sobre-humana simpatia e a sobre-humana decidiriam do nosso destino. fundou o MES (uma sombra do MIR chi- passava de uma mascarada sem valor mili-
confiança de Mário Soares talvez fosse im- Em 1973, fundara o PS na Alemanha, leno) e, quando o MES se desfez numa tar. Não podia haver uma guerra civil, mas
possível. Mas, pouco a pouco, ele conseguiu; com dinheiro alemão e o patrocínio do inqualificável loucura, os mais sensatos (11 podia haver uma matança e algumas figuras
e Salazar percebeu. O regime não se inquie- SPD, e no dia em que desembarcou em ou 12, se isso) passaram a almoçar juntos justificadamente trataram de se esconder ou
tava excessivamente com a agitação da Baixa Santa Apolónia não desembarcava sem num hotel de Lisboa, sob a designação de de tomar precauções. Soares, com a cabeça
ou com um ou outro protesto de estudantes, apoios, sem um instrumento e sem um GIS (ou Grupo de Intervenção Socialista). a prémio, foi à Alameda e a seguir ajudou,
nem sequer com as raras greves que o PC papel. Havia muita força sob a sua apa- Escusado será dizer que não intervieram à sua maneira, o golpe de 25 de Novem-
ia promovendo. Mas Soares falando à solta rente fraqueza. em nada de consequente. bro, que removeu de cena os partidários
na América, na Alemanha ou em Inglaterra, Mas, mesmo sem eles, Soares conseguiu do PREC.
era um risco real, ainda por cima com uma suster ou moderar os golpes — porque Infelizmente, o dito PREC deixara Por-
guerra em curso e sendo ele advogado do Parte II eram verdadeiros golpes, preparados na tugal em ruínas e os militares no centro do
general Humberto Delgado, que a PIDE Tirando as fantasias de Spínola, havia em sombra e executados à revelia dos poderes regime político. O Presidente da República
matara. Salazar não hesitou em o desterrar 26 de Abril de 1974 três forças políticas: o nominalmente legais — do PC e do MFA. (Eanes) comandava efectivamente o eExér-
para S. Tomé. Partido Comunista (que tinha um progra- Durante meses pôs na rua manifestações cito. O Conselho da Revolução, sem espécie
Quando ascendeu a Presidente do Con- ma), o MFA (que estava armado) e Mário cada vez maiores de um povo que, ao con- de mandato, aprovava ou desaprovava a
selho, Marcelo Caetano, provavelmente Soares, que a Europa conhecia e estimava. trário do “slogan”, se começava a desu- legislação da Assembleia, com o propó-
para mostrar o seu duvidoso liberalismo, No I Governo Provisório, Soares foi mi- nir. Quando uma greve de tipógrafos (não sito de preservar intacta a sua preciosa
arranjou uma tranquibérnia jurídica para nistro dos Negócios Estrangeiros, com o de jornalistas) fechou o jornal socialista “revolução”. Mas Soares, Balsemão, Freitas
permitir que Soares voltasse a Portugal. encargo de “negociar” a descolonização A República, Portugal e a Europa compre- do Amaral e Mota Pinto, entre si e contra
Voltou e imediatamente concorreu à elei- (na balbúrdia dos tempos a trapalhada era enderam de uma vez quem eram o MFA e algumas facções internas no PS e mesmo
ção para a Assembleia Nacional (como na quase uma regra). Muita gente o criticou o dr. Cunhal. no PSD, acabaram por meter os militares
altura se chamava o “parlamento”) com depois, sem perceber que nenhuma “ne- E o dr. Cunhal e o MFA ficaram mais nos quartéis, sem lhes deixar um vestígio
uma lista de gente socialista ou próxima gociação” era possível quando o Exército longe de resolver o seu grande problema: de influência política.
do socialismo, rompendo com a tradição se insurreccionara precisamente para sair a eleição para a Constituinte. Prometida Nesse ponto crítico, Eanes, a meses de sair
de “unidade” anti-salazarista sob a qual o de África. Ficava a Soares, pela ausência de pelo programa original dos militares, sinal de Belém, decidiu organizar um novo partido
Partido Comunista se disfarçava sempre. outro qualquer aliado, o trabalho de esta- para o mundo da boa-fé dos “revolucioná- para ele e para os amigos: o PRD. Mas Soares,
Mais do que isso. Marcelo prometera elei- belecer uma democracia contra a vontade rios” do dia essa eleição tinha de se fazer entretanto eleito Presidente da República,
ções “honestas” (que evidentemente o não do PC e do MFA. e, simultaneamente, não se podia fazer. Se não o deixou viver. À primeira oportunidade
seriam) e Mário Soares trouxe a Portugal O PC não queria impor aqui o “socialismo por acaso se fizesse, ganhava Soares e todo dissolveu a Assembleia, sabendo perfeita-
um grupo de inspectores da Internacional real” da Europa de Leste, que os russos não o plano de Cunhal e dos seus camaradas mente que ia entregar uma maioria a Cavaco.
Socialista, que as declararam falsas. Dali podiam sustentar. Como Cunhal se fartou do MFA iria abaixo. E, se por acaso não se E, de facto, entregou, porque o PRD juntava
em diante, a presença em Portugal do ho- de explicar, só queria uma “democracia de fizesse, a ilegitimidade do PREC (como na só o oportunismo e ressentimento e sem po-
mem que o denunciara em público como tipo diferente”, um conceito muito falado altura sentimentalmente se chamava ao der não valia um cêntimo. Soares viu desfilar
mentiroso e que lhe retirara qualquer es- na guerra civil de Espanha e agora tirado delírio da esquerda) não deixaria a mais os seus inimigos íntimos pela televisão. Mas
pécie de legitimidade era intolerável para do ferro-velho da seita. Em que consistia leve dúvida a ninguém. Felizmente uma ganhou. Ganhámos nós.
Marcelo Caetano. Ameaçando Soares com essa antiga monstruosidade? No meio da parte do MFA, que se recusava a ser o braço
a prisão e o desterro, Marcelo conseguiu retórica do costume, consistia em fazer forte da repressão comunista e a receber Vasco Pulido Valente é historiador
que ele ficasse num exílio forçado até 1974. o Estado tomar conta dos “commanding ordens do PC, insistiu na eleição e calou a e colunista do Observador. O seu livro mais
Mas perdeu mais com esta manobra do heights” da economia (a energia – incluin- facção mais excitada do Exército. Em Abril recente reúne vários anos de crónicas sob
que ganhou. Por uma vez relativamente do o petróleo – a banca, as seguradoras, a de 1975, o povo desunido votou: à volta de o título “De Mal a Pior”.
10 OPINIÃO
Mas, fora isso, que já não era pouco, o livre, Soares tinha tempo e meios para indústria pesada e as grandes propriedades 38 por cento em Soares e à volta de 12 por
pessoal do movimento académico, quan- expandir e fortalecer a ASP, que em 1972 fundiárias do sul). Ao resto de Portugal, o cento no PC.
do não militava no Partido Comunista, a Internacional Socialista admitiu como PC dava licença de ir à sua vidinha, com os Mas nem perante esta arrasadora evi-
exibia – por competição e para defesa membro pleno; e para escrever um livro, sindicatos submetidos à CGTP e a adminis- dência a “festa” terminou. À boa maneira
própria – um radicalismo que Soares já o Portugal Amordaçado, publicado em tração central e local ocupada por militantes leninista, a televisão e a imprensa insulta-
várias vezes rejeitara. A geração de 1962 francês. Mas nem nestes anos de solidão e por “amigos com provas”. vam e caricaturavam a Assembleia, houve
ficou por isso longe da social-democracia se aproximou dos novos “resistentes”, O bom povo compreendeu que este cercos de operários indignados por causa
europeia e do futuro PS até muito depois que haviam fugido à PIDE, à guerra e a magnífico plano o levaria rapidamente à dos representantes do país se atreverem
do “25 de Abril”. Penamacor (uma unidade penal), e que miséria e uma larga parte dos militares, a discutir os problemas do país, Cunhal
De qualquer maneira estas pequenas em Paris se deixaram absorver pelo “re- duramente analfabetos, acharam que na garantia a uma senhora italiana (muito
questões domésticas interessavam pouco nascimento marxista”, conduzido por um sociedade do dr. Cunhal ficariam ao abrigo célebre nessa altura) que em Portugal nun-
perante a guerra de África, que em 1961 louco, Louis Althusser, que acabou por se de qualquer represália, excepto eviden- ca haveria uma “democracia burguesa”.
começou em Angola. Dos políticos por- proclamar um profeta e matar a mulher. temente das represálias que o dr. Cunhal A “inteligência” de cá desceu a abismos
tugueses com uma certa notoriedade só De revista para revista, esta gente discutia resolvesse aplicar-lhes por desobediência de indignidade a que raramente alguém
Soares percebeu que a Ditadura deixara com ódio teológico as miudezas da sua ou “desvio” político. O problema do dr. desceu e a seguir andou anos a comprar
de ser um pequeno problema de um país fé, enquanto Soares tratava do que era Soares era instilar um pouco de bom senso do seu bolso os seus próprios livros, com
pequeno e sem influência para se tornar importante e consequente. e realismo em algumas cabeças do MFA; o fim de purificar o mercado e de aparecer
um problema internacional, em que tarde Por essa altura, já o império soviético e ir resistindo ao assalto do PC ao Estado limpinha ao dr. Mário Soares.
ou cedo as grandes potências se envolve- começava a desfazer-se. A Europa de Leste e às “culminâncias” da economia, uma A atmosfera de medo e de intimidação
riam. A oposição já não se fazia, ou devia e a própria URSS estavam endividadas benemérita actividade a que a “inteligência não parou com as eleições de 75. As manifes-
fazer, em Lisboa ou no Alentejo, mas na ao Ocidente até ao pescoço e a URSS, em indígena” prestou os seus zelosos serviços. tações continuavam, a censura apertou nos
América e na Europa, principalmente na particular, não queria pagar uma segunda Posto isto, o PS precisava também de jornais, na RTP e nas rádios. José Saramago
Europa. Em 1962, Soares transformou a Cuba ao dr. Álvaro Cunhal e mesmo depois reforçar a sua organização e de se estender apelava à revolta no Diário de Notícias.
Resistência Republicana em Resistência do “25 de Abril” foi parca com o PCP e crí- a todo o país. Em 1974, o partido não ia Quem falava no Parlamento ou em votos
Republicana Socialista e, em 1964, criou tica da política “revolucionária”. A Europa além de algumas venerandas figuras da era um puro “burguês” dedicado a esmagar
na Suíça a Acção Socialista Portuguesa, ocidental, pelo contrário, ainda não sentia I República, de alguma Maçonaria e de as “classes trabalhadoras”. E começaram a
uma maneira hábil de se ir ligando aos a gravidade da sua decadência e abria a cinco ou seis dúzias de drs., espalhados correr rumores de guerra civil. Os rumores
grandes partidos europeus. porta a um (ainda modesto) alargamento. pelo Porto e por Lisboa. A geração da crise eram absurdos por três razões. Primeiro,
Estabelecer a credibilidade da oposição Soares já se tornara parte dessa Europa. académica rejeitou quase completamente porque nenhuma das partes tinha dinheiro.
portuguesa num Ocidente anticomunista e Conheceu Brandt, Schmidt, Callaghan, o que lhe parecia ser um instrumento do Segundo, porque a “revolução” indisciplina-
desconfiado era uma extraordinária tare- Nenni, Mitterrand e a generalidade das “sub-imperialismo” alemão. Não achava ra as tropas do PC (e a URSS proibira dispa-
fa para um extraordinário homem. Sem a grandes personagens que, tarde ou cedo, o PS “revolucionário” que lhe chegasse e rates). Terceiro, porque a gente de Otelo não
sobre-humana simpatia e a sobre-humana decidiriam do nosso destino. fundou o MES (uma sombra do MIR chi- passava de uma mascarada sem valor mili-
confiança de Mário Soares talvez fosse im- Em 1973, fundara o PS na Alemanha, leno) e, quando o MES se desfez numa tar. Não podia haver uma guerra civil, mas
possível. Mas, pouco a pouco, ele conseguiu; com dinheiro alemão e o patrocínio do inqualificável loucura, os mais sensatos (11 podia haver uma matança e algumas figuras
e Salazar percebeu. O regime não se inquie- SPD, e no dia em que desembarcou em ou 12, se isso) passaram a almoçar juntos justificadamente trataram de se esconder ou
tava excessivamente com a agitação da Baixa Santa Apolónia não desembarcava sem num hotel de Lisboa, sob a designação de de tomar precauções. Soares, com a cabeça
ou com um ou outro protesto de estudantes, apoios, sem um instrumento e sem um GIS (ou Grupo de Intervenção Socialista). a prémio, foi à Alameda e a seguir ajudou,
nem sequer com as raras greves que o PC papel. Havia muita força sob a sua apa- Escusado será dizer que não intervieram à sua maneira, o golpe de 25 de Novem-
ia promovendo. Mas Soares falando à solta rente fraqueza. em nada de consequente. bro, que removeu de cena os partidários
na América, na Alemanha ou em Inglaterra, Mas, mesmo sem eles, Soares conseguiu do PREC.
era um risco real, ainda por cima com uma suster ou moderar os golpes — porque Infelizmente, o dito PREC deixara Por-
guerra em curso e sendo ele advogado do Parte II eram verdadeiros golpes, preparados na tugal em ruínas e os militares no centro do
general Humberto Delgado, que a PIDE Tirando as fantasias de Spínola, havia em sombra e executados à revelia dos poderes regime político. O Presidente da República
matara. Salazar não hesitou em o desterrar 26 de Abril de 1974 três forças políticas: o nominalmente legais — do PC e do MFA. (Eanes) comandava efectivamente o eExér-
para S. Tomé. Partido Comunista (que tinha um progra- Durante meses pôs na rua manifestações cito. O Conselho da Revolução, sem espécie
Quando ascendeu a Presidente do Con- ma), o MFA (que estava armado) e Mário cada vez maiores de um povo que, ao con- de mandato, aprovava ou desaprovava a
selho, Marcelo Caetano, provavelmente Soares, que a Europa conhecia e estimava. trário do “slogan”, se começava a desu- legislação da Assembleia, com o propó-
para mostrar o seu duvidoso liberalismo, No I Governo Provisório, Soares foi mi- nir. Quando uma greve de tipógrafos (não sito de preservar intacta a sua preciosa
arranjou uma tranquibérnia jurídica para nistro dos Negócios Estrangeiros, com o de jornalistas) fechou o jornal socialista “revolução”. Mas Soares, Balsemão, Freitas
permitir que Soares voltasse a Portugal. encargo de “negociar” a descolonização A República, Portugal e a Europa compre- do Amaral e Mota Pinto, entre si e contra
Voltou e imediatamente concorreu à elei- (na balbúrdia dos tempos a trapalhada era enderam de uma vez quem eram o MFA e algumas facções internas no PS e mesmo
ção para a Assembleia Nacional (como na quase uma regra). Muita gente o criticou o dr. Cunhal. no PSD, acabaram por meter os militares
altura se chamava o “parlamento”) com depois, sem perceber que nenhuma “ne- E o dr. Cunhal e o MFA ficaram mais nos quartéis, sem lhes deixar um vestígio
uma lista de gente socialista ou próxima gociação” era possível quando o Exército longe de resolver o seu grande problema: de influência política.
do socialismo, rompendo com a tradição se insurreccionara precisamente para sair a eleição para a Constituinte. Prometida Nesse ponto crítico, Eanes, a meses de sair
de “unidade” anti-salazarista sob a qual o de África. Ficava a Soares, pela ausência de pelo programa original dos militares, sinal de Belém, decidiu organizar um novo partido
Partido Comunista se disfarçava sempre. outro qualquer aliado, o trabalho de esta- para o mundo da boa-fé dos “revolucioná- para ele e para os amigos: o PRD. Mas Soares,
Mais do que isso. Marcelo prometera elei- belecer uma democracia contra a vontade rios” do dia essa eleição tinha de se fazer entretanto eleito Presidente da República,
ções “honestas” (que evidentemente o não do PC e do MFA. e, simultaneamente, não se podia fazer. Se não o deixou viver. À primeira oportunidade
seriam) e Mário Soares trouxe a Portugal O PC não queria impor aqui o “socialismo por acaso se fizesse, ganhava Soares e todo dissolveu a Assembleia, sabendo perfeita-
um grupo de inspectores da Internacional real” da Europa de Leste, que os russos não o plano de Cunhal e dos seus camaradas mente que ia entregar uma maioria a Cavaco.
Socialista, que as declararam falsas. Dali podiam sustentar. Como Cunhal se fartou do MFA iria abaixo. E, se por acaso não se E, de facto, entregou, porque o PRD juntava
em diante, a presença em Portugal do ho- de explicar, só queria uma “democracia de fizesse, a ilegitimidade do PREC (como na só o oportunismo e ressentimento e sem po-
mem que o denunciara em público como tipo diferente”, um conceito muito falado altura sentimentalmente se chamava ao der não valia um cêntimo. Soares viu desfilar
mentiroso e que lhe retirara qualquer es- na guerra civil de Espanha e agora tirado delírio da esquerda) não deixaria a mais os seus inimigos íntimos pela televisão. Mas
pécie de legitimidade era intolerável para do ferro-velho da seita. Em que consistia leve dúvida a ninguém. Felizmente uma ganhou. Ganhámos nós.
Marcelo Caetano. Ameaçando Soares com essa antiga monstruosidade? No meio da parte do MFA, que se recusava a ser o braço
a prisão e o desterro, Marcelo conseguiu retórica do costume, consistia em fazer forte da repressão comunista e a receber Vasco Pulido Valente é historiador
que ele ficasse num exílio forçado até 1974. o Estado tomar conta dos “commanding ordens do PC, insistiu na eleição e calou a e colunista do Observador. O seu livro mais
Mas perdeu mais com esta manobra do heights” da economia (a energia – incluin- facção mais excitada do Exército. Em Abril recente reúne vários anos de crónicas sob
que ganhou. Por uma vez relativamente do o petróleo – a banca, as seguradoras, a de 1975, o povo desunido votou: à volta de o título “De Mal a Pior”.
12 ASSALTO AO ESTADO 13
da colonização do aparelho do
gionais, da Segurança Social, por fax, sem intermédias. Do que foi possível apurar em
a capacidade de enfrentar estes diretores, termos de filiação, nos 10 anos analisados
com uma conversa, como seria a forma para os três partidos — PS, PSD e CDS — foi
normal de se fazer em democracia.”
De facto, no dia 20 de setembro de 2002,
eram exatamente 21h41, 18 diretores distri-
Estado na Segurança Social possível identificar 39% de dirigentes com
cartão de militante. Segundo as contas do
Observador na base da pirâmide do IEFP
tais da Segurança Social foram despedidos
por fax por Bagão Félix, sem mais explica- e no Instituto do Emprego foram os socialistas a nomear mais gente
do seu partido: 38,2% das nomeações no
da colonização do aparelho do
gionais, da Segurança Social, por fax, sem intermédias. Do que foi possível apurar em
a capacidade de enfrentar estes diretores, termos de filiação, nos 10 anos analisados
com uma conversa, como seria a forma para os três partidos — PS, PSD e CDS — foi
normal de se fazer em democracia.”
De facto, no dia 20 de setembro de 2002,
eram exatamente 21h41, 18 diretores distri-
Estado na Segurança Social possível identificar 39% de dirigentes com
cartão de militante. Segundo as contas do
Observador na base da pirâmide do IEFP
tais da Segurança Social foram despedidos
por fax por Bagão Félix, sem mais explica- e no Instituto do Emprego foram os socialistas a nomear mais gente
do seu partido: 38,2% das nomeações no
Governo d
e Antó
seleção. Por isso, extinguimos 51% das estru-
turas existentes na estrutura do Ministério
da Solidariedade e da Segurança Social
Diretores nio
Co
nos houve uma entidade independente
que garantiu que a pessoa tinha mérito.”
Mas o próprio Governo que criou a entida-
Câmara em 2013
e ex-can ntanhede
Candidade Palmela
Charnecta do PS à
e reduzimos 356 cargos dirigentes, o que de usava truques para manipular a lógica
da NativCoelho
à Câmaradidato
significa menos 22% de cargos, menos 30,6% das nomeações a seu favor. O ministério
nhe de
do PS/Cante
Distritais da
dirigentes superiores e menos 21,9% dirigen- tutelado por Pedro Mota Soares utilizou a
Manuel
a
Preside
tes intermédios”, afirma o ex-ministro do figura do regime de substituição para dar
de Canta
Maria
idade
Ruivo
CDS em respostas escritas ao Observador. vantagem competitiva nos cargos a figuras
Segurança
Mota Soares destaca o facto de ter sido a próximas dos partidos no poder. O ministro
coligação PSD/CDS a criar a CRESAP: “Foi Governo ia nomeando os dirigentes que ficavam no
Au ebe te
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Jo to
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gu lo
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o Governo do qual fiz parte que assumiu cargo de forma provisória enquanto o con-
do litant o
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Social
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que os cargos de direção das estruturas do curso não começava ou não se resolvia, e,
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da CM de ente
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às Euro 2014
curso.” No seguimento da lei, “foi criada a currículo. Quando se candidatavam depois
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Candidaias
Ex-presidz
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Comissão de Recrutamento e Seleção para ao cargo, já tinham experiência suficiente.
Rui Cru
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Co
de
a Administração Pública (CRESAP) que foi ira S, e O próprio presidente da CRESAP, João
pe
CDS-PP e
rr P
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dirigida, desde o início, pelo professor João Bilhim, admite que nove em cada 10 pes-
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Jo igaç o d alis arm
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as quotas em dia’ na descrição do próprio”, PS co sid rfã o (muitas com ligações partidárias) conse-
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ligado ao movimento “Cidadãos por Lisboa” R Vice ssemb PSD/ rigentes nomeados foi considerado “como
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de Helena Roseta e que foi assessor de João ou Leit Manue O sa da A rital do adequado ao desempenho das suas fun-
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Ba didata ções” por aquela entidade independente.
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dera ro O Can de O PS criticava as nomeações provisórias
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A razão do apetite do P o GAN Bra PS
S U BRA corre ao mesmo estratagema. Das 49 pes-
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pela Segurança Social soas designadas pelo ministério de Vieira
e pelo IEFP João João
da Silva para as estruturas do IEFP e da
Carlos Carlos Arménio José António António Segurança Social, 48 foram nomeadas em
O professor universitário João Bilhim, an- Laranjo CASTELO BRANCO Joaquim Bernardo Bernardo regime de substituição — enquanto não é
Laranjo Toscano PORTALEGRE Candidato Candidato
Antunes
tigo presidente da CRESAP e fundador do Ex-presidente Ex-presidente da Ex-deputado Militante do a deputado a deputado concluído o concurso da CRESAP. Só um
organismo, não se mostra surpreendido da concelhia concelhia PSD/ socialista) dirigente foi nomeado em definitivo, para
PSD/Portalegre PS/Covilhã do PSD do PSD
Portalegre
com os dados recolhidos pelo Observador. ocupar um cargo vago: precisamente o de
“Tendo em conta aquilo que tem sido a COI presidente do IEFP, que substituiu Jorge
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políticos, o ministério onde esta prática Luísesident o da F reside vo Dos 48 nomes escolhidos pelo PS em
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e da Segurança Social: está praticamente Man aio da c distrit o
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ao nível do que estava nos 80”, diz João Samentel risd
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Quando foi criada a CRESAP, este ex- Nunro Dirig, passo o J Mira iro da federação: também este da CRESAP. Mais de um ano depois de se-
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-presidente do Instituto Superior de estruturas da administra- Pin doso be to Me live Al Con M de mun utado foi líder da federação e hoje rem nomeados, pelo menos 42 dirigentes
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muito preocupado com o problema na Se- Programa de Reestruturação e 20
1 m ia S ond dimensão de caciquismo é João Bilhim lembra até um caso em que
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Pa rgad do
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chamou Bilhim e deu-lhe uma indicação Estado —, no tempo de José P m dirigente do PS explica que shortlist com os três nomes até ao final do
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pública: “Professor, eu não meto nenhuma mais escassos tornaram-se também or muito interessante junto do setor -presidente do Instituto de Informática da
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cunha. Garanta-me que ninguém mete”, mais apetecíveis”. Como acontece na à C Sa S
Si ónia empresarial, que depois tem reflexos Segurança Social que era licenciado em
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disse-lhe Passos, segundo a recordação do Segurança Social. Tia ues e R v
Pr am a na afirmação local”. Estes dirigentes Comunicação Social e, como não tinha as
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antigo responsável. Mas isto não mudou a Um antigo dirigente socialista, com rq eit d s os
e “são convidados para tudo e mais alguma competências necessárias para o cargo,
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Como provam os números da investiga- que a importância dos cargos na Segurança Év D tal boys procuram é o “prestígio pessoal no cargo até ao final, porque o ministro nun-
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ção do Observador, a CRESAP não conse- Social tem a ver com a influência regional a ao nível da sua região”. Um caso muito ca resolveu o concurso.” O vice-presidente
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da junta de
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Militante
Panóias
do PSD
PSD
guiu evitar que os cargos fossem ocupados e a capacidade para distribuir dinheiro e comentado no PS foi o de José Albano em causa é António Rapoula, do CDS, que
por militantes de partidos. A fase final da poder. “Com o fim dos governos civis, o Marques, antigo presidente da Federa- é licenciado em Publicidade e Marketing
escolha estava nas mãos do Governo: a único setor que manteve a lógica distrital te ção Distrital da Guarda, que preferiu ser pela Escola Superior de Comunicação Social
comissão seleciona os três melhores can- foi a Segurança Social. É quem tem dinheiro diretor do Centro Distrital da Segurança de Lisboa e em Ciências da Comunicação
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didatos e, depois, na esmagadora maioria para distribuir às IPSS, aos amigos ou não Social na sua região depois das legislati- pela Universidade Independente de Lisboa.
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Is
dos casos, acaba por ser escolhido aquele amigos. É o diretor regional que pode dar vas de 2009 do que manter-se em Lisboa “O Prof. Bilhim nunca me referiu qualquer
que tem o cartão de militante da cor do apoios ou criar dificuldades a adversários. como deputado. situação deste género pelo que não sei de que
Governo. Para João Bilhim, “o que está É um poder brutal”, afirma. Trata-se de pode estar a falar”, diz Pedro Mota Soares.
Jacinto
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em causa é a capacidade de mudar esta “pessoal que quer ascender ao nível do dis- O ministro Vieira da Silva, em declara-
Panóias
do PSD
PSD
cultura da cunha. Sabemos que a lógica trito” e muitas vezes os nomes são indicados ções ao Observador, recusa fazer comen-
político-partidária é a lógica dos meus e pelas estruturas partidárias, ou é usada a a CRESAP tários sobre os dirigentes escolhidos pelo
te
dos nossos. Esta é a cultura vigente e dos rede política do governante em funções na Apesar de a percentagem de militantes anterior Governo, mas diz que “quem qui-
43 anos de democracia que temos.” pasta em questão. Um exemplo: Mário Ruivo partidários até ter subido nos cargos diri- ser fazer esse levantamento, pode fazê-lo”,
A lógica distrital da Segurança Social, foi diretor distrital da Segurança Social do gentes da Segurança Social e do IEFP du- acrescentando que “algumas delas são tão
que já acabou noutros ministérios — como distrito de Coimbra, a seguir chegou a líder rante o Governo PSD/CDS, a CRESAP tem, evidentes que mesmo atuais dirigentes da
na Saúde, na Educação ou na Agricultura da federação distrital do PS e mais tarde foi no entanto, uma vantagem, no entender Segurança Social são dirigentes partidários
—, é o que faz manter a grande partidari- deputado. O mesmo percurso fez o seu nú- de João Bilhim: “Dar um selo de qualida- de partidos da oposição. São dirigentes
zação das estruturas, explica João Bilhim. mero dois, Pedro Coimbra, com quem viria de, independentemente de os candidatos partidários! Não são quadros, não é pro-
“As máquinas partidárias capturaram estas a ter uma disputa fratricida pelo controlo terem ou não ligação partidária. Pelo me- ximidade, são dirigentes partidários.” Em
14 ASSALTO AO ESTADO ASSALTO AO ESTADO 15
Governo d
e Antó
seleção. Por isso, extinguimos 51% das estru-
turas existentes na estrutura do Ministério
da Solidariedade e da Segurança Social
Diretores nio
Co
nos houve uma entidade independente
que garantiu que a pessoa tinha mérito.”
Mas o próprio Governo que criou a entida-
Câmara em 2013
e ex-can ntanhede
Candidade Palmela
Charnecta do PS à
e reduzimos 356 cargos dirigentes, o que de usava truques para manipular a lógica
da NativCoelho
à Câmaradidato
significa menos 22% de cargos, menos 30,6% das nomeações a seu favor. O ministério
nhe de
do PS/Cante
Distritais da
dirigentes superiores e menos 21,9% dirigen- tutelado por Pedro Mota Soares utilizou a
Manuel
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Preside
tes intermédios”, afirma o ex-ministro do figura do regime de substituição para dar
de Canta
Maria
idade
Ruivo
CDS em respostas escritas ao Observador. vantagem competitiva nos cargos a figuras
Segurança
Mota Soares destaca o facto de ter sido a próximas dos partidos no poder. O ministro
coligação PSD/CDS a criar a CRESAP: “Foi Governo ia nomeando os dirigentes que ficavam no
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o Governo do qual fiz parte que assumiu cargo de forma provisória enquanto o con-
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que os cargos de direção das estruturas do curso não começava ou não se resolvia, e,
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curso.” No seguimento da lei, “foi criada a currículo. Quando se candidatavam depois
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a Administração Pública (CRESAP) que foi ira S, e O próprio presidente da CRESAP, João
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dirigida, desde o início, pelo professor João Bilhim, admite que nove em cada 10 pes-
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43 anos de democracia que temos.” pasta em questão. Um exemplo: Mário Ruivo partidários até ter subido nos cargos diri- ser fazer esse levantamento, pode fazê-lo”,
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16 ASSALTO AO ESTADO
Antó
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Co Instituto da
Évora, por exemplo, a diretora distrital
sta
de Vieira gabinete
em 2005 da Silva
da Segurança Social, Sónia Silva Ramos,
Segurança Social
Chefe de ais
é a presidente da distrital do PSD, cargo
Rui Fiolh
a que ascendeu já depois de ser diretora.
Vieira da Silva justifica ainda que algu- CDS-PP
mas das nomeações levadas a cabo por este
Governo
PSD
Governo dizem respeito a “lugares vagos”,
nte
de P
Ba drig l
como o caso dos centros distritais da Se- PS
Ro brie
nde
gurança Social do Porto e de Setúbal, que
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Ga
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estavam à espera de nomeações desde o
oP
Ribeiro Ferrei
anterior Governo. Relata ainda que havia
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em Cascais
a
Vereadora
Birre Clara
PSD/ deputad
euro didata a
os
outras “em regime de substituição”, tendo
Mariana
Can nto
havido já um concurso da CRESAP conclu- rt
Co
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CDS
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Go ra sta ial
Ana
ído. O que o ministro não refere é que dos
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cinco dirigentes que já foram substituídos
Govern elh ém se io ça , a
Pró elho ra
Co ixei l
Te igue
nos Centros Distritais da Segurança Social, No oi as etár ran ques
CD o
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do xim
F ecr egu ar
de J
S
Manuel Ruivo, de Aveiro, é presidente do PS s aS oM
osé
de Cantanhede; Nuno Pinheiro Cardoso, do d edr
o
P 009
Porto, foi candidato a deputado nas listas do
Só
2
Martinh o
Comissã da
Membro o
Edmund
Naciona o
PS; e João Ferreira, de Braga, é um quadro
do PS l cr
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técnico tido como próximo do PS, por ter m ir
ui Cae ente
a
de lher rães
q
Mu ima a
sido braço-direito da militante socialista a a d
Gu Luís
Jo roc pen
ra
que ocupou aquela posição no tempo de C de
S. Nuno
xei
M. In
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Sócrates. Em Lisboa e no Algarve, Vieira
Tei
rges
s
da Silva nomeou quadros que não têm mi- o a Bo
litância ou ligações partidárias evidentes, ni a Sofi eira
tó ueir os
NTE
n Per essora a
segundo o que o Observador conseguiu A og em r
Ass ecialist ria
N e L ado na
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já saberem quais são as regras do jogo. Ex-vereade Santo
Câmara d
Há quem um dia seja general e no outro Tirso
soldado. César Ferreira, um dirigente local
do PSD em Matosinhos — que chegou a
José António
ser hipótese como candidato à Câmara Manuel da Rapoula
Municipal nas próximas autárquicas —, Silva e Sá Eleito pelo
comandava o IEFP a nível regional na zona Independente CDS na Junta
de Freguesia
de Benfica
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Cat mpos a de Matosinhos. Uma descida vertiginosa.
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afastou toda a equipa de Gaspar, nomeando
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16 ASSALTO AO ESTADO
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Évora, por exemplo, a diretora distrital
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de Vieira gabinete
em 2005 da Silva
da Segurança Social, Sónia Silva Ramos,
Segurança Social
Chefe de ais
é a presidente da distrital do PSD, cargo
Rui Fiolh
a que ascendeu já depois de ser diretora.
Vieira da Silva justifica ainda que algu- CDS-PP
mas das nomeações levadas a cabo por este
Governo
PSD
Governo dizem respeito a “lugares vagos”,
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como o caso dos centros distritais da Se- PS
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anterior Governo. Relata ainda que havia
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já saberem quais são as regras do jogo. Ex-vereade Santo
Câmara d
Há quem um dia seja general e no outro Tirso
soldado. César Ferreira, um dirigente local
do PSD em Matosinhos — que chegou a
José António
ser hipótese como candidato à Câmara Manuel da Rapoula
Municipal nas próximas autárquicas —, Silva e Sá Eleito pelo
comandava o IEFP a nível regional na zona Independente CDS na Junta
de Freguesia
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Cat mpos a de Matosinhos. Uma descida vertiginosa.
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18 ASSALTO AO ESTADO
A angústia
dos 60 anos
A angústia
dos 60 anos
Emmanuel
Macron:
Afinal, quem
é este homem?
Pouco antes de derrotar Marine Le Pen nas eleições presidenciais
francesas, poucos conheciam Emmanuel Macron e a sua história
invulgar. Criança que já nasceu adulta, apaixonado pela professora
de liceu, é um homem complexo e ainda enigmático, que tem agora
a França nas mãos. Estará ele à altura de tamanho desafio?
Emmanuel
Macron:
Afinal, quem
é este homem?
Pouco antes de derrotar Marine Le Pen nas eleições presidenciais
francesas, poucos conheciam Emmanuel Macron e a sua história
invulgar. Criança que já nasceu adulta, apaixonado pela professora
de liceu, é um homem complexo e ainda enigmático, que tem agora
a França nas mãos. Estará ele à altura de tamanho desafio?
● Emmanuel Macron conheceu Brigitte Auzière quando era ainda adolescente, nas aulas de teatro. Ela
era 24 anos mais velha e os pais de Macron achavam que ele namorava a sua filha. Casaram-se em 2007.
hoje lhe é apontado como uma mancha no Hollande e Macron, junto de 107 medidas que o tiraram do um mea culpa que fazia, era um “eu tinha
currículo: uma oferta para trabalhar como uma história anonimato. Num esforço para desregular razão”. Até porque declarou isto logo a
banqueiro de investimento no Rothschild. o mercado, a Lei Macron — foi assim mes- seguir: “Por vezes, falhei na demonstração
Em 2012, por ter facilitado o negócio que imprevisível mo que ela ficou conhecida, sobretudo da necessidade que tínhamos de continuar
resultou na compra, por quase 9 mil mi- Em 2011, François Hollande entra na vida entre os seus adversários — liberalizava e de aumentar o trabalho de transformação
lhões de euros, do negócio de comida para de Emmanuel Macron. O convite dá-se de- a atividade dos taxistas, condutores de da economia em profundidade.” Macron
bebé da Pfizer pela Nestlé, Macron recebeu pois do escândalo que envolveu Dominique camiões, farmacêuticos e notários. Além continuava seguro da sua receita.
uma compensação de 2,8 milhões de euros. Strauss-Kahn, arrasando quaisquer opor- disso, a Lei Macron previa ainda uma Não foi por acaso que quatro meses an-
Foi nesses anos que Emmanuel Macron tunidades de poder vir a ser Presidente. baixa de 40 mil milhões nos impostos às tes, em abril de 2016, quando ainda era
aprendeu a ser capitalista — e rico. Numa A queda de Strauss-Kahn foi a subida de empresas e a obrigação legal de as lojas ministro da Economia, havia fundado o En
entrevista ao Wall Street Journal em que François Hollande — e este levou consigo abrirem pelo menos 12 domingos por ano, Marche!, o movimento que acabaria por o
falava do seu emprego no Rothschild, Emmanuel Macron, tornando-o seu con- em vez de cinco. levar ao poder nas eleições presidenciais
quando já não trabalhava para aquele selheiro para as questões económicas. Foi um cataclismo — apenas outro, o de 2017. A estratégia de Emmanuel Macron
banco, resumiu o seu trabalho desta for- Primeiro, o ex-banqueiro acompanhou da Lei El Khomri (que reformou a Lei do era clara e o Eliseu tomou notas. Em co-
ma: “É como se fosses uma espécie de Hollande ainda como candidato socialis- Trabalho), rivalizou em dimensão. Dentro municado, a presidência disse que ele se
prostituta. Seduzir faz parte do empre- ta. Depois, foi com ele para o Eliseu, na do próprio PS, as fileiras mais à esquerda demitira “para se dedicar inteiramente
go.” Na mesma entrevista, viria a dizer: qualidade de conselheiro. Naquela altura, opuseram-se à aprovação das propostas ao seu movimento político, En Marche!”.
“Trabalhar num banco de investimento Emmanuel Macron já defendia medidas de Emmanuel Macron, impossibilitando Aos olhos de muitos, Emmanuel Macron
não é muito intelectual. O mimetismo do que pudessem afrouxar a regulação das uma aprovação do parlamento. O Go- e François Hollande estavam agora em pó-
meio é a referência.” empresas, baixando-lhes os impostos em verno acabou por aprová-la por decreto los inconciliáveis — não necessariamente
Pelo meio, começou a envolver-se na nome da competitividade. Porém, o Go- — na altura, a imprensa francesa dizia por distarem assim tanto um do outro po-
política, embora sem profundidade. Em verno de François Hollande, que na altura que François Hollande tinha usado uma liticamente, mas porque a confiança entre
2006, convencido pela campanha de Se- estava empenhado em impor uma taxa de bazuca em agosto de 2015. Aos poucos, a eles não passara o teste. Há quem aponte
golène Royal, torna-se militante do Partido 75% sobre os rendimentos dos mais ricos, neutralidade de Macron perante os olhos que a relação entre os dois esfriou com a
Socialista. Ainda assim, aceitou fazer parte não estava nessa onda. dos franceses desfazia-se. Quando certa aprovação da Lei Macron por decreto, ma-
de uma comissão independente, nomeada Emmanuel Macron acabaria por sair vez, como é seu hábito, se dirigiu a dois nobra de que o ministro da Economia não
por Nicolas Sarkozy, para impulsionar o — mas François Hollande foi buscá-lo de manifestantes para tentar falar com eles terá gostado. Outros dizem que a reação de
crescimento da economia francesa. Já o volta. Desta vez, queria que ele fosse mi- cara a cara, Macron acabou por perder a François Hollande aos atentados de 13 de
convite para concorrer à Câmara Municipal nistro da Economia, numa altura em que paciência: “Vocês não me metem medo novembro de 2015 foi a machadada final.
de Touquet pela UMP (atual Os Republica- a taxa de desemprego chegava aos 10,4%. com as vossas t-shirts. A melhor maneira Anne Fulda, autora do livro Emmanuel
nos), que tinha como condição a inscrição Nem todos olharam para esta nomeação de pagar um fato é trabalhar.” Macron, un jeune homme si parfait (Plon,
naquele partido e a desistência do PS, não com bons olhos, sobretudo nos setores Aos poucos, Emmanuel Macron percebeu 2017), apresenta uma terceira versão, mais
teve a mesma resposta. mais à esquerda dentro do PS. Macron era que a sua presença naquele executivo estava pessoal. Segundo a autora disse numa en-
Emmanuel Macron deixava aqui provas um ex-banqueiro, não tinha qualquer cre- a deixar de fazer sentido. Para ser capaz de trevista à BFM TV, tudo se passou quando
da sua elasticidade que valem ainda hoje dencial socialista, para além do cartão de fazer alguma coisa mais tarde, teria de sair a avó de Emmanuel Macron, Manette,
tantas críticas e também elogios. Ao mesmo militante, e nem sequer tinha sido eleito. dele antes que fosse tarde demais. morreu. “[No funeral da avó] ele disse a
tempo que trabalhava para um banco de “Ele provavelmente nem sabe o caminho Em agosto de 2016, já no estertor do um dos seus amigos: ‘Acabou tudo com o
investimento, era militante socialista. Isto para a sede do partido!”, disse um dirigente Governo de François Hollande, Macron sai Hollande.’ O amigo perguntou-lhe: ‘O que
enquanto ajudava o Governo de Nicolas do PS francês à revista alemã Der Spiegel, de cena. No discurso de demissão, disse que é que se passa?’. E ele respondeu: ‘Quando
Sarkozy a impulsionar o crescimento e em agosto de 2014. tinha “tocado nos limites da nossa política”. lhe anunciei a morte da minha avó, ele disse
tinha como prémio a direita a abanar-lhe Se não sabia, encontrou-o. Em 2015, “Não tive um sucesso total, houve empresas algo como: ‘Ah, sim, que pena.’ Essa reação
um cartão de militante à frente do nariz. Emmanuel Macron apresenta um con- que faliram na mesma”, afirmou. Não era significa o fim de uma história entre nós.”
24 EMMANUEL MACRON
● Emmanuel Macron conheceu Brigitte Auzière quando era ainda adolescente, nas aulas de teatro. Ela
era 24 anos mais velha e os pais de Macron achavam que ele namorava a sua filha. Casaram-se em 2007.
hoje lhe é apontado como uma mancha no Hollande e Macron, junto de 107 medidas que o tiraram do um mea culpa que fazia, era um “eu tinha
currículo: uma oferta para trabalhar como uma história anonimato. Num esforço para desregular razão”. Até porque declarou isto logo a
banqueiro de investimento no Rothschild. o mercado, a Lei Macron — foi assim mes- seguir: “Por vezes, falhei na demonstração
Em 2012, por ter facilitado o negócio que imprevisível mo que ela ficou conhecida, sobretudo da necessidade que tínhamos de continuar
resultou na compra, por quase 9 mil mi- Em 2011, François Hollande entra na vida entre os seus adversários — liberalizava e de aumentar o trabalho de transformação
lhões de euros, do negócio de comida para de Emmanuel Macron. O convite dá-se de- a atividade dos taxistas, condutores de da economia em profundidade.” Macron
bebé da Pfizer pela Nestlé, Macron recebeu pois do escândalo que envolveu Dominique camiões, farmacêuticos e notários. Além continuava seguro da sua receita.
uma compensação de 2,8 milhões de euros. Strauss-Kahn, arrasando quaisquer opor- disso, a Lei Macron previa ainda uma Não foi por acaso que quatro meses an-
Foi nesses anos que Emmanuel Macron tunidades de poder vir a ser Presidente. baixa de 40 mil milhões nos impostos às tes, em abril de 2016, quando ainda era
aprendeu a ser capitalista — e rico. Numa A queda de Strauss-Kahn foi a subida de empresas e a obrigação legal de as lojas ministro da Economia, havia fundado o En
entrevista ao Wall Street Journal em que François Hollande — e este levou consigo abrirem pelo menos 12 domingos por ano, Marche!, o movimento que acabaria por o
falava do seu emprego no Rothschild, Emmanuel Macron, tornando-o seu con- em vez de cinco. levar ao poder nas eleições presidenciais
quando já não trabalhava para aquele selheiro para as questões económicas. Foi um cataclismo — apenas outro, o de 2017. A estratégia de Emmanuel Macron
banco, resumiu o seu trabalho desta for- Primeiro, o ex-banqueiro acompanhou da Lei El Khomri (que reformou a Lei do era clara e o Eliseu tomou notas. Em co-
ma: “É como se fosses uma espécie de Hollande ainda como candidato socialis- Trabalho), rivalizou em dimensão. Dentro municado, a presidência disse que ele se
prostituta. Seduzir faz parte do empre- ta. Depois, foi com ele para o Eliseu, na do próprio PS, as fileiras mais à esquerda demitira “para se dedicar inteiramente
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“Trabalhar num banco de investimento Emmanuel Macron já defendia medidas de Emmanuel Macron, impossibilitando Aos olhos de muitos, Emmanuel Macron
não é muito intelectual. O mimetismo do que pudessem afrouxar a regulação das uma aprovação do parlamento. O Go- e François Hollande estavam agora em pó-
meio é a referência.” empresas, baixando-lhes os impostos em verno acabou por aprová-la por decreto los inconciliáveis — não necessariamente
Pelo meio, começou a envolver-se na nome da competitividade. Porém, o Go- — na altura, a imprensa francesa dizia por distarem assim tanto um do outro po-
política, embora sem profundidade. Em verno de François Hollande, que na altura que François Hollande tinha usado uma liticamente, mas porque a confiança entre
2006, convencido pela campanha de Se- estava empenhado em impor uma taxa de bazuca em agosto de 2015. Aos poucos, a eles não passara o teste. Há quem aponte
golène Royal, torna-se militante do Partido 75% sobre os rendimentos dos mais ricos, neutralidade de Macron perante os olhos que a relação entre os dois esfriou com a
Socialista. Ainda assim, aceitou fazer parte não estava nessa onda. dos franceses desfazia-se. Quando certa aprovação da Lei Macron por decreto, ma-
de uma comissão independente, nomeada Emmanuel Macron acabaria por sair vez, como é seu hábito, se dirigiu a dois nobra de que o ministro da Economia não
por Nicolas Sarkozy, para impulsionar o — mas François Hollande foi buscá-lo de manifestantes para tentar falar com eles terá gostado. Outros dizem que a reação de
crescimento da economia francesa. Já o volta. Desta vez, queria que ele fosse mi- cara a cara, Macron acabou por perder a François Hollande aos atentados de 13 de
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Emmanuel Macron deixava aqui provas um ex-banqueiro, não tinha qualquer cre- a deixar de fazer sentido. Para ser capaz de trevista à BFM TV, tudo se passou quando
da sua elasticidade que valem ainda hoje dencial socialista, para além do cartão de fazer alguma coisa mais tarde, teria de sair a avó de Emmanuel Macron, Manette,
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investimento, era militante socialista. Isto para a sede do partido!”, disse um dirigente Governo de François Hollande, Macron sai Hollande.’ O amigo perguntou-lhe: ‘O que
enquanto ajudava o Governo de Nicolas do PS francês à revista alemã Der Spiegel, de cena. No discurso de demissão, disse que é que se passa?’. E ele respondeu: ‘Quando
Sarkozy a impulsionar o crescimento e em agosto de 2014. tinha “tocado nos limites da nossa política”. lhe anunciei a morte da minha avó, ele disse
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um cartão de militante à frente do nariz. Emmanuel Macron apresenta um con- que faliram na mesma”, afirmou. Não era significa o fim de uma história entre nós.”
26 EMMANUEL MACRON
O homem doente
da Europa
O homem doente
da Europa
As lutas, as vitórias,
as derrotas,
os apetites, os
gostos, os gozos,
as amizades e as
confidências de um
dos maiores políticos
portugueses do
século XX.
Mário Soares,
o lutador
Maria João Avillez
GETTY IMAGES / RAPHAEL GAILLARDE
30 FEATURE 31
As lutas, as vitórias,
as derrotas,
os apetites, os
gostos, os gozos,
as amizades e as
confidências de um
dos maiores políticos
portugueses do
século XX.
Mário Soares,
o lutador
Maria João Avillez
GETTY IMAGES / RAPHAEL GAILLARDE
32 MÁRIO SOARES
● Mário Soares passeia pelas ruas de Lisboa, depois do 25 de Abril. A vocação para a liberdade vinha de
longe e contaminou toda a sua vida, primeiro na luta contra a ditadura, depois no combate anticomunista.
1. Liberdade, preciso, nos idos de 1976, cerzir um Por- tuição – sorte minha – de perceber que, dos sindicatos, da rua, da “legitimidade” do
tugal dividido, azedo e arruinado. Fechar num certo sentido, talvez ficasse, digamos, 25 de Abril e príncipe numa boa parte dos
Democracia, Europa as feridas. Mário Soares (eu vi-o fazer isso) mais bem servido com uma jornalista “ofi- media; o segundo, Sá Carneiro, governava,
Mário Soares, quando foi grande, foi-o por reconciliou, juntou, reuniu. Cerziu. Voltou cialmente” de direita, o que lhe alargaria mas sobretudo assinara um “antes” e um
ter sido maior do que fronteiras, grupos a fazê-lo após ganhar as eleições presiden- automaticamente o espectro de leitores e “depois” na História ainda breve da nossa
ou barricadas, intuindo melhor do que ciais em 1986, ao aperceber-se de que tinha curiosos, do que com alguém saído de entre democracia, ao tornar indisfarçável, atra-
ninguém onde era o seu lugar e qual a diante de si um país hostilmente dividido os “seus”.) Mas hoje quero especialmente vés do voto, que o centro-direita e a direita
tarefa nacional que lhe competia cumprir. ao meio. recordar que foi sobretudo ao preparar-me valiam quase metade do país.
E não, não foi só no combate anticomunista Das duas vezes tentou sentar Portugal para o que viria a ser o segundo volume A Soares restava uma magra e dura fa-
de 1975, o que, não sendo pouco e sendo à mesma mesa, deixando de fora apenas (Democracia) desta trilogia que me levou tia, mas falta sublinhar o resto do cerco
definitivo, não esgota nem resume aquilo quem voluntária e intencionalmente se re- algum suor a fazer, que voltei a dar-me para relembrar, à distância de décadas,
de que era feito: a vocação da liberdade, cusava a tomar nela assento, preferindo-lhe inteiramente conta da sua fibra de luta- quão magra e dura de mastigar era a fa-
que vinha de longe e tudo contaminou pela heróis duvidosos e líderes indecentes. Ele dor. Singular característica, esta, por nela tia: através do Conselho da Revolução, os
vida fora; a envergadura da sua coragem; o quis ser também, para além do seu constru- ele juntar, numa só passada, a coragem, militares continuavam omnipresentes na
rasgo de alguns gestos políticos, o tamanho tor, o reconciliador da democracia: livre, a intuição, a persistência, a capacidade cena e influentes nos bastidores, e Ramalho
da sua intuição política. pluripartidária, civilista, ocidental. Plena. de luta, a capacidade de levar a água ao Eanes, que detestava o líder do PS e que
Mas há mais neste homem, há duas ou E para isso, e ao serviço disso, fez política, seu moinho. Afinal, o que fez toda a vida, o líder do PS abominava, fora já reeleito
três ideias, claras e simples, que foram avançando e recuando, deixando-se ver ao até aos seus gozosos oitenta anos. (Daí em para Belém, contra a vontade de Soares. No
sempre as mesmas mas tão essenciais ao mundo, batendo à porta da Europa e pe- diante, lembro-me menos bem do que se decurso desse para si tão malfadado ano de
seu propósito de democrata-lutador-pela- dindo para entrar; agradando, hostilizando seguiu). 1980, Mário Soares, sozinho e enfrentando
-democracia que chegaram para lhe confe- ou dividindo; perdendo ou ganhando – mas Voltando a esse segundo volume, recor- o seu próprio partido, recusara-se a apoiar
rir um destino: a liberdade, a democracia, nunca se menorizando por perder, nem se dávamos ambos a década de oitenta, ele a (muito acarinhada) recandidatura pre-
a Europa, a irrefutável certeza da nossa vangloriando excessivamente por ganhar: deixando fluir uma memória por vezes sidencial do general. Um gesto de tão alto
pertença ao mundo ocidental e do com- era a regra do jogo. Ia andando, parece que preguiçosa, eu, de gravador em punho, de- risco quanto de solitária coragem política.
promisso dessa pertença. Do que podíamos só levado pelo instinto, mas reflectindo bruçada sobre a sua cadeira (em Belém ou Dizer cerco é dizer pouco.
ser e representar. porventura muito mais do que se pensa – na sua casa do Campo Grande), e era sem-
Foi isto, mas “isto” foi o essencial. Sem- ou daquilo que ele dava a ver. Reflectindo pre o lutador que eu ouvia. O que nunca 3. O maior dos
pre o percebi, sempre o escrevi. O resto, sobre si, a vida, as coisas. A morte, o tem- desistia e sempre resistia. Sim, nessa época
onde também entram erros e omissões, po. Por vezes tomando notas, rabiscando que agora recordo concretamente, o que espectáculos políticos
conta menos. (E há África, que, para mui- ideias, conjecturas, pensamentos. eu encontrava sempre estampado sobre o Lembro-me de que me calhou seguir
tos, como eu, conta muito; para outros tempo era o lutador, desta feita apanhado profissionalmente no Expresso o gene-
quase nada; e para ele julgo que nada.) 2. Nunca desistiu, no cerco que a política e as suas circuns- ral Soares Carneiro, candidato da AD e,
Mas houve ainda algo determinante e tâncias então lhe moviam: as oposições, à vindo a saber isso, o dr. Soares dizia-me
que não esqueço: depois do tumulto e das sempre resistiu esquerda e à direita, e nem Álvaro Cunhal, por vezes que “passasse por lá”, para lhe
feridas do processo revolucionário em Fiz três livros com ele, o que sempre tomei nem Francisco Sá Carneiro, eram pêra contar as minhas impressões da campanha
curso, após as Fontes Luminosas e outras como um privilégio e me deixou gratas doce. O primeiro era o proprietário único da “direita”. E eu passava. O “lá” era a sua
empreitadas e dolorosos sobressaltos, era recordações. (Soares teve, julgo eu, a in- de um Partido Comunista então forte, dono casa onde estava a bom recato, intencio-
32 MÁRIO SOARES
● Mário Soares passeia pelas ruas de Lisboa, depois do 25 de Abril. A vocação para a liberdade vinha de
longe e contaminou toda a sua vida, primeiro na luta contra a ditadura, depois no combate anticomunista.
1. Liberdade, preciso, nos idos de 1976, cerzir um Por- tuição – sorte minha – de perceber que, dos sindicatos, da rua, da “legitimidade” do
tugal dividido, azedo e arruinado. Fechar num certo sentido, talvez ficasse, digamos, 25 de Abril e príncipe numa boa parte dos
Democracia, Europa as feridas. Mário Soares (eu vi-o fazer isso) mais bem servido com uma jornalista “ofi- media; o segundo, Sá Carneiro, governava,
Mário Soares, quando foi grande, foi-o por reconciliou, juntou, reuniu. Cerziu. Voltou cialmente” de direita, o que lhe alargaria mas sobretudo assinara um “antes” e um
ter sido maior do que fronteiras, grupos a fazê-lo após ganhar as eleições presiden- automaticamente o espectro de leitores e “depois” na História ainda breve da nossa
ou barricadas, intuindo melhor do que ciais em 1986, ao aperceber-se de que tinha curiosos, do que com alguém saído de entre democracia, ao tornar indisfarçável, atra-
ninguém onde era o seu lugar e qual a diante de si um país hostilmente dividido os “seus”.) Mas hoje quero especialmente vés do voto, que o centro-direita e a direita
tarefa nacional que lhe competia cumprir. ao meio. recordar que foi sobretudo ao preparar-me valiam quase metade do país.
E não, não foi só no combate anticomunista Das duas vezes tentou sentar Portugal para o que viria a ser o segundo volume A Soares restava uma magra e dura fa-
de 1975, o que, não sendo pouco e sendo à mesma mesa, deixando de fora apenas (Democracia) desta trilogia que me levou tia, mas falta sublinhar o resto do cerco
definitivo, não esgota nem resume aquilo quem voluntária e intencionalmente se re- algum suor a fazer, que voltei a dar-me para relembrar, à distância de décadas,
de que era feito: a vocação da liberdade, cusava a tomar nela assento, preferindo-lhe inteiramente conta da sua fibra de luta- quão magra e dura de mastigar era a fa-
que vinha de longe e tudo contaminou pela heróis duvidosos e líderes indecentes. Ele dor. Singular característica, esta, por nela tia: através do Conselho da Revolução, os
vida fora; a envergadura da sua coragem; o quis ser também, para além do seu constru- ele juntar, numa só passada, a coragem, militares continuavam omnipresentes na
rasgo de alguns gestos políticos, o tamanho tor, o reconciliador da democracia: livre, a intuição, a persistência, a capacidade cena e influentes nos bastidores, e Ramalho
da sua intuição política. pluripartidária, civilista, ocidental. Plena. de luta, a capacidade de levar a água ao Eanes, que detestava o líder do PS e que
Mas há mais neste homem, há duas ou E para isso, e ao serviço disso, fez política, seu moinho. Afinal, o que fez toda a vida, o líder do PS abominava, fora já reeleito
três ideias, claras e simples, que foram avançando e recuando, deixando-se ver ao até aos seus gozosos oitenta anos. (Daí em para Belém, contra a vontade de Soares. No
sempre as mesmas mas tão essenciais ao mundo, batendo à porta da Europa e pe- diante, lembro-me menos bem do que se decurso desse para si tão malfadado ano de
seu propósito de democrata-lutador-pela- dindo para entrar; agradando, hostilizando seguiu). 1980, Mário Soares, sozinho e enfrentando
-democracia que chegaram para lhe confe- ou dividindo; perdendo ou ganhando – mas Voltando a esse segundo volume, recor- o seu próprio partido, recusara-se a apoiar
rir um destino: a liberdade, a democracia, nunca se menorizando por perder, nem se dávamos ambos a década de oitenta, ele a (muito acarinhada) recandidatura pre-
a Europa, a irrefutável certeza da nossa vangloriando excessivamente por ganhar: deixando fluir uma memória por vezes sidencial do general. Um gesto de tão alto
pertença ao mundo ocidental e do com- era a regra do jogo. Ia andando, parece que preguiçosa, eu, de gravador em punho, de- risco quanto de solitária coragem política.
promisso dessa pertença. Do que podíamos só levado pelo instinto, mas reflectindo bruçada sobre a sua cadeira (em Belém ou Dizer cerco é dizer pouco.
ser e representar. porventura muito mais do que se pensa – na sua casa do Campo Grande), e era sem-
Foi isto, mas “isto” foi o essencial. Sem- ou daquilo que ele dava a ver. Reflectindo pre o lutador que eu ouvia. O que nunca 3. O maior dos
pre o percebi, sempre o escrevi. O resto, sobre si, a vida, as coisas. A morte, o tem- desistia e sempre resistia. Sim, nessa época
onde também entram erros e omissões, po. Por vezes tomando notas, rabiscando que agora recordo concretamente, o que espectáculos políticos
conta menos. (E há África, que, para mui- ideias, conjecturas, pensamentos. eu encontrava sempre estampado sobre o Lembro-me de que me calhou seguir
tos, como eu, conta muito; para outros tempo era o lutador, desta feita apanhado profissionalmente no Expresso o gene-
quase nada; e para ele julgo que nada.) 2. Nunca desistiu, no cerco que a política e as suas circuns- ral Soares Carneiro, candidato da AD e,
Mas houve ainda algo determinante e tâncias então lhe moviam: as oposições, à vindo a saber isso, o dr. Soares dizia-me
que não esqueço: depois do tumulto e das sempre resistiu esquerda e à direita, e nem Álvaro Cunhal, por vezes que “passasse por lá”, para lhe
feridas do processo revolucionário em Fiz três livros com ele, o que sempre tomei nem Francisco Sá Carneiro, eram pêra contar as minhas impressões da campanha
curso, após as Fontes Luminosas e outras como um privilégio e me deixou gratas doce. O primeiro era o proprietário único da “direita”. E eu passava. O “lá” era a sua
empreitadas e dolorosos sobressaltos, era recordações. (Soares teve, julgo eu, a in- de um Partido Comunista então forte, dono casa onde estava a bom recato, intencio-
34 MÁRIO SOARES
O comentador de “direita”:
uma profissão de futuro
Alberto Gonçalves
O comentador de “direita” é o proverbial idiota útil.
● Mário Soares durante a campanha presidencial de 2006, que deu a vitória a Cavaco Silva. Soares viajou
GETTY IMAGES / ANADOLU AGENCY
O comentador de “direita”:
uma profissão de futuro
Alberto Gonçalves
O comentador de “direita” é o proverbial idiota útil.
● Mário Soares durante a campanha presidencial de 2006, que deu a vitória a Cavaco Silva. Soares viajou
GETTY IMAGES / ANADOLU AGENCY
pai
Chegou a Angola como fotógrafo.
Em poucas semanas, teve luz verde para
formar a tropa especial que ainda hoje é
considerada a elite do exército português.
dos
Comandos Foi como um fantasma que apa-
recia e desaparecia sem deixar rasto. O
misterioso jornalista e aventureiro italiano
Cesare Dante Vacchi viajou para Angola com
a sua namorada francesa quando rebentou
a guerra. No dia 1 de abril de 1962, cerca de
um ano depois de se iniciarem as hostilida-
des, começou a acompanhar um batalhão de
mandos. António Neves, tenente-coronel
na reforma, estuda há três anos o papel de
Dante Vacchi na criação daquela tropa de
elite. O militar fez o curso de comandos
em 1970 e interessou-se pela história do
homem que deu origem à temida força
anti-guerrilha durante a Guerra Colonial.
“Não tinha interesse nenhum no Dante
coronel Raul Folques, que se cruzou com
o jornalista em Zemba, no primeiro curso
de Comandos, em 1962.
Mas o secretismo vai além da sua ima-
gem. Do espólio do jornalista, também
não há sinal. E mesmo quem privou mais
de perto com o italiano perdeu-lhe o rasto.
Fora os livros que publicou, Cesare Dante
apareceu lá para fazer uma reportagem”,
recorda o então alferes miliciano João Vieira
Pereira, ao Observador, que no início da
guerra comandava um grupo de homens
em Nóqui. O antigo combatente conta que
Dante Vacchi “era bem visto em Portugal
pelo regime de Salazar e pela PIDE”.
“Para um jornalista, ainda para mais
tropas portuguesas em Nóqui, no norte do Vacchi a não ser no seu papel na origem Vacchi é como um fantasma que deixou italiano, poder fazer uma reportagem com
portugueses
país, junto à fronteira com o Congo. dos Comandos – que não passa de quatro uma marca profunda no Exército para as tropas portuguesas em Nóqui era pre-
Mas ele era mais do que apenas um ou cinco meses –, mas comecei a investigá- desaparecer de seguida. “É frustrante”, ciso ter o agreament [a concordância] da
repórter. Tinha treino militar desde o -lo e percebi que era mais interessante desabafa António Neves, que continua a PIDE e o agreament do Estado-maior do
tempo do fascismo italiano. E poderá ter do que isso, era um homem do mundo, procurar informações sobre aquele que Exército”, sublinha o coronel Raul Folques.
passado pela Legião Estrangeira. Homem um nómada, metia-se em todo o lado no pode ser considerado o pai desta tropa es- Para o militar, Vacchi não chegou a An-
relativamente baixo, com menos de 1,67 seu trabalho de correspondente”, conta pecial. Há, no entanto, “demasiados hiatos, gola por acaso. “Em condições normais,
metros, rosto magro, Vacchi era um civil, António Neves ao Observador. falta muita documentação”, o que o impede um jornalista estrangeiro que viesse para
mas era um duro. Mais duro do que os A história do jornalista que criou os de preencher os espaços em branco. Portugal – e estamos a falar do regime de
militares portugueses com quem seguia. Comandos é uma imensa sombra, sobre- Cesare Dante Vacchi terá aterrado em Salazar – tinha de ser referenciado”, acres-
Um dia, a meio de um percurso, o grupo tudo o antes e o depois de ter lançado as Luanda no início da década de 1960. Chegou centa o tenente-coronel António Neves.
sofreu uma emboscada de guerrilheiros bases da tropa especial, em Angola. A como jornalista. Queria viajar para o norte Poucas semanas depois da emboscada
angolanos. E então percebeu que as tropas ligação entre o italiano e as tropas por- de Angola para fazer uma reportagem com que viveu junto das tropas portuguesas,
portuguesas não estavam preparadas para tuguesas – curta, mas intensa – também as tropas portuguesas que combatiam na Dante Vacchi passava a ter uma influên-
o combate de guerrilha. Ainda usavam nunca foi contada em pormenor. Imagens região de Nóqui, na margem do Congo, o cia pouco comum para um estrangeiro,
velhas espingardas Mauser e capacetes do próprio fotógrafo são raras, quase não rio que separa Angola daquela república jornalista e civil: era um tipo extrovertido,
Pedro Rainho
de aço, armamento obsoleto do tempo há registo gráfico da sua existência. “O africana. Com ele viajava Anne Dominique que tinha sempre conversa, um bon vivant
da Segunda Guerra Mundial. Dante Vacchi nunca entrava em fotos, Gauzes, fotógrafa de nacionalidade fran- que ia contribuir para formar o primeiro
A partir desta experiência, havia de nunca ia a eventos em que pudesse ser cesa, apelido alemão e com um percurso grupo de Comandos portugueses. “Não me
nascer uma nova força especial: os Co- identificado”, recorda ao Observador o tão misterioso quanto o do colega. “Ele custa nada a aceitar que, aqui em Portugal,
LUSA
O
40 DANTE VACCHI 41
pai
Chegou a Angola como fotógrafo.
Em poucas semanas, teve luz verde para
formar a tropa especial que ainda hoje é
considerada a elite do exército português.
dos
Comandos Foi como um fantasma que apa-
recia e desaparecia sem deixar rasto. O
misterioso jornalista e aventureiro italiano
Cesare Dante Vacchi viajou para Angola com
a sua namorada francesa quando rebentou
a guerra. No dia 1 de abril de 1962, cerca de
um ano depois de se iniciarem as hostilida-
des, começou a acompanhar um batalhão de
mandos. António Neves, tenente-coronel
na reforma, estuda há três anos o papel de
Dante Vacchi na criação daquela tropa de
elite. O militar fez o curso de comandos
em 1970 e interessou-se pela história do
homem que deu origem à temida força
anti-guerrilha durante a Guerra Colonial.
“Não tinha interesse nenhum no Dante
coronel Raul Folques, que se cruzou com
o jornalista em Zemba, no primeiro curso
de Comandos, em 1962.
Mas o secretismo vai além da sua ima-
gem. Do espólio do jornalista, também
não há sinal. E mesmo quem privou mais
de perto com o italiano perdeu-lhe o rasto.
Fora os livros que publicou, Cesare Dante
apareceu lá para fazer uma reportagem”,
recorda o então alferes miliciano João Vieira
Pereira, ao Observador, que no início da
guerra comandava um grupo de homens
em Nóqui. O antigo combatente conta que
Dante Vacchi “era bem visto em Portugal
pelo regime de Salazar e pela PIDE”.
“Para um jornalista, ainda para mais
tropas portuguesas em Nóqui, no norte do Vacchi a não ser no seu papel na origem Vacchi é como um fantasma que deixou italiano, poder fazer uma reportagem com
portugueses
país, junto à fronteira com o Congo. dos Comandos – que não passa de quatro uma marca profunda no Exército para as tropas portuguesas em Nóqui era pre-
Mas ele era mais do que apenas um ou cinco meses –, mas comecei a investigá- desaparecer de seguida. “É frustrante”, ciso ter o agreament [a concordância] da
repórter. Tinha treino militar desde o -lo e percebi que era mais interessante desabafa António Neves, que continua a PIDE e o agreament do Estado-maior do
tempo do fascismo italiano. E poderá ter do que isso, era um homem do mundo, procurar informações sobre aquele que Exército”, sublinha o coronel Raul Folques.
passado pela Legião Estrangeira. Homem um nómada, metia-se em todo o lado no pode ser considerado o pai desta tropa es- Para o militar, Vacchi não chegou a An-
relativamente baixo, com menos de 1,67 seu trabalho de correspondente”, conta pecial. Há, no entanto, “demasiados hiatos, gola por acaso. “Em condições normais,
metros, rosto magro, Vacchi era um civil, António Neves ao Observador. falta muita documentação”, o que o impede um jornalista estrangeiro que viesse para
mas era um duro. Mais duro do que os A história do jornalista que criou os de preencher os espaços em branco. Portugal – e estamos a falar do regime de
militares portugueses com quem seguia. Comandos é uma imensa sombra, sobre- Cesare Dante Vacchi terá aterrado em Salazar – tinha de ser referenciado”, acres-
Um dia, a meio de um percurso, o grupo tudo o antes e o depois de ter lançado as Luanda no início da década de 1960. Chegou centa o tenente-coronel António Neves.
sofreu uma emboscada de guerrilheiros bases da tropa especial, em Angola. A como jornalista. Queria viajar para o norte Poucas semanas depois da emboscada
angolanos. E então percebeu que as tropas ligação entre o italiano e as tropas por- de Angola para fazer uma reportagem com que viveu junto das tropas portuguesas,
portuguesas não estavam preparadas para tuguesas – curta, mas intensa – também as tropas portuguesas que combatiam na Dante Vacchi passava a ter uma influên-
o combate de guerrilha. Ainda usavam nunca foi contada em pormenor. Imagens região de Nóqui, na margem do Congo, o cia pouco comum para um estrangeiro,
velhas espingardas Mauser e capacetes do próprio fotógrafo são raras, quase não rio que separa Angola daquela república jornalista e civil: era um tipo extrovertido,
Pedro Rainho
de aço, armamento obsoleto do tempo há registo gráfico da sua existência. “O africana. Com ele viajava Anne Dominique que tinha sempre conversa, um bon vivant
da Segunda Guerra Mundial. Dante Vacchi nunca entrava em fotos, Gauzes, fotógrafa de nacionalidade fran- que ia contribuir para formar o primeiro
A partir desta experiência, havia de nunca ia a eventos em que pudesse ser cesa, apelido alemão e com um percurso grupo de Comandos portugueses. “Não me
nascer uma nova força especial: os Co- identificado”, recorda ao Observador o tão misterioso quanto o do colega. “Ele custa nada a aceitar que, aqui em Portugal,
LUSA
42 DANTE VACCHI DANTE VACCHI 43
ele tivesse ligações a um qualquer serviço impressionar o comandante do batalhão próprio Vieira Pereira e os alferes-médicos aceite quem estivesse em boas condições
secreto, mas não tenho nenhuma evidência português em Nóqui. Quando chegou ao Resina Rodrigues e Freire Agualusa. O re- físicas. Já no anúncio do Exército se per-
disso. Nem aqui nem lá, em Angola”, admite norte de Angola, italiano, francês, inglês, pórter Dante Vacchi completava o grupo, cebia que o curso seria duro, com treinos
António Neves. alemão e árabe eram línguas que domi- como adjunto do comandante de campo. em que era usado fogo real e em que se
nava. Mas não o português. Uma barreira Rodeado por militares sem qualquer expe- apostava no contacto direto com o inimigo
que ultrapassou em poucas semanas. “Os riência de forças especiais, cabia ao italiano ainda durante a formação.
