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especial de
aniversário
3,9 0 € / M A IO 2 017 / PU B LIS H E R: J OS É M A N U E L F E R N A N D ES / DI R ETO R EX EC UTIVO: M IG U E L PI N H EI RO / DI R ETO RA-A DJ U N TA: FI LO M E N A M A RTI N S

Salgado
Dias Loureiro
Sócrates

Todas as ligações dos maiores negócios dos últimos anos


Especial de 16 páginas

Vara
Bataglia
Zeinal Bava

Vasco Pulido Valente sobre o Presidente Marcelo / José Manuel Fernandes sobre fazer 60 anos
Rui Ramos sobre Fátima / Maria João Avillez sobre Mário Soares / Mais: uma investigação sobre
como os boys assaltam o Estado / 10 novos restaurantes que tem de conhecer / A fuga dos irmãos Cavaco
4

Editorial
Miguel Pinheiro João Miguel Tavares

Olá, João, como vai tudo? A revista de aniversário Textos melhores do que o teu não há. Apenas mais
já fechou ou ainda estás a escolher os melhores pertinentes, mais actuais, mais originais e mais
artigos publicados pelo Observador neste último interessantes. Temos um artigo sobre todas as
ano? Tendo em conta que és tu quem está a editar ex-grandes figuras nacionais que estão a braços
isso, tenho uma sugestão que te pode ajudar (não com a justiça, há uma investigação sobre a forma
que tu precises). Com toda a humildade que sabes como os boys invadem o Estado, contamos a história
que me caracteriza, queria só lembrar-te que do jornalista italiano que foi o pai dos Comandos
a 20 de fevereiro escrevi o texto “‘Estás despedido!’ portugueses, recordamos a fuga dos irmãos Cavaco,
O que eu aprendi sobre o Presidente Trump ao ver temos a Maria João Avillez e o Vasco Pulido Valente
todos os episódios de O Aprendiz”. Era capaz a escreverem sobre Mário Soares, o Rui Ramos a
de não ficar mal numa revista como esta... fazer a história de Fátima, o José Manuel Fernandes
a contar como é ter 60 anos. Até temos uma
entrevista ao Quim Barreiros.
João Miguel Tavares

Olá, Miguel. Sabes o quanto aprecio a elegância Miguel Pinheiro


da tua escrita, e estou aqui a roer-me por dentro
por esse magnífico artigo ter de ficar de fora, até OK. Dito assim, de facto, há aí coisas interessantes.
porque andas a escrever pouco. Mas esta revista Perante tudo isto, tens razão, faria pouco sentido
tem uma regra de ouro: os textos escolhidos não ter um artigo insignificante sobre o Presidente
podem estar marcados pelo momento em que foram norte-americano, que é apenas O HOMEM MAIS
publicados. A tua história sobre o Trump está cheia PODEROSO DO MUNDO (desculpa as maiúsculas, perdi
de vídeos do YouTube e referências temporais. um bocado a calma). Mas pronto, tudo bem. Ainda
Não dá, lamento. Mas pensa assim: há imensos por cima, vejo textos acabadinhos de estrear, que
textos estupendos que fui obrigado a pôr de lado ainda não foram publicados no site. Foi de propósito?
e o diretor deve liderar pelo exemplo.

João Miguel Tavares


Miguel Pinheiro
Foi. Ainda valoriza mais a revista. Não que ela
Espera aí, espera aí, não te precipites. Temo que precise. Porquê? Achas tão má ideia quanto deixar
estejas a cometer um terrível erro de avaliação de fora o teu texto sobre o Trump?
(além de não estar a perceber bem essa coisa de
eu escrever pouco). Repara, estamos a falar de um
artigo altamente sofisticado e que me custou várias Miguel Pinheiro
horas de trabalho. Além disso, sejamos sinceros: Nada disso: parece-me uma ideia que toca
há assim tantos textos bons para pôr na revista? espantosamente a genialidade (aliás, não esperaria
outra coisa de ti, tendo em conta que te consideras
João Miguel Tavares a última Coca-Cola do deserto). Sobre o Trump,
não tenho mais nada a dizer. Mas lembras-te
Escreves pouco neste sentido: a gestão de uma seguramente daquela frase que ele dizia a quem
redação é tão exigente que os leitores do Observador não fazia o que ele gostava e que o tornou célebre:
ficam impedidos de apreciar mais vezes a qualidade “You’re fired!”. (Desculpa, sei que tens dificuldades
da tua escrita (já te disse o quanto ela é elegante?). com o inglês; a tradução é: “Estás despedido!”.)
Felizmente, inspiras de tal forma a tua equipa que
ela produz textos incríveis em catadupa. Escolher
entre tudo aquilo que o Observador produziu ao Miguel Pinheiro
longo do último ano, na política, sociedade, cultura, João, aquela do despedido era a brincar...
economia, desporto ou lifestyle, foi um trabalho
esgotante. Quase tão esgotante como o teu.

Miguel Pinheiro
Miguel Pinheiro
Traduzindo a tua prosa longa, embrulhada e
entediante: achas que há textos melhores do que João, ainda estás aí?
o meu, certo? Não quererás, talvez, dar pelo menos
um exemplo que ajude a sustentar essa afirmação
levemente injuriosa?

observador on time, s.a.


Número de registo de pessoa coletiva 510914713 / Sede Rua Luz Soriano, n.º 67, 2º Esq. 1200-246 Lisboa / Conselho de Administração António Carrapatoso (Presidente), Duarte Schmidt
Lino, José Manuel Fernandes, Rui Ramos / Conselho Geral Jaime Gama (Presidente), António Champalimaud, António Casanova, Filipe de Botton, João Fonseca, Luís Amado,
Luís Amaral, Nuno Carrapatoso, Pedro de Almeida / Direção-Geral Rudolf Gruner / Publisher José Manuel Fernandes / Diretor Executivo Miguel Pinheiro / Diretora-Adjunta Filomena
Martins / Editora Executiva Helena Coelho / Editor Coordenador Multimédia Pedro Jorge Castro / Editor de Política Vítor Matos / Editora de Sociedade Rita Ferreira / Editor de Economia
João Cândido da Silva / Editor de Cultura Tiago Pereira / Editora de Lifestyle Ana Dias Ferreira / Jornalistas Ana Cristina Marques, Ana França, Ana Pimentel, Ana Suspiro, Bruno
Roseiro, David Almas, Edgar Caetano, João de Almeida Dias, Luís Rosa, Marlene Carriço, Marta Leite Ferreira, Miguel Santos Carrapatoso, Nuno André Martins, Pedro Esteves,
Pedro Rainho, Rita Cipriano, Rita Dinis, Rita Porto, Rita Tavares, Rui Pedro Antunes, Sara Otto Coelho, Sílvia Silva, Sónia Simões, Tânia Pereirinha, Tiago Pais, Tiago Palma,
Vera Novais / Multimédia António Rocha Lopes, André Marques, Maria Gralheiro / Redes Sociais e Comunidades Eduardo André, Luís Pereira, Manuel Vaz /
Direção Técnica Leo Xavier, Alex Santos, Alexandre Pinheiro, Ricardo Prates / Direção Comercial Isabel Marques, Sandra Morgado, Maria Miguel Calado, Pedro Santos /
Contacto Comercial 211 937 406 / Branded Content Mónica Bello / Secretariado Rita Garro
revista Coordenação editorial João Miguel Tavares / Direção de Arte Jorge Silva / Design Jorge Silva, Luís Alexandre/Silvadesigners e Nuno Silva / Revisão Catarina Sacramento
Ilustrações de capa Henrique Monteiro
Por opção editorial, decidiu manter-se a ortografia utilizada pelos autores de cada texto, seja ela pós ou pré AO90.
4

Editorial
Miguel Pinheiro João Miguel Tavares

Olá, João, como vai tudo? A revista de aniversário Textos melhores do que o teu não há. Apenas mais
já fechou ou ainda estás a escolher os melhores pertinentes, mais actuais, mais originais e mais
artigos publicados pelo Observador neste último interessantes. Temos um artigo sobre todas as
ano? Tendo em conta que és tu quem está a editar ex-grandes figuras nacionais que estão a braços
isso, tenho uma sugestão que te pode ajudar (não com a justiça, há uma investigação sobre a forma
que tu precises). Com toda a humildade que sabes como os boys invadem o Estado, contamos a história
que me caracteriza, queria só lembrar-te que do jornalista italiano que foi o pai dos Comandos
a 20 de fevereiro escrevi o texto “‘Estás despedido!’ portugueses, recordamos a fuga dos irmãos Cavaco,
O que eu aprendi sobre o Presidente Trump ao ver temos a Maria João Avillez e o Vasco Pulido Valente
todos os episódios de O Aprendiz”. Era capaz a escreverem sobre Mário Soares, o Rui Ramos a
de não ficar mal numa revista como esta... fazer a história de Fátima, o José Manuel Fernandes
a contar como é ter 60 anos. Até temos uma
entrevista ao Quim Barreiros.
João Miguel Tavares

Olá, Miguel. Sabes o quanto aprecio a elegância Miguel Pinheiro


da tua escrita, e estou aqui a roer-me por dentro
por esse magnífico artigo ter de ficar de fora, até OK. Dito assim, de facto, há aí coisas interessantes.
porque andas a escrever pouco. Mas esta revista Perante tudo isto, tens razão, faria pouco sentido
tem uma regra de ouro: os textos escolhidos não ter um artigo insignificante sobre o Presidente
podem estar marcados pelo momento em que foram norte-americano, que é apenas O HOMEM MAIS
publicados. A tua história sobre o Trump está cheia PODEROSO DO MUNDO (desculpa as maiúsculas, perdi
de vídeos do YouTube e referências temporais. um bocado a calma). Mas pronto, tudo bem. Ainda
Não dá, lamento. Mas pensa assim: há imensos por cima, vejo textos acabadinhos de estrear, que
textos estupendos que fui obrigado a pôr de lado ainda não foram publicados no site. Foi de propósito?
e o diretor deve liderar pelo exemplo.