O homem fantasma palavrões que nós dizíamos, ele dizia-os orientar a instrução. A instrução começou no início do verão
Antes de saber como Vacchi acabou a for- também, em português da tropa, estivesse Foi essa a versão da história a que An- de 1962, com a presença de um dos dois
mar os Comandos, há outro ponto sem o general ou quem fosse”, conta Vieira tónio Neves chegou na sua investigação. grupos formados por Vacchi em Nóqui,
resposta: como foi que o italiano conseguiu Pereira. Mas, ao Observador, o coronel Raul Fol- para “servir de exemplo” aos novos re-
autorização para acompanhar os militares A aproximação aos militares portugue- ques apresenta outra leitura desse período crutas. António Neves conta que começou
portugueses destacados no norte de Ango- ses foi quase imediata: “A imagem mais inicial. “Ele não estava em permanência nesse tempo a música subitamente ligada
la? Ninguém tem ideia. Nos registos oficiais vincada que tenho dele é a disponibilidade em Zemba, ia e vinha, às vezes ficava dois no máximo, de dia e de noite, sem aviso
permanece um vazio. para nos acompanhar nas operações, du- ou três dias e voltava”, recorda o militar, prévio, acompanhada dos gritos de ordem
António Neves procurou nos arquivos rassem um dia, dois, três dias, dormir em que recusa atribuir a Vacchi a paternidade dos instrutores. “Um dos grandes contribu-
do Secretariado Nacional de Informação qualquer lado como nós dormíamos – em desta força especial. tos que todos reconhecem a Dante Vacchi
– organismo que centralizava a ação de cima de um ribeiro a correr, por exem- “O papel que Dante Vacchi teve foi fun- foi a ação psicológica”, garante António
todos os ministérios de Salazar e tinha mão plo – e comer a mesma ração de combate damental pela sua ideia inovadora, mas Neves. “Era preciso criar nos instruendos
de ferro sobre a imprensa – e deparou-se que nos era distribuída”, lembra o antigo mais fundamental ainda foi o facto de o instabilidade, para que estivessem sempre
com “dezenas e dezenas de referências a oficial miliciano. tenente-coronel Nave ter sido recetivo às prontos para a reação”, refere o tenente-
jornalistas estrangeiros creditados” para Ao mesmo tempo, Vacchi ia ganhando ideias daquele civil, porque se não fosse -coronel, que ainda é uma característica
trabalhar em Portugal (no início da década a “confiança” das chefias militares. Vieira assim aquilo não teria acontecido”, defende dos cursos atuais de Comandos, a par da
de 1960, Angola ainda era uma extensão da Pereira recorda: “Ele era um indivíduo Raul Folques – militar que se inscreveu agressividade desta formação.
metrópole). “Dante Vacchi nunca aparece.” muito expansivo e foi-se familiarizando como formando no curso de Comandos de João Vieira Pereira não tem memória de
Mas a busca do tenente-coronel ainda mal com o meu comandante de batalhão, o Zemba e acabou a dar instrução a outros que esse tipo de práticas tivesse surgido nas
tinha começado. Neves também vasculhou tenente-coronel Almeida Nave. Foram fa- militares. primeiras instruções. “A única coisa que se
os arquivos do Governo Civil, a entidade lando sobre táticas, sobre guerras, sobre “Os Comandos devem a Santos e Cas- fazia era, durante os treinos de progressão
do regime que nesse tempo era responsá- movimentação no terreno”, continua Vieira tro, comandante do segundo curso, em no terreno, com uma espingarda pressão
vel por colocar os vistos nos passaportes. Pereira, que haveria de tornar-se o braço- Quibala, a fama que hoje têm”, entende o de ar, ao longe, enfiar um chumbo no rabo
“Nada.” Pesquisou nos arquivos da PIDE e -direito de Dante Vacchi no Ultramar. Já coronel. “Foi ele que criou uma instrução, de quem se levantasse”, recorda. Os mili-
“nada”. Percorreu os arquivos do Ministério de pistola à cintura – uma arma cedida criou uma mística, criou uma motivação, tares deviam tornar-se peritos em ganhar
da Defesa, procurou pistas na Torre do pelo Exército –, o jornalista “chegou a fa- uma doutrina, ele é que é de facto o pai”, terreno ao inimigo sem serem detetados
Tombo, foi à Câmara Municipal do Porto zer demonstrações com soldados” para defende com convicção. pelos guerrilheiros.
para consultar revistas angolanas em busca exemplificar como a preparação daqueles Vieira Pereira contrapõe, assertivo: Em Zemba, quando se formaliza a instru-
de trabalhos do jornalista. Zero. homens podia ser melhorada. “Dante Vacchi é o pai dos Comandos.” O ção da nova tropa especial, formaram-se
E é garantido que Vacchi esteve em “O comandante foi sensível às sugestões miliciano sustenta a sua opinião no con- seis grupos com homens vindos de seis
Lisboa, antes e depois da sua incursão de Dante Vacchi, ao ponto de o italiano tributo que o italiano deu às tropas esta- batalhões diferentes. Cada grupo tinha 40
por Angola. O nome do italiano aparece, sugerir que, se o comandante quisesse, cionadas em Nóqui, com uma mudança militares. O primeiro curso de comandos
juntamente com outros jornalistas, numa ele estava disponível para dar-lhes uma de mentalidade que contrastou com o que acabou no final de novembro e os homens
entrevista a Marcelo Caetano quando este instrução à imagem daquilo que tinha visto existia até essa altura. O protagonismo regressaram aos respetivos batalhões, onde
substituiu António de Oliveira Salazar na nos paraquedistas franceses ou na Legião do jornalista na preparação do curso de começaram a atuar como grupos especiais
liderança do Governo, em 1968. O trabalho Estrangeira”, explica António Neves ao Zemba sugere que Vacchi teve mais do de intervenção imediata.
foi publicado na revista Flama em outubro. Observador. que um papel acessório na criação desta António Neves refere que, mesmo antes
Ainda antes desse trabalho, em 1961, o jor- Já com a autorização do comandante tropa especial. do Natal (a 21 de dezembro de 1962), Dan-
nalista assinou um artigo na revista Notícia de batalhão, Vacchi reuniria 40 homens, te Vacchi – que, pela sua atitude já tinha
com uma reportagem sobre o “palacete divididos em dois grupos, para começar entrado em choque com o rigor militar
senhoril” em que vivia Salazar. Eram raras a revolucionar a formação dos militares
Entrar no gabinete dos oficiais de Zemba e, por isso, estava
as vezes em que o ditador abria as portas portugueses. “Aqueles dois grupos pre- do general sem pedir de volta a Luanda – voou com o ajudante
da sua casa a um jornalista (em 1952, por pararam-se bem, havia treino físico, muita licença de campo do general Deslandes até Nóqui.
exemplo, Christine Garnier tinha escrito carreira de tiro, aprenderam a progredir na Entregaram pessoalmente os crachás e
Férias com Salazar). Mas, nos registos mata, a andar em silêncio.” Era o próprio Com a passagem dos meses, o miliciano o cartão de comando aos militares dos
oficiais do antigo regime, garante Antó- jornalista quem, no terreno, com o apoio Vieira Pereira tornou-se próximo do ita- dois grupos iniciais formados no início
nio Neves, se alguma informação havia dos oficiais, dava orientações sobre como a liano, ainda em Nóqui. Ao Observador, o desse ano em Nóqui, além das divisas com
sobre a presença de Vacchi em Portugal, instrução devia ser feita. Além disso, man- antigo militar lembra que “ninguém lhe a inscrição da tropa especial. Mais tarde,
ela desapareceu. dou arrancar as proteções dos jipes usados punha travão” e conta um episódio que os homens de Zemba também receberiam
“Em 1970, quando entrei para o curso de pelas tropas portuguesas, que impediam ilustra a liberdade, pouco comum, com que as insígnias.
Comandos, ainda ouvi falar de um jornalis- os militares de saltar rapidamente quando o italiano se movia entre as altas patentes O coronel Folques recorda-se de só ter
ta italiano que fazia mil e umas coisas, que apanhados numa emboscada. militares em Angola. “Ele entrava pelo recebido esse material mais tarde. “Só fo-
tinha sido membro da Legião Estrangeira Era um contraste com a formação que quartel-general adentro, vestido à civil, mos considerados comandos depois de
e combatido na Indochina e na Argélia”, tinham recebido em Portugal antes de em- sem passar cartão ao sentinela, chegava sairmos de Angola. Eu recebi uma carta a
recorda ao Observador o tenente-coronel barcarem para Angola. E os resultados ao gabinete do general, batia à porta – ‘oh dizer que tinha passado no curso de Co-
Neves. “Mas isso era o que se dizia, porque foram imediatos. “Em meia dúzia de dias, DR
senhor general’ – e entrava.” Além disso, mandos, mandaram-me um crachá borda-
ninguém o provou.” Vacchi transformou por completo aqueles “tinha à-vontade suficiente para chegar ao do, já em 1964.”
Aos militares em Nóqui, o jornalista dois grupos, que já se diferenciavam bem quartel-general, dizer que queria ir para Nos anos seguintes, foram criados e
apresentava-se como ex-militar com ex- do resto do pessoal. Começaram a ir para a que ele tinha bastantes ideias que, para organizado e estruturado, para preparar Zemba e arranjar um avião”. extintos mais dois campos de treino de
periência de combate na Indochina. Com mata, foram alvo de emboscadas e a reação nós, mais tarde, seriam consideradas ele- uma tropa especial com características Em meados de 1962, Vieira Pereira con- comandos em Angola. E só em 1965 foi ins-
base na sua investigação, António Neves
conseguiu confirmar que Vacchi esteve no
já era completamente diferente”, assinala
António Neves.
mentares.”
No fundo, “naquele tempo, tudo o que
próprias para andar naquele teatro ope-
racional”, indica Bettencourt Rodrigues.
● Dante Vacchi está ao centro, em cima, com uma tinuava em Luanda a preparar o primeiro
curso da tropa especial, reunido com o
talado, em Luanda, o Centro de Instrução
de Comandos, de onde passariam a sair
Líbano nos primeiros anos de confronto viesse para melhorar a situação era apro- Mas isso seria mais tarde. máquina fotográfica ao peito. Anne Gauzes, a sua mis- capitão Marquilhas e com o futuro coman- regularmente novos militares formados.
entre muçulmanos e cristãos. Também veitado”. Mais do que consentidos, os re- No imediato, o Exército tentou aprovei- dante Jasmins de Freitas no quartel-gene-
Carta branca teriosa companheira, surge à esquerda na imagem.
tinha assistido a confrontos militares no
da hierarquia para
sultados conseguidos por Vacchi foram tar os ensinamentos de Vacchi. Numa “con- ral. “Íamos fazendo desenhos sobre como O desaparecimento
Médio Oriente e na Indochina. “Mas sem- apreciados pela hierarquia. De tal forma versa de duas horas, muito interessante” ia ser o campo de instrução, apontávamos
pre como repórter, como correspondente, dar instrução que, em meados de maio, cerca de um mês – escreveu Bettencourt Rodrigues no seu a nordeste de Luanda. A instalação do cam- dar instrução no campo de Comandos se o que seria preciso.” do misterioso italiano
nunca como militar.” A experiência militar e meio depois de o jornalista ter chegado diário, registando o encontro –, o italiano po de treino – o centro de instrução 21 – você for.’ Logo eu, que nunca me tinha Foi também nessas reuniões que nasceu Nesta fase, Dante Vacchi voltaria a evapo-
de Dante Vacchi começara muito antes, As informações sobre a intervenção de ao norte de Angola, e já depois de oficiais foi sondado pelo tenente-coronel sobre foi decretada pelo general Venâncio Des- voluntariado para nada na tropa... Mas a primeira versão do emblema que os co- rar-se. António Neves enviou dezenas de
quando se voluntariou para o Exército Dante Vacchi chegaram a Luanda. Os portugueses visitarem o acampamento a sua disponibilidade para dar formação landes, governador de Angola e comandan- lá pensei que entre fazer o campo de ins- mandos usam atualmente: o capacete de cartas e emails para tudo o que havia de
italiano com apenas 15 anos. relatórios sobre a situação dos militares de Nóqui, o comandante do batalhão foi às tropas portuguesas. Vacchi avançaria te das Forças Armadas no país. “O Zemba trução e preparar as coisas todas, aquilo aço e a cimitarra (uma espada de lâmina instituições ligação ao italiano. “Escrevi
destacados já referem a intervenção de convocado à capital. E devia levar consigo rapidamente, assinando um contrato com era um descampado, ninguém lá tinha ido ainda dava para passar uns dias bons em curva) brancos sobre um fundo preto, um para a Paris Match, escrevi para o Sin-
“dois grupos de comandos de Nóqui” em o italiano. o Exército onde se estabeleceu o seu salário desde que tinha começado a tropa”, des- Luanda”, diz Vieira Pereira ao Observador. ramo folhado e, em baixo, a divisa, em latim, dicato de Jornalistas Franceses, para a
Dante Vacchi: incursões pelo norte de Angola. Mas as “Houve uma reunião entre o tenente- (ia ser pago em dólares) e as condições creve Vieira Pereira. O capitão Jasmins de Freitas (atualmente “Audaces Fortuna Juvat” (“a sorte protege Associação de Repórteres de Guerra fran-
um jornalista a treinar referências a um jornalista que estava a -coronel Bettencourt Rodrigues, chefe para a colaboração. No regresso de uma viagem a Moçam- com mais de 90 anos), que também tinha os audazes”). O emblema foi desenhado ceses, mas ninguém sabia de nada. E em
Comandos formar um grupo de tropas especiais pa- do Estado-Maior do Quartel-General de bique, para gozar férias ao fim de um ano acabado de regressar de Lisboa, foi nomea- pelo capitão Jasmins de Freitas, porque Itália passou-se exatamente a mesma coisa:
reciam não levantar ondas. É preciso ter Angola, e o comandante de batalhão, que A paternidade dos de comissão em Angola, o oficial miliciano do para comandar o centro. Para dar a ins- “ele tinha mais jeito”, diz Vieira Pereira. escrevi para as revistas onde ele publicou
O antigo miliciano do norte de Itália tam- em mente o “contexto” em que a guerra se lhe descreveu tudo o que se passava” no recebeu uma convocatória para se apre- trução, foram convocados alguns oficiais: Nessas semanas de preparação do curso, fotografias ou artigos e não sabem de nada.
bém acompanhou de perto a preparação fazia, ressalva António Neves: “Não havia acampamento a norte, conta o investiga- Comandos contestada sentar de imediato em Luanda. “Quando os então capitães Marquilhas e Ramalho, Dante Vacchi pouco aparecia em Luanda. Escrevi para a editora [que publicou as
de militares de elite franceses. E essa nada. Os próprios homens que trabalharam dor António Neves. “O futuro passaria por O primeiro curso oficial de Comandos foi lá cheguei, um oficial do quartel-general o tenente Caçorino Dias, os alferes Raul Em breve ia começar um curso novo. obras do fotógrafo] e nada. Escrevi para
experiência terá sido fundamental para com ele – e eu já falei com muitos – dizem criar um centro de instrução, devidamente dado em Zemba, cerca de 300 quilómetros disse-me: ‘O Dante Vacchi diz que só vai Folques, Vasco Ramires, César Rodrigues, o Candidatava-se quem queria, mas só seria a câmara municipal da terra dele, para os
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ele tivesse ligações a um qualquer serviço impressionar o comandante do batalhão próprio Vieira Pereira e os alferes-médicos aceite quem estivesse em boas condições
secreto, mas não tenho nenhuma evidência português em Nóqui. Quando chegou ao Resina Rodrigues e Freire Agualusa. O re- físicas. Já no anúncio do Exército se per-
disso. Nem aqui nem lá, em Angola”, admite norte de Angola, italiano, francês, inglês, pórter Dante Vacchi completava o grupo, cebia que o curso seria duro, com treinos
António Neves. alemão e árabe eram línguas que domi- como adjunto do comandante de campo. em que era usado fogo real e em que se
nava. Mas não o português. Uma barreira Rodeado por militares sem qualquer expe- apostava no contacto direto com o inimigo
que ultrapassou em poucas semanas. “Os riência de forças especiais, cabia ao italiano ainda durante a formação.
O homem fantasma palavrões que nós dizíamos, ele dizia-os orientar a instrução. A instrução começou no início do verão
Antes de saber como Vacchi acabou a for- também, em português da tropa, estivesse Foi essa a versão da história a que An- de 1962, com a presença de um dos dois
mar os Comandos, há outro ponto sem o general ou quem fosse”, conta Vieira tónio Neves chegou na sua investigação. grupos formados por Vacchi em Nóqui,
resposta: como foi que o italiano conseguiu Pereira. Mas, ao Observador, o coronel Raul Fol- para “servir de exemplo” aos novos re-
autorização para acompanhar os militares A aproximação aos militares portugue- ques apresenta outra leitura desse período crutas. António Neves conta que começou
portugueses destacados no norte de Ango- ses foi quase imediata: “A imagem mais inicial. “Ele não estava em permanência nesse tempo a música subitamente ligada
la? Ninguém tem ideia. Nos registos oficiais vincada que tenho dele é a disponibilidade em Zemba, ia e vinha, às vezes ficava dois no máximo, de dia e de noite, sem aviso
permanece um vazio. para nos acompanhar nas operações, du- ou três dias e voltava”, recorda o militar, prévio, acompanhada dos gritos de ordem
António Neves procurou nos arquivos rassem um dia, dois, três dias, dormir em que recusa atribuir a Vacchi a paternidade dos instrutores. “Um dos grandes contribu-
do Secretariado Nacional de Informação qualquer lado como nós dormíamos – em desta força especial. tos que todos reconhecem a Dante Vacchi
– organismo que centralizava a ação de cima de um ribeiro a correr, por exem- “O papel que Dante Vacchi teve foi fun- foi a ação psicológica”, garante António
todos os ministérios de Salazar e tinha mão plo – e comer a mesma ração de combate damental pela sua ideia inovadora, mas Neves. “Era preciso criar nos instruendos
de ferro sobre a imprensa – e deparou-se que nos era distribuída”, lembra o antigo mais fundamental ainda foi o facto de o instabilidade, para que estivessem sempre
com “dezenas e dezenas de referências a oficial miliciano. tenente-coronel Nave ter sido recetivo às prontos para a reação”, refere o tenente-
jornalistas estrangeiros creditados” para Ao mesmo tempo, Vacchi ia ganhando ideias daquele civil, porque se não fosse -coronel, que ainda é uma característica
trabalhar em Portugal (no início da década a “confiança” das chefias militares. Vieira assim aquilo não teria acontecido”, defende dos cursos atuais de Comandos, a par da
de 1960, Angola ainda era uma extensão da Pereira recorda: “Ele era um indivíduo Raul Folques – militar que se inscreveu agressividade desta formação.
metrópole). “Dante Vacchi nunca aparece.” muito expansivo e foi-se familiarizando como formando no curso de Comandos de João Vieira Pereira não tem memória de
Mas a busca do tenente-coronel ainda mal com o meu comandante de batalhão, o Zemba e acabou a dar instrução a outros que esse tipo de práticas tivesse surgido nas
tinha começado. Neves também vasculhou tenente-coronel Almeida Nave. Foram fa- militares. primeiras instruções. “A única coisa que se
os arquivos do Governo Civil, a entidade lando sobre táticas, sobre guerras, sobre “Os Comandos devem a Santos e Cas- fazia era, durante os treinos de progressão
do regime que nesse tempo era responsá- movimentação no terreno”, continua Vieira tro, comandante do segundo curso, em no terreno, com uma espingarda pressão
vel por colocar os vistos nos passaportes. Pereira, que haveria de tornar-se o braço- Quibala, a fama que hoje têm”, entende o de ar, ao longe, enfiar um chumbo no rabo
“Nada.” Pesquisou nos arquivos da PIDE e -direito de Dante Vacchi no Ultramar. Já coronel. “Foi ele que criou uma instrução, de quem se levantasse”, recorda. Os mili-
“nada”. Percorreu os arquivos do Ministério de pistola à cintura – uma arma cedida criou uma mística, criou uma motivação, tares deviam tornar-se peritos em ganhar
da Defesa, procurou pistas na Torre do pelo Exército –, o jornalista “chegou a fa- uma doutrina, ele é que é de facto o pai”, terreno ao inimigo sem serem detetados
Tombo, foi à Câmara Municipal do Porto zer demonstrações com soldados” para defende com convicção. pelos guerrilheiros.
para consultar revistas angolanas em busca exemplificar como a preparação daqueles Vieira Pereira contrapõe, assertivo: Em Zemba, quando se formaliza a instru-
de trabalhos do jornalista. Zero. homens podia ser melhorada. “Dante Vacchi é o pai dos Comandos.” O ção da nova tropa especial, formaram-se
E é garantido que Vacchi esteve em “O comandante foi sensível às sugestões miliciano sustenta a sua opinião no con- seis grupos com homens vindos de seis
Lisboa, antes e depois da sua incursão de Dante Vacchi, ao ponto de o italiano tributo que o italiano deu às tropas esta- batalhões diferentes. Cada grupo tinha 40
por Angola. O nome do italiano aparece, sugerir que, se o comandante quisesse, cionadas em Nóqui, com uma mudança militares. O primeiro curso de comandos
juntamente com outros jornalistas, numa ele estava disponível para dar-lhes uma de mentalidade que contrastou com o que acabou no final de novembro e os homens
entrevista a Marcelo Caetano quando este instrução à imagem daquilo que tinha visto existia até essa altura. O protagonismo regressaram aos respetivos batalhões, onde
substituiu António de Oliveira Salazar na nos paraquedistas franceses ou na Legião do jornalista na preparação do curso de começaram a atuar como grupos especiais
liderança do Governo, em 1968. O trabalho Estrangeira”, explica António Neves ao Zemba sugere que Vacchi teve mais do de intervenção imediata.
foi publicado na revista Flama em outubro. Observador. que um papel acessório na criação desta António Neves refere que, mesmo antes
Ainda antes desse trabalho, em 1961, o jor- Já com a autorização do comandante tropa especial. do Natal (a 21 de dezembro de 1962), Dan-
nalista assinou um artigo na revista Notícia de batalhão, Vacchi reuniria 40 homens, te Vacchi – que, pela sua atitude já tinha
com uma reportagem sobre o “palacete divididos em dois grupos, para começar entrado em choque com o rigor militar
senhoril” em que vivia Salazar. Eram raras a revolucionar a formação dos militares
Entrar no gabinete dos oficiais de Zemba e, por isso, estava
as vezes em que o ditador abria as portas portugueses. “Aqueles dois grupos pre- do general sem pedir de volta a Luanda – voou com o ajudante
da sua casa a um jornalista (em 1952, por pararam-se bem, havia treino físico, muita licença de campo do general Deslandes até Nóqui.
exemplo, Christine Garnier tinha escrito carreira de tiro, aprenderam a progredir na Entregaram pessoalmente os crachás e
Férias com Salazar). Mas, nos registos mata, a andar em silêncio.” Era o próprio Com a passagem dos meses, o miliciano o cartão de comando aos militares dos
oficiais do antigo regime, garante Antó- jornalista quem, no terreno, com o apoio Vieira Pereira tornou-se próximo do ita- dois grupos iniciais formados no início
nio Neves, se alguma informação havia dos oficiais, dava orientações sobre como a liano, ainda em Nóqui. Ao Observador, o desse ano em Nóqui, além das divisas com
sobre a presença de Vacchi em Portugal, instrução devia ser feita. Além disso, man- antigo militar lembra que “ninguém lhe a inscrição da tropa especial. Mais tarde,
ela desapareceu. dou arrancar as proteções dos jipes usados punha travão” e conta um episódio que os homens de Zemba também receberiam
“Em 1970, quando entrei para o curso de pelas tropas portuguesas, que impediam ilustra a liberdade, pouco comum, com que as insígnias.
Comandos, ainda ouvi falar de um jornalis- os militares de saltar rapidamente quando o italiano se movia entre as altas patentes O coronel Folques recorda-se de só ter
ta italiano que fazia mil e umas coisas, que apanhados numa emboscada. militares em Angola. “Ele entrava pelo recebido esse material mais tarde. “Só fo-
tinha sido membro da Legião Estrangeira Era um contraste com a formação que quartel-general adentro, vestido à civil, mos considerados comandos depois de
e combatido na Indochina e na Argélia”, tinham recebido em Portugal antes de em- sem passar cartão ao sentinela, chegava sairmos de Angola. Eu recebi uma carta a
recorda ao Observador o tenente-coronel barcarem para Angola. E os resultados ao gabinete do general, batia à porta – ‘oh dizer que tinha passado no curso de Co-
Neves. “Mas isso era o que se dizia, porque foram imediatos. “Em meia dúzia de dias, DR
senhor general’ – e entrava.” Além disso, mandos, mandaram-me um crachá borda-
ninguém o provou.” Vacchi transformou por completo aqueles “tinha à-vontade suficiente para chegar ao do, já em 1964.”
Aos militares em Nóqui, o jornalista dois grupos, que já se diferenciavam bem quartel-general, dizer que queria ir para Nos anos seguintes, foram criados e
apresentava-se como ex-militar com ex- do resto do pessoal. Começaram a ir para a que ele tinha bastantes ideias que, para organizado e estruturado, para preparar Zemba e arranjar um avião”. extintos mais dois campos de treino de
periência de combate na Indochina. Com mata, foram alvo de emboscadas e a reação nós, mais tarde, seriam consideradas ele- uma tropa especial com características Em meados de 1962, Vieira Pereira con- comandos em Angola. E só em 1965 foi ins-
base na sua investigação, António Neves
conseguiu confirmar que Vacchi esteve no
já era completamente diferente”, assinala
António Neves.
mentares.”
No fundo, “naquele tempo, tudo o que
próprias para andar naquele teatro ope-
racional”, indica Bettencourt Rodrigues.
● Dante Vacchi está ao centro, em cima, com uma tinuava em Luanda a preparar o primeiro
curso da tropa especial, reunido com o
talado, em Luanda, o Centro de Instrução
de Comandos, de onde passariam a sair
Líbano nos primeiros anos de confronto viesse para melhorar a situação era apro- Mas isso seria mais tarde. máquina fotográfica ao peito. Anne Gauzes, a sua mis- capitão Marquilhas e com o futuro coman- regularmente novos militares formados.
entre muçulmanos e cristãos. Também veitado”. Mais do que consentidos, os re- No imediato, o Exército tentou aprovei- dante Jasmins de Freitas no quartel-gene-
Carta branca teriosa companheira, surge à esquerda na imagem.
tinha assistido a confrontos militares no
da hierarquia para
sultados conseguidos por Vacchi foram tar os ensinamentos de Vacchi. Numa “con- ral. “Íamos fazendo desenhos sobre como O desaparecimento
Médio Oriente e na Indochina. “Mas sem- apreciados pela hierarquia. De tal forma versa de duas horas, muito interessante” ia ser o campo de instrução, apontávamos
pre como repórter, como correspondente, dar instrução que, em meados de maio, cerca de um mês – escreveu Bettencourt Rodrigues no seu a nordeste de Luanda. A instalação do cam- dar instrução no campo de Comandos se o que seria preciso.” do misterioso italiano
nunca como militar.” A experiência militar e meio depois de o jornalista ter chegado diário, registando o encontro –, o italiano po de treino – o centro de instrução 21 – você for.’ Logo eu, que nunca me tinha Foi também nessas reuniões que nasceu Nesta fase, Dante Vacchi voltaria a evapo-
de Dante Vacchi começara muito antes, As informações sobre a intervenção de ao norte de Angola, e já depois de oficiais foi sondado pelo tenente-coronel sobre foi decretada pelo general Venâncio Des- voluntariado para nada na tropa... Mas a primeira versão do emblema que os co- rar-se. António Neves enviou dezenas de
quando se voluntariou para o Exército Dante Vacchi chegaram a Luanda. Os portugueses visitarem o acampamento a sua disponibilidade para dar formação landes, governador de Angola e comandan- lá pensei que entre fazer o campo de ins- mandos usam atualmente: o capacete de cartas e emails para tudo o que havia de
italiano com apenas 15 anos. relatórios sobre a situação dos militares de Nóqui, o comandante do batalhão foi às tropas portuguesas. Vacchi avançaria te das Forças Armadas no país. “O Zemba trução e preparar as coisas todas, aquilo aço e a cimitarra (uma espada de lâmina instituições ligação ao italiano. “Escrevi
destacados já referem a intervenção de convocado à capital. E devia levar consigo rapidamente, assinando um contrato com era um descampado, ninguém lá tinha ido ainda dava para passar uns dias bons em curva) brancos sobre um fundo preto, um para a Paris Match, escrevi para o Sin-
“dois grupos de comandos de Nóqui” em o italiano. o Exército onde se estabeleceu o seu salário desde que tinha começado a tropa”, des- Luanda”, diz Vieira Pereira ao Observador. ramo folhado e, em baixo, a divisa, em latim, dicato de Jornalistas Franceses, para a
Dante Vacchi: incursões pelo norte de Angola. Mas as “Houve uma reunião entre o tenente- (ia ser pago em dólares) e as condições creve Vieira Pereira. O capitão Jasmins de Freitas (atualmente “Audaces Fortuna Juvat” (“a sorte protege Associação de Repórteres de Guerra fran-
um jornalista a treinar referências a um jornalista que estava a -coronel Bettencourt Rodrigues, chefe para a colaboração. No regresso de uma viagem a Moçam- com mais de 90 anos), que também tinha os audazes”). O emblema foi desenhado ceses, mas ninguém sabia de nada. E em
Comandos formar um grupo de tropas especiais pa- do Estado-Maior do Quartel-General de bique, para gozar férias ao fim de um ano acabado de regressar de Lisboa, foi nomea- pelo capitão Jasmins de Freitas, porque Itália passou-se exatamente a mesma coisa:
reciam não levantar ondas. É preciso ter Angola, e o comandante de batalhão, que A paternidade dos de comissão em Angola, o oficial miliciano do para comandar o centro. Para dar a ins- “ele tinha mais jeito”, diz Vieira Pereira. escrevi para as revistas onde ele publicou
O antigo miliciano do norte de Itália tam- em mente o “contexto” em que a guerra se lhe descreveu tudo o que se passava” no recebeu uma convocatória para se apre- trução, foram convocados alguns oficiais: Nessas semanas de preparação do curso, fotografias ou artigos e não sabem de nada.
bém acompanhou de perto a preparação fazia, ressalva António Neves: “Não havia acampamento a norte, conta o investiga- Comandos contestada sentar de imediato em Luanda. “Quando os então capitães Marquilhas e Ramalho, Dante Vacchi pouco aparecia em Luanda. Escrevi para a editora [que publicou as
de militares de elite franceses. E essa nada. Os próprios homens que trabalharam dor António Neves. “O futuro passaria por O primeiro curso oficial de Comandos foi lá cheguei, um oficial do quartel-general o tenente Caçorino Dias, os alferes Raul Em breve ia começar um curso novo. obras do fotógrafo] e nada. Escrevi para
experiência terá sido fundamental para com ele – e eu já falei com muitos – dizem criar um centro de instrução, devidamente dado em Zemba, cerca de 300 quilómetros disse-me: ‘O Dante Vacchi diz que só vai Folques, Vasco Ramires, César Rodrigues, o Candidatava-se quem queria, mas só seria a câmara municipal da terra dele, para os
44 DANTE VACCHI OPINIÃO 45
Helena Matos
Onde andam os amigos de Sócrates, o jornalista ofegante e os esfomeados? Circulam
por aí porque em Portugal, as espécies, politicamente falando, não evoluem, circulam.
Em Portugal as espécies não evo- zoologicamente falando interessantíssimo, Certamente por conselho do seu pneu- uma comentadora consensual quando, já
luem, circulam. Ou mais correctamente pois estas pessoas, que de si mesmas, entre mologista, o jornalista ofegantemente in- derrotada, passou a ocupar boa parte das
dizendo, hoje estão num grupo, amanhã 2005 e 2011, declaram não ter percebido dignado transfigurou-se no jornalista ora suas intervenções a criticar Passos Coelho.
regressam àquele em que estiveram ante- nada do que se passava diante dos seus venerando, ora militante. Nada o perturba. Não só nunca mais foi ridicularizada como,
riormente e em cada uma dessas passagens olhos, estão agora, muitas delas, no grupo O jornalista ofegante deixou de perguntar. pasme-se, deixou de ser velha! Voltará a
retornam ao que já foram como se nunca dos clarividentes, perspicazes e argutos Agora anuncia, sobretudo anuncia tudo sê-lo mal critique António Costa. Note-se
tivessem deixado de o ser. Vivem o presente que integram e apoiam o actual governo. aquilo que de maravilhoso o Governo vai que este grupo só existe no ecossistema
sem passado. Dessa grande circulação das Fazem-no com idêntico proselitismo e obrigar as empresas a fazer: ora são as PSD. Encontrar um opositor ao líder do
espécies entre o último semestre de 2015 e presume-se que dotados da mesma dis- penalizações para as empresas que contra- PS em funções em qualquer jornal, revista,
o momento presente temos a destacar os ponibilidade do esqueleto para passarem tam precários; ora as quotas para obrigar rádio, televisão, boletim ou papel volante
DR
seguinte mutantes. Ou reencarnados numa a novo estado quando necessário. empresas cotadas em bolsa a incluir 33,3% tornou-se, com Sócrates e António Costa,
● O grupo de Nóqui, primeiros militares portugueses treinados por Vacchi, são a génese dos Comandos. perspectiva mais teológica: de mulheres nos seus quadros, a que se uma tarefa, biologicamente falando, quase
Os esfomeados, junta o anúncio da obrigatoriedade de impossível.
serviços do turismo, cultura da terra dele e de laço?’ De laço já podia entrar”, recorda que encontrou nas mulheres com que se no Exército italiano. Mas a experiência “apresentação das estatísticas das dispari-
Os amigos de Sócrates os indignados
de várias cidades ali à volta, a pedir infor- o antigo miliciano. “Ele baixou-se, desaper- cruzou em Angola; e, em 1967, um livro de guerra mais marcante viria mais tar-
e os desistentes
dades salariais de género, com a indicação Espécie recentemente
mações sobre ele. Fui à internet e tirei uma tou os sapatos, tirou um atacador, fez-lhe sobre as margens do Porto vinhateiro, de quando Vacchi respondeu ao apelo Eram aos milhares. Todos lhe telefona- das respetivas médias”.
lista de todas as paróquias da província de um laço que pôs ao pescoço e perguntou: chamado Porto. de Mussolini e formou uma milícia para vam. Todos o abraçavam. Contavam-nos Entre 2011 e 2015 estava um em cada esqui- Todos os dias o jornalista outrora ofe- descoberta
Verona, escrevi a todos os padres e nada, ‘E agora, já está?’ Passou pelo porteiro e Em 1967 seria também publicada, na combater a presença das tropas aliadas as graças – e tudo nele tinha graça! – re- na. Aliás, a fome estava por todo o lado. Se gante de indignação anuncia irradiando A Austrália tem o ornitorrinco, nas flores-
nada, nada.” As respostas – porque houve entrou.” revista portuguesa Eva do Natal, uma re- (norte-americanos, britânicos e soviéti- verenciavam-no, achavam que com ele o o desemprego baixava era porque os desis- felicidade que “o Governo quer” – a expres- tas do Bornéu volta e meia descobre-se um
quase sempre resposta – nunca trouxeram “Encontrámo-nos muitas vezes em Lis- portagem sobre a pesca do bacalhau, que cos) no sul de Itália. O grupo comandado PS era imbatível. Não havia opositor que, tentes já nem procuravam trabalho, pois são “o Governo quer” é agora uma espécie ser de aspecto bizarro que logo é anuncia-
pistas à investigação do tenente-coronel. boa”, recorda Vieira Pereira. Com o tempo, Vacchi fez em conjunto com a companheira pelo italiano ficou conhecido pelo nome afiançavam os amigos de Sócrates que eram não se conseguiam arrastar, mergulhados de salvo-conduto –, e quando àquilo que do como espécie até agora desconhecida
“Alguma coisa tinha de haver, mas nada, o jornalista italiano e o oficial miliciano de viagem a Angola. O casal embarcou “Os sombras”. por assim dizer a quase totalidade do país na depressão e falta de vitaminas. Diante “o Governo quer” se junta a expressão mas que afinal existe há milhões de anos e
nem aqui nem lá fora”, diz António Neves. – que já tinha deixado a realidade militar no navio-hospital Gil Eanes, que prestava “Eu sei isto porque, mais tarde, no fim falante, não fosse esmagado pela superio- de cada microfone estava um indignado. “obrigar as empresas”, os amanhãs cantam, que mal foi descoberta já está em perigo de
Nessa busca incessante por informações e estava a tirar o curso de Direito na Clás- apoio à frota bacalhoeira, e esteve nos da guerra [a Segunda Guerra Mundial], ridade argumentativa de Sócrates. Dos Agora, os esfomeados reconverteram- as notícias rebrilham e Portugal avança. extinção. Nós, para lá dos ovos dos dinos-
sobre o homem que levou o Exército a criar sica de Lisboa – mantiveram uma relação mares do norte a fazer uma reportagem ele foi preso e julgado em tribunal”, ex- membros dos seus governos jamais vinha -se em dinamizadores de programas para sauros na Lourinhã e do menino do Lape-
o Regimento de Comandos, António Neves de “amizade”, ainda que o contacto fosse que não agradou ao regime, por trazer a plica António Neves. Condenado a pena uma palavra de discordância em relação combater os erros alimentares. Os indig- do, que pôs os arqueólogos literalmente à
chegou apenas a uma prova oficial clara sendo cada vez menos regular. Mas mesmo público as difíceis condições de trabalho – de prisão, Vacchi beneficiou de uma am- ao primeiro-ministro. nados esperam por ordens para saber se
Os dirigentes do PSD chapada por causa dos cruzamentos entre
de que as autoridades civis portuguesas de Vieira Pereira é difícil obter mais do “a escravatura”, refere Vieira Pereira – em nistia para cumprir apenas alguns meses Todo este numeroso e tonitruante gru- se devem indignar um poucochinho, e se que acham que este o Cro-Magnon e o Homo sapiens neander-
sabiam da sua existência. que algumas informações vagas sobre a que se trabalhava no alto-mar. da pena. po desapareceu. Nem os dinossauros se já chegou a hora de irem buscar outra vez partido deve ser uma talensis, não tínhamos nada de relevante
Num documento da PIDE, com data de segunda passagem de Dante Vacchi por Há ainda um outro livro, Os Jesuítas Só depois começou a sua carreira como sumiram de forma tão abrupta e defini- as bandeiras negras, e os desistentes estão até que apareceu o presidente do povo.
1963, o chefe da secção da cidade angolana Lisboa. “Ele vivia cá, não sei do que vivia, em Liberdade, publicado em França e na jornalista/fotógrafo, na mesma altura em tiva. Quanto aos governos que Sócrates hiperactivos de tanto optimismo. sucursal do PS O presidente do povo é um ser que nasceu
de Carmona escreveu ao Comando-Geral a mas estava no último andar de um belís- Alemanha muito mais tarde, já em 1990. que se casou com uma franco-marroquina, chefiou, face à desresponsabilização geral A banhos devem andar a senhora cor- Não há futuro mais risonho do que inte- nas televisões, viveu nelas e prolonga o seu
dizer: “O jornalista Cesare Dante Vacchi, de simo prédio, do lado direito de quem está E, como prova do perfil eclético do italia- de quem teve dois filhos – um rapaz e uma dos seus membros, quase somos levados a -de-rosa mais a outra senhora de bege que grar este grupo. Qualquer líder do PSD mandato nelas. Correcto seria chamar-lhe
nacionalidade italiana, e a jornalista Anne virado para a Fonte Luminosa.” no, sobram duas reportagens. Um desses rapariga. Mas essas relações familiares não acreditar que esses governos foram apenas fez uma inolvidável performance do filho que tenha sofrido nessa qualidade uma presidente dos directos televisivos, mas
Dominique, de nacionalidade francesa, De política, nunca falavam. “Ele não di- trabalhos, publicado na New Look fran- perduraram. “Foi considerado persona non compostos por Sócrates, que numas horas emigrado durante a última campanha forte derrota, ou que tenha conduzido o como as televisões tendem a confundir o
solicitam uma prorrogação do visto de zia mal nem dizia bem [do Estado Novo], cesa, fala sobre uma expedição ao Tibete. grata pela família, pelas ligações duran- era primeiro-ministro, noutras ministro eleitoral. Todas estas pessoas trocaram o seu partido à irrelevância, torna-se uma povo com as audiência, o presidente do
permanência por mais de 30 dias. Aguardo não falávamos disso da mesma maneira Dante Vacchi acompanhou uma equipa de te a guerra aos fascistas. Toda a família, com pasta, noutras sem pasta, noutras grupo etnográfico do neo-realismo pela figura incontornável, um poço de saber povo é a expressão vulgarizada. Confundi-
instruções”, retrata, de memória, António que não falávamos da guerra”, diz Vieira cientistas que percorreu o país à procura incluindo os pais de Vacchi, mudou-se da secretário de Estado… Sócrates tinha in- associação cultural das maravilhas do go- e, claro, um comentador de referência. dos devem andar Eanes, Sampaio e Cavaco
Neves. “Este documento atesta que estes Pereira. A vida pessoal também não era do Ieti, o Abominável Homem das Neves. aldeia natal para uma vila.” António Neves teresse pessoal num determinado negócio verno das esquerdas. Desempenham ambos Se a par disso reconhecer a superiori- Silva, todos eles devidamente eleitos pelo
dois indivíduos estavam lá”, sublinha o assunto entre os dois, nos espaçados en- O outro retrata uma travessia do deserto conta que todos os familiares do italiano, ou contacto internacional? Numa espécie os papéis com empenho e brio. dade do líder do PS em funções face a povo, mas que não são nem foram (feliz-
tenente-coronel. Foi a única referência contros na capital. Uma eventual ligação do Saara, feita por Vacchi numa scooter com exceção de uma irmã (que terá mais de desdobramento pessoano, Sócrates pri- quem lhe sucedeu na liderança do PSD mente para eles e para nós!) considerados
explícita que encontrou em três anos de de Vacchi aos serviços secretos é assunto italiana da mítica marca Vespa. de 90 anos), já morreram. O único sobrinho meiro-ministro tratava com o seu heteró- (invariavelmente uma pessoa sem ideias, presidentes do povo. A evolução do nosso
investigação. nebuloso. Aqui, Vieira Pereira limita-se a de quem conseguiu o contacto não sabe nimo ministro da tutela dessa negociação.
O jornalista ofegante alma e consciência social), então está no endémico “presidente do povo” é, por en-
Uma noite, em Luanda, Dante Vacchi e referir a ligação do italiano às milícias do nada do tio. Sócrates estava interessado num apoio a O pobre não aguentava mais. Era a passa- Olimpo mediático. quanto, um enigma, mas o ecossistema à
Vieira Pereira foram à boîte do hotel “mais fascismo de Mussolini.
Comandante de Cesare Dante Vacchi morreu em 1994, determinada empresa? Pois ele Sócrates da forte a acompanhar as manifestações Podem até acontecer milagres. Por exem- sua volta começa a apresentar sinais de
luxuoso” da cidade. “Eu ia fardado, ele ia Do percurso do jornalista, ficaram, ain- milícias na Itália em Itália. tratava de tudo consigo mesmo. Aliás, a dos esfomeados, os acampamentos dos plo, Manuela Ferreira Leite, pessoa que forte degradação.
com umas calcinhas e uma camisa. Andar da, algumas obras assinadas por Cesare ocupada fazer fé na desresponsabilização presente, indignados, o olhar faiscante do senhor como se sabe era “a velha” quando debatia
de gravata, naquela altura, era uma coisa Dante Vacchi, em conjunto com Anne Pedro Rainho é jornalista da secção o conselho de ministros era Sócrates mais Nogueira. Os directos minuto a minuto com Sócrates, o qual claramente a esmaga- Helena Matos é colunista do Observador,
essencial. À entrada, dizem-lhe que não Gauze. Em Portugal foram três livros: Filho de uma professora primária e de de Política do Observador. As guerras de Sócrates e só Sócrates. sempre à espera que fosse aquele o dia va nos debates, nomeadamente naqueles faz pesquisa histórica para programas de
pode entrar. ‘Não posso entrar porquê?’, Angola 61-63, um álbum fotográfico de um eletricista dos caminhos de ferro ita- guerrilha que habitualmente costuma cobrir Seja como for, ninguém achou nada es- da invasão do Parlamento, da queda do em que a dita velha lhe perguntava, face ao televisão e rádio, e é autora de vários livros, entre
perguntou Vacchi ao porteiro. ‘Porque não militares; Penteados de Angola, preci- lianos, Dante Vacchi nasceu em 1925. Aos são do género metafórico, nos corredores da tranho, ninguém percebeu nada. Só falta governo. A denúncia ininterrupta das ne- anúncio de estrambólicos investimentos, os quais “Os Filhos do Zip Zip - Portugal nos
tem gravata’, respondeu-lhe o porteiro. ‘E samente com imagens dos penteados 15 anos, apresentava-se como voluntário Assembleia da República. dizer que foram todos enganados. O caso é gociações dos bastidores. “onde é que está o dinheiro?”, tornou-se Anos 70”.
44 DANTE VACCHI OPINIÃO 45
Helena Matos
Onde andam os amigos de Sócrates, o jornalista ofegante e os esfomeados? Circulam
por aí porque em Portugal, as espécies, politicamente falando, não evoluem, circulam.
Em Portugal as espécies não evo- zoologicamente falando interessantíssimo, Certamente por conselho do seu pneu- uma comentadora consensual quando, já
luem, circulam. Ou mais correctamente pois estas pessoas, que de si mesmas, entre mologista, o jornalista ofegantemente in- derrotada, passou a ocupar boa parte das
dizendo, hoje estão num grupo, amanhã 2005 e 2011, declaram não ter percebido dignado transfigurou-se no jornalista ora suas intervenções a criticar Passos Coelho.
regressam àquele em que estiveram ante- nada do que se passava diante dos seus venerando, ora militante. Nada o perturba. Não só nunca mais foi ridicularizada como,
riormente e em cada uma dessas passagens olhos, estão agora, muitas delas, no grupo O jornalista ofegante deixou de perguntar. pasme-se, deixou de ser velha! Voltará a
retornam ao que já foram como se nunca dos clarividentes, perspicazes e argutos Agora anuncia, sobretudo anuncia tudo sê-lo mal critique António Costa. Note-se
tivessem deixado de o ser. Vivem o presente que integram e apoiam o actual governo. aquilo que de maravilhoso o Governo vai que este grupo só existe no ecossistema
sem passado. Dessa grande circulação das Fazem-no com idêntico proselitismo e obrigar as empresas a fazer: ora são as PSD. Encontrar um opositor ao líder do
espécies entre o último semestre de 2015 e presume-se que dotados da mesma dis- penalizações para as empresas que contra- PS em funções em qualquer jornal, revista,
o momento presente temos a destacar os ponibilidade do esqueleto para passarem tam precários; ora as quotas para obrigar rádio, televisão, boletim ou papel volante
DR
seguinte mutantes. Ou reencarnados numa a novo estado quando necessário. empresas cotadas em bolsa a incluir 33,3% tornou-se, com Sócrates e António Costa,
● O grupo de Nóqui, primeiros militares portugueses treinados por Vacchi, são a génese dos Comandos. perspectiva mais teológica: de mulheres nos seus quadros, a que se uma tarefa, biologicamente falando, quase
Os esfomeados, junta o anúncio da obrigatoriedade de impossível.
serviços do turismo, cultura da terra dele e de laço?’ De laço já podia entrar”, recorda que encontrou nas mulheres com que se no Exército italiano. Mas a experiência “apresentação das estatísticas das dispari-
Os amigos de Sócrates os indignados
de várias cidades ali à volta, a pedir infor- o antigo miliciano. “Ele baixou-se, desaper- cruzou em Angola; e, em 1967, um livro de guerra mais marcante viria mais tar-
e os desistentes
dades salariais de género, com a indicação Espécie recentemente
mações sobre ele. Fui à internet e tirei uma tou os sapatos, tirou um atacador, fez-lhe sobre as margens do Porto vinhateiro, de quando Vacchi respondeu ao apelo Eram aos milhares. Todos lhe telefona- das respetivas médias”.
lista de todas as paróquias da província de um laço que pôs ao pescoço e perguntou: chamado Porto. de Mussolini e formou uma milícia para vam. Todos o abraçavam. Contavam-nos Entre 2011 e 2015 estava um em cada esqui- Todos os dias o jornalista outrora ofe- descoberta
Verona, escrevi a todos os padres e nada, ‘E agora, já está?’ Passou pelo porteiro e Em 1967 seria também publicada, na combater a presença das tropas aliadas as graças – e tudo nele tinha graça! – re- na. Aliás, a fome estava por todo o lado. Se gante de indignação anuncia irradiando A Austrália tem o ornitorrinco, nas flores-
nada, nada.” As respostas – porque houve entrou.” revista portuguesa Eva do Natal, uma re- (norte-americanos, britânicos e soviéti- verenciavam-no, achavam que com ele o o desemprego baixava era porque os desis- felicidade que “o Governo quer” – a expres- tas do Bornéu volta e meia descobre-se um
quase sempre resposta – nunca trouxeram “Encontrámo-nos muitas vezes em Lis- portagem sobre a pesca do bacalhau, que cos) no sul de Itália. O grupo comandado PS era imbatível. Não havia opositor que, tentes já nem procuravam trabalho, pois são “o Governo quer” é agora uma espécie ser de aspecto bizarro que logo é anuncia-
pistas à investigação do tenente-coronel. boa”, recorda Vieira Pereira. Com o tempo, Vacchi fez em conjunto com a companheira pelo italiano ficou conhecido pelo nome afiançavam os amigos de Sócrates que eram não se conseguiam arrastar, mergulhados de salvo-conduto –, e quando àquilo que do como espécie até agora desconhecida
“Alguma coisa tinha de haver, mas nada, o jornalista italiano e o oficial miliciano de viagem a Angola. O casal embarcou “Os sombras”. por assim dizer a quase totalidade do país na depressão e falta de vitaminas. Diante “o Governo quer” se junta a expressão mas que afinal existe há milhões de anos e
nem aqui nem lá fora”, diz António Neves. – que já tinha deixado a realidade militar no navio-hospital Gil Eanes, que prestava “Eu sei isto porque, mais tarde, no fim falante, não fosse esmagado pela superio- de cada microfone estava um indignado. “obrigar as empresas”, os amanhãs cantam, que mal foi descoberta já está em perigo de
Nessa busca incessante por informações e estava a tirar o curso de Direito na Clás- apoio à frota bacalhoeira, e esteve nos da guerra [a Segunda Guerra Mundial], ridade argumentativa de Sócrates. Dos Agora, os esfomeados reconverteram- as notícias rebrilham e Portugal avança. extinção. Nós, para lá dos ovos dos dinos-
sobre o homem que levou o Exército a criar sica de Lisboa – mantiveram uma relação mares do norte a fazer uma reportagem ele foi preso e julgado em tribunal”, ex- membros dos seus governos jamais vinha -se em dinamizadores de programas para sauros na Lourinhã e do menino do Lape-
o Regimento de Comandos, António Neves de “amizade”, ainda que o contacto fosse que não agradou ao regime, por trazer a plica António Neves. Condenado a pena uma palavra de discordância em relação combater os erros alimentares. Os indig- do, que pôs os arqueólogos literalmente à
chegou apenas a uma prova oficial clara sendo cada vez menos regular. Mas mesmo público as difíceis condições de trabalho – de prisão, Vacchi beneficiou de uma am- ao primeiro-ministro. nados esperam por ordens para saber se
Os dirigentes do PSD chapada por causa dos cruzamentos entre
de que as autoridades civis portuguesas de Vieira Pereira é difícil obter mais do “a escravatura”, refere Vieira Pereira – em nistia para cumprir apenas alguns meses Todo este numeroso e tonitruante gru- se devem indignar um poucochinho, e se que acham que este o Cro-Magnon e o Homo sapiens neander-
sabiam da sua existência. que algumas informações vagas sobre a que se trabalhava no alto-mar. da pena. po desapareceu. Nem os dinossauros se já chegou a hora de irem buscar outra vez partido deve ser uma talensis, não tínhamos nada de relevante
Num documento da PIDE, com data de segunda passagem de Dante Vacchi por Há ainda um outro livro, Os Jesuítas Só depois começou a sua carreira como sumiram de forma tão abrupta e defini- as bandeiras negras, e os desistentes estão até que apareceu o presidente do povo.
1963, o chefe da secção da cidade angolana Lisboa. “Ele vivia cá, não sei do que vivia, em Liberdade, publicado em França e na jornalista/fotógrafo, na mesma altura em tiva. Quanto aos governos que Sócrates hiperactivos de tanto optimismo. sucursal do PS O presidente do povo é um ser que nasceu
de Carmona escreveu ao Comando-Geral a mas estava no último andar de um belís- Alemanha muito mais tarde, já em 1990. que se casou com uma franco-marroquina, chefiou, face à desresponsabilização geral A banhos devem andar a senhora cor- Não há futuro mais risonho do que inte- nas televisões, viveu nelas e prolonga o seu
dizer: “O jornalista Cesare Dante Vacchi, de simo prédio, do lado direito de quem está E, como prova do perfil eclético do italia- de quem teve dois filhos – um rapaz e uma dos seus membros, quase somos levados a -de-rosa mais a outra senhora de bege que grar este grupo. Qualquer líder do PSD mandato nelas. Correcto seria chamar-lhe
nacionalidade italiana, e a jornalista Anne virado para a Fonte Luminosa.” no, sobram duas reportagens. Um desses rapariga. Mas essas relações familiares não acreditar que esses governos foram apenas fez uma inolvidável performance do filho que tenha sofrido nessa qualidade uma presidente dos directos televisivos, mas
Dominique, de nacionalidade francesa, De política, nunca falavam. “Ele não di- trabalhos, publicado na New Look fran- perduraram. “Foi considerado persona non compostos por Sócrates, que numas horas emigrado durante a última campanha forte derrota, ou que tenha conduzido o como as televisões tendem a confundir o
solicitam uma prorrogação do visto de zia mal nem dizia bem [do Estado Novo], cesa, fala sobre uma expedição ao Tibete. grata pela família, pelas ligações duran- era primeiro-ministro, noutras ministro eleitoral. Todas estas pessoas trocaram o seu partido à irrelevância, torna-se uma povo com as audiência, o presidente do
permanência por mais de 30 dias. Aguardo não falávamos disso da mesma maneira Dante Vacchi acompanhou uma equipa de te a guerra aos fascistas. Toda a família, com pasta, noutras sem pasta, noutras grupo etnográfico do neo-realismo pela figura incontornável, um poço de saber povo é a expressão vulgarizada. Confundi-
instruções”, retrata, de memória, António que não falávamos da guerra”, diz Vieira cientistas que percorreu o país à procura incluindo os pais de Vacchi, mudou-se da secretário de Estado… Sócrates tinha in- associação cultural das maravilhas do go- e, claro, um comentador de referência. dos devem andar Eanes, Sampaio e Cavaco
Neves. “Este documento atesta que estes Pereira. A vida pessoal também não era do Ieti, o Abominável Homem das Neves. aldeia natal para uma vila.” António Neves teresse pessoal num determinado negócio verno das esquerdas. Desempenham ambos Se a par disso reconhecer a superiori- Silva, todos eles devidamente eleitos pelo
dois indivíduos estavam lá”, sublinha o assunto entre os dois, nos espaçados en- O outro retrata uma travessia do deserto conta que todos os familiares do italiano, ou contacto internacional? Numa espécie os papéis com empenho e brio. dade do líder do PS em funções face a povo, mas que não são nem foram (feliz-
tenente-coronel. Foi a única referência contros na capital. Uma eventual ligação do Saara, feita por Vacchi numa scooter com exceção de uma irmã (que terá mais de desdobramento pessoano, Sócrates pri- quem lhe sucedeu na liderança do PSD mente para eles e para nós!) considerados
explícita que encontrou em três anos de de Vacchi aos serviços secretos é assunto italiana da mítica marca Vespa. de 90 anos), já morreram. O único sobrinho meiro-ministro tratava com o seu heteró- (invariavelmente uma pessoa sem ideias, presidentes do povo. A evolução do nosso
investigação. nebuloso. Aqui, Vieira Pereira limita-se a de quem conseguiu o contacto não sabe nimo ministro da tutela dessa negociação.
O jornalista ofegante alma e consciência social), então está no endémico “presidente do povo” é, por en-
Uma noite, em Luanda, Dante Vacchi e referir a ligação do italiano às milícias do nada do tio. Sócrates estava interessado num apoio a O pobre não aguentava mais. Era a passa- Olimpo mediático. quanto, um enigma, mas o ecossistema à
Vieira Pereira foram à boîte do hotel “mais fascismo de Mussolini.
Comandante de Cesare Dante Vacchi morreu em 1994, determinada empresa? Pois ele Sócrates da forte a acompanhar as manifestações Podem até acontecer milagres. Por exem- sua volta começa a apresentar sinais de
luxuoso” da cidade. “Eu ia fardado, ele ia Do percurso do jornalista, ficaram, ain- milícias na Itália em Itália. tratava de tudo consigo mesmo. Aliás, a dos esfomeados, os acampamentos dos plo, Manuela Ferreira Leite, pessoa que forte degradação.
com umas calcinhas e uma camisa. Andar da, algumas obras assinadas por Cesare ocupada fazer fé na desresponsabilização presente, indignados, o olhar faiscante do senhor como se sabe era “a velha” quando debatia
de gravata, naquela altura, era uma coisa Dante Vacchi, em conjunto com Anne Pedro Rainho é jornalista da secção o conselho de ministros era Sócrates mais Nogueira. Os directos minuto a minuto com Sócrates, o qual claramente a esmaga- Helena Matos é colunista do Observador,
essencial. À entrada, dizem-lhe que não Gauze. Em Portugal foram três livros: Filho de uma professora primária e de de Política do Observador. As guerras de Sócrates e só Sócrates. sempre à espera que fosse aquele o dia va nos debates, nomeadamente naqueles faz pesquisa histórica para programas de
pode entrar. ‘Não posso entrar porquê?’, Angola 61-63, um álbum fotográfico de um eletricista dos caminhos de ferro ita- guerrilha que habitualmente costuma cobrir Seja como for, ninguém achou nada es- da invasão do Parlamento, da queda do em que a dita velha lhe perguntava, face ao televisão e rádio, e é autora de vários livros, entre
perguntou Vacchi ao porteiro. ‘Porque não militares; Penteados de Angola, preci- lianos, Dante Vacchi nasceu em 1925. Aos são do género metafórico, nos corredores da tranho, ninguém percebeu nada. Só falta governo. A denúncia ininterrupta das ne- anúncio de estrambólicos investimentos, os quais “Os Filhos do Zip Zip - Portugal nos
tem gravata’, respondeu-lhe o porteiro. ‘E samente com imagens dos penteados 15 anos, apresentava-se como voluntário Assembleia da República. dizer que foram todos enganados. O caso é gociações dos bastidores. “onde é que está o dinheiro?”, tornou-se Anos 70”.
Um mundo
PORCOS FASCISTAS 47
“Vão bardamerda mais o ção, pela parte de um tribunal alemão, de peculiaridades do comportamento social bem do período do PREC, em que “fas-
fascista!” foi a imortal frase com que o um comício que contaria com a presença humano, uma vez que são primatas que cista” era empregue indiscriminadamen-
almirante Pinheiro de Azevedo, então de Erdoğan em vídeo: “A Alemanha, que vivem em sociedade e que partilham com te para designar alguém de quem não se
primeiro-ministro de Portugal, presen- nunca conseguiu libertar-se do seu passado o Homo sapiens problemas como a hiper- gostava ou que fizera algo contrário aos
teou os trabalhadores da construção civil nazi, deixou cair a sua máscara”, acusou o tensão, a ansiedade e a dependência do interesses de quem lançava o insulto. Em-
que tinham sitiado o Palácio de São Bento jornal Takvim. Também em 2016, já tinham álcool. Um dos aspectos mais estudado bora menos frequente, ainda hoje, na lin-
e sequestrado os deputados da nação, a surgido acusações de nazismo por alguns dos C. pygerythrus são os seus gritos de guagem corrente, o apodo de “fascista” não
12 de Novembro de 1975. As tentativas de media turcos, em resposta à aprovação alarme: estes são diferenciados consoante pressupõe que o alvo tenha o Mein Kampf
argumentação e apelo à razoabilidade da pelo parlamento alemão de uma resolução o predador avistado é um leopardo, uma ou os discursos de Mussolini como livros
parte de Pinheiro de Azevedo despertavam que classificava o massacre de arménios serpente ou uma águia, e desencadeiam de cabeceira, tal como, numa quezília de
invariavelmente nos manifestantes/seques- pelos turcos, em 1915, como um genocídio. comportamentos diferentes no bando (por trânsito, o uso de “cabrão” não pressupõe
tradores uma vozearia de “Fascista! Fascis- Mas o “fascismo” tem aplicações varia- exemplo: quando os investigadores repro- que o ofensor esteja a par de casos extra-
ta!” e o almirante acabou por deixar sair a das: desde que o Estado Islâmico se tor- duzem o grito que significa “águia”, todos conjugais da esposa do ofendido.
imprecação, que não sendo um modelo de nou numa óbvia ameaça que é rotulado olham para o céu), o que demonstra que a O uso de “fascista” como insulto de
oratória e subtileza exprime genuinamente de “islamo-fascista”, uma designação que sua linguagem comporta alguma sofistica- largo espectro tem raízes no URSS das
a exasperação perante um interlocutor surgiu pela primeira vez em 1933 e que ção semântica, havendo investigadores que primeiras décadas após a Revolução de
que não está disposto a dialogar e apenas ressurgiu num discurso de George W. Bush, defendem que os gritos de alarme podem Outubro, em que a palavra servia para de-
repete um insulto que nem sequer sabe após os ataques de 11 de Setembro de 2001. exibir 30 variedades diferentes, consoante signar tudo o que fosse contrário aos inte-
bem o que significa. Também Donald Trump tem vindo a a natureza do perigo e as circunstâncias. resses da URSS e do Partido Bolchevique,
É possível que, de vez em quando, An- atrair tal designação, com os mais literatos A diferenciação nos gritos de alarme tem o que incluía não só a Alemanha, como
gela Merkel sinta, no seu íntimo, o impulso entre os descontentes com o resultado das óbvias vantagens adaptativas, mas para todas as democracias liberais e capitalis-
de dar resposta similar à do “almirante eleições americanas a apontar para su- tal é preciso que haja rigor no seu uso. Se, tas, como qualquer grupo ou tendência no
sem medo”, pois de cada vez que um país postos paralelismos com The Plot Against num bando de Homo sapiens numa praia, interior da própria URSS que não estivesse
entra em desacordo com a actuação do America (2004), um romance de “histó- alguém gritar “tubarão”, todos fugirão rigorosamente alinhada com as directri-
governo alemão, a acusação que surge na ria alternativa” (medíocre e esquemático, para terra firme, e se gritar “tigre”, todos zes oficiais, o que levou a que também
ponta da língua é “fascistas!” ou “nazis!”. diga-se) de Philip Roth em que Charles procurarão refúgio no mar. Mas se alguém o trotskysmo recebesse tal epíteto. Mas
Em Março passado, as interdições de co- Lindbergh, um simpatizante do nazismo, gritar “tigre” quando avista um tubarão as os operários que, embora destituídos de
mícios em território alemão em favor do derrota Roosevelt nas eleições presiden- consequências podem ser fatais. motivações políticas, não mostrassem zelo
alargamento dos poderes do presidente ciais americanas de 1940 e logo empreende Algo análogo pode acontecer quando se suficiente poderiam também facilmente
turco, levaram Recep Tayyip Erdoğan a uma aproximação à Alemanha de Hitler e rotula Trump de “fascista”. Trump é peri- receber o rótulo de fascistas.
proclamar: “As vossas práticas não dife- lança um programa de “americanização” goso, mas não é fascista. Analogamente, Nem as forças políticas ocidentais si-
rem das dos nazis. Julgava que há muito a dos rapazes de origem judia, através de aplicar a designação de “islamo-fascista” ao tuadas mais à esquerda no espectro po-
Alemanha abandonara tais práticas, mas um programa de reeducação em campos Estado Islâmico revela completa ignorância lítico escaparam e os sociais-democratas
enganei-me.” Quando o governo holandês de férias, enquanto cresce pelo país a dis- sobre islamismo e fascismo. Não identificar converteram-se, na terminologia oficial co-
adoptou postura similar, Erdoğan não hesi- criminação anti-sionista. correctamente o adversário é meio caminho munista em “social-fascistas”. Ironicamen-
tou em voltar para ele a acusação: “Eles são andado para se ser derrotado. É esse o risco te, tal designação acabaria, no Portugal
fascistas [...] Julgava que o nazismo tinha Porcos fascistas que se corre quando a preguiça mental nos do PREC, por ser usada pelos partidos de
acabado, mas estava errado. Na verdade, leva a usar designações equívocas. extrema-esquerda contra o Partido Comu-
está vivo no Ocidente.” e macacos nista. “Nem fascismo nem social-fascismo!
As acusações de nazismo ao governo Os macacos Chlorocebus pygerythrus (que Governo popular!”, exigiam os cartazes e
alemão tinham já surgido no Verão passa- o mundo anglófono designa por vervet
Um insulto genérico manifestos do MRPP, que se referiam ao
do, saídas não da boca de Erdoğan mas de monkeys e para o qual não há nome co- A acusação de fascismo/nazismo lançada PCP como “o partido social-fascista de
jornais turcos alinhados com o seu partido, mum em português) têm sido uma im- sobre a Alemanha e a Holanda filia-se numa Barreirinhas Cunhal”.
o AKP, em resposta à negação de autoriza- portante fonte de informação sobre as tradição que os portugueses conhecem Quando uma palavra serve para usos tão
Um mundo
PORCOS FASCISTAS 47
“Vão bardamerda mais o ção, pela parte de um tribunal alemão, de peculiaridades do comportamento social bem do período do PREC, em que “fas-
fascista!” foi a imortal frase com que o um comício que contaria com a presença humano, uma vez que são primatas que cista” era empregue indiscriminadamen-
almirante Pinheiro de Azevedo, então de Erdoğan em vídeo: “A Alemanha, que vivem em sociedade e que partilham com te para designar alguém de quem não se
primeiro-ministro de Portugal, presen- nunca conseguiu libertar-se do seu passado o Homo sapiens problemas como a hiper- gostava ou que fizera algo contrário aos
teou os trabalhadores da construção civil nazi, deixou cair a sua máscara”, acusou o tensão, a ansiedade e a dependência do interesses de quem lançava o insulto. Em-
que tinham sitiado o Palácio de São Bento jornal Takvim. Também em 2016, já tinham álcool. Um dos aspectos mais estudado bora menos frequente, ainda hoje, na lin-
e sequestrado os deputados da nação, a surgido acusações de nazismo por alguns dos C. pygerythrus são os seus gritos de guagem corrente, o apodo de “fascista” não
12 de Novembro de 1975. As tentativas de media turcos, em resposta à aprovação alarme: estes são diferenciados consoante pressupõe que o alvo tenha o Mein Kampf
argumentação e apelo à razoabilidade da pelo parlamento alemão de uma resolução o predador avistado é um leopardo, uma ou os discursos de Mussolini como livros
parte de Pinheiro de Azevedo despertavam que classificava o massacre de arménios serpente ou uma águia, e desencadeiam de cabeceira, tal como, numa quezília de
invariavelmente nos manifestantes/seques- pelos turcos, em 1915, como um genocídio. comportamentos diferentes no bando (por trânsito, o uso de “cabrão” não pressupõe
tradores uma vozearia de “Fascista! Fascis- Mas o “fascismo” tem aplicações varia- exemplo: quando os investigadores repro- que o ofensor esteja a par de casos extra-
ta!” e o almirante acabou por deixar sair a das: desde que o Estado Islâmico se tor- duzem o grito que significa “águia”, todos conjugais da esposa do ofendido.
imprecação, que não sendo um modelo de nou numa óbvia ameaça que é rotulado olham para o céu), o que demonstra que a O uso de “fascista” como insulto de
oratória e subtileza exprime genuinamente de “islamo-fascista”, uma designação que sua linguagem comporta alguma sofistica- largo espectro tem raízes no URSS das
a exasperação perante um interlocutor surgiu pela primeira vez em 1933 e que ção semântica, havendo investigadores que primeiras décadas após a Revolução de
que não está disposto a dialogar e apenas ressurgiu num discurso de George W. Bush, defendem que os gritos de alarme podem Outubro, em que a palavra servia para de-
repete um insulto que nem sequer sabe após os ataques de 11 de Setembro de 2001. exibir 30 variedades diferentes, consoante signar tudo o que fosse contrário aos inte-
bem o que significa. Também Donald Trump tem vindo a a natureza do perigo e as circunstâncias. resses da URSS e do Partido Bolchevique,
É possível que, de vez em quando, An- atrair tal designação, com os mais literatos A diferenciação nos gritos de alarme tem o que incluía não só a Alemanha, como
gela Merkel sinta, no seu íntimo, o impulso entre os descontentes com o resultado das óbvias vantagens adaptativas, mas para todas as democracias liberais e capitalis-
de dar resposta similar à do “almirante eleições americanas a apontar para su- tal é preciso que haja rigor no seu uso. Se, tas, como qualquer grupo ou tendência no
sem medo”, pois de cada vez que um país postos paralelismos com The Plot Against num bando de Homo sapiens numa praia, interior da própria URSS que não estivesse
entra em desacordo com a actuação do America (2004), um romance de “histó- alguém gritar “tubarão”, todos fugirão rigorosamente alinhada com as directri-
governo alemão, a acusação que surge na ria alternativa” (medíocre e esquemático, para terra firme, e se gritar “tigre”, todos zes oficiais, o que levou a que também
ponta da língua é “fascistas!” ou “nazis!”. diga-se) de Philip Roth em que Charles procurarão refúgio no mar. Mas se alguém o trotskysmo recebesse tal epíteto. Mas
Em Março passado, as interdições de co- Lindbergh, um simpatizante do nazismo, gritar “tigre” quando avista um tubarão as os operários que, embora destituídos de
mícios em território alemão em favor do derrota Roosevelt nas eleições presiden- consequências podem ser fatais. motivações políticas, não mostrassem zelo
alargamento dos poderes do presidente ciais americanas de 1940 e logo empreende Algo análogo pode acontecer quando se suficiente poderiam também facilmente
turco, levaram Recep Tayyip Erdoğan a uma aproximação à Alemanha de Hitler e rotula Trump de “fascista”. Trump é peri- receber o rótulo de fascistas.
proclamar: “As vossas práticas não dife- lança um programa de “americanização” goso, mas não é fascista. Analogamente, Nem as forças políticas ocidentais si-
rem das dos nazis. Julgava que há muito a dos rapazes de origem judia, através de aplicar a designação de “islamo-fascista” ao tuadas mais à esquerda no espectro po-
Alemanha abandonara tais práticas, mas um programa de reeducação em campos Estado Islâmico revela completa ignorância lítico escaparam e os sociais-democratas
enganei-me.” Quando o governo holandês de férias, enquanto cresce pelo país a dis- sobre islamismo e fascismo. Não identificar converteram-se, na terminologia oficial co-
adoptou postura similar, Erdoğan não hesi- criminação anti-sionista. correctamente o adversário é meio caminho munista em “social-fascistas”. Ironicamen-
tou em voltar para ele a acusação: “Eles são andado para se ser derrotado. É esse o risco te, tal designação acabaria, no Portugal
fascistas [...] Julgava que o nazismo tinha Porcos fascistas que se corre quando a preguiça mental nos do PREC, por ser usada pelos partidos de
acabado, mas estava errado. Na verdade, leva a usar designações equívocas. extrema-esquerda contra o Partido Comu-
está vivo no Ocidente.” e macacos nista. “Nem fascismo nem social-fascismo!
As acusações de nazismo ao governo Os macacos Chlorocebus pygerythrus (que Governo popular!”, exigiam os cartazes e
alemão tinham já surgido no Verão passa- o mundo anglófono designa por vervet
Um insulto genérico manifestos do MRPP, que se referiam ao
do, saídas não da boca de Erdoğan mas de monkeys e para o qual não há nome co- A acusação de fascismo/nazismo lançada PCP como “o partido social-fascista de
jornais turcos alinhados com o seu partido, mum em português) têm sido uma im- sobre a Alemanha e a Holanda filia-se numa Barreirinhas Cunhal”.
o AKP, em resposta à negação de autoriza- portante fonte de informação sobre as tradição que os portugueses conhecem Quando uma palavra serve para usos tão
48 PORCOS FASCISTAS
O regresso da austeridade
estar a cumprir com as condições exigidas
pelos serviços de saúde. Em resposta, Hol-
mes afirmou que “os testes levados a cabo
pela CMS tinham sido realizados há vários
Helena Garrido
de análises ao sangue que efetuou em 2014
e 2015, anulando alguns desse resultados,
e notificando os pacientes e médicos das
alterações.
E 3, 2, 1. Em junho, a Forbes revê em bai-
xa a avaliação da Theranos e desvaloriza-a
em mais de 8 mil milhões de dólares. Em O mais extraordinário dos tempos que vivemos em Portugal é a brutal diferença
julho, a Theranos perde a licença para
operar e Elizabeth Holmes é banida da entre aquela que é a mensagem política do Governo e aquilo que ele, de facto, faz.
indústria durante dois anos, recorrendo
da decisão. E, em outubro, a jovem de 32 Só agora se começa a assumir a austeridade que sempre se praticou.
anos anuncia que vai despedir 340 cola-
boradores da empresa e fechar os vários A política orçamental do Gover- o défice público. Foi tudo de facto histó- foi a troika. A diferença mais significativa baixas e a avaliação do risco do país po-
laboratórios clínicos da empresa. Tinha no de António Costa foi, e promete ser, rico. O défice mais baixo da democracia em relação aos anos da troika está na dose. deria já ter subido. No caso do rating é,
passado um ano desde a primeira notícia mais austera do que a concretizada pelo e um dos saldos primários mais elevados O medicamento para a grave doença das aliás, interessante verificar que só agora,
publicada no Wall Street Journal. último ano de Governo de Pedro Passos do euro são devidamente acompanhados finanças públicas tem a mesma substância há uma semana, é que começam a surgir
“Depois de termos passado muitos me- Coelho. As perspectivas desenhadas no por cativações de despesa historicamente activa: apertar o cinto de quem trabalha análises sobre a possibilidade de o risco de
ses a avaliar as nossas forças e as nossas Programa de Estabilidade e Crescimento elevados, cortes recorde no investimento para o Estado e de todos os que pagam Portugal melhorar a curto prazo. Foi o caso
fraquezas, decidimos estruturar a nossa 2017-2021 dizem-nos exactamente isso: a público e o já tradicional perdão fiscal. impostos. As doses da medicação são agora do Commerzbank – a admitir que a DBRS
empresa em torno de um modelo mais Holmes. Só a cadeia de farmácias Walgre- omissões”. “Os réus estão envolvidos numa Jennifer Lawrence página da designada austeridade não foi Claro que a recuperação da economia e obviamente mais baixas, porque não esta- pode melhorar o ‘rating’ de Portugal – ou
alinhado com os nossos valores e missão. ens – que era a grande parceira da The- fraude de valores mobiliários e outras vio- será Elizabeth Holmes nem será virada. Como não podia ser, se especialmente o aumento do emprego aju- mos à beira da bancarrota e sem acesso a da Standard & Poor’s, a sistematizar as
Decidimos encerrar os nossos laborató- ranos para a comercialização dos testes lações por terem induzido fraudulenta- o PS continuasse a ser aquilo que sempre daram. Mas até isso pode ter surpreendido financiamento. Agora a austeridade pode condições em que a sua classificação pode
rios clínicos e centros de bem-estar The- – processou a empresa em 140 milhões de mente a PFM a investir e a manter os seus no cinema foi, um partido que defende a integração o próprio Governo – nunca o saberemos. aproveitar a recuperação já obtida com a subir: se a economia recuperar e o crédito
ranos, que afetarão aproximadamente dólares (montante que se crê ser igual ao investimentos na empresa”, lia-se numa E agora que “a bolha em que estava a The- de Portugal no euro e o respeito pelos É apenas uma hipótese a colocar face ao terapia de choque do passado e a retoma da malparado baixar. Parece óbvio, mas até
340 funcionários no Arizona, Califórnia investido pela empresa na Theranos). A carta enviada pelo fundo ao Wall Street ranos rebentou”, a história da queda verti- compromissos da República Portuguesa resultado de 2% obtido no défice — bastava economia ditada em grande parte pelo tu- há bem pouco tempo o problema não era
e Pensilvânia. Estamos profundamente farmacêutica queixa-se de que foi “consis- Journal. ginosa de Elizabeth Holmes e da Thernaos em relação aos tratados que assinou e à ter chegado aos 2,3% para se considerar um rismo. Além disso, e não menos importante, colocado desta forma. Pelo contrário, o que
gratos aos membros da nossa equipa, tentemente enganada pela Theranos” – e Já o investidor Robert Colman, cofun- prepara-se para chegar ao cinema. No papel dívida que contraiu. bom resultado, mesmo do ponto de vista da criou-se para o “doente” um ambiente de se discutia era o risco de baixar o rating e
muitos dos quais dedicaram vários anos que nem sequer foi informada dos 31 mil dador da empresa de investimento Ro- da rainha da tecnologia estará Jennifer La- O mais extraordinário dos tempos que prova da sustentabilidade da dívida (prova e descontracção, garantido pelo discurso do não as condições para o subir.
à Theranos e à nossa missão”, escreveu resultados de testes ao sangue que tinha bertson Stephens, processou a Theranos wrence e na realização Adam McKay, que vivemos em Portugal é a brutal diferença não realidade). Olhando para trás, percebe- Governo de fim da austeridade e pela alian- Em termos gerais, neste exercício de rea-
Holmes numa carta aberta, publicada no fornecido aos seus clientes até 11 de junho no final de novembro por esta ter “enga- esteve por detrás das câmaras em The Big entre aquela que é a mensagem política -se que o Governo pode ter sobre-reagido ça com o PCP – o dono das manifestações lidade alternativa, é possível admitir que o
site da empresa. e que foram anulados, conta a Fortune. A nado consistente e deliberadamente os Short – A Queda de Wall Street, filme ins- e aquilo que, de facto, o Governo faz. É e até desperdiçado um das armas de que de rua – e com o Bloco – de que se pode crescimento da economia seria mais eleva-
De startup de tecnologia médica mais farmacêutica só soube da anulação pela seus investidores”, promovendo de forma pirado na obra de Michael Lewis, que versa o ditado popular “faz o que eu digo, não pode precisar mais tarde, a do perdão fiscal. dizer, simplificadamente, que influencia do por via da confiança de quem investe já
sexy do mercado para um laboratório clí- comunicação social. desproporcional a sua tecnologia. “Milha- sobre a crise financeira de 2007 e de 2008. faças o que eu faço” adaptado numa fór- Quando se olha para o que se passou mais o espaço da opinião publicada. que a confiança de quem consome – para
nico padrão. Em agosto de 2016, Holmes A farmacêutica acusa a Theranos de ter res de investidores na Theranos, incluindo O filme que vai contar a história daquela mula do género “acredita no que eu digo, nas contas públicas em 2016 e aquilo que O que poderia ser diferente sem nunca a qual se dirigiu o actual Governo – teve
anunciou que a empresa ia dedicar-se ao quebrado todas as promessas que tinha aqueles que participam nesta ação judicial, que já foi “o próximo Steve Jobs” chamar- sem olhar para as estatísticas, nem para o o Governo promete fazer este ano e nos termos a certeza de que o seria? O ano de um efeito mais limitado, que pode também
desenvolvimento de um produto novo, a feito e de ter “falhado os padrões de quali- foram alimentados por mentiras contínuas -se-á Bad Blood (“Mau Sangue”, em portu- dinheiro que te entra de facto no bolso e próximos, através do Programa de Estabi- 2016 poderia ter sido menos turbulento, ser explicado pela falta de confiança do
plataforam miniLab, através da qual pre- dade mais básicos bem como as exigências da presidente da empresa, que promovia guês) e vai ser produzido pela Legendary muito menos para o teu poder de compra”. lidade e Crescimento 2017-2021 (PEC17-21), menos volátil, com um horizonte mais sector privado.
tendem comercializar minilaboratórios, legais”. Mais: diz que a empresa de Holmes uma tecnologia que ‘ia mudar o mundo’ Pictures (responsável pela produção de Portugal já tinha sido um caso de estudo percebemos que António Costa persegue claro, aquele que só agora se está a con- Mas o ponto a que chegámos hoje permi-
automatizados, capazes de testar pequenos anulou 11,3% dos testes que fez aos clientes e ‘revolucionar a indústria’”, afirmou o filmes biográficos como Straight Outta pela resistência que os cidadãos revelaram o mesmo objectivo do seu antecessor Pe- seguir ter. Ou seja, a margem de manobra te-nos respirar de alívio, porque as piores
volumes de amostras de pacientes mais vul- da cadeia de farmácias. Elizabeth Holmes advogado da ação, Steve Berman. Compton), que pagou cerca de 3 milhões perante a dose de austeridade a que foram dro Passos Coelho: controlar o “monstro” política que António Costa ganhou em perspectivas não se confirmaram. O Gover-
neráveis, como os de oncologia, pediatria respondeu em carta aberta, afirmando que O processo mais recente já data de 2017. de dólares (2,8 milhões de euros) para ficar submetidos, especialmente em 2012. Volta financeiro em que se transformaram as 2016 teve como preço a incerteza gerada no não fez o que disse que ia fazer e deu-nos
ou de cuidados intensivos. Ou seja, nada a farmacêutica também “tinha falhado O estado do Arizona acusa a Theranos de com os direitos do filme. O orçamento para agora a ser um caso de estudo, para econo- administrações públicas e especialmente o pelo discurso agressivo contra a Europa uma austeridade disfarçada, com menos
a ver com a estratégia inicial. “Temos a consistentemente os compromissos que estar por detrás de um “esquema de longa eternizar a polémica da Theranos ronda os mistas e políticos, que queiram investigar Estado central. E percebe-se melhor agora e a dita austeridade e pelas medidas de investimento e mais impostos indirectos, da-
sorte de os nossos parceiros e investidores tinha com a Theranos”. “Por causa da má duração de atos danosos e falsas declara- 50 milhões de dólares, segundo o IMDb. como se aplica uma política de austerida- do que há um ano porque, finalmente, An- “reversão” adoptadas nos primeiros meses quela que só conseguimos perceber passado
acreditarem fortemente na nossa missão gestão da nossa parceria e agora deste ções”, num processo de alegada “fraude Sobre a Theranos, a Fox Business estima de financeira, com o apoio da esquerda tónio Costa pode começar a mostrar o seu de governação. Como é que esse preço se algum tempo, animados (ou preocupados)
de termos testes menos invasivos e mais processo, a Walgreens causou danos sig- aos consumidores”. As autoridades do es- que a empresa não vai conseguir resistir a tradicional e moderna, e convencendo a jogo, condicionados que estão os partidos consubstanciou na economia? Não sabe- que estávamos com o que António Costa e
económicos, e de termos a estrada que nificativos à Theranos e aos seus inves- tado afirmam que a empresa de Holmes tanta polémica e que vai fechar portas este população em geral de que a sua vida está de esquerda que o apoiam. mos. Resta-nos admitir a hipótese de que o Mário Centeno nos diziam. E podemos ainda
nos vai permitir realizar a nossa visão”, tidores. Responderemos vigorosamente violou o Arizona’s Consumer Fraud Act e ano. Quanto a John Carreyrou, ganhou um e vai ficar muito melhor do que de facto É, de facto, uma pena não se conseguir investimento seria mais alto – com elevada dar um segundo suspiro de alívio quando
lê-se na carta aberta. Mas seria bem assim? às alegações infundadas da Walgreens e avançou com um processo em nome dos prémio de jornalismo, o George Polk, com está. É de se lhe tirar o chapéu. saber exactamente qual seria a realidade probabilidade. Recorde-se que a reposição lemos o Programa de Estabilidade. Estão lá
tentaremos responsabilizá-la pelos danos consumidores que recorreram aos centros a investigação que fez à “menina querida” O grande erro cometido por todos quan- alternativa. Mas podemos fazer um exercício de salários da função pública prometida os objectivos de honrar os compromissos
Theranos alvo de que causou à Theranos e aos seus investi- de bem-estar da Theranos. Mas as polémi- das startups, que soma aos dois Pulitzer (a tos há um ano se preocuparam com o futu- apenas económico-financeiro do que teria por Passos Coelho era mais lenta, o que financeiros e reduzir a dimensão do Estado.
dores”, lê-se. cas não se ficam por aqui. O Wall Street distinção mais prestigiante do setor) que já ro do país, no quadro do euro, foi acreditar sido a continuidade de Pedro Passos Coe- significa que poderia ter gasto mais em Só não sabemos como é que o Governo o
múltiplos processos Mas a farmacêutica não é a única a que- Journal revelou também quais eram os recebeu na sua carreira, em 2003 e em 2015. no que ouviam em vez de esperarem pelos lho na governação. (Apenas no domínio da investimento público. De alguma forma, vai fazer. Mas a austeridade que já existia
por fraude rer ver Elizabeth Holmes sentada nos tri- grandes nomes que estavam por detrás De Elizabeth Holmes, não se esperam galar- actos antes de se pronunciarem. Os actos economia e das finanças, porque a dinâmica António Costa trocou investimento público é agora assumida, com menos disfarces,
A par das notificações dos reguladores, bunais. O fundo de investimento Partner da Theranos, incluindo James Mattis, o dões, mas esta história unsexy não acaba aqui. revelaram uma profunda contradição com política teria sido completamente diferente, pela reposição de salários. menos mascarada.
as dos tribunais. Em 2016, a Theranos Fund Management, que tinha investido 96,1 general que Donald Trump disse recen- as palavras. Depois de ter devolvido os salá- nomeadamente na vida do PS, que estava sob Além disso, podemos admitir que as
é alvo de vários processos judiciais por milhões de dólares na Theranos, também temente ter escolhido para Secretário de Ana Pimentel é jornalista do Observador rios à função pública e algumas pensões, o séria ameaça se não tivesse subido ao poder.) taxas de juro da dívida pública (aqui Helena Garrido é jornalista e colunista
alegada fraude, oriundos de investidores e processou a empresa, acusando-a de “uma Defesa, mas que já se demitiu do conselho e autora da newsletter semanal sobre o Governo fez uso de tudo o que tinha à mão, Comecemos pelo mais fácil, que é a di- avaliadas pela média mensal da taxa de do Observador. É autora do livro “A Vida
parceiros que se sentirem enganados por série de mentiras, distorções materiais e de administração da empresa. florescente mundo das startups. e não era visível de imediato, para reduzir ferença entre o que se prevê e aquilo que rendibilidade a 10 anos) estariam mais e a Morte dos Nossos Bancos”.
52 ELIZABETH HOLMES OPINIÃO 53
O regresso da austeridade
estar a cumprir com as condições exigidas
pelos serviços de saúde. Em resposta, Hol-
mes afirmou que “os testes levados a cabo
pela CMS tinham sido realizados há vários
Helena Garrido
de análises ao sangue que efetuou em 2014
e 2015, anulando alguns desse resultados,
e notificando os pacientes e médicos das
alterações.
E 3, 2, 1. Em junho, a Forbes revê em bai-
xa a avaliação da Theranos e desvaloriza-a
em mais de 8 mil milhões de dólares. Em O mais extraordinário dos tempos que vivemos em Portugal é a brutal diferença
julho, a Theranos perde a licença para
operar e Elizabeth Holmes é banida da entre aquela que é a mensagem política do Governo e aquilo que ele, de facto, faz.
indústria durante dois anos, recorrendo
da decisão. E, em outubro, a jovem de 32 Só agora se começa a assumir a austeridade que sempre se praticou.
anos anuncia que vai despedir 340 cola-
boradores da empresa e fechar os vários A política orçamental do Gover- o défice público. Foi tudo de facto histó- foi a troika. A diferença mais significativa baixas e a avaliação do risco do país po-
laboratórios clínicos da empresa. Tinha no de António Costa foi, e promete ser, rico. O défice mais baixo da democracia em relação aos anos da troika está na dose. deria já ter subido. No caso do rating é,
passado um ano desde a primeira notícia mais austera do que a concretizada pelo e um dos saldos primários mais elevados O medicamento para a grave doença das aliás, interessante verificar que só agora,
publicada no Wall Street Journal. último ano de Governo de Pedro Passos do euro são devidamente acompanhados finanças públicas tem a mesma substância há uma semana, é que começam a surgir
“Depois de termos passado muitos me- Coelho. As perspectivas desenhadas no por cativações de despesa historicamente activa: apertar o cinto de quem trabalha análises sobre a possibilidade de o risco de
ses a avaliar as nossas forças e as nossas Programa de Estabilidade e Crescimento elevados, cortes recorde no investimento para o Estado e de todos os que pagam Portugal melhorar a curto prazo. Foi o caso
fraquezas, decidimos estruturar a nossa 2017-2021 dizem-nos exactamente isso: a público e o já tradicional perdão fiscal. impostos. As doses da medicação são agora do Commerzbank – a admitir que a DBRS
empresa em torno de um modelo mais Holmes. Só a cadeia de farmácias Walgre- omissões”. “Os réus estão envolvidos numa Jennifer Lawrence página da designada austeridade não foi Claro que a recuperação da economia e obviamente mais baixas, porque não esta- pode melhorar o ‘rating’ de Portugal – ou
alinhado com os nossos valores e missão. ens – que era a grande parceira da The- fraude de valores mobiliários e outras vio- será Elizabeth Holmes nem será virada. Como não podia ser, se especialmente o aumento do emprego aju- mos à beira da bancarrota e sem acesso a da Standard & Poor’s, a sistematizar as
Decidimos encerrar os nossos laborató- ranos para a comercialização dos testes lações por terem induzido fraudulenta- o PS continuasse a ser aquilo que sempre daram. Mas até isso pode ter surpreendido financiamento. Agora a austeridade pode condições em que a sua classificação pode
rios clínicos e centros de bem-estar The- – processou a empresa em 140 milhões de mente a PFM a investir e a manter os seus no cinema foi, um partido que defende a integração o próprio Governo – nunca o saberemos. aproveitar a recuperação já obtida com a subir: se a economia recuperar e o crédito
ranos, que afetarão aproximadamente dólares (montante que se crê ser igual ao investimentos na empresa”, lia-se numa E agora que “a bolha em que estava a The- de Portugal no euro e o respeito pelos É apenas uma hipótese a colocar face ao terapia de choque do passado e a retoma da malparado baixar. Parece óbvio, mas até
340 funcionários no Arizona, Califórnia investido pela empresa na Theranos). A carta enviada pelo fundo ao Wall Street ranos rebentou”, a história da queda verti- compromissos da República Portuguesa resultado de 2% obtido no défice — bastava economia ditada em grande parte pelo tu- há bem pouco tempo o problema não era
e Pensilvânia. Estamos profundamente farmacêutica queixa-se de que foi “consis- Journal. ginosa de Elizabeth Holmes e da Thernaos em relação aos tratados que assinou e à ter chegado aos 2,3% para se considerar um rismo. Além disso, e não menos importante, colocado desta forma. Pelo contrário, o que
gratos aos membros da nossa equipa, tentemente enganada pela Theranos” – e Já o investidor Robert Colman, cofun- prepara-se para chegar ao cinema. No papel dívida que contraiu. bom resultado, mesmo do ponto de vista da criou-se para o “doente” um ambiente de se discutia era o risco de baixar o rating e
muitos dos quais dedicaram vários anos que nem sequer foi informada dos 31 mil dador da empresa de investimento Ro- da rainha da tecnologia estará Jennifer La- O mais extraordinário dos tempos que prova da sustentabilidade da dívida (prova e descontracção, garantido pelo discurso do não as condições para o subir.
à Theranos e à nossa missão”, escreveu resultados de testes ao sangue que tinha bertson Stephens, processou a Theranos wrence e na realização Adam McKay, que vivemos em Portugal é a brutal diferença não realidade). Olhando para trás, percebe- Governo de fim da austeridade e pela alian- Em termos gerais, neste exercício de rea-
Holmes numa carta aberta, publicada no fornecido aos seus clientes até 11 de junho no final de novembro por esta ter “enga- esteve por detrás das câmaras em The Big entre aquela que é a mensagem política -se que o Governo pode ter sobre-reagido ça com o PCP – o dono das manifestações lidade alternativa, é possível admitir que o
site da empresa. e que foram anulados, conta a Fortune. A nado consistente e deliberadamente os Short – A Queda de Wall Street, filme ins- e aquilo que, de facto, o Governo faz. É e até desperdiçado um das armas de que de rua – e com o Bloco – de que se pode crescimento da economia seria mais eleva-
De startup de tecnologia médica mais farmacêutica só soube da anulação pela seus investidores”, promovendo de forma pirado na obra de Michael Lewis, que versa o ditado popular “faz o que eu digo, não pode precisar mais tarde, a do perdão fiscal. dizer, simplificadamente, que influencia do por via da confiança de quem investe já
sexy do mercado para um laboratório clí- comunicação social. desproporcional a sua tecnologia. “Milha- sobre a crise financeira de 2007 e de 2008. faças o que eu faço” adaptado numa fór- Quando se olha para o que se passou mais o espaço da opinião publicada. que a confiança de quem consome – para
nico padrão. Em agosto de 2016, Holmes A farmacêutica acusa a Theranos de ter res de investidores na Theranos, incluindo O filme que vai contar a história daquela mula do género “acredita no que eu digo, nas contas públicas em 2016 e aquilo que O que poderia ser diferente sem nunca a qual se dirigiu o actual Governo – teve
anunciou que a empresa ia dedicar-se ao quebrado todas as promessas que tinha aqueles que participam nesta ação judicial, que já foi “o próximo Steve Jobs” chamar- sem olhar para as estatísticas, nem para o o Governo promete fazer este ano e nos termos a certeza de que o seria? O ano de um efeito mais limitado, que pode também
desenvolvimento de um produto novo, a feito e de ter “falhado os padrões de quali- foram alimentados por mentiras contínuas -se-á Bad Blood (“Mau Sangue”, em portu- dinheiro que te entra de facto no bolso e próximos, através do Programa de Estabi- 2016 poderia ter sido menos turbulento, ser explicado pela falta de confiança do
plataforam miniLab, através da qual pre- dade mais básicos bem como as exigências da presidente da empresa, que promovia guês) e vai ser produzido pela Legendary muito menos para o teu poder de compra”. lidade e Crescimento 2017-2021 (PEC17-21), menos volátil, com um horizonte mais sector privado.
tendem comercializar minilaboratórios, legais”. Mais: diz que a empresa de Holmes uma tecnologia que ‘ia mudar o mundo’ Pictures (responsável pela produção de Portugal já tinha sido um caso de estudo percebemos que António Costa persegue claro, aquele que só agora se está a con- Mas o ponto a que chegámos hoje permi-
automatizados, capazes de testar pequenos anulou 11,3% dos testes que fez aos clientes e ‘revolucionar a indústria’”, afirmou o filmes biográficos como Straight Outta pela resistência que os cidadãos revelaram o mesmo objectivo do seu antecessor Pe- seguir ter. Ou seja, a margem de manobra te-nos respirar de alívio, porque as piores
volumes de amostras de pacientes mais vul- da cadeia de farmácias. Elizabeth Holmes advogado da ação, Steve Berman. Compton), que pagou cerca de 3 milhões perante a dose de austeridade a que foram dro Passos Coelho: controlar o “monstro” política que António Costa ganhou em perspectivas não se confirmaram. O Gover-
neráveis, como os de oncologia, pediatria respondeu em carta aberta, afirmando que O processo mais recente já data de 2017. de dólares (2,8 milhões de euros) para ficar submetidos, especialmente em 2012. Volta financeiro em que se transformaram as 2016 teve como preço a incerteza gerada no não fez o que disse que ia fazer e deu-nos
ou de cuidados intensivos. Ou seja, nada a farmacêutica também “tinha falhado O estado do Arizona acusa a Theranos de com os direitos do filme. O orçamento para agora a ser um caso de estudo, para econo- administrações públicas e especialmente o pelo discurso agressivo contra a Europa uma austeridade disfarçada, com menos
a ver com a estratégia inicial. “Temos a consistentemente os compromissos que estar por detrás de um “esquema de longa eternizar a polémica da Theranos ronda os mistas e políticos, que queiram investigar Estado central. E percebe-se melhor agora e a dita austeridade e pelas medidas de investimento e mais impostos indirectos, da-
sorte de os nossos parceiros e investidores tinha com a Theranos”. “Por causa da má duração de atos danosos e falsas declara- 50 milhões de dólares, segundo o IMDb. como se aplica uma política de austerida- do que há um ano porque, finalmente, An- “reversão” adoptadas nos primeiros meses quela que só conseguimos perceber passado
acreditarem fortemente na nossa missão gestão da nossa parceria e agora deste ções”, num processo de alegada “fraude Sobre a Theranos, a Fox Business estima de financeira, com o apoio da esquerda tónio Costa pode começar a mostrar o seu de governação. Como é que esse preço se algum tempo, animados (ou preocupados)
de termos testes menos invasivos e mais processo, a Walgreens causou danos sig- aos consumidores”. As autoridades do es- que a empresa não vai conseguir resistir a tradicional e moderna, e convencendo a jogo, condicionados que estão os partidos consubstanciou na economia? Não sabe- que estávamos com o que António Costa e
económicos, e de termos a estrada que nificativos à Theranos e aos seus inves- tado afirmam que a empresa de Holmes tanta polémica e que vai fechar portas este população em geral de que a sua vida está de esquerda que o apoiam. mos. Resta-nos admitir a hipótese de que o Mário Centeno nos diziam. E podemos ainda
nos vai permitir realizar a nossa visão”, tidores. Responderemos vigorosamente violou o Arizona’s Consumer Fraud Act e ano. Quanto a John Carreyrou, ganhou um e vai ficar muito melhor do que de facto É, de facto, uma pena não se conseguir investimento seria mais alto – com elevada dar um segundo suspiro de alívio quando
lê-se na carta aberta. Mas seria bem assim? às alegações infundadas da Walgreens e avançou com um processo em nome dos prémio de jornalismo, o George Polk, com está. É de se lhe tirar o chapéu. saber exactamente qual seria a realidade probabilidade. Recorde-se que a reposição lemos o Programa de Estabilidade. Estão lá
tentaremos responsabilizá-la pelos danos consumidores que recorreram aos centros a investigação que fez à “menina querida” O grande erro cometido por todos quan- alternativa. Mas podemos fazer um exercício de salários da função pública prometida os objectivos de honrar os compromissos
Theranos alvo de que causou à Theranos e aos seus investi- de bem-estar da Theranos. Mas as polémi- das startups, que soma aos dois Pulitzer (a tos há um ano se preocuparam com o futu- apenas económico-financeiro do que teria por Passos Coelho era mais lenta, o que financeiros e reduzir a dimensão do Estado.
dores”, lê-se. cas não se ficam por aqui. O Wall Street distinção mais prestigiante do setor) que já ro do país, no quadro do euro, foi acreditar sido a continuidade de Pedro Passos Coe- significa que poderia ter gasto mais em Só não sabemos como é que o Governo o
múltiplos processos Mas a farmacêutica não é a única a que- Journal revelou também quais eram os recebeu na sua carreira, em 2003 e em 2015. no que ouviam em vez de esperarem pelos lho na governação. (Apenas no domínio da investimento público. De alguma forma, vai fazer. Mas a austeridade que já existia
por fraude rer ver Elizabeth Holmes sentada nos tri- grandes nomes que estavam por detrás De Elizabeth Holmes, não se esperam galar- actos antes de se pronunciarem. Os actos economia e das finanças, porque a dinâmica António Costa trocou investimento público é agora assumida, com menos disfarces,
A par das notificações dos reguladores, bunais. O fundo de investimento Partner da Theranos, incluindo James Mattis, o dões, mas esta história unsexy não acaba aqui. revelaram uma profunda contradição com política teria sido completamente diferente, pela reposição de salários. menos mascarada.
as dos tribunais. Em 2016, a Theranos Fund Management, que tinha investido 96,1 general que Donald Trump disse recen- as palavras. Depois de ter devolvido os salá- nomeadamente na vida do PS, que estava sob Além disso, podemos admitir que as
é alvo de vários processos judiciais por milhões de dólares na Theranos, também temente ter escolhido para Secretário de Ana Pimentel é jornalista do Observador rios à função pública e algumas pensões, o séria ameaça se não tivesse subido ao poder.) taxas de juro da dívida pública (aqui Helena Garrido é jornalista e colunista
alegada fraude, oriundos de investidores e processou a empresa, acusando-a de “uma Defesa, mas que já se demitiu do conselho e autora da newsletter semanal sobre o Governo fez uso de tudo o que tinha à mão, Comecemos pelo mais fácil, que é a di- avaliadas pela média mensal da taxa de do Observador. É autora do livro “A Vida
parceiros que se sentirem enganados por série de mentiras, distorções materiais e de administração da empresa. florescente mundo das startups. e não era visível de imediato, para reduzir ferença entre o que se prevê e aquilo que rendibilidade a 10 anos) estariam mais e a Morte dos Nossos Bancos”.
55
PUB
muito abaixo dos seus países vizinhos do É claro que as avaliações não são todas debate político, a primeira é mais comum à ram os seus resultados. Segundo, porque
norte da Europa. Pior: entre 2000 e 2012, iguais nem medem todas as mesmas com- direita e a segunda mais comum à esquer- não há escolas privadas na rede pública
nenhum país piorou tanto como a Suécia. petências, pelo que não é forçoso encontrar da. Quem tem razão? Ninguém: ambas as em todos os municípios – mas a baixa de
A queda nos resultados foi transver- aqui uma contradição. Contudo, transfor- explicações estão erradas. resultados foi transversal no país. Terceiro,
sal. Nas três áreas de avaliação (Leitura, mar uma tendência tão negativa numa Comecemos pela imigração. A primei- porque não há indicadores de as escolas
Matemática e Ciências), a percentagem tendência positiva levantou suspeitas. ra década dos anos 2000 observou um privadas prejudicarem resultados para os
de alunos com muito maus desempenhos E, consequentemente, críticas da própria aumento da imigração na Suécia. E, efec- seus alunos ou para os das escolas à sua
aumentou. Por exemplo, em Matemática OCDE quanto à fiabilidade das avaliações tivamente, em 2012 nenhum país escandi- volta. E se os resultados pioraram ao longo
essa percentagem passou de 17% do total nacionais na Suécia. O maior dos proble- navo tinha uma taxa tão elevada de alunos de uma década, é factual que, entre 2006 e
em 2003 para 27% do total em 2012 – um mas? A disparidade entre os critérios de imigrantes como a sueca: 15%. Estes são os 2015, a percentagem de alunos de 15 anos
aumento muito acentuado e o maior entre avaliação utilizados por parte dos profes- factos que, à partida, poderiam sugerir um em escolas privadas duplicou (de 8% para
a OCDE. No mesmo sentido, a percentagem sores, que inviabilizaria as comparações impacto directo da imigração nos desem- 16%), num período em que os resultados
de alunos com muito bons desempenhos entre escolas. penhos médios dos alunos suecos. Só que, no PISA até melhoraram – ou seja, não há
diminuiu em todas as áreas, sendo que É habitual falar-se sobretudo de desem- analisando os dados das avaliações inter- aqui nenhuma relação causa-efeito, seja
em Matemática, entre 2003 e 2012, essa penhos escolares. Mas, da mesma forma nacionais, essa relação não surge como num sentido seja noutro.
percentagem reduziu-se para metade (de que a educação não é apenas as notas, tantos alegam. Mesmo que superior à taxa Resumindo: a raiz do problema não es-
16% para 8%). Ou seja, os alunos pioraram os problemas do sistema educativo sueco em 2003 (12%), em 2012 a diferença é pe- tava nos sítios para onde toda a gente tem
a todos os níveis e em todas as áreas. manifestaram-se noutras áreas. Nomeada- quena e pequena é igualmente a influência estado a olhar e para onde o debate político
A deterioração dos resultados não se mente numa: a equidade entre escolas. Em desses alunos na descida transversal dos focou as suas atenções.
manifestou somente no PISA. A mesma 1998, a diferença de resultados entre esco- desempenhos escolares. É que todos os alu- Sendo assim, qual é o diagnóstico cor-
tendência surgiu noutras avaliações in- las rondava os 8%. Em 2011, ultrapassava os nos pioraram, fossem imigrantes ou não, recto?
ternacionais, como o TIMSS (que mede 18%. Este dado foi um dos mais discutidos frequentassem ou não escolas com maior A pergunta não motivou apenas o deba-
competências em matemática) e no PIRLS ao longo dos anos. Seria uma consequência presença de alunos imigrantes, estivessem te público, levou peritos internacionais à
(que mede competências em leitura). No da reforma? Seria uma consequência da ou não em municípios com imigração. Suécia para tentar responder ao mistério.
TIMSS, entre 1995 e 2011, os alunos suecos imigração? Não há respostas definitivas Isto não significa que a chegada de alunos E a principal conclusão é que a raiz do
pioraram em 55 pontos – a maior queda para nenhuma das perguntas em termos imigrantes, com bases escolares abaixo das problema estava na forma precipitada
entre os países participantes. E, no PIRLS, de relação causa-efeito. Mas, dito isto, seria exigências suecas e muitas vezes sem sequer como se implementou a descentralização
entre 2001 e 2011, os alunos suecos de 10/11 uma ingenuidade ignorar que, com maior falar a língua, não causasse dificuldades ao de competências para os municípios, entre-
anos exibiram uma acentuada queda nos ou menor intensidade, tanto a reforma sistema educativo sueco. Ainda hoje esse é gando a autonomia de decisão a quem não
seus desempenhos. como a imigração contribuíram para este um grande desafio. Mas um desafio à parte. estava preparado para a assumir. Vejamos
Se os resultados negativos são inequívo- acentuar de desigualdades. Simplesmente, a imigração não justifica a o diagnóstico, a partir de duas sínteses
cos, o que justificou a demora na reacção O que se diz (erradamente) que provo- queda dos desempenhos dos alunos suecos da OCDE – Improving Schools in Sweden
das autoridades suecas? A pergunta é ób- cou a queda de resultados? nas avaliações internacionais. (2015) e Shifting Responsabilities: 20 Ye-
via, mas enganadora. Ao longo dos anos, Identificar os sintomas é fácil. Fazer o O que dizer, então, da liberalização do ars of Educational Devolution in Sweden
as autoridades suecas até foram afinando diagnóstico correcto é difícil. Quem segue sistema educativo, que introduziu escolas (2014) – destacando três principais pro-
as características do seu sistema educa- o debate público na educação já decerto privadas na rede pública? Que, em ter- blemas.
tivo. O ponto é que essas alterações não ouviu várias explicações para o que suce- mos de desempenhos escolares, não está Primeiro: a falta de uma visão sistémica e
foram suficientemente profundas e ágeis deu na Suécia. Duas explicações em parti- relacionada com a queda de resultados. de capacidade instalada. A reforma definiu-
para produzirem resultados imediatos. E cular. Primeira: por causa do aumento de Apesar de este ser um dos aspectos que -se pela sua brusquidão. De um momento
parte da prudência com que essas altera- imigrantes na Suécia, a entrada de alunos mais controvérsia gera no debate, os da- para o outro, entregaram as responsabi-
ções foram preparadas está relacionada estrangeiros no sistema educativo puxou os dos do PISA não confirmam a existência lidades da governação da educação aos
com um fenómeno curioso: enquanto as resultados para baixo. Segunda: a entrada dessa relação causal. E, de facto, é simples municípios – sem apoio ou orientação
avaliações internacionais apontavam para de escolas privadas na rede pública e o perceber os fundamentos dessa rejeição. das autoridades centrais. Resultado: uma
um descalabro, as avaliações nacionais exercício de escolha da escola por parte do Primeiro, porque apenas uma minoria dos montanha de equívocos. Uma vez que os
indicavam uma melhoria consistente dos país desequilibrou o sistema e deteriorou alunos frequenta escolas privadas na rede municípios não foram preparados para a
resultados escolares. a qualidade das escolas municipais. No pública – e todos os alunos suecos baixa- transição, ou sequer consultados duran-
56 EDUCAÇÃO NA SUÉCIA
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muito abaixo dos seus países vizinhos do É claro que as avaliações não são todas debate político, a primeira é mais comum à ram os seus resultados. Segundo, porque
norte da Europa. Pior: entre 2000 e 2012, iguais nem medem todas as mesmas com- direita e a segunda mais comum à esquer- não há escolas privadas na rede pública
nenhum país piorou tanto como a Suécia. petências, pelo que não é forçoso encontrar da. Quem tem razão? Ninguém: ambas as em todos os municípios – mas a baixa de
A queda nos resultados foi transver- aqui uma contradição. Contudo, transfor- explicações estão erradas. resultados foi transversal no país. Terceiro,
sal. Nas três áreas de avaliação (Leitura, mar uma tendência tão negativa numa Comecemos pela imigração. A primei- porque não há indicadores de as escolas
Matemática e Ciências), a percentagem tendência positiva levantou suspeitas. ra década dos anos 2000 observou um privadas prejudicarem resultados para os
de alunos com muito maus desempenhos E, consequentemente, críticas da própria aumento da imigração na Suécia. E, efec- seus alunos ou para os das escolas à sua
aumentou. Por exemplo, em Matemática OCDE quanto à fiabilidade das avaliações tivamente, em 2012 nenhum país escandi- volta. E se os resultados pioraram ao longo
essa percentagem passou de 17% do total nacionais na Suécia. O maior dos proble- navo tinha uma taxa tão elevada de alunos de uma década, é factual que, entre 2006 e
em 2003 para 27% do total em 2012 – um mas? A disparidade entre os critérios de imigrantes como a sueca: 15%. Estes são os 2015, a percentagem de alunos de 15 anos
aumento muito acentuado e o maior entre avaliação utilizados por parte dos profes- factos que, à partida, poderiam sugerir um em escolas privadas duplicou (de 8% para
a OCDE. No mesmo sentido, a percentagem sores, que inviabilizaria as comparações impacto directo da imigração nos desem- 16%), num período em que os resultados
de alunos com muito bons desempenhos entre escolas. penhos médios dos alunos suecos. Só que, no PISA até melhoraram – ou seja, não há
diminuiu em todas as áreas, sendo que É habitual falar-se sobretudo de desem- analisando os dados das avaliações inter- aqui nenhuma relação causa-efeito, seja
em Matemática, entre 2003 e 2012, essa penhos escolares. Mas, da mesma forma nacionais, essa relação não surge como num sentido seja noutro.
percentagem reduziu-se para metade (de que a educação não é apenas as notas, tantos alegam. Mesmo que superior à taxa Resumindo: a raiz do problema não es-
16% para 8%). Ou seja, os alunos pioraram os problemas do sistema educativo sueco em 2003 (12%), em 2012 a diferença é pe- tava nos sítios para onde toda a gente tem
a todos os níveis e em todas as áreas. manifestaram-se noutras áreas. Nomeada- quena e pequena é igualmente a influência estado a olhar e para onde o debate político
A deterioração dos resultados não se mente numa: a equidade entre escolas. Em desses alunos na descida transversal dos focou as suas atenções.
manifestou somente no PISA. A mesma 1998, a diferença de resultados entre esco- desempenhos escolares. É que todos os alu- Sendo assim, qual é o diagnóstico cor-
tendência surgiu noutras avaliações in- las rondava os 8%. Em 2011, ultrapassava os nos pioraram, fossem imigrantes ou não, recto?
ternacionais, como o TIMSS (que mede 18%. Este dado foi um dos mais discutidos frequentassem ou não escolas com maior A pergunta não motivou apenas o deba-
competências em matemática) e no PIRLS ao longo dos anos. Seria uma consequência presença de alunos imigrantes, estivessem te público, levou peritos internacionais à
(que mede competências em leitura). No da reforma? Seria uma consequência da ou não em municípios com imigração. Suécia para tentar responder ao mistério.
TIMSS, entre 1995 e 2011, os alunos suecos imigração? Não há respostas definitivas Isto não significa que a chegada de alunos E a principal conclusão é que a raiz do
pioraram em 55 pontos – a maior queda para nenhuma das perguntas em termos imigrantes, com bases escolares abaixo das problema estava na forma precipitada
entre os países participantes. E, no PIRLS, de relação causa-efeito. Mas, dito isto, seria exigências suecas e muitas vezes sem sequer como se implementou a descentralização
entre 2001 e 2011, os alunos suecos de 10/11 uma ingenuidade ignorar que, com maior falar a língua, não causasse dificuldades ao de competências para os municípios, entre-
anos exibiram uma acentuada queda nos ou menor intensidade, tanto a reforma sistema educativo sueco. Ainda hoje esse é gando a autonomia de decisão a quem não
seus desempenhos. como a imigração contribuíram para este um grande desafio. Mas um desafio à parte. estava preparado para a assumir. Vejamos
Se os resultados negativos são inequívo- acentuar de desigualdades. Simplesmente, a imigração não justifica a o diagnóstico, a partir de duas sínteses
cos, o que justificou a demora na reacção O que se diz (erradamente) que provo- queda dos desempenhos dos alunos suecos da OCDE – Improving Schools in Sweden
das autoridades suecas? A pergunta é ób- cou a queda de resultados? nas avaliações internacionais. (2015) e Shifting Responsabilities: 20 Ye-
via, mas enganadora. Ao longo dos anos, Identificar os sintomas é fácil. Fazer o O que dizer, então, da liberalização do ars of Educational Devolution in Sweden
as autoridades suecas até foram afinando diagnóstico correcto é difícil. Quem segue sistema educativo, que introduziu escolas (2014) – destacando três principais pro-
as características do seu sistema educa- o debate público na educação já decerto privadas na rede pública? Que, em ter- blemas.
tivo. O ponto é que essas alterações não ouviu várias explicações para o que suce- mos de desempenhos escolares, não está Primeiro: a falta de uma visão sistémica e
foram suficientemente profundas e ágeis deu na Suécia. Duas explicações em parti- relacionada com a queda de resultados. de capacidade instalada. A reforma definiu-
para produzirem resultados imediatos. E cular. Primeira: por causa do aumento de Apesar de este ser um dos aspectos que -se pela sua brusquidão. De um momento
parte da prudência com que essas altera- imigrantes na Suécia, a entrada de alunos mais controvérsia gera no debate, os da- para o outro, entregaram as responsabi-
ções foram preparadas está relacionada estrangeiros no sistema educativo puxou os dos do PISA não confirmam a existência lidades da governação da educação aos
com um fenómeno curioso: enquanto as resultados para baixo. Segunda: a entrada dessa relação causal. E, de facto, é simples municípios – sem apoio ou orientação
avaliações internacionais apontavam para de escolas privadas na rede pública e o perceber os fundamentos dessa rejeição. das autoridades centrais. Resultado: uma
um descalabro, as avaliações nacionais exercício de escolha da escola por parte do Primeiro, porque apenas uma minoria dos montanha de equívocos. Uma vez que os
indicavam uma melhoria consistente dos país desequilibrou o sistema e deteriorou alunos frequenta escolas privadas na rede municípios não foram preparados para a
resultados escolares. a qualidade das escolas municipais. No pública – e todos os alunos suecos baixa- transição, ou sequer consultados duran-
58 EDUCAÇÃO NA SUÉCIA OPINIÃO 59
O consenso
dos chefes moderados e sérios dos dois conhecida pelo nome de exclusivismo, sessenta anos sugaram o “povinho” com próprias palavras, de procurar sempre o
lados do conflito larvar do reino. Da he- o que mostra bem a educação histórica entusiasmo e minúcia. O primeiro governo “ponto de equilíbrio” da “razão e do senso”.
rança do bom rei João, D. Pedro ficava com do indigenato. De qualquer maneira esta da Regeneração, o de Saldanha, misturava Na nossa II (ou III) República, recebe-
o Brasil e o irmão com Portugal: metade- clássica tentativa de “consenso”, que che- toda a gente e até apanhava gente nova, mos sem protesto o Bloco Central e agora
-metade, como aconselhava o bom senso. A gara de França, não se aguentou muito como Fontes Pereira de Melo. Durou cinco temos os propagandistas do consenso.
guerra civil explodiu dali a semanas (1826) tempo. Cabral pagava pontualmente ao anos. A seguir veio um governo de Loulé Ponham o consenso a governar e verão o
e durou até 1834, deixando para trás cente- funcionalismo do Estado, restabeleceu (tio do rei), ou seja, dos setembristas con- que arranjam.
nas de milhares de mortos (entre militares relações normais com Roma e a hierar- vertidos à Carta, que durou de 1856 a 1865
O consenso
dos chefes moderados e sérios dos dois conhecida pelo nome de exclusivismo, sessenta anos sugaram o “povinho” com próprias palavras, de procurar sempre o
lados do conflito larvar do reino. Da he- o que mostra bem a educação histórica entusiasmo e minúcia. O primeiro governo “ponto de equilíbrio” da “razão e do senso”.
rança do bom rei João, D. Pedro ficava com do indigenato. De qualquer maneira esta da Regeneração, o de Saldanha, misturava Na nossa II (ou III) República, recebe-
o Brasil e o irmão com Portugal: metade- clássica tentativa de “consenso”, que che- toda a gente e até apanhava gente nova, mos sem protesto o Bloco Central e agora
-metade, como aconselhava o bom senso. A gara de França, não se aguentou muito como Fontes Pereira de Melo. Durou cinco temos os propagandistas do consenso.
guerra civil explodiu dali a semanas (1826) tempo. Cabral pagava pontualmente ao anos. A seguir veio um governo de Loulé Ponham o consenso a governar e verão o
e durou até 1834, deixando para trás cente- funcionalismo do Estado, restabeleceu (tio do rei), ou seja, dos setembristas con- que arranjam.
nas de milhares de mortos (entre militares relações normais com Roma e a hierar- vertidos à Carta, que durou de 1856 a 1865
Fátima:
100 anos
de uma
história
mal
contada
Durante o último século, o que se fez em Fátima
foi isto: manipular um acontecimento até fazer
desaparecer toda a surpresa e complexidade. Mas
Fátima resiste às suas caricaturas. Eis como três
crianças numa charneca iniciaram um dos maiores
movimentos de massa da história de Portugal.
Rui Ramos
Na história de Fátima, a explicação certas circunstâncias, até fazer desaparecer sistematicamente documentado. Sem sair dizia o cónego Manuel Nunes Formigão, de Fátima conseguiram ser claros. Em que revelações. Eram meninos incultos? Não pelas cidades. Para eles, a população que uma população integrada no Estado e na
mais simples é a da “aparição” – ou da “vi- toda a sua surpresa e complexidade. Em A da história, é possível sugerir um contexto professor do Seminário de Santarém, “não sentido eram os pais das crianças “gente frequentavam a escola, mas uma das reco- cavava a terra e criava gado era uma mas- igreja, que fazia muita questão de respeitar
são”, como preferem os teólogos mais me- Fabricação de Fátima, traduzido em 1971, mais interessante para Fátima do que o da são cabeças onde pudesse germinar o gigan- pobre”? Na aldeia de Aljustrel, os seus vi- mendações da Virgem foi que aprendessem sa indistintamente “pobre” e “simples”. a autoridade, fosse a do clero ou a da admi-
lindrosos – da Virgem Maria. Todas as outras o professor da Universidade de Estrasburgo “religiosidade popular” e o do conflito entre tesco desígnio de mistificar toda a gente”. zinhos achavam-nos “abastados”. O pai de a ler, o que aliás deixou “descrente” a mãe A passagem do tempo generalizou essa nistração pública. Quando o administrador
explicações são mais ou menos rebuscadas. Prosper Alfaric ensinou como proceder: o Estado e a Igreja. Para os inimigos de Fátima, pelo contrário, Lúcia era precisamente o dono da Cova de de Lúcia, porque, conforme declarou no impressão. Com o fim da sociedade rural do concelho de Ourém mandou chamar os
O problema é o da proverbial borboleta bastaria descrever o lugar e a época, e “os era a prova da sua vulnerabilidade a delírios Iria. A Cova de Iria era um ermo distante, diz inquérito canónico de 1923, custava-lhe a e a aplicação retrospectiva da noção de videntes, a 11 de Agosto de 1917, o pai de
que bate as asas na Amazónia e causa uma factos maravilhosos explicar-se-ão então 1. Uma história e a manipulação. Que se poderia esperar – Formigão, mas depois nota, inocentemente, crer que “Nossa Senhora (tivesse) vindo à “subdesenvolvimento”, as imagens da época Jacinta e de Francisco não os levou, mas
tempestade na Florida: como é que em Maio muito naturalmente”. O lugar: uma povoa- segundo João Ilharco, autor de um violento que a “trezentos metros” corria uma “gran- terra para lhe dizer que aprendesse a ler”. transformaram-se em janelas para um mun- teve o cuidado de se apresentar ele próprio.
de 1917 três crianças numa charneca – Lúcia ção isolada e pobre na serra de Aire, perdida do povo panfleto publicado em 1971 – de um “luga- de estrada distrital”, em macadame. Os seus A mãe de Lúcia, todavia, era alfabetizada, do que o moderno espectador urbano só O administrador irritou-se: “então desobe-
Santos, de 10 anos, Francisco Marto, de 9 numa idade média de lendas e folclore. A No começo de Fátima, não está, como em rejo perdido no meio de cerros”, habitado habitantes eram gente isolada do resto do e lia livros de devoção aos filhos (entre os pode considerar exótico: as expressões, as dece?!” O lavrador respondeu, habilmente:
anos, e Jacinta Marto, de 7 anos – iniciaram época: 1917, na Europa mais um ano de guer- outros acontecimentos do tempo, um chefe por “pessoas ignorantes e crendeiras”, e de mundo? Numa nota dos Documentos Crí- quais, a Missão Abreviada, que descrevia roupas, as casas, tudo suscita agora aquela “Não, porque aqui estou.” A mãe de Lúcia
um dos maiores movimentos de massas da ra, com faltas generalizadas de alimentos e doutorado ou um partido político, mas três três crianças de “tipo grosseiro”, “broncas e ticos de Fátima, descobrimos que um dos a aparição de La Salette). Antes de 1917, a mistura de repulsa e de comiseração que os não se inquietou quando o administrador,
história de Portugal, de que resultaria, nas de combustíveis, e em Portugal mais um ano crianças da aldeia de Aljustrel, na serra de abúlicas”, em que eram manifestos o “atro- irmãos mais velhos de Lúcia tinha estado família já conhecia o Padre Cruz, o mais povos das colónias inspiravam outrora ao no dia 13 de Agosto de 1917, sequestrou os
décadas seguintes, um dos mais importantes de confronto entre um governo republicano Aire. Os apologistas de Fátima e os seus fiamento das actividades mentais e falta de emigrado no Brasil, donde voltara em 1917 célebre padre de Lisboa. explorador europeu. Uma espécie de olhar videntes, “porque sabia que não comiam
santuários europeus, uma nova cidade e um laicista e o clero católico. inimigos caracterizaram-nas da mesma entendimento”? e para onde regressaria em 1925. Um irmão O problema é que todos os autores que colonial contaminou quase tudo o que se as crianças”.
culto que já trouxe a Portugal vários papas? Há mais alguma coisa para saber? Há, maneira: seriam “simples” e “ignorantes”. Curiosamente, para teses que dependiam de Jacinta cumpria serviço militar em Cabo nesse tempo escreveram sobre Fátima, in- escreveu sobre Fátima e os seus habitantes. A freguesia de Fátima, em 1917, também
Há um truque para não ter problemas: muita coisa. Nenhum outro acontecimento Para os apologistas, estava aí a garantia da tanto da caracterização dos protagonistas e Verde. As crianças, aliás, fizeram do fim da cluindo os padres locais, eram membros Este não era, porém, o povo selvagem e não era exactamente um local inacessível
é agarrar no acontecimento, e reduzi-lo a histórico do século XX em Portugal está tão sinceridade dos videntes: “evidentemente”, do seu meio, nem apologistas nem inimigos guerra na Europa a matéria principal das de uma classe letrada que viera ou passara messiânico dos romances de aventuras. Era e parado no tempo. A população estava
64 FÁTIMA 65
Fátima:
100 anos
de uma
história
mal
contada
Durante o último século, o que se fez em Fátima
foi isto: manipular um acontecimento até fazer
desaparecer toda a surpresa e complexidade. Mas
Fátima resiste às suas caricaturas. Eis como três
crianças numa charneca iniciaram um dos maiores
movimentos de massa da história de Portugal.
Rui Ramos
Na história de Fátima, a explicação certas circunstâncias, até fazer desaparecer sistematicamente documentado. Sem sair dizia o cónego Manuel Nunes Formigão, de Fátima conseguiram ser claros. Em que revelações. Eram meninos incultos? Não pelas cidades. Para eles, a população que uma população integrada no Estado e na
mais simples é a da “aparição” – ou da “vi- toda a sua surpresa e complexidade. Em A da história, é possível sugerir um contexto professor do Seminário de Santarém, “não sentido eram os pais das crianças “gente frequentavam a escola, mas uma das reco- cavava a terra e criava gado era uma mas- igreja, que fazia muita questão de respeitar
são”, como preferem os teólogos mais me- Fabricação de Fátima, traduzido em 1971, mais interessante para Fátima do que o da são cabeças onde pudesse germinar o gigan- pobre”? Na aldeia de Aljustrel, os seus vi- mendações da Virgem foi que aprendessem sa indistintamente “pobre” e “simples”. a autoridade, fosse a do clero ou a da admi-
lindrosos – da Virgem Maria. Todas as outras o professor da Universidade de Estrasburgo “religiosidade popular” e o do conflito entre tesco desígnio de mistificar toda a gente”. zinhos achavam-nos “abastados”. O pai de a ler, o que aliás deixou “descrente” a mãe A passagem do tempo generalizou essa nistração pública. Quando o administrador
explicações são mais ou menos rebuscadas. Prosper Alfaric ensinou como proceder: o Estado e a Igreja. Para os inimigos de Fátima, pelo contrário, Lúcia era precisamente o dono da Cova de de Lúcia, porque, conforme declarou no impressão. Com o fim da sociedade rural do concelho de Ourém mandou chamar os
O problema é o da proverbial borboleta bastaria descrever o lugar e a época, e “os era a prova da sua vulnerabilidade a delírios Iria. A Cova de Iria era um ermo distante, diz inquérito canónico de 1923, custava-lhe a e a aplicação retrospectiva da noção de videntes, a 11 de Agosto de 1917, o pai de
que bate as asas na Amazónia e causa uma factos maravilhosos explicar-se-ão então 1. Uma história e a manipulação. Que se poderia esperar – Formigão, mas depois nota, inocentemente, crer que “Nossa Senhora (tivesse) vindo à “subdesenvolvimento”, as imagens da época Jacinta e de Francisco não os levou, mas
tempestade na Florida: como é que em Maio muito naturalmente”. O lugar: uma povoa- segundo João Ilharco, autor de um violento que a “trezentos metros” corria uma “gran- terra para lhe dizer que aprendesse a ler”. transformaram-se em janelas para um mun- teve o cuidado de se apresentar ele próprio.
de 1917 três crianças numa charneca – Lúcia ção isolada e pobre na serra de Aire, perdida do povo panfleto publicado em 1971 – de um “luga- de estrada distrital”, em macadame. Os seus A mãe de Lúcia, todavia, era alfabetizada, do que o moderno espectador urbano só O administrador irritou-se: “então desobe-
Santos, de 10 anos, Francisco Marto, de 9 numa idade média de lendas e folclore. A No começo de Fátima, não está, como em rejo perdido no meio de cerros”, habitado habitantes eram gente isolada do resto do e lia livros de devoção aos filhos (entre os pode considerar exótico: as expressões, as dece?!” O lavrador respondeu, habilmente:
anos, e Jacinta Marto, de 7 anos – iniciaram época: 1917, na Europa mais um ano de guer- outros acontecimentos do tempo, um chefe por “pessoas ignorantes e crendeiras”, e de mundo? Numa nota dos Documentos Crí- quais, a Missão Abreviada, que descrevia roupas, as casas, tudo suscita agora aquela “Não, porque aqui estou.” A mãe de Lúcia
um dos maiores movimentos de massas da ra, com faltas generalizadas de alimentos e doutorado ou um partido político, mas três três crianças de “tipo grosseiro”, “broncas e ticos de Fátima, descobrimos que um dos a aparição de La Salette). Antes de 1917, a mistura de repulsa e de comiseração que os não se inquietou quando o administrador,
história de Portugal, de que resultaria, nas de combustíveis, e em Portugal mais um ano crianças da aldeia de Aljustrel, na serra de abúlicas”, em que eram manifestos o “atro- irmãos mais velhos de Lúcia tinha estado família já conhecia o Padre Cruz, o mais povos das colónias inspiravam outrora ao no dia 13 de Agosto de 1917, sequestrou os
décadas seguintes, um dos mais importantes de confronto entre um governo republicano Aire. Os apologistas de Fátima e os seus fiamento das actividades mentais e falta de emigrado no Brasil, donde voltara em 1917 célebre padre de Lisboa. explorador europeu. Uma espécie de olhar videntes, “porque sabia que não comiam
santuários europeus, uma nova cidade e um laicista e o clero católico. inimigos caracterizaram-nas da mesma entendimento”? e para onde regressaria em 1925. Um irmão O problema é que todos os autores que colonial contaminou quase tudo o que se as crianças”.
culto que já trouxe a Portugal vários papas? Há mais alguma coisa para saber? Há, maneira: seriam “simples” e “ignorantes”. Curiosamente, para teses que dependiam de Jacinta cumpria serviço militar em Cabo nesse tempo escreveram sobre Fátima, in- escreveu sobre Fátima e os seus habitantes. A freguesia de Fátima, em 1917, também
Há um truque para não ter problemas: muita coisa. Nenhum outro acontecimento Para os apologistas, estava aí a garantia da tanto da caracterização dos protagonistas e Verde. As crianças, aliás, fizeram do fim da cluindo os padres locais, eram membros Este não era, porém, o povo selvagem e não era exactamente um local inacessível
é agarrar no acontecimento, e reduzi-lo a histórico do século XX em Portugal está tão sinceridade dos videntes: “evidentemente”, do seu meio, nem apologistas nem inimigos guerra na Europa a matéria principal das de uma classe letrada que viera ou passara messiânico dos romances de aventuras. Era e parado no tempo. A população estava
66 FÁTIMA FÁTIMA 67
dispersa por várias aldeias, e as suas pro- da estação de Chão de Maçãs, na Linha do autoridade eclesiástica (em 1938, ainda Lú- quando tudo estava a mudar. Durante muito
priedades espalhadas por toda a região. Norte, e a 25 km da estação de Leiria, na cia dizia a Antero de Figueiredo, acerca dos tempo, o catolicismo parecera destinado a
As deslocações eram constantes. Foi pelas Linha do Oeste. De facto, o milagre deu- “segredos”: “Ninguém na terra tem poder não passar de uma “reacção” nostálgica
serranas que vinham vender carvão que em -se no que era um dos principais eixos de para me mandar falar sobre tal assunto”). contra a época moderna. O papa Leão XIII,
Torres Novas se soube das aparições logo comunicação do país, o que explica que hoje Os riscos eram óbvios. Era impossível com a “doutrina social da Igreja” e o “neo-
no princípio de Julho. Não era um povo o santuário esteja convenientemente ao pé adivinhar o que crianças sujeitas às maiores -tomismo”, começara a reconstruí-lo como
dado à crença fácil. A mãe de Lúcia não da A1. Em 1917, ainda os acessos não eram pressões acabariam por dizer ou fazer. O uma resposta aos impasses e insuficiências
acreditou na filha e tentou obrigá-la a con- tão fáceis (de Santarém, demorava-se três administrador do concelho e os militantes da modernidade. Novos movimentos cató-
fessar: “vocês andam a enganar o povo”. horas de automóvel), mas a paciência dos laicistas estavam vigilantes. Toda a gen- licos passaram a aspirar a uma Igreja da
Angustiou-a sempre a “vergonha a que se viajantes era outra, e estes foram também te desconfiava de toda a gente. O pároco sociedade civil, e não do Estado, e a uma
expunha”. A aldeia dividiu-se. O jornalista os anos em que os veículos automóveis se de Fátima foi acusado de colaborar com a religião de crença e militância, e não de sim-
Avelino de Almeida, em 13 de Outubro de multiplicaram: 4335 registados em 1917, 5183 administração do concelho, e ele próprio ples cerimónia e rotina. Tudo isso provocou
1917, tomou nota do sarcasmo do carroceiro em 1919, 14 868 em 1925, 23 463 em 1927, suspeitou do prior de Porto de Mós. O povo conflitos dentro da igreja, como a polémica
a quem perguntou se vira a “Senhora” na com 50 carreiras de transporte no sul e 80 oscilou: a 11 de Novembro de 1917, o prior sobre o “modernismo” (1907), mas gerou o
Cova de Iria: “eu cá só lá vi pedras, carros, no norte. Em Outubro de 1917, os jornalistas de Porto de Mós informava o patriarcado ambiente em que Fátima pôde escapar a ser
automóveis, cavalgaduras e gente”. Em contaram mais de 100 automóveis estacio- que a fé “resfriara”, devido à continuação arquivada entre o folclore rural.
Vila Nova de Ourém, na véspera, muitas nados na estrada, ao pé da Cova de Iria. da guerra, cujo fim Lúcia anunciara a 13 A história de Fátima não fez parte da
“mulheres do povo” riam-se: “Então vais Houve quem tivesse decidido ir na véspera, de Outubro. Nem os mais devotos estavam restauração de um catolicismo tradicional,
ver amanhã a santa?” No seu depoimento como o Sr. Alfredo da Silva Santos contou a constantemente disponíveis: em 1920, For- mas da emergência de um novo catolicis-
de 1923, uma das primeiras crentes, Maria John de Marchi, um padre americano que migão lamentou que quando Jacinta ado- mo, que iria ser protagonizado por uma
Carreira, lembrou como no Verão de 1917 investigou a história de Fátima nos anos eceu, não se tivesse conseguido encontrar Igreja muito diferente da Igreja do século
“tivera de arrostar com a troça das pessoas 40: a 12 de Outubro de 1917, sexta-feira, em Lisboa uma “pessoa abastada” para XIX. O contraste de opiniões entre os cató-
da sua terra”. Em 1938, o escritor Antero de Silva Santos estava no café Martinho, em a acolher, embora depois da sua morte, licos é, a esse respeito, sugestivo. Um dos
Figueiredo descreveu Fátima como “um Lisboa, quando um primo lhe apareceu, a se “mostra(ssem) solícitas em lhe prestar artigos mais cépticos sobre Fátima saiu no
sítio ao mesmo tempo de fé intensa e de dizer: “Toda a gente vai a Fátima amanhã.” homenagem”. principal jornal católico, A Ordem, a 17 de
extensa incredulidade; de alta beleza, e de Ali mesmo, num dos centros da vida social Como não podia deixar de ser, dada a Outubro de 1917. O seu autor, o advogado
intriga e mesquinhez”. Por alguma razão, e intelectual da Baixa, decidiram ir juntos. natureza do caso, o clero esteve sempre en- Domingos Pinto Coelho, de uma família
Lúcia pediu sempre à Virgem um “milagre” Com outros amigos, em três automóveis, volvido, desde os párocos locais, pelas suas miguelista, era, aos 62 anos, a encarnação
para a população acreditar. Mas segundo saíram de manhã cedo e chegaram à Cova funções, até aos seminaristas que Avelino de do mais rigoroso tradicionalismo. Não he-
o jornalista Costa Brochado, teria sido o de Iria por volta do meio-dia. Almeida viu na Cova de Iria a 13 de Outubro sitou em aplicar a Fátima um duche gelado:
Padre Cruz quem, ao fazer uma visita ao A localização e a propaganda jornalística de 1917, movidos pela curiosidade, mas man- “o milagre é excepção. E as excepções não
local, estabeleceu finalmente a “confiança tornaram possível que a 13 de Outubro, para tendo-se prudentemente à distância, como se presumem. Precisam de prova cabal.”
de toda a gente” no milagre. O padre de a última aparição, em que se esperava um “mirones”. Nos interrogatórios aos videntes, Ora, havia apenas “as afirmações de três
Lisboa obteve o que a suposta credulidade “sinal”, tivessem aparecido milhares de pes- o pároco de Fátima, o cónego Formigão ou crianças e mais nada”: “é muito pouco”.
indígena não produzira. soas de fora da freguesia. Para muita gente, o padre José Ferreira Lacerda, director do Pinto Coelho também estivera na Cova de
Na verdade, foi preciso mais do que su- como o padre Luís de Andrade e Silva, num jornal Mensageiro de Leiria, mostraram- Iria, como “curioso”. O fenómeno solar seria
perstição montanhesa. A serra já tinha sido depoimento de 30 de Dezembro de 1917, o -se determinados, e com muita habilidade, “coisa excepcional”? Não: vira o mesmo
o local de uma antiga romaria no século que fez destacar Fátima de todos os outros em despistar histeria, sugestão ou malícia. espectáculo em Lisboa, uns dias depois. Em
XVII, a da Nossa Senhora da Ortiga, e toda casos de “aparições” foi precisamente este Perguntou-se aos videntes se conheciam Fátima, funcionara apenas a “psicologia
a região, como outras em Portugal, estava facto: a sua “rápida propagação por todo a história de La Salette, ou o que “veste colectiva” das “multidões”, agitadas por
cheia de invocações marianas. Mas Fátima o país”, arrastando gente “de todas as clas- a imagem da capela onde costumam ir à uma “grande onda de fé”.
não foi simplesmente um episódio daquela ses sociais”. Na manhã de 13 de Outubro, missa”. Nunca a excitação venceu a cautela. A dissonância com o artigo do escritor
“religiosidade popular”, primitiva e rural, a baronesa de Almeirim veio trazer dois Em 1918, o pároco de Fátima reportou ao António Sardinha no jornal Monarquia, de
que fascinou os folcloristas românticos e vestidos novos às videntes: um azul para patriarcado que a mãe de Lúcia, em Maio de 8 de Novembro de 1917, não podia ser maior.
depois alimentou doutoramentos de antro- Lúcia, e outro branco para Jacinta, além 1917, lhe pedira que instruísse a filha sobre Aos 30 anos de idade, Sardinha liderava
pologia. Na segunda aparição, a 13 de Junho de grinaldas de flores artificiais. O barão que dizer à aparição: “disso a dissuadi, para um novo movimento intelectual, o “Inte-
de 1917, esteve pouca gente, umas 40 a 50 de Alvaiázere, advogado e funcionário do evitar algum mau conceito que a impiedade gralismo Lusitano”. Ao contrário de Pinto
pessoas, porque as famílias dos videntes Registo Civil, encontrou na Cova de Iria ou os mal intencionados pudessem fazer, Coelho, tinha poucos anos de monárquico
tal como a demais população de Aljustrel muitos conhecidos de Lisboa. E por uma como ainda assim fizeram”. Mas os padres e católico. Em 1910, ainda era republicano e
preferiram as festas de Santo António em desprevenida nota de Tomás da Fonseca, não estavam apenas a prevenir, maquiave- “livrepensador”. Sardinha não citou autori-
Ourém. Em Julho, teriam aparecido umas no seu livro Fátima, descobrimos que o licamente, as objecções de outros. Carlos dades e protocolos eclesiásticos, como Pinto
2500 pessoas, segundo o administrador do célebre escritor António Sérgio também de Azevedo Mendes, advogado de Torres Coelho, mas cientistas, filósofos e matemáti-
concelho de Ourém. Mas foi a partir do mês esteve na Cova de Iria no dia 13 de Outubro, Novas, almoçou com o pároco de Fátima e cos contemporâneos (William James, Henri
seguinte que se deu uma explosão: sempre a “acompanhar a esposa”. mais seis padres no dia 7 de Setembro de Bergson, Henri Poincaré, Georg Riemann,
segundo o administrador, muito contido nas A quatro anos de começar a colaborar na se desvanecem”. Acontece que Fátima não um inimigo de Fátima, mas o seu princi- ● Fátima impôs-se muito antes de receber o patrocí- 1917, e reparou que a insistência das crian- etc.), para defender que as aparições faziam
estimativas, acorreram 12 a 15 000 pessoas Seara Nova, Sérgio já era a encarnação viva foi simplesmente um surto de “sonhos se- pal propagandista, o cónego Formigão, no ças sob interrogatório “impressionava-os”, todo o sentido, não à luz da pseudociência
em Agosto, 20 000 em Setembro e, final- do “racionalismo”. Como seria de esperar, dutores e brilhantes” num círculo singelo processo canónico diocesano de 1930. Os nio do Estado Novo e da sua expansão internacional. mas que todos concordavam em que “não materialista do século XIX, mas da nova ci-
mente, em Outubro, entre 30 a 40 000. não lhe foi difícil criar uma explicação para de lavradores analfabetos, confundidos por anti-fatimistas copiaram depois estes dados era razão suficiente para poderem formar ência do século XX. Inverteu assim os termos
Ora, entre Julho e Agosto, o que aconte- a célebre “dança do sol”, testemunhada tradições marianas e fenómenos atmosféri- para demonstrar que Fátima nada tivera e o episcopado de Portugal foram indife- fronteira da França com a Espanha, atraía um juízo”. do debate: o materialismo é que era uma
ceu não foi uma súbita erupção de fé rural, por milhares de pessoas na tarde de 13 de cos. O “facto extraordinário” não aconteceu de extraordinário. Formigão usara-os de rentes e, em parte, hostis às aparições e ao centenas, por vezes milhares de peregrinos Em 1930, o bispo de Leiria arranjou ainda superstição, e os “livres pensadores” é que
mas a intervenção sensacionalista da grande Outubro: “ao fitar o sol, quando irrompeu apenas na serra de Aire, mas em Lisboa, no outra maneira. Todas as “visões e aparições” movimento popular dirigido para a Cova de portugueses (em 1909, 1250; em 1910, 2500). outro argumento para refutar a tese da eram uns pobres ignorantes.
imprensa de Lisboa, a começar com uma das nuvens, verificara terem ficado ainda, a Porto e em todas as localidades de onde veio tinham inspirado “grandes levantamentos Iria”. O pároco de Fátima nunca acreditara Mas a possibilidade de replicar Lourdes na “fabricação clerical”: como é que um clero Sardinha começava o artigo com uma
notícia do maior diário português de então, embaciá-lo, leves flocos, que, tocados pela gente e onde serviu de tema de conversa e do povo durante muitos dias”, mas “caíram nos videntes. A imprensa católica demorou Cova de Iria não era óbvia no Verão de 1917. “espoliado”, “perseguido” e “caluniado”, citação de Ernest Renan: “a razão e o bom
O Século, a 23 de Julho. Significativamente, aragem, se tinham enovelado, provocando de discussão no Verão de 1917. todas por si, desaparecendo como que por a reagir. O patriarcado de Lisboa proibira O próprio Formigão, inicialmente, teria ido ainda por cima na mais “pequenina e pobre senso não chegam”. O seu catolicismo não
foi só a partir das que a imprensa local re- movimentos giratórios que nada tinham Porquê? O costume aqui é invocar o as- encanto”, menos Fátima. O que, para For- o clero de participar nas manifestações. Só a Fátima com a intenção de “parar aquela diocese” do país, “teria poder para criar o era o dos crentes tradicionais, como Pinto
parou no caso. Fátima é, em grande medi- de maravilhoso”. Mas a “multidão devota, pecto apocalíptico da época. A guerra euro- migão, só podia ter uma explicação divina. em 1921 foi celebrada a primeira missa na impostura”. movimento religioso de Fátima que hoje se Coelho, centrados nas instituições eclesiás-
da, a prova da capacidade de jornais como sugestionada pelo grito de Lúcia, caíra de peia, no seu quarto ano, não acabava. A falta Para um inimigo de Fátima, como João Cova de Iria, só em 1927 o bispo de Leiria O distanciamento do clero não foi um estende a todo o Portugal”? É uma boa ques- ticas, mas o dos conversos, disponíveis para
O Século, com tiragens de 100 000 exem- joelhos”. Acontece que para muitos crentes, de abastecimentos era cada vez maior. A 19 Ilharco, em 1971, não havia necessidade de compareceu oficialmente, e só em 1930 deu simples estratagema para dissimular uma tão. De facto, as aparições ocorreram fora todos os entusiasmos. O jovem advogado
plares, para criarem uma conversa nacional. o “fenómeno solar” foi fundamental, não de Maio de 1917, em Lisboa, uma população incomodar Deus: Fátima tinha sido simples- crédito às aparições. Em 1929, ainda o bis- direcção oculta. A tendência para supor das regiões de mais densa malha eclesiástica Carlos de Azevedo Mendes, membro do
A aparição de Outubro teve intensa cober- por si, mas pelo seu contexto: uma testemu- desesperada com a falta de pão saqueou as mente “uma reacção do clero português po de Portalegre não autorizara o culto de que Fátima estava, desde o princípio, des- e de mais intensa devoção tradicional em Centro Académico de Democracia Cristã
tura jornalística, incluindo a reportagem nha ouvida pelo pároco de Fátima declarou lojas e atacou a Guarda Republicana, que contra o regime republicano”, uma enco- Fátima na sua diocese. tinada a acabar num grande santuário, faz Portugal, como era o norte do país. Leiria de Coimbra, representava bem a tendência.
fotográfica da Ilustração Portuguesa. Mui- que meses depois, a 2 de Fevereiro de 1918, matou talvez 40 pessoas e prendeu mais menda para sabotar a Lei da Separação de Mas numa carta ao Mensageiro de Leiria, frequentemente os historiadores esque- nem sequer era diocese (restaurada em 1918, Foi ele o homem muito alto (media quase
tos comerciantes trataram de aproveitar. Na “verificou no sol idênticos sinais aos do dia de 500. Mas antes de assumirmos que as 1911. Antes dele, em 1950, Tomás da Fonseca de 22 de Agosto de 1917, o pároco de Fátima cerem o carácter “caótico”, inicialmente só teria bispo em 1920). O momento, para um 1,90 m) que, no dia 13 de Outubro, na
manhã do dia 13, na Cova de Iria, Avelino 13 de Outubro (de 1917)”. Mas os “sinais” do dificuldades, só por si, tivessem transfor- descreveu a conjura. Tudo teria começado explicara que a sua “aparente indiferen- imprevisível e incerto, que Fátima teve para o catolicismo português, também não era Cova de Iria, levantou Lúcia ao colo de-
de Almeida já viu vendedores ambulantes dia 13 tinham sido previstos pelos videntes e mado todo o Portugal numa crédula aldeia em 1914. O pároco de Fátima queixava-se ça” se devia a não querer dar pretexto aos os seus contemporâneos. A carta do pároco o mais áureo. Depois da Lei da Separação pois da aparição. Numa carta ao irmão,
a apregoar “os retratos das crianças em haviam acontecido perante “cinquenta mil serrana, será importante percebermos que da pobreza da sua paróquia. Alguém o teria “inimigos da religião”. Para os críticos de de Fátima, padre Manuel Marques Ferreira, de 1911, mas sobretudo depois de décadas explicou que passara por muitas dúvidas.
bilhetes postais”, e “outros bilhetes que pessoas”. Era isso que o convencia de que o outras condições levaram tanta gente a inte- então convencido a “provocar uma aparição Fátima, estava aqui confessada a estratégia ao patriarcado de Lisboa, a 15 de Outubro de tutela liberal no século XIX, a Igreja por- Um mês antes, a 13 de Setembro, também
representam um soldado do CEP pensando fenómeno, natural em Fevereiro, teria sido ressar-se por um “facto extraordinário”, e a como a de La Salette (1846) ou a de Lourdes da Igreja: operar na sombra. Acontece que de 1917, não parece a de um conspirador tuguesa dependia de um clero expropriado estivera na Cova de Iria, mas “nada vi nem
no auxílio da sua protectora para salvação sobrenatural em Outubro. continuarem interessadas, mesmo quando (1858)” para “enriquecer depressa”. O páro- o pároco estava a defender-se da acusação na posse do fio da meada. Tantos “aconte- e vigiado, cujos números diminuíam havia senti”. A multidão apertava as videntes, que
da pátria”. Para Prosper Alfaric, os “milagres” eram o contexto original mudou. co recrutou assim uns “filhos de gente pobre de que colaborara com o administrador cimentos espantosos” haviam-no deixado um século. Os liberais tinham reduzido o choravam “aflitas”. No dia 13 de Outubro,
Para quem tivesse de vir de Lisboa, a Cova necessariamente um fenómeno rural, de e inculta”, a quem “ensaiou” durante meses. do concelho no sequestro dos videntes. De perplexo: “careço e imploro (...) urgentes e catolicismo a uma disciplina social, usada voltou com “ansiedade”. Tudo foi diferente.
de Iria não estava no fim do mundo. Fica- montanhas e de pastores, porque “nas ci- Daí que tudo lembrasse o que ocorrera em facto, a ideia de Fátima como uma “cons- acertados conselhos para o governo desta para controlar o povo menos instruído e Tal como Pinto Coelho, Azevedo Mendes
va a dois quilómetros de Fátima, sede da dades, nos grandes meios em que as gentes
2. Um novo catolicismo França: ermos, pastores, “segredos”. Uma trução” friamente planeada e dirigida no freguesia”. O sucesso final de Fátima impede sobretudo as mulheres. Os republicanos perguntava: os fenómenos atmosféricos
freguesia, a 12 km de Vila Nova de Ourém, se acotovelam e esbarram umas nas outras, O primeiro autor a fazer o elenco de todas “fabricação clerical”. segredo das sacristias é uma ilusão. Alguns que se perceba o que, para o clero, começou pretendiam agora reduzi-lo ainda mais, a “seriam naturais?” Mas respondia de outra
sede do concelho, e a 60 km de Santarém sobretudo na escola em que devem subme- as “visões e aparições celestiais” de que Os propagandistas de Fátima, como o padres entusiasmaram-se desde cedo com a por ser um desafio difícil. Videntes leigos, um culto privado sem expressão pública. maneira: “Que me importa?” O “extraor-
(capital do distrito). Era rodeada por duas ter-se à disciplina intelectual, os sonhos houve notícia nesta época, classificando- cónego Casimir Barthas, mantiveram o perspectiva de uma “Lourdes portuguesa”, em contacto directo com a divindade, sem Mas o que o bispo de Leiria esquecia dinário de tudo o que vi é a coincidência
das principais vias-férreas do país: a 20 km mais brilhantes e mais sedutores depressa -as como “explorações ignóbeis”, não foi contrário: “na sua grande maioria, o clero como o cónego Formigão. Lourdes, perto da a mediação da Igreja, nunca confortaram a em 1930 é que Fátima também aconteceu de sinais atmosféricos com a prevenção da
66 FÁTIMA FÁTIMA 67
dispersa por várias aldeias, e as suas pro- da estação de Chão de Maçãs, na Linha do autoridade eclesiástica (em 1938, ainda Lú- quando tudo estava a mudar. Durante muito
priedades espalhadas por toda a região. Norte, e a 25 km da estação de Leiria, na cia dizia a Antero de Figueiredo, acerca dos tempo, o catolicismo parecera destinado a
As deslocações eram constantes. Foi pelas Linha do Oeste. De facto, o milagre deu- “segredos”: “Ninguém na terra tem poder não passar de uma “reacção” nostálgica
serranas que vinham vender carvão que em -se no que era um dos principais eixos de para me mandar falar sobre tal assunto”). contra a época moderna. O papa Leão XIII,
Torres Novas se soube das aparições logo comunicação do país, o que explica que hoje Os riscos eram óbvios. Era impossível com a “doutrina social da Igreja” e o “neo-
no princípio de Julho. Não era um povo o santuário esteja convenientemente ao pé adivinhar o que crianças sujeitas às maiores -tomismo”, começara a reconstruí-lo como
dado à crença fácil. A mãe de Lúcia não da A1. Em 1917, ainda os acessos não eram pressões acabariam por dizer ou fazer. O uma resposta aos impasses e insuficiências
acreditou na filha e tentou obrigá-la a con- tão fáceis (de Santarém, demorava-se três administrador do concelho e os militantes da modernidade. Novos movimentos cató-
fessar: “vocês andam a enganar o povo”. horas de automóvel), mas a paciência dos laicistas estavam vigilantes. Toda a gen- licos passaram a aspirar a uma Igreja da
Angustiou-a sempre a “vergonha a que se viajantes era outra, e estes foram também te desconfiava de toda a gente. O pároco sociedade civil, e não do Estado, e a uma
expunha”. A aldeia dividiu-se. O jornalista os anos em que os veículos automóveis se de Fátima foi acusado de colaborar com a religião de crença e militância, e não de sim-
Avelino de Almeida, em 13 de Outubro de multiplicaram: 4335 registados em 1917, 5183 administração do concelho, e ele próprio ples cerimónia e rotina. Tudo isso provocou
1917, tomou nota do sarcasmo do carroceiro em 1919, 14 868 em 1925, 23 463 em 1927, suspeitou do prior de Porto de Mós. O povo conflitos dentro da igreja, como a polémica
a quem perguntou se vira a “Senhora” na com 50 carreiras de transporte no sul e 80 oscilou: a 11 de Novembro de 1917, o prior sobre o “modernismo” (1907), mas gerou o
Cova de Iria: “eu cá só lá vi pedras, carros, no norte. Em Outubro de 1917, os jornalistas de Porto de Mós informava o patriarcado ambiente em que Fátima pôde escapar a ser
automóveis, cavalgaduras e gente”. Em contaram mais de 100 automóveis estacio- que a fé “resfriara”, devido à continuação arquivada entre o folclore rural.