João Miguel Tavares


Miguel Pinheiro
Foi. Ainda valoriza mais a revista. Não que ela
Espera aí, espera aí, não te precipites. Temo que precise. Porquê? Achas tão má ideia quanto deixar
estejas a cometer um terrível erro de avaliação de fora o teu texto sobre o Trump?
(além de não estar a perceber bem essa coisa de
eu escrever pouco). Repara, estamos a falar de um
artigo altamente sofisticado e que me custou várias Miguel Pinheiro
horas de trabalho. Além disso, sejamos sinceros: Nada disso: parece-me uma ideia que toca
há assim tantos textos bons para pôr na revista? espantosamente a genialidade (aliás, não esperaria
outra coisa de ti, tendo em conta que te consideras
João Miguel Tavares a última Coca-Cola do deserto). Sobre o Trump,
não tenho mais nada a dizer. Mas lembras-te
Escreves pouco neste sentido: a gestão de uma seguramente daquela frase que ele dizia a quem
redação é tão exigente que os leitores do Observador não fazia o que ele gostava e que o tornou célebre:
ficam impedidos de apreciar mais vezes a qualidade “You’re fired!”. (Desculpa, sei que tens dificuldades
da tua escrita (já te disse o quanto ela é elegante?). com o inglês; a tradução é: “Estás despedido!”.)
Felizmente, inspiras de tal forma a tua equipa que
ela produz textos incríveis em catadupa. Escolher
entre tudo aquilo que o Observador produziu ao Miguel Pinheiro
longo do último ano, na política, sociedade, cultura, João, aquela do despedido era a brincar...
economia, desporto ou lifestyle, foi um trabalho
esgotante. Quase tão esgotante como o teu.

Miguel Pinheiro
Miguel Pinheiro
Traduzindo a tua prosa longa, embrulhada e
entediante: achas que há textos melhores do que João, ainda estás aí?
o meu, certo? Não quererás, talvez, dar pelo menos
um exemplo que ajude a sustentar essa afirmação
levemente injuriosa?

observador on time, s.a.


Número de registo de pessoa coletiva 510914713 / Sede Rua Luz Soriano, n.º 67, 2º Esq. 1200-246 Lisboa / Conselho de Administração António Carrapatoso (Presidente), Duarte Schmidt
Lino, José Manuel Fernandes, Rui Ramos / Conselho Geral Jaime Gama (Presidente), António Champalimaud, António Casanova, Filipe de Botton, João Fonseca, Luís Amado,
Luís Amaral, Nuno Carrapatoso, Pedro de Almeida / Direção-Geral Rudolf Gruner / Publisher José Manuel Fernandes / Diretor Executivo Miguel Pinheiro / Diretora-Adjunta Filomena
Martins / Editora Executiva Helena Coelho / Editor Coordenador Multimédia Pedro Jorge Castro / Editor de Política Vítor Matos / Editora de Sociedade Rita Ferreira / Editor de Economia
João Cândido da Silva / Editor de Cultura Tiago Pereira / Editora de Lifestyle Ana Dias Ferreira / Jornalistas Ana Cristina Marques, Ana França, Ana Pimentel, Ana Suspiro, Bruno
Roseiro, David Almas, Edgar Caetano, João de Almeida Dias, Luís Rosa, Marlene Carriço, Marta Leite Ferreira, Miguel Santos Carrapatoso, Nuno André Martins, Pedro Esteves,
Pedro Rainho, Rita Cipriano, Rita Dinis, Rita Porto, Rita Tavares, Rui Pedro Antunes, Sara Otto Coelho, Sílvia Silva, Sónia Simões, Tânia Pereirinha, Tiago Pais, Tiago Palma,
Vera Novais / Multimédia António Rocha Lopes, André Marques, Maria Gralheiro / Redes Sociais e Comunidades Eduardo André, Luís Pereira, Manuel Vaz /
Direção Técnica Leo Xavier, Alex Santos, Alexandre Pinheiro, Ricardo Prates / Direção Comercial Isabel Marques, Sandra Morgado, Maria Miguel Calado, Pedro Santos /
Contacto Comercial 211 937 406 / Branded Content Mónica Bello / Secretariado Rita Garro
revista Coordenação editorial João Miguel Tavares / Direção de Arte Jorge Silva / Design Jorge Silva, Luís Alexandre/Silvadesigners e Nuno Silva / Revisão Catarina Sacramento
Ilustrações de capa Henrique Monteiro
Por opção editorial, decidiu manter-se a ortografia utilizada pelos autores de cada texto, seja ela pós ou pré AO90.
6 7

Índice Três anos.


Opinião Ensaio A noite em que
Já três anos!
Entrevista
Quatro portugueses Fátima: Fehér caiu
Vítor Oliveira:
Vasco Pulido Valente 100 anos de Tiago Palma
8 “Na estreia 92
uma história
empatámos Crónica
mal contada
Rui Ramos
6-0” Pai
Rui Miguel Tovar Era possível. É possível. Será possível.
64 Laurinda Alves Quando o Observador nasceu, a 19 de Maio de 2014, o lança-
Ensaio 88
95
Um cientista mento deste novo projecto editorial foi recebido com cepticismo,
Um mundo porventura com sobranceria. Três anos passados conquistámos o
e um padre
cheio de porcos nosso lugar e tornámo-nos uma referência.
entram Diferenciámo-nos, desde a primeira hora, por sermos exclusiva-
fascistas
José Carlos Fernandes num bar mente digitais e acreditarmos que esse é o futuro da informação e do
jornalismo, em especial do jornalismo de qualidade. Diferenciámo-
46 João Francisco Gomes
Investigação 70 -nos também por rejeitarmos as águas chocas em que os meios de
comunicação não assumem uma orientação e um ponto de vista,
Como os partidos assaltam BD como é saudável, e também é norma, nas democracias ocidentais.
o Estado em Portugal Como a Diferenciámo-nos, por fim, por sermos radicalmente inovadores,
Rui Pedro Antunes e Vítor Matos menina querida Lisboa capazes de criar novas fórmulas jornalísticas adaptadas ao suporte
12 das startups em Agosto Fotogaleria digital – e, neste, aos dispositivos móveis – e às necessidades dos
perdeu 8 mil
Lucy Pepper Jorge Bacelar, fotógrafo tempos que vivemos. No oceano de milhentas notícias em que
74 vivemos, seleccionamos e, sobretudo, explicamos, verificamos e
Opinião Opinião milhões e veterinário enquadramos. Vivendo em cima da hora, tornámos uma rotina –
A angústia O “comentador” Ana Pimentel Entrevista 96
uma boa rotina – os liveblogs com actualizações ao minuto. Sabendo
dos 60 de direita
50 “As crianças que nem tudo o Google esclarece, apostámos nos Explicadores. E
ainda antes de as fake news se terem tornado um problema para a
José Manuel Fernandes Alberto Gonçalves Opinião devem tocar Para Mark Twain, democracia, investimos nos fact-check onde verificamos a verdade
20 39
O regresso na terra” O veto ao não há inglês e a mentira do que é dito no espaço público.
Marlene Carriço Muitos não acreditavam que o jornalismo digital podia ser pro-
Emmanuel O pai da austeridade 76 Evangelho de como o de fundo e achavam que estava condenado a breves e voláteis notícias,
Macron: fantasma dos (quase) sem Saramago Pedro Carolino mas demonstrámos que o inverso é que é verdadeiro. Os nossos
afinal, quem é Comandos disfarces Viver cego atrás Joana Stachini Vilela Carlos Maria Bobone especiais vão muito além da superfície das notícias e não temos
este homem? portugueses Helena Garrido das grades 100 108 medo de textos longos para leituras pausadas e profundas. Não
53 Sónia Simões temos nós, nem têm os leitores.
João de Almeida Dias Pedro Rainho
78 Uma visita Sem megalomanias, fomos crescendo passo a passo, criando novas
22 40
Ensaio ao melhor áreas, reforçando a equipa, dos quatro fundadores iniciais para
Opinião Opinião Suécia: restaurante mais de sessenta colaboradores, crescendo num tempo em que,
por todo o lado, só se fala em minguar, em cortar e em despedir.
O homem doente Da circulação Ascensão do mundo E fizemo-lo com base em receitas crescentes e no apoio dos nossos
da Europa das espécies e queda de Tiago Pereira accionistas, aproveitando criteriosamente os recursos disponíveis,
Entrevista
Rui Ramos Helena Matos uma reforma 110 muita dedicação e muita motivação.
28 45 Quim Olhando para trás, sabemos que temos de olhar para a frente e para
educativa 10 novos
Barreiros: tudo o que ainda falta alcançar. É essa a nossa atitude, é também
Alexandre Homem Cristo restaurantes esse o nosso orgulho quando nos recordamos das funestas previsões
54 “Nunca cantei
Faustino onde deve meter e sentenças das cassandras deste país, por vezes pequenino.
Opinião uma asneira Sabemos que este ano, e no próximo, e no outro a seguir, continu-
Cavaco: o garfo
Viagem na vida” aremos a surpreender e a inovar. E a desiludir os que sentenciam a
a fuga que Sara Otto Coelho
Tiago Pais morte do jornalismo e, sobretudo, os que aceitam a submissão do
socrática pela parou o país 104
114 jornalismo a agendas particulares e a financiamentos misteriosos.
Fazemo-lo para os actuais 3,5 milhões de leitores e para os muitos
presunção de Bruno Vieira Amaral 100% português novos que virão, que querem ser informados e esclarecidos atem-
inocência 80
Crónica Ana Dias Ferreira
padamente sobre tudo o que de mais relevante acontece.
117
Maria João Marques Optimismos Fazemo-lo em nome da liberdade – liberdade de expressão, mas
59
Opinião antigos e novos Crónica também liberdade económica – e de uma democracia adulta, in-
Mário Soares, formada e plural. Sem complexos e com muita ambição.
Ensaio A dança dos Paulo Tunhas Espírito de
o lutador
Maria João Avillez O consenso treinadores 107
escada Os fundadores,
30 Vasco Pulido Valente Luís Aguiar-Conraria Miguel Tamen António Carrapatoso, Duarte Schmidt Lino,
60 87 122 José Manuel Fernandes e Rui Ramos
6 7

Índice Três anos.


Opinião Ensaio A noite em que
Já três anos!
Entrevista
Quatro portugueses Fátima: Fehér caiu
Vítor Oliveira:
Vasco Pulido Valente 100 anos de Tiago Palma
8 “Na estreia 92
uma história
empatámos Crónica
mal contada
Rui Ramos
6-0” Pai
Rui Miguel Tovar Era possível. É possível. Será possível.
64 Laurinda Alves Quando o Observador nasceu, a 19 de Maio de 2014, o lança-
Ensaio 88
95
Um cientista mento deste novo projecto editorial foi recebido com cepticismo,
Um mundo porventura com sobranceria. Três anos passados conquistámos o
e um padre
cheio de porcos nosso lugar e tornámo-nos uma referência.
entram Diferenciámo-nos, desde a primeira hora, por sermos exclusiva-
fascistas
José Carlos Fernandes num bar mente digitais e acreditarmos que esse é o futuro da informação e do
jornalismo, em especial do jornalismo de qualidade. Diferenciámo-
46 João Francisco Gomes
Investigação 70 -nos também por rejeitarmos as águas chocas em que os meios de
comunicação não assumem uma orientação e um ponto de vista,
Como os partidos assaltam BD como é saudável, e também é norma, nas democracias ocidentais.
o Estado em Portugal Como a Diferenciámo-nos, por fim, por sermos radicalmente inovadores,
Rui Pedro Antunes e Vítor Matos menina querida Lisboa capazes de criar novas fórmulas jornalísticas adaptadas ao suporte
12 das startups em Agosto Fotogaleria digital – e, neste, aos dispositivos móveis – e às necessidades dos
perdeu 8 mil
Lucy Pepper Jorge Bacelar, fotógrafo tempos que vivemos. No oceano de milhentas notícias em que
74 vivemos, seleccionamos e, sobretudo, explicamos, verificamos e
Opinião Opinião milhões e veterinário enquadramos. Vivendo em cima da hora, tornámos uma rotina –
A angústia O “comentador” Ana Pimentel Entrevista 96
uma boa rotina – os liveblogs com actualizações ao minuto. Sabendo
dos 60 de direita
50 “As crianças que nem tudo o Google esclarece, apostámos nos Explicadores. E
ainda antes de as fake news se terem tornado um problema para a
José Manuel Fernandes Alberto Gonçalves Opinião devem tocar Para Mark Twain, democracia, investimos nos fact-check onde verificamos a verdade
20 39
O regresso na terra” O veto ao não há inglês e a mentira do que é dito no espaço público.
Marlene Carriço Muitos não acreditavam que o jornalismo digital podia ser pro-
Emmanuel O pai da austeridade 76 Evangelho de como o de fundo e achavam que estava condenado a breves e voláteis notícias,
Macron: fantasma dos (quase) sem Saramago Pedro Carolino mas demonstrámos que o inverso é que é verdadeiro. Os nossos
afinal, quem é Comandos disfarces Viver cego atrás Joana Stachini Vilela Carlos Maria Bobone especiais vão muito além da superfície das notícias e não temos
este homem? portugueses Helena Garrido das grades 100 108 medo de textos longos para leituras pausadas e profundas. Não
53 Sónia Simões temos nós, nem têm os leitores.
João de Almeida Dias Pedro Rainho
78 Uma visita Sem megalomanias, fomos crescendo passo a passo, criando novas
22 40
Ensaio ao melhor áreas, reforçando a equipa, dos quatro fundadores iniciais para
Opinião Opinião Suécia: restaurante mais de sessenta colaboradores, crescendo num tempo em que,
por todo o lado, só se fala em minguar, em cortar e em despedir.
O homem doente Da circulação Ascensão do mundo E fizemo-lo com base em receitas crescentes e no apoio dos nossos
da Europa das espécies e queda de Tiago Pereira accionistas, aproveitando criteriosamente os recursos disponíveis,
Entrevista
Rui Ramos Helena Matos uma reforma 110 muita dedicação e muita motivação.
28 45 Quim Olhando para trás, sabemos que temos de olhar para a frente e para
educativa 10 novos
Barreiros: tudo o que ainda falta alcançar. É essa a nossa atitude, é também
Alexandre Homem Cristo restaurantes esse o nosso orgulho quando nos recordamos das funestas previsões
54 “Nunca cantei
Faustino onde deve meter e sentenças das cassandras deste país, por vezes pequenino.
Opinião uma asneira Sabemos que este ano, e no próximo, e no outro a seguir, continu-
Cavaco: o garfo
Viagem na vida” aremos a surpreender e a inovar. E a desiludir os que sentenciam a
a fuga que Sara Otto Coelho
Tiago Pais morte do jornalismo e, sobretudo, os que aceitam a submissão do
socrática pela parou o país 104
114 jornalismo a agendas particulares e a financiamentos misteriosos.
Fazemo-lo para os actuais 3,5 milhões de leitores e para os muitos
presunção de Bruno Vieira Amaral 100% português novos que virão, que querem ser informados e esclarecidos atem-
inocência 80
Crónica Ana Dias Ferreira
padamente sobre tudo o que de mais relevante acontece.
117
Maria João Marques Optimismos Fazemo-lo em nome da liberdade – liberdade de expressão, mas
59
Opinião antigos e novos Crónica também liberdade económica – e de uma democracia adulta, in-
Mário Soares, formada e plural. Sem complexos e com muita ambição.
Ensaio A dança dos Paulo Tunhas Espírito de
o lutador
Maria João Avillez O consenso treinadores 107
escada Os fundadores,
30 Vasco Pulido Valente Luís Aguiar-Conraria Miguel Tamen António Carrapatoso, Duarte Schmidt Lino,
60 87 122 José Manuel Fernandes e Rui Ramos
8 OPINIÃO OPINIÃO 9

Quatro portugueses Marcelo “Se o elegeram, que o aturem.”