Vila Nova de Ourém, na véspera, muitas nados na estrada, ao pé da Cova de Iria. da guerra, cujo fim Lúcia anunciara a 13 A história de Fátima não fez parte da
“mulheres do povo” riam-se: “Então vais Houve quem tivesse decidido ir na véspera, de Outubro. Nem os mais devotos estavam restauração de um catolicismo tradicional,
ver amanhã a santa?” No seu depoimento como o Sr. Alfredo da Silva Santos contou a constantemente disponíveis: em 1920, For- mas da emergência de um novo catolicis-
de 1923, uma das primeiras crentes, Maria John de Marchi, um padre americano que migão lamentou que quando Jacinta ado- mo, que iria ser protagonizado por uma
Carreira, lembrou como no Verão de 1917 investigou a história de Fátima nos anos eceu, não se tivesse conseguido encontrar Igreja muito diferente da Igreja do século
“tivera de arrostar com a troça das pessoas 40: a 12 de Outubro de 1917, sexta-feira, em Lisboa uma “pessoa abastada” para XIX. O contraste de opiniões entre os cató-
da sua terra”. Em 1938, o escritor Antero de Silva Santos estava no café Martinho, em a acolher, embora depois da sua morte, licos é, a esse respeito, sugestivo. Um dos
Figueiredo descreveu Fátima como “um Lisboa, quando um primo lhe apareceu, a se “mostra(ssem) solícitas em lhe prestar artigos mais cépticos sobre Fátima saiu no
sítio ao mesmo tempo de fé intensa e de dizer: “Toda a gente vai a Fátima amanhã.” homenagem”. principal jornal católico, A Ordem, a 17 de
extensa incredulidade; de alta beleza, e de Ali mesmo, num dos centros da vida social Como não podia deixar de ser, dada a Outubro de 1917. O seu autor, o advogado
intriga e mesquinhez”. Por alguma razão, e intelectual da Baixa, decidiram ir juntos. natureza do caso, o clero esteve sempre en- Domingos Pinto Coelho, de uma família
Lúcia pediu sempre à Virgem um “milagre” Com outros amigos, em três automóveis, volvido, desde os párocos locais, pelas suas miguelista, era, aos 62 anos, a encarnação
para a população acreditar. Mas segundo saíram de manhã cedo e chegaram à Cova funções, até aos seminaristas que Avelino de do mais rigoroso tradicionalismo. Não he-
o jornalista Costa Brochado, teria sido o de Iria por volta do meio-dia. Almeida viu na Cova de Iria a 13 de Outubro sitou em aplicar a Fátima um duche gelado:
Padre Cruz quem, ao fazer uma visita ao A localização e a propaganda jornalística de 1917, movidos pela curiosidade, mas man- “o milagre é excepção. E as excepções não
local, estabeleceu finalmente a “confiança tornaram possível que a 13 de Outubro, para tendo-se prudentemente à distância, como se presumem. Precisam de prova cabal.”
de toda a gente” no milagre. O padre de a última aparição, em que se esperava um “mirones”. Nos interrogatórios aos videntes, Ora, havia apenas “as afirmações de três
Lisboa obteve o que a suposta credulidade “sinal”, tivessem aparecido milhares de pes- o pároco de Fátima, o cónego Formigão ou crianças e mais nada”: “é muito pouco”.
indígena não produzira. soas de fora da freguesia. Para muita gente, o padre José Ferreira Lacerda, director do Pinto Coelho também estivera na Cova de
Na verdade, foi preciso mais do que su- como o padre Luís de Andrade e Silva, num jornal Mensageiro de Leiria, mostraram- Iria, como “curioso”. O fenómeno solar seria
perstição montanhesa. A serra já tinha sido depoimento de 30 de Dezembro de 1917, o -se determinados, e com muita habilidade, “coisa excepcional”? Não: vira o mesmo
o local de uma antiga romaria no século que fez destacar Fátima de todos os outros em despistar histeria, sugestão ou malícia. espectáculo em Lisboa, uns dias depois. Em
XVII, a da Nossa Senhora da Ortiga, e toda casos de “aparições” foi precisamente este Perguntou-se aos videntes se conheciam Fátima, funcionara apenas a “psicologia
a região, como outras em Portugal, estava facto: a sua “rápida propagação por todo a história de La Salette, ou o que “veste colectiva” das “multidões”, agitadas por
cheia de invocações marianas. Mas Fátima o país”, arrastando gente “de todas as clas- a imagem da capela onde costumam ir à uma “grande onda de fé”.
não foi simplesmente um episódio daquela ses sociais”. Na manhã de 13 de Outubro, missa”. Nunca a excitação venceu a cautela. A dissonância com o artigo do escritor
“religiosidade popular”, primitiva e rural, a baronesa de Almeirim veio trazer dois Em 1918, o pároco de Fátima reportou ao António Sardinha no jornal Monarquia, de
que fascinou os folcloristas românticos e vestidos novos às videntes: um azul para patriarcado que a mãe de Lúcia, em Maio de 8 de Novembro de 1917, não podia ser maior.
depois alimentou doutoramentos de antro- Lúcia, e outro branco para Jacinta, além 1917, lhe pedira que instruísse a filha sobre Aos 30 anos de idade, Sardinha liderava
pologia. Na segunda aparição, a 13 de Junho de grinaldas de flores artificiais. O barão que dizer à aparição: “disso a dissuadi, para um novo movimento intelectual, o “Inte-
de 1917, esteve pouca gente, umas 40 a 50 de Alvaiázere, advogado e funcionário do evitar algum mau conceito que a impiedade gralismo Lusitano”. Ao contrário de Pinto
pessoas, porque as famílias dos videntes Registo Civil, encontrou na Cova de Iria ou os mal intencionados pudessem fazer, Coelho, tinha poucos anos de monárquico
tal como a demais população de Aljustrel muitos conhecidos de Lisboa. E por uma como ainda assim fizeram”. Mas os padres e católico. Em 1910, ainda era republicano e
preferiram as festas de Santo António em desprevenida nota de Tomás da Fonseca, não estavam apenas a prevenir, maquiave- “livrepensador”. Sardinha não citou autori-
Ourém. Em Julho, teriam aparecido umas no seu livro Fátima, descobrimos que o licamente, as objecções de outros. Carlos dades e protocolos eclesiásticos, como Pinto
2500 pessoas, segundo o administrador do célebre escritor António Sérgio também de Azevedo Mendes, advogado de Torres Coelho, mas cientistas, filósofos e matemáti-
concelho de Ourém. Mas foi a partir do mês esteve na Cova de Iria no dia 13 de Outubro, Novas, almoçou com o pároco de Fátima e cos contemporâneos (William James, Henri
seguinte que se deu uma explosão: sempre a “acompanhar a esposa”. mais seis padres no dia 7 de Setembro de Bergson, Henri Poincaré, Georg Riemann,
segundo o administrador, muito contido nas A quatro anos de começar a colaborar na se desvanecem”. Acontece que Fátima não um inimigo de Fátima, mas o seu princi- ● Fátima impôs-se muito antes de receber o patrocí- 1917, e reparou que a insistência das crian- etc.), para defender que as aparições faziam
estimativas, acorreram 12 a 15 000 pessoas Seara Nova, Sérgio já era a encarnação viva foi simplesmente um surto de “sonhos se- pal propagandista, o cónego Formigão, no ças sob interrogatório “impressionava-os”, todo o sentido, não à luz da pseudociência
em Agosto, 20 000 em Setembro e, final- do “racionalismo”. Como seria de esperar, dutores e brilhantes” num círculo singelo processo canónico diocesano de 1930. Os nio do Estado Novo e da sua expansão internacional. mas que todos concordavam em que “não materialista do século XIX, mas da nova ci-
mente, em Outubro, entre 30 a 40 000. não lhe foi difícil criar uma explicação para de lavradores analfabetos, confundidos por anti-fatimistas copiaram depois estes dados era razão suficiente para poderem formar ência do século XX. Inverteu assim os termos
Ora, entre Julho e Agosto, o que aconte- a célebre “dança do sol”, testemunhada tradições marianas e fenómenos atmosféri- para demonstrar que Fátima nada tivera e o episcopado de Portugal foram indife- fronteira da França com a Espanha, atraía um juízo”. do debate: o materialismo é que era uma
ceu não foi uma súbita erupção de fé rural, por milhares de pessoas na tarde de 13 de cos. O “facto extraordinário” não aconteceu de extraordinário. Formigão usara-os de rentes e, em parte, hostis às aparições e ao centenas, por vezes milhares de peregrinos Em 1930, o bispo de Leiria arranjou ainda superstição, e os “livres pensadores” é que
mas a intervenção sensacionalista da grande Outubro: “ao fitar o sol, quando irrompeu apenas na serra de Aire, mas em Lisboa, no outra maneira. Todas as “visões e aparições” movimento popular dirigido para a Cova de portugueses (em 1909, 1250; em 1910, 2500). outro argumento para refutar a tese da eram uns pobres ignorantes.
imprensa de Lisboa, a começar com uma das nuvens, verificara terem ficado ainda, a Porto e em todas as localidades de onde veio tinham inspirado “grandes levantamentos Iria”. O pároco de Fátima nunca acreditara Mas a possibilidade de replicar Lourdes na “fabricação clerical”: como é que um clero Sardinha começava o artigo com uma
notícia do maior diário português de então, embaciá-lo, leves flocos, que, tocados pela gente e onde serviu de tema de conversa e do povo durante muitos dias”, mas “caíram nos videntes. A imprensa católica demorou Cova de Iria não era óbvia no Verão de 1917. “espoliado”, “perseguido” e “caluniado”, citação de Ernest Renan: “a razão e o bom
O Século, a 23 de Julho. Significativamente, aragem, se tinham enovelado, provocando de discussão no Verão de 1917. todas por si, desaparecendo como que por a reagir. O patriarcado de Lisboa proibira O próprio Formigão, inicialmente, teria ido ainda por cima na mais “pequenina e pobre senso não chegam”. O seu catolicismo não
foi só a partir das que a imprensa local re- movimentos giratórios que nada tinham Porquê? O costume aqui é invocar o as- encanto”, menos Fátima. O que, para For- o clero de participar nas manifestações. Só a Fátima com a intenção de “parar aquela diocese” do país, “teria poder para criar o era o dos crentes tradicionais, como Pinto
parou no caso. Fátima é, em grande medi- de maravilhoso”. Mas a “multidão devota, pecto apocalíptico da época. A guerra euro- migão, só podia ter uma explicação divina. em 1921 foi celebrada a primeira missa na impostura”. movimento religioso de Fátima que hoje se Coelho, centrados nas instituições eclesiás-
da, a prova da capacidade de jornais como sugestionada pelo grito de Lúcia, caíra de peia, no seu quarto ano, não acabava. A falta Para um inimigo de Fátima, como João Cova de Iria, só em 1927 o bispo de Leiria O distanciamento do clero não foi um estende a todo o Portugal”? É uma boa ques- ticas, mas o dos conversos, disponíveis para
O Século, com tiragens de 100 000 exem- joelhos”. Acontece que para muitos crentes, de abastecimentos era cada vez maior. A 19 Ilharco, em 1971, não havia necessidade de compareceu oficialmente, e só em 1930 deu simples estratagema para dissimular uma tão. De facto, as aparições ocorreram fora todos os entusiasmos. O jovem advogado
plares, para criarem uma conversa nacional. o “fenómeno solar” foi fundamental, não de Maio de 1917, em Lisboa, uma população incomodar Deus: Fátima tinha sido simples- crédito às aparições. Em 1929, ainda o bis- direcção oculta. A tendência para supor das regiões de mais densa malha eclesiástica Carlos de Azevedo Mendes, membro do
A aparição de Outubro teve intensa cober- por si, mas pelo seu contexto: uma testemu- desesperada com a falta de pão saqueou as mente “uma reacção do clero português po de Portalegre não autorizara o culto de que Fátima estava, desde o princípio, des- e de mais intensa devoção tradicional em Centro Académico de Democracia Cristã
tura jornalística, incluindo a reportagem nha ouvida pelo pároco de Fátima declarou lojas e atacou a Guarda Republicana, que contra o regime republicano”, uma enco- Fátima na sua diocese. tinada a acabar num grande santuário, faz Portugal, como era o norte do país. Leiria de Coimbra, representava bem a tendência.
fotográfica da Ilustração Portuguesa. Mui- que meses depois, a 2 de Fevereiro de 1918, matou talvez 40 pessoas e prendeu mais menda para sabotar a Lei da Separação de Mas numa carta ao Mensageiro de Leiria, frequentemente os historiadores esque- nem sequer era diocese (restaurada em 1918, Foi ele o homem muito alto (media quase
tos comerciantes trataram de aproveitar. Na “verificou no sol idênticos sinais aos do dia de 500. Mas antes de assumirmos que as 1911. Antes dele, em 1950, Tomás da Fonseca de 22 de Agosto de 1917, o pároco de Fátima cerem o carácter “caótico”, inicialmente só teria bispo em 1920). O momento, para um 1,90 m) que, no dia 13 de Outubro, na
manhã do dia 13, na Cova de Iria, Avelino 13 de Outubro (de 1917)”. Mas os “sinais” do dificuldades, só por si, tivessem transfor- descreveu a conjura. Tudo teria começado explicara que a sua “aparente indiferen- imprevisível e incerto, que Fátima teve para o catolicismo português, também não era Cova de Iria, levantou Lúcia ao colo de-
de Almeida já viu vendedores ambulantes dia 13 tinham sido previstos pelos videntes e mado todo o Portugal numa crédula aldeia em 1914. O pároco de Fátima queixava-se ça” se devia a não querer dar pretexto aos os seus contemporâneos. A carta do pároco o mais áureo. Depois da Lei da Separação pois da aparição. Numa carta ao irmão,
a apregoar “os retratos das crianças em haviam acontecido perante “cinquenta mil serrana, será importante percebermos que da pobreza da sua paróquia. Alguém o teria “inimigos da religião”. Para os críticos de de Fátima, padre Manuel Marques Ferreira, de 1911, mas sobretudo depois de décadas explicou que passara por muitas dúvidas.
bilhetes postais”, e “outros bilhetes que pessoas”. Era isso que o convencia de que o outras condições levaram tanta gente a inte- então convencido a “provocar uma aparição Fátima, estava aqui confessada a estratégia ao patriarcado de Lisboa, a 15 de Outubro de tutela liberal no século XIX, a Igreja por- Um mês antes, a 13 de Setembro, também
representam um soldado do CEP pensando fenómeno, natural em Fevereiro, teria sido ressar-se por um “facto extraordinário”, e a como a de La Salette (1846) ou a de Lourdes da Igreja: operar na sombra. Acontece que de 1917, não parece a de um conspirador tuguesa dependia de um clero expropriado estivera na Cova de Iria, mas “nada vi nem
no auxílio da sua protectora para salvação sobrenatural em Outubro. continuarem interessadas, mesmo quando (1858)” para “enriquecer depressa”. O páro- o pároco estava a defender-se da acusação na posse do fio da meada. Tantos “aconte- e vigiado, cujos números diminuíam havia senti”. A multidão apertava as videntes, que
da pátria”. Para Prosper Alfaric, os “milagres” eram o contexto original mudou. co recrutou assim uns “filhos de gente pobre de que colaborara com o administrador cimentos espantosos” haviam-no deixado um século. Os liberais tinham reduzido o choravam “aflitas”. No dia 13 de Outubro,
Para quem tivesse de vir de Lisboa, a Cova necessariamente um fenómeno rural, de e inculta”, a quem “ensaiou” durante meses. do concelho no sequestro dos videntes. De perplexo: “careço e imploro (...) urgentes e catolicismo a uma disciplina social, usada voltou com “ansiedade”. Tudo foi diferente.
de Iria não estava no fim do mundo. Fica- montanhas e de pastores, porque “nas ci- Daí que tudo lembrasse o que ocorrera em facto, a ideia de Fátima como uma “cons- acertados conselhos para o governo desta para controlar o povo menos instruído e Tal como Pinto Coelho, Azevedo Mendes
va a dois quilómetros de Fátima, sede da dades, nos grandes meios em que as gentes
2. Um novo catolicismo França: ermos, pastores, “segredos”. Uma trução” friamente planeada e dirigida no freguesia”. O sucesso final de Fátima impede sobretudo as mulheres. Os republicanos perguntava: os fenómenos atmosféricos
freguesia, a 12 km de Vila Nova de Ourém, se acotovelam e esbarram umas nas outras, O primeiro autor a fazer o elenco de todas “fabricação clerical”. segredo das sacristias é uma ilusão. Alguns que se perceba o que, para o clero, começou pretendiam agora reduzi-lo ainda mais, a “seriam naturais?” Mas respondia de outra
sede do concelho, e a 60 km de Santarém sobretudo na escola em que devem subme- as “visões e aparições celestiais” de que Os propagandistas de Fátima, como o padres entusiasmaram-se desde cedo com a por ser um desafio difícil. Videntes leigos, um culto privado sem expressão pública. maneira: “Que me importa?” O “extraor-
(capital do distrito). Era rodeada por duas ter-se à disciplina intelectual, os sonhos houve notícia nesta época, classificando- cónego Casimir Barthas, mantiveram o perspectiva de uma “Lourdes portuguesa”, em contacto directo com a divindade, sem Mas o que o bispo de Leiria esquecia dinário de tudo o que vi é a coincidência
das principais vias-férreas do país: a 20 km mais brilhantes e mais sedutores depressa -as como “explorações ignóbeis”, não foi contrário: “na sua grande maioria, o clero como o cónego Formigão. Lourdes, perto da a mediação da Igreja, nunca confortaram a em 1930 é que Fátima também aconteceu de sinais atmosféricos com a prevenção da
68 FÁTIMA FÁTIMA 69
criança, e depois aquela mole imensa de de “Torres Vedras” (sic, por Torres Novas) pensamento dos outros que não pensam 1922, demonstraram que Fátima já só podia
gente”. Azevedo Mendes tornou-se um dos a um “charlatão” que, a fim de explorar o como o Sr. Administrador do concelho”. ser atacada na sombra. Quando, em Maio,
grandes activistas de Fátima. Anos depois, “povo bisonho”, “industria pobres crianças No mês de Dezembro de 1917, o poder o governador civil de Santarém sugeriu
no santuário, comentaria: “o grande milagre a verem a santa”. No terreno, já o adminis- do PRP de Afonso Costa desmoronou-se que se proibisse a peregrinação, o novo
de Fátima é tudo aquilo que vemos, essas trador do concelho de Ourém, Artur de perante a sublevação militar comandada em administrador de Ourém respondeu que
multidões penitentes... Essa devoção... Essas Oliveira Santos, maçon e militante do “livre- Lisboa pelo major e professor universitário um tal acto só serviria para “desprestigiar a
conversões...” O que era “pouco” para Pinto -pensamento”, recorria a todos os meios Sidónio Pais. Sidónio, embora ateu, rompeu República”, e que não cumpriria nenhumas
Coelho, o idoso tradicionalista, era tudo para liquidar a “especulação clerical”. A com o livre-pensamento radical. Emendou a ordens nesse sentido, para o que já contava
para Azevedo Mendes, o jovem militante. 13 de Agosto, no dia previsto para a quarta Lei da Separação, restabeleceu relações com com o apoio de todos “os republicanos de
O lado “caótico” dos acontecimentos foi aparição, apareceu de surpresa em Fátima o Vaticano e, como Presidente da República, várias cores do concelho”. Não precisou
essencial, porque a surpresa e a admiração, e raptou os videntes, com intenção de os assistiu a missas solenes em Lisboa. Segundo de se insubordinar, porque o governo, em
no contexto desta nova sensibilidade religio- submeter a exames médicos e os internar o ex-administrador do concelho de Ourém, Lisboa, apressou-se a esclarecer que nunca
sa, jogaram a favor de Fátima. O professor “numa casa de educação”. Durante dois dias, o “sidonismo” deixou os “reaccionários à dera tais instruções ao governador civil (em
da Universidade de Bamberg, Ludwig Fis- manteve as crianças presas em sua casa. A vontade” em Fátima. Curiosamente, isso Outubro de 1924, num novo momento de
cher, rendeu-se a Fátima em 1929, quan- certa altura, para as aterrorizar, levou-as à não pareceu beneficiar muito o culto, que ascendência radical, houve outra tentativa
do, depois de visitar a Cova de Iria, entre cadeia, onde teriam sido ameaçadas de ser nestes anos perdeu dois dos videntes para de proibição, frustrada). O antigo adminis-
a multidão de peregrinos, seguiu para um “fritas em azeite”. a gripe pneumónica. Mas com o regresso trador, Oliveira Santos, estava desconsolado:
congresso eclesiástico em Sevilha. Entre Os seus correligionários mostraram ao poder do PRP, depois de 1919, os “livre- “A reacção vai triunfando.”
as grandes autoridades da igreja, sentiu o igual zelo. Na noite de 22 de Outubro, -pensadores” decidiram tentar novamente a O último golpe no “livre-pensamento”
contraste: “Sevilha é organização – Fátima um bando de “livres-pensadores” de San- eliminação de Fátima, outra vez com Artur viria a 27 de Dezembro de 1922, quando
é fé. Sevilha é tradição, rotina – Fátima é tarém viajou de automóvel até à Cova de de Oliveira Santos à frente da administração o Mundo anunciou sensacionalmente que
actualidade, é vida. Sevilha é obra do ho- Iria. Vandalizaram o local, cortaram a de Ourém. Em 1920, com a morte de Jacinta, o Presidente da República iria ao Palácio
mem – Fátima é obra de Deus. Sevilha é o azinheira, e fizeram depois em Santarém receou uma grande peregrinação a 13 de da Ajuda, como os antigos reis, impor o
fim – Fátima é o princípio”. uma procissão de paródia com os objec- Maio. Forças da GNR cercaram a Cova de Iria barrete cardinalício ao núncio apostólico,
Deste ponto de vista, a logística de Fáti- tos roubados, o que lhes valeu um balde e Lúcia, aos 13 anos, foi presa pela segunda como prova de que “o regime republicano
ma, em que os seus inimigos descortinam de água atirado de uma janela por uma vez por uma patrulha a cavalo da GNR. No é tolerante”. Almeida explicou então que a
a causa, só podia parecer a consequência. mulher indignada. Em Dezembro, a Fede- jornal A Guarda, um “republicano histó- república, embora neutra, “tem especiais
O bispo de Leiria, D. José Alves Correia ração do Livre-Pensamento e a Associação rico” estranhou: “na França republicana”, deferências” para com o catolicismo, por
da Silva, devoto de Lourdes, foi criando de Registo Civil de Lisboa voltaram ao os governos facilitavam as peregrinações a ser a religião da “quase totalidade da Na-
condições para uma eventual regulariza- terreno, com uma conferência em Ourém Lourdes, e nunca “o regime correu por esse ção”. Até Sebastião de Magalhães Lima, o
ção do culto: comprou terrenos na Cova e um comício na própria Cova de Iria, para motivo algum perigo”. Grão-Mestre da maçonaria, concordava:
de Iria, deixou rezar missas, e nomeou uma denunciar o “vil embuste de Fátima”. No O cerco de 1920 foi, em relação a Fáti- “a época dos mata-frades passou”. Para o
comissão de inquérito canónico em 1922 (o comício, não terão comparecido mais do ma, uma das últimas grandes exibições Mundo, sempre o órgão do PRP, mas já com
seu argumento a favor da possibilidade de que oito pessoas, apesar da protecção de de poder dos “livres-pensadores”. A sua pouco em comum com o jornal de 1917, era
um milagre é curioso: se os homens podiam uma grande força da Guarda Republicana influência cairia dramaticamente nos anos uma excelente notícia: “nunca mais po-
“desviar as águas de um rio, utilizá-lo para vinda de Tomar e de Torres Novas. seguintes, quando o presidente António derão especular junto da pobre gente da
a produção de energia eléctrica que nos dá Tanto afã acabou por suscitar dúvi- José de Almeida (1919-1923), com o apoio província com a lenda de que a República
luz, calor, movimento”, como não admitir das. A 18 de Novembro de 1917, Tomás do novo líder do PRP e chefe do governo, odeia Deus, persegue e tortura os padres,
que Deus pudesse “produzir efeitos muito da Fonseca, num artigo para O Mundo, António Maria da Silva, pôs fim à “guerra profana os templos e impede o culto da
superiores”? Afinal, o progresso tecnológi- perguntou-se mesmo se não eram os “li- religiosa”, ao mesmo tempo que a Igreja, religião católica”. Entretanto, a burocracia
co tinha “introduzido no mundo material vres-pensadores” que estavam a alimentar através do Centro Católico, se desinteressa- do Estado legalizava Fátima: a 12 de Maio
mais mudanças do que todos os milagres o “fogacho” de Fátima com “a lenha seca va da “questão do regime”. A década de 20 de 1924, a Divisão de Estradas do Distrito
do cristianismo”).
A propósito da comissão canónica, Lu-
dos nossos escritos e conversas”. De facto,
a perseguição teve este efeito: deixou a
● As fotos da Ilustração tam a servir essa mentira para iludir os
papalvos”. Era uma referência ao Século,
assembleias de voto em toda a cidade, e
não chover. A conclusão era tremenda: “Se
fim, não hesitou em aproveitar a imagís-
tica mariana. Em 1911, no poema Marános
teve momentos duros. Os governos tiveram
de praticar uma austeridade violenta, para
de Santarém concedeu a primeira licença
de obras na Cova da Iria, para os muros do
dwig Fischer reparou que “trabalhava com imprensa católica à vontade para abor- Portuguesa retratando o o maior diário português, que tinha sido cada vez parece haver mais quem faça fé na (grafia da época), apelou à “saudade” limitar uma das maiores inflações da Eu- recinto das aparições.
extrema lentidão”, mas “a fim de permitir dar Fátima, não como um “milagre”, de também o maior jornal republicano antes Virgem, porque é que cada vez há menos como à Virgem: “Ó Saudade! Ó Sauda- ropa. Houve greves e terrorismo. Para via- A aceitação de Fátima pelo “poder do
que o tempo e os factos se encarregassem de discussão delicada entre católicos, mas dia do milagre do Sol, a de 1910. A 15 de Outubro, a reportagem de quem faça fé nos homens? Com certeza não de! Ó Virgem Mãe,/ Que sobre a terra bilizar novas alianças, a elite republicana Estado” não teve, assim, de esperar pela
falar”. Entretanto, os entusiastas fundavam como um caso de falta de liberdade reli- Avelino de Almeida sobre o dia 13 na Cova é por culpa da Virgem.” santa portuguesa,/ Conceberás, isenta investiu fortemente no que pudesse servir cumplicidade entre a ditadura de Salazar
jornais e associações. Na passagem para a giosa, com que todas as pessoas decentes, 13 de Outubro de 1917, de Iria causara enorme sensação. Almeida Desde o fim do século XIX, o tipo de de pecado,/ O Cristo da Esperança e da como base de consenso. Foi uma época de e a Igreja do cardeal Cerejeira nos anos
década de 1930, Fátima assinalou a reorgani-
zação da Igreja portuguesa: deslocada para
independentemente das suas convicções,
se podiam escandalizar. Há a esse respeito,
demonstram a intensa havia sido um célebre ferrabrás do anticle-
ricalismo. Agora, aparecia deslumbrado
materialismo cientista que alimentava o
chamado “livre-pensamento” recuava,
Beleza!” Pascoaes não estava sozinho neste
marianismo republicano. A sua expressão
ouro de eventos e cerimónias patrióticas,
como a viagem aérea de Gago Coutinho e
30, nem pelo fortalecimento da sua res-
sonância profética a partir da década de
sul, mais popular, e mais “romana”, através na transcrição do que a Virgem terá dito cobertura jornalística por “um espectáculo único e inacreditável como já Eça de Queirós constatara em mais fantástica ocorreu na oração patrió- de Sacadura Cabral ao Brasil em 1922, ou 1940. Resultou, em primeiro lugar, de um
de um marianismo associado à afirmação a 19 de Agosto a Lúcia, uma incerteza para quem não foi testemunha dele”: uma 1893 no seu ensaio “Positivismo e Idealis- tica que o maior intelectual do regime, o a adopção pelo Estado do culto do con- novo republicanismo, traumatizado pelo
da autoridade do Papa. O clero, porém, curiosa: o pároco de Fátima registou: que Fátima rapidamente “imensa multidão” num “alarido colos- mo”, depois incluído no livro Notas Con- poeta Guerra Junqueiro, enviou ao jornal destável Nuno Álvares Pereira, beatificado fracasso do “livre-pensamento” e fascinado
nunca esteve totalmente à vontade. Tentou “se não tivessem abalado contigo para sal”, a gritar “milagre!, milagre!”. Tinha temporâneas. As ciências experimentais, República, a 13 de Fevereiro de 1917: “Pá- em 1918 e a quem a república consagrou pela ideia de um consenso de tipo religioso,
regularizar as “curas”, através de um serviço a Aldeia (Ourém) o milagre seria mais obteve e que em muito sido avassalador: “a sugestão colectiva que em meados do século XIX pareciam tria divina de Camões e de Nun’Álvares, um “feriado cívico”, a “Festa da Pátria”, que aliás inspirara o republicanismo euro-
de assistência aos doentes, a que se chamava
Gabinete de Verificações, como em Lourdes,
conhecido”; mas o cónego Formigão,
mais tarde, anotou o contrário: “se não
contribuiu para alimentar de que o sobrenatural impera ali e de
que um poder extra-humano empolga os
o critério de todos os valores, tinham-se
revelado limitadas e incertas. A religião,
santificado seja o vosso nome. (...) perdoai,
Senhora, os nossos erros. Para nos liber-
a 14 de Agosto. Mais uma vez, imitava-se
a França: Nuno Álvares constituía, como
peu desde a “religião civil” de Rousseau.
Mas resultou também da disponibilidade
e esforçou-se por tirar a Fátima o aspecto tivessem sido presas, não seria o milagre a audiência das aparições. circunstantes é tão forte e tão arrebatador de patologia condenada pelo progresso, tar de toda a fraqueza e de todo o crime, Jeanne d’Arc, um ponto de encontro entre a da Igreja em inserir o catolicismo na nação
de um romaria tradicional, com barracas tão conhecido”. Na versão de Formigão, a que os olhos se marejam de lágrimas, há passou a exemplo de um impulso vital ou encheremos os corações do vosso amor, “fé patriótica” e a “fé religiosa”. Em 1921, a histórica, como um selo providencialista do
de comes e bebes, foguetório, e mendigos, Virgem confirmava os receios do Mundo. rostos que se cobrem de uma palidez de expressão de uma transcendência inultra- Ámen”. Os intelectuais cosmopolitas e 14 de Agosto, houve grandes festas em Lis- patriotismo.
tal como hoje se esforça por transformar as O pormenor que tem escapado à his- morte, homens e mulheres prostram-se passável. A literatura dita “simbolista” anticatólicos da república tinham visto boa, com desfile militar, mas também mis- A história de Fátima está assim para além
“aparições” em “visões” (fenómeno místico, toriografia é que os chamados “livres- em terra, entoando cânticos e rezam o reabilitou a indeterminação, a vida inte- a Virgem muito antes dos pastorinhos sa. Os “livres-pensadores”, desesperados, do fait-divers de uma suposta religiosidade
em vez de físico). -pensadores” precisavam de Fátima muito terço em coro”. rior, o sonho, a religião, o hermetismo. de Aljustrel. declararam uma “Semana Anti-Clerical”. rural, ou da guerra entre a Igreja e o Estado.
mais do que os católicos. Os “livres-pensa- Avelino de Almeida não se convertera. Foi essa a inspiração do mais impor- Começara uma espécie de fascínio pela fé Estavam a perder. A prática religiosa re- Tudo é um pouco mais complicado. E, no
3. Um novo dores” constituíam apenas uma corrente Apenas ficara impressionado por duas tante movimento intelectual republicano que, anos depois, em 1938, levaria o escritor crudescera em Portugal, como na Europa, fim, para tornar a história ainda mais difí-
no republicanismo. Em 1917, sentiam a sua coisas em Fátima. Por um lado, uma de- destes anos, a Renascença Portuguesa, Antero de Figueiredo, em Fátima, a maravi- com a Grande Guerra. Nestes anos, como cil, conviria regressar ao princípio, às três
republicanismo influência ameaçada, não por Fátima, mas monstração da “psicologia das multidões”, que juntou Teixeira Pascoaes, Leonardo lhar-se: “A Fé! Que força extraordinária, que em França, só se falava das espectaculares crianças de Aljustrel. Em 1921, quando duas
A 31 de Outubro de 1942, o cardeal Cere- pelo próprio regime. A guerra, como em popularizada pelo escritor francês Gustave Coimbra, Jaime Cortesão, Raul Proença, espiritual potência! Se esta multidão soer- conversões de escritores ateus: Gomes Leal, já tinham morrido, a terceira desapareceu,
jeira resumiu assim a história de Fátima: França, levara à tentativa de estabelecer Le Bon. Mas, acima de tudo, a comunhão António Sérgio, Raul Brandão, e, ao prin- guesse as costas, levantaria cordilheiras; se Guerra Junqueiro, Manuel Ribeiro, mais internada em instituições eclesiásticas. Só
“sem a igreja e contra o poder do Estado”. uma “união sagrada”. Nesse espírito, o -pensadores” qualquer acordo com a numa crença colectiva, como a que os repu- cípio, Fernando Pessoa. Nos seus artigos e esbracejasse, afastaria continentes.” E teve tarde Leonardo Coimbra. Até Afonso Cos- em 1938, Lúcia voltou a falar em público,
Não era exacto. Nem pelo que dizia respeito governo aceitara a assistência religiosa em “reacção clerical” era impensável. Ora, blicanos, por outros meios, desejavam ob- conferências, Pascoaes, o líder da Renas- esta nota significativa: “É neste instante, ta, segundo os boatos, frequentava sessões por intermédio de Antero de Figueiredo.
à igreja, nem pelo que dizia respeito ao campanha, nomeando capelães militares. que melhor do que Fátima, ressurgência ter. Fátima mostrava à república, de modo cença, citava, tal como Sardinha, Henri único, que tem realidade a ideologia (aliás, espíritas em Paris. Fátima, o livro do encontro, descreve-a
“poder do Estado”. Era verdade que Fátima Mas corriam rumores mais preocupantes: de uma credulidade fraudulenta, para perverso, aquilo que a república gostaria Bergson e William James, para repudiar socialmente falsa) da Revolução.” Ora, o O cónego Formigão procurou situar Fá- como uma “figura meã de camponesa”, com
fora, desde o princípio, um alvo do chamado que estaria a ser considerado o restabele- provar a inconveniência de o regime se de ter sido: a ultrapassagem dos egoísmos, o “egoísmo materialista”, o “cientismo que oferecia o “livre-pensamento” mate- tima neste contexto. Em artigos no jornal “cara plebeia”, viva e jovial, talvez com uma
“livre-pensamento” republicano, mas este cimento de relações diplomáticas com a moderar? No primeiro artigo do Mundo a disponibilidade de tudo sacrificar por estreito e superficial”, e saudar o “espírito rialista em alternativa? Piadas sobre o “sol Voz de Fátima, inseriu as aparições num “pontinha de génio”, igualmente dada a
nem sempre contou com o “poder do Es- Santa Sé ou até mesmo a revisão da “in- sobre Fátima, a 18 de Agosto, era essa a um ideal. Foi esse precisamente o tema religioso que ora aparece na Europa”. em folias”, dichotes contra os “pequenos triângulo nacional, situado no centro do ditos humorísticos e a reflexões espirituais.
tado”. O “livre-pensamento” era uma causa tangível” Lei da Separação. A intervenção verdadeira nota: “e é sob esta união sa- do Século num artigo de 17 de Outubro, Acreditava que só “pelo sentimento re- labrostes”, troças da “crendice indígena”, país, cujos vértices seriam a Batalha, Fá- Mas durante as conversas, Figueiredo repa-
das lojas maçónicas em que quase todos na guerra não era popular e as dificulda- grada (...), que com ousadia extrema os em que comparou Fátima com as eleições ligioso” a humanidade poderia elevar-se ou a hilariante descoberta, em Agosto de tima e Ourém, de que Nuno Álvares tinha rou que em alguns momentos, de repente,
os chefes republicanos estavam filiados. des de abastecimentos eram graves. Para impostores vão praticando sem punições municipais de 14 de Outubro: “Em Fátima, “àquela altitude, onde todas as almas se 1917, de um “menino virtuoso” que, na rua sido conde. Estavam assim unidos o cato- havia nela uma “certa estranha expressão
Mas aplicava-se mais especialmente a uma o regime, uma trégua com os católicos todas essas proezas de estupidez e de ce- cerca de cinquenta mil pessoas se mobili- encontram, como que libertas de seus dos Poiais de S. Bento, em Lisboa, previa licismo e o patriotismo. A 10 de Abril de que surpreende e impressiona”: “Nos seus
corrente radical, protagonizada por asso- poderia ser conveniente, e parecia haver gueira”. Era urgente voltar às “punições”. zaram para presenciar um milagre. Idas de corpos e esquecidas da sua tenebrosa uma “aparição” na capital. Em 1917, eram os 1921, o bispo de Leiria participou com o olhos, há lá dentro, lá no fundo, lá muito
ciações próximas do Partido Republicano boa expectativa disso. Foi o que aconteceu a 23 de Agosto, com longínquas paragens, nem os incómodos da existência”. Pascoaes abominava o cleri- homens do livre-pensamento que pareciam Presidente da República na cerimónia de longe, um inatingível e insondável mundo.”
Português de Afonso Costa, no poder. A sua A igreja patrocinava um novo movi- o desterro do cardeal patriarca. jornada, nem a inclemência do tempo as calismo católico, mas sonhava com uma estéreis e intolerantes. A 26 de Outubro de inumação do Soldado Desconhecido, no Como em toda esta história.
reacção a Fátima foi quase instantânea. A 18 mento político, o Centro Católico, que no Mas a influência dos “livres-pensado- demoveram do seu propósito”. Mas “no dia “democracia rústica e campestre”, feita 1917, o Diário de Notícias resumia assim, mosteiro da Batalha. As bombas que des-
de Agosto de 1917, o diário O Mundo, órgão fundo significava o seu distanciamento res” diminuía. A 20 de Outubro de 1917, seguinte, a concorrência às urnas em Lisboa de “lavradores” a quem queria dar uma a propósito de Fátima, em que consistia o conhecidos colocaram na capela da Cova Rui Ramos é historiador, colunista
do PRP, imputou logo os acontecimentos dos monárquicos. Mas para os “livres- o Mundo atacou os jornais “que se pres- foi uma coisa irrisória”, apesar de haver religião nova, a da “saudade”. Com esse livre-pensamento oficial: no ataque ao “livre de Iria, na noite de 5 para 6 de Março de e administrador do Observador.
68 FÁTIMA FÁTIMA 69
criança, e depois aquela mole imensa de de “Torres Vedras” (sic, por Torres Novas) pensamento dos outros que não pensam 1922, demonstraram que Fátima já só podia
gente”. Azevedo Mendes tornou-se um dos a um “charlatão” que, a fim de explorar o como o Sr. Administrador do concelho”. ser atacada na sombra. Quando, em Maio,
grandes activistas de Fátima. Anos depois, “povo bisonho”, “industria pobres crianças No mês de Dezembro de 1917, o poder o governador civil de Santarém sugeriu
no santuário, comentaria: “o grande milagre a verem a santa”. No terreno, já o adminis- do PRP de Afonso Costa desmoronou-se que se proibisse a peregrinação, o novo
de Fátima é tudo aquilo que vemos, essas trador do concelho de Ourém, Artur de perante a sublevação militar comandada em administrador de Ourém respondeu que
multidões penitentes... Essa devoção... Essas Oliveira Santos, maçon e militante do “livre- Lisboa pelo major e professor universitário um tal acto só serviria para “desprestigiar a
conversões...” O que era “pouco” para Pinto -pensamento”, recorria a todos os meios Sidónio Pais. Sidónio, embora ateu, rompeu República”, e que não cumpriria nenhumas
Coelho, o idoso tradicionalista, era tudo para liquidar a “especulação clerical”. A com o livre-pensamento radical. Emendou a ordens nesse sentido, para o que já contava
para Azevedo Mendes, o jovem militante. 13 de Agosto, no dia previsto para a quarta Lei da Separação, restabeleceu relações com com o apoio de todos “os republicanos de
O lado “caótico” dos acontecimentos foi aparição, apareceu de surpresa em Fátima o Vaticano e, como Presidente da República, várias cores do concelho”. Não precisou
essencial, porque a surpresa e a admiração, e raptou os videntes, com intenção de os assistiu a missas solenes em Lisboa. Segundo de se insubordinar, porque o governo, em
no contexto desta nova sensibilidade religio- submeter a exames médicos e os internar o ex-administrador do concelho de Ourém, Lisboa, apressou-se a esclarecer que nunca
sa, jogaram a favor de Fátima. O professor “numa casa de educação”. Durante dois dias, o “sidonismo” deixou os “reaccionários à dera tais instruções ao governador civil (em
da Universidade de Bamberg, Ludwig Fis- manteve as crianças presas em sua casa. A vontade” em Fátima. Curiosamente, isso Outubro de 1924, num novo momento de
cher, rendeu-se a Fátima em 1929, quan- certa altura, para as aterrorizar, levou-as à não pareceu beneficiar muito o culto, que ascendência radical, houve outra tentativa
do, depois de visitar a Cova de Iria, entre cadeia, onde teriam sido ameaçadas de ser nestes anos perdeu dois dos videntes para de proibição, frustrada). O antigo adminis-
a multidão de peregrinos, seguiu para um “fritas em azeite”. a gripe pneumónica. Mas com o regresso trador, Oliveira Santos, estava desconsolado:
congresso eclesiástico em Sevilha. Entre Os seus correligionários mostraram ao poder do PRP, depois de 1919, os “livre- “A reacção vai triunfando.”
as grandes autoridades da igreja, sentiu o igual zelo. Na noite de 22 de Outubro, -pensadores” decidiram tentar novamente a O último golpe no “livre-pensamento”
contraste: “Sevilha é organização – Fátima um bando de “livres-pensadores” de San- eliminação de Fátima, outra vez com Artur viria a 27 de Dezembro de 1922, quando
é fé. Sevilha é tradição, rotina – Fátima é tarém viajou de automóvel até à Cova de de Oliveira Santos à frente da administração o Mundo anunciou sensacionalmente que
actualidade, é vida. Sevilha é obra do ho- Iria. Vandalizaram o local, cortaram a de Ourém. Em 1920, com a morte de Jacinta, o Presidente da República iria ao Palácio
mem – Fátima é obra de Deus. Sevilha é o azinheira, e fizeram depois em Santarém receou uma grande peregrinação a 13 de da Ajuda, como os antigos reis, impor o
fim – Fátima é o princípio”. uma procissão de paródia com os objec- Maio. Forças da GNR cercaram a Cova de Iria barrete cardinalício ao núncio apostólico,
Deste ponto de vista, a logística de Fáti- tos roubados, o que lhes valeu um balde e Lúcia, aos 13 anos, foi presa pela segunda como prova de que “o regime republicano
ma, em que os seus inimigos descortinam de água atirado de uma janela por uma vez por uma patrulha a cavalo da GNR. No é tolerante”. Almeida explicou então que a
a causa, só podia parecer a consequência. mulher indignada. Em Dezembro, a Fede- jornal A Guarda, um “republicano histó- república, embora neutra, “tem especiais
O bispo de Leiria, D. José Alves Correia ração do Livre-Pensamento e a Associação rico” estranhou: “na França republicana”, deferências” para com o catolicismo, por
da Silva, devoto de Lourdes, foi criando de Registo Civil de Lisboa voltaram ao os governos facilitavam as peregrinações a ser a religião da “quase totalidade da Na-
condições para uma eventual regulariza- terreno, com uma conferência em Ourém Lourdes, e nunca “o regime correu por esse ção”. Até Sebastião de Magalhães Lima, o
ção do culto: comprou terrenos na Cova e um comício na própria Cova de Iria, para motivo algum perigo”. Grão-Mestre da maçonaria, concordava:
de Iria, deixou rezar missas, e nomeou uma denunciar o “vil embuste de Fátima”. No O cerco de 1920 foi, em relação a Fáti- “a época dos mata-frades passou”. Para o
comissão de inquérito canónico em 1922 (o comício, não terão comparecido mais do ma, uma das últimas grandes exibições Mundo, sempre o órgão do PRP, mas já com
seu argumento a favor da possibilidade de que oito pessoas, apesar da protecção de de poder dos “livres-pensadores”. A sua pouco em comum com o jornal de 1917, era
um milagre é curioso: se os homens podiam uma grande força da Guarda Republicana influência cairia dramaticamente nos anos uma excelente notícia: “nunca mais po-
“desviar as águas de um rio, utilizá-lo para vinda de Tomar e de Torres Novas. seguintes, quando o presidente António derão especular junto da pobre gente da
a produção de energia eléctrica que nos dá Tanto afã acabou por suscitar dúvi- José de Almeida (1919-1923), com o apoio província com a lenda de que a República
luz, calor, movimento”, como não admitir das. A 18 de Novembro de 1917, Tomás do novo líder do PRP e chefe do governo, odeia Deus, persegue e tortura os padres,
que Deus pudesse “produzir efeitos muito da Fonseca, num artigo para O Mundo, António Maria da Silva, pôs fim à “guerra profana os templos e impede o culto da
superiores”? Afinal, o progresso tecnológi- perguntou-se mesmo se não eram os “li- religiosa”, ao mesmo tempo que a Igreja, religião católica”. Entretanto, a burocracia
co tinha “introduzido no mundo material vres-pensadores” que estavam a alimentar através do Centro Católico, se desinteressa- do Estado legalizava Fátima: a 12 de Maio
mais mudanças do que todos os milagres o “fogacho” de Fátima com “a lenha seca va da “questão do regime”. A década de 20 de 1924, a Divisão de Estradas do Distrito
do cristianismo”).
A propósito da comissão canónica, Lu-
dos nossos escritos e conversas”. De facto,
a perseguição teve este efeito: deixou a
● As fotos da Ilustração tam a servir essa mentira para iludir os
papalvos”. Era uma referência ao Século,
assembleias de voto em toda a cidade, e
não chover. A conclusão era tremenda: “Se
fim, não hesitou em aproveitar a imagís-
tica mariana. Em 1911, no poema Marános
teve momentos duros. Os governos tiveram
de praticar uma austeridade violenta, para
de Santarém concedeu a primeira licença
de obras na Cova da Iria, para os muros do
dwig Fischer reparou que “trabalhava com imprensa católica à vontade para abor- Portuguesa retratando o o maior diário português, que tinha sido cada vez parece haver mais quem faça fé na (grafia da época), apelou à “saudade” limitar uma das maiores inflações da Eu- recinto das aparições.
extrema lentidão”, mas “a fim de permitir dar Fátima, não como um “milagre”, de também o maior jornal republicano antes Virgem, porque é que cada vez há menos como à Virgem: “Ó Saudade! Ó Sauda- ropa. Houve greves e terrorismo. Para via- A aceitação de Fátima pelo “poder do
que o tempo e os factos se encarregassem de discussão delicada entre católicos, mas dia do milagre do Sol, a de 1910. A 15 de Outubro, a reportagem de quem faça fé nos homens? Com certeza não de! Ó Virgem Mãe,/ Que sobre a terra bilizar novas alianças, a elite republicana Estado” não teve, assim, de esperar pela
falar”. Entretanto, os entusiastas fundavam como um caso de falta de liberdade reli- Avelino de Almeida sobre o dia 13 na Cova é por culpa da Virgem.” santa portuguesa,/ Conceberás, isenta investiu fortemente no que pudesse servir cumplicidade entre a ditadura de Salazar
jornais e associações. Na passagem para a giosa, com que todas as pessoas decentes, 13 de Outubro de 1917, de Iria causara enorme sensação. Almeida Desde o fim do século XIX, o tipo de de pecado,/ O Cristo da Esperança e da como base de consenso. Foi uma época de e a Igreja do cardeal Cerejeira nos anos
década de 1930, Fátima assinalou a reorgani-
zação da Igreja portuguesa: deslocada para
independentemente das suas convicções,
se podiam escandalizar. Há a esse respeito,
demonstram a intensa havia sido um célebre ferrabrás do anticle-
ricalismo. Agora, aparecia deslumbrado
materialismo cientista que alimentava o
chamado “livre-pensamento” recuava,
Beleza!” Pascoaes não estava sozinho neste
marianismo republicano. A sua expressão
ouro de eventos e cerimónias patrióticas,
como a viagem aérea de Gago Coutinho e
30, nem pelo fortalecimento da sua res-
sonância profética a partir da década de
sul, mais popular, e mais “romana”, através na transcrição do que a Virgem terá dito cobertura jornalística por “um espectáculo único e inacreditável como já Eça de Queirós constatara em mais fantástica ocorreu na oração patrió- de Sacadura Cabral ao Brasil em 1922, ou 1940. Resultou, em primeiro lugar, de um
de um marianismo associado à afirmação a 19 de Agosto a Lúcia, uma incerteza para quem não foi testemunha dele”: uma 1893 no seu ensaio “Positivismo e Idealis- tica que o maior intelectual do regime, o a adopção pelo Estado do culto do con- novo republicanismo, traumatizado pelo
da autoridade do Papa. O clero, porém, curiosa: o pároco de Fátima registou: que Fátima rapidamente “imensa multidão” num “alarido colos- mo”, depois incluído no livro Notas Con- poeta Guerra Junqueiro, enviou ao jornal destável Nuno Álvares Pereira, beatificado fracasso do “livre-pensamento” e fascinado
nunca esteve totalmente à vontade. Tentou “se não tivessem abalado contigo para sal”, a gritar “milagre!, milagre!”. Tinha temporâneas. As ciências experimentais, República, a 13 de Fevereiro de 1917: “Pá- em 1918 e a quem a república consagrou pela ideia de um consenso de tipo religioso,
regularizar as “curas”, através de um serviço a Aldeia (Ourém) o milagre seria mais obteve e que em muito sido avassalador: “a sugestão colectiva que em meados do século XIX pareciam tria divina de Camões e de Nun’Álvares, um “feriado cívico”, a “Festa da Pátria”, que aliás inspirara o republicanismo euro-
de assistência aos doentes, a que se chamava
Gabinete de Verificações, como em Lourdes,
conhecido”; mas o cónego Formigão,
mais tarde, anotou o contrário: “se não
contribuiu para alimentar de que o sobrenatural impera ali e de
que um poder extra-humano empolga os
o critério de todos os valores, tinham-se
revelado limitadas e incertas. A religião,
santificado seja o vosso nome. (...) perdoai,
Senhora, os nossos erros. Para nos liber-
a 14 de Agosto. Mais uma vez, imitava-se
a França: Nuno Álvares constituía, como
peu desde a “religião civil” de Rousseau.
Mas resultou também da disponibilidade
e esforçou-se por tirar a Fátima o aspecto tivessem sido presas, não seria o milagre a audiência das aparições. circunstantes é tão forte e tão arrebatador de patologia condenada pelo progresso, tar de toda a fraqueza e de todo o crime, Jeanne d’Arc, um ponto de encontro entre a da Igreja em inserir o catolicismo na nação
de um romaria tradicional, com barracas tão conhecido”. Na versão de Formigão, a que os olhos se marejam de lágrimas, há passou a exemplo de um impulso vital ou encheremos os corações do vosso amor, “fé patriótica” e a “fé religiosa”. Em 1921, a histórica, como um selo providencialista do
de comes e bebes, foguetório, e mendigos, Virgem confirmava os receios do Mundo. rostos que se cobrem de uma palidez de expressão de uma transcendência inultra- Ámen”. Os intelectuais cosmopolitas e 14 de Agosto, houve grandes festas em Lis- patriotismo.
tal como hoje se esforça por transformar as O pormenor que tem escapado à his- morte, homens e mulheres prostram-se passável. A literatura dita “simbolista” anticatólicos da república tinham visto boa, com desfile militar, mas também mis- A história de Fátima está assim para além
“aparições” em “visões” (fenómeno místico, toriografia é que os chamados “livres- em terra, entoando cânticos e rezam o reabilitou a indeterminação, a vida inte- a Virgem muito antes dos pastorinhos sa. Os “livres-pensadores”, desesperados, do fait-divers de uma suposta religiosidade
em vez de físico). -pensadores” precisavam de Fátima muito terço em coro”. rior, o sonho, a religião, o hermetismo. de Aljustrel. declararam uma “Semana Anti-Clerical”. rural, ou da guerra entre a Igreja e o Estado.
mais do que os católicos. Os “livres-pensa- Avelino de Almeida não se convertera. Foi essa a inspiração do mais impor- Começara uma espécie de fascínio pela fé Estavam a perder. A prática religiosa re- Tudo é um pouco mais complicado. E, no
3. Um novo dores” constituíam apenas uma corrente Apenas ficara impressionado por duas tante movimento intelectual republicano que, anos depois, em 1938, levaria o escritor crudescera em Portugal, como na Europa, fim, para tornar a história ainda mais difí-
no republicanismo. Em 1917, sentiam a sua coisas em Fátima. Por um lado, uma de- destes anos, a Renascença Portuguesa, Antero de Figueiredo, em Fátima, a maravi- com a Grande Guerra. Nestes anos, como cil, conviria regressar ao princípio, às três
republicanismo influência ameaçada, não por Fátima, mas monstração da “psicologia das multidões”, que juntou Teixeira Pascoaes, Leonardo lhar-se: “A Fé! Que força extraordinária, que em França, só se falava das espectaculares crianças de Aljustrel. Em 1921, quando duas
A 31 de Outubro de 1942, o cardeal Cere- pelo próprio regime. A guerra, como em popularizada pelo escritor francês Gustave Coimbra, Jaime Cortesão, Raul Proença, espiritual potência! Se esta multidão soer- conversões de escritores ateus: Gomes Leal, já tinham morrido, a terceira desapareceu,
jeira resumiu assim a história de Fátima: França, levara à tentativa de estabelecer Le Bon. Mas, acima de tudo, a comunhão António Sérgio, Raul Brandão, e, ao prin- guesse as costas, levantaria cordilheiras; se Guerra Junqueiro, Manuel Ribeiro, mais internada em instituições eclesiásticas. Só
“sem a igreja e contra o poder do Estado”. uma “união sagrada”. Nesse espírito, o -pensadores” qualquer acordo com a numa crença colectiva, como a que os repu- cípio, Fernando Pessoa. Nos seus artigos e esbracejasse, afastaria continentes.” E teve tarde Leonardo Coimbra. Até Afonso Cos- em 1938, Lúcia voltou a falar em público,
Não era exacto. Nem pelo que dizia respeito governo aceitara a assistência religiosa em “reacção clerical” era impensável. Ora, blicanos, por outros meios, desejavam ob- conferências, Pascoaes, o líder da Renas- esta nota significativa: “É neste instante, ta, segundo os boatos, frequentava sessões por intermédio de Antero de Figueiredo.
à igreja, nem pelo que dizia respeito ao campanha, nomeando capelães militares. que melhor do que Fátima, ressurgência ter. Fátima mostrava à república, de modo cença, citava, tal como Sardinha, Henri único, que tem realidade a ideologia (aliás, espíritas em Paris. Fátima, o livro do encontro, descreve-a
“poder do Estado”. Era verdade que Fátima Mas corriam rumores mais preocupantes: de uma credulidade fraudulenta, para perverso, aquilo que a república gostaria Bergson e William James, para repudiar socialmente falsa) da Revolução.” Ora, o O cónego Formigão procurou situar Fá- como uma “figura meã de camponesa”, com
fora, desde o princípio, um alvo do chamado que estaria a ser considerado o restabele- provar a inconveniência de o regime se de ter sido: a ultrapassagem dos egoísmos, o “egoísmo materialista”, o “cientismo que oferecia o “livre-pensamento” mate- tima neste contexto. Em artigos no jornal “cara plebeia”, viva e jovial, talvez com uma
“livre-pensamento” republicano, mas este cimento de relações diplomáticas com a moderar? No primeiro artigo do Mundo a disponibilidade de tudo sacrificar por estreito e superficial”, e saudar o “espírito rialista em alternativa? Piadas sobre o “sol Voz de Fátima, inseriu as aparições num “pontinha de génio”, igualmente dada a
nem sempre contou com o “poder do Es- Santa Sé ou até mesmo a revisão da “in- sobre Fátima, a 18 de Agosto, era essa a um ideal. Foi esse precisamente o tema religioso que ora aparece na Europa”. em folias”, dichotes contra os “pequenos triângulo nacional, situado no centro do ditos humorísticos e a reflexões espirituais.
tado”. O “livre-pensamento” era uma causa tangível” Lei da Separação. A intervenção verdadeira nota: “e é sob esta união sa- do Século num artigo de 17 de Outubro, Acreditava que só “pelo sentimento re- labrostes”, troças da “crendice indígena”, país, cujos vértices seriam a Batalha, Fá- Mas durante as conversas, Figueiredo repa-
das lojas maçónicas em que quase todos na guerra não era popular e as dificulda- grada (...), que com ousadia extrema os em que comparou Fátima com as eleições ligioso” a humanidade poderia elevar-se ou a hilariante descoberta, em Agosto de tima e Ourém, de que Nuno Álvares tinha rou que em alguns momentos, de repente,
os chefes republicanos estavam filiados. des de abastecimentos eram graves. Para impostores vão praticando sem punições municipais de 14 de Outubro: “Em Fátima, “àquela altitude, onde todas as almas se 1917, de um “menino virtuoso” que, na rua sido conde. Estavam assim unidos o cato- havia nela uma “certa estranha expressão
Mas aplicava-se mais especialmente a uma o regime, uma trégua com os católicos todas essas proezas de estupidez e de ce- cerca de cinquenta mil pessoas se mobili- encontram, como que libertas de seus dos Poiais de S. Bento, em Lisboa, previa licismo e o patriotismo. A 10 de Abril de que surpreende e impressiona”: “Nos seus
corrente radical, protagonizada por asso- poderia ser conveniente, e parecia haver gueira”. Era urgente voltar às “punições”. zaram para presenciar um milagre. Idas de corpos e esquecidas da sua tenebrosa uma “aparição” na capital. Em 1917, eram os 1921, o bispo de Leiria participou com o olhos, há lá dentro, lá no fundo, lá muito
ciações próximas do Partido Republicano boa expectativa disso. Foi o que aconteceu a 23 de Agosto, com longínquas paragens, nem os incómodos da existência”. Pascoaes abominava o cleri- homens do livre-pensamento que pareciam Presidente da República na cerimónia de longe, um inatingível e insondável mundo.”
Português de Afonso Costa, no poder. A sua A igreja patrocinava um novo movi- o desterro do cardeal patriarca. jornada, nem a inclemência do tempo as calismo católico, mas sonhava com uma estéreis e intolerantes. A 26 de Outubro de inumação do Soldado Desconhecido, no Como em toda esta história.
reacção a Fátima foi quase instantânea. A 18 mento político, o Centro Católico, que no Mas a influência dos “livres-pensado- demoveram do seu propósito”. Mas “no dia “democracia rústica e campestre”, feita 1917, o Diário de Notícias resumia assim, mosteiro da Batalha. As bombas que des-
de Agosto de 1917, o diário O Mundo, órgão fundo significava o seu distanciamento res” diminuía. A 20 de Outubro de 1917, seguinte, a concorrência às urnas em Lisboa de “lavradores” a quem queria dar uma a propósito de Fátima, em que consistia o conhecidos colocaram na capela da Cova Rui Ramos é historiador, colunista
do PRP, imputou logo os acontecimentos dos monárquicos. Mas para os “livres- o Mundo atacou os jornais “que se pres- foi uma coisa irrisória”, apesar de haver religião nova, a da “saudade”. Com esse livre-pensamento oficial: no ataque ao “livre de Iria, na noite de 5 para 6 de Março de e administrador do Observador.
70 FÉ E CIÊNCIA 71
Em 1927, o astrónomo belga Georges frente a frente, uma vez que acontece através Foi esse o caso de Galileu, no século XVI, tes e cientistas. Nascido em 1894 na cidade
Lemaître dava os primeiros passos rumo à do Observador, eles falaram como se estives- que se dedicou a defender o modelo helio- belga de Charleroi, Lemaître dedicou-se aos
hipótese que hoje é conhecida como teo- sem a conversar com uma bebida nas mãos. cêntrico (ou seja, a hipótese de que o Sol estudos na área da ciência até aos 20 anos,
ria do Big Bang. Naquela altura, Lemaître “Não faço ideia de como quebrar esse ocupava o lugar central no Sistema Solar altura em que os interrompeu para cumprir
propôs a ideia de que o Uuniverso teria mito”, admite o irmão jesuíta norte-ame- e que todos os outros planetas giravam em o seu dever militar. A participação na I Guer-
de estar em constante expansão e sugeriu ricano Guy Consolmagno, escolhido pelo torno dele). Problema: na altura a Igreja ra Mundial valeu-lhe até uma condecoração,
a hipótese do átomo primordial – uma papa Francisco, em 2015, para liderar o Católica considerava que o modelo geocên- mas os horrores da guerra levaram-no a
única partícula estaria na origem de tudo. Observatório Astronómico do Vaticano, um trico, que olhava para a Terra como centro virar-se para a Igreja e a decidir ser padre.
As origens dessa ideia do Big Bang como dos mais antigos do mundo. Mais otimista do Universo, era o único que correspondia No entanto, não deixou a vocação científica,
momento criador do Universo são habitual- é o físico português Carlos Fiolhais. “Reli- à realidade, e considerou que as afirmações e depois da guerra ainda fez um doutora-
mente atribuídas ao astrónomo americano gião e ciência são duas dimensões do ser de Galileu como heresia. mento em física no MIT. Admirador de Al-
Edwin Hubble (cujo nome serviu até para humano que podem coexistir, como mos- Vamos lá então à discussão nesta espécie bert Einstein, Lemaître partiu das ideias do
batizar o primeiro telescópio em órbita). tram não só o caso de Galileu como o do de balcão de bar fictício. “O caso Galileu foi físico alemão para chegar, em 1927, a uma
De facto, foi ele quem viria, mais tarde, a padre Lemaître e tantos outros”, considera um confronto de poder, numa altura em conclusão que o intrigou: o Universo devia
desenvolver e a confirmar a teoria. Mas o cientista, que admira o papa Francisco que a Igreja, baseada na Bíblia, considerava estar em expansão para se manter estável.
a verdade é que a hipótese foi avançada por “conhecer o valor da ciência”. que os assuntos da astronomia estavam Einstein não gostou, inicialmente, das
primeiro por Lemaître. Lemaître que, além sob a sua alçada”, explica o físico Carlos conclusões de Lemaître, mas isso não im-
de astrofísico, era um padre católico. Georges Lemaître, Fiolhais, recordando a posição do cardeal pediu o belga de aprofundar o seu estudo
Isso mesmo. A teoria que, aparentemen- Gianfranco Ravasi, atualmente um dos e de publicar, pouco depois, o trabalho
te, contradiz tudo o que a Igreja Católica o padre que propôs mais influentes cardeais do Vaticano. “Para definitivo em que defendia a hipótese do
afirma sobre a criação do Universo foi pro- a teoria do Big Bang o cardeal Ravasi, que preside ao Pontifício átomo primordial e do Big Bang. Albert
posta por um padre católico. Comecemos pelo princípio, já que é disso Conselho para a Cultura, não tinha apenas Einstein viria mais tarde a concordar com
Noventa anos depois da publicação da que vamos falar. Igreja e ciência têm uma razão o cientista Galileu no que respeita o padre-cientista e terá chegado mesmo
teoria do Big Bang, fomos perguntar a um longa história de conflito. Em tempos a ao movimento da Terra e do Sol, tinha a dizer: “Esta é a mais bela explicação
religioso e a um cientista se a ciência e a ciência esteve, aliás, sob tutela exclusiva também razão o teólogo Galileu. Isto é, ele da criação que já ouvi.” Os dois viriam a
religião continuam a ser mundos opostos. da Igreja Católica e quem contrariasse as sabia, do ponto de vista atual, mais teologia encontrar-se várias vezes ao longo da vida e
Uma conversa do género “um padre e um ideias instituídas arriscava-se a enfren- do que os clérigos que o julgaram.” a trabalhar em conjunto. As fotografias dos
cientista entram num bar…” para ver até tar graves consequências por parte da Trezentos anos depois, Georges Lemaître dois acabariam por se tornar ícones de uma
onde iam. E mesmo não sendo um encontro Inquisição. deu o passo definitivo na relação entre cren- relação saudável entre ciência e religião.
70 FÉ E CIÊNCIA 71
Em 1927, o astrónomo belga Georges frente a frente, uma vez que acontece através Foi esse o caso de Galileu, no século XVI, tes e cientistas. Nascido em 1894 na cidade
Lemaître dava os primeiros passos rumo à do Observador, eles falaram como se estives- que se dedicou a defender o modelo helio- belga de Charleroi, Lemaître dedicou-se aos
hipótese que hoje é conhecida como teo- sem a conversar com uma bebida nas mãos. cêntrico (ou seja, a hipótese de que o Sol estudos na área da ciência até aos 20 anos,
ria do Big Bang. Naquela altura, Lemaître “Não faço ideia de como quebrar esse ocupava o lugar central no Sistema Solar altura em que os interrompeu para cumprir
propôs a ideia de que o Uuniverso teria mito”, admite o irmão jesuíta norte-ame- e que todos os outros planetas giravam em o seu dever militar. A participação na I Guer-
de estar em constante expansão e sugeriu ricano Guy Consolmagno, escolhido pelo torno dele). Problema: na altura a Igreja ra Mundial valeu-lhe até uma condecoração,
a hipótese do átomo primordial – uma papa Francisco, em 2015, para liderar o Católica considerava que o modelo geocên- mas os horrores da guerra levaram-no a
única partícula estaria na origem de tudo. Observatório Astronómico do Vaticano, um trico, que olhava para a Terra como centro virar-se para a Igreja e a decidir ser padre.
As origens dessa ideia do Big Bang como dos mais antigos do mundo. Mais otimista do Universo, era o único que correspondia No entanto, não deixou a vocação científica,
momento criador do Universo são habitual- é o físico português Carlos Fiolhais. “Reli- à realidade, e considerou que as afirmações e depois da guerra ainda fez um doutora-
mente atribuídas ao astrónomo americano gião e ciência são duas dimensões do ser de Galileu como heresia. mento em física no MIT. Admirador de Al-
Edwin Hubble (cujo nome serviu até para humano que podem coexistir, como mos- Vamos lá então à discussão nesta espécie bert Einstein, Lemaître partiu das ideias do
batizar o primeiro telescópio em órbita). tram não só o caso de Galileu como o do de balcão de bar fictício. “O caso Galileu foi físico alemão para chegar, em 1927, a uma
De facto, foi ele quem viria, mais tarde, a padre Lemaître e tantos outros”, considera um confronto de poder, numa altura em conclusão que o intrigou: o Universo devia
desenvolver e a confirmar a teoria. Mas o cientista, que admira o papa Francisco que a Igreja, baseada na Bíblia, considerava estar em expansão para se manter estável.
a verdade é que a hipótese foi avançada por “conhecer o valor da ciência”. que os assuntos da astronomia estavam Einstein não gostou, inicialmente, das
primeiro por Lemaître. Lemaître que, além sob a sua alçada”, explica o físico Carlos conclusões de Lemaître, mas isso não im-
de astrofísico, era um padre católico. Georges Lemaître, Fiolhais, recordando a posição do cardeal pediu o belga de aprofundar o seu estudo
Isso mesmo. A teoria que, aparentemen- Gianfranco Ravasi, atualmente um dos e de publicar, pouco depois, o trabalho
te, contradiz tudo o que a Igreja Católica o padre que propôs mais influentes cardeais do Vaticano. “Para definitivo em que defendia a hipótese do
afirma sobre a criação do Universo foi pro- a teoria do Big Bang o cardeal Ravasi, que preside ao Pontifício átomo primordial e do Big Bang. Albert
posta por um padre católico. Comecemos pelo princípio, já que é disso Conselho para a Cultura, não tinha apenas Einstein viria mais tarde a concordar com
Noventa anos depois da publicação da que vamos falar. Igreja e ciência têm uma razão o cientista Galileu no que respeita o padre-cientista e terá chegado mesmo
teoria do Big Bang, fomos perguntar a um longa história de conflito. Em tempos a ao movimento da Terra e do Sol, tinha a dizer: “Esta é a mais bela explicação
religioso e a um cientista se a ciência e a ciência esteve, aliás, sob tutela exclusiva também razão o teólogo Galileu. Isto é, ele da criação que já ouvi.” Os dois viriam a
religião continuam a ser mundos opostos. da Igreja Católica e quem contrariasse as sabia, do ponto de vista atual, mais teologia encontrar-se várias vezes ao longo da vida e
Uma conversa do género “um padre e um ideias instituídas arriscava-se a enfren- do que os clérigos que o julgaram.” a trabalhar em conjunto. As fotografias dos
cientista entram num bar…” para ver até tar graves consequências por parte da Trezentos anos depois, Georges Lemaître dois acabariam por se tornar ícones de uma
onde iam. E mesmo não sendo um encontro Inquisição. deu o passo definitivo na relação entre cren- relação saudável entre ciência e religião.