Cavaco “Não odeia ninguém, excep-
to quem não o acha tão admirável como
ele se acha.” Dionísio “Foi um mau
poeta, um mau romancista, um mau pin-
tor de fim-de-semana e, principalmente,
um mau crítico.” Soares “Viu desfilar os
seus inimigos íntimos pela televisão. Mas
Vasco Pulido Valente ganhou. Ganhámos nós.”
Marcelo Rebelo ou que pensou e não disse, precisa de um
certo treino e de uma certa vocação. Pena
imparcial e dedicado. Não admira que os
portugueses tenham feito dele ministro,
as coisas, com alguns ornamentos demo-
cráticos para disfarçar. Ora, os “media”
Assembleia, porque a Constituição não lhe
permitia interferir na política do Governo.
ratos portugueses o estrito acatamento
do “realismo socialista” de Jdanov, Mário
“comissão de saneamento” do Ministério
da Educação. Toda a vida se preparara
Isto, que lhe deu tempo para acabar
de se formar em Histórico-Filosóficas
de Sousa que o Estado e as finanças da ralé sofram
com isso. E que a Presidência da República,
primeiro-ministro e Presidente da Repú-
blica, embora seja um “intruso” na política,
criticavam, acusavam, distorciam. Um ou
outro, como O Independente, até nem se
E, em matéria de lei, ele como qualquer
director-geral era um devoto.
Dionísio saiu do partido, mas ficou até ao
fim da vida um “simpatizante” convicto.
para esse nobilíssimo papel. Quando o meu
pai morreu, deixou um quadro de Mário
e começar o curso de Direito, também
o deixou isolado e sem destino político
O mestre como o parlamento e os partidos, caia no
desprezo geral. Eanes, Soares, Sampaio
sem qualquer ambição pessoal e, sobretudo,
odeie o ruído à volta do seu nome e a curio-
coibiam de inventar notícias ou conspi-
rações. Mais do que isso faziam dele uma
A comparação é fácil, mas ao ler Quinta-
-Feira e Outros Dias, 500 e tal páginas sem
Conheci muito bem o indivíduo. Primeiro,
como professor de literatura portuguesa
Dionísio: não houve leiloeiro ou ferro-velho
que lhe pegasse.
evidente. Fora a actividade platónica de
um pequeno círculo de advogados da
da encrenca e Cavaco cometeram erros, consentiram sidade à volta da sua pessoa. Não enriqueceu figura do contínuo espectáculo da política uma ideia, sem um pensamento sobre a no Colégio Moderno de João Soares (avô) Baixa, não havia nesse tempo desértico
abusos, mas nunca se arriscaram ao ri- com as posições a que foi elevado. Quando indígena e ele não gosta de escândalos situação e o futuro de Portugal, sem uma e, depois, porque os meus pais, igualmen- nada a que ele pudesse aplicar a sua ha-
dículo e as querelas pueris, a que o vivaz
Marcelo diariamente se presta. A República
está em Lisboa, vive num apartamento
modesto (suponho que arrendado) e, no
como o escândalo das “escutas”, que vários
peritos dizem que ele próprio inventou.
crítica ao sistema político, mas saturadas
de uma satisfação incompreensível, não
te devotos da seita, eram amigos dele.
À sexta-feira, havia sempre uma reunião
Mário Soares bilidade e energia política. De quando em
quando, lá vinha um abaixo-assinado ou
pede por força um Presidente; e a nossa,
com origem militar, deu a essa personagem
Algarve, na “Casa da Gaivota Azul”, assim
poeticamente chamada em homenagem a
Fosse como fosse, apesar de alguns percal-
ços, Cavaco conseguiu ficar no seu casulo,
consegui esquecer Eça e os seus políticos:
o conde de Abranhos, o conde de Gouva-
em casa de Mário Dionísio, cuja função
era discutir a “linha correcta” para o PC,
Uma protesto de personalidades, que no fundo
só serviam para actualizar os ficheiros da
um papel, aliás, pouco a pouco limitado, uma espécie de poema que Vasco Graça sem um acto decisivo que impedisse ou rinho, o genial Pacheco e o conselheiro os “desvios” ideológicos da “inteligência” democracia PIDE. A oposição foi um incómodo para
mas que, de qualquer maneira, ainda é Moura lhe fez, não sei com que intenções, moderasse a crise em que o país caiu. Acácio. Reconheço, repito, a banalidade. indígena e, lateralmente, as malfeitorias da a Ditadura, mas nunca foi uma verda-
excessivo e lhe permite uma ingerência e que também tem, benefício da arte, um O que ele gostava naquele lugar do Estado Só que esta banalidade tem a vantagem Ditadura. Faziam parte deste grupo João contra a deira ameaça. Certamente sem grande
constante na política partidária.
Com Marcelo em Belém não consigo
painel de azulejos do imortal Cargaleiro.
Sendo um bom católico e um homem de
era da proeminência que a situação lhe dava
e da sensação de pertencer aos regentes do
de ser verdadeira. Cochofel e a mulher, a pianista Maria da
Graça Amado da Cunha e o marido (Roger vontade do esperança e por puro desemprego cívico,
Soares funda em 1955, a Resistência Re-
conceber onde iremos parar. Ou consigo:
iremos de encrenca em encrenca até ao
paz, Cavaco não odeia ninguém, excepto,
claro, a gente que não o acha tão admirá-
mundo. Com todo o cuidado apresenta no
livro a prova fotográfica dos seus encontros Mário Dionísio
de Avelar), o erudito excêntrico Huertas
Lobo e uma ou outra figura de passeio.
PC e do MFA publicana com uma dezena de amigos,
que não se distinguiu por coisa alguma
Quem conheceu Marcelo nestes desastre final. vel como ele se acha, que lhe atrapalhou com as celebridades que viu e ele julga que A partir dos doze, treze anos, comecei a na vida política portuguesa; e adere ao
quarenta anos de democracia com certeza a vida, que não lhe obedeceu ou por puro lhe dão lustre e por reflexo provam a sua Ninguém ser arrastado para esta catequese e passei Directório Democrático Social de três
não se espanta com a encrenca que ele desvario disse mal dele. Essa longa lista co- importância pessoal: presidentes, primei- muitas noites – calado e quieto – a ouvir figuras venerandas da democracia (An-
agora arranjou com o primeiro-ministro
Cavaco Silva meça com Mário Soares (a grande força de ros-ministros, papas e similares. A vaidade recorda, aquela gente perorar. tónio Sérgio, Jaime Cortesão e Azevedo
e o ministro das Finanças. Onde ele pode
baralhar as coisas, baralha – pelo prazer, Nem às quintas-
“bloqueio”) que em Belém intrigava contra
ele, que assistia sonolentamente às reuniões
paroquial do homem não tem medida; com
os seus três papas, em particular, quase que ninguém lê Mário Dionísio, como é evidente, pre-
sidia. Os meus pais mal abriam a boca: a
Gomes), que eram um símbolo mais do
que uma força.
por impulso, porque a sua natureza o im- de quinta-feira e que no fundo (coisa que se baba. Em contrapartida, o que mais lhe minha mãe não tinha qualquer qualificação Entretanto o mundo mudava. Em 1958,
pede de se calar, quando devia ficar calado,
ou de falar quando devia falar. Com vinte
-feiras nem aos não escapou a Cavaco) o desprezava. Mas
Vítor Constâncio (governador do Banco de
custava eram as reuniões com Sócrates (118
contou ele com o zelo com que contava a sua
formal e o meu pai não passava de um en-
genheiro químico, ainda por cima director
aparece surpreendentemente a candida-
tura de Humberto Delgado (com o apoio
anos, foi o “lélé da cuca” e a “vichyssoise”. outros dias Portugal) vem a seguir com a maioria dos assiduidade ao leito conjugal). Em primeiro de uma empresa. Mas, calados que estives- de Soares), que revelou ao melancólico
Depois vieram outras mais graves, menos dirigentes socialistas – e com Sócrates, um lugar, ele achava que Sócrates não passava sem, não escapavam à crítica do seu estilo país da Ditadura a extensão e a fúria de
graves, numa sucessão irresistível até à aldrabão, um ignorante e um obstinado, de um mentiroso sempre pronto para o de vida. Tiveram de prometer não gastar uma boa parte da população. E, em 1962,
Presidência da República, onde ele tem dado a cenas de hipocrisia e a fúrias contra enganar. E, depois, Sócrates não percebia mais do que ganhava um funcionário de Parte I a chamada “crise académica”, para grande
finalmente a oportunidade de exercer o tudo e contra todos. De qualquer maneira, o que lhe diziam, se o que lhe diziam não Estado médio, não usar o carro em viagens a carreira de Mário Soares não teve nada estupefacção dos próceres do regime,
seu talento e consolar o espírito. Mesmo e tirando estes parceiros da cena política, o concordava com os seus planos. Cavaco de prazer e não me vestir luxuosamente. de particularmente notável até 1962. Como veio provar que nem com os filhos da
na televisão, os comentários dele eram inimigo principal de Cavaco eram os “me- tomava notas numa estenografia secreta O povo passava fome e um bom comunista muito boa gente, começou aos vinte anos burguesia podiam contar. Infelizmente,
sempre sobre a habilidade de cada um dia”, que merecem um parágrafo à parte. (que ele inventara na Faculdade) para se não devia viver como um milionário. Foi pelo PC, atraído pela aventura (e os perigos as relações entre os dirigentes da “crise”
para enganar o próximo e o bom povo, Tanto como primeiro-ministro, como precaver de Sócrates e tentou até ao fim assim que, com muita raiva minha, usei dela), pelo radicalismo e pelo facto simples e Mário Soares não foram boas. Primeiro,
a quem hoje ele inunda de “afecto”, num Presidente da República, ele execrou vis- meter naquela cabeça irascível meia dúzia É celebrado este ano o centenário calça curta e casacos voltados durante o de não existir na oposição qualquer outra por culpa dos dirigentes da “crise”, que
espectáculo pelo menos pouco sério. Há ceralmente “os media”. A concepção de de noções elementares de economia e de de uma pessoa de que hoje ninguém se liceu inteiro, ou quase. alternativa. Com o PC e pelo PC trabalhou com uma ridícula arrogância desprezavam
quem goste e há quem se desgoste. Não política que o guiava era uma concepção finanças. Sem resultado. lembra e que ninguém lê, Mário Dioní- Fora isso, Mário Dionísio, justiça lhe seja no MUD e, a seguir, na candidatura de Nor- a “velha” oposição republicana (mas não
interessa. Se o elegeram, que o aturem. de director-geral: o chefe bem informado A conclusão deste melodrama foi que os sio. Foi um mau poeta, um mau roman- feita, defendeu meia dúzia de escritores ton de Matos à Presidência da República. o PC). Eles mobilizavam de um dia para o
De resto, Marcelo em parte não tem cul- Cavaco é um homem exemplar: bom e ajudado por especialistas, despachava portugueses acabaram por sofrer uma cri- cista, um mau pintor de fim-de-semana contra a fúria jdanovista do tempo, entre A “colaboração” com os comunistas, se outro milhares de estudantes, tinham uma
pa. A espécie de sarilho em que desta vez filho, trabalhador, responsável, óptimo no seu gabinete, longe do ruído da rua, se, que o Presidente e o primeiro-ministro e, principalmente, um mau crítico. Mas os quais José Cardoso Pires que me des- assim se pode chamar, porque ele chegou espécie de imprensa (em stencil), tinham
resolveu meter-se exige parceiros e ele marido (em 50 anos de casado só não dor- a bem “do superior interesse da nação”; podiam adiar e com certeza atenuar. Ca- no cume do antifascismo, logo a seguir creveu mais tarde os tremores com que a dirigente, não resistiu à ineficiência e instalações, tinham automóveis e tinham
descobriu dois com muitas possibilidades: miu na mesma cama da mulher 1 por cento o Governo e o Parlamento aprovavam e a vaco previu o que ia acontecer desde pelo à guerra, foi também o “controleiro” do tinha ido apresentar Os Caminheiros ao à intolerância geral da seita. Em 1950, é dinheiro. E o que tinham os democratas da
Centeno e Costa. O jogo do diz que disse e das noites, uma façanha pela qual a nação populaça fazia o que lhe mandassem. Tal menos 2008. Mas não achou necessário PC para o “sector intelectual”. Quando sumo sacerdote da ideologia. Como seria expulso do “Partido” por “indisciplina” e Baixa, excepto 30 anos de mal empregada
que não disse, ou que disse e não pensou, inteira o admira), perfeito pai, honesto, qual como o prof. Salazar gostava de fazer prevenir os portugueses ou dissolver a Cunhal, já preso, exigiu aos pobres lite- de esperar, Dionísio acabou a presidir à “derrotismo”. indignação e de conspirações falhadas?
8 OPINIÃO OPINIÃO 9

Quatro portugueses Marcelo “Se o elegeram, que o aturem.”


Cavaco “Não odeia ninguém, excep-
to quem não o acha tão admirável como
ele se acha.” Dionísio “Foi um mau
poeta, um mau romancista, um mau pin-
tor de fim-de-semana e, principalmente,
um mau crítico.” Soares “Viu desfilar os
seus inimigos íntimos pela televisão. Mas
Vasco Pulido Valente ganhou. Ganhámos nós.”
Marcelo Rebelo ou que pensou e não disse, precisa de um
certo treino e de uma certa vocação. Pena
imparcial e dedicado. Não admira que os
portugueses tenham feito dele ministro,
as coisas, com alguns ornamentos demo-
cráticos para disfarçar. Ora, os “media”
Assembleia, porque a Constituição não lhe
permitia interferir na política do Governo.
ratos portugueses o estrito acatamento
do “realismo socialista” de Jdanov, Mário
“comissão de saneamento” do Ministério
da Educação. Toda a vida se preparara
Isto, que lhe deu tempo para acabar
de se formar em Histórico-Filosóficas
de Sousa que o Estado e as finanças da ralé sofram
com isso. E que a Presidência da República,
primeiro-ministro e Presidente da Repú-
blica, embora seja um “intruso” na política,
criticavam, acusavam, distorciam. Um ou
outro, como O Independente, até nem se
E, em matéria de lei, ele como qualquer
director-geral era um devoto.
Dionísio saiu do partido, mas ficou até ao
fim da vida um “simpatizante” convicto.
para esse nobilíssimo papel. Quando o meu
pai morreu, deixou um quadro de Mário
e começar o curso de Direito, também
o deixou isolado e sem destino político
O mestre como o parlamento e os partidos, caia no
desprezo geral. Eanes, Soares, Sampaio
sem qualquer ambição pessoal e, sobretudo,
odeie o ruído à volta do seu nome e a curio-
coibiam de inventar notícias ou conspi-
rações. Mais do que isso faziam dele uma
A comparação é fácil, mas ao ler Quinta-
-Feira e Outros Dias, 500 e tal páginas sem
Conheci muito bem o indivíduo. Primeiro,
como professor de literatura portuguesa
Dionísio: não houve leiloeiro ou ferro-velho
que lhe pegasse.
evidente. Fora a actividade platónica de
um pequeno círculo de advogados da
da encrenca e Cavaco cometeram erros, consentiram sidade à volta da sua pessoa. Não enriqueceu figura do contínuo espectáculo da política uma ideia, sem um pensamento sobre a no Colégio Moderno de João Soares (avô) Baixa, não havia nesse tempo desértico
abusos, mas nunca se arriscaram ao ri- com as posições a que foi elevado. Quando indígena e ele não gosta de escândalos situação e o futuro de Portugal, sem uma e, depois, porque os meus pais, igualmen- nada a que ele pudesse aplicar a sua ha-
dículo e as querelas pueris, a que o vivaz
Marcelo diariamente se presta. A República
está em Lisboa, vive num apartamento
modesto (suponho que arrendado) e, no
como o escândalo das “escutas”, que vários
peritos dizem que ele próprio inventou.
crítica ao sistema político, mas saturadas
de uma satisfação incompreensível, não
te devotos da seita, eram amigos dele.
À sexta-feira, havia sempre uma reunião
Mário Soares bilidade e energia política. De quando em
quando, lá vinha um abaixo-assinado ou
pede por força um Presidente; e a nossa,
com origem militar, deu a essa personagem
Algarve, na “Casa da Gaivota Azul”, assim
poeticamente chamada em homenagem a
Fosse como fosse, apesar de alguns percal-
ços, Cavaco conseguiu ficar no seu casulo,
consegui esquecer Eça e os seus políticos:
o conde de Abranhos, o conde de Gouva-
em casa de Mário Dionísio, cuja função
era discutir a “linha correcta” para o PC,
Uma protesto de personalidades, que no fundo
só serviam para actualizar os ficheiros da
um papel, aliás, pouco a pouco limitado, uma espécie de poema que Vasco Graça sem um acto decisivo que impedisse ou rinho, o genial Pacheco e o conselheiro os “desvios” ideológicos da “inteligência” democracia PIDE. A oposição foi um incómodo para
mas que, de qualquer maneira, ainda é Moura lhe fez, não sei com que intenções, moderasse a crise em que o país caiu. Acácio. Reconheço, repito, a banalidade. indígena e, lateralmente, as malfeitorias da a Ditadura, mas nunca foi uma verda-
excessivo e lhe permite uma ingerência e que também tem, benefício da arte, um O que ele gostava naquele lugar do Estado Só que esta banalidade tem a vantagem Ditadura. Faziam parte deste grupo João contra a deira ameaça. Certamente sem grande
constante na política partidária.
Com Marcelo em Belém não consigo
painel de azulejos do imortal Cargaleiro.
Sendo um bom católico e um homem de
era da proeminência que a situação lhe dava
e da sensação de pertencer aos regentes do
de ser verdadeira. Cochofel e a mulher, a pianista Maria da
Graça Amado da Cunha e o marido (Roger vontade do esperança e por puro desemprego cívico,
Soares funda em 1955, a Resistência Re-
conceber onde iremos parar. Ou consigo:
iremos de encrenca em encrenca até ao
paz, Cavaco não odeia ninguém, excepto,
claro, a gente que não o acha tão admirá-
mundo. Com todo o cuidado apresenta no
livro a prova fotográfica dos seus encontros Mário Dionísio
de Avelar), o erudito excêntrico Huertas
Lobo e uma ou outra figura de passeio.
PC e do MFA publicana com uma dezena de amigos,
que não se distinguiu por coisa alguma
Quem conheceu Marcelo nestes desastre final. vel como ele se acha, que lhe atrapalhou com as celebridades que viu e ele julga que A partir dos doze, treze anos, comecei a na vida política portuguesa; e adere ao
quarenta anos de democracia com certeza a vida, que não lhe obedeceu ou por puro lhe dão lustre e por reflexo provam a sua Ninguém ser arrastado para esta catequese e passei Directório Democrático Social de três
não se espanta com a encrenca que ele desvario disse mal dele. Essa longa lista co- importância pessoal: presidentes, primei- muitas noites – calado e quieto – a ouvir figuras venerandas da democracia (An-
agora arranjou com o primeiro-ministro
Cavaco Silva meça com Mário Soares (a grande força de ros-ministros, papas e similares. A vaidade recorda, aquela gente perorar. tónio Sérgio, Jaime Cortesão e Azevedo
e o ministro das Finanças. Onde ele pode
baralhar as coisas, baralha – pelo prazer, Nem às quintas-
“bloqueio”) que em Belém intrigava contra
ele, que assistia sonolentamente às reuniões
paroquial do homem não tem medida; com
os seus três papas, em particular, quase que ninguém lê Mário Dionísio, como é evidente, pre-
sidia. Os meus pais mal abriam a boca: a
Gomes), que eram um símbolo mais do
que uma força.
por impulso, porque a sua natureza o im- de quinta-feira e que no fundo (coisa que se baba. Em contrapartida, o que mais lhe minha mãe não tinha qualquer qualificação Entretanto o mundo mudava. Em 1958,
pede de se calar, quando devia ficar calado,
ou de falar quando devia falar. Com vinte
-feiras nem aos não escapou a Cavaco) o desprezava. Mas
Vítor Constâncio (governador do Banco de
custava eram as reuniões com Sócrates (118
contou ele com o zelo com que contava a sua
formal e o meu pai não passava de um en-
genheiro químico, ainda por cima director
aparece surpreendentemente a candida-
tura de Humberto Delgado (com o apoio
anos, foi o “lélé da cuca” e a “vichyssoise”. outros dias Portugal) vem a seguir com a maioria dos assiduidade ao leito conjugal). Em primeiro de uma empresa. Mas, calados que estives- de Soares), que revelou ao melancólico
Depois vieram outras mais graves, menos dirigentes socialistas – e com Sócrates, um lugar, ele achava que Sócrates não passava sem, não escapavam à crítica do seu estilo país da Ditadura a extensão e a fúria de
graves, numa sucessão irresistível até à aldrabão, um ignorante e um obstinado, de um mentiroso sempre pronto para o de vida. Tiveram de prometer não gastar uma boa parte da população. E, em 1962,
Presidência da República, onde ele tem dado a cenas de hipocrisia e a fúrias contra enganar. E, depois, Sócrates não percebia mais do que ganhava um funcionário de Parte I a chamada “crise académica”, para grande
finalmente a oportunidade de exercer o tudo e contra todos. De qualquer maneira, o que lhe diziam, se o que lhe diziam não Estado médio, não usar o carro em viagens a carreira de Mário Soares não teve nada estupefacção dos próceres do regime,
seu talento e consolar o espírito. Mesmo e tirando estes parceiros da cena política, o concordava com os seus planos. Cavaco de prazer e não me vestir luxuosamente. de particularmente notável até 1962. Como veio provar que nem com os filhos da
na televisão, os comentários dele eram inimigo principal de Cavaco eram os “me- tomava notas numa estenografia secreta O povo passava fome e um bom comunista muito boa gente, começou aos vinte anos burguesia podiam contar. Infelizmente,
sempre sobre a habilidade de cada um dia”, que merecem um parágrafo à parte. (que ele inventara na Faculdade) para se não devia viver como um milionário. Foi pelo PC, atraído pela aventura (e os perigos as relações entre os dirigentes da “crise”
para enganar o próximo e o bom povo, Tanto como primeiro-ministro, como precaver de Sócrates e tentou até ao fim assim que, com muita raiva minha, usei dela), pelo radicalismo e pelo facto simples e Mário Soares não foram boas. Primeiro,
a quem hoje ele inunda de “afecto”, num Presidente da República, ele execrou vis- meter naquela cabeça irascível meia dúzia É celebrado este ano o centenário calça curta e casacos voltados durante o de não existir na oposição qualquer outra por culpa dos dirigentes da “crise”, que
espectáculo pelo menos pouco sério. Há ceralmente “os media”. A concepção de de noções elementares de economia e de de uma pessoa de que hoje ninguém se liceu inteiro, ou quase. alternativa. Com o PC e pelo PC trabalhou com uma ridícula arrogância desprezavam
quem goste e há quem se desgoste. Não política que o guiava era uma concepção finanças. Sem resultado. lembra e que ninguém lê, Mário Dioní- Fora isso, Mário Dionísio, justiça lhe seja no MUD e, a seguir, na candidatura de Nor- a “velha” oposição republicana (mas não
interessa. Se o elegeram, que o aturem. de director-geral: o chefe bem informado A conclusão deste melodrama foi que os sio. Foi um mau poeta, um mau roman- feita, defendeu meia dúzia de escritores ton de Matos à Presidência da República. o PC). Eles mobilizavam de um dia para o
De resto, Marcelo em parte não tem cul- Cavaco é um homem exemplar: bom e ajudado por especialistas, despachava portugueses acabaram por sofrer uma cri- cista, um mau pintor de fim-de-semana contra a fúria jdanovista do tempo, entre A “colaboração” com os comunistas, se outro milhares de estudantes, tinham uma
pa. A espécie de sarilho em que desta vez filho, trabalhador, responsável, óptimo no seu gabinete, longe do ruído da rua, se, que o Presidente e o primeiro-ministro e, principalmente, um mau crítico. Mas os quais José Cardoso Pires que me des- assim se pode chamar, porque ele chegou espécie de imprensa (em stencil), tinham
resolveu meter-se exige parceiros e ele marido (em 50 anos de casado só não dor- a bem “do superior interesse da nação”; podiam adiar e com certeza atenuar. Ca- no cume do antifascismo, logo a seguir creveu mais tarde os tremores com que a dirigente, não resistiu à ineficiência e instalações, tinham automóveis e tinham
descobriu dois com muitas possibilidades: miu na mesma cama da mulher 1 por cento o Governo e o Parlamento aprovavam e a vaco previu o que ia acontecer desde pelo à guerra, foi também o “controleiro” do tinha ido apresentar Os Caminheiros ao à intolerância geral da seita. Em 1950, é dinheiro. E o que tinham os democratas da
Centeno e Costa. O jogo do diz que disse e das noites, uma façanha pela qual a nação populaça fazia o que lhe mandassem. Tal menos 2008. Mas não achou necessário PC para o “sector intelectual”. Quando sumo sacerdote da ideologia. Como seria expulso do “Partido” por “indisciplina” e Baixa, excepto 30 anos de mal empregada
que não disse, ou que disse e não pensou, inteira o admira), perfeito pai, honesto, qual como o prof. Salazar gostava de fazer prevenir os portugueses ou dissolver a Cunhal, já preso, exigiu aos pobres lite- de esperar, Dionísio acabou a presidir à “derrotismo”. indignação e de conspirações falhadas?
10 OPINIÃO