72 FÉ E CIÊNCIA FÉ E CIÊNCIA 73
Carlos Fiolhais recorda alguns detalhes O físico Carlos Fiolhais pensa da mes- O aborto e a eutanásia. sendo um documento teológico, está em
sobre a vida do padre belga. “Lemaître teve ma forma: “A ciência não tem a ilusão de “A ciência é óbvia”, boa parte alicerçado em ciência sólida.
o cuidado de prevenir o Vaticano de que a responder a todas as questões. Só pode Admiro o papa Francisco, que conhece o
sua teoria não devia ser considerada uma responder às questões para as quais, com a fé nem tanto valor da ciência, até por alguma formação
confirmação da criação escrita no Géne- método científico, fundado na lógica, na Práticas como o aborto e a eutanásia estão que teve na área da química e que quer
sis”, explica. Para Fiolhais, “a posição do observação e na experiência, funciona. A frequentemente no centro da discórdia contribuir para a sobrevivência a médio
astrofísico e padre belga Georges Lemaître ciência não consegue, e provavelmente entre quem usa a religião como argumento e longo prazo na vida na terra.”
ajudou a clarificar as relações entre ciência não vai responder nunca, sou cauteloso, contra e quem usa a ciência como argu- “Vivendo ao lado uma da outra e poden-
e religião, mas de facto tudo estava já muito à questão sobre o que aconteceu antes mento a favor. E talvez seja neste tópico do coexistir nalgumas pessoas, ciência e
claro na cabeça de Galileu, há 400 anos”. do Big Bang, se é que houve um antes.” que é mais difícil encontrar um consenso religião têm vantagens em falar uma com
Isto porque “para Galileu, uma coisa era Sublinhando que a ciência pode tentar entre o físico português e o jesuíta norte- a outra. Ambas têm em comum a ligação
a ciência e outra a religião, podendo as responder a alguns “porquês”, o cientis- -americano. Carlos Fiolhais faz questão ao homem, ambas tentam responder a
duas coabitar. Foi ele quem declarou que ta admite que “os ‘porquês dos porquês’ de sublinhar que “a eutanásia e o aborto questões humanas. A religião pode saber
‘a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos podem estar do lado da filosofia, ou, se são questões éticas, sobre as quais a Igreja da ciência como funciona o mundo. E
como ir para o céu e não como o céu se quisermos, da teologia”. Católica tem posições conhecidas de opo- a ciência pode saber da religião que há
move’”, explica agora o físico, professor “Gostei muito de que o papa Francisco sição”. A ciência, acrescenta o físico, “pode mais mundos para além do mundo que ela
catedrático da Faculdade de Ciências e tivesse dito que Deus não é um mágico”, dar informações sobre o que está em causa, estuda. Do diálogo entre as duas podem
Tecnologia da Universidade de Coimbra. assume Fiolhais. O cientista, admirador do mas não toma posições sobre o que fazer”. surgir, além de uma melhor compreensão
“Lemaître, baseado nas ideias de Einstein, Papa, destaca que “não é nova a posição Esse é o papel da política, que deve “esta- recíproca, projetos conjuntos”, afirma
aventou a hipótese de um Universo em ex- da Igreja Católica sobre a aceitação do Big belecer regras o mais consensuais possível Carlos Fiolhais.
pansão, que foi mais quente no seu início – o Bang e, embora com algumas dificuldades na casa comum”, diz Carlos Fiolhais. O jesuíta Guy Consolmagno é um dos
Big Bang. Essa teoria recebeu tantas provas pontuais, da teoria da evolução”. Tal como a Apesar de também ser cientista, o jesuíta melhores exemplos destas pessoas refe-
observacionais que neste momento não tem teoria do Big Bang é a melhor hipótese para Guy Consolmagno tem uma visão diferente ridas por Carlos Fiolhais em quem fé e
alternativa”, sublinha o cientista português. explicar a criação do mundo, também a te- do assunto. “Nenhuma pessoa religiosa usa ciência podem coexistir. Escolhido a 18
Uma teoria que, para Fiolhais, apesar de “ter oria da evolução, sobretudo marcada pelas argumentos de base religiosa em discus- de setembro de 2015 pelo papa Francisco
ainda muita coisa por explicar, não perde o ideias de Charles Darwin, “não precisou de sões sobre o entendimento científico atual como diretor do Observatório do Vatica-
estatuto de ser não só a nossa melhor teoria ter respondido a todo o tipo de questões relativamente ao que acontece quando um no, o jesuíta de 65 anos tem vindo a defen-
sobre a criação do mundo como até a única”. sobre o desenvolvimento da vida para se feto é abortado ou quando uma pessoa der que “o Vaticano apoia a astronomia
O mesmo pensa o jesuíta Guy Consol- afirmar não só como a melhor, mas também doente é morta”, defende Consolmagno, porque é uma parte importante de ser
magno, apesar de considerar que o facto como a única teoria sobre a história da vida”. argumentando que nestes casos “a ‘ciência’ humano”. Ao Observador, Consolmagno
de ter sido um padre a propor a teoria do Sobre a explicação presente no Génesis é óbvia”. Em vez disso, afirma o diretor do explica que, quando chegou ao Observa-
Big Bang não é suficiente para quebrar sobre a criação do mundo e dos seres hu- Observatório Astronómico do Vaticano, “o tório do Vaticano, lhe disseram apenas
o mito do afastamento radical entre fé e manos, o físico descreve-a como “um relato que uma pessoa religiosa faz é levantar que deveria fazer “boa ciência”. “Também
ciência. “As pessoas acreditam naquilo em poético, espiritual, que não pode, eviden- uma questão que a ciência não pode fazer: sei que uma parte essencial desta tarefa
que querem acreditar, mesmo na presença temente, ser levado à letra, ao contrário só porque é possível fazer uma coisa, isso é mostrar ao mundo a ciência que nós
de evidências que apontam exatamente do que os criacionistas dizem”. O jesuíta quer dizer que seja uma boa ideia fazê-lo?” fazemos”, destaca.
para o contrário”, diz o responsável pelo norte-americano concorda: “O Génesis Guy Consolmagno defende este papel da O contributo do Vaticano para o pro-
Observatório Astronómico do Vaticano. não é uma descrição científica da cosmo- religião – o de levantar as perguntas que gresso científico tem, inclusivamente, sido
Ainda assim, Consolmagno mantém-se logia. Como podia ser, se a ciência ainda a ciência não levanta – recordando que reconhecido pela própria comunidade
otimista: “Há muito menos cientistas que se não tinha sido inventada?” Consolmagno “a religião era a única parte da sociedade científica, destaca Consolmagno. “Os
consideram agnósticos ou ateus do que se deixa também uma crítica aos criacionis- contra a eutanásia há 100 anos, na altura nossos astrónomos são altamente pro-
possa pensar. Especialmente astrónomos e tas: “Qualquer pessoa que tente fazer uma em que todos os pensadores trendy do curados para colaborar com cientistas
físicos, que estão habituados a um Universo comparação direta entre as duas áreas não final do século XIX e do início do século em todo o mundo. Não só fazemos um
que é muito mais estranho e interessante do tem qualquer conhecimento sobre ciência XX pensavam que a eutanásia ia levar à bom trabalho, como o fazemos sem contar
que o antigo Universo mecânico do século ou sobre teologia.” perfeição da raça humana”. Mais: o astró- com as mesmas garantias e recursos que
XIX.” E a comunidade científica não tem Criticados até pelo próprio papa, os nomo do Vaticano acrescenta que naquela financiam os outros cientistas”, sublinha.
problemas em reconhecer o trabalho do criacionistas baseiam-se sobretudo numa altura “a ciência por trás da eutanásia era Carlos Fiolhais concorda. “Apesar de os
sacerdote, diz o jesuíta. “Nunca encontrei interpretação literal da Bíblia para negar uma ciência de lixo”, muito pouco evoluída discursos e os métodos serem diferentes,
relutância em reconhecer o trabalho de Le- hipóteses científicas como o Big Bang ou a e “mesmo que tivesse resultado da forma o diálogo, como aquele que o Vaticano
maître, tendo em conta, como é óbvio, que teoria da evolução das espécies. Para Carlos que as pessoas pensavam na altura, teria tem proporcionado através da Academia
o nosso conhecimento, que teve o seu início Fiolhais, as ideias criacionistas “não são sido completamente horrível e errado”. Pontifícia das Ciências e outros organis-
com o seu trabalho, já progrediu muito além ciência, porque os seus defensores aban- Carlos Fiolhais, que se assume como não- mos, não só é possível como muito útil”,
do que ele podia ter proposto há 90 anos.” donaram o método científico, embora se -crente, apesar da admiração que demons- e o papa Francisco tem tido um papel
procurem fazer passar por ciência”. Tanto tra pelos católicos e de citar sem problemas fundamental nele. “O seu papel de líder
Big Bang e teoria da Fiolhais como Consolmagno concordam os documentos da Igreja, prefere manter-se espiritual é importantíssimo, porque a
com a ideia de que as descrições bíblicas pelo que a ciência pode observar. “Eu vejo sua voz está num plano diferente da dos
evolução vs. Génesis: não devem ser interpretadas literalmente. as coisas do lado da ciência, mas tenho líderes políticos”, diz o físico.
como apareceu o “Desde o tempo de Galileu que a Bíblia não muito respeito pelo lado da religião, até Carlos Fiolhais e Guy Consolmagno
mundo? é considerada um livro de ciência”, diz o porque foi essa a tradição cultural e moral concordam num ponto fundamental:
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físico português. que recebi”, sublinha. Questões como o ciência e religião hão de fazer sempre parte
Deus disse “faça-se luz” e fez-se luz? Ou aborto e a eutanásia “são do foro da cons- da vida humana. “Não sendo um católico
uma grande libertação de energia deu ori- Deus existe mesmo? ciência de cada um”. praticante, tento aprender a dimensão
gem a todas as partículas que existem hoje espiritual dada pela Igreja”, afirma o físi-
no Universo? É provavelmente a questão “Os cientistas não têm ● Em 1933, Einstein e Lamaître encontraram-se na co português, que acredita que “há uma
mais comum quando fé e ciência aparecem como responder às A ciência no Vaticano espiritualidade inerente ao humano que
na mesma conversa, mas tanto a comunida- perguntas que não são Califórnia. Fé e ciência juntas, numa foto histórica. Discórdias à parte, a verdade é que a ciên- não tem necessariamente de ser enqua-
de científica como a Igreja reconhecem que cia ocupa uma boa parte do investimento, drada por esta ou aquela Igreja”. E recorda
as duas ideias não estão assim tão distantes. do seu domínio” Da mesma forma, continua Consolmag- “Não sabendo muito de teologia, julgo que forma de olhar para o Universo, nenhum “há uma corrente de cientistas ateus muito tanto financeiro, como humano, do Vati- o amigo improvável do padre Lemaître,
Guy Consolmagno simplifica a questão do A existência ou não de Deus é outro dos tó- no, “posso decidir de forma igualmente Santo Agostinho resumiu a questão da fé entendimento de Deus ou da natureza ruidosos, à cabeça dos quais talvez esteja cano, como reconhece Carlos Fiolhais. “O Albert Einstein. “Einstein falava de uma
ponto de vista religioso: “O Génesis diz- picos que, aparentemente, mais dividem os fácil que não quero acreditar em Deus ao dizer: ‘Se compreendeis, não é Deus.’ que seja perfeito ou definitivo”. Consol- o biólogo Richard Dawkins, que têm feito Observatório Astronómico do Vaticano, ‘religiosidade cósmica’. Há uma inquieta-
-nos quem é responsável por existir um crentes e os cientistas. Guy Consolmagno, e começar com a suposição de que não Deus está para lá da compreensão”, des- magno defende, por isso, que “nunca po- uma espécie de cruzada contra a religião, hoje com o irmão Guy Consolmagno à fren- ção nos seres humanos, que são pequenos
Universo. A ciência explica como é que Ele a quem o papa Francisco confiou a missão existe Deus. Nesse caso, a minha lógica irá taca o físico da Universidade de Coimbra. demos deixar de aprender nem deixar alicerçados na ciência”, mas considera que te, é muito antigo, é um dos mais antigos no imenso Universo, e que é uma marca
o criou. A resposta à primeira não muda, de promover a ciência no Vaticano, usa um numa direção diferente. Mas em nenhum Fiolhais vai mesmo mais longe, ao dizer de trabalhar e, sobretudo, não devemos eles não constituem uma maioria dentro do mundo”, sublinha. Fundado em 1572 maior do humano.”
é Deus. A resposta à segunda, dada pela princípio matemático para explicar que a dos casos eu estou a provar alguma coisa que “os cientistas não têm como responder pensar que já temos tudo esclarecido”. O da comunidade científica. “Algumas re- pelo papa Gregório XIII, que precisava Consolmagno vai mais longe: “Passamos
ciência, nunca para de mudar e de crescer.” existência de Deus nunca será cientifica- sobre Deus. Deus é o axioma, a premis- às perguntas que não são do seu domínio. melhor talvez seja, segundo Carlos Fio- ligiões têm extremistas e também na ci- de conhecimentos em astronomia para a nossa vida a viver com o Universo, cada
O próprio papa Francisco foi perentório mente comprovada, mas que é premissa sa com que eu começo e não algo que E há tantas.” Como por exemplo? “O que lhais, seguir os passos de Galileu. “Ele, ência há posições radicais de cientismo, criar um novo calendário (o calendário vez mais intimamente, tornando-nos cada
sobre o assunto, durante um encontro com inicial para a atividade humana. “Toda a vem no fim de alguma cadeia lógica.” O é o belo? O que é a felicidade? O que é que era crente em Deus – mesmo após que ignoram outras dimensões do homem gregoriano, que ainda hoje usamos), o Ob- vez mais habituados ao que lá existe.” E é
cientistas no Vaticano, em 2014. “Quando razão começa com uma suposição, isto é jesuíta faz ainda questão de sublinhar o amor?” Tentar não custa, e o cientista a condenação inquisitorial, que hoje é para lá da científica”, explica o físico. “Mas servatório Astronómico do Vaticano conta assim que um religioso acaba por fazer
lemos sobre a criação, no Génesis, corre- um teorema matemático conhecido como que é “suscetível ao erro” quando tenta garante que é possível “decompor estas reconhecida pela Igreja como errada –, essas posições estão hoje ultrapassadas. atualmente com o trabalho permanente de da ciência a sua vida: “Quero lembrar aos
mos o risco de imaginar Deus como um lei de Godel. Posso começar por assumir “esclarecer alguma coisa”. “É por isso perguntas em algumas outras, mais aces- dizia que se Deus tinha dado a razão aos A imensa maioria dos cientistas trabalha mais de uma dezena de astrónomos, além nossos amigos não-cientistas que vivemos
mágico, com uma varinha mágica, capaz de que existe um Deus, que é responsável pelo que testo sempre as minhas ideias com síveis, para as quais a ciência pode dar seres humanos era para eles a exercerem, lado a lado com pessoas de várias fés ou de inúmeras colaborações com instituições num universo maravilhoso e que podemos
fazer tudo. Mas não é bem assim”, disse na Universo, e depois interpretar tudo o que experiências científicas.” algum contributo”. em particular na compreensão do mundo. sem fé nenhuma, sem se preocupar com científicas. obter muita alegria de aprender mais e
altura o papa, acrescentando que “a teoria vejo e experimento à luz desta suposição. Carlos Fiolhais explica que “entre os A inquietação das perguntas por res- Uma coisa era a fé e a moral, outra era a diferenças religiosas. Este é, aliás, um dos O papa Francisco tem tido um papel mais sobre ele.”
do Big Bang, que hoje consideramos como Se eu o fizer, irei conseguir conhecer Deus objetivos da ciência não está a demonstra- ponder é partilhada pelo astrónomo jesu- mecânica celeste.” grandes méritos da ciência: a ciência une, determinante nesta crescente aproximação Tchim tchim.
explicação para a origem do mundo, não muito mais intimamente. Mas tenho de ção da existência ou da não-existência de íta norte-americano, para quem “o maior A posição partilhada por Consolmagno e uma vez que o método científico tem apli- entre os campos da ciência e da fé, afirma
contradiz a intervenção do criador divino, começar com esta suposição antes de agir”, Deus”, e recorre mais uma vez a referências desafio à aproximação entre ciência e fé é Fiolhais não é verdadeiramente consensual. cação universal e tem dado bons resultados Carlos Fiolhais. “A encíclica Laudato Si João Francisco Gomes é jornalista
mas, pelo contrário, requere-a.” explica o jesuíta norte-americano. religiosas para ilustrar o seu pensamento. lembrar-nos de que não existe nenhuma O físico português admite que atualmente por todo o lado.” [publicada pelo Papa em maio de 2015], do Observador, onde iniciou a sua carreira.
72 FÉ E CIÊNCIA FÉ E CIÊNCIA 73
Carlos Fiolhais recorda alguns detalhes O físico Carlos Fiolhais pensa da mes- O aborto e a eutanásia. sendo um documento teológico, está em
sobre a vida do padre belga. “Lemaître teve ma forma: “A ciência não tem a ilusão de “A ciência é óbvia”, boa parte alicerçado em ciência sólida.
o cuidado de prevenir o Vaticano de que a responder a todas as questões. Só pode Admiro o papa Francisco, que conhece o
sua teoria não devia ser considerada uma responder às questões para as quais, com a fé nem tanto valor da ciência, até por alguma formação
confirmação da criação escrita no Géne- método científico, fundado na lógica, na Práticas como o aborto e a eutanásia estão que teve na área da química e que quer
sis”, explica. Para Fiolhais, “a posição do observação e na experiência, funciona. A frequentemente no centro da discórdia contribuir para a sobrevivência a médio
astrofísico e padre belga Georges Lemaître ciência não consegue, e provavelmente entre quem usa a religião como argumento e longo prazo na vida na terra.”
ajudou a clarificar as relações entre ciência não vai responder nunca, sou cauteloso, contra e quem usa a ciência como argu- “Vivendo ao lado uma da outra e poden-
e religião, mas de facto tudo estava já muito à questão sobre o que aconteceu antes mento a favor. E talvez seja neste tópico do coexistir nalgumas pessoas, ciência e
claro na cabeça de Galileu, há 400 anos”. do Big Bang, se é que houve um antes.” que é mais difícil encontrar um consenso religião têm vantagens em falar uma com
Isto porque “para Galileu, uma coisa era Sublinhando que a ciência pode tentar entre o físico português e o jesuíta norte- a outra. Ambas têm em comum a ligação
a ciência e outra a religião, podendo as responder a alguns “porquês”, o cientis- -americano. Carlos Fiolhais faz questão ao homem, ambas tentam responder a
duas coabitar. Foi ele quem declarou que ta admite que “os ‘porquês dos porquês’ de sublinhar que “a eutanásia e o aborto questões humanas. A religião pode saber
‘a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos podem estar do lado da filosofia, ou, se são questões éticas, sobre as quais a Igreja da ciência como funciona o mundo. E
como ir para o céu e não como o céu se quisermos, da teologia”. Católica tem posições conhecidas de opo- a ciência pode saber da religião que há
move’”, explica agora o físico, professor “Gostei muito de que o papa Francisco sição”. A ciência, acrescenta o físico, “pode mais mundos para além do mundo que ela
catedrático da Faculdade de Ciências e tivesse dito que Deus não é um mágico”, dar informações sobre o que está em causa, estuda. Do diálogo entre as duas podem
Tecnologia da Universidade de Coimbra. assume Fiolhais. O cientista, admirador do mas não toma posições sobre o que fazer”. surgir, além de uma melhor compreensão
“Lemaître, baseado nas ideias de Einstein, Papa, destaca que “não é nova a posição Esse é o papel da política, que deve “esta- recíproca, projetos conjuntos”, afirma
aventou a hipótese de um Universo em ex- da Igreja Católica sobre a aceitação do Big belecer regras o mais consensuais possível Carlos Fiolhais.
pansão, que foi mais quente no seu início – o Bang e, embora com algumas dificuldades na casa comum”, diz Carlos Fiolhais. O jesuíta Guy Consolmagno é um dos
Big Bang. Essa teoria recebeu tantas provas pontuais, da teoria da evolução”. Tal como a Apesar de também ser cientista, o jesuíta melhores exemplos destas pessoas refe-
observacionais que neste momento não tem teoria do Big Bang é a melhor hipótese para Guy Consolmagno tem uma visão diferente ridas por Carlos Fiolhais em quem fé e
alternativa”, sublinha o cientista português. explicar a criação do mundo, também a te- do assunto. “Nenhuma pessoa religiosa usa ciência podem coexistir. Escolhido a 18
Uma teoria que, para Fiolhais, apesar de “ter oria da evolução, sobretudo marcada pelas argumentos de base religiosa em discus- de setembro de 2015 pelo papa Francisco
ainda muita coisa por explicar, não perde o ideias de Charles Darwin, “não precisou de sões sobre o entendimento científico atual como diretor do Observatório do Vatica-
estatuto de ser não só a nossa melhor teoria ter respondido a todo o tipo de questões relativamente ao que acontece quando um no, o jesuíta de 65 anos tem vindo a defen-
sobre a criação do mundo como até a única”. sobre o desenvolvimento da vida para se feto é abortado ou quando uma pessoa der que “o Vaticano apoia a astronomia
O mesmo pensa o jesuíta Guy Consol- afirmar não só como a melhor, mas também doente é morta”, defende Consolmagno, porque é uma parte importante de ser
magno, apesar de considerar que o facto como a única teoria sobre a história da vida”. argumentando que nestes casos “a ‘ciência’ humano”. Ao Observador, Consolmagno
de ter sido um padre a propor a teoria do Sobre a explicação presente no Génesis é óbvia”. Em vez disso, afirma o diretor do explica que, quando chegou ao Observa-
Big Bang não é suficiente para quebrar sobre a criação do mundo e dos seres hu- Observatório Astronómico do Vaticano, “o tório do Vaticano, lhe disseram apenas
o mito do afastamento radical entre fé e manos, o físico descreve-a como “um relato que uma pessoa religiosa faz é levantar que deveria fazer “boa ciência”. “Também
ciência. “As pessoas acreditam naquilo em poético, espiritual, que não pode, eviden- uma questão que a ciência não pode fazer: sei que uma parte essencial desta tarefa
que querem acreditar, mesmo na presença temente, ser levado à letra, ao contrário só porque é possível fazer uma coisa, isso é mostrar ao mundo a ciência que nós
de evidências que apontam exatamente do que os criacionistas dizem”. O jesuíta quer dizer que seja uma boa ideia fazê-lo?” fazemos”, destaca.
para o contrário”, diz o responsável pelo norte-americano concorda: “O Génesis Guy Consolmagno defende este papel da O contributo do Vaticano para o pro-
Observatório Astronómico do Vaticano. não é uma descrição científica da cosmo- religião – o de levantar as perguntas que gresso científico tem, inclusivamente, sido
Ainda assim, Consolmagno mantém-se logia. Como podia ser, se a ciência ainda a ciência não levanta – recordando que reconhecido pela própria comunidade
otimista: “Há muito menos cientistas que se não tinha sido inventada?” Consolmagno “a religião era a única parte da sociedade científica, destaca Consolmagno. “Os
consideram agnósticos ou ateus do que se deixa também uma crítica aos criacionis- contra a eutanásia há 100 anos, na altura nossos astrónomos são altamente pro-
possa pensar. Especialmente astrónomos e tas: “Qualquer pessoa que tente fazer uma em que todos os pensadores trendy do curados para colaborar com cientistas
físicos, que estão habituados a um Universo comparação direta entre as duas áreas não final do século XIX e do início do século em todo o mundo. Não só fazemos um
que é muito mais estranho e interessante do tem qualquer conhecimento sobre ciência XX pensavam que a eutanásia ia levar à bom trabalho, como o fazemos sem contar
que o antigo Universo mecânico do século ou sobre teologia.” perfeição da raça humana”. Mais: o astró- com as mesmas garantias e recursos que
XIX.” E a comunidade científica não tem Criticados até pelo próprio papa, os nomo do Vaticano acrescenta que naquela financiam os outros cientistas”, sublinha.
problemas em reconhecer o trabalho do criacionistas baseiam-se sobretudo numa altura “a ciência por trás da eutanásia era Carlos Fiolhais concorda. “Apesar de os
sacerdote, diz o jesuíta. “Nunca encontrei interpretação literal da Bíblia para negar uma ciência de lixo”, muito pouco evoluída discursos e os métodos serem diferentes,
relutância em reconhecer o trabalho de Le- hipóteses científicas como o Big Bang ou a e “mesmo que tivesse resultado da forma o diálogo, como aquele que o Vaticano
maître, tendo em conta, como é óbvio, que teoria da evolução das espécies. Para Carlos que as pessoas pensavam na altura, teria tem proporcionado através da Academia
o nosso conhecimento, que teve o seu início Fiolhais, as ideias criacionistas “não são sido completamente horrível e errado”. Pontifícia das Ciências e outros organis-
com o seu trabalho, já progrediu muito além ciência, porque os seus defensores aban- Carlos Fiolhais, que se assume como não- mos, não só é possível como muito útil”,
do que ele podia ter proposto há 90 anos.” donaram o método científico, embora se -crente, apesar da admiração que demons- e o papa Francisco tem tido um papel
procurem fazer passar por ciência”. Tanto tra pelos católicos e de citar sem problemas fundamental nele. “O seu papel de líder
Big Bang e teoria da Fiolhais como Consolmagno concordam os documentos da Igreja, prefere manter-se espiritual é importantíssimo, porque a
com a ideia de que as descrições bíblicas pelo que a ciência pode observar. “Eu vejo sua voz está num plano diferente da dos
evolução vs. Génesis: não devem ser interpretadas literalmente. as coisas do lado da ciência, mas tenho líderes políticos”, diz o físico.
como apareceu o “Desde o tempo de Galileu que a Bíblia não muito respeito pelo lado da religião, até Carlos Fiolhais e Guy Consolmagno
mundo? é considerada um livro de ciência”, diz o porque foi essa a tradição cultural e moral concordam num ponto fundamental:
GETTY IMAGES / BETTMANN
físico português. que recebi”, sublinha. Questões como o ciência e religião hão de fazer sempre parte
Deus disse “faça-se luz” e fez-se luz? Ou aborto e a eutanásia “são do foro da cons- da vida humana. “Não sendo um católico
uma grande libertação de energia deu ori- Deus existe mesmo? ciência de cada um”. praticante, tento aprender a dimensão
gem a todas as partículas que existem hoje espiritual dada pela Igreja”, afirma o físi-
no Universo? É provavelmente a questão “Os cientistas não têm ● Em 1933, Einstein e Lamaître encontraram-se na co português, que acredita que “há uma
mais comum quando fé e ciência aparecem como responder às A ciência no Vaticano espiritualidade inerente ao humano que
na mesma conversa, mas tanto a comunida- perguntas que não são Califórnia. Fé e ciência juntas, numa foto histórica. Discórdias à parte, a verdade é que a ciên- não tem necessariamente de ser enqua-
de científica como a Igreja reconhecem que cia ocupa uma boa parte do investimento, drada por esta ou aquela Igreja”. E recorda
as duas ideias não estão assim tão distantes. do seu domínio” Da mesma forma, continua Consolmag- “Não sabendo muito de teologia, julgo que forma de olhar para o Universo, nenhum “há uma corrente de cientistas ateus muito tanto financeiro, como humano, do Vati- o amigo improvável do padre Lemaître,
Guy Consolmagno simplifica a questão do A existência ou não de Deus é outro dos tó- no, “posso decidir de forma igualmente Santo Agostinho resumiu a questão da fé entendimento de Deus ou da natureza ruidosos, à cabeça dos quais talvez esteja cano, como reconhece Carlos Fiolhais. “O Albert Einstein. “Einstein falava de uma
ponto de vista religioso: “O Génesis diz- picos que, aparentemente, mais dividem os fácil que não quero acreditar em Deus ao dizer: ‘Se compreendeis, não é Deus.’ que seja perfeito ou definitivo”. Consol- o biólogo Richard Dawkins, que têm feito Observatório Astronómico do Vaticano, ‘religiosidade cósmica’. Há uma inquieta-
-nos quem é responsável por existir um crentes e os cientistas. Guy Consolmagno, e começar com a suposição de que não Deus está para lá da compreensão”, des- magno defende, por isso, que “nunca po- uma espécie de cruzada contra a religião, hoje com o irmão Guy Consolmagno à fren- ção nos seres humanos, que são pequenos
Universo. A ciência explica como é que Ele a quem o papa Francisco confiou a missão existe Deus. Nesse caso, a minha lógica irá taca o físico da Universidade de Coimbra. demos deixar de aprender nem deixar alicerçados na ciência”, mas considera que te, é muito antigo, é um dos mais antigos no imenso Universo, e que é uma marca
o criou. A resposta à primeira não muda, de promover a ciência no Vaticano, usa um numa direção diferente. Mas em nenhum Fiolhais vai mesmo mais longe, ao dizer de trabalhar e, sobretudo, não devemos eles não constituem uma maioria dentro do mundo”, sublinha. Fundado em 1572 maior do humano.”
é Deus. A resposta à segunda, dada pela princípio matemático para explicar que a dos casos eu estou a provar alguma coisa que “os cientistas não têm como responder pensar que já temos tudo esclarecido”. O da comunidade científica. “Algumas re- pelo papa Gregório XIII, que precisava Consolmagno vai mais longe: “Passamos
ciência, nunca para de mudar e de crescer.” existência de Deus nunca será cientifica- sobre Deus. Deus é o axioma, a premis- às perguntas que não são do seu domínio. melhor talvez seja, segundo Carlos Fio- ligiões têm extremistas e também na ci- de conhecimentos em astronomia para a nossa vida a viver com o Universo, cada
O próprio papa Francisco foi perentório mente comprovada, mas que é premissa sa com que eu começo e não algo que E há tantas.” Como por exemplo? “O que lhais, seguir os passos de Galileu. “Ele, ência há posições radicais de cientismo, criar um novo calendário (o calendário vez mais intimamente, tornando-nos cada
sobre o assunto, durante um encontro com inicial para a atividade humana. “Toda a vem no fim de alguma cadeia lógica.” O é o belo? O que é a felicidade? O que é que era crente em Deus – mesmo após que ignoram outras dimensões do homem gregoriano, que ainda hoje usamos), o Ob- vez mais habituados ao que lá existe.” E é
cientistas no Vaticano, em 2014. “Quando razão começa com uma suposição, isto é jesuíta faz ainda questão de sublinhar o amor?” Tentar não custa, e o cientista a condenação inquisitorial, que hoje é para lá da científica”, explica o físico. “Mas servatório Astronómico do Vaticano conta assim que um religioso acaba por fazer
lemos sobre a criação, no Génesis, corre- um teorema matemático conhecido como que é “suscetível ao erro” quando tenta garante que é possível “decompor estas reconhecida pela Igreja como errada –, essas posições estão hoje ultrapassadas. atualmente com o trabalho permanente de da ciência a sua vida: “Quero lembrar aos
mos o risco de imaginar Deus como um lei de Godel. Posso começar por assumir “esclarecer alguma coisa”. “É por isso perguntas em algumas outras, mais aces- dizia que se Deus tinha dado a razão aos A imensa maioria dos cientistas trabalha mais de uma dezena de astrónomos, além nossos amigos não-cientistas que vivemos
mágico, com uma varinha mágica, capaz de que existe um Deus, que é responsável pelo que testo sempre as minhas ideias com síveis, para as quais a ciência pode dar seres humanos era para eles a exercerem, lado a lado com pessoas de várias fés ou de inúmeras colaborações com instituições num universo maravilhoso e que podemos
fazer tudo. Mas não é bem assim”, disse na Universo, e depois interpretar tudo o que experiências científicas.” algum contributo”. em particular na compreensão do mundo. sem fé nenhuma, sem se preocupar com científicas. obter muita alegria de aprender mais e
altura o papa, acrescentando que “a teoria vejo e experimento à luz desta suposição. Carlos Fiolhais explica que “entre os A inquietação das perguntas por res- Uma coisa era a fé e a moral, outra era a diferenças religiosas. Este é, aliás, um dos O papa Francisco tem tido um papel mais sobre ele.”
do Big Bang, que hoje consideramos como Se eu o fizer, irei conseguir conhecer Deus objetivos da ciência não está a demonstra- ponder é partilhada pelo astrónomo jesu- mecânica celeste.” grandes méritos da ciência: a ciência une, determinante nesta crescente aproximação Tchim tchim.
explicação para a origem do mundo, não muito mais intimamente. Mas tenho de ção da existência ou da não-existência de íta norte-americano, para quem “o maior A posição partilhada por Consolmagno e uma vez que o método científico tem apli- entre os campos da ciência e da fé, afirma
contradiz a intervenção do criador divino, começar com esta suposição antes de agir”, Deus”, e recorre mais uma vez a referências desafio à aproximação entre ciência e fé é Fiolhais não é verdadeiramente consensual. cação universal e tem dado bons resultados Carlos Fiolhais. “A encíclica Laudato Si João Francisco Gomes é jornalista
mas, pelo contrário, requere-a.” explica o jesuíta norte-americano. religiosas para ilustrar o seu pensamento. lembrar-nos de que não existe nenhuma O físico português admite que atualmente por todo o lado.” [publicada pelo Papa em maio de 2015], do Observador, onde iniciou a sua carreira.
74 LISBOA EM AGOSTO 75
74 LISBOA EM AGOSTO 75
76 CRIANÇAS E MICRÓBIOS 77
“Deve
deixar
“Rodrigo, não mexas aí. É caca.” Que evidências existem dessa ligação quando chegam a casa de um passeio. Ou terra e com a erva. Ter um cão em casa,
“Miguel, deixa a mãe limpar as mãos.” entre os micróbios e a prevenção de ainda se tocarem em lixo ou em resíduos por exemplo, diminui em 20% casos de
“Maria, tira isso da boca.” Basta sair à rua doenças como a asma e a obesidade? de animais. Mas lavar com água e sabão e asma e outros problemas semelhantes. Já
para ouvir frases deste género, ao mesmo Há duas linhas a provar isso. Existem não com sabonetes antibacterianos. os gatos não trazem grandes mais-valias,
tempo que nas malas das mães se multipli- muitas provas que mostram que preci- porque vivem no seu mundo e não lambem
cam toalhitas com desinfetante e bisnagas samos da exposição a estes micróbios. Quer dizer que usar produtos antibac- as crianças. Mas é tudo uma questão de
a criança
com álcool em gel. Tudo para proteger ao Por exemplo, as crianças que vivem em terianos é mau? sensatez. Nós não dizemos no livro que
máximo as crianças dos perigos da sujidade quintas, as crianças que nascem por parto Sim, é mau. Estudos atrás de estudos têm devemos encher um balde de lixo para as
e dos micróbios. natural, ao invés de cesariana, e as crian- mostrado que usar produtos antibacteria- crianças levarem à boca assim que nascem.
É um erro. A obsessão pela limpeza e ças que têm cães estão menos expostas nos não faz mais efeito do que lavar com Mas os pais têm de perceber que tem de
pela higiene está a matar não só os micró- a estas doenças. E há muitos estudos já água e sabão. Outro problema de usar esses haver essa exposição aos micróbios. Outra
bios maus – que, no passado, provocavam feitos, com ratos, que mostram que existe produtos é que aumentamos as resistências boa ideia, embora aborrecida, é comer
infeções que levavam à morte –, mas tam- uma correlação entre os diferentes micró- das bactérias à sua utilização. Portanto, alimentos saudáveis. Quando comemos
tocar
bém os bons, que contribuem, entre outras bios e doenças como a asma, as alergias, usar água e sabão está ótimo, e apenas açúcar e farinha branca há uma transfor-
coisas, para o desenvolvimento do sistema a obesidade e a diabetes. Agora estamos antes das refeições e depois de uma ida à mação muito rápida no intestino delgado
imunitário das crianças. a tentar perceber como é que eles de- casa de banho, ou depois de estarem em e não desce para o intestino grosso que
Em entrevista ao Observador, um dos au- sempenham esse papel. Por exemplo, na contacto com alguém doente. É tudo o que é onde estão os micróbios. Daí dizermos
tores do livro Deixe-os Comer Terra (edição obesidade, os micróbios afetam a forma precisamos em termos de higiene pessoal. que se deve comer frutas, vegetais, frutos
Matéria-Prima), Brett Finlay – professor como a comida é metabolizada. secos, fibras.
de Microbiologia na Universidade British Também não é necessário esterilizar
Columbia, em Vancouver, no Canadá, e Vocês escrevem no livro que é melhor os biberões? O problema é convencer as crianças a
na terra,
que há 20 anos se debruça sobre o estudo deixar as crianças comerem terra e Não. A Academia Americana de Pediatria comerem comida saudável.
dos micróbios –, alerta para os riscos de sujarem-se. Mas não corremos o risco já mudou isso. Lavar na máquina da loiça É, mas no livro damos o exemplo do que
um mundo super-higienizado e onde se de dar um passo atrás no percurso e ou em água a ferver é suficiente. Usar uma a Claire fez com a filha. Um dia ela disse
abusa dos antibióticos, fala da importância fazer aumentar as infeções? escova de garrafas é o ideal. à filha que ela tinha um zoo na barriga,
dos micróbios e deixa sugestões aos pais. Comer terra hoje é mais seguro do que com muitos bichinhos, e convenceu-a que
no passado. Já não temos poliomielite. E as E a chupeta? O que devem os pais fazer os bichinhos cantavam e faziam festas e
hipóteses de contrair disenteria no jardim quando a chupeta cai ao chão? adoravam viver na barriga dela, mas que
na lama e
são muito baixas. O que os pais têm de Um estudo sueco recente sugere que a estavam sempre com fome e que ela tinha
perceber é que, tal como dizemos no livro, melhor maneira de limpar a chupeta que cai de os alimentar, caso contrário eles mor-
as crianças podem provavelmente lamber no chão é colocá-la primeiro na própria boca riam. Mas os bichinhos não gostavam de
o chão em casa, mas não é uma boa ideia e só depois dar à criança. Claro que se a mãe doces, nem gelados, nem hambúrgueres.
deixá-las lamber o chão do metro. Brincar ou o pai estiverem doentes isso não será boa Só gostavam de frutas e vegetais. E assim
numa caixa de areia provavelmente não ideia, mas em circunstâncias normais colocá- conseguiu pôr a filha a comer comida sau-
tem mal nenhum, mas se tiver fezes de gato -la na própria boca vai diminuir o risco de a dável. Não é fácil, mas consegue-se.
nos insetos”
– que contêm parasitas –, já não é boa ideia. criança vir a ter asma, alergias e obesidade
Se o seu filho tiver uma infeção bacteriana, durante a sua vida, porque partilham os A flora microbiana desenvolve-se nos
usar antibióticos vai salvar-lhe a vida, mas micróbios da boca com o progenitor e isso primeiros tempos de vida. Pode uma
No livro Deixe-os Comer Terra escre- se tiver uma infeção viral os antibióticos reforça o sistema imunitário das crianças. criança nascida através de cesariana
vem que vivemos num mundo demasia- não vão funcionar e até podem provocar desenvolver a sua flora microbiana, tal
do limpo e que isso pode ser perigoso. danos. Portanto, é preciso ter em conta que Mas o adulto não corre risco ao expor- como a criança que nasce por parto
Porquê? hoje o mundo não está nem perto de ser -se aos micróbios? natural?
Andámos séculos a tentar limpar todo tão perigoso como no passado no que diz Quando somos adultos temos mais de- O que os estudos nos dizem é que uma
o mundo e deixá-lo a salvo das infeções respeito às infeções. Mesmo quando o seu fesas, portanto não vamos ficar infetados. criança quando nasce de parto natural
provocadas por bactérias. E isso correu filho está a brincar num parque infantil não fica logo exposta aos micróbios vaginais e
Marlene Carriço
muito bem. Introduzimos o saneamento, a tem de estar sempre a limpar-lhe as mãos. Voltando às crianças. Quando falam fecais maternos. É o primeiro encontro do
recolha de lixo, a água potável, alimentos em deixar as crianças sujarem-se, não bebé com os micróbios. É uma verdadeira
seguros e antibióticos. Esta tem sido uma Mesmo que esse parque seja público? se estão a referir a todo o tipo de lixo, primeira prenda de aniversário. Os micró-
história de sucesso, porque diminuímos as Sim, a menos que haja crianças com ou estão? bios que o bebé recebe nesse momento são
taxas de infeções nas crianças. São boas gripe, a tossir ou a espirrar. Se não for Deixem-nas sujar-se um pouco, isso não do tipo de micróbios que ajudam a digerir
notícias. O que nós não percebemos foi assim, provavelmente, não tem mal ne- lhes vai fazer mal. Hoje em dia as crian- o leite materno. Daí que seja melhor para
que, à medida que fomos matando esses nhum. Estar em contacto com os micróbios ças passam sete horas por dia em frente a os bebés nascerem de parto natural do que
germes, os micróbios maus, também fo- das outras crianças até vai ser bom. Deve ecrãs e reduziram em metade o tempo que por cesariana. Os bebés que nascem por
mos destruindo outros que, entretanto, deixar-se a criança tocar na terra, na lama, passavam na rua. Já não há exposição aos cesariana têm uma maior taxa de asma e
percebemos que são bons. Agora per- nas árvores e nos insetos. E mesmo que se micróbios e isso é preocupante. obesidade só porque não contactam com
cebemos que fomos longe demais e que suje, não deve apressar-se a limpá-la. Nor- esses micróbios. Por isso, se uma mulher
já não temos os micróbios com os quais malmente, quando uma coisa está suja, a Vocês falam muito do campo no livro, tiver de fazer uma cesariana por razões
costumávamos contactar logo cedo na tendência é dizermos “blherc”. Mas porque mas grande parte das famílias mora médicas, sejam elas quais forem, há uma
nossa vida, e que contribuem para o pensamos assim? Porque a maioria das nas cidades. Aí é preciso ter cuidados técnica que já começa a ser usada em vários
normal desenvolvimento humano. E nós pessoas pensa nos micróbios como algo redobrados, certo? Esta teoria de dei- hospitais em todo o mundo e que consiste
precisamos desses micróbios a viver neste mau e essa visão devia mudar porque nem xar as crianças sujarem-se aplica-se a em esfregar as secreções vaginais da mãe
mundo. Descobrimos isso há cinco anos, todos os micróbios são maus. quem vive nas cidades? na criança mal ela nasce.
quando começámos a estudar as ligações Sim, claro. Um parque infantil públi-
entre os micróbios e aquilo que chamamos Então quando se deve lavar as mãos? co é, à partida, um bom lugar para levar Marlene Carriço é jornalista do
de doenças da sociedade ocidental, como Aconselhamos a lavar as mãos antes de as crianças a passear e deve-se deixá-las Observador, onde boa parte do seu tempo
a asma, as alergias e a obesidade. as crianças irem comer, por exemplo, ou estar com os amigos e fazer bolos com a escreve sobre Saúde e Educação.
76 CRIANÇAS E MICRÓBIOS 77
“Deve
deixar
“Rodrigo, não mexas aí. É caca.” Que evidências existem dessa ligação quando chegam a casa de um passeio. Ou terra e com a erva. Ter um cão em casa,
“Miguel, deixa a mãe limpar as mãos.” entre os micróbios e a prevenção de ainda se tocarem em lixo ou em resíduos por exemplo, diminui em 20% casos de
“Maria, tira isso da boca.” Basta sair à rua doenças como a asma e a obesidade? de animais. Mas lavar com água e sabão e asma e outros problemas semelhantes. Já
para ouvir frases deste género, ao mesmo Há duas linhas a provar isso. Existem não com sabonetes antibacterianos. os gatos não trazem grandes mais-valias,
tempo que nas malas das mães se multipli- muitas provas que mostram que preci- porque vivem no seu mundo e não lambem
cam toalhitas com desinfetante e bisnagas samos da exposição a estes micróbios. Quer dizer que usar produtos antibac- as crianças. Mas é tudo uma questão de
a criança
com álcool em gel. Tudo para proteger ao Por exemplo, as crianças que vivem em terianos é mau? sensatez. Nós não dizemos no livro que
máximo as crianças dos perigos da sujidade quintas, as crianças que nascem por parto Sim, é mau. Estudos atrás de estudos têm devemos encher um balde de lixo para as
e dos micróbios. natural, ao invés de cesariana, e as crian- mostrado que usar produtos antibacteria- crianças levarem à boca assim que nascem.
É um erro. A obsessão pela limpeza e ças que têm cães estão menos expostas nos não faz mais efeito do que lavar com Mas os pais têm de perceber que tem de
pela higiene está a matar não só os micró- a estas doenças. E há muitos estudos já água e sabão. Outro problema de usar esses haver essa exposição aos micróbios. Outra
bios maus – que, no passado, provocavam feitos, com ratos, que mostram que existe produtos é que aumentamos as resistências boa ideia, embora aborrecida, é comer
infeções que levavam à morte –, mas tam- uma correlação entre os diferentes micró- das bactérias à sua utilização. Portanto, alimentos saudáveis. Quando comemos
tocar
bém os bons, que contribuem, entre outras bios e doenças como a asma, as alergias, usar água e sabão está ótimo, e apenas açúcar e farinha branca há uma transfor-
coisas, para o desenvolvimento do sistema a obesidade e a diabetes. Agora estamos antes das refeições e depois de uma ida à mação muito rápida no intestino delgado
imunitário das crianças. a tentar perceber como é que eles de- casa de banho, ou depois de estarem em e não desce para o intestino grosso que
Em entrevista ao Observador, um dos au- sempenham esse papel. Por exemplo, na contacto com alguém doente. É tudo o que é onde estão os micróbios. Daí dizermos
tores do livro Deixe-os Comer Terra (edição obesidade, os micróbios afetam a forma precisamos em termos de higiene pessoal. que se deve comer frutas, vegetais, frutos
Matéria-Prima), Brett Finlay – professor como a comida é metabolizada. secos, fibras.
de Microbiologia na Universidade British Também não é necessário esterilizar
Columbia, em Vancouver, no Canadá, e Vocês escrevem no livro que é melhor os biberões? O problema é convencer as crianças a
na terra,
que há 20 anos se debruça sobre o estudo deixar as crianças comerem terra e Não. A Academia Americana de Pediatria comerem comida saudável.
dos micróbios –, alerta para os riscos de sujarem-se. Mas não corremos o risco já mudou isso. Lavar na máquina da loiça É, mas no livro damos o exemplo do que
um mundo super-higienizado e onde se de dar um passo atrás no percurso e ou em água a ferver é suficiente. Usar uma a Claire fez com a filha. Um dia ela disse
abusa dos antibióticos, fala da importância fazer aumentar as infeções? escova de garrafas é o ideal. à filha que ela tinha um zoo na barriga,
dos micróbios e deixa sugestões aos pais. Comer terra hoje é mais seguro do que com muitos bichinhos, e convenceu-a que
no passado. Já não temos poliomielite. E as E a chupeta? O que devem os pais fazer os bichinhos cantavam e faziam festas e
hipóteses de contrair disenteria no jardim quando a chupeta cai ao chão? adoravam viver na barriga dela, mas que
na lama e
são muito baixas. O que os pais têm de Um estudo sueco recente sugere que a estavam sempre com fome e que ela tinha
perceber é que, tal como dizemos no livro, melhor maneira de limpar a chupeta que cai de os alimentar, caso contrário eles mor-
as crianças podem provavelmente lamber no chão é colocá-la primeiro na própria boca riam. Mas os bichinhos não gostavam de
o chão em casa, mas não é uma boa ideia e só depois dar à criança. Claro que se a mãe doces, nem gelados, nem hambúrgueres.
deixá-las lamber o chão do metro. Brincar ou o pai estiverem doentes isso não será boa Só gostavam de frutas e vegetais. E assim
numa caixa de areia provavelmente não ideia, mas em circunstâncias normais colocá- conseguiu pôr a filha a comer comida sau-
tem mal nenhum, mas se tiver fezes de gato -la na própria boca vai diminuir o risco de a dável. Não é fácil, mas consegue-se.
nos insetos”
– que contêm parasitas –, já não é boa ideia. criança vir a ter asma, alergias e obesidade
Se o seu filho tiver uma infeção bacteriana, durante a sua vida, porque partilham os A flora microbiana desenvolve-se nos
usar antibióticos vai salvar-lhe a vida, mas micróbios da boca com o progenitor e isso primeiros tempos de vida. Pode uma
No livro Deixe-os Comer Terra escre- se tiver uma infeção viral os antibióticos reforça o sistema imunitário das crianças. criança nascida através de cesariana
vem que vivemos num mundo demasia- não vão funcionar e até podem provocar desenvolver a sua flora microbiana, tal
do limpo e que isso pode ser perigoso. danos. Portanto, é preciso ter em conta que Mas o adulto não corre risco ao expor- como a criança que nasce por parto
Porquê? hoje o mundo não está nem perto de ser -se aos micróbios? natural?
Andámos séculos a tentar limpar todo tão perigoso como no passado no que diz Quando somos adultos temos mais de- O que os estudos nos dizem é que uma
o mundo e deixá-lo a salvo das infeções respeito às infeções. Mesmo quando o seu fesas, portanto não vamos ficar infetados. criança quando nasce de parto natural
provocadas por bactérias. E isso correu filho está a brincar num parque infantil não fica logo exposta aos micróbios vaginais e
Marlene Carriço
muito bem. Introduzimos o saneamento, a tem de estar sempre a limpar-lhe as mãos. Voltando às crianças. Quando falam fecais maternos. É o primeiro encontro do
recolha de lixo, a água potável, alimentos em deixar as crianças sujarem-se, não bebé com os micróbios. É uma verdadeira
seguros e antibióticos. Esta tem sido uma Mesmo que esse parque seja público? se estão a referir a todo o tipo de lixo, primeira prenda de aniversário. Os micró-
história de sucesso, porque diminuímos as Sim, a menos que haja crianças com ou estão? bios que o bebé recebe nesse momento são
taxas de infeções nas crianças. São boas gripe, a tossir ou a espirrar. Se não for Deixem-nas sujar-se um pouco, isso não do tipo de micróbios que ajudam a digerir
notícias. O que nós não percebemos foi assim, provavelmente, não tem mal ne- lhes vai fazer mal. Hoje em dia as crian- o leite materno. Daí que seja melhor para
que, à medida que fomos matando esses nhum. Estar em contacto com os micróbios ças passam sete horas por dia em frente a os bebés nascerem de parto natural do que
germes, os micróbios maus, também fo- das outras crianças até vai ser bom. Deve ecrãs e reduziram em metade o tempo que por cesariana. Os bebés que nascem por
mos destruindo outros que, entretanto, deixar-se a criança tocar na terra, na lama, passavam na rua. Já não há exposição aos cesariana têm uma maior taxa de asma e
percebemos que são bons. Agora per- nas árvores e nos insetos. E mesmo que se micróbios e isso é preocupante. obesidade só porque não contactam com
cebemos que fomos longe demais e que suje, não deve apressar-se a limpá-la. Nor- esses micróbios. Por isso, se uma mulher
já não temos os micróbios com os quais malmente, quando uma coisa está suja, a Vocês falam muito do campo no livro, tiver de fazer uma cesariana por razões
costumávamos contactar logo cedo na tendência é dizermos “blherc”. Mas porque mas grande parte das famílias mora médicas, sejam elas quais forem, há uma
nossa vida, e que contribuem para o pensamos assim? Porque a maioria das nas cidades. Aí é preciso ter cuidados técnica que já começa a ser usada em vários
normal desenvolvimento humano. E nós pessoas pensa nos micróbios como algo redobrados, certo? Esta teoria de dei- hospitais em todo o mundo e que consiste
precisamos desses micróbios a viver neste mau e essa visão devia mudar porque nem xar as crianças sujarem-se aplica-se a em esfregar as secreções vaginais da mãe
mundo. Descobrimos isso há cinco anos, todos os micróbios são maus. quem vive nas cidades? na criança mal ela nasce.
quando começámos a estudar as ligações Sim, claro. Um parque infantil públi-
entre os micróbios e aquilo que chamamos Então quando se deve lavar as mãos? co é, à partida, um bom lugar para levar Marlene Carriço é jornalista do
de doenças da sociedade ocidental, como Aconselhamos a lavar as mãos antes de as crianças a passear e deve-se deixá-las Observador, onde boa parte do seu tempo
a asma, as alergias e a obesidade. as crianças irem comer, por exemplo, ou estar com os amigos e fazer bolos com a escreve sobre Saúde e Educação.
78 CEGUEIRA E PRISÃO 79
gosta de ver-me com isto.” Sem ele, sente-se carrinhas não têm condições para isso”,
sempre numa sala às escuras. conta. A própria Direção Geral de Rein-
Ajudamo-lo a sentar-se e explicamos serção e Serviços Prisionais desconhece
porque estamos ali. Como é cumprir uma quantos reclusos nas cadeias portuguesas
pena de prisão completamente às escu- sofrem de mobilidade reduzida e preci-
ras? Sem ver? As respostas começam por sam de condições especiais. “Esta Direção
sair amiúde. Palavras meio gagas. Até que Geral está, neste momento, a proceder
os nervos o libertam aos poucos. Recua ao levantamento do número de reclusos
ao ano do acidente, o de 2009. Estava na com necessidades especiais, sendo que,
zona de Aveiro, para onde foi viver de- nos casos existentes, cada estabelecimento
pois de uma infância passada em Coim- prisional procura encontrar as respostas
bra, quando foi apanhado no meio de uma adequadas às circunstâncias e às especi-
rixa entre ciganos. Alguém abriu fogo com ficidades das pessoas”, responderam os
uma caçadeira e os estilhaços do chumbo serviços ao Observador.
atingiram-no na cara e na vista. Chegou Afonso sabe que pode correr riscos na
a ser operado mais do que uma vez, mas prisão por não ver. E que não passa 24
a visão do lado esquerdo perdeu-se para horas ao lado do pai para garantir que
sempre, enquanto a do lado direito ficou este veja por si e que o salvaguarde de
com 10% de capacidade. “Conseguia ver tudo. Mas à medida que se adapta à vida
um pouco”, diz. O suficiente para manter sem visão, vai também apurando outros
alguma independência. sentidos. Ouve melhor, por exemplo. E
Afonso diz que naquele ano tinha sido pai isso transtorna-o. Afonso não consegue
de uma menina, que fará agora sete anos. descrever o espaço em que se encontra,
Ainda guardou a imagem da última vez que se é grande ou pequeno, em que direção
lhe viu a face, tinha ela meses. Mas até essa é a sua cela ou a escola. Mas consegue des-
memória se perdeu. Fugiu com a visão. O crever a cadeia como um local com muito
rapaz nasceu pouco mais de um ano depois. “barulho”.
Já não lhe viu a cara. Hoje conhece-lhes A prisão tem capacidade para cerca de
apenas a voz, porque insiste em falar com 500 reclusos. As paredes altas e os corre-
eles frequentemente por telefone. Naquele dores profundos alimentam os ecos. E isso
ano, o do acidente, Afonso decidiu mudar- perturba. “Fico completamente descon-
-se com a família para Coimbra para “estar trolado”, conta. Por isso pediu para não
mais perto dos médicos”. Chegou a ter con- almoçar no refeitório nem estar presente
sultas semanais, na tentativa de recuperar entre grandes grupos. É o pai quem lhe
a visão. Até que, em 2011, foi apanhado pela traz o almoço todos os dias para a cela.
polícia num processo por tráfico de droga. A rotina é sempre a mesma. Além dos
E acabou preso. “Foi a 18 de maio”, recorda períodos de aulas e de limpeza, Afonso diz
Afonso, que não deixou escapar as datas que é livre para ir até ao terraço o tempo
da memória. que quiser. Naquela manhã, apenas três
Os registos criminais consultados pelo reclusos circulavam à volta do grande pátio
das grades
na prisão – Afonso perdeu a visão durante 13 e as 14 horas e entre as 19h00 e as 8h00.
um acidente de viação ocorrido em 2009. Nesse período as celas são trancadas. “À
Dois anos depois seria detido por tráfico de noite oiço a televisão para me distrair. Gosto
droga e posse de arma proibida e, como já da telenovela. Só me deito pelas onze.” Vive
tinha antecedentes criminais, acabou em ● Afonso Monteiro pediu para ser transferido para assim, cada dia, sem nunca esperar pelo
prisão preventiva à espera de julgamento. fim de semana, porque não tem visitas. “A
O juiz julgou-o dois anos depois e não foi Vale de Judeus, onde o pai também cumpre uma pena minha família vem às vezes, de dois em dois
condescendente com a sua incapacida-
de física. “Não quis saber de eu ser cego,
por tráfico de droga e o poderia ajudar no dia-a-dia. meses, porque está longe. A minha mãe está
presa em Tires, a minha mulher fugiu... Era
de droga, posse de
daquele momento, todos os dias, Afonso Serviços Prisionais concedeu não permite uma coisa nas mãos “para entregar a uma sem chuveiro. A direção da prisão abriu Guarda Prisional explica que estes casos a alimentar a esperança de que um dia
aprendeu a ser cego na prisão. que ele escute ou sequer participe na con- pessoa”. “Não sabia que era droga. Eram uma exceção e colocou na cela do pai de são raros. Por uma questão de seguran- aquele olho lhe vá permitir voltar a ver.
São quase 11h00. Foi preciso passar por versa. “Porta-te bem”, diz-lhe o pai, antes umas gramas”, admite. E só percebeu que Afonso outra cama – permitindo a trans- ça, um recluso com mobilidade reduzida Até lá, conta o tempo que lhe falta da pena.
de um cego na prisão
de Judeus recebem por uma hora amigos assim sente-se intimidado. Os seus passos Afonso foi detido em 2011 e só foi trans- todos os dias pai e filho tomam o pequeno- Bispo, que necessitava de se deslocar ao -se bem ele?”, pergunta o pai. E abando-
e familiares. As paredes são brancas, com são ainda curtos e inseguros. Quando está ferido da cadeia de preventivos, em Aveiro, -almoço. “O meu pai prepara café”, conta exterior de cadeira de rodas. “Foi preciso nam os dois a sala de visitas.
uma fina risca vermelha, e estão despidas. sem o pai, sente que não tem chão e nem para a cadeia de Paços de Ferreira quando Afonso. Depois de tratar da sua higiene contratar uma auxiliar para acompanhá-la.
gosta de ver-me com isto.” Sem ele, sente-se carrinhas não têm condições para isso”,
sempre numa sala às escuras. conta. A própria Direção Geral de Rein-
Ajudamo-lo a sentar-se e explicamos serção e Serviços Prisionais desconhece
porque estamos ali. Como é cumprir uma quantos reclusos nas cadeias portuguesas
pena de prisão completamente às escu- sofrem de mobilidade reduzida e preci-
ras? Sem ver? As respostas começam por sam de condições especiais. “Esta Direção
sair amiúde. Palavras meio gagas. Até que Geral está, neste momento, a proceder
os nervos o libertam aos poucos. Recua ao levantamento do número de reclusos
ao ano do acidente, o de 2009. Estava na com necessidades especiais, sendo que,
zona de Aveiro, para onde foi viver de- nos casos existentes, cada estabelecimento
pois de uma infância passada em Coim- prisional procura encontrar as respostas
bra, quando foi apanhado no meio de uma adequadas às circunstâncias e às especi-
rixa entre ciganos. Alguém abriu fogo com ficidades das pessoas”, responderam os
uma caçadeira e os estilhaços do chumbo serviços ao Observador.
atingiram-no na cara e na vista. Chegou Afonso sabe que pode correr riscos na
a ser operado mais do que uma vez, mas prisão por não ver. E que não passa 24
a visão do lado esquerdo perdeu-se para horas ao lado do pai para garantir que
sempre, enquanto a do lado direito ficou este veja por si e que o salvaguarde de
com 10% de capacidade. “Conseguia ver tudo. Mas à medida que se adapta à vida
um pouco”, diz. O suficiente para manter sem visão, vai também apurando outros
alguma independência. sentidos. Ouve melhor, por exemplo. E
Afonso diz que naquele ano tinha sido pai isso transtorna-o. Afonso não consegue
de uma menina, que fará agora sete anos. descrever o espaço em que se encontra,
Ainda guardou a imagem da última vez que se é grande ou pequeno, em que direção
lhe viu a face, tinha ela meses. Mas até essa é a sua cela ou a escola. Mas consegue des-
memória se perdeu. Fugiu com a visão. O crever a cadeia como um local com muito
rapaz nasceu pouco mais de um ano depois. “barulho”.
Já não lhe viu a cara. Hoje conhece-lhes A prisão tem capacidade para cerca de
apenas a voz, porque insiste em falar com 500 reclusos. As paredes altas e os corre-
eles frequentemente por telefone. Naquele dores profundos alimentam os ecos. E isso
ano, o do acidente, Afonso decidiu mudar- perturba. “Fico completamente descon-
-se com a família para Coimbra para “estar trolado”, conta. Por isso pediu para não
mais perto dos médicos”. Chegou a ter con- almoçar no refeitório nem estar presente
sultas semanais, na tentativa de recuperar entre grandes grupos. É o pai quem lhe
a visão. Até que, em 2011, foi apanhado pela traz o almoço todos os dias para a cela.
polícia num processo por tráfico de droga. A rotina é sempre a mesma. Além dos
E acabou preso. “Foi a 18 de maio”, recorda períodos de aulas e de limpeza, Afonso diz
Afonso, que não deixou escapar as datas que é livre para ir até ao terraço o tempo
da memória. que quiser. Naquela manhã, apenas três
Os registos criminais consultados pelo reclusos circulavam à volta do grande pátio
das grades
na prisão – Afonso perdeu a visão durante 13 e as 14 horas e entre as 19h00 e as 8h00.
um acidente de viação ocorrido em 2009. Nesse período as celas são trancadas. “À
Dois anos depois seria detido por tráfico de noite oiço a televisão para me distrair. Gosto
droga e posse de arma proibida e, como já da telenovela. Só me deito pelas onze.” Vive
tinha antecedentes criminais, acabou em ● Afonso Monteiro pediu para ser transferido para assim, cada dia, sem nunca esperar pelo
prisão preventiva à espera de julgamento. fim de semana, porque não tem visitas. “A
O juiz julgou-o dois anos depois e não foi Vale de Judeus, onde o pai também cumpre uma pena minha família vem às vezes, de dois em dois
condescendente com a sua incapacida-
de física. “Não quis saber de eu ser cego,
por tráfico de droga e o poderia ajudar no dia-a-dia. meses, porque está longe. A minha mãe está
presa em Tires, a minha mulher fugiu... Era
de droga, posse de
daquele momento, todos os dias, Afonso Serviços Prisionais concedeu não permite uma coisa nas mãos “para entregar a uma sem chuveiro. A direção da prisão abriu Guarda Prisional explica que estes casos a alimentar a esperança de que um dia
aprendeu a ser cego na prisão. que ele escute ou sequer participe na con- pessoa”. “Não sabia que era droga. Eram uma exceção e colocou na cela do pai de são raros. Por uma questão de seguran- aquele olho lhe vá permitir voltar a ver.
São quase 11h00. Foi preciso passar por versa. “Porta-te bem”, diz-lhe o pai, antes umas gramas”, admite. E só percebeu que Afonso outra cama – permitindo a trans- ça, um recluso com mobilidade reduzida Até lá, conta o tempo que lhe falta da pena.
de um cego na prisão
de Judeus recebem por uma hora amigos assim sente-se intimidado. Os seus passos Afonso foi detido em 2011 e só foi trans- todos os dias pai e filho tomam o pequeno- Bispo, que necessitava de se deslocar ao -se bem ele?”, pergunta o pai. E abando-
e familiares. As paredes são brancas, com são ainda curtos e inseguros. Quando está ferido da cadeia de preventivos, em Aveiro, -almoço. “O meu pai prepara café”, conta exterior de cadeira de rodas. “Foi preciso nam os dois a sala de visitas.
uma fina risca vermelha, e estão despidas. sem o pai, sente que não tem chão e nem para a cadeia de Paços de Ferreira quando Afonso. Depois de tratar da sua higiene contratar uma auxiliar para acompanhá-la.