Mas, fora isso, que já não era pouco, o livre, Soares tinha tempo e meios para indústria pesada e as grandes propriedades 38 por cento em Soares e à volta de 12 por
pessoal do movimento académico, quan- expandir e fortalecer a ASP, que em 1972 fundiárias do sul). Ao resto de Portugal, o cento no PC.
do não militava no Partido Comunista, a Internacional Socialista admitiu como PC dava licença de ir à sua vidinha, com os Mas nem perante esta arrasadora evi-
exibia – por competição e para defesa membro pleno; e para escrever um livro, sindicatos submetidos à CGTP e a adminis- dência a “festa” terminou. À boa maneira
própria – um radicalismo que Soares já o Portugal Amordaçado, publicado em tração central e local ocupada por militantes leninista, a televisão e a imprensa insulta-
várias vezes rejeitara. A geração de 1962 francês. Mas nem nestes anos de solidão e por “amigos com provas”. vam e caricaturavam a Assembleia, houve
ficou por isso longe da social-democracia se aproximou dos novos “resistentes”, O bom povo compreendeu que este cercos de operários indignados por causa
europeia e do futuro PS até muito depois que haviam fugido à PIDE, à guerra e a magnífico plano o levaria rapidamente à dos representantes do país se atreverem
do “25 de Abril”. Penamacor (uma unidade penal), e que miséria e uma larga parte dos militares, a discutir os problemas do país, Cunhal
De qualquer maneira estas pequenas em Paris se deixaram absorver pelo “re- duramente analfabetos, acharam que na garantia a uma senhora italiana (muito
questões domésticas interessavam pouco nascimento marxista”, conduzido por um sociedade do dr. Cunhal ficariam ao abrigo célebre nessa altura) que em Portugal nun-
perante a guerra de África, que em 1961 louco, Louis Althusser, que acabou por se de qualquer represália, excepto eviden- ca haveria uma “democracia burguesa”.
começou em Angola. Dos políticos por- proclamar um profeta e matar a mulher. temente das represálias que o dr. Cunhal A “inteligência” de cá desceu a abismos
tugueses com uma certa notoriedade só De revista para revista, esta gente discutia resolvesse aplicar-lhes por desobediência de indignidade a que raramente alguém
Soares percebeu que a Ditadura deixara com ódio teológico as miudezas da sua ou “desvio” político. O problema do dr. desceu e a seguir andou anos a comprar
de ser um pequeno problema de um país fé, enquanto Soares tratava do que era Soares era instilar um pouco de bom senso do seu bolso os seus próprios livros, com
pequeno e sem influência para se tornar importante e consequente. e realismo em algumas cabeças do MFA; o fim de purificar o mercado e de aparecer
um problema internacional, em que tarde Por essa altura, já o império soviético e ir resistindo ao assalto do PC ao Estado limpinha ao dr. Mário Soares.
ou cedo as grandes potências se envolve- começava a desfazer-se. A Europa de Leste e às “culminâncias” da economia, uma A atmosfera de medo e de intimidação
riam. A oposição já não se fazia, ou devia e a própria URSS estavam endividadas benemérita actividade a que a “inteligência não parou com as eleições de 75. As manifes-
fazer, em Lisboa ou no Alentejo, mas na ao Ocidente até ao pescoço e a URSS, em indígena” prestou os seus zelosos serviços. tações continuavam, a censura apertou nos
América e na Europa, principalmente na particular, não queria pagar uma segunda Posto isto, o PS precisava também de jornais, na RTP e nas rádios. José Saramago
Europa. Em 1962, Soares transformou a Cuba ao dr. Álvaro Cunhal e mesmo depois reforçar a sua organização e de se estender apelava à revolta no Diário de Notícias.
Resistência Republicana em Resistência do “25 de Abril” foi parca com o PCP e crí- a todo o país. Em 1974, o partido não ia Quem falava no Parlamento ou em votos
Republicana Socialista e, em 1964, criou tica da política “revolucionária”. A Europa além de algumas venerandas figuras da era um puro “burguês” dedicado a esmagar
na Suíça a Acção Socialista Portuguesa, ocidental, pelo contrário, ainda não sentia I República, de alguma Maçonaria e de as “classes trabalhadoras”. E começaram a
uma maneira hábil de se ir ligando aos a gravidade da sua decadência e abria a cinco ou seis dúzias de drs., espalhados correr rumores de guerra civil. Os rumores
grandes partidos europeus. porta a um (ainda modesto) alargamento. pelo Porto e por Lisboa. A geração da crise eram absurdos por três razões. Primeiro,
Estabelecer a credibilidade da oposição Soares já se tornara parte dessa Europa. académica rejeitou quase completamente porque nenhuma das partes tinha dinheiro.
portuguesa num Ocidente anticomunista e Conheceu Brandt, Schmidt, Callaghan, o que lhe parecia ser um instrumento do Segundo, porque a “revolução” indisciplina-
desconfiado era uma extraordinária tare- Nenni, Mitterrand e a generalidade das “sub-imperialismo” alemão. Não achava ra as tropas do PC (e a URSS proibira dispa-
fa para um extraordinário homem. Sem a grandes personagens que, tarde ou cedo, o PS “revolucionário” que lhe chegasse e rates). Terceiro, porque a gente de Otelo não
sobre-humana simpatia e a sobre-humana decidiriam do nosso destino. fundou o MES (uma sombra do MIR chi- passava de uma mascarada sem valor mili-
confiança de Mário Soares talvez fosse im- Em 1973, fundara o PS na Alemanha, leno) e, quando o MES se desfez numa tar. Não podia haver uma guerra civil, mas
possível. Mas, pouco a pouco, ele conseguiu; com dinheiro alemão e o patrocínio do inqualificável loucura, os mais sensatos (11 podia haver uma matança e algumas figuras
e Salazar percebeu. O regime não se inquie- SPD, e no dia em que desembarcou em ou 12, se isso) passaram a almoçar juntos justificadamente trataram de se esconder ou
tava excessivamente com a agitação da Baixa Santa Apolónia não desembarcava sem num hotel de Lisboa, sob a designação de de tomar precauções. Soares, com a cabeça
ou com um ou outro protesto de estudantes, apoios, sem um instrumento e sem um GIS (ou Grupo de Intervenção Socialista). a prémio, foi à Alameda e a seguir ajudou,
nem sequer com as raras greves que o PC papel. Havia muita força sob a sua apa- Escusado será dizer que não intervieram à sua maneira, o golpe de 25 de Novem-
ia promovendo. Mas Soares falando à solta rente fraqueza. em nada de consequente. bro, que removeu de cena os partidários
na América, na Alemanha ou em Inglaterra, Mas, mesmo sem eles, Soares conseguiu do PREC.
era um risco real, ainda por cima com uma suster ou moderar os golpes — porque Infelizmente, o dito PREC deixara Por-
guerra em curso e sendo ele advogado do Parte II eram verdadeiros golpes, preparados na tugal em ruínas e os militares no centro do
general Humberto Delgado, que a PIDE Tirando as fantasias de Spínola, havia em sombra e executados à revelia dos poderes regime político. O Presidente da República
matara. Salazar não hesitou em o desterrar 26 de Abril de 1974 três forças políticas: o nominalmente legais — do PC e do MFA. (Eanes) comandava efectivamente o eExér-
para S. Tomé. Partido Comunista (que tinha um progra- Durante meses pôs na rua manifestações cito. O Conselho da Revolução, sem espécie
Quando ascendeu a Presidente do Con- ma), o MFA (que estava armado) e Mário cada vez maiores de um povo que, ao con- de mandato, aprovava ou desaprovava a
selho, Marcelo Caetano, provavelmente Soares, que a Europa conhecia e estimava. trário do “slogan”, se começava a desu- legislação da Assembleia, com o propó-
para mostrar o seu duvidoso liberalismo, No I Governo Provisório, Soares foi mi- nir. Quando uma greve de tipógrafos (não sito de preservar intacta a sua preciosa
arranjou uma tranquibérnia jurídica para nistro dos Negócios Estrangeiros, com o de jornalistas) fechou o jornal socialista “revolução”. Mas Soares, Balsemão, Freitas
permitir que Soares voltasse a Portugal. encargo de “negociar” a descolonização A República, Portugal e a Europa compre- do Amaral e Mota Pinto, entre si e contra
Voltou e imediatamente concorreu à elei- (na balbúrdia dos tempos a trapalhada era enderam de uma vez quem eram o MFA e algumas facções internas no PS e mesmo
ção para a Assembleia Nacional (como na quase uma regra). Muita gente o criticou o dr. Cunhal. no PSD, acabaram por meter os militares
altura se chamava o “parlamento”) com depois, sem perceber que nenhuma “ne- E o dr. Cunhal e o MFA ficaram mais nos quartéis, sem lhes deixar um vestígio
uma lista de gente socialista ou próxima gociação” era possível quando o Exército longe de resolver o seu grande problema: de influência política.
do socialismo, rompendo com a tradição se insurreccionara precisamente para sair a eleição para a Constituinte. Prometida Nesse ponto crítico, Eanes, a meses de sair
de “unidade” anti-salazarista sob a qual o de África. Ficava a Soares, pela ausência de pelo programa original dos militares, sinal de Belém, decidiu organizar um novo partido
Partido Comunista se disfarçava sempre. outro qualquer aliado, o trabalho de esta- para o mundo da boa-fé dos “revolucioná- para ele e para os amigos: o PRD. Mas Soares,
Mais do que isso. Marcelo prometera elei- belecer uma democracia contra a vontade rios” do dia essa eleição tinha de se fazer entretanto eleito Presidente da República,
ções “honestas” (que evidentemente o não do PC e do MFA. e, simultaneamente, não se podia fazer. Se não o deixou viver. À primeira oportunidade
seriam) e Mário Soares trouxe a Portugal O PC não queria impor aqui o “socialismo por acaso se fizesse, ganhava Soares e todo dissolveu a Assembleia, sabendo perfeita-
um grupo de inspectores da Internacional real” da Europa de Leste, que os russos não o plano de Cunhal e dos seus camaradas mente que ia entregar uma maioria a Cavaco.
Socialista, que as declararam falsas. Dali podiam sustentar. Como Cunhal se fartou do MFA iria abaixo. E, se por acaso não se E, de facto, entregou, porque o PRD juntava
em diante, a presença em Portugal do ho- de explicar, só queria uma “democracia de fizesse, a ilegitimidade do PREC (como na só o oportunismo e ressentimento e sem po-
mem que o denunciara em público como tipo diferente”, um conceito muito falado altura sentimentalmente se chamava ao der não valia um cêntimo. Soares viu desfilar
mentiroso e que lhe retirara qualquer es- na guerra civil de Espanha e agora tirado delírio da esquerda) não deixaria a mais os seus inimigos íntimos pela televisão. Mas
pécie de legitimidade era intolerável para do ferro-velho da seita. Em que consistia leve dúvida a ninguém. Felizmente uma ganhou. Ganhámos nós.
Marcelo Caetano. Ameaçando Soares com essa antiga monstruosidade? No meio da parte do MFA, que se recusava a ser o braço
a prisão e o desterro, Marcelo conseguiu retórica do costume, consistia em fazer forte da repressão comunista e a receber Vasco Pulido Valente é historiador
que ele ficasse num exílio forçado até 1974. o Estado tomar conta dos “commanding ordens do PC, insistiu na eleição e calou a e colunista do Observador. O seu livro mais
Mas perdeu mais com esta manobra do heights” da economia (a energia – incluin- facção mais excitada do Exército. Em Abril recente reúne vários anos de crónicas sob
que ganhou. Por uma vez relativamente do o petróleo – a banca, as seguradoras, a de 1975, o povo desunido votou: à volta de o título “De Mal a Pior”.
10 OPINIÃO