A fuga
que parou
o país
A fuga
que parou
o país
A fuga
Por volta das quatro e meia da tarde de
28 de Julho, Germano Ramiro Raposinho,
de 32 anos e a cumprir uma pena de 25
por homicídio, dirigiu-se ao edifício da
portaria para entregar toalhas lavadas para
a casa de banho. Apesar da reconhecida
perigosidade, Raposinho, um algarvio filho
de negociantes de peixe, trabalhava na la-
GLOBAL IMAGENS / ANTÓNIO AGUIAR
A fuga
Por volta das quatro e meia da tarde de
28 de Julho, Germano Ramiro Raposinho,
de 32 anos e a cumprir uma pena de 25
por homicídio, dirigiu-se ao edifício da
portaria para entregar toalhas lavadas para
a casa de banho. Apesar da reconhecida
perigosidade, Raposinho, um algarvio filho
de negociantes de peixe, trabalhava na la-
GLOBAL IMAGENS / ANTÓNIO AGUIAR
reclusos eram avisados sobre aquilo que tedor para as autoridades. Aquele lugar posinho contou tudo à revista do Expresso
os esperava: “Isto aqui é uma cadeia para ficava a três quilómetros da casa de Faustino de 15 de Agosto: “Não resisti à selvajaria de-
endireitar toda a gente. Se algum de vocês Cavaco. No interior do carro havia manchas les, sabe? Fizeram-nos a vida negra, reben-
está com más ideias, aqui usa-se a lei do de sangue, o que levou a polícia a concluir taram com a casa da minha mãe, puseram
mais forte. Portanto, se algum tiver ma- que um deles estaria ferido embora não polícias lá dentro dia e noite, sem respeito
nias e se armar em esperto ou engraçado precisasse de tratamento médico urgente. por nada nem ninguém, ameaçaram-nos de
sofrerá as consequências. Aqui é à base da Levantava-se também a hipótese de esses toda a maneira. E eu não aguentei e acabei
pancada, não se brinca, tudo quanto se ferimentos terem sido causados por um por confessar onde é que eles estavam.”
faz é a sério. E mais, aqui também não há desentendimento entre os fugitivos, o que E acrescentava: “É preciso dar a conhecer
homens fortes. Se algum de vocês veio com acabou por não se confirmar. o que é esta polícia e os atropelos que faz a
essa ideia aconselho a deixarem os tomates Pouco depois, perto de Almancil, as au- torto e a direito só para dar a entender que
lá fora. Se não o fizerem, irão saber o que toridades encontraram o segundo carro sabe tudo, que tem tudo controlado, que
é o regime de Pinheiro da Cruz.” usado na fuga, o Ford Escort da família que é a maior! E é mentira! Só à nossa custa é
Mesmo que não fosse possível confirmar ia de férias para o Algarve. Na bagageira que conseguiram apanhá-los!” Para Maria
estas afirmações, era assim que os presidiá- estava uma caçadeira e carregadores, além Helena, a prova mais cabal da desorien-
rios viam aquela cadeia. Com a fuga de seis de comida e roupas dos legítimos donos tação das autoridades era o facto de não
reclusos, surgiam algumas questões: como do carro, mas de que os seis se tinham ser- fazerem a mínima ideia do paradeiro dos
é que num regime tão severo Germano vido. Apesar de todo o aparato policial, Cavacos. A polícia negou todas as acusações
Raposinho andava à vontade? Mais grave das barreiras levantadas nas estradas e de de brutalidade, mas não podia esconder as
ainda era a questão da arma utilizada para um helicóptero a participar nas buscas, os dificuldades para capturar Faustino e Vítor.
dar início à fuga: como é que a arma tinha evadidos conseguiram sacar outro carro,
sido introduzida numa prisão de segurança desta vez um Mitsubishi Colt de matrícula
máxima, indo parar às mãos de condenados luxemburguesa, que seria encontrado no
Os Cavacos invisíveis
altamente perigosos? dia seguinte, 31 de Julho, perto do campo de Com a captura de quatro dos seis fugitivos,
Enquanto os serviços prisionais denun- golfe de Vilamoura. No interior da viatura, outros pormenores sobre a fuga começa-
ciavam as más condições e a sobrelotação um bilhete de agradecimento destinado ao vam a emergir. Os serviços prisionais des-
das cadeias, o ministro da Justiça, Mário proprietário. mentiam inequivocamente o envolvimento
Raposo, não tinha dúvidas de que a fuga se As manchetes do Diário de Notícias dos de qualquer funcionário na preparação da
devera a “um conjunto de falhas humanas”. dias 1 e 2 de Agosto revelavam a montanha- fuga. Raposinho tinha afinal usado uma
Essa constatação não o impediu de anun- -russa em que se tornara a perseguição. Dia pistola de madeira pintada com graxa e
ciar, no dia seguinte à fuga, a contratação 1: “Apertado cerco no Algarve para detec- feita na oficina de carpintaria da prisão.
de trezentos novos guardas prisionais e a tar os bandidos.” Dia 2: “Caça ao homem O autor dos disparos mortais tinha sido
construção de três novas cadeias, uma das esmorece sem resultados.” Um agente da mesmo Faustino Cavaco, usando para tal
quais de segurança máxima em Lisboa (a Judiciária confessava ao Expresso: “Isto uma arma que em tempos enterrara num
de Monsanto). Sem resultados concretos no é inglório. Não só eles conhecem a zona terreno perto da sua casa.
que dizia respeito à captura dos evadidos melhor do que as palmas das mãos como Dias depois, soube-se que tinha sido a
era preciso fazer alguma coisa. se aproveitam de muitas fraquezas nossas. mulher de Faustino a desenterrar a arma e
A batata não estava quente, estava em Estão é a dar-me um grande baile.” a entregá-la a uma irmã de Raposinho e à
chamas. Um informador da prisão dizia ao Para confundir ainda mais as autorida- mulher de Vítor Cavaco, que posteriormen-
DN que o aparecimento da arma nas mãos des, multiplicavam-se as falsas pistas e os te tinham introduzido a pistola na prisão
do Raposinho era “muito estranho” – “Há avistamentos um pouco por todo o país. através de outro recluso. Na mesma altu-
um traidor no meio disto. Nós gostaríamos Uma das denúncias era a de que um dos ra, por coincidência, o Correio da Manhã
de saber quem é.” Nessa altura, a imprensa fugitivos andaria a passear com o filho às publicava uma carta deixada por Augusto
divulgou o primeiro suspeito de auxiliar os cavalitas numa vila perto de Faro. Afinal, Ramalho, que se suicidara durante o cerco
reclusos. Teria sido um educador da cadeia era o irmão de um deles. Numa discoteca em Quarteira. A carta era quase um mani-
a levar a arma para o interior a troco de perto de Ourique teriam sido vistos cinco festo sociológico: “É absolutamente verdade
duzentos contos pagos por Germano Rapo- dos seis fugitivos. Três homens que tinham que não somos nenhuns meninos do coro,
sinho. As funções de um educador passavam jantado num restaurante em Lagos sem pa- mas também lhes afirmo que não somos os
por acompanhar os reclusos, organizar os gar a conta também tinham sido apontados terríveis criminosos de que todos falam.”
tempos livres e emitir pareceres sobre o como fazendo parte do bando de fugitivos. Num registo filosófico e humanista,
comportamento e liberdade condicional. Em Lagos, a empregada de uma sapataria culpava o sistema por aquilo em que se
Dizia-se também que o educador em causa entrou em pânico pensando que um homem tinham tornado: “Foram as cadeias que
não teria o cadastro limpo e que teria sido que pedira para experimentar uns sapa- destruíram o que de bom nós tínhamos,
mesmo acusado de violação da filha de um tos tamanho 42 era Germano Raposinho. que nos transformaram naquilo que pre-
colega. As autoridades não confirmavam A polícia encontrou o indivíduo à noite, LUSA / ANTÓNIO COTRIM
sentemente somos.” Acrescentava que a
nenhuma das informações, mas os efeitos acompanhado de outro. Não resistiram às “sangrenta evasão de Pinheiro da Cruz
para a imagem da cadeia e da respectiva autoridades e depois descobriu-se que se uns perdidos. Tudo bem-disposto! Ainda terça-feira, dia 5 de Agosto, foi montado foi um reflexo do desespero, da raiva e
direcção eram claramente negativos. tratava de dois pregadores do evangelho por cima havia montes de carne assada e um cerco ao anexo na Rua da Cabine, num ● Já depois da captura, os Cavacos continuaram a ser figuras mediáticas. Esta é da revolta de homens maltratados, que
que aparentemente sofriam de perturba- roupa com fartura nos carros que tínhamos lugar a que curiosamente chamavam “zona não pretendiam mais do que a almejada
A perseguição ções mentais. roubado aos espanhóis e a uns portugueses. dos cavacos”, porque havia ali muita lenha. uma foto do julgamento, tirada a 2 de Novembro de 1988, no Tribunal de Grândola. e sagrada liberdade”. Mais importante,
Fartámo-nos de rir com aquilo.” A polícia tentou negociar com os homens, de um ponto de vista da investigação, era
A 30 de Julho, sob um clima de grande Regressou no sábado, 2 de agosto. Tinha desconhecendo ainda quantos estavam Cruz desde 1974, foi demitido e enviado Reboleira, também chegava ao fim a fuga Raposinho, que estava no apartamento, a a confirmação definitiva de que os guar-
comoção, revolta e medo dos populares,
A primeira captura planos de fugir para o Brasil e contou à barricados. Ramalho e Gaspar, os únicos para Lisboa por “conveniência de serviço” de Germano Raposinho e Carlos da Mal- entregar-se. Nenhum dos dois ofereceu re- das tinham sido baleados pela pistola de
foram a enterrar os três guardas prisio- A polícia acreditava que, naquela altura, irmã que os Cavacos se tinham separado do ocupantes do anexo, decidiram responder devido a “declarações e actuações desfa- veira. Ao contrário do que as autoridades sistência. O repórter do vespertino contava Faustino Cavaco. A imprensa dizia que a
nais abatidos, dois em Grândola e um em os seis homens já se tivessem separado. grupo: “Os sacanas saíram os dois, numa a tiros de metralhadora. “Parecia o far- sadas da realidade”. O ministro da Justiça tinham divulgado, os dois tinham mesmo que a pacatez suburbana da Reboleira tinha arma, uma Walter de calibre 7.65, teria
Melides. Luís Emílio Ambrósio, Manuel Juntos, eram um alvo mais fácil, embora motorizada, para irem buscar documentos -west”, disseram as testemunhas. A troca era claro: “Os evadidos da Colónia Penal de conseguido entrar em Lisboa e sempre com sido alterada pela chegada de inúmeros pertencido a Manuel Laginha, o agente
Pereira Matias Espada e Arlindo Pereira ainda esquivo. Já tinham cometido vários e papéis para a gente todos e deram mas foi de tiros com a polícia terá durado cerca Pinheiro da Cruz gozavam de uma situação o mesmo carro, o Toyota Corolla, ao qual carros da polícia, incluindo os “supermira- da PSP e comparsa do bando de Faustino
dos Santos deixavam viúvas e dois filhos erros, mas com sorte e alguma inépcia das à sola, nunca mais lhes pusemos os olhos de 45 minutos, ao fim dos quais Gaspar prisional profundamente anormal, que tem só tinham mudado a matrícula. Diriam mais fiori” da PJ: “Por um dia, a Reboleira saía Cavaco, assassinado por este em 1984 e
cada um deles. No cemitério de Grândola, autoridades nenhum fora suficientemente em cima.” Pediu também à irmã que lhes resolveu entregar-se. Ramalho disse-lhe de ter responsáveis”. Mais do que os outros, tarde que estiveram quase a ser mandados do triste anonimato de dormitório, para cujo corpo fora encontrado na serra do
o padre rogava a Deus: “Senhor, abri-lhes grave para levar à sua captura. De uma arranjasse um lugar para se esconderem. que não seria capturado. Quando Gaspar era esse o caso de Germano Raposinho. O parar numa operação stop na Ponte 25 de se converter em mais um palco das acções Caldeirão. Estava perto da verdade.
as portas do paraíso.” forma ou de outra, tinham conseguido Maria Helena Raposinho alugou um anexo apareceu na rua, ouviu-se um tiro. O amigo Expresso registou declarações dos guardas Abril destinada a apanhá-los, mas que a po- policiais com vista à recaptura dos evadidos A 14 de Agosto, certamente motivada
Logo no dia da fuga, tinha sido encontra- escapar. Só que a sorte não podia durar na Rua da Cabine, em Quarteira. Foi aí que, tinha-se suicidado. prisionais que o vigiavam há nove anos e lícia, convencida de que iriam tentar entrar de Pinheiro da Cruz.” pelas informações de Raposinho, a polícia
do num comboio que chegara ao Barreiro para sempre e chegaria a altura em que um no domingo, se refugiaram os quatro fugi- Nos dias seguintes, familiares de Augusto que o classificavam como um preso exem- em Lisboa dentro de um camião, mandara O inspector da PJ responsável pelas in- delimitara um (enorme) triângulo no Al-
vindo de Beja um carregador para oito mu- erro seria decisivo. Esse erro foi cometido tivos que permaneciam juntos: Raposinho, Ramalho levantaram dúvidas quanto à tese plar, “invulgarmente comunicativo e com seguir o carro. Depois tinham-se instalado vestigações, Sousa Martins, afirmou que garve – entre São Marcos da Serra, Loulé e
nições de nove milímetros, calibre idêntico pelo elemento mais provável, Germano Carlos da Malveira e os dois ex-pára-que- de suicídio, mas alegavam não ter dinheiro simpatias generalizadas”. Segundo o jornal, num apartamento propriedade do marido “em tempos um cadastrado com ligações Alcoutim – onde acreditava que os Cavacos
a três das cinco armas roubadas do armeiro, Raposinho, o “exibicionista puro”. distas, Augusto Ramalho e José Fernandes para apurar os factos. “A polícia é que te ma- a opinião era partilhada por Silvano da da afilhada de Carlos. De acordo com uma aos homens em fuga tivera aquele aparta- estariam escondidos. A captura estaria por
mas a polícia acreditava tratar-se de uma Na noite de 1 de Agosto, às duas da ma- Gaspar. Na segunda-feira à tarde, os dois tou… dizem que te mataste mas é mentira”, Costa que acreditou sempre que “era pos- vizinha, tinham o frigorífico “cheio de co- mento sob aluguer”, uma informação que horas. Não estava. Um mês depois da fuga,
manobra de diversão e continuava con- nhã, Maria Helena Raposinho, irmã de primeiros saíram do Algarve em direcção gritou uma familiar durante o funeral, em sível recuperá-lo” e, como tal, o colocou em mida, tinham um saco de batatas ao pé do tinha sido decisiva para a captura dos dois não havia rasto dos dois homens mais procu-
vencida de que os seis homens tinham ido Germano, ouviu alguém bater à porta da a Lisboa no carro da mãe de Raposinho, Setúbal. No entanto, os resultados da autóp- regime especial. Agora, pagava essa decisão fogão e até tinham Martini”. evadidos. Mas mesmo que isso fosse verda- rados do país e já nem havia a certeza de que
para o Algarve. E estava certa. No mesmo sua casa, em Quarteira. Era o irmão. Estava um Toyota Corolla azul-metalizado, supos- sia confirmavam o suicídio. A 7 de Agosto, com o afastamento das suas funções. O Diário de Lisboa contava que os dois de, o facto é que, uma vez mais, a polícia estivessem no Algarve. Tanto podiam estar
dia do enterro dos guardas, o Ford Fiesta com saudades da família, sobretudo dos so- tamente para entrarem em contacto com na sequência da fuga de Raposinho e de evadidos tinham passado a semana a ler tinha conseguido arrancar a informação a a Norte como no estrangeiro. O semanário
de matrícula espanhola foi encontrado na brinhos. Contou-lhe como tinham passado antigos comparsas de Carlos da Malveira. Carlos da Malveira, foi montado um enorme jornais, a ouvir rádio e a ver televisão e Maria Helena Raposinho. No sábado antes O Jornal adiantava a possibilidade de terem
serra algarvia, na Quinta do Freixo, entre os dias em fuga: “Estávamos escondidos no No mesmo dia, a polícia levou Maria He- dispositivo policial para controlar todos os
Raposinho enjaulado revistas pornográficas. Carlos da Malveira de ser apanhado, Raposinho ligou à irmã e fugido a nado para Espanha e o Expresso
São Bartolomeu de Messines e Paderne, a cemitério, o carro guardado debaixo de lena Raposinho para interrogatório. Ao fim acessos a Lisboa. O Toyota Corolla teria sido A 10 de Agosto terminava a Volta a Portugal foi apanhado por volta das oito da manhã deixou-lhe um número de telefone, caso ela ironizava dizendo que “talvez nem sejam os
180 quilómetros de Pinheiro da Cruz. Só umas árvores, ali perto, e quando vimos de algumas horas, as autoridades tinham a visto pela última vez na recta de Pegões. com a consagração de Marco Chagas, que logo depois de ter comprado o Correio da precisasse de entrar em contacto com ele. Cavacos quem esteja a meter mais água”. Já
dias mais tarde é que a imprensa reparou o helicóptero andar às voltas lá por cima, primeira informação exacta sobre o para- No dia seguinte, rolava a primeira cabeça. assim conquistava a sua quarta vitória na Manhã e A Bola num quiosque. Poucos No domingo, a polícia já sabia onde os O Século dizia que estariam escondidos na
num pormenor inquietante e comprome- à nossa procura, desatámos a rir que nem deiro dos fugitivos. Às primeiras horas de Silvano da Costa, director de Pinheiro da prova, um recorde. Na manhã seguinte, na minutos depois, as autoridades convenciam homens se encontravam. Maria Helena Ra- serra do Caldeirão, numa das muitas aldeias
84 FAUSTINO CAVACO FAUSTINO CAVACO 85
reclusos eram avisados sobre aquilo que tedor para as autoridades. Aquele lugar posinho contou tudo à revista do Expresso
os esperava: “Isto aqui é uma cadeia para ficava a três quilómetros da casa de Faustino de 15 de Agosto: “Não resisti à selvajaria de-
endireitar toda a gente. Se algum de vocês Cavaco. No interior do carro havia manchas les, sabe? Fizeram-nos a vida negra, reben-
está com más ideias, aqui usa-se a lei do de sangue, o que levou a polícia a concluir taram com a casa da minha mãe, puseram
mais forte. Portanto, se algum tiver ma- que um deles estaria ferido embora não polícias lá dentro dia e noite, sem respeito
nias e se armar em esperto ou engraçado precisasse de tratamento médico urgente. por nada nem ninguém, ameaçaram-nos de
sofrerá as consequências. Aqui é à base da Levantava-se também a hipótese de esses toda a maneira. E eu não aguentei e acabei
pancada, não se brinca, tudo quanto se ferimentos terem sido causados por um por confessar onde é que eles estavam.”
faz é a sério. E mais, aqui também não há desentendimento entre os fugitivos, o que E acrescentava: “É preciso dar a conhecer
homens fortes. Se algum de vocês veio com acabou por não se confirmar. o que é esta polícia e os atropelos que faz a
essa ideia aconselho a deixarem os tomates Pouco depois, perto de Almancil, as au- torto e a direito só para dar a entender que
lá fora. Se não o fizerem, irão saber o que toridades encontraram o segundo carro sabe tudo, que tem tudo controlado, que
é o regime de Pinheiro da Cruz.” usado na fuga, o Ford Escort da família que é a maior! E é mentira! Só à nossa custa é
Mesmo que não fosse possível confirmar ia de férias para o Algarve. Na bagageira que conseguiram apanhá-los!” Para Maria
estas afirmações, era assim que os presidiá- estava uma caçadeira e carregadores, além Helena, a prova mais cabal da desorien-
rios viam aquela cadeia. Com a fuga de seis de comida e roupas dos legítimos donos tação das autoridades era o facto de não
reclusos, surgiam algumas questões: como do carro, mas de que os seis se tinham ser- fazerem a mínima ideia do paradeiro dos
é que num regime tão severo Germano vido. Apesar de todo o aparato policial, Cavacos. A polícia negou todas as acusações
Raposinho andava à vontade? Mais grave das barreiras levantadas nas estradas e de de brutalidade, mas não podia esconder as
ainda era a questão da arma utilizada para um helicóptero a participar nas buscas, os dificuldades para capturar Faustino e Vítor.
dar início à fuga: como é que a arma tinha evadidos conseguiram sacar outro carro,
sido introduzida numa prisão de segurança desta vez um Mitsubishi Colt de matrícula
máxima, indo parar às mãos de condenados luxemburguesa, que seria encontrado no
Os Cavacos invisíveis
altamente perigosos? dia seguinte, 31 de Julho, perto do campo de Com a captura de quatro dos seis fugitivos,
Enquanto os serviços prisionais denun- golfe de Vilamoura. No interior da viatura, outros pormenores sobre a fuga começa-
ciavam as más condições e a sobrelotação um bilhete de agradecimento destinado ao vam a emergir. Os serviços prisionais des-
das cadeias, o ministro da Justiça, Mário proprietário. mentiam inequivocamente o envolvimento
Raposo, não tinha dúvidas de que a fuga se As manchetes do Diário de Notícias dos de qualquer funcionário na preparação da
devera a “um conjunto de falhas humanas”. dias 1 e 2 de Agosto revelavam a montanha- fuga. Raposinho tinha afinal usado uma
Essa constatação não o impediu de anun- -russa em que se tornara a perseguição. Dia pistola de madeira pintada com graxa e
ciar, no dia seguinte à fuga, a contratação 1: “Apertado cerco no Algarve para detec- feita na oficina de carpintaria da prisão.
de trezentos novos guardas prisionais e a tar os bandidos.” Dia 2: “Caça ao homem O autor dos disparos mortais tinha sido
construção de três novas cadeias, uma das esmorece sem resultados.” Um agente da mesmo Faustino Cavaco, usando para tal
quais de segurança máxima em Lisboa (a Judiciária confessava ao Expresso: “Isto uma arma que em tempos enterrara num
de Monsanto). Sem resultados concretos no é inglório. Não só eles conhecem a zona terreno perto da sua casa.
que dizia respeito à captura dos evadidos melhor do que as palmas das mãos como Dias depois, soube-se que tinha sido a
era preciso fazer alguma coisa. se aproveitam de muitas fraquezas nossas. mulher de Faustino a desenterrar a arma e
A batata não estava quente, estava em Estão é a dar-me um grande baile.” a entregá-la a uma irmã de Raposinho e à
chamas. Um informador da prisão dizia ao Para confundir ainda mais as autorida- mulher de Vítor Cavaco, que posteriormen-
DN que o aparecimento da arma nas mãos des, multiplicavam-se as falsas pistas e os te tinham introduzido a pistola na prisão
do Raposinho era “muito estranho” – “Há avistamentos um pouco por todo o país. através de outro recluso. Na mesma altu-
um traidor no meio disto. Nós gostaríamos Uma das denúncias era a de que um dos ra, por coincidência, o Correio da Manhã
de saber quem é.” Nessa altura, a imprensa fugitivos andaria a passear com o filho às publicava uma carta deixada por Augusto
divulgou o primeiro suspeito de auxiliar os cavalitas numa vila perto de Faro. Afinal, Ramalho, que se suicidara durante o cerco
reclusos. Teria sido um educador da cadeia era o irmão de um deles. Numa discoteca em Quarteira. A carta era quase um mani-
a levar a arma para o interior a troco de perto de Ourique teriam sido vistos cinco festo sociológico: “É absolutamente verdade
duzentos contos pagos por Germano Rapo- dos seis fugitivos. Três homens que tinham que não somos nenhuns meninos do coro,
sinho. As funções de um educador passavam jantado num restaurante em Lagos sem pa- mas também lhes afirmo que não somos os
por acompanhar os reclusos, organizar os gar a conta também tinham sido apontados terríveis criminosos de que todos falam.”
tempos livres e emitir pareceres sobre o como fazendo parte do bando de fugitivos. Num registo filosófico e humanista,
comportamento e liberdade condicional. Em Lagos, a empregada de uma sapataria culpava o sistema por aquilo em que se
Dizia-se também que o educador em causa entrou em pânico pensando que um homem tinham tornado: “Foram as cadeias que
não teria o cadastro limpo e que teria sido que pedira para experimentar uns sapa- destruíram o que de bom nós tínhamos,
mesmo acusado de violação da filha de um tos tamanho 42 era Germano Raposinho. que nos transformaram naquilo que pre-
colega. As autoridades não confirmavam A polícia encontrou o indivíduo à noite, LUSA / ANTÓNIO COTRIM
sentemente somos.” Acrescentava que a
nenhuma das informações, mas os efeitos acompanhado de outro. Não resistiram às “sangrenta evasão de Pinheiro da Cruz
para a imagem da cadeia e da respectiva autoridades e depois descobriu-se que se uns perdidos. Tudo bem-disposto! Ainda terça-feira, dia 5 de Agosto, foi montado foi um reflexo do desespero, da raiva e
direcção eram claramente negativos. tratava de dois pregadores do evangelho por cima havia montes de carne assada e um cerco ao anexo na Rua da Cabine, num ● Já depois da captura, os Cavacos continuaram a ser figuras mediáticas. Esta é da revolta de homens maltratados, que
que aparentemente sofriam de perturba- roupa com fartura nos carros que tínhamos lugar a que curiosamente chamavam “zona não pretendiam mais do que a almejada
A perseguição ções mentais. roubado aos espanhóis e a uns portugueses. dos cavacos”, porque havia ali muita lenha. uma foto do julgamento, tirada a 2 de Novembro de 1988, no Tribunal de Grândola. e sagrada liberdade”. Mais importante,
Fartámo-nos de rir com aquilo.” A polícia tentou negociar com os homens, de um ponto de vista da investigação, era
A 30 de Julho, sob um clima de grande Regressou no sábado, 2 de agosto. Tinha desconhecendo ainda quantos estavam Cruz desde 1974, foi demitido e enviado Reboleira, também chegava ao fim a fuga Raposinho, que estava no apartamento, a a confirmação definitiva de que os guar-
comoção, revolta e medo dos populares,
A primeira captura planos de fugir para o Brasil e contou à barricados. Ramalho e Gaspar, os únicos para Lisboa por “conveniência de serviço” de Germano Raposinho e Carlos da Mal- entregar-se. Nenhum dos dois ofereceu re- das tinham sido baleados pela pistola de
foram a enterrar os três guardas prisio- A polícia acreditava que, naquela altura, irmã que os Cavacos se tinham separado do ocupantes do anexo, decidiram responder devido a “declarações e actuações desfa- veira. Ao contrário do que as autoridades sistência. O repórter do vespertino contava Faustino Cavaco. A imprensa dizia que a
nais abatidos, dois em Grândola e um em os seis homens já se tivessem separado. grupo: “Os sacanas saíram os dois, numa a tiros de metralhadora. “Parecia o far- sadas da realidade”. O ministro da Justiça tinham divulgado, os dois tinham mesmo que a pacatez suburbana da Reboleira tinha arma, uma Walter de calibre 7.65, teria
Melides. Luís Emílio Ambrósio, Manuel Juntos, eram um alvo mais fácil, embora motorizada, para irem buscar documentos -west”, disseram as testemunhas. A troca era claro: “Os evadidos da Colónia Penal de conseguido entrar em Lisboa e sempre com sido alterada pela chegada de inúmeros pertencido a Manuel Laginha, o agente
Pereira Matias Espada e Arlindo Pereira ainda esquivo. Já tinham cometido vários e papéis para a gente todos e deram mas foi de tiros com a polícia terá durado cerca Pinheiro da Cruz gozavam de uma situação o mesmo carro, o Toyota Corolla, ao qual carros da polícia, incluindo os “supermira- da PSP e comparsa do bando de Faustino
dos Santos deixavam viúvas e dois filhos erros, mas com sorte e alguma inépcia das à sola, nunca mais lhes pusemos os olhos de 45 minutos, ao fim dos quais Gaspar prisional profundamente anormal, que tem só tinham mudado a matrícula. Diriam mais fiori” da PJ: “Por um dia, a Reboleira saía Cavaco, assassinado por este em 1984 e
cada um deles. No cemitério de Grândola, autoridades nenhum fora suficientemente em cima.” Pediu também à irmã que lhes resolveu entregar-se. Ramalho disse-lhe de ter responsáveis”. Mais do que os outros, tarde que estiveram quase a ser mandados do triste anonimato de dormitório, para cujo corpo fora encontrado na serra do
o padre rogava a Deus: “Senhor, abri-lhes grave para levar à sua captura. De uma arranjasse um lugar para se esconderem. que não seria capturado. Quando Gaspar era esse o caso de Germano Raposinho. O parar numa operação stop na Ponte 25 de se converter em mais um palco das acções Caldeirão. Estava perto da verdade.
as portas do paraíso.” forma ou de outra, tinham conseguido Maria Helena Raposinho alugou um anexo apareceu na rua, ouviu-se um tiro. O amigo Expresso registou declarações dos guardas Abril destinada a apanhá-los, mas que a po- policiais com vista à recaptura dos evadidos A 14 de Agosto, certamente motivada
Logo no dia da fuga, tinha sido encontra- escapar. Só que a sorte não podia durar na Rua da Cabine, em Quarteira. Foi aí que, tinha-se suicidado. prisionais que o vigiavam há nove anos e lícia, convencida de que iriam tentar entrar de Pinheiro da Cruz.” pelas informações de Raposinho, a polícia
do num comboio que chegara ao Barreiro para sempre e chegaria a altura em que um no domingo, se refugiaram os quatro fugi- Nos dias seguintes, familiares de Augusto que o classificavam como um preso exem- em Lisboa dentro de um camião, mandara O inspector da PJ responsável pelas in- delimitara um (enorme) triângulo no Al-
vindo de Beja um carregador para oito mu- erro seria decisivo. Esse erro foi cometido tivos que permaneciam juntos: Raposinho, Ramalho levantaram dúvidas quanto à tese plar, “invulgarmente comunicativo e com seguir o carro. Depois tinham-se instalado vestigações, Sousa Martins, afirmou que garve – entre São Marcos da Serra, Loulé e
nições de nove milímetros, calibre idêntico pelo elemento mais provável, Germano Carlos da Malveira e os dois ex-pára-que- de suicídio, mas alegavam não ter dinheiro simpatias generalizadas”. Segundo o jornal, num apartamento propriedade do marido “em tempos um cadastrado com ligações Alcoutim – onde acreditava que os Cavacos
a três das cinco armas roubadas do armeiro, Raposinho, o “exibicionista puro”. distas, Augusto Ramalho e José Fernandes para apurar os factos. “A polícia é que te ma- a opinião era partilhada por Silvano da da afilhada de Carlos. De acordo com uma aos homens em fuga tivera aquele aparta- estariam escondidos. A captura estaria por
mas a polícia acreditava tratar-se de uma Na noite de 1 de Agosto, às duas da ma- Gaspar. Na segunda-feira à tarde, os dois tou… dizem que te mataste mas é mentira”, Costa que acreditou sempre que “era pos- vizinha, tinham o frigorífico “cheio de co- mento sob aluguer”, uma informação que horas. Não estava. Um mês depois da fuga,
manobra de diversão e continuava con- nhã, Maria Helena Raposinho, irmã de primeiros saíram do Algarve em direcção gritou uma familiar durante o funeral, em sível recuperá-lo” e, como tal, o colocou em mida, tinham um saco de batatas ao pé do tinha sido decisiva para a captura dos dois não havia rasto dos dois homens mais procu-
vencida de que os seis homens tinham ido Germano, ouviu alguém bater à porta da a Lisboa no carro da mãe de Raposinho, Setúbal. No entanto, os resultados da autóp- regime especial. Agora, pagava essa decisão fogão e até tinham Martini”. evadidos. Mas mesmo que isso fosse verda- rados do país e já nem havia a certeza de que
para o Algarve. E estava certa. No mesmo sua casa, em Quarteira. Era o irmão. Estava um Toyota Corolla azul-metalizado, supos- sia confirmavam o suicídio. A 7 de Agosto, com o afastamento das suas funções. O Diário de Lisboa contava que os dois de, o facto é que, uma vez mais, a polícia estivessem no Algarve. Tanto podiam estar
dia do enterro dos guardas, o Ford Fiesta com saudades da família, sobretudo dos so- tamente para entrarem em contacto com na sequência da fuga de Raposinho e de evadidos tinham passado a semana a ler tinha conseguido arrancar a informação a a Norte como no estrangeiro. O semanário
de matrícula espanhola foi encontrado na brinhos. Contou-lhe como tinham passado antigos comparsas de Carlos da Malveira. Carlos da Malveira, foi montado um enorme jornais, a ouvir rádio e a ver televisão e Maria Helena Raposinho. No sábado antes O Jornal adiantava a possibilidade de terem
serra algarvia, na Quinta do Freixo, entre os dias em fuga: “Estávamos escondidos no No mesmo dia, a polícia levou Maria He- dispositivo policial para controlar todos os
Raposinho enjaulado revistas pornográficas. Carlos da Malveira de ser apanhado, Raposinho ligou à irmã e fugido a nado para Espanha e o Expresso
São Bartolomeu de Messines e Paderne, a cemitério, o carro guardado debaixo de lena Raposinho para interrogatório. Ao fim acessos a Lisboa. O Toyota Corolla teria sido A 10 de Agosto terminava a Volta a Portugal foi apanhado por volta das oito da manhã deixou-lhe um número de telefone, caso ela ironizava dizendo que “talvez nem sejam os
180 quilómetros de Pinheiro da Cruz. Só umas árvores, ali perto, e quando vimos de algumas horas, as autoridades tinham a visto pela última vez na recta de Pegões. com a consagração de Marco Chagas, que logo depois de ter comprado o Correio da precisasse de entrar em contacto com ele. Cavacos quem esteja a meter mais água”. Já
dias mais tarde é que a imprensa reparou o helicóptero andar às voltas lá por cima, primeira informação exacta sobre o para- No dia seguinte, rolava a primeira cabeça. assim conquistava a sua quarta vitória na Manhã e A Bola num quiosque. Poucos No domingo, a polícia já sabia onde os O Século dizia que estariam escondidos na
num pormenor inquietante e comprome- à nossa procura, desatámos a rir que nem deiro dos fugitivos. Às primeiras horas de Silvano da Costa, director de Pinheiro da prova, um recorde. Na manhã seguinte, na minutos depois, as autoridades convenciam homens se encontravam. Maria Helena Ra- serra do Caldeirão, numa das muitas aldeias
106 QUIM BARREIROS CRÓNICA 107
Não era olhado de lado pelos fadistas? Em 2017 vai fazer 70 anos. Quando é
Optimismos
Ah pois. Naquele tempo havia casas que se imagina a largar a estrada e o
de fado que eram exatamente catedrais acordeão?
do fado. Entrar um acordeonista numa Quando me sentir a mais em cima de um
casa daquelas era um sacrilégio para os palco, podes ter a certeza de que arrumo
antigos e novos
fadistas mais velhos, não é? O tio Alfredo as botas. Agora sinto que ainda sou capaz
Marceneiro era contra a minha presença de fazer um bom espetáculo, com a minha
lá. Dizia-me: “Acordeonista aqui nas casas banda. Vi gente famosa que se andou a
de fados... Eu não gosto muito, mas pronto, arrastar em palco e não quero que isso me
és bom rapaz, toda a gente gosta de ti.” aconteça. Vou saber parar. Acho que nem
a minha família me admite isso.
E ao longo da carreira, foi sentindo
olhares superiores? Quem pensa em Quim Barreiros pensa
Não, não. Participei em muitas caravanas inevitavelmente em festa e alegria...
de artistas portugueses populares, que É que eu não admito tristezas. Na minha
naquele tempo iam ter com as comuni- vida tenho amigos e amigas que a primeira
dades portuguesas para todo o mundo. coisa que me dizem é: “Olha, sabes? Morreu
Acompanhei o Francisco José, Tony de fulano e beltrano, tenho aqui uma dor...” Eu
Matos, Duo Ouro Negro, Trio Odemira, travo logo. Sou uma pessoa positiva. Muitas
Paco Bandeira, eu sei lá. Fazia a minha vezes convidam-se para ir a hospitais, lares
parte e eles faziam a deles. Sempre senti de idosos, para estar um bocadinho com as
RICARDO CASTELO
amizade por parte de todos. O meu tipo de pessoas, e francamente não me sinto bem.
música não tinha nada a ver com o deles, Dou sempre uma desculpa. Agora se me
eu era um acordeonista, um tocador de disseres para irmos a uma maternidade,
Paulo Tunhas
sanfona, um brejeiro. Sempre me dei e dou é o contrário. Gosto dos bebés, da vida!
bem com toda a malta da minha profissão. Gosto de ouvir um bebé a chorar. Quando
● Quim Barreiros é um homem do Norte. Nasceu vou num avião há pessoas que se sentem
O primeiro disco que lançou, em 1971, incomodadas com o choro de um bebé e
era de instrumentais da música tra- em Vila Praia de Âncora e é aí que ainda hoje vive e eu não, isso faz-me feliz. Vivi em Lisboa
faz negócio: tem uma albergaria em frente à praia.
Alguém que se sente fisicamente bem, tende naturalmente
dicional portuguesa. Quando é que num apartamento onde o bebé do andar
entrou no mundo dos trocadilhos de cima chorava toda a noite. Acordava e
brejeiros? brejeirada. Isto é nosso e por isso é que E em relação a outros músicos portu- sentia-me bem, para mim o choro de um
Não era olhado de lado pelos fadistas? Em 2017 vai fazer 70 anos. Quando é
Optimismos
Ah pois. Naquele tempo havia casas que se imagina a largar a estrada e o
de fado que eram exatamente catedrais acordeão?
do fado. Entrar um acordeonista numa Quando me sentir a mais em cima de um
casa daquelas era um sacrilégio para os palco, podes ter a certeza de que arrumo
antigos e novos
fadistas mais velhos, não é? O tio Alfredo as botas. Agora sinto que ainda sou capaz
Marceneiro era contra a minha presença de fazer um bom espetáculo, com a minha
lá. Dizia-me: “Acordeonista aqui nas casas banda. Vi gente famosa que se andou a
de fados... Eu não gosto muito, mas pronto, arrastar em palco e não quero que isso me
és bom rapaz, toda a gente gosta de ti.” aconteça. Vou saber parar. Acho que nem
a minha família me admite isso.
E ao longo da carreira, foi sentindo
olhares superiores? Quem pensa em Quim Barreiros pensa
Não, não. Participei em muitas caravanas inevitavelmente em festa e alegria...
de artistas portugueses populares, que É que eu não admito tristezas. Na minha
naquele tempo iam ter com as comuni- vida tenho amigos e amigas que a primeira
dades portuguesas para todo o mundo. coisa que me dizem é: “Olha, sabes? Morreu
Acompanhei o Francisco José, Tony de fulano e beltrano, tenho aqui uma dor...” Eu
Matos, Duo Ouro Negro, Trio Odemira, travo logo. Sou uma pessoa positiva. Muitas
Paco Bandeira, eu sei lá. Fazia a minha vezes convidam-se para ir a hospitais, lares
parte e eles faziam a deles. Sempre senti de idosos, para estar um bocadinho com as
RICARDO CASTELO
amizade por parte de todos. O meu tipo de pessoas, e francamente não me sinto bem.
música não tinha nada a ver com o deles, Dou sempre uma desculpa. Agora se me
eu era um acordeonista, um tocador de disseres para irmos a uma maternidade,
Paulo Tunhas
sanfona, um brejeiro. Sempre me dei e dou é o contrário. Gosto dos bebés, da vida!
bem com toda a malta da minha profissão. Gosto de ouvir um bebé a chorar. Quando
● Quim Barreiros é um homem do Norte. Nasceu vou num avião há pessoas que se sentem
O primeiro disco que lançou, em 1971, incomodadas com o choro de um bebé e
era de instrumentais da música tra- em Vila Praia de Âncora e é aí que ainda hoje vive e eu não, isso faz-me feliz. Vivi em Lisboa
faz negócio: tem uma albergaria em frente à praia.
Alguém que se sente fisicamente bem, tende naturalmente
dicional portuguesa. Quando é que num apartamento onde o bebé do andar
entrou no mundo dos trocadilhos de cima chorava toda a noite. Acordava e
brejeiros? brejeirada. Isto é nosso e por isso é que E em relação a outros músicos portu- sentia-me bem, para mim o choro de um
“Na estreia,
empatámos
6–0 na Luz”
Vítor Oliveira é o campeão das subidas à
1ª- divisão, com um currículo impressionante:
dez subidas em 17 tentativas, sempre
com clubes diferentes. O último sortudo
chama-se Portimonense.
Rui Miguel Tovar
No estádio do Portimonense, acaba equipas que acompanho, em casa ou fora. Imagino a quantidade de jogos do Lei- Eusébio, Coluna, Torres. Onde estava
mais um treino e há jogadores a cantar no E olhe que já não vou muito ao futebol. xões vistos pelo Vítor. o Vítor Oliveira no Mundial 66?
duche. Vítor Oliveira está com pressa e Uiiii, tantos. Tinha 12 anos e chumbei nesse ano. Por
recebe-me sem mais demoras. Procurem, Já jogava futebol? isso, o meu pai meteu-me a trabalhar numa
se quiserem. Mergulhem nos arquivos, nos Cresci na praia de Matosinhos, onde Na final da Taça de Portugal com o Por- mercearia de retalho. Lá fui trabalhar nes-
excels desta vida e da outra, no Google. cresceram muitos bebés que se tornaram to, em 1961, onde estava? ses três meses de verão.
E depois encontrem. Ah poizeeeé, desafio- grandes figuras nos Portos, Benficas e Spor- Não vi, nem fui. Provavelmente, o meu
-vos a encontrarem um treinador (um só tingues. Aos 15 anos, eu e os meus amigos pai protegeu-me da multidão e não me Viu algum jogo de Portugal?
basta) com dez subidas à 1.ª divisão na- fomos às captações dos juvenis do Leixões. levou. Na festa, aí sim, andei lá no meio. Todos. A minha sorte era que a subgeren-
cional. À exceção de Vítor Oliveira, claro Foi uma tarde gloriosa para o Leixões. te da loja, uma senhora simpatiquíssima,
está. O seu currículo é mais preenchido do Só aos 15? Está a ver, não é? Porto, 0 – Leixões, 2 arranjava-me sempre serviços para ficar
que uma folha do IRS. Inclui Paços (1991), Não havia para trás, só aos 15 é que era nas Antas. Memorável. Tive uma infân- fora da loja durante os jogos. Num deles,
Académica (1997), União de Leiria (1998), o primeiro ano das camadas jovens do Lei- cia muito feliz, interessante e divertida, com a Coreia, salvo erro, o serviço era
Belenenses (1999), Leixões (2007), Arou- xões. Saímos da praia e lá fomos. medianamente virada para a escola. Con- levar uns volumes de tabaco para a praia
ca (2013), Moreirense (2014), União da verso às vezes com os meus filhos e eles internacional. Isso deu-me tempo para
Madeira (2015), Chaves (2016) e Portimo- Resultado? ficam surpreendidos com as coisas que ver o jogo em casa. Nunca mais vi essa
nense (2017). Sim senhor, cinco subidas Ficaram todos menos eu. E eu até era o fazíamos naquela altura. senhora até aparecer no Estádio do Mar
nos últimos cinco anos. É de homem. É melhor do grupo. Pronto, tudo bem, fui-me em 2006-07, na época em que o Leixões
Vítor Oliveira, 63 anos de idade e ligado embora. Passadas duas semanas, o Leixões Havia acesso às estrelas quando o Lei- subiu à 1.ª divisão.
ao futebol desde 1969. voltou a chamar-me. xões recebia os grandes?
Agora que me lembra, havia um vizinho Qual a grande alegria nas camadas
O Vítor Oliveira nasceu em Matosinhos. Então? em frente à casa dos meus pais que tinha jovens do Leixões?
No dia 17 de novembro de 1953, uma O treinador era o Óscar Marques, uma sido observador do Benfica no Norte e os Chegámos a ir duas vezes às meias-finais
data bonita. figura do futebol leixonense, que muito jogadores do Benfica costumavam ficar do campeonato nacional, uma nos juvenis,
fez por nós e por todos os outros. Os meus lá quando jogavam em Matosinhos. Era outra nos juniores.
O Vítor gostava de futebol? amigos, os tais escolhidos nas captações, um senhor chamado Custódio Antunes.
Sempre, sempre gostei. foram dizer-lhe que o melhor jogador era Lembro-me de ver o Eusébio, o Mário Colu- Eliminados por quem?
eu e que me tinham mandado embora. na, o José Torres. Aquilo era uma romaria, Primeiro, o Benfica de Shéu, Fidalgo e
E ia ao estádio? O Óscar Marques pediu então uma nova uma festa inacreditável. E parece que estou Norton de Matos. Depois, a Académica.
Sempre. Primeiro no Campo Santana, avaliação e lá fui. Acabei por ficar. a ver o Coluna com uma tranquilidade ab- Naquela altura, os três grandes iam sempre
que era perto da minha casa, depois no solutamente diabólica, com uma voz muito às meias-finais e a quarta vaga sobrava para
Estádio do Mar, já mais espigadote. Ia sem- Estamos a falar de que ano? pausada a falar connosco no meio da rua. um Leixões, um Vitória, uma Académica
pre ver o Leixões. Ainda hoje é das poucas 1969. ou um Belenenses. Nós fomos duas vezes
“Na estreia,
empatámos
6–0 na Luz”
Vítor Oliveira é o campeão das subidas à
1ª- divisão, com um currículo impressionante:
dez subidas em 17 tentativas, sempre
com clubes diferentes. O último sortudo
chama-se Portimonense.
Rui Miguel Tovar
No estádio do Portimonense, acaba equipas que acompanho, em casa ou fora. Imagino a quantidade de jogos do Lei- Eusébio, Coluna, Torres. Onde estava
mais um treino e há jogadores a cantar no E olhe que já não vou muito ao futebol. xões vistos pelo Vítor. o Vítor Oliveira no Mundial 66?
duche. Vítor Oliveira está com pressa e Uiiii, tantos. Tinha 12 anos e chumbei nesse ano. Por
recebe-me sem mais demoras. Procurem, Já jogava futebol? isso, o meu pai meteu-me a trabalhar numa
se quiserem. Mergulhem nos arquivos, nos Cresci na praia de Matosinhos, onde Na final da Taça de Portugal com o Por- mercearia de retalho. Lá fui trabalhar nes-
excels desta vida e da outra, no Google. cresceram muitos bebés que se tornaram to, em 1961, onde estava? ses três meses de verão.
E depois encontrem. Ah poizeeeé, desafio- grandes figuras nos Portos, Benficas e Spor- Não vi, nem fui. Provavelmente, o meu
-vos a encontrarem um treinador (um só tingues. Aos 15 anos, eu e os meus amigos pai protegeu-me da multidão e não me Viu algum jogo de Portugal?
basta) com dez subidas à 1.ª divisão na- fomos às captações dos juvenis do Leixões. levou. Na festa, aí sim, andei lá no meio. Todos. A minha sorte era que a subgeren-
cional. À exceção de Vítor Oliveira, claro Foi uma tarde gloriosa para o Leixões. te da loja, uma senhora simpatiquíssima,
está. O seu currículo é mais preenchido do Só aos 15? Está a ver, não é? Porto, 0 – Leixões, 2 arranjava-me sempre serviços para ficar
que uma folha do IRS. Inclui Paços (1991), Não havia para trás, só aos 15 é que era nas Antas. Memorável. Tive uma infân- fora da loja durante os jogos. Num deles,
Académica (1997), União de Leiria (1998), o primeiro ano das camadas jovens do Lei- cia muito feliz, interessante e divertida, com a Coreia, salvo erro, o serviço era
Belenenses (1999), Leixões (2007), Arou- xões. Saímos da praia e lá fomos. medianamente virada para a escola. Con- levar uns volumes de tabaco para a praia
ca (2013), Moreirense (2014), União da verso às vezes com os meus filhos e eles internacional. Isso deu-me tempo para
Madeira (2015), Chaves (2016) e Portimo- Resultado? ficam surpreendidos com as coisas que ver o jogo em casa. Nunca mais vi essa
nense (2017). Sim senhor, cinco subidas Ficaram todos menos eu. E eu até era o fazíamos naquela altura. senhora até aparecer no Estádio do Mar
nos últimos cinco anos. É de homem. É melhor do grupo. Pronto, tudo bem, fui-me em 2006-07, na época em que o Leixões
Vítor Oliveira, 63 anos de idade e ligado embora. Passadas duas semanas, o Leixões Havia acesso às estrelas quando o Lei- subiu à 1.ª divisão.
ao futebol desde 1969. voltou a chamar-me. xões recebia os grandes?
Agora que me lembra, havia um vizinho Qual a grande alegria nas camadas
O Vítor Oliveira nasceu em Matosinhos. Então? em frente à casa dos meus pais que tinha jovens do Leixões?
No dia 17 de novembro de 1953, uma O treinador era o Óscar Marques, uma sido observador do Benfica no Norte e os Chegámos a ir duas vezes às meias-finais
data bonita. figura do futebol leixonense, que muito jogadores do Benfica costumavam ficar do campeonato nacional, uma nos juvenis,
fez por nós e por todos os outros. Os meus lá quando jogavam em Matosinhos. Era outra nos juniores.
O Vítor gostava de futebol? amigos, os tais escolhidos nas captações, um senhor chamado Custódio Antunes.
Sempre, sempre gostei. foram dizer-lhe que o melhor jogador era Lembro-me de ver o Eusébio, o Mário Colu- Eliminados por quem?
eu e que me tinham mandado embora. na, o José Torres. Aquilo era uma romaria, Primeiro, o Benfica de Shéu, Fidalgo e
E ia ao estádio? O Óscar Marques pediu então uma nova uma festa inacreditável. E parece que estou Norton de Matos. Depois, a Académica.
Sempre. Primeiro no Campo Santana, avaliação e lá fui. Acabei por ficar. a ver o Coluna com uma tranquilidade ab- Naquela altura, os três grandes iam sempre
que era perto da minha casa, depois no solutamente diabólica, com uma voz muito às meias-finais e a quarta vaga sobrava para
Estádio do Mar, já mais espigadote. Ia sem- Estamos a falar de que ano? pausada a falar connosco no meio da rua. um Leixões, um Vitória, uma Académica
pre ver o Leixões. Ainda hoje é das poucas 1969. ou um Belenenses. Nós fomos duas vezes
às meias do campeonato nacional, depois Em 1975, o Vítor sai do Leixões, na 1.ª Como é que o Vítor passa de jogador
de quase um ano a jogar no campeonato divisão, e assina pelo Paredes, da 2.ª. a treinador do Portimonense assim
distrital. Um pouco como agora, aliás. Porquê? de repente?
O Paredes estava a começar a aparecer. Acabou por acontecer sem ter feito nada
E o Leixões era forte? A cidade cresceu muito com a indústria do por isso. O Manuel José foi contratado pelo
Deixava a sua marca no futebol, sempre mobiliário, havia algum dinheiro e tinha Sporting e eu fui nomeado. Havia um nome
tivemos boas equipas. A prova disso é que acabado de subir da 3.ª para a 2.ª. Fez-se ou outro em carteira, como Álvaro Caro-
cheguei à seleção. um investimento grande e, de uma assenta- lino e Raúl Águas, só que o Portimonense
Portimonense da, o Paredes levou quatro/cinco jogadores acertou comigo. Naquela altura, não podia
A sério? 2017 de Matosinhos. Ainda hoje me recordo da ser treinador porque não tinha as habilita-
A sério. Fui convocado umas três/qua- assinatura do contrato com o Paredes. Es- ções necessárias. Ia para o banco como di-
tro vezes pela seleção júnior e joguei duas, távamos numa salinha da sede, que ainda retor, eu que nunca assinei um cheque nem
ambas com a Suíça, na qualificação para hoje existe, e, de repente, soa a sirene. nada parecido. Fui então tirar os cursos e
o Europeu-72. Estreei-me na Tapadinha, Havia um incêndio nas proximidades, os rapidamente consegui chegar ao quarto
campo do Atlético. Era uma equipa jeitosa, diretores do Paredes eram bombeiros e a nível. A meio da terceira época, saí daqui
com Pietra, Bastos Lopes, Alexandre Alhi- assinatura foi adiada por um dia. e fui para o Norte. Voltei agora, 30 anos
nho, Norton de Matos, Pedroto, um lateral- depois. Um acontecimento inacreditável.
-direito chamado Ramalho, Rodolfo, Ibraim, E assinou?
Francisco Vital. O guarda-redes era o Quim. Sim, sim. No dia seguinte, tudo assinado. Como treinador de 1.ª divisão, ganhou
Cheguei a casa, já noite alta, e apanhei o algumas vezes no campo dos três gran-
Lembra-se do resultado desse Portu- Chaves União da Madeira Moreirense meu pai a sair para o mar. Perguntou-me des?
gal-Suíça. 2016 2015 2014 que tal tinha sido o dia. Os meus pais, honra Já falámos do 3-0 do Gil em Alvalade.
Acho que ganhámos 1-0, golo do Pedroto. lhes seja feita, nunca se meteram na minha Nunca ganhei nas Antas ou Dragão, só
Ou será do Rodolfo? Não me lembro. [NA: vida profissional. Deram-me sempre uma como jogador, numa Taça de Honra da
Foi do Rodolfo, aos 78 minutos.] liberdade enorme. Bom, perguntou-me AF Porto e até marquei um golo no 2-1.
como tinha corrido o dia. Disse-lhe que Na Luz, ganhei duas vezes, uma pelo Gil,
E lembra-se se estava nervoso? tinha assinado pelo Paredes e ele ques- golo de Mangonga, outra pelo Belenen-
Nãããã, nunca fui um jogador muito ner- tionou essa opção com aquela pergunta ses, um 3-2 com golo de Rui Gregório.
voso ou de tremer com adversários mais sacramental do “vais ganhar quanto?”. 14 Curiosamente, a vez que fiz mais mossa
fortes. Encarava o jogo com tranquilidade.
Até porque se o futebol não desse certo,
contos. Era um contrato muuuuito bom,
muito mais do que ganhava no Leixões
● Vítor Oliveira no Portimonense de 1983/1984. O segundo em pé, à esquerda, foi um empate, pelo Vitória. Marcámos o
1-1 em cima dos 90’, por Ricardo Lopes,
ia para engenharia. Estudava ao mesmo
Arouca Leixões Belenenses
na 1.ª divisão. O meu pai começou então a é Rui Águas. O primeiro em pé, à direita, é o guarda-redes Vítor Damas. se não me engano, e o Artur Jorge saiu
tempo que jogava e só abdiquei do curso fazer-me perguntas sobre onde é que era do Benfica no dia seguinte.
2013 2007 1999
quando decidi enveredar pelo futebol a Paredes? Ali ao pé de Penafiel, a uns 40 Assim, sem mais nem menos? Qual era a missão? muito giro. Apareceu-nos assim de surpresa,
sério. km do Porto, disse-lhe. E ele, já de saída: Havia um grande desnivelamento. No Ganhar no Restelo para evitar a des- no hall do hotel. Ninguém estava à espera. Obr...
“Jogar, não jogas grande coisa, mas és fino Sul, jogava-se bem em termos técnicos. promoção. Como sempre, aliás. O Quinito era dos que Espere aí, que lembrei-me de outra vitória
E isso aconteceu quando? para fazer contratos.” No Norte, havia mais força e intensidade. mais surpreendia as gentes do futebol. Por em Alvalade, como jogador. Um Sporting-
Quando vim jogar para Portimão, aos Regra geral, as equipas do Norte saíam- E? isso é que sentimos a sua falta, desde que -Leixões em 1972-73 que acaba aos seis, sete
27/28 anos. Aí, sim, larguei a faculdade. O seu pai via os seus jogos? -se bem, quase sempre melhor do que as Perdemos 2-0. Fui então para o Espinho, se retirou por razões familiares. minutos com uma invasão de campo. Mar-
Sempre. do Sul. onde apanhei o Manuel José como jogador- cámos cedo, de penálti. O primeiro penálti
Qual era o curso? -treinador. Na primeira fase do Vítor Oliveira no é defendido pelo Damas e o árbitro manda
Eletrotecnia, na Faculdade de Engenha- E a sua mãe? Aí está, Vítor Oliveira novamente na Gil, apanhou o Drulovic. repetir. O nosso treinador António Teixeira
ria do Porto. Já tinha o quarto ano quase As mulheres não eram vistas num campo 1.ª divisão. Espinho? Que jogador, o melhor que apanhei manda trocar o marcador e é golo, à segun-
completo e só me faltava o quinto, só que União de Leiria Académica Paços de Ferreira de futebol e a minha mãe levava uma vida Por uma época, apenas. Descemos de Jogávamos no Campo da Avenida, um como treinador. A meio da época, saiu da tentativa. Uns minutos depois, há uma jo-
virei-me completamente para o futebol. 1998 1997 1991 dura, como peixeira, a acordar todos os divisão na última jornada. E comecei aí a pelado muuuuito difícil para toda a gen- para o Porto sem nós sabermos. gada nossa em que é pontapé de baliza para
dias às quatro da manhã. Aos domingos, carreira de treinador. te, inclusive Benfica, Sporting e Porto. O o Sporting e o árbitro dá canto. Aquilo foi
Arrepende-se? era para descansar. primeiro ano foi bom, o segundo foi mau, Como? muito complicado. Muito mesmo. Vi coisas
Nada. A engenharia ficou pelo caminho Então não foi em Portimão? porque tive uma lesão no menisco. Saiu para o Porto e nós não sabíamos. inenarráveis e o árbitro foi selvaticamente
porque o futebol deu-me tudo o que tenho. Volto ao seu pai. Aí foi a tempo inteiro, em Famalicão foi Fomos de férias de Natal, para aí a 22 ou agredido. Vi um gajo bater no árbitro com
O meu pai era o meu maior crítico. Se só um jogo. Em 1981, assina pelo Braga de Quinito. 23 de dezembro, e voltámos a 27. Achámos um capacete de mota. Lembro-me mesmo
Lembra-se da estreia profissional? ganhasse por dois, deveria ter sido por O Braga de Quinito em 1981-82, depois estranho a sua ausência e perguntámo-nos bem desta imagem. Fomos todos para os
Um Benfica-Leixões, não foi? quatro. Se perdesse por um, era uma por- Como assim? o Braga de Juca em 1982-83. se o Drulov teria ido para a Sérvia. No dia balneários e, já reposta a ordem, a polícia
● Estes são os 10 clubes que Vítor Oliveira, ao longo caria. Nunca estávamos em sintonia, uma Na penúltima jornada, empatámos 2-2 seguinte, fomos informados de que tinha ido queria reatar o jogo. Só que nós tínhamos
Isso mesmo. visão diametralmente oposta à minha. Ele com o Braga. Eu até marco um golo, bem Com o Quinito, o Braga vai ao Jamor. para o Porto. Quatro dias depois, apareceu- um treinador experimentado, matreiro e
Empatámos na Luz. da sua carreira, fez subir à primeira divisão. era um descontente por natureza, um pes- fora da área. Na baliza deles, o Conhé. Essa final da Taça de Portugal é muito -me ele lá em casa, com um dirigente do não voltámos ao campo. Tivemos de arranjar
simista. Só em relação ao futebol, atenção. Nessa noite, a direção do Famalicão despe- provavelmente o momento mais fantástico Porto, a justificar a saída. Havia uma cláusula uns três ou quatro gajos muito feridos.
Hein? de vez em quando, ainda fazíamos uma 6-0 do Leixões na Luz? De resto, era uma pessoa animada, com diu o treinador, um senhor elegantíssimo da minha carreira de jogador. no seu contrato que lhe permitia sair assim.
Empatámos 6-0, eheheheheh. gracinha. Na Luz, era terrível. O túnel da Não. quem se podia falar. chamado Mário Imbelloni. Como?
Luz era enorme. Primeiro que chegássemos Eliminaram quem na meia-final? Como é que o Drulovic aterra em Bar- O nosso massagista teve de meter ade-
Um cabaz. ao campo, era assustador. Depois, aquela Um com o Atlético, em Matosinhos? Ia à pesca com ele? O grande Imbelloni? O Benfica, em Braga. Das poucas vezes celos? sivos em três ou quatro jogadores nossos
Lembro-me de comentarmos que fui massa humana. Não dava. Aquele em que marquei um golo. Nunca fui, nunca tive essa tendência Esse mesmo, um dos jogadores da me- que o 1.º de Maio encheu por completo. Mas O Drulovic estava na Suécia, onde vivia para evitar o reatamento do jogo, senão
certamente dos jogadores que mais vezes para a pesca. Quando era miúdo, íamos lhor equipa do mundo dos anos 40: o San completo mesmo, a transbordar. Ganhá- o irmão de um dirigente do Gil, agora da estava o caldo entornado. O ambiente lá
toquei na bola. E as viagens para Lisboa? Esse mesmo. pescar ao longo do paredão na praia de Lorenzo Almagro. Que veio cá a Portugal mos 2-0 e o Humberto Coelho jogou como Federação Portuguesa de Futebol, chamado fora era mau, muito mau. Não podíamos
Saíamos de Matosinhos às 8h30/9 da ma- Foi o meu primeiro golo de sénior. E de Matosinhos. Íamos pescar, íamos. Metia-me e deu um festival de bola àqueles que lhe avançado nos últimos 20 minutos. Era uma Carlos Coutada. Ora bem, ele avisou-nos voltar ao jogo e não voltámos. A federação
Então? nhã. Almoçávamos em Leiria antes de ar- cabeça. lá a dormir, a apanhar sol, e só acordava apareceram pela frente: Porto, Benfica, tática comum do treinador inglês do Ben- que o irmão tinha três jogadores sérvios deu-nos uma vitória por 3-0.
Era golo deles, a bola ia ao centro, o Ho- rancarmos para Lisboa, onde chegávamos quando a malta nos chamava para ir à praia Sporting, Belenenses. O Imbelloni jogou fica, o John Mortimore. Quando estava muito bons: um extremo-direito, um ponta
rácio tocava para mim e eu dava para trás. às 17h30/18h00. Não havia autoestradas e Era costume marcar e, ainda por cima, porque a maré já estava baixa e dava para ainda no Real Madrid e, depois, cá em empatado ou a perder, metia o Humberto de lança e o Drulovic, que era o mais miúdo Como eram os árbitros de então?
era quase um dia perdido. Por isso, não se de cabeça? jogar futebol no areal. Portugal. lá à frente e o Humberto era um portento. de todos, com uns 21 anos, acho. Ao fim Sempre a favor dos grandes, desequili-
Eheheheheheh. treinava na véspera do jogo. Nas camadas jovens, sim. Marcava muitos Marcava golos a torto e a direito. Às vezes, de dez minutos do primeiro treino, saí do bravam ainda mais a balança. Nem tínha-
Aquilo era muito difícil, dificílimo. Havia golos, até porque comecei a ponta de lança. Deu-se bem no Paredes? Bom homem? até marcava dois por jogo. Um fenómeno. campo e disse ao presidente “você não deixe mos qualquer hipótese.
uma desigualdade gigantesca, a todos os E do Norte para o Algarve? Só depois é que passei a médio e jogava Recomecei a marcar golos e fui o segun- Homem fantástico, que acabou na mi- sair este miúdo”. Era o melhor, de longe.
níveis. Ahhhhh, às vezes até saíamos à sexta- a 8, como se diz agora. Os goleadores de do melhor marcador de toda a 2.ª divisão. séria. Um genro deu-lhe cabo de todo o Na final, o Sporting de Allison foi mais O melhor que já tive. E os jogadores fora de série?
-feira. Depois do jogo, dormíamos nor- serviço eram o Horácio e o Estêvão, ambos Só que o Paredes não subiu. Aliás, fugimos dinheiro, com uma procuração. Só para forte. O Eusébio a marcar golos sem ângulo, o
Como? malmente na estalagem da Barrosinha, muito bons. Há uma história engraçada à 3.ª divisão no último minuto da última ver: quem lhe pagou o bilhete da viagem Sem dúvida, o 4-0 espelha isso mesmo. De volta ao Vítor Oliveira jogador. Yazalde era uma máquina, impressionou-
Profissionalismo, condições de trabalho em Alcácer. Acho que já está desativada. sobre os golos. jornada da liguilha, com o Vilanovense. Um para a Argentina fui eu e o Manuel José. Saí exausto, a 20 minutos do fim. O Fer- A seguir ao Braga, segue-se o quê? -me bastante. E o Cubillas. Nos jogos com
e qualidade dos jogadores. Benfica, Porto No dia seguinte, almoçávamos uns frangos penálti marcado por mim, 3-2 para nós. Dividimos a conta. Uns meses depois, nando Vaz, grande referência do futebol Portimão. Um clube, em ascensão, que o Porto, já eu era jogador, só queria que
e Sporting estavam mesmo muito à frente. a meio caminho e chegávamos a meio da Conte aí. soubemos que ele tinha morrido. Uma português, fez-me um elogio rasgadíssimo pagava muito bem. Chegámos à Europa lhe passassem a bola para o ver jogar. Uma
Entretanto, essa diferença estreitou-se. tarde de segunda-feira. Como lhe disse, fazia muitos golos nos Saiu do Paredes? tristeza. Tal como o Imbelloni, também na crónica de um jornal desportivo, por- com uma equipa boa. Na baliza, Damas. vez, num Porto-Leixões, ele pegou na bola
E agora parece-me outra vez evidente. distritais. E recebia dinheiro por cada um Continuei na 2.ª divisão e assinei pelo o Famalicão demitiu o adjunto Frederico que realmente fiz uma bela exibição. No no meio-campo e driblou uns quatro ou
Os grandes estão mais à frente. Antes, os Uiiiiii, isso dói. deles. Famalicão. Passos. Foram-se embora os dois. Então, fim, só me lembro do Allison com uma Que personagem. cinco até entrar com ela pela baliza dentro.
melhores jogadores de uma equipa média- Os autocarros não eram famosos e as os dirigentes apareceram em casa da mi- garrafa de champanhe numa mão e um Damas foi o melhor guarda-redes que Genial, o Cubillas.
-pequena iam sempre para os grandes, no estradas eram más (havia só um boca- Maravilha. Que tal? nha namorada, agora minha mulher, e charuto na outra a passear-se ali na zona conheci e foi um desgosto enorme quando
final da época. As outras equipas estavam dinho de autoestrada, ali do Carregado Por cada golo, o meu pai dava-me 25 Fomos campeões da zona Norte e depois disseram-me que contavam comigo para dos balneários. Que figura. soube da sua morte. Perdi um amigo nessa Rui Miguel Tovar é colaborador do
sempre sempre sempre em formação. O até Lisboa e dos Carvalhos ao Porto; de tostões, corresponde agora a um euro e ganhámos o título da 2.ª divisão, numa o último jogo. Eu e o adjunto Melo, aquele hora. Era para ser meu adjunto do Porti- Observador, onde assina regularmente a
Benfica, por exemplo, jogava muito na Taça resto, EN1). qualquer coisa. Ao fim de seis ou sete jor- poule com o campeão das zonas Centro baixinho, guarda-redes do Benfica, co- E o que dizer do Quinito de smoking? monense, quando o Manuel José o levou rubrica de entrevistas “Questões do Forno
dos Campeões e ganhava um ritmo impos- nadas, ele desistiu da aposta. e Sul. No jogo do título, demos cinco ou nhecido pelos quatro golos do Lourenço Não foi bem de smoking. Foi mais de pa- para o Sporting, já a caminho dos 40 anos. Interno”. É também autor de vários livros sobre
sível de alcançar para o Leixões. Em casa, Sabe qual foi o jogo seguinte àquele seis-zero ao Barreirense. num Benfica-Sporting. pillon, com um casaco branco. Aquilo foi Era incansável. futebol. O último chama-se “Bola ao Ar”.
90 VÍTOR OLIVEIRA VÍTOR OLIVEIRA 91
às meias do campeonato nacional, depois Em 1975, o Vítor sai do Leixões, na 1.ª Como é que o Vítor passa de jogador
de quase um ano a jogar no campeonato divisão, e assina pelo Paredes, da 2.ª. a treinador do Portimonense assim
distrital. Um pouco como agora, aliás. Porquê? de repente?
O Paredes estava a começar a aparecer. Acabou por acontecer sem ter feito nada
E o Leixões era forte? A cidade cresceu muito com a indústria do por isso. O Manuel José foi contratado pelo
Deixava a sua marca no futebol, sempre mobiliário, havia algum dinheiro e tinha Sporting e eu fui nomeado. Havia um nome
tivemos boas equipas. A prova disso é que acabado de subir da 3.ª para a 2.ª. Fez-se ou outro em carteira, como Álvaro Caro-
cheguei à seleção. um investimento grande e, de uma assenta- lino e Raúl Águas, só que o Portimonense
Portimonense da, o Paredes levou quatro/cinco jogadores acertou comigo. Naquela altura, não podia
A sério? 2017 de Matosinhos. Ainda hoje me recordo da ser treinador porque não tinha as habilita-
A sério. Fui convocado umas três/qua- assinatura do contrato com o Paredes. Es- ções necessárias. Ia para o banco como di-
tro vezes pela seleção júnior e joguei duas, távamos numa salinha da sede, que ainda retor, eu que nunca assinei um cheque nem
ambas com a Suíça, na qualificação para hoje existe, e, de repente, soa a sirene. nada parecido. Fui então tirar os cursos e
o Europeu-72. Estreei-me na Tapadinha, Havia um incêndio nas proximidades, os rapidamente consegui chegar ao quarto
campo do Atlético. Era uma equipa jeitosa, diretores do Paredes eram bombeiros e a nível. A meio da terceira época, saí daqui
com Pietra, Bastos Lopes, Alexandre Alhi- assinatura foi adiada por um dia. e fui para o Norte. Voltei agora, 30 anos
nho, Norton de Matos, Pedroto, um lateral- depois. Um acontecimento inacreditável.
-direito chamado Ramalho, Rodolfo, Ibraim, E assinou?
Francisco Vital. O guarda-redes era o Quim. Sim, sim. No dia seguinte, tudo assinado. Como treinador de 1.ª divisão, ganhou
Cheguei a casa, já noite alta, e apanhei o algumas vezes no campo dos três gran-
Lembra-se do resultado desse Portu- Chaves União da Madeira Moreirense meu pai a sair para o mar. Perguntou-me des?
gal-Suíça. 2016 2015 2014 que tal tinha sido o dia. Os meus pais, honra Já falámos do 3-0 do Gil em Alvalade.
Acho que ganhámos 1-0, golo do Pedroto. lhes seja feita, nunca se meteram na minha Nunca ganhei nas Antas ou Dragão, só
Ou será do Rodolfo? Não me lembro. [NA: vida profissional. Deram-me sempre uma como jogador, numa Taça de Honra da
Foi do Rodolfo, aos 78 minutos.] liberdade enorme. Bom, perguntou-me AF Porto e até marquei um golo no 2-1.
como tinha corrido o dia. Disse-lhe que Na Luz, ganhei duas vezes, uma pelo Gil,
E lembra-se se estava nervoso? tinha assinado pelo Paredes e ele ques- golo de Mangonga, outra pelo Belenen-
Nãããã, nunca fui um jogador muito ner- tionou essa opção com aquela pergunta ses, um 3-2 com golo de Rui Gregório.
voso ou de tremer com adversários mais sacramental do “vais ganhar quanto?”. 14 Curiosamente, a vez que fiz mais mossa
fortes. Encarava o jogo com tranquilidade.
Até porque se o futebol não desse certo,
contos. Era um contrato muuuuito bom,
muito mais do que ganhava no Leixões
● Vítor Oliveira no Portimonense de 1983/1984. O segundo em pé, à esquerda, foi um empate, pelo Vitória. Marcámos o
1-1 em cima dos 90’, por Ricardo Lopes,
ia para engenharia. Estudava ao mesmo
Arouca Leixões Belenenses
na 1.ª divisão. O meu pai começou então a é Rui Águas. O primeiro em pé, à direita, é o guarda-redes Vítor Damas. se não me engano, e o Artur Jorge saiu
tempo que jogava e só abdiquei do curso fazer-me perguntas sobre onde é que era do Benfica no dia seguinte.
2013 2007 1999
quando decidi enveredar pelo futebol a Paredes? Ali ao pé de Penafiel, a uns 40 Assim, sem mais nem menos? Qual era a missão? muito giro. Apareceu-nos assim de surpresa,
sério. km do Porto, disse-lhe. E ele, já de saída: Havia um grande desnivelamento. No Ganhar no Restelo para evitar a des- no hall do hotel. Ninguém estava à espera. Obr...
“Jogar, não jogas grande coisa, mas és fino Sul, jogava-se bem em termos técnicos. promoção. Como sempre, aliás. O Quinito era dos que Espere aí, que lembrei-me de outra vitória
E isso aconteceu quando? para fazer contratos.” No Norte, havia mais força e intensidade. mais surpreendia as gentes do futebol. Por em Alvalade, como jogador. Um Sporting-
Quando vim jogar para Portimão, aos Regra geral, as equipas do Norte saíam- E? isso é que sentimos a sua falta, desde que -Leixões em 1972-73 que acaba aos seis, sete
27/28 anos. Aí, sim, larguei a faculdade. O seu pai via os seus jogos? -se bem, quase sempre melhor do que as Perdemos 2-0. Fui então para o Espinho, se retirou por razões familiares. minutos com uma invasão de campo. Mar-
Sempre. do Sul. onde apanhei o Manuel José como jogador- cámos cedo, de penálti. O primeiro penálti
Qual era o curso? -treinador. Na primeira fase do Vítor Oliveira no é defendido pelo Damas e o árbitro manda
Eletrotecnia, na Faculdade de Engenha- E a sua mãe? Aí está, Vítor Oliveira novamente na Gil, apanhou o Drulovic. repetir. O nosso treinador António Teixeira
ria do Porto. Já tinha o quarto ano quase As mulheres não eram vistas num campo 1.ª divisão. Espinho? Que jogador, o melhor que apanhei manda trocar o marcador e é golo, à segun-
completo e só me faltava o quinto, só que União de Leiria Académica Paços de Ferreira de futebol e a minha mãe levava uma vida Por uma época, apenas. Descemos de Jogávamos no Campo da Avenida, um como treinador. A meio da época, saiu da tentativa. Uns minutos depois, há uma jo-
virei-me completamente para o futebol. 1998 1997 1991 dura, como peixeira, a acordar todos os divisão na última jornada. E comecei aí a pelado muuuuito difícil para toda a gen- para o Porto sem nós sabermos. gada nossa em que é pontapé de baliza para
dias às quatro da manhã. Aos domingos, carreira de treinador. te, inclusive Benfica, Sporting e Porto. O o Sporting e o árbitro dá canto. Aquilo foi
Arrepende-se? era para descansar. primeiro ano foi bom, o segundo foi mau, Como? muito complicado. Muito mesmo. Vi coisas
Nada. A engenharia ficou pelo caminho Então não foi em Portimão? porque tive uma lesão no menisco. Saiu para o Porto e nós não sabíamos. inenarráveis e o árbitro foi selvaticamente
porque o futebol deu-me tudo o que tenho. Volto ao seu pai. Aí foi a tempo inteiro, em Famalicão foi Fomos de férias de Natal, para aí a 22 ou agredido. Vi um gajo bater no árbitro com
O meu pai era o meu maior crítico. Se só um jogo. Em 1981, assina pelo Braga de Quinito. 23 de dezembro, e voltámos a 27. Achámos um capacete de mota. Lembro-me mesmo
Lembra-se da estreia profissional? ganhasse por dois, deveria ter sido por O Braga de Quinito em 1981-82, depois estranho a sua ausência e perguntámo-nos bem desta imagem. Fomos todos para os
Um Benfica-Leixões, não foi? quatro. Se perdesse por um, era uma por- Como assim? o Braga de Juca em 1982-83. se o Drulov teria ido para a Sérvia. No dia balneários e, já reposta a ordem, a polícia
● Estes são os 10 clubes que Vítor Oliveira, ao longo caria. Nunca estávamos em sintonia, uma Na penúltima jornada, empatámos 2-2 seguinte, fomos informados de que tinha ido queria reatar o jogo. Só que nós tínhamos
Isso mesmo. visão diametralmente oposta à minha. Ele com o Braga. Eu até marco um golo, bem Com o Quinito, o Braga vai ao Jamor. para o Porto. Quatro dias depois, apareceu- um treinador experimentado, matreiro e
Empatámos na Luz. da sua carreira, fez subir à primeira divisão. era um descontente por natureza, um pes- fora da área. Na baliza deles, o Conhé. Essa final da Taça de Portugal é muito -me ele lá em casa, com um dirigente do não voltámos ao campo. Tivemos de arranjar
simista. Só em relação ao futebol, atenção. Nessa noite, a direção do Famalicão despe- provavelmente o momento mais fantástico Porto, a justificar a saída. Havia uma cláusula uns três ou quatro gajos muito feridos.
Hein? de vez em quando, ainda fazíamos uma 6-0 do Leixões na Luz? De resto, era uma pessoa animada, com diu o treinador, um senhor elegantíssimo da minha carreira de jogador. no seu contrato que lhe permitia sair assim.
Empatámos 6-0, eheheheheh. gracinha. Na Luz, era terrível. O túnel da Não. quem se podia falar. chamado Mário Imbelloni. Como?
Luz era enorme. Primeiro que chegássemos Eliminaram quem na meia-final? Como é que o Drulovic aterra em Bar- O nosso massagista teve de meter ade-
Um cabaz. ao campo, era assustador. Depois, aquela Um com o Atlético, em Matosinhos? Ia à pesca com ele? O grande Imbelloni? O Benfica, em Braga. Das poucas vezes celos? sivos em três ou quatro jogadores nossos
Lembro-me de comentarmos que fui massa humana. Não dava. Aquele em que marquei um golo. Nunca fui, nunca tive essa tendência Esse mesmo, um dos jogadores da me- que o 1.º de Maio encheu por completo. Mas O Drulovic estava na Suécia, onde vivia para evitar o reatamento do jogo, senão
certamente dos jogadores que mais vezes para a pesca. Quando era miúdo, íamos lhor equipa do mundo dos anos 40: o San completo mesmo, a transbordar. Ganhá- o irmão de um dirigente do Gil, agora da estava o caldo entornado. O ambiente lá
toquei na bola. E as viagens para Lisboa? Esse mesmo. pescar ao longo do paredão na praia de Lorenzo Almagro. Que veio cá a Portugal mos 2-0 e o Humberto Coelho jogou como Federação Portuguesa de Futebol, chamado fora era mau, muito mau. Não podíamos
Saíamos de Matosinhos às 8h30/9 da ma- Foi o meu primeiro golo de sénior. E de Matosinhos. Íamos pescar, íamos. Metia-me e deu um festival de bola àqueles que lhe avançado nos últimos 20 minutos. Era uma Carlos Coutada. Ora bem, ele avisou-nos voltar ao jogo e não voltámos. A federação
Então? nhã. Almoçávamos em Leiria antes de ar- cabeça. lá a dormir, a apanhar sol, e só acordava apareceram pela frente: Porto, Benfica, tática comum do treinador inglês do Ben- que o irmão tinha três jogadores sérvios deu-nos uma vitória por 3-0.
Era golo deles, a bola ia ao centro, o Ho- rancarmos para Lisboa, onde chegávamos quando a malta nos chamava para ir à praia Sporting, Belenenses. O Imbelloni jogou fica, o John Mortimore. Quando estava muito bons: um extremo-direito, um ponta
rácio tocava para mim e eu dava para trás. às 17h30/18h00. Não havia autoestradas e Era costume marcar e, ainda por cima, porque a maré já estava baixa e dava para ainda no Real Madrid e, depois, cá em empatado ou a perder, metia o Humberto de lança e o Drulovic, que era o mais miúdo Como eram os árbitros de então?
era quase um dia perdido. Por isso, não se de cabeça? jogar futebol no areal. Portugal. lá à frente e o Humberto era um portento. de todos, com uns 21 anos, acho. Ao fim Sempre a favor dos grandes, desequili-
Eheheheheheh. treinava na véspera do jogo. Nas camadas jovens, sim. Marcava muitos Marcava golos a torto e a direito. Às vezes, de dez minutos do primeiro treino, saí do bravam ainda mais a balança. Nem tínha-
Aquilo era muito difícil, dificílimo. Havia golos, até porque comecei a ponta de lança. Deu-se bem no Paredes? Bom homem? até marcava dois por jogo. Um fenómeno. campo e disse ao presidente “você não deixe mos qualquer hipótese.
uma desigualdade gigantesca, a todos os E do Norte para o Algarve? Só depois é que passei a médio e jogava Recomecei a marcar golos e fui o segun- Homem fantástico, que acabou na mi- sair este miúdo”. Era o melhor, de longe.
níveis. Ahhhhh, às vezes até saíamos à sexta- a 8, como se diz agora. Os goleadores de do melhor marcador de toda a 2.ª divisão. séria. Um genro deu-lhe cabo de todo o Na final, o Sporting de Allison foi mais O melhor que já tive. E os jogadores fora de série?
-feira. Depois do jogo, dormíamos nor- serviço eram o Horácio e o Estêvão, ambos Só que o Paredes não subiu. Aliás, fugimos dinheiro, com uma procuração. Só para forte. O Eusébio a marcar golos sem ângulo, o
Como? malmente na estalagem da Barrosinha, muito bons. Há uma história engraçada à 3.ª divisão no último minuto da última ver: quem lhe pagou o bilhete da viagem Sem dúvida, o 4-0 espelha isso mesmo. De volta ao Vítor Oliveira jogador. Yazalde era uma máquina, impressionou-
Profissionalismo, condições de trabalho em Alcácer. Acho que já está desativada. sobre os golos. jornada da liguilha, com o Vilanovense. Um para a Argentina fui eu e o Manuel José. Saí exausto, a 20 minutos do fim. O Fer- A seguir ao Braga, segue-se o quê? -me bastante. E o Cubillas. Nos jogos com
e qualidade dos jogadores. Benfica, Porto No dia seguinte, almoçávamos uns frangos penálti marcado por mim, 3-2 para nós. Dividimos a conta. Uns meses depois, nando Vaz, grande referência do futebol Portimão. Um clube, em ascensão, que o Porto, já eu era jogador, só queria que
e Sporting estavam mesmo muito à frente. a meio caminho e chegávamos a meio da Conte aí. soubemos que ele tinha morrido. Uma português, fez-me um elogio rasgadíssimo pagava muito bem. Chegámos à Europa lhe passassem a bola para o ver jogar. Uma
Entretanto, essa diferença estreitou-se. tarde de segunda-feira. Como lhe disse, fazia muitos golos nos Saiu do Paredes? tristeza. Tal como o Imbelloni, também na crónica de um jornal desportivo, por- com uma equipa boa. Na baliza, Damas. vez, num Porto-Leixões, ele pegou na bola
E agora parece-me outra vez evidente. distritais. E recebia dinheiro por cada um Continuei na 2.ª divisão e assinei pelo o Famalicão demitiu o adjunto Frederico que realmente fiz uma bela exibição. No no meio-campo e driblou uns quatro ou
Os grandes estão mais à frente. Antes, os Uiiiiii, isso dói. deles. Famalicão. Passos. Foram-se embora os dois. Então, fim, só me lembro do Allison com uma Que personagem. cinco até entrar com ela pela baliza dentro.
melhores jogadores de uma equipa média- Os autocarros não eram famosos e as os dirigentes apareceram em casa da mi- garrafa de champanhe numa mão e um Damas foi o melhor guarda-redes que Genial, o Cubillas.