Mas, fora isso, que já não era pouco, o livre, Soares tinha tempo e meios para indústria pesada e as grandes propriedades 38 por cento em Soares e à volta de 12 por
pessoal do movimento académico, quan- expandir e fortalecer a ASP, que em 1972 fundiárias do sul). Ao resto de Portugal, o cento no PC.
do não militava no Partido Comunista, a Internacional Socialista admitiu como PC dava licença de ir à sua vidinha, com os Mas nem perante esta arrasadora evi-
exibia – por competição e para defesa membro pleno; e para escrever um livro, sindicatos submetidos à CGTP e a adminis- dência a “festa” terminou. À boa maneira
própria – um radicalismo que Soares já o Portugal Amordaçado, publicado em tração central e local ocupada por militantes leninista, a televisão e a imprensa insulta-
várias vezes rejeitara. A geração de 1962 francês. Mas nem nestes anos de solidão e por “amigos com provas”. vam e caricaturavam a Assembleia, houve
ficou por isso longe da social-democracia se aproximou dos novos “resistentes”, O bom povo compreendeu que este cercos de operários indignados por causa
europeia e do futuro PS até muito depois que haviam fugido à PIDE, à guerra e a magnífico plano o levaria rapidamente à dos representantes do país se atreverem
do “25 de Abril”. Penamacor (uma unidade penal), e que miséria e uma larga parte dos militares, a discutir os problemas do país, Cunhal
De qualquer maneira estas pequenas em Paris se deixaram absorver pelo “re- duramente analfabetos, acharam que na garantia a uma senhora italiana (muito
questões domésticas interessavam pouco nascimento marxista”, conduzido por um sociedade do dr. Cunhal ficariam ao abrigo célebre nessa altura) que em Portugal nun-
perante a guerra de África, que em 1961 louco, Louis Althusser, que acabou por se de qualquer represália, excepto eviden- ca haveria uma “democracia burguesa”.
começou em Angola. Dos políticos por- proclamar um profeta e matar a mulher. temente das represálias que o dr. Cunhal A “inteligência” de cá desceu a abismos
tugueses com uma certa notoriedade só De revista para revista, esta gente discutia resolvesse aplicar-lhes por desobediência de indignidade a que raramente alguém
Soares percebeu que a Ditadura deixara com ódio teológico as miudezas da sua ou “desvio” político. O problema do dr. desceu e a seguir andou anos a comprar
de ser um pequeno problema de um país fé, enquanto Soares tratava do que era Soares era instilar um pouco de bom senso do seu bolso os seus próprios livros, com
pequeno e sem influência para se tornar importante e consequente. e realismo em algumas cabeças do MFA; o fim de purificar o mercado e de aparecer
um problema internacional, em que tarde Por essa altura, já o império soviético e ir resistindo ao assalto do PC ao Estado limpinha ao dr. Mário Soares.
ou cedo as grandes potências se envolve- começava a desfazer-se. A Europa de Leste e às “culminâncias” da economia, uma A atmosfera de medo e de intimidação
riam. A oposição já não se fazia, ou devia e a própria URSS estavam endividadas benemérita actividade a que a “inteligência não parou com as eleições de 75. As manifes-
fazer, em Lisboa ou no Alentejo, mas na ao Ocidente até ao pescoço e a URSS, em indígena” prestou os seus zelosos serviços. tações continuavam, a censura apertou nos
América e na Europa, principalmente na particular, não queria pagar uma segunda Posto isto, o PS precisava também de jornais, na RTP e nas rádios. José Saramago
Europa. Em 1962, Soares transformou a Cuba ao dr. Álvaro Cunhal e mesmo depois reforçar a sua organização e de se estender apelava à revolta no Diário de Notícias.
Resistência Republicana em Resistência do “25 de Abril” foi parca com o PCP e crí- a todo o país. Em 1974, o partido não ia Quem falava no Parlamento ou em votos
Republicana Socialista e, em 1964, criou tica da política “revolucionária”. A Europa além de algumas venerandas figuras da era um puro “burguês” dedicado a esmagar
na Suíça a Acção Socialista Portuguesa, ocidental, pelo contrário, ainda não sentia I República, de alguma Maçonaria e de as “classes trabalhadoras”. E começaram a
uma maneira hábil de se ir ligando aos a gravidade da sua decadência e abria a cinco ou seis dúzias de drs., espalhados correr rumores de guerra civil. Os rumores
grandes partidos europeus. porta a um (ainda modesto) alargamento. pelo Porto e por Lisboa. A geração da crise eram absurdos por três razões. Primeiro,
Estabelecer a credibilidade da oposição Soares já se tornara parte dessa Europa. académica rejeitou quase completamente porque nenhuma das partes tinha dinheiro.
portuguesa num Ocidente anticomunista e Conheceu Brandt, Schmidt, Callaghan, o que lhe parecia ser um instrumento do Segundo, porque a “revolução” indisciplina-
desconfiado era uma extraordinária tare- Nenni, Mitterrand e a generalidade das “sub-imperialismo” alemão. Não achava ra as tropas do PC (e a URSS proibira dispa-
fa para um extraordinário homem. Sem a grandes personagens que, tarde ou cedo, o PS “revolucionário” que lhe chegasse e rates). Terceiro, porque a gente de Otelo não
sobre-humana simpatia e a sobre-humana decidiriam do nosso destino. fundou o MES (uma sombra do MIR chi- passava de uma mascarada sem valor mili-
confiança de Mário Soares talvez fosse im- Em 1973, fundara o PS na Alemanha, leno) e, quando o MES se desfez numa tar. Não podia haver uma guerra civil, mas
possível. Mas, pouco a pouco, ele conseguiu; com dinheiro alemão e o patrocínio do inqualificável loucura, os mais sensatos (11 podia haver uma matança e algumas figuras
e Salazar percebeu. O regime não se inquie- SPD, e no dia em que desembarcou em ou 12, se isso) passaram a almoçar juntos justificadamente trataram de se esconder ou
tava excessivamente com a agitação da Baixa Santa Apolónia não desembarcava sem num hotel de Lisboa, sob a designação de de tomar precauções. Soares, com a cabeça
ou com um ou outro protesto de estudantes, apoios, sem um instrumento e sem um GIS (ou Grupo de Intervenção Socialista). a prémio, foi à Alameda e a seguir ajudou,
nem sequer com as raras greves que o PC papel. Havia muita força sob a sua apa- Escusado será dizer que não intervieram à sua maneira, o golpe de 25 de Novem-
ia promovendo. Mas Soares falando à solta rente fraqueza. em nada de consequente. bro, que removeu de cena os partidários
na América, na Alemanha ou em Inglaterra, Mas, mesmo sem eles, Soares conseguiu do PREC.
era um risco real, ainda por cima com uma suster ou moderar os golpes — porque Infelizmente, o dito PREC deixara Por-
guerra em curso e sendo ele advogado do Parte II eram verdadeiros golpes, preparados na tugal em ruínas e os militares no centro do
general Humberto Delgado, que a PIDE Tirando as fantasias de Spínola, havia em sombra e executados à revelia dos poderes regime político. O Presidente da República
matara. Salazar não hesitou em o desterrar 26 de Abril de 1974 três forças políticas: o nominalmente legais — do PC e do MFA. (Eanes) comandava efectivamente o eExér-
para S. Tomé. Partido Comunista (que tinha um progra- Durante meses pôs na rua manifestações cito. O Conselho da Revolução, sem espécie
Quando ascendeu a Presidente do Con- ma), o MFA (que estava armado) e Mário cada vez maiores de um povo que, ao con- de mandato, aprovava ou desaprovava a
selho, Marcelo Caetano, provavelmente Soares, que a Europa conhecia e estimava. trário do “slogan”, se começava a desu- legislação da Assembleia, com o propó-
para mostrar o seu duvidoso liberalismo, No I Governo Provisório, Soares foi mi- nir. Quando uma greve de tipógrafos (não sito de preservar intacta a sua preciosa
arranjou uma tranquibérnia jurídica para nistro dos Negócios Estrangeiros, com o de jornalistas) fechou o jornal socialista “revolução”. Mas Soares, Balsemão, Freitas
permitir que Soares voltasse a Portugal. encargo de “negociar” a descolonização A República, Portugal e a Europa compre- do Amaral e Mota Pinto, entre si e contra
Voltou e imediatamente concorreu à elei- (na balbúrdia dos tempos a trapalhada era enderam de uma vez quem eram o MFA e algumas facções internas no PS e mesmo
ção para a Assembleia Nacional (como na quase uma regra). Muita gente o criticou o dr. Cunhal. no PSD, acabaram por meter os militares
altura se chamava o “parlamento”) com depois, sem perceber que nenhuma “ne- E o dr. Cunhal e o MFA ficaram mais nos quartéis, sem lhes deixar um vestígio
uma lista de gente socialista ou próxima gociação” era possível quando o Exército longe de resolver o seu grande problema: de influência política.
do socialismo, rompendo com a tradição se insurreccionara precisamente para sair a eleição para a Constituinte. Prometida Nesse ponto crítico, Eanes, a meses de sair
de “unidade” anti-salazarista sob a qual o de África. Ficava a Soares, pela ausência de pelo programa original dos militares, sinal de Belém, decidiu organizar um novo partido
Partido Comunista se disfarçava sempre. outro qualquer aliado, o trabalho de esta- para o mundo da boa-fé dos “revolucioná- para ele e para os amigos: o PRD. Mas Soares,
Mais do que isso. Marcelo prometera elei- belecer uma democracia contra a vontade rios” do dia essa eleição tinha de se fazer entretanto eleito Presidente da República,
ções “honestas” (que evidentemente o não do PC e do MFA. e, simultaneamente, não se podia fazer. Se não o deixou viver. À primeira oportunidade
seriam) e Mário Soares trouxe a Portugal O PC não queria impor aqui o “socialismo por acaso se fizesse, ganhava Soares e todo dissolveu a Assembleia, sabendo perfeita-
um grupo de inspectores da Internacional real” da Europa de Leste, que os russos não o plano de Cunhal e dos seus camaradas mente que ia entregar uma maioria a Cavaco.
Socialista, que as declararam falsas. Dali podiam sustentar. Como Cunhal se fartou do MFA iria abaixo. E, se por acaso não se E, de facto, entregou, porque o PRD juntava
em diante, a presença em Portugal do ho- de explicar, só queria uma “democracia de fizesse, a ilegitimidade do PREC (como na só o oportunismo e ressentimento e sem po-
mem que o denunciara em público como tipo diferente”, um conceito muito falado altura sentimentalmente se chamava ao der não valia um cêntimo. Soares viu desfilar
mentiroso e que lhe retirara qualquer es- na guerra civil de Espanha e agora tirado delírio da esquerda) não deixaria a mais os seus inimigos íntimos pela televisão. Mas
pécie de legitimidade era intolerável para do ferro-velho da seita. Em que consistia leve dúvida a ninguém. Felizmente uma ganhou. Ganhámos nós.
Marcelo Caetano. Ameaçando Soares com essa antiga monstruosidade? No meio da parte do MFA, que se recusava a ser o braço
a prisão e o desterro, Marcelo conseguiu retórica do costume, consistia em fazer forte da repressão comunista e a receber Vasco Pulido Valente é historiador
que ele ficasse num exílio forçado até 1974. o Estado tomar conta dos “commanding ordens do PC, insistiu na eleição e calou a e colunista do Observador. O seu livro mais
Mas perdeu mais com esta manobra do heights” da economia (a energia – incluin- facção mais excitada do Exército. Em Abril recente reúne vários anos de crónicas sob
que ganhou. Por uma vez relativamente do o petróleo – a banca, as seguradoras, a de 1975, o povo desunido votou: à volta de o título “De Mal a Pior”.
12 ASSALTO AO ESTADO 13