-pequena iam sempre para os grandes, no estradas eram más (havia só um boca- Maravilha. Que tal? nha namorada, agora minha mulher, e charuto na outra a passear-se ali na zona conheci e foi um desgosto enorme quando
final da época. As outras equipas estavam dinho de autoestrada, ali do Carregado Por cada golo, o meu pai dava-me 25 Fomos campeões da zona Norte e depois disseram-me que contavam comigo para dos balneários. Que figura. soube da sua morte. Perdi um amigo nessa Rui Miguel Tovar é colaborador do
sempre sempre sempre em formação. O até Lisboa e dos Carvalhos ao Porto; de tostões, corresponde agora a um euro e ganhámos o título da 2.ª divisão, numa o último jogo. Eu e o adjunto Melo, aquele hora. Era para ser meu adjunto do Porti- Observador, onde assina regularmente a
Benfica, por exemplo, jogava muito na Taça resto, EN1). qualquer coisa. Ao fim de seis ou sete jor- poule com o campeão das zonas Centro baixinho, guarda-redes do Benfica, co- E o que dizer do Quinito de smoking? monense, quando o Manuel José o levou rubrica de entrevistas “Questões do Forno
dos Campeões e ganhava um ritmo impos- nadas, ele desistiu da aposta. e Sul. No jogo do título, demos cinco ou nhecido pelos quatro golos do Lourenço Não foi bem de smoking. Foi mais de pa- para o Sporting, já a caminho dos 40 anos. Interno”. É também autor de vários livros sobre
sível de alcançar para o Leixões. Em casa, Sabe qual foi o jogo seguinte àquele seis-zero ao Barreirense. num Benfica-Sporting. pillon, com um casaco branco. Aquilo foi Era incansável. futebol. O último chama-se “Bola ao Ar”.
92 A NOITE EM QUE FEHÉR CAIU 93
A noite em ele caiu desamparado. Mas, ao se assistiu depois. Lá de cima, da “Ele saiu de ambulância para o
(contada por
momento o futebol não interessa Ouvia-se como se se estivesse a querença] para terminar o jogo
nada. O resultado e o jogo não um metro.” Rocha rapidamente. Quando ele apitou,
interessam nada. Foi um colega Ex-jogador fomos a correr para o balneário,
de profissão que morreu à nos- do Benfica tomar banho à pressa, e seguimos
sa frente. Lembro-me de sair do “Nós estávamos, como sempre, de para o hospital. Não sabíamos se
quem lá esteve)
banco e ir a correr para lá. Toda serviço, entre os dois bancos de ele tinha morrido ou não. Toda a
a gente foi a correr até ele. Come- suplentes. De repente, olhei e vi gente chorava muito, mas ainda
cei a perguntar aos jogadores do os jogadores à volta do Fehér, aos havia uma certa esperança. Eu
Benfica se ele se tinha sentido mal gritos, de mãos na cabeça. Corre- pensei que ele se ia safar, por-
durante o dia ou no balneário. Eles mos para lá e ele estava estendido que houve um momento, ainda
diziam-me que não, que estava Júlio no chão, de lado e sem reação. Os no relvado, em que ele reagiu.
tudo bem com ele antes do jogo. Fernandes médicos estavam a tentar fazer a Infelizmente, não. E soubemos
Jogadores, bombeiros, jornalistas e adeptos relatam na primeira pessoa E quando o jogo acabou – houve
consenso por parte do Vitória e do
Bombeiros
Voluntários de
reanimação logo ali. O que fiz pri-
meiro foi afastar os jogadores que
da notícia no hospital. Claro que
ficámos preocupados com a morte
Benfica ao pedir ao árbitro para estavam à volta dele. Era preciso do Miki. Primeiro, com a família
o que viram e sentiram no momento em que Miki Fehér caiu no relvado,
Guimarães
acabar – fui a correr para o hos- espaço para fazer as manobras de dele. Depois connosco, porque
pital, para saber como é que ele reanimação. Naquele momento, aquilo que lhe aconteceu também
numa noite chuvosa de janeiro de 2004. estava. Nós não sabíamos se tinha
morrido ou não.”
como bombeiro, não podia fazer
muito mais. O médico estava a
nos poderia acontecer. Foi difícil
voltar a treinar e a jogar. Antes,
tomar conta do caso e não podia ainda tivemos o velório no estádio
fazer mais. Para além dos médicos [da Luz] e o funeral na Hungria –
A noite em ele caiu desamparado. Mas, ao se assistiu depois. Lá de cima, da “Ele saiu de ambulância para o
(contada por
momento o futebol não interessa Ouvia-se como se se estivesse a querença] para terminar o jogo
nada. O resultado e o jogo não um metro.” Rocha rapidamente. Quando ele apitou,
interessam nada. Foi um colega Ex-jogador fomos a correr para o balneário,
de profissão que morreu à nos- do Benfica tomar banho à pressa, e seguimos
sa frente. Lembro-me de sair do “Nós estávamos, como sempre, de para o hospital. Não sabíamos se
quem lá esteve)
banco e ir a correr para lá. Toda serviço, entre os dois bancos de ele tinha morrido ou não. Toda a
a gente foi a correr até ele. Come- suplentes. De repente, olhei e vi gente chorava muito, mas ainda
cei a perguntar aos jogadores do os jogadores à volta do Fehér, aos havia uma certa esperança. Eu
Benfica se ele se tinha sentido mal gritos, de mãos na cabeça. Corre- pensei que ele se ia safar, por-
durante o dia ou no balneário. Eles mos para lá e ele estava estendido que houve um momento, ainda
diziam-me que não, que estava Júlio no chão, de lado e sem reação. Os no relvado, em que ele reagiu.
tudo bem com ele antes do jogo. Fernandes médicos estavam a tentar fazer a Infelizmente, não. E soubemos
Jogadores, bombeiros, jornalistas e adeptos relatam na primeira pessoa E quando o jogo acabou – houve
consenso por parte do Vitória e do
Bombeiros
Voluntários de
reanimação logo ali. O que fiz pri-
meiro foi afastar os jogadores que
da notícia no hospital. Claro que
ficámos preocupados com a morte
Benfica ao pedir ao árbitro para estavam à volta dele. Era preciso do Miki. Primeiro, com a família
o que viram e sentiram no momento em que Miki Fehér caiu no relvado,
Guimarães
acabar – fui a correr para o hos- espaço para fazer as manobras de dele. Depois connosco, porque
pital, para saber como é que ele reanimação. Naquele momento, aquilo que lhe aconteceu também
numa noite chuvosa de janeiro de 2004. estava. Nós não sabíamos se tinha
morrido ou não.”
como bombeiro, não podia fazer
muito mais. O médico estava a
nos poderia acontecer. Foi difícil
voltar a treinar e a jogar. Antes,
tomar conta do caso e não podia ainda tivemos o velório no estádio
fazer mais. Para além dos médicos [da Luz] e o funeral na Hungria –
jogar. Houve colegas que logo “Nunca me vou esquecer daquele ceu – sobretudo a um rapaz tão
Pai
nos primeiros treinos depois da dia. Foi chocante para todos nós. novo – foi inacreditável. Nós não
morte dele foram novamente fazer As semanas a seguir custaram-nos nos podemos esquecer nunca que
exames. A morte do Miki fez-nos muito. Mas o grupo uniu-se muito. o futebol é só um jogo. E o que é
repensar tudo.” Mais ainda. Quando o Miki morreu, um jogo comparativamente a uma
estávamos em janeiro e fizemos um vida que se perdeu? Nada.”
Fernando final de época muito bom. Ganhá-
“Depois da narração do jogo fui Aguiar mos a Taça de Portugal por ele. O
em reportagem para a porta do Ex-jogador que aconteceu ao Miki assustou-me. “Eu conhecia-o fora do futebol.
hospital e tive de informar. É algo do Benfica Claro que assustou. Nos treinos, por Quando eu estudava jornalismo
que nunca tinha vivido como pro- exemplo, coloquei muitas vezes os no Porto, ele jogava lá e começou
fissional e espero não voltar a vi- dedos no pulso para tentar perce- a namorar com uma colega minha.
ver. Os dias seguintes não foram ber se estava tudo bem. Nos jogos Lembro-me de ele ir buscá-la à fa-
Fernando fáceis de digerir. Passei a noite não o fazia tanto, porque nos jogos
Frederico
culdade. Como ele jogava no Por-
toda no hospital. E continuei na nem tempo há para pensar nisso. E to, podia ser um tipo distante. Não
Eurico manhã seguinte. Fiquei lá à por- recordo-me de um episódio que até Mendes era. Era muito, muito educado.
Jornalista ta até fisicamente não aguentar me aconteceu fora do treino, pou- E tímido.”
da Antena 1 mais. Sentia quase uma obriga- co depois de o Miki morrer. Estava
Oliveira
ção moral de estar ali, de não me no carro, a conduzir, senti-me mal, Jornalista
da TVI
desligar de uma situação que vivi com falta de ar, com palpitações, e “Eu conhecia bem o Miki. Jogá-
de perto.” tive de encostar à berma e sair. O mos os dois no Porto. Na altura
que lhe aconteceu afetou-me muito ele só arranhava no português,
psicologicamente.” tinha acabado de chegar da Hun-
“Ao descer da bancada para gria, mas não se isolava por cau-
aquela zona onde os jogadores sa disso. Ele convivia connosco. E
passam ao sair dos balneários, O sorriso de Miki almoçávamos muitas vezes. Como
vi-os a correr para o autocarro, jogador, era muito trabalhador,
num choro compulsivo, alguns a com muita garra. Ele era assim
dizerem ‘ele morreu, ele morreu’, “Eu conhecia o Miki desde os tem- porque vinha de um contexto de
Frederico
Laurinda Alves
outros incrédulos, ‘o que vai ser pos em que jogávamos no Braga. vida na Hungria que foi difícil. O
Mendes da nossa vida?’. Não interessa- Eu, o Tiago e ele fizemos uma épo- Romeu Miki queria muito triunfar. Tinha
va mais nada: se o Benfica tinha ca muito boa lá e, depois, reencon- aquela oportunidade de jogar no
Oliveira vencido – e estávamos em janeiro trei-o no Benfica. Éramos os três
Ex-jogador
do Guimarães Porto e queria aproveitar. Como
Jornalista e era importante para o Benfica praticamente da mesma idade. homem, era muito humilde. Sem-
da TVI Ricardo
Escrevo para que outros filhos e outros pais não se
vencer –, se tinha sido o Vitória E sempre fomos muito amigos. pre a sorrir. Eu acredito que se o
a levar os três pontos. Morreu Rocha Quando percebi o que lhe acon- Miki tivesse de escolher um fim,
um futebolista, um ser humano, Ex-jogador teceu, não queria acreditar: não escolheria aquele: caiu a sorrir, a
à nossa frente.” perdi só um colega de balneário, fazer o que mais gostava de fazer,
jogar. Houve colegas que logo “Nunca me vou esquecer daquele ceu – sobretudo a um rapaz tão
Pai
nos primeiros treinos depois da dia. Foi chocante para todos nós. novo – foi inacreditável. Nós não
morte dele foram novamente fazer As semanas a seguir custaram-nos nos podemos esquecer nunca que
exames. A morte do Miki fez-nos muito. Mas o grupo uniu-se muito. o futebol é só um jogo. E o que é
repensar tudo.” Mais ainda. Quando o Miki morreu, um jogo comparativamente a uma
estávamos em janeiro e fizemos um vida que se perdeu? Nada.”
Fernando final de época muito bom. Ganhá-
“Depois da narração do jogo fui Aguiar mos a Taça de Portugal por ele. O
em reportagem para a porta do Ex-jogador que aconteceu ao Miki assustou-me. “Eu conhecia-o fora do futebol.
hospital e tive de informar. É algo do Benfica Claro que assustou. Nos treinos, por Quando eu estudava jornalismo
que nunca tinha vivido como pro- exemplo, coloquei muitas vezes os no Porto, ele jogava lá e começou
fissional e espero não voltar a vi- dedos no pulso para tentar perce- a namorar com uma colega minha.
ver. Os dias seguintes não foram ber se estava tudo bem. Nos jogos Lembro-me de ele ir buscá-la à fa-
Fernando fáceis de digerir. Passei a noite não o fazia tanto, porque nos jogos
Frederico
culdade. Como ele jogava no Por-
toda no hospital. E continuei na nem tempo há para pensar nisso. E to, podia ser um tipo distante. Não
Eurico manhã seguinte. Fiquei lá à por- recordo-me de um episódio que até Mendes era. Era muito, muito educado.
Jornalista ta até fisicamente não aguentar me aconteceu fora do treino, pou- E tímido.”
da Antena 1 mais. Sentia quase uma obriga- co depois de o Miki morrer. Estava
Oliveira
ção moral de estar ali, de não me no carro, a conduzir, senti-me mal, Jornalista
da TVI
desligar de uma situação que vivi com falta de ar, com palpitações, e “Eu conhecia bem o Miki. Jogá-
de perto.” tive de encostar à berma e sair. O mos os dois no Porto. Na altura
que lhe aconteceu afetou-me muito ele só arranhava no português,
psicologicamente.” tinha acabado de chegar da Hun-
“Ao descer da bancada para gria, mas não se isolava por cau-
aquela zona onde os jogadores sa disso. Ele convivia connosco. E
passam ao sair dos balneários, O sorriso de Miki almoçávamos muitas vezes. Como
vi-os a correr para o autocarro, jogador, era muito trabalhador,
num choro compulsivo, alguns a com muita garra. Ele era assim
dizerem ‘ele morreu, ele morreu’, “Eu conhecia o Miki desde os tem- porque vinha de um contexto de
Frederico
Laurinda Alves
outros incrédulos, ‘o que vai ser pos em que jogávamos no Braga. vida na Hungria que foi difícil. O
Mendes da nossa vida?’. Não interessa- Eu, o Tiago e ele fizemos uma épo- Romeu Miki queria muito triunfar. Tinha
va mais nada: se o Benfica tinha ca muito boa lá e, depois, reencon- aquela oportunidade de jogar no
Oliveira vencido – e estávamos em janeiro trei-o no Benfica. Éramos os três
Ex-jogador
do Guimarães Porto e queria aproveitar. Como
Jornalista e era importante para o Benfica praticamente da mesma idade. homem, era muito humilde. Sem-
da TVI Ricardo
Escrevo para que outros filhos e outros pais não se
vencer –, se tinha sido o Vitória E sempre fomos muito amigos. pre a sorrir. Eu acredito que se o
a levar os três pontos. Morreu Rocha Quando percebi o que lhe acon- Miki tivesse de escolher um fim,
um futebolista, um ser humano, Ex-jogador teceu, não queria acreditar: não escolheria aquele: caiu a sorrir, a
à nossa frente.” perdi só um colega de balneário, fazer o que mais gostava de fazer,
Jorge
Bacelar,
o veterinário
da Murtosa
apaixonado
pela fotografia
Fotografia Jorge Bacelar Texto Marta Leite Ferreira
96 JORGE BACELAR 97
Jorge
Bacelar,
o veterinário
da Murtosa
apaixonado
pela fotografia
Fotografia Jorge Bacelar Texto Marta Leite Ferreira
98 JORGE BACELAR JORGE BACELAR 99
O veto ao
Em 1992, o subsecretário de Estado da Cultura afastou
José Saramago de um prémio literário. Magoado, o
Evangelho
escritor deixou Portugal e anos depois viria a ganhar o
Nobel. Sousa Lara diz ter rezado por ele. Esta é a história
do veto a O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
de Saramago,
25 anos depois
Texto Joana Stichini Vilela
Ilustração Nuno Saraiva
– “Quer que lhe conte o que se pas- representa Portugal”, justifica Sousa Lara A 14 de abril, avançará o jornal O Inde- com ele”, conta. “E eu lembro-me de ter
sou? Normalmente, é publicado errado.” ao jornalista do Público. “Não me pedi- pendente, Sousa Lara recebe do Instituto respondido por telefone, ‘Olha, Manuel,
– “Quando quiser. Está a gravar.” ram um julgamento sobre a obra inteira Português do Livro e da Leitura (IPLL) não te agradeço. Já estou...’ E depois disse
António Sousa Lara, 65 anos, senta-se na de Saramago, mas sobre este livro. Ora, um ofício com a sugestão de três nomes um palavrão que equivale a ‘lixado’ mas
primeira fila do pequeno auditório da Aca- há questões pessoais que me modelam, para candidatos ao PLE: Saramago, Pedro começa por ‘f’. Sic.” A administração in-
demia de Letras e Artes, no Monte Estoril, às quais não me oponho por questões de Tamen e Fiama Hasse Pais Brandão. A lista terna, explica, “tinha tudo a ver” com o
instituição a que preside e que funciona consciência pessoal.” fora elaborada depois de consultados a seu perfil. “A minha tese de doutoramento
“por caturreira” há 30 anos. Porte aristo- Saramago escusa-se a comentar. Só sabe Associação Portuguesa de Escritores, o Pen é sobre subversão do Estado.” Quanto à
crático, chapéu de feltro na cabeça, anel da notícia pelo próprio jornalista. “O Tor- Club e o Centro Português de Escritores cultura, ainda mais a “dos vivos”, olhava
com brasão no mindinho, prepara-se para cato [Sepúlveda] ligou-nos para casa e o Literários. Artur Anselmo, então presiden- para ela “como um lúdico”.
recuar a 1992. O ano é o da morte da sua José ao princípio disse: ‘Palavra? Nah, não te do IPLL, informa Lara de que também
carreira política e o de uma viragem radical é possível’. Estava quase divertido”, conta obtiveram o apoio dos Escritores Literários “Parece que há
na vida e obra do Nobel José Saramago. a viúva, Pilar del Río, 67 anos. “[Quando os nomes de Hélia Correia, com A Casa
Provocador experiente, o ex-subsecretário se confirmou] Ficou tão dececionado e tão Eterna, e de Sophia de Mello Breyner, por um problema
de Estado da Cultura levanta o queixo, magoado... Não por causa do prémio. Mas Obra Poética – Volume II. Dois dias depois, com o Saramago”
semicerra os olhos, contempla o horizonte porque o Governo do seu país tinha feito Lara assina um primeiro despacho com a De perfil harmonioso, barba branca bem
e arranca: “Vamos lá ver. Estamos num uma coisa de que ele tinha vergonha. Dizer: sua escolha: Fiama, Tamen e Sophia. A 20 aparada e bigode de pontas arrebitadas,
Governo de Cavaco Silva...” ‘este livro não, porque ofende’.” de abril, Artur Anselmo responde, “pro- Sousa Lara mantém o rosto a que Sarama-
A vida pública desta história começa O Evangelho Segundo Jesus Cristo “era ponho, a título pessoal, o Vale Abraão, de go chamou “suave” numa entrevista de 10
de forma tímida, numa altura em que um romance de grande ousadia”, lembra Agustina Bessa-Luís”. Lara junta o nome de de maio de 1992 ao Público (para depois
ninguém intui nem o impacto nem a lon- o editor de Saramago na Caminho, Ze- Agustina ao despacho. Nem Pedro Santana acrescentar que, quer em Portugal quer
gevidade e muito menos as repercussões ferino Coelho. “O ateísmo militante de Lopes, secretário de Estado da Cultura, em Espanha, “os retratos dos inquisido-
que terá. Nas palavras de Lara, “três meses Saramago já era conhecido. Agora, pegar nem Maria José Nogueira Pinto, secretária res apresentam semelhanças [com Lara],
de charivari”. em Deus, em Cristo, e transformá-los em de Estado Adjunta, estariam a par destas numa espécie de ar de família”). Professor
personagens de romance, ainda por cima movimentações. universitário, o ex-subsecretário de Estado
“Este livro não, um romance negativo, isso foi uma grande Sousa Lara recorda este capítulo de tem jeito para as palavras. Verbo certeiro,
ousadia.” Na sua opinião, Saramago tinha forma um pouco diferente: na sua versão ágil, informal. As narrativas surgem com
porque ofende” noção do efeito que o livro causaria e terá a história começa ainda antes, com a sua frequência em discurso direto, pontuadas
A 25 de abril de 1992, fez há pouco 25 anos, sido essa uma das razões por que o escre- nomeação para subsecretário de Estado por termos coloridos. E também por uma
uma notícia remetida para o terço inferior veu. O autor gostava de provocar o debate. da Cultura. ideia recorrente: a alegada omissão delibe-
de uma das páginas da secção de Cultura Só não contava com a censura. O convite original para secretário de rada por parte dos media de determinados
do jornal Público avança: “Sousa Lara corta No Monte Estoril, Sousa Lara afirma não Estado da Administração Interna fora do aspetos deste episódio.
nome de Saramago”. Antetítulo: “Prémio gostar de polémica. “Mas não fujo”, asse- amigo Dias Loureiro. E Lara aceitara. Só Como quando Artur Anselmo lhe apre-
Literário Europeu” (PLE). Em causa está gura. “E não cedo.” Há 25 anos, declarava: que pouco depois viu o seu passe transferi- sentou a lista e lhe transmitiu que teria de
O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o sexto “A tutela cultural não deve assinar de cruz do para outro Ministério. Melhor dizendo, ser a tutela a indicar os candidatos. “Eu dis-
romance do autor depois de, em 1980, com as sugestões dos seus serviços.” Referia-se secretaria de Estado. “Domingo à noite, se: ‘acho muito mal. Posso estar aqui como
Levantado do Chão, ter saltado das notas com isto ao processo de seleção das obras, liga-me o Dias Loureiro a dizer que o San- gestor e não perceber nada de literatura’. Sic.
de rodapé para um papel de destaque na ou seja à parte inicial desta história, os tana dizia que ficava ofendido, porque eu Este facto é sempre omitido.” Lara continua:
história da literatura portuguesa. “Não bastidores. tinha criado o Instituto de Estudos Políticos “E, depois, quem é que fabricou a shortlist?
100 O EVANGELHO DE SARAMAGO 101
O veto ao
Em 1992, o subsecretário de Estado da Cultura afastou
José Saramago de um prémio literário. Magoado, o
Evangelho
escritor deixou Portugal e anos depois viria a ganhar o
Nobel. Sousa Lara diz ter rezado por ele. Esta é a história
do veto a O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
de Saramago,
25 anos depois
Texto Joana Stichini Vilela
Ilustração Nuno Saraiva
– “Quer que lhe conte o que se pas- representa Portugal”, justifica Sousa Lara A 14 de abril, avançará o jornal O Inde- com ele”, conta. “E eu lembro-me de ter
sou? Normalmente, é publicado errado.” ao jornalista do Público. “Não me pedi- pendente, Sousa Lara recebe do Instituto respondido por telefone, ‘Olha, Manuel,
– “Quando quiser. Está a gravar.” ram um julgamento sobre a obra inteira Português do Livro e da Leitura (IPLL) não te agradeço. Já estou...’ E depois disse
António Sousa Lara, 65 anos, senta-se na de Saramago, mas sobre este livro. Ora, um ofício com a sugestão de três nomes um palavrão que equivale a ‘lixado’ mas
primeira fila do pequeno auditório da Aca- há questões pessoais que me modelam, para candidatos ao PLE: Saramago, Pedro começa por ‘f’. Sic.” A administração in-
demia de Letras e Artes, no Monte Estoril, às quais não me oponho por questões de Tamen e Fiama Hasse Pais Brandão. A lista terna, explica, “tinha tudo a ver” com o
instituição a que preside e que funciona consciência pessoal.” fora elaborada depois de consultados a seu perfil. “A minha tese de doutoramento
“por caturreira” há 30 anos. Porte aristo- Saramago escusa-se a comentar. Só sabe Associação Portuguesa de Escritores, o Pen é sobre subversão do Estado.” Quanto à
crático, chapéu de feltro na cabeça, anel da notícia pelo próprio jornalista. “O Tor- Club e o Centro Português de Escritores cultura, ainda mais a “dos vivos”, olhava
com brasão no mindinho, prepara-se para cato [Sepúlveda] ligou-nos para casa e o Literários. Artur Anselmo, então presiden- para ela “como um lúdico”.
recuar a 1992. O ano é o da morte da sua José ao princípio disse: ‘Palavra? Nah, não te do IPLL, informa Lara de que também
carreira política e o de uma viragem radical é possível’. Estava quase divertido”, conta obtiveram o apoio dos Escritores Literários “Parece que há
na vida e obra do Nobel José Saramago. a viúva, Pilar del Río, 67 anos. “[Quando os nomes de Hélia Correia, com A Casa
Provocador experiente, o ex-subsecretário se confirmou] Ficou tão dececionado e tão Eterna, e de Sophia de Mello Breyner, por um problema
de Estado da Cultura levanta o queixo, magoado... Não por causa do prémio. Mas Obra Poética – Volume II. Dois dias depois, com o Saramago”
semicerra os olhos, contempla o horizonte porque o Governo do seu país tinha feito Lara assina um primeiro despacho com a De perfil harmonioso, barba branca bem
e arranca: “Vamos lá ver. Estamos num uma coisa de que ele tinha vergonha. Dizer: sua escolha: Fiama, Tamen e Sophia. A 20 aparada e bigode de pontas arrebitadas,
Governo de Cavaco Silva...” ‘este livro não, porque ofende’.” de abril, Artur Anselmo responde, “pro- Sousa Lara mantém o rosto a que Sarama-
A vida pública desta história começa O Evangelho Segundo Jesus Cristo “era ponho, a título pessoal, o Vale Abraão, de go chamou “suave” numa entrevista de 10
de forma tímida, numa altura em que um romance de grande ousadia”, lembra Agustina Bessa-Luís”. Lara junta o nome de de maio de 1992 ao Público (para depois
ninguém intui nem o impacto nem a lon- o editor de Saramago na Caminho, Ze- Agustina ao despacho. Nem Pedro Santana acrescentar que, quer em Portugal quer
gevidade e muito menos as repercussões ferino Coelho. “O ateísmo militante de Lopes, secretário de Estado da Cultura, em Espanha, “os retratos dos inquisido-
que terá. Nas palavras de Lara, “três meses Saramago já era conhecido. Agora, pegar nem Maria José Nogueira Pinto, secretária res apresentam semelhanças [com Lara],
de charivari”. em Deus, em Cristo, e transformá-los em de Estado Adjunta, estariam a par destas numa espécie de ar de família”). Professor
personagens de romance, ainda por cima movimentações. universitário, o ex-subsecretário de Estado
“Este livro não, um romance negativo, isso foi uma grande Sousa Lara recorda este capítulo de tem jeito para as palavras. Verbo certeiro,
ousadia.” Na sua opinião, Saramago tinha forma um pouco diferente: na sua versão ágil, informal. As narrativas surgem com
porque ofende” noção do efeito que o livro causaria e terá a história começa ainda antes, com a sua frequência em discurso direto, pontuadas
A 25 de abril de 1992, fez há pouco 25 anos, sido essa uma das razões por que o escre- nomeação para subsecretário de Estado por termos coloridos. E também por uma
uma notícia remetida para o terço inferior veu. O autor gostava de provocar o debate. da Cultura. ideia recorrente: a alegada omissão delibe-
de uma das páginas da secção de Cultura Só não contava com a censura. O convite original para secretário de rada por parte dos media de determinados
do jornal Público avança: “Sousa Lara corta No Monte Estoril, Sousa Lara afirma não Estado da Administração Interna fora do aspetos deste episódio.
nome de Saramago”. Antetítulo: “Prémio gostar de polémica. “Mas não fujo”, asse- amigo Dias Loureiro. E Lara aceitara. Só Como quando Artur Anselmo lhe apre-
Literário Europeu” (PLE). Em causa está gura. “E não cedo.” Há 25 anos, declarava: que pouco depois viu o seu passe transferi- sentou a lista e lhe transmitiu que teria de
O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o sexto “A tutela cultural não deve assinar de cruz do para outro Ministério. Melhor dizendo, ser a tutela a indicar os candidatos. “Eu dis-
romance do autor depois de, em 1980, com as sugestões dos seus serviços.” Referia-se secretaria de Estado. “Domingo à noite, se: ‘acho muito mal. Posso estar aqui como
Levantado do Chão, ter saltado das notas com isto ao processo de seleção das obras, liga-me o Dias Loureiro a dizer que o San- gestor e não perceber nada de literatura’. Sic.
de rodapé para um papel de destaque na ou seja à parte inicial desta história, os tana dizia que ficava ofendido, porque eu Este facto é sempre omitido.” Lara continua:
história da literatura portuguesa. “Não bastidores. tinha criado o Instituto de Estudos Políticos “E, depois, quem é que fabricou a shortlist?
102 O EVANGELHO DE SARAMAGO O EVANGELHO DE SARAMAGO 103
elas incluem-se D. Duarte Pio de Bragan- Saramago diz precisar de tranquilidade. Indignado com a situação, foi falar com
ça, que não presta declarações mas que Já há bastante tempo que o casal procura- o diretor, Jacinto Ferreira. “Eu tinha 18,
horas antes tinha dito à TSF que o livro va uma casa para comprar nos arredores 19 anos”, conta. “Disseram-me: ‘És muito
de Saramago era “uma grande merda” de Lisboa. Mafra, por exemplo, lembra miúdo. Não sabes que há verdades que não
e o presidente da Câmara de Cascais, Zeferino Coelho. Por coincidência, a 1 de se podem dizer?’ Fez-se clique. Olhei para o
Georges Dargent, que fala num “combate maio, uma semana apenas depois de estalar gajo e disse assim: ‘Mas comigo é que não’.”
às forças do mal”. Enviam mensagens de a polémica, vão visitar a irmã de Pilar a Não deixa de ser curioso que o homem
apoio Cavaco Silva, os ministros Couto Lanzarote, em Espanha. “Descobrimos o que aponta um episódio de censura como
dos Santos, João de Deus Pinheiro e Mar- princípio do mundo”, lembra Pilar. “E aí um dos mais transformadores da sua
ques Mendes, bem como os diretores dos fui eu que disse: ‘por que não nos mudamos vida se tenha tornado infame por causa
jornais O Diabo (Vera Lagoa), O Título e para Lanzarote?’ Todos os criadores dizem de uma acusação de censura. Hoje, Sousa
A Zona. A dada altura, um dos membros a dada altura: ‘iria viver para uma ilha de- Lara diz-se “proscrito”: “Escovaram-me
da organização lança o repto: “Tony, que serta’. Pois alguns dizem-no e o fazem-no.” da política.” Ainda assim, voltaria a vetar
Deus te guie”. A notícia cai com estrondo em Portugal: a candidatura. “Não faz sentido nenhum
Mesmo com Sousa Lara fora do caminho, Saramago abandonaria o país na sequência [dizer que censurei o Saramago]”, afirma.
não há maneira de Santana conseguir nova do veto de Sousa Lara. Em entrevista ao “O homem ficou rico à minha custa. E ga-
lista de candidatos. Parte dos jurados vai-se Público, o escritor tenta clarificar: “Há uma nhou o prémio Nobel à minha custa. Eu
revelando indisponível até que o presidente coincidência que eu não busquei.” Pilar co- sou acusado é de ter promovido o senhor
do IPLL, que anunciara a formação do meça por admitir que foi em parte por causa Saramago a prémio Nobel. Tenho qualquer
júri, decide acabar com ele. “A polémi- desta questão que resolveram mudar-se – quota-parte nessa causa.”
ca tinha atingido tal grau de insanidade “foi muito duro para um escritor a polémica Quando, em 2016, Cavaco Silva conde-
e envenenamento que o dr. Óscar Lopes que se montou, ter de responder ao mundo” corou Sousa Lara com a Ordem do Infante
[presidente do júri] diz que não há condi- –, para depois desvalorizar: “Coincidiu.” D. Henrique, destinada a “quem houver
ções políticas, ecológicas, ambientais para prestado serviços relevantes a Portugal,
o júri se reunir”, lembra Artur Anselmo, no país e no estrangeiro”, o colunista João
hoje presidente da Academia das Ciências.
“Ingrato e repugnante” Pereira Coutinho aproveitou para atiçar o
“E a coisa ficou por aí.” Na Fundação Saramago, em Lisboa, a lume: “Se a esquerda fosse verdadeiramente
Na opinião de Artur Anselmo, tudo não “presidenta” – como insiste em formular grata, já teria erguido uma estátua ao ho-
passou de uma “lamentável intromissão da a palavra – limpa distraída um retrato a mem por serviços prestados à causa.” Para
esfera política na esfera cultural. E não teve óleo do escritor com um lenço de papel. provocador, provocador e meio. O gesto
só a ver com Portugal. Teve a ver com todos As obras do Terminal de Cruzeiros, mesmo de Lara foi “pacóvio”, escreveu no Correio
os países que faziam parte da então CEE.” em frente à Casa dos Bicos, enchem tudo ● As vendas do livro da Manhã, e “ridículo” avançou ao Obser-
Este é capaz de ser o único ponto em que de pó. Conversa rodeada de artefactos da vador por email, mas “sem Sousa Lara,
há acordo entre todos os intervenientes: vida e obra do Nobel, incluindo um top dispararam com a polé- jamais Saramago teria optado pelo ‘exí-
ao contrário do previsto no regulamento 10 da Bertrand da década de 1990 em que lio’ em Lanzarote; sem esse ‘exílio’, jamais
do prémio, a decisão não devia ser política apenas dois livros não são dele: Vai Onde mica. Em semanas, ven- Saramago teria sido o escritor ‘maldito’
– embora os dois anteriores governantes te Leva o Coração, em 7º, e Aparição, em (ou ‘perseguido’) que ele passou a usar na
por quem passaram listas da mesma natu- 10º. Há alguma acidez no discurso, mas deu 135 mil exemplares. lapela; e sem o ‘exílio’ e a ‘perseguição’, não
reza, em 1990 e 1991, se tivessem limitado
a dar o seu aval às sugestões das entidades
sobretudo amargura: “Este episódio é in-
grato e repugnante”; “Não significou nada
Contudo, 25 anos depois, haveria Prémio Nobel para ninguém.” Mais:
“a repercussão internacional foi imensa – e é
HENRIQUE CASINHAS consultadas. Quanto a 1992, com o fim do
júri, volta tudo ao início: Tamen, Fiama...
para Saramago”; “’Desilusão’? Não. Para
nos desiludirmos temos de ter estado iludi-
o principal bestseller de justo extrapolar que aumentou a visibilidade
de Saramago.” Como Lara gosta de dizer,
e Saramago. dos”; “Saramago está a anos-de-luz de toda Saramago continua a ser “os argumentos são subjetivos”.
● Em 1992, Sousa Lara não tinha lido O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Hoje, graças aos amigos, tem vários Ao longo destas semanas, José Saramago
desdobra-se em entrevistas e declarações.
esta situação e de toda esta gente. Pensam
que Saramago estava preso a uma decisão Memorial do Convento.
O editor de Saramago acredita que hoje
o Evangelho voltaria a causar alvoroço.
exemplares: “O homem ficou rico à minha custa. E ganhou o prémio Nobel à minha custa. Eu sou acusado A sua casa, um pequeno T1+1 na Rua dos de um Governo que já não existia, que “Para mim, o direito à blasfémia é a me-
Ferreiros à Estrela, em Lisboa, converte- tinha membros presos? Por amor de Deus. um mundo contemporâneo ao serviço do dida da liberdade do pensamento. Mas a
é de ter promovido o senhor Saramago a prémio Nobel. Tenho qualquer quota-parte nessa causa.” -se em central telefónica. “Um inferno”, Saramago tinha seguido navegando pelo lucro e do mercado. Na opinião do autor de opinião dominante lida mal com isto.” Um
resume Pilar del Río. “Não só por causa mundo e os outros continuavam por aí.” Biografia – José Saramago (Guerra & Paz), exemplo recente é o da Bíblia de Frederico
Aquilo era uma lista ‘esquerdosa’.” E ainda: Quatro dias depois, o caso vai parar à ro-ministro devia “ter pedido desculpas Se Sousa Lara começou por agir sem deste caso mas também porque Saramago Seja qual for a interpretação, a verdade é João Marques Lopes, “os efeitos da polémica Lourenço (Quetzal). Traduzida do grego,
“Eu digo ao Anselmo: ‘Com esta porcaria, Assembleia da República durante o debate públicas” ao escritor e que é Cavaco Silva informar ninguém, agora é ele próprio era a pessoa mais conhecida de Portugal, que o Evangelho Segundo Jesus Cristo, que e do veto poderão ter contribuído para o faz opções semânticas que põem em causa
o Saramago não vai, nem por cima do meu parlamentar sobre a Cultura. A intervenção “quem deve ser responsabilizado pelo quem se queixa de ter sido mantido na tirando os futebolistas.” coincide com a mudança para Lanzarote, aprofundamento do pessimismo”, afirma dogmas da Igreja. Lourenço, Prémio Pessoa
cadáver’.” Solução: “‘Nem li o livro da So- de Lara ficará para a história. Se por boas estado novo a que chegou o grotesco e ignorância. A quem? Ao primeiro-ministro. Nos jornais, há sobretudo declarações assinala um ponto de viragem na obra do por email, “mas creio que são secundários 2016, chegou a ser acusado de ignorante.
phia, mas não me interessa – vai esse. Tudo ou más razões, depende da perspetiva. tenebroso processo das candidaturas “O Cavaco apoiou-me sempre”, diz. “Ele é de solidariedade, mas também se desen- escritor. “Ele dizia que até ao Evangelho face às mudanças geopolíticas e ideológi- Mas não por Sousa Lara, ressalve-se. O ex-
o que ela faz é bom’.” O subsecretário de Estado começa por portuguesas”. Já Francisco Sousa Tava- uma pessoa hierática.” Como prova disso, terram acusações de censura. Recorda-se escrevia sobre a estátua”, explica Zeferino cas do ‘mal-chamado’ socialismo real em -subsecretário de Estado da Cultura é fã.
Parêntesis: Se está a perguntar-se se Lara argumentar que o caso não devia ter sido res pede a demissão do subsecretário de depois do veto, Cavaco tê-lo-á convidado o Verão Quente de 1975, altura em que Coelho. “A partir do Evangelho passou a 1989-1991.” Quanto a Lanzarote? “Há quem “Tenho cinco versões da Bíblia na minha
tinha lido o Evangelho Segundo Jesus Cris- tornado público. Depois, alega que “a obra Estado, alegando que este está “agarra- para ir à estreia de “qualquer coisa do o militante comunista esteve à frente do escrever sobre a pedra.” A primeira é a relacione a ‘secagem’ do estilo barroco com mesa de cabeceira. Desde que saiu, que só
to, a resposta é “não”. Ou melhor, “uma ataca o património religioso dos portugue- do à cadeira do poder” e alerta para a La Féria” [Maldita Cocaína]. Lara conta Diário de Notícias: “Pessoalmente, que- superfície; a segunda o seu interior. “Já não a orografia desprovida de vegetação e de leio essa”, conta. “É mais consentânea com
parte”. Porquê? “Porque houve alguém ses. Longe de os unir, divide-os.” repercussão internacional: “Lançou de que recusou dizendo que a sua presença ro servir a construção do socialismo. E o é o homem em determinada circunstância. arvoredo. Acho que pode estar correto.” o que terá sido. O gajo é um erudito. Aquilo
que leu e disse: ‘este gajo é um pulha, já No Público, Torcato Sepúlveda comenta: novo sobre nós os estigmas tradicionais monopolizaria as atenções e neutralizaria DN vai ser um instrumento nas mãos do O que lhe importa é a alma humana no que Pilar concorda: “Talvez a austeridade de dá gosto. Só que tem perigos, rasteiras.”
viste o que ele diz de Deus?’ E fui ler aquele “tal raciocínio evoca, com efeito, o Tribu- da intolerância religiosa e do repúdio da a imagem que o primeiro-ministro queria povo português para a construção dessa ela tem de universal.” Lanzarote [tenha sido uma influência].” Lara diz viver em oração permanente.
bocado. E era ofensivo.” Parêntesis dentro nal do Santo Ofício”. Sucedem-se as acusa- abertura espiritual.” O escritor João de dar, que era a de pessoa atenta à cultura. linha já adotada pelo Conselho Superior Saramago explica esta evolução em 1998, Adaptado ao cinema em 2008 pelo bra- Tem uma fé inabalável, permanente, im-
do parêntesis: hoje, não só já leu como tem ções de censura. A palavra “inquisição” nas Melo sintetiza: “Saramago neste momento “E então não fui. Porque não preciso. Por- de Revolução...” O diretor do Expresso, na Universidade de Turim, numa palestra sileiro Fernando Meirelles, Ensaio Sobre a positiva: “Preenche o oxigénio dos meus
várias edições. Tornou-se uma piada entre suas várias declinações, enunciada pelas somos todos nós.” que se o Cavaco estivesse contra, eu diria José António Saraiva, cria um cenário em mais tarde publicada em livro e intitulada Cegueira é porventura o livro mais impor- dias.” Pela primeira vez, parece ter algum
os amigos que, volta e meia, lhe oferecem mais variadas personalidades literárias e Entretanto, uma sondagem do jornal a mesma coisa. Aqui não há negociação que o PCP subiu ao Governo e Saramago Da Estátua à Pedra (em que afirma ainda tante no percurso internacional de Sara- receio de ser mal interpretado. “Dizer isto
um exemplar. da cultura, propaga-se pelas páginas dos Público indica que 63,3 por cento dos possível. É risco no chão. Ninguém perce- é secretário de Estado da Cultura para e de forma taxativa que o Evangelho Se- mago. A edição americana sai em 1998 e é parece mal.” Da mesma forma, garante não
Lara defende que a lista estava “cozinha- jornais. Promovida a escândalo, a polémica habitantes de Lisboa e Porto acham que beu. Não há negociação possível!” provocar: “Na hipótese de um livro, mesmo gundo Jesus Cristo é não só o seu romance recebida com entusiasmo pela imprensa. guardar rancores. Nem um ao longo da vida.
da” para Saramago fazer parte dela. Insiste internacionaliza-se. Surgem relatos e rea- o Evangelho devia fazer parte da lista de Na sequência da decisão de Santana, notável – mas crítico em relação ao comu- que “gerou mais polémica” mas também “Lembro-me de uma recensão publicada – E quando disse: ‘vou rezar pelo Sara-
que a cultura “é um ninho de vespas da ções nos jornais espanhóis ABC, El País e candidatos ao PLE. O Expresso também o subsecretário de Estado acabaria por nismo –, ser indigitado para um prémio, “a causa de ter mudado a minha residência no Los Angeles Times que o classificava mago’, rezei. Não acho que valha a pena
esquerda”. E que houve “má-fé”. Acabaria El Mundo, nos franceses Libération e Le consulta o cidadão comum e divulga re- pedir a demissão ao primeiro-ministro. Saramago dar-lhe-ia ou não o seu apoio? de Lisboa para Lanzarote”). como um romance sinfónico”, conta Ze- porque ele deve estar no Inferno.
por tomar uma decisão pessoal em nome do Monde, no italiano La Stampa e na Folha sultados que apontam para um equilí- Sem sucesso. Conta que Cavaco lhe res- Muito provavelmente não.” O primeiro romance desta nova fase ferino Coelho. “Isto em agosto, setembro. – Acredita no Inferno, portanto?
Estado. “É a minha maneira de fazer políti- de São Paulo. Até o ministro da Cultura brio maior na sociedade portuguesa: 57 pondeu: “‘Isso não pode ser. Seria uma Ao mesmo tempo, as vendas do roman- chama-se Ensaio Sobre a Cegueira. “Que Em outubro dão-lhe o Prémio Nobel. Pode – Ah, claro. E acredito que está cheio.
ca”, assume sem hesitar. “A minha conceção francês se manifesta. Para Jack Lang, a por cento dos inquiridos está contra a atitude de fraqueza’”. Conclusão: “Estive ce disparam. A 21 de maio, já vai nos 135 eu acho”, prossegue Zeferino Coelho, “e até ter empurrado um bocadinho.” O romance Não se ria.
de democracia – e agora entra outra parte censura de que o “Evangelho” foi alvo é exclusão. lá a ‘abobrar’. Só saí em novembro, quando mil exemplares, só em Portugal. Pouco lho disse várias vezes – ele não concordava aparece em destaque no texto de atribui- – E quando chegar a sua vez?
que ninguém publica – é que a democracia “inaceitável”. o Deus Pinheiro foi à vida. Perguntaram: depois, torna-se um dos mais procurados – que é o melhor romance dele”. ção: “Um dos romances destes últimos anos – Espero passar no exame.
não é o consenso nem a bissetriz. É a direita Entretanto, o eurodeputado socialista “Tony, que Deus ‘Quer ir agora?’ ‘Quero, quero’. Ala!” De na Feira do Livro de Madrid e entra para Entre um e outro livro passam quatro aumenta consideravelmente a estatura lite- Contactados pelo Observador, nem Aní-
contra a esquerda e a esquerda contra a di- João Cravinho tenta levar o caso ao Par- facto, Lara só abandona o Governo a 13 de o top 10 espanhol. Pilar del Río diz des- anos. O interregno é atípico, mas a vida do rária de Saramago. É publicado em 1995 e bal Cavaco Silva nem Pedro Santana Lopes
reita. Tenho uma lógica de luta, de combate, lamento Europeu. A 9 de Maio, o Expresso te guie” novembro de 1992, altura em que o então conhecer quantos livros se venderam ao escritor está cada vez mais cheia. Além de tem como título Ensaio Sobre a Cegueira.” se mostraram disponíveis para comentar
de cruzada, de porrada.” noticia: “O presidente do Parlamento Euro- Por esta altura já Santana Lopes chamou a ministro dos Negócios Estrangeiros tam- todo. Remete para a Caminho, que por que a matéria ficcional que agora o ocupa é este caso. Em 1992, ganharia o Prémio
Santana Lopes só sabe do veto na vés- peu, Egon Klepsch, envia carta a Jacques si o caso, revogou a decisão de Sousa Lara e bém sai, apesar de, entretanto, ter havido sua vez passa a bola para a Porto Editora, de uma dureza inusitada. “A certa altura che- “O Inferno está cheio. Literário Europeu, e os correspondentes
pera da notícia do Público. Sousa Lara Delors [presidente da Comissão Europeia] afastou o subsecretário de Estado. Santana duas outras remodelações, uma em junho que detém atualmente os direitos da obra guei a dizer: ‘não sei se consigo sobreviver 20 mil ecus, o espanhol Manuel Vázquez
argumentaria que se tratava de uma “com- pedindo explicações sobre o afastamento anuncia a criação de novo júri para esco- e outra em agosto. do Nobel, mas declara não poder avançar a este livro.”, contaria ao Expresso em 1995. Não se ria” Montalbán.
petência delegada”. De acordo com O Inde- de Saramago à candidatura ao PLE.” lher nova lista de candidatos. Saramago Novo parêntesis. Em junho, um jantar essa informação. Adianta, porém, que o “Foi como se tivesse dentro de mim uma Uma das histórias que Sousa Lara gosta
pendente, na estreia do filme Aqui D’El Rei, Por cá, Tamen e Fiama recusam a avisa logo que não estará disponível e pede de “homenagem ao prof. doutor Antó- Evangelho continua a vender-se “todas coisa feia, horrível, e tivesse de sacá-la. Mas de contar tem a ver com um momento de Joana Stichini Vilela é jornalista
Maria José Nogueira Pinto terá comentado candidatura ao PLE. Já o poeta David para não ser considerado sequer. Santana nio de Sousa Lara (...) pela coerência e as semanas”, longe, porém, dos números não saiu, está no livro e está dentro de mim.” epifania na sua vida. Antes do 25 de Abril, freelancer e autora de uma trilogia de livros
com o secretário de Estado: “Parece que há Mourão-Ferreira é dos mais vocais. Numa ignora o repto, alegando que essa decisão verticalidade” reunirá 250 pessoas no do principal bestseller de Saramago, Me- Saramago era um pessimista. Para ele, um artigo seu sobre o LSD publicado num sobre a vida em Lisboa no passado: “LX60”,
um problema com o Saramago.” mensagem escrita defende que o primei- cabe ao júri internacional. restaurante Muchaxo, no Guincho. Entre morial do Convento. a irracionalidade estava a tomar conta de jornal monárquico foi censurado pela PIDE. “LX70” e “LX80”.
102 O EVANGELHO DE SARAMAGO O EVANGELHO DE SARAMAGO 103
elas incluem-se D. Duarte Pio de Bragan- Saramago diz precisar de tranquilidade. Indignado com a situação, foi falar com
ça, que não presta declarações mas que Já há bastante tempo que o casal procura- o diretor, Jacinto Ferreira. “Eu tinha 18,
horas antes tinha dito à TSF que o livro va uma casa para comprar nos arredores 19 anos”, conta. “Disseram-me: ‘És muito
de Saramago era “uma grande merda” de Lisboa. Mafra, por exemplo, lembra miúdo. Não sabes que há verdades que não
e o presidente da Câmara de Cascais, Zeferino Coelho. Por coincidência, a 1 de se podem dizer?’ Fez-se clique. Olhei para o
Georges Dargent, que fala num “combate maio, uma semana apenas depois de estalar gajo e disse assim: ‘Mas comigo é que não’.”
às forças do mal”. Enviam mensagens de a polémica, vão visitar a irmã de Pilar a Não deixa de ser curioso que o homem
apoio Cavaco Silva, os ministros Couto Lanzarote, em Espanha. “Descobrimos o que aponta um episódio de censura como
dos Santos, João de Deus Pinheiro e Mar- princípio do mundo”, lembra Pilar. “E aí um dos mais transformadores da sua
ques Mendes, bem como os diretores dos fui eu que disse: ‘por que não nos mudamos vida se tenha tornado infame por causa
jornais O Diabo (Vera Lagoa), O Título e para Lanzarote?’ Todos os criadores dizem de uma acusação de censura. Hoje, Sousa
A Zona. A dada altura, um dos membros a dada altura: ‘iria viver para uma ilha de- Lara diz-se “proscrito”: “Escovaram-me
da organização lança o repto: “Tony, que serta’. Pois alguns dizem-no e o fazem-no.” da política.” Ainda assim, voltaria a vetar
Deus te guie”. A notícia cai com estrondo em Portugal: a candidatura. “Não faz sentido nenhum
Mesmo com Sousa Lara fora do caminho, Saramago abandonaria o país na sequência [dizer que censurei o Saramago]”, afirma.
não há maneira de Santana conseguir nova do veto de Sousa Lara. Em entrevista ao “O homem ficou rico à minha custa. E ga-
lista de candidatos. Parte dos jurados vai-se Público, o escritor tenta clarificar: “Há uma nhou o prémio Nobel à minha custa. Eu
revelando indisponível até que o presidente coincidência que eu não busquei.” Pilar co- sou acusado é de ter promovido o senhor
do IPLL, que anunciara a formação do meça por admitir que foi em parte por causa Saramago a prémio Nobel. Tenho qualquer
júri, decide acabar com ele. “A polémi- desta questão que resolveram mudar-se – quota-parte nessa causa.”
ca tinha atingido tal grau de insanidade “foi muito duro para um escritor a polémica Quando, em 2016, Cavaco Silva conde-
e envenenamento que o dr. Óscar Lopes que se montou, ter de responder ao mundo” corou Sousa Lara com a Ordem do Infante
[presidente do júri] diz que não há condi- –, para depois desvalorizar: “Coincidiu.” D. Henrique, destinada a “quem houver
ções políticas, ecológicas, ambientais para prestado serviços relevantes a Portugal,
o júri se reunir”, lembra Artur Anselmo, no país e no estrangeiro”, o colunista João
hoje presidente da Academia das Ciências.
“Ingrato e repugnante” Pereira Coutinho aproveitou para atiçar o
“E a coisa ficou por aí.” Na Fundação Saramago, em Lisboa, a lume: “Se a esquerda fosse verdadeiramente
Na opinião de Artur Anselmo, tudo não “presidenta” – como insiste em formular grata, já teria erguido uma estátua ao ho-
passou de uma “lamentável intromissão da a palavra – limpa distraída um retrato a mem por serviços prestados à causa.” Para
esfera política na esfera cultural. E não teve óleo do escritor com um lenço de papel. provocador, provocador e meio. O gesto
só a ver com Portugal. Teve a ver com todos As obras do Terminal de Cruzeiros, mesmo de Lara foi “pacóvio”, escreveu no Correio
os países que faziam parte da então CEE.” em frente à Casa dos Bicos, enchem tudo ● As vendas do livro da Manhã, e “ridículo” avançou ao Obser-
Este é capaz de ser o único ponto em que de pó. Conversa rodeada de artefactos da vador por email, mas “sem Sousa Lara,
há acordo entre todos os intervenientes: vida e obra do Nobel, incluindo um top dispararam com a polé- jamais Saramago teria optado pelo ‘exí-
ao contrário do previsto no regulamento 10 da Bertrand da década de 1990 em que lio’ em Lanzarote; sem esse ‘exílio’, jamais
do prémio, a decisão não devia ser política apenas dois livros não são dele: Vai Onde mica. Em semanas, ven- Saramago teria sido o escritor ‘maldito’
– embora os dois anteriores governantes te Leva o Coração, em 7º, e Aparição, em (ou ‘perseguido’) que ele passou a usar na
por quem passaram listas da mesma natu- 10º. Há alguma acidez no discurso, mas deu 135 mil exemplares. lapela; e sem o ‘exílio’ e a ‘perseguição’, não
reza, em 1990 e 1991, se tivessem limitado
a dar o seu aval às sugestões das entidades
sobretudo amargura: “Este episódio é in-
grato e repugnante”; “Não significou nada
Contudo, 25 anos depois, haveria Prémio Nobel para ninguém.” Mais:
“a repercussão internacional foi imensa – e é
HENRIQUE CASINHAS consultadas. Quanto a 1992, com o fim do
júri, volta tudo ao início: Tamen, Fiama...
para Saramago”; “’Desilusão’? Não. Para
nos desiludirmos temos de ter estado iludi-
o principal bestseller de justo extrapolar que aumentou a visibilidade
de Saramago.” Como Lara gosta de dizer,
e Saramago. dos”; “Saramago está a anos-de-luz de toda Saramago continua a ser “os argumentos são subjetivos”.
● Em 1992, Sousa Lara não tinha lido O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Hoje, graças aos amigos, tem vários Ao longo destas semanas, José Saramago
desdobra-se em entrevistas e declarações.
esta situação e de toda esta gente. Pensam
que Saramago estava preso a uma decisão Memorial do Convento.
O editor de Saramago acredita que hoje
o Evangelho voltaria a causar alvoroço.
exemplares: “O homem ficou rico à minha custa. E ganhou o prémio Nobel à minha custa. Eu sou acusado A sua casa, um pequeno T1+1 na Rua dos de um Governo que já não existia, que “Para mim, o direito à blasfémia é a me-
Ferreiros à Estrela, em Lisboa, converte- tinha membros presos? Por amor de Deus. um mundo contemporâneo ao serviço do dida da liberdade do pensamento. Mas a
é de ter promovido o senhor Saramago a prémio Nobel. Tenho qualquer quota-parte nessa causa.” -se em central telefónica. “Um inferno”, Saramago tinha seguido navegando pelo lucro e do mercado. Na opinião do autor de opinião dominante lida mal com isto.” Um
resume Pilar del Río. “Não só por causa mundo e os outros continuavam por aí.” Biografia – José Saramago (Guerra & Paz), exemplo recente é o da Bíblia de Frederico
Aquilo era uma lista ‘esquerdosa’.” E ainda: Quatro dias depois, o caso vai parar à ro-ministro devia “ter pedido desculpas Se Sousa Lara começou por agir sem deste caso mas também porque Saramago Seja qual for a interpretação, a verdade é João Marques Lopes, “os efeitos da polémica Lourenço (Quetzal). Traduzida do grego,
“Eu digo ao Anselmo: ‘Com esta porcaria, Assembleia da República durante o debate públicas” ao escritor e que é Cavaco Silva informar ninguém, agora é ele próprio era a pessoa mais conhecida de Portugal, que o Evangelho Segundo Jesus Cristo, que e do veto poderão ter contribuído para o faz opções semânticas que põem em causa
o Saramago não vai, nem por cima do meu parlamentar sobre a Cultura. A intervenção “quem deve ser responsabilizado pelo quem se queixa de ter sido mantido na tirando os futebolistas.” coincide com a mudança para Lanzarote, aprofundamento do pessimismo”, afirma dogmas da Igreja. Lourenço, Prémio Pessoa
cadáver’.” Solução: “‘Nem li o livro da So- de Lara ficará para a história. Se por boas estado novo a que chegou o grotesco e ignorância. A quem? Ao primeiro-ministro. Nos jornais, há sobretudo declarações assinala um ponto de viragem na obra do por email, “mas creio que são secundários 2016, chegou a ser acusado de ignorante.
phia, mas não me interessa – vai esse. Tudo ou más razões, depende da perspetiva. tenebroso processo das candidaturas “O Cavaco apoiou-me sempre”, diz. “Ele é de solidariedade, mas também se desen- escritor. “Ele dizia que até ao Evangelho face às mudanças geopolíticas e ideológi- Mas não por Sousa Lara, ressalve-se. O ex-
o que ela faz é bom’.” O subsecretário de Estado começa por portuguesas”. Já Francisco Sousa Tava- uma pessoa hierática.” Como prova disso, terram acusações de censura. Recorda-se escrevia sobre a estátua”, explica Zeferino cas do ‘mal-chamado’ socialismo real em -subsecretário de Estado da Cultura é fã.
Parêntesis: Se está a perguntar-se se Lara argumentar que o caso não devia ter sido res pede a demissão do subsecretário de depois do veto, Cavaco tê-lo-á convidado o Verão Quente de 1975, altura em que Coelho. “A partir do Evangelho passou a 1989-1991.” Quanto a Lanzarote? “Há quem “Tenho cinco versões da Bíblia na minha
tinha lido o Evangelho Segundo Jesus Cris- tornado público. Depois, alega que “a obra Estado, alegando que este está “agarra- para ir à estreia de “qualquer coisa do o militante comunista esteve à frente do escrever sobre a pedra.” A primeira é a relacione a ‘secagem’ do estilo barroco com mesa de cabeceira. Desde que saiu, que só
to, a resposta é “não”. Ou melhor, “uma ataca o património religioso dos portugue- do à cadeira do poder” e alerta para a La Féria” [Maldita Cocaína]. Lara conta Diário de Notícias: “Pessoalmente, que- superfície; a segunda o seu interior. “Já não a orografia desprovida de vegetação e de leio essa”, conta. “É mais consentânea com
parte”. Porquê? “Porque houve alguém ses. Longe de os unir, divide-os.” repercussão internacional: “Lançou de que recusou dizendo que a sua presença ro servir a construção do socialismo. E o é o homem em determinada circunstância. arvoredo. Acho que pode estar correto.” o que terá sido. O gajo é um erudito. Aquilo
que leu e disse: ‘este gajo é um pulha, já No Público, Torcato Sepúlveda comenta: novo sobre nós os estigmas tradicionais monopolizaria as atenções e neutralizaria DN vai ser um instrumento nas mãos do O que lhe importa é a alma humana no que Pilar concorda: “Talvez a austeridade de dá gosto. Só que tem perigos, rasteiras.”
viste o que ele diz de Deus?’ E fui ler aquele “tal raciocínio evoca, com efeito, o Tribu- da intolerância religiosa e do repúdio da a imagem que o primeiro-ministro queria povo português para a construção dessa ela tem de universal.” Lanzarote [tenha sido uma influência].” Lara diz viver em oração permanente.
bocado. E era ofensivo.” Parêntesis dentro nal do Santo Ofício”. Sucedem-se as acusa- abertura espiritual.” O escritor João de dar, que era a de pessoa atenta à cultura. linha já adotada pelo Conselho Superior Saramago explica esta evolução em 1998, Adaptado ao cinema em 2008 pelo bra- Tem uma fé inabalável, permanente, im-
do parêntesis: hoje, não só já leu como tem ções de censura. A palavra “inquisição” nas Melo sintetiza: “Saramago neste momento “E então não fui. Porque não preciso. Por- de Revolução...” O diretor do Expresso, na Universidade de Turim, numa palestra sileiro Fernando Meirelles, Ensaio Sobre a positiva: “Preenche o oxigénio dos meus
várias edições. Tornou-se uma piada entre suas várias declinações, enunciada pelas somos todos nós.” que se o Cavaco estivesse contra, eu diria José António Saraiva, cria um cenário em mais tarde publicada em livro e intitulada Cegueira é porventura o livro mais impor- dias.” Pela primeira vez, parece ter algum
os amigos que, volta e meia, lhe oferecem mais variadas personalidades literárias e Entretanto, uma sondagem do jornal a mesma coisa. Aqui não há negociação que o PCP subiu ao Governo e Saramago Da Estátua à Pedra (em que afirma ainda tante no percurso internacional de Sara- receio de ser mal interpretado. “Dizer isto
um exemplar. da cultura, propaga-se pelas páginas dos Público indica que 63,3 por cento dos possível. É risco no chão. Ninguém perce- é secretário de Estado da Cultura para e de forma taxativa que o Evangelho Se- mago. A edição americana sai em 1998 e é parece mal.” Da mesma forma, garante não
Lara defende que a lista estava “cozinha- jornais. Promovida a escândalo, a polémica habitantes de Lisboa e Porto acham que beu. Não há negociação possível!” provocar: “Na hipótese de um livro, mesmo gundo Jesus Cristo é não só o seu romance recebida com entusiasmo pela imprensa. guardar rancores. Nem um ao longo da vida.
da” para Saramago fazer parte dela. Insiste internacionaliza-se. Surgem relatos e rea- o Evangelho devia fazer parte da lista de Na sequência da decisão de Santana, notável – mas crítico em relação ao comu- que “gerou mais polémica” mas também “Lembro-me de uma recensão publicada – E quando disse: ‘vou rezar pelo Sara-
que a cultura “é um ninho de vespas da ções nos jornais espanhóis ABC, El País e candidatos ao PLE. O Expresso também o subsecretário de Estado acabaria por nismo –, ser indigitado para um prémio, “a causa de ter mudado a minha residência no Los Angeles Times que o classificava mago’, rezei. Não acho que valha a pena
esquerda”. E que houve “má-fé”. Acabaria El Mundo, nos franceses Libération e Le consulta o cidadão comum e divulga re- pedir a demissão ao primeiro-ministro. Saramago dar-lhe-ia ou não o seu apoio? de Lisboa para Lanzarote”). como um romance sinfónico”, conta Ze- porque ele deve estar no Inferno.
por tomar uma decisão pessoal em nome do Monde, no italiano La Stampa e na Folha sultados que apontam para um equilí- Sem sucesso. Conta que Cavaco lhe res- Muito provavelmente não.” O primeiro romance desta nova fase ferino Coelho. “Isto em agosto, setembro. – Acredita no Inferno, portanto?
Estado. “É a minha maneira de fazer políti- de São Paulo. Até o ministro da Cultura brio maior na sociedade portuguesa: 57 pondeu: “‘Isso não pode ser. Seria uma Ao mesmo tempo, as vendas do roman- chama-se Ensaio Sobre a Cegueira. “Que Em outubro dão-lhe o Prémio Nobel. Pode – Ah, claro. E acredito que está cheio.
ca”, assume sem hesitar. “A minha conceção francês se manifesta. Para Jack Lang, a por cento dos inquiridos está contra a atitude de fraqueza’”. Conclusão: “Estive ce disparam. A 21 de maio, já vai nos 135 eu acho”, prossegue Zeferino Coelho, “e até ter empurrado um bocadinho.” O romance Não se ria.
de democracia – e agora entra outra parte censura de que o “Evangelho” foi alvo é exclusão. lá a ‘abobrar’. Só saí em novembro, quando mil exemplares, só em Portugal. Pouco lho disse várias vezes – ele não concordava aparece em destaque no texto de atribui- – E quando chegar a sua vez?
que ninguém publica – é que a democracia “inaceitável”. o Deus Pinheiro foi à vida. Perguntaram: depois, torna-se um dos mais procurados – que é o melhor romance dele”. ção: “Um dos romances destes últimos anos – Espero passar no exame.
não é o consenso nem a bissetriz. É a direita Entretanto, o eurodeputado socialista “Tony, que Deus ‘Quer ir agora?’ ‘Quero, quero’. Ala!” De na Feira do Livro de Madrid e entra para Entre um e outro livro passam quatro aumenta consideravelmente a estatura lite- Contactados pelo Observador, nem Aní-
contra a esquerda e a esquerda contra a di- João Cravinho tenta levar o caso ao Par- facto, Lara só abandona o Governo a 13 de o top 10 espanhol. Pilar del Río diz des- anos. O interregno é atípico, mas a vida do rária de Saramago. É publicado em 1995 e bal Cavaco Silva nem Pedro Santana Lopes
reita. Tenho uma lógica de luta, de combate, lamento Europeu. A 9 de Maio, o Expresso te guie” novembro de 1992, altura em que o então conhecer quantos livros se venderam ao escritor está cada vez mais cheia. Além de tem como título Ensaio Sobre a Cegueira.” se mostraram disponíveis para comentar
de cruzada, de porrada.” noticia: “O presidente do Parlamento Euro- Por esta altura já Santana Lopes chamou a ministro dos Negócios Estrangeiros tam- todo. Remete para a Caminho, que por que a matéria ficcional que agora o ocupa é este caso. Em 1992, ganharia o Prémio
Santana Lopes só sabe do veto na vés- peu, Egon Klepsch, envia carta a Jacques si o caso, revogou a decisão de Sousa Lara e bém sai, apesar de, entretanto, ter havido sua vez passa a bola para a Porto Editora, de uma dureza inusitada. “A certa altura che- “O Inferno está cheio. Literário Europeu, e os correspondentes
pera da notícia do Público. Sousa Lara Delors [presidente da Comissão Europeia] afastou o subsecretário de Estado. Santana duas outras remodelações, uma em junho que detém atualmente os direitos da obra guei a dizer: ‘não sei se consigo sobreviver 20 mil ecus, o espanhol Manuel Vázquez
argumentaria que se tratava de uma “com- pedindo explicações sobre o afastamento anuncia a criação de novo júri para esco- e outra em agosto. do Nobel, mas declara não poder avançar a este livro.”, contaria ao Expresso em 1995. Não se ria” Montalbán.
petência delegada”. De acordo com O Inde- de Saramago à candidatura ao PLE.” lher nova lista de candidatos. Saramago Novo parêntesis. Em junho, um jantar essa informação. Adianta, porém, que o “Foi como se tivesse dentro de mim uma Uma das histórias que Sousa Lara gosta
pendente, na estreia do filme Aqui D’El Rei, Por cá, Tamen e Fiama recusam a avisa logo que não estará disponível e pede de “homenagem ao prof. doutor Antó- Evangelho continua a vender-se “todas coisa feia, horrível, e tivesse de sacá-la. Mas de contar tem a ver com um momento de Joana Stichini Vilela é jornalista
Maria José Nogueira Pinto terá comentado candidatura ao PLE. Já o poeta David para não ser considerado sequer. Santana nio de Sousa Lara (...) pela coerência e as semanas”, longe, porém, dos números não saiu, está no livro e está dentro de mim.” epifania na sua vida. Antes do 25 de Abril, freelancer e autora de uma trilogia de livros
com o secretário de Estado: “Parece que há Mourão-Ferreira é dos mais vocais. Numa ignora o repto, alegando que essa decisão verticalidade” reunirá 250 pessoas no do principal bestseller de Saramago, Me- Saramago era um pessimista. Para ele, um artigo seu sobre o LSD publicado num sobre a vida em Lisboa no passado: “LX60”,
um problema com o Saramago.” mensagem escrita defende que o primei- cabe ao júri internacional. restaurante Muchaxo, no Guincho. Entre morial do Convento. a irracionalidade estava a tomar conta de jornal monárquico foi censurado pela PIDE. “LX70” e “LX80”.
“Nunca cantei
104 FEATURE QUIM BARREIROS 105
NICK BOOTHMAN
“Nunca cantei
104 FEATURE QUIM BARREIROS 105
NICK BOOTHMAN
106 QUIM BARREIROS CRÓNICA 107
Não era olhado de lado pelos fadistas? Em 2017 vai fazer 70 anos. Quando é
Optimismos
Ah pois. Naquele tempo havia casas que se imagina a largar a estrada e o
de fado que eram exatamente catedrais acordeão?
do fado. Entrar um acordeonista numa Quando me sentir a mais em cima de um
casa daquelas era um sacrilégio para os palco, podes ter a certeza de que arrumo
antigos e novos
fadistas mais velhos, não é? O tio Alfredo as botas. Agora sinto que ainda sou capaz
Marceneiro era contra a minha presença de fazer um bom espetáculo, com a minha
lá. Dizia-me: “Acordeonista aqui nas casas banda. Vi gente famosa que se andou a
de fados... Eu não gosto muito, mas pronto, arrastar em palco e não quero que isso me
és bom rapaz, toda a gente gosta de ti.” aconteça. Vou saber parar. Acho que nem
a minha família me admite isso.
E ao longo da carreira, foi sentindo
olhares superiores? Quem pensa em Quim Barreiros pensa
Não, não. Participei em muitas caravanas inevitavelmente em festa e alegria...
de artistas portugueses populares, que É que eu não admito tristezas. Na minha
naquele tempo iam ter com as comuni- vida tenho amigos e amigas que a primeira
dades portuguesas para todo o mundo. coisa que me dizem é: “Olha, sabes? Morreu
Acompanhei o Francisco José, Tony de fulano e beltrano, tenho aqui uma dor...” Eu
Matos, Duo Ouro Negro, Trio Odemira, travo logo. Sou uma pessoa positiva. Muitas
Paco Bandeira, eu sei lá. Fazia a minha vezes convidam-se para ir a hospitais, lares
parte e eles faziam a deles. Sempre senti de idosos, para estar um bocadinho com as
RICARDO CASTELO
amizade por parte de todos. O meu tipo de pessoas, e francamente não me sinto bem.
música não tinha nada a ver com o deles, Dou sempre uma desculpa. Agora se me
eu era um acordeonista, um tocador de disseres para irmos a uma maternidade,
Paulo Tunhas
sanfona, um brejeiro. Sempre me dei e dou é o contrário. Gosto dos bebés, da vida!
bem com toda a malta da minha profissão. Gosto de ouvir um bebé a chorar. Quando
● Quim Barreiros é um homem do Norte. Nasceu vou num avião há pessoas que se sentem
O primeiro disco que lançou, em 1971, incomodadas com o choro de um bebé e
era de instrumentais da música tra- em Vila Praia de Âncora e é aí que ainda hoje vive e eu não, isso faz-me feliz. Vivi em Lisboa
faz negócio: tem uma albergaria em frente à praia.
Alguém que se sente fisicamente bem, tende naturalmente
dicional portuguesa. Quando é que num apartamento onde o bebé do andar
entrou no mundo dos trocadilhos de cima chorava toda a noite. Acordava e
brejeiros? brejeirada. Isto é nosso e por isso é que E em relação a outros músicos portu- sentia-me bem, para mim o choro de um
Não era olhado de lado pelos fadistas? Em 2017 vai fazer 70 anos. Quando é
Optimismos
Ah pois. Naquele tempo havia casas que se imagina a largar a estrada e o
de fado que eram exatamente catedrais acordeão?
do fado. Entrar um acordeonista numa Quando me sentir a mais em cima de um
casa daquelas era um sacrilégio para os palco, podes ter a certeza de que arrumo
antigos e novos
fadistas mais velhos, não é? O tio Alfredo as botas. Agora sinto que ainda sou capaz
Marceneiro era contra a minha presença de fazer um bom espetáculo, com a minha
lá. Dizia-me: “Acordeonista aqui nas casas banda. Vi gente famosa que se andou a
de fados... Eu não gosto muito, mas pronto, arrastar em palco e não quero que isso me
és bom rapaz, toda a gente gosta de ti.” aconteça. Vou saber parar. Acho que nem
a minha família me admite isso.
E ao longo da carreira, foi sentindo
olhares superiores? Quem pensa em Quim Barreiros pensa
Não, não. Participei em muitas caravanas inevitavelmente em festa e alegria...
de artistas portugueses populares, que É que eu não admito tristezas. Na minha
naquele tempo iam ter com as comuni- vida tenho amigos e amigas que a primeira
dades portuguesas para todo o mundo. coisa que me dizem é: “Olha, sabes? Morreu
Acompanhei o Francisco José, Tony de fulano e beltrano, tenho aqui uma dor...” Eu
Matos, Duo Ouro Negro, Trio Odemira, travo logo. Sou uma pessoa positiva. Muitas
Paco Bandeira, eu sei lá. Fazia a minha vezes convidam-se para ir a hospitais, lares
parte e eles faziam a deles. Sempre senti de idosos, para estar um bocadinho com as
RICARDO CASTELO
amizade por parte de todos. O meu tipo de pessoas, e francamente não me sinto bem.
música não tinha nada a ver com o deles, Dou sempre uma desculpa. Agora se me
eu era um acordeonista, um tocador de disseres para irmos a uma maternidade,
Paulo Tunhas
sanfona, um brejeiro. Sempre me dei e dou é o contrário. Gosto dos bebés, da vida!
bem com toda a malta da minha profissão. Gosto de ouvir um bebé a chorar. Quando
● Quim Barreiros é um homem do Norte. Nasceu vou num avião há pessoas que se sentem
O primeiro disco que lançou, em 1971, incomodadas com o choro de um bebé e
era de instrumentais da música tra- em Vila Praia de Âncora e é aí que ainda hoje vive e eu não, isso faz-me feliz. Vivi em Lisboa
faz negócio: tem uma albergaria em frente à praia.
Alguém que se sente fisicamente bem, tende naturalmente
dicional portuguesa. Quando é que num apartamento onde o bebé do andar
entrou no mundo dos trocadilhos de cima chorava toda a noite. Acordava e
brejeiros? brejeirada. Isto é nosso e por isso é que E em relação a outros músicos portu- sentia-me bem, para mim o choro de um
Para Mark
Pedro Carolino, autor fugidio Ele é da parte Este benfazejo e anónimo W. T. M. escre-
do século XIX, legou uma única obra à veu, sob o título “An Educational Book”,
posteridade – um Guia de Conversação da Saxónia uma pequena carta para explicar que
Portuguez-Inglez, dado à estampa em 1855. quando passara por Macau dera conta
Bastou-lhe essa obra solitária para obter He is of the de um livrito que era usado na educação
uma fama internacional que dura até hoje, das crianças para aprenderem inglês. Era
e para ter o que nenhum outro escritor saxony side o Guia de Conversação de Carolino, em
Twain, não há
português conseguiu: um prefácio assinado que o autor da carta, transcrevendo al-
por Mark Twain, onde é enaltecido o seu Diálogo 26 gumas passagens, confiava para fazer rir
talento como extraordinário humorista, os leitores do jornal. Tanta razão tinha
ainda que involuntário. Este lago parece-me que, logo nesse ano, saiu a primeira edi-
Guia de Conversação Portuguez-Inglez ção intencionalmente cómica do livro,
não era, sequer, uma obra completamente bem piscoso ao mesmo tempo que, em Portugal, es-
original, mas sim a adaptação de um outra gotavam as edições existentes, expedidas
guia – de português-francês – escrito por That pound it seems misteriosamente para Inglaterra e para os
José da Fonseca. Ora, da mesma manei- Estados Unidos.
inglês como
ra que se diz que Cendrars melhorou a many multiplied Pouco depois, sai a edição americana,
obra de Ferreira de Castro na tradução,
também Pedro Carolino transformou um
of fishes com o famoso prefácio de Mark Twain. É
este que lhe dá o nome por que ficou co-
banal guia de conversação num clássico nhecido – English as she is spoke –, apenas
da literatura humorística. Nada, na capa Qual surrealismo, qual arte Dada, qual uma pálida imitação dos erros verdadeiros,
ou contracapa, faz prever as gargalhadas a ironia pós-moderna! Antes de todos eles, e que lhe tece os mais encomiásticos elo-
que o interior obriga. É que Pedro Carolino com o simples recurso a um dicionário, gios. “Este celebrado livrinho não morrerá
tinha a particularidade de não saber uma Pedro Carolino explorou todo o potencial enquanto a língua inglesa durar”, diz, antes
o de Pedro
palavra de inglês. dos duplos sentidos das palavras, da tra- de o considerar “inalcançável, como as
O livro provocou pérolas como estas: dução literal de expressões idiomáticas, ou perfeições de Shakespeare” e “perfeito”,
● Em 2016, as Edições
das diferentes estruturas de cada língua. de “imortalidade certa”.
Exemplos disso: Desde aí, sucedem-se as edições e os
Serrote lançaram uma estudos – Paul Collins, o bibliófilo, reedi-
Diálogo 16 Diálogo 30 versão fac-similada deste tou o livro há pouco, e no ano passado as
Edições Serrote lançaram em Portugal uma
Para ver a cidade Francisco, que fazes aí? grande clássico do humor versão fac-similada – de uma obra capaz de
levar a língua inglesa às mais inimagináveis
For to see the town What you make hither, involuntário.
Carolino
paragens, como nestes casos:
Para Mark
Pedro Carolino, autor fugidio Ele é da parte Este benfazejo e anónimo W. T. M. escre-
do século XIX, legou uma única obra à veu, sob o título “An Educational Book”,
posteridade – um Guia de Conversação da Saxónia uma pequena carta para explicar que
Portuguez-Inglez, dado à estampa em 1855. quando passara por Macau dera conta
Bastou-lhe essa obra solitária para obter He is of the de um livrito que era usado na educação
uma fama internacional que dura até hoje, das crianças para aprenderem inglês. Era
e para ter o que nenhum outro escritor saxony side o Guia de Conversação de Carolino, em
Twain, não há
português conseguiu: um prefácio assinado que o autor da carta, transcrevendo al-
por Mark Twain, onde é enaltecido o seu Diálogo 26 gumas passagens, confiava para fazer rir
talento como extraordinário humorista, os leitores do jornal. Tanta razão tinha
ainda que involuntário. Este lago parece-me que, logo nesse ano, saiu a primeira edi-
Guia de Conversação Portuguez-Inglez ção intencionalmente cómica do livro,
não era, sequer, uma obra completamente bem piscoso ao mesmo tempo que, em Portugal, es-
original, mas sim a adaptação de um outra gotavam as edições existentes, expedidas
guia – de português-francês – escrito por That pound it seems misteriosamente para Inglaterra e para os
José da Fonseca. Ora, da mesma manei- Estados Unidos.
inglês como
ra que se diz que Cendrars melhorou a many multiplied Pouco depois, sai a edição americana,
obra de Ferreira de Castro na tradução,
também Pedro Carolino transformou um
of fishes com o famoso prefácio de Mark Twain. É
este que lhe dá o nome por que ficou co-
banal guia de conversação num clássico nhecido – English as she is spoke –, apenas
da literatura humorística. Nada, na capa Qual surrealismo, qual arte Dada, qual uma pálida imitação dos erros verdadeiros,
ou contracapa, faz prever as gargalhadas a ironia pós-moderna! Antes de todos eles, e que lhe tece os mais encomiásticos elo-
que o interior obriga. É que Pedro Carolino com o simples recurso a um dicionário, gios. “Este celebrado livrinho não morrerá
tinha a particularidade de não saber uma Pedro Carolino explorou todo o potencial enquanto a língua inglesa durar”, diz, antes
o de Pedro
palavra de inglês. dos duplos sentidos das palavras, da tra- de o considerar “inalcançável, como as
O livro provocou pérolas como estas: dução literal de expressões idiomáticas, ou perfeições de Shakespeare” e “perfeito”,
● Em 2016, as Edições
das diferentes estruturas de cada língua. de “imortalidade certa”.
Exemplos disso: Desde aí, sucedem-se as edições e os
Serrote lançaram uma estudos – Paul Collins, o bibliófilo, reedi-
Diálogo 16 Diálogo 30 versão fac-similada deste tou o livro há pouco, e no ano passado as
Edições Serrote lançaram em Portugal uma
Para ver a cidade Francisco, que fazes aí? grande clássico do humor versão fac-similada – de uma obra capaz de
levar a língua inglesa às mais inimagináveis
For to see the town What you make hither, involuntário.
Carolino
paragens, como nestes casos:
03
PAOLO TERZI
A refeição
Entradas. O primeiro prato não é um
prato, são miniaturas de coisas grandes
e brutas transformadas em pequenos
aparatos de chiqueza. É uma espécie de
boas-vindas, um “preparem-se para algo
completamente diferente”. Fish and chips,
é esta a expressão que o nosso amigo em-
pregado usa para apresentar o que está à
nossa frente. Mas, ao mesmo tempo que
diz isto, ri-se, e revela que há por ali no
meio uma colher de gelado de alcaparra
– nunca tinha visto nenhum, mas fui de
cético a “quem me dera ter uma caixa
disto em casa” em menos de nada. Na
companhia deste regalo foram servidos
uns macarons com coelho e bacalhau e
uma bolacha de parmesão que, no cam-
peonato das bolachas, é do melhor que
já conheci.
01
no ciberespaço, é preciso enviar os dados de mundo, coisa que provavelmente não Mas depois são apenas lentilhas (apesar
um cartão de crédito. Porque quem marca e vai voltar a acontecer. A sério que não do resto que as envolve). E eu fico meio
não aparece leva o devido safanão na conta escolhiam a hipótese mais faustosa, re- desgostoso, porque ainda agora esta lou-
bancária, sem degustar nada. quintada e – obviamente – cara? Pensá- cura começou e já estamos com dúvidas.
A reserva mos cerca de poucos segundos sobre o Será apenas o chef a querer baixar-nos
02
assunto, estávamos há muito decididos, as expectativas de propósito? Diabos te
ainda que, quando a reserva foi feita, a levem, Bottura.
Marcar uma mesa é importante, sobretudo carta fosse outra e os preços também,
quando o restaurante fica uns quantos algumas dezenas de euros abaixo. “Riso levante”. Não é risotto mas é qua-
O restaurante
países ao lado. E é também importan- O problema surgiu com a bebida. Es- se. E só é quase porque não tem queijo,
PAOLO TERZI te para o próprio restaurante, porque a távamos certos de que vinho era a opção ainda que o veludo italiano esteja lá todo.
lista de espera para conseguir um lugar certa, mas a carta parece uma lista telefó- Estou meio confuso e isso é fantástico. Se
mundo e não gostei das lentilhas meses, o site abre o sistema de reservas
para daí a três meses, disponibilizando
marcações para os 60 dias seguintes. Ou
seja, a 1 de dezembro próximo será pos-
depois apanharam um comboio para Mo-
dena – já agora, a distância entre as duas
cidades é de meia hora, talvez menos, e os
comboios funcionam tão bem como todos
uma garrafa, porque o wine pairing – ou
seja, um vinho diferente para cada prato
– acrescentaria mais 17o euros à fatura
de cada um. Entre o tinto e o branco, o
que alguma vez comi, mergulhado em
citrinos danados para nos fazer fechar
um dos olhos num agradável momento
de agonia – mais aquele ceviche de perca
Chama-se Osteria Francescana e fica em Modena, Itália. Em 2016 foi sível reservar lugar (ou vários lugares)
para março e abril. Parece perfeito, mas
os transportes daquela zona de Itália: uma
maravilha, uma verdadeira maravilha.
consenso estava difícil. Vai daí, o simpá-
tico sommellier da Osteria Francescana
pelo meio, rapaziada... Além disso, não
é normal apreciar tanto uma coisa tão
eleito o melhor restaurante do mundo. Tiago Pereira resolveu investir o é horrível e doloroso.
As reservas estão disponíveis a partir
Número 22 da Via Stella, estamos à porta,
tocamos à campainha.
chegou-se à frente e explicou-nos que o
melhor seria optar por um lambrusco
completamente amarela como esta, que é
servida com uma borrifadela de essência
subsídio de férias e marcar mesa. O chef Massimo Bottura não chegou das 09h00, mas se por acaso não conse-
guir aceder ao site durante uns bons 20
Há quase uma dezena de empregados
lado a lado, todos de fato e gravata. Um
da região (Emilia-Romagna). Todas as
razões eram boas: o vinho tinha a quali-
dos tais citrinos que cozinharam aquele
arroz. Que coisa bonita.
minutos é porque está tudo normal e as deles dirige-se a nós: “Tiago Pereira?”. Sim, dade necessária para o caso, ia bem com
a aparecer, mas o tempo (e o dinheiro) não foi dado por mal gasto. marcações estão a acontecer. Provavel-
mente não estão é a acontecer para si. Foi
sou eu, vamos lá. E uma vez lá dentro, é
preciso notar: o restaurante não tem nada
todos os pratos da casa e era acessível,
dentro do género: 30 euros a garrafa. Não
Solha do Mediterrâneo. Depois daquele
fantástico Tributo à Normandia, este é o
Tiago Pereira
exatamente isso que pensei: “Isto não está que mereça destaque nestas linhas. Não é se falou mais no assunto. “Está bom?” segundo grande momento da mesa. Na
a acontecer para mim.” Fui à minha vida, necessariamente bonito nem feio; as mesas Estava ótimo. essência, é solha, aquele peixe achatado
Uuups! Deixei cair a tarte de limão MELHOR RESTAURANTE DO MUNDO 111
03
PAOLO TERZI
A refeição
Entradas. O primeiro prato não é um
prato, são miniaturas de coisas grandes
e brutas transformadas em pequenos
aparatos de chiqueza. É uma espécie de
boas-vindas, um “preparem-se para algo
completamente diferente”. Fish and chips,
é esta a expressão que o nosso amigo em-
pregado usa para apresentar o que está à
nossa frente. Mas, ao mesmo tempo que
diz isto, ri-se, e revela que há por ali no
meio uma colher de gelado de alcaparra
– nunca tinha visto nenhum, mas fui de
cético a “quem me dera ter uma caixa
disto em casa” em menos de nada. Na
companhia deste regalo foram servidos
uns macarons com coelho e bacalhau e
uma bolacha de parmesão que, no cam-
peonato das bolachas, é do melhor que
já conheci.
01
no ciberespaço, é preciso enviar os dados de mundo, coisa que provavelmente não Mas depois são apenas lentilhas (apesar
um cartão de crédito. Porque quem marca e vai voltar a acontecer. A sério que não do resto que as envolve). E eu fico meio
não aparece leva o devido safanão na conta escolhiam a hipótese mais faustosa, re- desgostoso, porque ainda agora esta lou-
bancária, sem degustar nada. quintada e – obviamente – cara? Pensá- cura começou e já estamos com dúvidas.
A reserva mos cerca de poucos segundos sobre o Será apenas o chef a querer baixar-nos
02
assunto, estávamos há muito decididos, as expectativas de propósito? Diabos te
ainda que, quando a reserva foi feita, a levem, Bottura.
Marcar uma mesa é importante, sobretudo carta fosse outra e os preços também,
quando o restaurante fica uns quantos algumas dezenas de euros abaixo. “Riso levante”. Não é risotto mas é qua-
O restaurante
países ao lado. E é também importan- O problema surgiu com a bebida. Es- se. E só é quase porque não tem queijo,
PAOLO TERZI te para o próprio restaurante, porque a távamos certos de que vinho era a opção ainda que o veludo italiano esteja lá todo.
lista de espera para conseguir um lugar certa, mas a carta parece uma lista telefó- Estou meio confuso e isso é fantástico. Se
mundo e não gostei das lentilhas meses, o site abre o sistema de reservas
para daí a três meses, disponibilizando
marcações para os 60 dias seguintes. Ou
seja, a 1 de dezembro próximo será pos-
depois apanharam um comboio para Mo-
dena – já agora, a distância entre as duas
cidades é de meia hora, talvez menos, e os
comboios funcionam tão bem como todos
uma garrafa, porque o wine pairing – ou
seja, um vinho diferente para cada prato
– acrescentaria mais 17o euros à fatura
de cada um. Entre o tinto e o branco, o
que alguma vez comi, mergulhado em
citrinos danados para nos fazer fechar
um dos olhos num agradável momento
de agonia – mais aquele ceviche de perca
Chama-se Osteria Francescana e fica em Modena, Itália. Em 2016 foi sível reservar lugar (ou vários lugares)
para março e abril. Parece perfeito, mas
os transportes daquela zona de Itália: uma
maravilha, uma verdadeira maravilha.
consenso estava difícil. Vai daí, o simpá-
tico sommellier da Osteria Francescana
pelo meio, rapaziada... Além disso, não
é normal apreciar tanto uma coisa tão
eleito o melhor restaurante do mundo. Tiago Pereira resolveu investir o é horrível e doloroso.
As reservas estão disponíveis a partir
Número 22 da Via Stella, estamos à porta,
tocamos à campainha.
chegou-se à frente e explicou-nos que o
melhor seria optar por um lambrusco
completamente amarela como esta, que é
servida com uma borrifadela de essência
subsídio de férias e marcar mesa. O chef Massimo Bottura não chegou das 09h00, mas se por acaso não conse-
guir aceder ao site durante uns bons 20
Há quase uma dezena de empregados
lado a lado, todos de fato e gravata. Um
da região (Emilia-Romagna). Todas as
razões eram boas: o vinho tinha a quali-
dos tais citrinos que cozinharam aquele
arroz. Que coisa bonita.
minutos é porque está tudo normal e as deles dirige-se a nós: “Tiago Pereira?”. Sim, dade necessária para o caso, ia bem com
a aparecer, mas o tempo (e o dinheiro) não foi dado por mal gasto. marcações estão a acontecer. Provavel-
mente não estão é a acontecer para si. Foi
sou eu, vamos lá. E uma vez lá dentro, é
preciso notar: o restaurante não tem nada
todos os pratos da casa e era acessível,
dentro do género: 30 euros a garrafa. Não
Solha do Mediterrâneo. Depois daquele
fantástico Tributo à Normandia, este é o
Tiago Pereira
exatamente isso que pensei: “Isto não está que mereça destaque nestas linhas. Não é se falou mais no assunto. “Está bom?” segundo grande momento da mesa. Na
a acontecer para mim.” Fui à minha vida, necessariamente bonito nem feio; as mesas Estava ótimo. essência, é solha, aquele peixe achatado
112 MELHOR RESTAURANTE DO MUNDO
A crescer
desde maio
GETTY IMAGES / GIUSEPPE CACACE
de 2014 9 524 169 JAN-ABR 2017
04
que nem sempre é tido em boa conta. fazemos aquilo tudo, aqueles pedaços de é uma mistura disso tudo mas com o
Mas é solha feita de três maneiras dife- massa estaladiça, que depois juntamos ao melhor sabor a sobremesa que já se viu.
rentes: no forno, na grelha e enrolada em molho ragù tipicamente bolonhês. Sim- É uma fantástica festa de aniversário a 8 255 429
papel. Como é que se transforma tudo ples mas bom, muito bom. Refazer um acontecer-nos no estômago, um réveillon 2016
isto em algo inesquecível? Assim: junta-se
uma folha de água do mar desidratada e
clássico com as partes que interessam. E
alimentar ainda mais o meu desdém pela
que cabe num prato, como é possível
que estes italianos ainda não se tenham A despedida
braseada. Até porque se já fomos à lua, pobre lasanha. lembrado de vender isto à caixa, de ex-
podemos transformar o sabor de uma portar para todo o mundo, de conquistar Acabou. Não se faz. Passaram quase qua-
grelha de churrasco numa espécie de pa- No jantar de Trimalchione: faisão à o planeta, enfim. Além de tudo isto, é uma tro horas e ninguém deu por nada. Os
pel queimado feito de água salgada que
adoramos comer, certo? Claro que sim.
maneira antiga de Roma. Apesar da
mania de dar a volta aos clássicos, Mas-
simo Bottura também é capaz de não an-
tirada genial da criatividade deste chef
que dificilmente vai conseguir algum dia
sacar esta sobremesa da carta. Funciona
intervalos entre os pratos são precio-
sos, com o tempo ideal para saborear o
anterior e estar pronto para o seguinte.
7:24
Um ceviche de outono em Modena. Lá dar muito para chegar aonde quer, que como a assinatura final da refeição... só Sempre com aquele tipo de serviço que
vêm eles, os nossos amigos empregados de é surpreender. Faisão mas feito segundo até percebermos que ainda não acabou. nos faz sentir os gulosos mais importan- 6 461 663
mesa, sempre aos pares. Desta vez trazem as regras do método sous-vide e com foie Santa mãe. tes do mundo. 2015
umas taças que ameaçam com sopa (a gras pelo meio, endívia cozinhada com E o requinte vem acompanhado de sim-
sério, sopa?), mas afinal não. Castanhas, açúcar e vinagre e uma espécie de batata Segunda sobremesa. Claro que há outro patia. No final da festa fomos à cozinha,
cogumelos porcini e trufas. Tudo corta- frita que de tão fina era quase transparen- doce, um com chocolate, frutos vermelhos conhecemos o sous-chef Kondo Takahiko,
do milimetricamente, tudo em camadas, te. A melhor coisa que comi na Osteria? e peta zetas. Este tipo não se leva a sério o principal responsável pela sobremesa
tudo a fazer sentido. E com uma daque- Nada disso. Melhor do que quase tudo o e nós é que ganhamos com isso. Cacau da tarte que caiu ao chão. Está visivel-
las espumas que os chefs de bom nome que já tinha provado antes de ali chegar? daquele que interessa, amargo como é mente cansado, a preparar um “jantar 5:03
gostam de fazer, porque fica bonito e não Mais do que certo. suposto, mais amoras e outras coisas pe- de grupo para 40 pessoas, o número má-
4:49 4:51 4:54
só, nada acontece por acaso neste restau- quenas da mesma escola, saídas da região ximo que o restaurante recebe”. Gosta
rante. Nada, percebem? Croccantino de foie gras. Era uma vez – que dizem ser terreno fértil para aquele de trabalhar na Osteria e de fazer par
um gelado de amêndoa que na verdade é tipo de produto. Tudo junto aos saltos na criativo como Massimo Bottura: “Ele mo-
Cinco idades de parmiggiano. Se gosto feito de foie gras e que na boca explode língua, pá. Massimo, chega-te aqui ao pé tiva todos, quer que participemos, quer Visitas 4:03
de parmesão? Gosto, pois. Só não sabia numa festa rija de vinagre balsâmico. Mi- de nós, toma lá um abraço. as nossas ideias, por mais estranhas que
o que era parmesão até terem colocado nha gente, foi mesmo isto que aconteceu possam parecer.” Reúne a equipa e faz médias
esta maravilha à minha frente. Cinco e foi um espanto. Melhor: a minha mulher Café (e não só). Um parágrafo só para um sorriso para a fotografia. Fizemos mensais
queijos de anos diferentes e em forma- não gosta de foie gras. Dois destes, só o café? Sim, porque é bom. Imaginemos amigos, é o que parece, e temos ainda fonte: Google
tos distintos, uns mais cremosos, outros para mim. que esta refeição acabava com um café menos vontade de ir embora. Analytics
menos, todos intensos no sabor. Mas in- manhoso ou queimado? Não ia dar. Da Ganhei um enorme desvio no orçamento
tensos de tal forma que – juro – ainda Salada César a florescer. Uma alface é mesma maneira que não ia dar se me mas nunca mais as minhas refeições serão 2:23
tenho o sabor de dois deles mesmo aqui. uma alface, menos esta que parece uma apresentassem a bica sozinha, sem nada iguais, o que tem tanto de bom como de
E porquê fazer um prato só com parme- coisa vinda da terra dos elfos, recheada a acrescentar. O amigo Bottura sabe que mau. Vou continuar a ser pouco exigen- 2 566 738
são? Porque Massimo sabe o que é bom, com flores e ervas aromáticas e um molho isso não se faz e, vai daí, chega-se à fren- te, óbvio que vou, só que agora sei que MAI-DEZ 2014
Massimo pode. especial que vem ao mundo quando corta- te com uma pequena travessa com três o mundo tem muito mais para oferecer Tempo médio
mos a obra de arte ao meio. E neste caso, docinhos em miniatura que devem ser do que o prato do dia ou o panado do dia
Parte crocante da lasanha. Não sou custa muito usar faca, dá mais vontade comidos numa determinada ordem, logo anterior (adoro panados). O melhor mesmo de visita 1:07
fã de lasanha, que é só uma espécie de de perguntar aos senhores se podemos seguidos do café. Não me lembro exata- é encarar a dura realidade de frente: será dos jornais
JORNAL DE NOTÍCIAS
DIÁRIO DE NOTÍCIAS
empadão mas em pior. É um prato pregui- levar a alface para casa. mente dos primeiros dois; lembro-me sempre muito difícil voltar a ver felicidade
CORREIO DA MANHÃ
çoso, “vamos lá juntar massa e carne mas muito bem do terceiro porque parecia como aquela que encontrei no número 22 generalistas
agora às camadas, vai ser divertido”. Não Uuups! Deixei cair a tarte de limão. É uma uva mas era uma pequena bomba da Via Stella, em Modena. em minutos,
média de 3 meses
OBSERVADOR
é. A boa notícia é que isto de lasanha só fácil explicar o que aconteceu com esta de cereja, que se desfaz assim que fe-
tem o nome. O prato é servido ao mesmo sobremesa: aconteceu que é o melhor chamos a boca e envia de imediato uma Tiago Pereira, quando não está a comer FEV/MAR/ABR 2017
EXPRESSO
JORNAL I
PÚBLICO
tempo que ouvimos a mensagem “partam doce do mundo. Limpinho limpinho. Não mensagem ao cérebro que diz “miúdo, em restaurantes de luxo italianos, é editor fonte: Similarweb
a massa com as mãos”. E partimos. Des- é bem uma tarte, não é bem uma mousse, que bom é estar vivo”. da secção de Cultura do Observador.
SOL
112 MELHOR RESTAURANTE DO MUNDO
A crescer
desde maio
GETTY IMAGES / GIUSEPPE CACACE
de 2014 9 524 169 JAN-ABR 2017
04
que nem sempre é tido em boa conta. fazemos aquilo tudo, aqueles pedaços de é uma mistura disso tudo mas com o
Mas é solha feita de três maneiras dife- massa estaladiça, que depois juntamos ao melhor sabor a sobremesa que já se viu.
rentes: no forno, na grelha e enrolada em molho ragù tipicamente bolonhês. Sim- É uma fantástica festa de aniversário a 8 255 429
papel. Como é que se transforma tudo ples mas bom, muito bom. Refazer um acontecer-nos no estômago, um réveillon 2016
isto em algo inesquecível? Assim: junta-se
uma folha de água do mar desidratada e
clássico com as partes que interessam. E
alimentar ainda mais o meu desdém pela
que cabe num prato, como é possível
que estes italianos ainda não se tenham A despedida
braseada. Até porque se já fomos à lua, pobre lasanha. lembrado de vender isto à caixa, de ex-
podemos transformar o sabor de uma portar para todo o mundo, de conquistar Acabou. Não se faz. Passaram quase qua-
grelha de churrasco numa espécie de pa- No jantar de Trimalchione: faisão à o planeta, enfim. Além de tudo isto, é uma tro horas e ninguém deu por nada. Os
pel queimado feito de água salgada que
adoramos comer, certo? Claro que sim.
maneira antiga de Roma. Apesar da
mania de dar a volta aos clássicos, Mas-
simo Bottura também é capaz de não an-
tirada genial da criatividade deste chef
que dificilmente vai conseguir algum dia
sacar esta sobremesa da carta. Funciona
intervalos entre os pratos são precio-
sos, com o tempo ideal para saborear o
anterior e estar pronto para o seguinte.
7:24
Um ceviche de outono em Modena. Lá dar muito para chegar aonde quer, que como a assinatura final da refeição... só Sempre com aquele tipo de serviço que
vêm eles, os nossos amigos empregados de é surpreender. Faisão mas feito segundo até percebermos que ainda não acabou. nos faz sentir os gulosos mais importan- 6 461 663
mesa, sempre aos pares. Desta vez trazem as regras do método sous-vide e com foie Santa mãe. tes do mundo. 2015
umas taças que ameaçam com sopa (a gras pelo meio, endívia cozinhada com E o requinte vem acompanhado de sim-
sério, sopa?), mas afinal não. Castanhas, açúcar e vinagre e uma espécie de batata Segunda sobremesa. Claro que há outro patia. No final da festa fomos à cozinha,
cogumelos porcini e trufas. Tudo corta- frita que de tão fina era quase transparen- doce, um com chocolate, frutos vermelhos conhecemos o sous-chef Kondo Takahiko,
do milimetricamente, tudo em camadas, te. A melhor coisa que comi na Osteria? e peta zetas. Este tipo não se leva a sério o principal responsável pela sobremesa
tudo a fazer sentido. E com uma daque- Nada disso. Melhor do que quase tudo o e nós é que ganhamos com isso. Cacau da tarte que caiu ao chão. Está visivel-
las espumas que os chefs de bom nome que já tinha provado antes de ali chegar? daquele que interessa, amargo como é mente cansado, a preparar um “jantar 5:03
gostam de fazer, porque fica bonito e não Mais do que certo. suposto, mais amoras e outras coisas pe- de grupo para 40 pessoas, o número má-
4:49 4:51 4:54
só, nada acontece por acaso neste restau- quenas da mesma escola, saídas da região ximo que o restaurante recebe”. Gosta
rante. Nada, percebem? Croccantino de foie gras. Era uma vez – que dizem ser terreno fértil para aquele de trabalhar na Osteria e de fazer par
um gelado de amêndoa que na verdade é tipo de produto. Tudo junto aos saltos na criativo como Massimo Bottura: “Ele mo-
Cinco idades de parmiggiano. Se gosto feito de foie gras e que na boca explode língua, pá. Massimo, chega-te aqui ao pé tiva todos, quer que participemos, quer Visitas 4:03
de parmesão? Gosto, pois. Só não sabia numa festa rija de vinagre balsâmico. Mi- de nós, toma lá um abraço. as nossas ideias, por mais estranhas que
o que era parmesão até terem colocado nha gente, foi mesmo isto que aconteceu possam parecer.” Reúne a equipa e faz médias
esta maravilha à minha frente. Cinco e foi um espanto. Melhor: a minha mulher Café (e não só). Um parágrafo só para um sorriso para a fotografia. Fizemos mensais
queijos de anos diferentes e em forma- não gosta de foie gras. Dois destes, só o café? Sim, porque é bom. Imaginemos amigos, é o que parece, e temos ainda fonte: Google
tos distintos, uns mais cremosos, outros para mim. que esta refeição acabava com um café menos vontade de ir embora. Analytics
menos, todos intensos no sabor. Mas in- manhoso ou queimado? Não ia dar. Da Ganhei um enorme desvio no orçamento
tensos de tal forma que – juro – ainda Salada César a florescer. Uma alface é mesma maneira que não ia dar se me mas nunca mais as minhas refeições serão 2:23
tenho o sabor de dois deles mesmo aqui. uma alface, menos esta que parece uma apresentassem a bica sozinha, sem nada iguais, o que tem tanto de bom como de
E porquê fazer um prato só com parme- coisa vinda da terra dos elfos, recheada a acrescentar. O amigo Bottura sabe que mau. Vou continuar a ser pouco exigen- 2 566 738
são? Porque Massimo sabe o que é bom, com flores e ervas aromáticas e um molho isso não se faz e, vai daí, chega-se à fren- te, óbvio que vou, só que agora sei que MAI-DEZ 2014
Massimo pode. especial que vem ao mundo quando corta- te com uma pequena travessa com três o mundo tem muito mais para oferecer Tempo médio
mos a obra de arte ao meio. E neste caso, docinhos em miniatura que devem ser do que o prato do dia ou o panado do dia
Parte crocante da lasanha. Não sou custa muito usar faca, dá mais vontade comidos numa determinada ordem, logo anterior (adoro panados). O melhor mesmo de visita 1:07
fã de lasanha, que é só uma espécie de de perguntar aos senhores se podemos seguidos do café. Não me lembro exata- é encarar a dura realidade de frente: será dos jornais
JORNAL DE NOTÍCIAS
DIÁRIO DE NOTÍCIAS
empadão mas em pior. É um prato pregui- levar a alface para casa. mente dos primeiros dois; lembro-me sempre muito difícil voltar a ver felicidade
CORREIO DA MANHÃ
çoso, “vamos lá juntar massa e carne mas muito bem do terceiro porque parecia como aquela que encontrei no número 22 generalistas
agora às camadas, vai ser divertido”. Não Uuups! Deixei cair a tarte de limão. É uma uva mas era uma pequena bomba da Via Stella, em Modena. em minutos,
média de 3 meses
OBSERVADOR
é. A boa notícia é que isto de lasanha só fácil explicar o que aconteceu com esta de cereja, que se desfaz assim que fe-
tem o nome. O prato é servido ao mesmo sobremesa: aconteceu que é o melhor chamos a boca e envia de imediato uma Tiago Pereira, quando não está a comer FEV/MAR/ABR 2017
EXPRESSO
JORNAL I
PÚBLICO
tempo que ouvimos a mensagem “partam doce do mundo. Limpinho limpinho. Não mensagem ao cérebro que diz “miúdo, em restaurantes de luxo italianos, é editor fonte: Similarweb
a massa com as mãos”. E partimos. Des- é bem uma tarte, não é bem uma mousse, que bom é estar vivo”. da secção de Cultura do Observador.
SOL
114 10 NOVOS RESTAURANTES 115
meter o garfo
40€ 50€
do Ano de 2014 faz bem o que
se quiser fazer boa figura entre os seus amigos. Jul 2016
Largo do Serralho, 4,
muitos tentam noutras paragens
com menos talento e sucesso: uma
Jul 2016
Macdonald Monchique
no último verão. Louis Anjos, o
chefe executivo, regressou a uma
região que conhece como poucos
Tiago Pais Guimarães
253 534 022
abordagem moderna ao receituá-
rio nacional, com especial foco no
Resort & Spa. Lugar
do Montinho, Monchique
para assinar a carta deste que é o
principal restaurante do Macdo-
Terça a sábado das 12h30 que é típico do Minho e arredores. 282 240 130 nald Monchique Resort & Spa. E
às 15h30 e das 19h30 às 23h. As propostas vão mudando con- Terça-feira a sábado, fê-lo focando-se no melhor que o
Segunda das 19h30 às 23h. forme as estações e os produtos das 19h às 22h. Algarve tem, tanto de origem oce-
disponíveis. E alguns deles não ânica como serrana: do marisco
podiam ser mais locais: vêm da pe- ao javali, das papas de milho ao
01
quena horta plantada no terraço. peixe fresco.
Ainda antes de abrir o seu pri-
meiro restaurante em Lisboa – o
Talho, em 2013 –, Kiko Martins fez
uma viagem pelo mundo inteiro
durante 14 meses seguidos. Muito
O Asiático do que viu e provou na Ásia nessa
ocasião serviu-lhe de inspiração
Onde fica ao que dá a ver e provar neste O
Lisboa Asiático. A ementa do restauran-
te é, como o próprio gosta de a
HUMBERTO SANTOS DR
Preço médio
35€ definir, uma viagem do Nepal ao
Quando abriu Japão pelos seus olhos. Ou seja,
Out 2016 se cada prato traz produtos e sa-
bores típicos daquelas paragens,
Rua da Rosa, 317 também traz twists criativos de
(Príncipe Real), Lisboa sua autoria, como no caso do
211 319 369 tártaro de novilho coreano com
Todos os dias das 12h30 espuma de ostras ou de uma so-
às 17h e das 19h30 às 00h. bremesa de caril que já ganhou
fama (merecida) na cidade. FRANCISCO RIVOTTI
02 03 JOÃO GIGANTE DR
06 07
Beco Cabaret Euskalduna
Gourmet Studio
Restaurante Origens
Lisboa Porto
150€ 100€
Mar 2017 Dez 2016
Pedro Limão Évora
Rua Nova da Trindade, 18 Rua de Santo Ildefonso, 404 25€
(Chiado), Lisboa (Santo Ildefonso), Porto Porto Jun 2016
210 939 234 935 335 301 30€
Quinta, domingo e segunda: Quarta a sábado, Abr 2017 Rua dos Burgos, 10, Évora
restaurante das 20h30 às 22h45; das 19h às 23h. 964 220 790
Rua Morgado de Mateus, 49 Terça a sábado, das 12h30
bar das 23h à 01h.
(São Lázaro), Porto às 15h e das 19h30 às 22h30.
Sexta e sábado: restaurante
966 454 599
das 19h30 às 21h45 e das
Segunda-feira das 11h às 18h.
22h à 00h; bar das 00h às 02h.
Terça a sexta das 11h às 23h;
sábado das 18h às 23h.
dos chefes de cozinha deixou de Não será despropositado escrever A ocasião pode fazer o ladrão mas Em Évora, há destinos que se man-
ser “produto” e passou a ser “ex- que não há outro restaurante as- também o restaurante. E depressa, têm incontornáveis, casos do Fia-
periência”. Mas se a maioria tenta sim em Portugal. Não há no Porto, como o prova a nova casa, homó- lho, da Tasquinha do Oliveira ou da
provocar essa experiência pela re- não há em Lisboa, não há em lado nima, de Pedro Limão. A saída de Taberna Típica Quarta-Feira. Tal-
feição, José Avillez foi mais longe nenhum. Vasco, que trocando os um projeto no Algarve fê-lo voltar vez daqui a uns anos se possa juntar
e decidiu abrir um cabaré gastro- vês pelos bês, é Basco, e que no ao Porto, a sua cidade adotiva – é o Origens a esta lista. O pequeno
nómico dentro do seu Bairro – ou- País Basco – onde viveu e traba- natural de Viana do Castelo – e em restaurante do chefe Gonçalo
tra das novidades de 2016. O chefe lhou três anos – é Euskalduna, é apenas quatro meses montar um Queiroz, que fez parte da carreira
do Belcanto tem tradição familiar um chefe talentoso. Mas pôs esse restaurante de raiz. Montar, neste na cidade alentejana antes de se
na matéria: o trisavô, José Ereira, talento, primeiro, ao serviço do caso, não é figura de estilo, antes lançar a solo, é um bom exemplo de
foi proprietário do mítico clube frango, num projeto, o Baixópito, consequência da filosofia faça você como não é preciso complicar para
Maxim’s no Palácio Foz. Aqui, há que lhe permitiu ir desenvolvendo mesmo presente das mesas aos ser bem-sucedido. Basta deixar que
atrações musicais no palco e al- o conceito do Euskalduna nalguns quadros, alguns pintados por Cá- os bons produtos, muitos deles lo-
guns dos bestsellers de Avillez jantares privados. Quando final- tia Morais, a mulher do chefe, que cais, falem por si, respeitando-os.
sobre a mesa, com reinvenções à mente avançou para o seu estúdio também assegura as operações da E Gonçalo respeita-os, numa cozi-
mistura, caso da galinha dos ovos de alta cozinha fê-lo em grande: é sala. O trabalho criativo estende-se nha à vista dos clientes, recriando
de prata ou do carabineiro com um espaço desenhado a preceito a um menu onde já se serviram umas receitas e recuperando ou-
cinzas de alecrim, com apoio de onde 16 felizardos podem experi- coisas tão inusitadas como açorda tras, do polvo ao borrego, promo-
um bar competentíssimo, com mentar as suas criações em menus de cogumelos shitake ou gema vendo, pelo caminho, harmonia
cocktails de assinatura. BRUNO CALADO DR
de degustação cheios de rasgo. curada com presunto triturado. SARA OTTO COELHO
constante com os vinhos da região. DR
114 10 NOVOS RESTAURANTES 115
meter o garfo
40€ 50€
do Ano de 2014 faz bem o que
se quiser fazer boa figura entre os seus amigos. Jul 2016
Largo do Serralho, 4,
muitos tentam noutras paragens
com menos talento e sucesso: uma
Jul 2016
Macdonald Monchique
no último verão. Louis Anjos, o
chefe executivo, regressou a uma
região que conhece como poucos
Tiago Pais Guimarães
253 534 022
abordagem moderna ao receituá-
rio nacional, com especial foco no
Resort & Spa. Lugar
do Montinho, Monchique
para assinar a carta deste que é o
principal restaurante do Macdo-
Terça a sábado das 12h30 que é típico do Minho e arredores. 282 240 130 nald Monchique Resort & Spa. E
às 15h30 e das 19h30 às 23h. As propostas vão mudando con- Terça-feira a sábado, fê-lo focando-se no melhor que o
Segunda das 19h30 às 23h. forme as estações e os produtos das 19h às 22h. Algarve tem, tanto de origem oce-
disponíveis. E alguns deles não ânica como serrana: do marisco
podiam ser mais locais: vêm da pe- ao javali, das papas de milho ao
01
quena horta plantada no terraço. peixe fresco.
Ainda antes de abrir o seu pri-
meiro restaurante em Lisboa – o
Talho, em 2013 –, Kiko Martins fez
uma viagem pelo mundo inteiro
durante 14 meses seguidos. Muito
O Asiático do que viu e provou na Ásia nessa
ocasião serviu-lhe de inspiração
Onde fica ao que dá a ver e provar neste O
Lisboa Asiático. A ementa do restauran-
te é, como o próprio gosta de a
HUMBERTO SANTOS DR
Preço médio
35€ definir, uma viagem do Nepal ao
Quando abriu Japão pelos seus olhos. Ou seja,
Out 2016 se cada prato traz produtos e sa-
bores típicos daquelas paragens,
Rua da Rosa, 317 também traz twists criativos de
(Príncipe Real), Lisboa sua autoria, como no caso do
211 319 369 tártaro de novilho coreano com
Todos os dias das 12h30 espuma de ostras ou de uma so-
às 17h e das 19h30 às 00h. bremesa de caril que já ganhou
fama (merecida) na cidade. FRANCISCO RIVOTTI
02 03 JOÃO GIGANTE DR
06 07
Beco Cabaret Euskalduna
Gourmet Studio
Restaurante Origens
Lisboa Porto
150€ 100€
Mar 2017 Dez 2016
Pedro Limão Évora
Rua Nova da Trindade, 18 Rua de Santo Ildefonso, 404 25€
(Chiado), Lisboa (Santo Ildefonso), Porto Porto Jun 2016
210 939 234 935 335 301 30€
Quinta, domingo e segunda: Quarta a sábado, Abr 2017 Rua dos Burgos, 10, Évora
restaurante das 20h30 às 22h45; das 19h às 23h. 964 220 790
Rua Morgado de Mateus, 49 Terça a sábado, das 12h30
bar das 23h à 01h.
(São Lázaro), Porto às 15h e das 19h30 às 22h30.
Sexta e sábado: restaurante
966 454 599
das 19h30 às 21h45 e das
Segunda-feira das 11h às 18h.
22h à 00h; bar das 00h às 02h.
Terça a sexta das 11h às 23h;
sábado das 18h às 23h.
dos chefes de cozinha deixou de Não será despropositado escrever A ocasião pode fazer o ladrão mas Em Évora, há destinos que se man-
ser “produto” e passou a ser “ex- que não há outro restaurante as- também o restaurante. E depressa, têm incontornáveis, casos do Fia-
periência”. Mas se a maioria tenta sim em Portugal. Não há no Porto, como o prova a nova casa, homó- lho, da Tasquinha do Oliveira ou da
provocar essa experiência pela re- não há em Lisboa, não há em lado nima, de Pedro Limão. A saída de Taberna Típica Quarta-Feira. Tal-
feição, José Avillez foi mais longe nenhum. Vasco, que trocando os um projeto no Algarve fê-lo voltar vez daqui a uns anos se possa juntar
e decidiu abrir um cabaré gastro- vês pelos bês, é Basco, e que no ao Porto, a sua cidade adotiva – é o Origens a esta lista. O pequeno
nómico dentro do seu Bairro – ou- País Basco – onde viveu e traba- natural de Viana do Castelo – e em restaurante do chefe Gonçalo
tra das novidades de 2016. O chefe lhou três anos – é Euskalduna, é apenas quatro meses montar um Queiroz, que fez parte da carreira
do Belcanto tem tradição familiar um chefe talentoso. Mas pôs esse restaurante de raiz. Montar, neste na cidade alentejana antes de se
na matéria: o trisavô, José Ereira, talento, primeiro, ao serviço do caso, não é figura de estilo, antes lançar a solo, é um bom exemplo de
foi proprietário do mítico clube frango, num projeto, o Baixópito, consequência da filosofia faça você como não é preciso complicar para
Maxim’s no Palácio Foz. Aqui, há que lhe permitiu ir desenvolvendo mesmo presente das mesas aos ser bem-sucedido. Basta deixar que
atrações musicais no palco e al- o conceito do Euskalduna nalguns quadros, alguns pintados por Cá- os bons produtos, muitos deles lo-
guns dos bestsellers de Avillez jantares privados. Quando final- tia Morais, a mulher do chefe, que cais, falem por si, respeitando-os.
sobre a mesa, com reinvenções à mente avançou para o seu estúdio também assegura as operações da E Gonçalo respeita-os, numa cozi-
mistura, caso da galinha dos ovos de alta cozinha fê-lo em grande: é sala. O trabalho criativo estende-se nha à vista dos clientes, recriando
de prata ou do carabineiro com um espaço desenhado a preceito a um menu onde já se serviram umas receitas e recuperando ou-
cinzas de alecrim, com apoio de onde 16 felizardos podem experi- coisas tão inusitadas como açorda tras, do polvo ao borrego, promo-
um bar competentíssimo, com mentar as suas criações em menus de cogumelos shitake ou gema vendo, pelo caminho, harmonia
cocktails de assinatura. BRUNO CALADO DR
de degustação cheios de rasgo. curada com presunto triturado. SARA OTTO COELHO
constante com os vinhos da região. DR
116 10 NOVOS RESTAURANTES 117
08 100% português
Henrique Sá Pessoa e o sócio Rui
Sanches decidiram, no mais re-
cente espaço do chefe, casar tapas
e petiscos pondo em causa a ve-
lha máxima que assegura que do À pergunta “que tal está a criatividade nacional?” não se pode responder com
Tapisco lado de lá da fronteira nem bons
ventos, nem bons casamentos. “É
cozinha ibérica. Metade da carta é
a nacional expressão “vai-se andando”. A rubrica “100% português” nasceu
Lisboa
25€
Fev 2017
portuguesa, metade é espanhola”,
assume Sá Pessoa, que conta com
para provar isso mesmo e aqui estão seis marcas que mostram essa saúde toda
Rua Dom Pedro V, 81
uma subchefe experimentada na
matéria: Joana Duarte, que em
com malas, almofadas, calças de ganga, sapatos, fatos de banho e bancos.
Ana Dias Ferreira
(Príncipe Real), Lisboa Barcelona passou pelo Moo, dos
213 420 681 irmãos Roca, e pelo Tapas 24, de
Todos os dias, das 12h às 00h. Carles Abellan. Assim, o bacalhau
tanto é à Brás como em esqueixa-
da, uma salada catalã e o choco
tanto é frito como a sua tinta dá
cor à paella. Para matar a sede,
há vermutes. À espanhola.
09
Oficina
Porto
40€
Set 2016
10
O Leopold é um restaurante novo
sem ser, propriamente, um novo
restaurante. Nascido em 2014,
numa antiga padaria pelas mãos
de Tiago Feio e Ana Cachaço – ma-
Leopold rido e mulher, chefe e chefe de sala
– fechou em maio do ano passado.
Lisboa E porquê? Porque a mudança para
50€ um novo espaço, junto ao Palácio
Abr 2017 Belmonte, estava marcada para o
outono. Problema: demorou quase
Pátio de Dom Fradique, 12 um ano a concretizar-se. Mas valeu
(Castelo), Lisboa a espera. A nova casa, minima-
218 861 697 lista, com a cozinha à vista, tem
Quarta a domingo, personalidade. Tal como o menu
das 19h às 23h. de degustação que sai da cozinha
de Tiago Feio, com propostas
criativas, entre elas uma incrível
emulsão de túberas e azeite com
crocante de especiarias.
Freakloset
Reinventar os clássicos, um sapato de cada vez
Para chegar aos primeiros sapatos foi pre- zados”, diz a empreendedora. “Sempre “O que eu sentia nos clássicos é que não era daqui a cinco anos”, diz Joana Lemos.
ciso andar muito. Mais de um ano com pro- me fascinou poder escolher coisas que suposto serem confortáveis”, diz Joana Lemos. “Por isso é que o design é tão clean, para
tótipos e modelos-teste calçados. A equipa se adequem ao que eu já tenho e com a “Um sapato clássico é um sapato imponente, se poder adaptar durante muito tempo a
usou os sapatos-experiência, a família foi personalização é possível criar um produ- duro, consistente, e isso fazia com que muitos muitas pessoas, e por isso é que insistimos
DR
chamada a servir de cobaia. Pés largos ou to inédito e verdadeiramente adaptado a me aleijassem.” Aí entrou a ideia de acolchoar na qualidade: se eu digo que o sapato vai
O espaço que o galerista Fernan- transmontano Marco Gomes, do com o peito muito alto, houve de tudo. diferentes estilos.” as línguas com látex e de fazer o calcanhar estar na moda daqui a cinco anos, ele tem
do Santos converteu, no início do antigo Foz Velha. A carta é renova- E depois de serem alargados, subidos e O processo é simples e feito diretamente num material diferente – neoprene –, “por ser de aguentar cinco anos.
anos.””
século, de oficina automóvel em da trimestralmente, sempre com acolchoados, os sapatos da Freakloset es- no site da marca. Depois de escolher o o mais confortável e o mais versátil”.
galeria de arte, tornou-se tam- muitas influências da região-natal tão preparados para tudo. Até para serem modelo – derby, monk, ankle boot, chelsea Da sola colorida aos atacadores, todos Freakloset
bém, em setembro passado, um do chefe: a última carta, lançada feitos à medida. boot ou loafer –, o cliente pode persona- os sapatos são feitos à mão na capital do Pontos de venda
restaurante. E o também não está em fevereiro, trouxe, entre ou- Joana Lemos, de 26 anos, começou a lizar quatro áreas: a cor da pele, a sola, calçado, São João da Madeira. No caso dos Loja online (www.freakloset.com),
aqui por acaso. É que neste Oficina tras criações, a típica alheira com desenvolver a ideia na tese de mestrado. os atacadores e a parte do calcanhar.” Na que são personalizados, não é exagero dizer showroom Freakloset (Lisboa),
as criações artísticas partilham grelos, sim, mas também com ovo “Pegando no conceito dos básicos que toda pele há oito opções de cores, nas restantes que são fabricados um a um. Tempo de scar.id (Porto) e Minty
o espaço com as gastronómicas, de codorniz e creme de pimentos a gente devia ter no armário, neste caso mais de 10 para cada. Fazendo as contas, entrega desde a encomenda: três semanas. Preços
que chegam pela mão do chefe assados. É ou não é arte? TIAGO PAIS aplicado aos sapatos, quis fazer uma mar- com cinco gestos é possível criar mais de Preço: a partir de 240€. A partir de 240€
ca com os modelos clássicos obrigatórios 50 mil sapatos diferentes. Todos clássicos “Queremos criar um produto intempo- Lançamento
Tiago Pais é jornalista do Observador, onde desempenha a penosa tarefa de escrever sobre comida e restaurantes. É autor do livro “As 50 Melhores Tascas de Lisboa”. e dar-lhes a hipótese de serem customi- mas menos sérios. E todos amigos dos pés. ral, que tanto está hoje na moda como 2016
116 10 NOVOS RESTAURANTES 117
08 100% português
Henrique Sá Pessoa e o sócio Rui
Sanches decidiram, no mais re-
cente espaço do chefe, casar tapas
e petiscos pondo em causa a ve-
lha máxima que assegura que do À pergunta “que tal está a criatividade nacional?” não se pode responder com
Tapisco lado de lá da fronteira nem bons
ventos, nem bons casamentos. “É
cozinha ibérica. Metade da carta é
a nacional expressão “vai-se andando”. A rubrica “100% português” nasceu
Lisboa
25€
Fev 2017
portuguesa, metade é espanhola”,
assume Sá Pessoa, que conta com
para provar isso mesmo e aqui estão seis marcas que mostram essa saúde toda
Rua Dom Pedro V, 81
uma subchefe experimentada na
matéria: Joana Duarte, que em
com malas, almofadas, calças de ganga, sapatos, fatos de banho e bancos.
Ana Dias Ferreira
(Príncipe Real), Lisboa Barcelona passou pelo Moo, dos
213 420 681 irmãos Roca, e pelo Tapas 24, de
Todos os dias, das 12h às 00h. Carles Abellan. Assim, o bacalhau
tanto é à Brás como em esqueixa-
da, uma salada catalã e o choco
tanto é frito como a sua tinta dá
cor à paella. Para matar a sede,
há vermutes. À espanhola.
09
Oficina
Porto
40€
Set 2016
10
O Leopold é um restaurante novo
sem ser, propriamente, um novo
restaurante. Nascido em 2014,
numa antiga padaria pelas mãos
de Tiago Feio e Ana Cachaço – ma-
Leopold rido e mulher, chefe e chefe de sala
– fechou em maio do ano passado.
Lisboa E porquê? Porque a mudança para
50€ um novo espaço, junto ao Palácio
Abr 2017 Belmonte, estava marcada para o
outono. Problema: demorou quase
Pátio de Dom Fradique, 12 um ano a concretizar-se. Mas valeu
(Castelo), Lisboa a espera. A nova casa, minima-
218 861 697 lista, com a cozinha à vista, tem
Quarta a domingo, personalidade. Tal como o menu
das 19h às 23h. de degustação que sai da cozinha
de Tiago Feio, com propostas
criativas, entre elas uma incrível
emulsão de túberas e azeite com
crocante de especiarias.
Freakloset
Reinventar os clássicos, um sapato de cada vez
Para chegar aos primeiros sapatos foi pre- zados”, diz a empreendedora. “Sempre “O que eu sentia nos clássicos é que não era daqui a cinco anos”, diz Joana Lemos.
ciso andar muito. Mais de um ano com pro- me fascinou poder escolher coisas que suposto serem confortáveis”, diz Joana Lemos. “Por isso é que o design é tão clean, para
tótipos e modelos-teste calçados. A equipa se adequem ao que eu já tenho e com a “Um sapato clássico é um sapato imponente, se poder adaptar durante muito tempo a
usou os sapatos-experiência, a família foi personalização é possível criar um produ- duro, consistente, e isso fazia com que muitos muitas pessoas, e por isso é que insistimos
DR
chamada a servir de cobaia. Pés largos ou to inédito e verdadeiramente adaptado a me aleijassem.” Aí entrou a ideia de acolchoar na qualidade: se eu digo que o sapato vai
O espaço que o galerista Fernan- transmontano Marco Gomes, do com o peito muito alto, houve de tudo. diferentes estilos.” as línguas com látex e de fazer o calcanhar estar na moda daqui a cinco anos, ele tem
do Santos converteu, no início do antigo Foz Velha. A carta é renova- E depois de serem alargados, subidos e O processo é simples e feito diretamente num material diferente – neoprene –, “por ser de aguentar cinco anos.
anos.””
século, de oficina automóvel em da trimestralmente, sempre com acolchoados, os sapatos da Freakloset es- no site da marca. Depois de escolher o o mais confortável e o mais versátil”.
galeria de arte, tornou-se tam- muitas influências da região-natal tão preparados para tudo. Até para serem modelo – derby, monk, ankle boot, chelsea Da sola colorida aos atacadores, todos Freakloset
bém, em setembro passado, um do chefe: a última carta, lançada feitos à medida. boot ou loafer –, o cliente pode persona- os sapatos são feitos à mão na capital do Pontos de venda
restaurante. E o também não está em fevereiro, trouxe, entre ou- Joana Lemos, de 26 anos, começou a lizar quatro áreas: a cor da pele, a sola, calçado, São João da Madeira. No caso dos Loja online (www.freakloset.com),
aqui por acaso. É que neste Oficina tras criações, a típica alheira com desenvolver a ideia na tese de mestrado. os atacadores e a parte do calcanhar.” Na que são personalizados, não é exagero dizer showroom Freakloset (Lisboa),
as criações artísticas partilham grelos, sim, mas também com ovo “Pegando no conceito dos básicos que toda pele há oito opções de cores, nas restantes que são fabricados um a um. Tempo de scar.id (Porto) e Minty
o espaço com as gastronómicas, de codorniz e creme de pimentos a gente devia ter no armário, neste caso mais de 10 para cada. Fazendo as contas, entrega desde a encomenda: três semanas. Preços
que chegam pela mão do chefe assados. É ou não é arte? TIAGO PAIS aplicado aos sapatos, quis fazer uma mar- com cinco gestos é possível criar mais de Preço: a partir de 240€. A partir de 240€
ca com os modelos clássicos obrigatórios 50 mil sapatos diferentes. Todos clássicos “Queremos criar um produto intempo- Lançamento
Tiago Pais é jornalista do Observador, onde desempenha a penosa tarefa de escrever sobre comida e restaurantes. É autor do livro “As 50 Melhores Tascas de Lisboa”. e dar-lhes a hipótese de serem customi- mas menos sérios. E todos amigos dos pés. ral, que tanto está hoje na moda como 2016
118 100% PORTUGUÊS
Houndsditch
A loucura aplicada
aos fatos de banho
Andrew Young estava no escritório, em dade é que Andrew aterrou no Porto sem
Londres, quando decidiu que queria cons- saber muito bem o que ia fazer. Passou
truir alguma coisa. À frente tinha um com- seis meses em reuniões com fábricas do
putador com relatórios financeiros, mas de Norte, umas boas, outras nem tanto, até
repente não conseguia pensar noutra coisa que conheceu o seu atual fabricante e se
que não fossem fatos de banho. Foi em 2014. mudou para Lisboa. A primeira coleção
Entretanto despediu-se da profissão de da Houndsditch nasceu no verão de 2016,
analista, saiu da capital inglesa e mudou-se inteiramente feita em Carnaxide. A segunda
para Portugal, só para fazer roupa de praia. já está à venda e continua a apostar em
Dos tempos londrinos ficou o nome da padrões divertidos que tanto têm flamingos
marca, batizada segundo um bairro da ci- como tigres e que pintam fatos de banho
dade sem vestígios de mar ou areia, Houn- de mulher e calções masculinos. 80% dos
dsditch. Uma bizarria que o empresário de desenhos são do próprio Andrew — o resto
32 anos adora. “Pareceu-me um nome forte é feito através de parcerias com designers
e ao mesmo tempo improvável porque não — e na loja online é possível personalizar
tem nada a ver com a maioria das marcas a altura da perna, mais ou menos subida.
desta área. Eu gosto desse lado meio louco.” A composição do tecido é que nunca
Loucura é, de facto, algo que não falta. muda: 20% elastano, 80% poliéster recicla-
Primeiro, porque tudo o que Andrew Young do. “Mais uma vez parece meio louco, mas a
começou por aprender sobre desenho e base molecular das fibras de poliéster, que
Kite modelagem, aprendeu no YouTube. Se- são usadas em todos os fatos de banho, são
Candeeiro gundo, porque quando pôs na cabeça que as mesmas que são usadas em garrafas de
suspenso queria mesmo fazer uma marca de calções, plástico”, explica o também surfista. “Sete
foi falar com a única pessoa que conhecia garrafas de litro e meio recicladas dão para
ligada à moda e deu por si num desfile em fazer um exemplar. Provavelmente seriam
Hal Paris, onde lhe prometeram que iria ficar garrafas que acabariam no mar e é uma
Cabide a saber tudo o que precisava. ideia romântica pensar que se pode usar
“Fui ao desfile mas ninguém sabia res- um fato de banho para ajudar a manter os
ponder às minhas perguntas. As únicas oceanos limpos.”
pessoas que acabaram por me ajudar eram
fornecedores de forros que trabalhavam Houndsditch
em Portugal e percebi que tinha de vir Loja online (www.houndsditch.com)
para aqui se queria que este negócio fun- e Rosawild (Lisboa)
cionasse.” Fatos de banho a partir de 58,99€,
A fama da indústria têxtil nacional aju- calções a 76,99€
dou na decisão de largar tudo, mas a ver- 2016
Oyster
Bancos
Util
Esta marca não é só bonita,
é útil e gosta de receber
Quando se recebem convidados em casa, a ao mesmo tempo internacionais, uma vez
dança é quase sempre a mesma. Primeiro que para pôr a marca de pé, Manuel Ama-
pedem-se os casacos, depois oferece-se algo ral Netto olhou ao mesmo tempo cá para
para beber. Manuel Amaral Netto é um dos dentro e lá para fora.
muitos portugueses que gosta de abrir as “Quis convidar alguns designers euro-
portas aos amigos. É também designer de peus que fui conhecendo para desenhar as
produto e fã assumido de objetos, por isso peças, e ao mesmo tempo desafiar parceiros
teve a ideia de casar tudo e criar uma marca específicos para as produzir em Portugal”,
em torno do conceito de hospitalidade. conta o fundador da marca. “Em Portugal
A UTIL nasceu no início do ano e reú- temos alguma capacidade industrial, por
ne mobiliário e acessórios de decoração, isso a primeira fase da UTIL foi mesmo reco-
“objetos que povoam a nossa casa e que lher a indústria presente no país – foi um ano
ganham outro sentido quando os usamos praticamente só a perceber o que existia.”
com os amigos”, diz Manuel Amaral Netto. O minibar e o bengaleiro foram feitos
Designer de cinco das peças iniciais – para numa serralharia em Rio de Mouro, por
já são oito – quis construir a primeira cole- exemplo, a fruteira em Alcobaça (ou não
ção como quem abre a porta de casa e vai fosse a cidade conhecida pela cerâmica),
entrando. Por isso há um bengaleiro que os copos em vidro soprado da Marinha Flamingos Lemons
tem também uma prateleira a meia altura Grande. “São tudo peças facilmente feitas
onde se podem largar as chaves e o cor- uma a uma mas também rapidamente in-
reio, um conjunto de um jarro e dois copos dustrializadas”, diz Manuel Amaral Netto.
para oferecer algo para beber ou ainda um “Isso era importante para o lançamento
banco de madeira que tão depressa está da marca.”
encostado à parede, porque tem um lado Apresentada em janeiro na Maison et
do tampo cortado, como pode ser puxado Objet de Paris, uma das mais importantes
para acomodar um convidado extra ou até feiras de design e decoração do mundo, a
servir de mesa de apoio. UTIL já tem uma loja online a funcionar – é
Da entrada da casa para a mesa, da pri- só entrar e sentir-se em casa.
meira coleção fazem também parte uma
fruteira, um candeeiro suspenso, um centro UTIL
de mesa e um minibar que anda sobre rodas Loja online (www.thisisutil.com)
e por isso pode ser trazido para o centro 75€ a 340€
da conversa. Objetos sociais, nacionais e 2017 Flamingo flock Puffer fish
118 100% PORTUGUÊS
Houndsditch
A loucura aplicada
aos fatos de banho
Andrew Young estava no escritório, em dade é que Andrew aterrou no Porto sem
Londres, quando decidiu que queria cons- saber muito bem o que ia fazer. Passou
truir alguma coisa. À frente tinha um com- seis meses em reuniões com fábricas do
putador com relatórios financeiros, mas de Norte, umas boas, outras nem tanto, até
repente não conseguia pensar noutra coisa que conheceu o seu atual fabricante e se
que não fossem fatos de banho. Foi em 2014. mudou para Lisboa. A primeira coleção
Entretanto despediu-se da profissão de da Houndsditch nasceu no verão de 2016,
analista, saiu da capital inglesa e mudou-se inteiramente feita em Carnaxide. A segunda
para Portugal, só para fazer roupa de praia. já está à venda e continua a apostar em
Dos tempos londrinos ficou o nome da padrões divertidos que tanto têm flamingos
marca, batizada segundo um bairro da ci- como tigres e que pintam fatos de banho
dade sem vestígios de mar ou areia, Houn- de mulher e calções masculinos. 80% dos
dsditch. Uma bizarria que o empresário de desenhos são do próprio Andrew — o resto
32 anos adora. “Pareceu-me um nome forte é feito através de parcerias com designers
e ao mesmo tempo improvável porque não — e na loja online é possível personalizar
tem nada a ver com a maioria das marcas a altura da perna, mais ou menos subida.
desta área. Eu gosto desse lado meio louco.” A composição do tecido é que nunca
Loucura é, de facto, algo que não falta. muda: 20% elastano, 80% poliéster recicla-
Primeiro, porque tudo o que Andrew Young do. “Mais uma vez parece meio louco, mas a
começou por aprender sobre desenho e base molecular das fibras de poliéster, que
Kite modelagem, aprendeu no YouTube. Se- são usadas em todos os fatos de banho, são
Candeeiro gundo, porque quando pôs na cabeça que as mesmas que são usadas em garrafas de
suspenso queria mesmo fazer uma marca de calções, plástico”, explica o também surfista. “Sete
foi falar com a única pessoa que conhecia garrafas de litro e meio recicladas dão para
ligada à moda e deu por si num desfile em fazer um exemplar. Provavelmente seriam
Hal Paris, onde lhe prometeram que iria ficar garrafas que acabariam no mar e é uma
Cabide a saber tudo o que precisava. ideia romântica pensar que se pode usar
“Fui ao desfile mas ninguém sabia res- um fato de banho para ajudar a manter os
ponder às minhas perguntas. As únicas oceanos limpos.”
pessoas que acabaram por me ajudar eram
fornecedores de forros que trabalhavam Houndsditch
em Portugal e percebi que tinha de vir Loja online (www.houndsditch.com)
para aqui se queria que este negócio fun- e Rosawild (Lisboa)
cionasse.” Fatos de banho a partir de 58,99€,
A fama da indústria têxtil nacional aju- calções a 76,99€
dou na decisão de largar tudo, mas a ver- 2016
Oyster
Bancos
Util
Esta marca não é só bonita,
é útil e gosta de receber
Quando se recebem convidados em casa, a ao mesmo tempo internacionais, uma vez
dança é quase sempre a mesma. Primeiro que para pôr a marca de pé, Manuel Ama-
pedem-se os casacos, depois oferece-se algo ral Netto olhou ao mesmo tempo cá para
para beber. Manuel Amaral Netto é um dos dentro e lá para fora.
muitos portugueses que gosta de abrir as “Quis convidar alguns designers euro-
portas aos amigos. É também designer de peus que fui conhecendo para desenhar as
produto e fã assumido de objetos, por isso peças, e ao mesmo tempo desafiar parceiros
teve a ideia de casar tudo e criar uma marca específicos para as produzir em Portugal”,
em torno do conceito de hospitalidade. conta o fundador da marca. “Em Portugal
A UTIL nasceu no início do ano e reú- temos alguma capacidade industrial, por
ne mobiliário e acessórios de decoração, isso a primeira fase da UTIL foi mesmo reco-
“objetos que povoam a nossa casa e que lher a indústria presente no país – foi um ano
ganham outro sentido quando os usamos praticamente só a perceber o que existia.”
com os amigos”, diz Manuel Amaral Netto. O minibar e o bengaleiro foram feitos
Designer de cinco das peças iniciais – para numa serralharia em Rio de Mouro, por
já são oito – quis construir a primeira cole- exemplo, a fruteira em Alcobaça (ou não
ção como quem abre a porta de casa e vai fosse a cidade conhecida pela cerâmica),
entrando. Por isso há um bengaleiro que os copos em vidro soprado da Marinha Flamingos Lemons
tem também uma prateleira a meia altura Grande. “São tudo peças facilmente feitas
onde se podem largar as chaves e o cor- uma a uma mas também rapidamente in-
reio, um conjunto de um jarro e dois copos dustrializadas”, diz Manuel Amaral Netto.
para oferecer algo para beber ou ainda um “Isso era importante para o lançamento
banco de madeira que tão depressa está da marca.”
encostado à parede, porque tem um lado Apresentada em janeiro na Maison et
do tampo cortado, como pode ser puxado Objet de Paris, uma das mais importantes
para acomodar um convidado extra ou até feiras de design e decoração do mundo, a
servir de mesa de apoio. UTIL já tem uma loja online a funcionar – é
Da entrada da casa para a mesa, da pri- só entrar e sentir-se em casa.
meira coleção fazem também parte uma
fruteira, um candeeiro suspenso, um centro UTIL
de mesa e um minibar que anda sobre rodas Loja online (www.thisisutil.com)
e por isso pode ser trazido para o centro 75€ a 340€
da conversa. Objetos sociais, nacionais e 2017 Flamingo flock Puffer fish
120 100% PORTUGUÊS 100% PORTUGUÊS 121
Espírito de Escada
Miguel Tamen
O encanto daquilo que poderíamos ter
dito, feito ou escrito é enorme. “Espírito
de escada” descreve a consciência das
coisas extraordinárias que poderíamos
ter dito se nos tivessem ocorrido a tempo.
É opinião quase geral que muitas vezes no que dizemos: também não ter dito se nos tivessem ocorrido a tem- a veracidade das nossas posições”. O que é
a melhor parte das nossas obras completas pensamos muitas vezes no que fazemos po; são as coisas de que nos lembramos característico desta fantasia é que as nossas
será tudo o que não dissemos, tudo o que ou no que escrevemos. É porque já vimos ao descer a escada para sair do sítio em posições só nos ocorram ao descer a esca-
não fizemos, e tudo o que não escrevemos. equipados de fábrica com modos simples que as teríamos dito com propriedade. da. Só podem ser asseguradas quando já
A opinião tem a sua razão de ser. No que de dizer coisas. Pelo contrário, fazer exige Ao descer a escada imaginamos a glória ninguém está por perto. Acabamos assim
dissemos há coisas demais: coisas que não normalmente deslocações e movimentos, que não tivemos; ou a que teríamos tido por ser as únicas testemunhas das nossas
quisemos dizer, ou que pelo menos não qui- e que se passe de um estado de repouso a se por acaso as nossas melhores ideias maiores vitórias, e do nosso grande espí-
semos dizer daquele modo; no que fizemos um estado de actividade, e depois se volte nos aparecessem sempre que deviam. São rito. As outras pessoas nunca perceberão
há erros, exageros, maldades e disparates; ao estado de repouso. E escrever exige muitas vezes observações espirituosas, ou o que perderam por não nos terem acom-
e do que escrevemos é melhor nem falar. tudo o que fazer exige, e ainda instrumen- analogias que se não fosse lembrarmo-nos panhado a descer a escada. “Que grande
Pelo contrário, o encanto daquilo que po- tos, e que se tenha previamente aprendido delas tarde demais seriam espontâneas; ser humano morreu connosco”, dizemos na
deríamos ter dito, feito ou escrito é enor- a escrever. Os requisitos logísticos para mas são também verdades que ao serem hora da morte; referimo-nos sobretudo a
me. Temos caracteristicamente esperanças dizer coisas são muito menos complexos; aplicadas na altura certa reduziriam os tudo o que nunca nos aconteceu.
naquilo que não aconteceu: que ainda não quando os outros não nos percebem po- outros ao silêncio e à admiração.
aconteceu, ou que mais simplesmente nun- demos sempre alegar o estilo oral ou um Há um certo desespero em lamentar o Miguel Tamen é professor de Literatura
ca aconteceu. defeito na fala. facto de não termos podido brilhar pela na Universidade de Lisboa. Tem vários livros
Do ponto de vista logístico dizer qual- A expressão “espírito de escada” des- nossa veracidade e pelo nosso espírito. publicados, o últimos dos quais – “Erro
quer coisa é mais simples que escrever ou creve no entanto a consciência que temos Como observou um pensador contempo- Extremo” – é uma reunião das suas crónicas
fazer; não é apenas porque não pensamos das coisas extraordinárias que poderíamos râneo, “a nossa preocupação é assegurar semanais no Observador.
122 CRÓNICA
Espírito de Escada
Miguel Tamen
O encanto daquilo que poderíamos ter
dito, feito ou escrito é enorme. “Espírito
de escada” descreve a consciência das
coisas extraordinárias que poderíamos
ter dito se nos tivessem ocorrido a tempo.
É opinião quase geral que muitas vezes no que dizemos: também não ter dito se nos tivessem ocorrido a tem- a veracidade das nossas posições”. O que é
a melhor parte das nossas obras completas pensamos muitas vezes no que fazemos po; são as coisas de que nos lembramos característico desta fantasia é que as nossas
será tudo o que não dissemos, tudo o que ou no que escrevemos. É porque já vimos ao descer a escada para sair do sítio em posições só nos ocorram ao descer a esca-
não fizemos, e tudo o que não escrevemos. equipados de fábrica com modos simples que as teríamos dito com propriedade. da. Só podem ser asseguradas quando já
A opinião tem a sua razão de ser. No que de dizer coisas. Pelo contrário, fazer exige Ao descer a escada imaginamos a glória ninguém está por perto. Acabamos assim
dissemos há coisas demais: coisas que não normalmente deslocações e movimentos, que não tivemos; ou a que teríamos tido por ser as únicas testemunhas das nossas
quisemos dizer, ou que pelo menos não qui- e que se passe de um estado de repouso a se por acaso as nossas melhores ideias maiores vitórias, e do nosso grande espí-
semos dizer daquele modo; no que fizemos um estado de actividade, e depois se volte nos aparecessem sempre que deviam. São rito. As outras pessoas nunca perceberão
há erros, exageros, maldades e disparates; ao estado de repouso. E escrever exige muitas vezes observações espirituosas, ou o que perderam por não nos terem acom-
e do que escrevemos é melhor nem falar. tudo o que fazer exige, e ainda instrumen- analogias que se não fosse lembrarmo-nos panhado a descer a escada. “Que grande
Pelo contrário, o encanto daquilo que po- tos, e que se tenha previamente aprendido delas tarde demais seriam espontâneas; ser humano morreu connosco”, dizemos na
deríamos ter dito, feito ou escrito é enor- a escrever. Os requisitos logísticos para mas são também verdades que ao serem hora da morte; referimo-nos sobretudo a
me. Temos caracteristicamente esperanças dizer coisas são muito menos complexos; aplicadas na altura certa reduziriam os tudo o que nunca nos aconteceu.
naquilo que não aconteceu: que ainda não quando os outros não nos percebem po- outros ao silêncio e à admiração.
aconteceu, ou que mais simplesmente nun- demos sempre alegar o estilo oral ou um Há um certo desespero em lamentar o Miguel Tamen é professor de Literatura
ca aconteceu. defeito na fala. facto de não termos podido brilhar pela na Universidade de Lisboa. Tem vários livros
Do ponto de vista logístico dizer qual- A expressão “espírito de escada” des- nossa veracidade e pelo nosso espírito. publicados, o últimos dos quais – “Erro
quer coisa é mais simples que escrever ou creve no entanto a consciência que temos Como observou um pensador contempo- Extremo” – é uma reunião das suas crónicas
fazer; não é apenas porque não pensamos das coisas extraordinárias que poderíamos râneo, “a nossa preocupação é assegurar semanais no Observador.