Assalto ao Estado O Observador investigou os


Flashback. Fevereiro de 2011. Luís partidário em posições-chave na adminis-
Pedro Mota Soares, deputado do CDS e tração do Estado.
futuro ministro, estava indignado naquela Com a entrada em funções do Governo
comissão parlamentar. Com uma série de
dados na mão, confrontava a socialista He- três últimos ciclos governativos de António Costa, no último ano e meio já
foram exonerados quatro diretores distri-

desde 2007 – governos


lena André, ministra do Trabalho de José tais da Segurança Social que vinham do
Sócrates, com a promoção de 41 dirigentes Governo do PSD/CDS: Faro, Lisboa, Porto e
na Segurança Social. “Todas estas pessoas Setúbal. Do que foi possível ao Observador

Rui Pedro Antunes e Vítor Matos de José Sócrates, Pedro Passos


têm uma ligação direta ao PS. Não tenho apurar, apenas dois desses dirigentes são
a mínima dúvida. O que está por detrás militantes socialistas.
Texto destas promoções?”, perguntava. O Observador também analisou todas as

Coelho e António Costa


Ilustração Lord Mantraste
Helena André recordou ao deputado nomeações dos últimos 10 anos nos mais de
de direita que, anos antes, o ministro da 80 centros de emprego locais espalhados
Segurança Social António Bagão Félix, por todo o país. Na base do IEFP, continua
próximo do CDS, tinha feito muito pior:
“Foi um despedimento de 18 diretores re- – para perceber a dimensão a haver uma preponderância dos partidos,
mas é menor do que nas posições de topo ou

da colonização do aparelho do
gionais, da Segurança Social, por fax, sem intermédias. Do que foi possível apurar em
a capacidade de enfrentar estes diretores, termos de filiação, nos 10 anos analisados
com uma conversa, como seria a forma para os três partidos — PS, PSD e CDS — foi
normal de se fazer em democracia.”
De facto, no dia 20 de setembro de 2002,
eram exatamente 21h41, 18 diretores distri-
Estado na Segurança Social possível identificar 39% de dirigentes com
cartão de militante. Segundo as contas do
Observador na base da pirâmide do IEFP
tais da Segurança Social foram despedidos
por fax por Bagão Félix, sem mais explica- e no Instituto do Emprego foram os socialistas a nomear mais gente
do seu partido: 38,2% das nomeações no

e Formação Profissional por


ções. Os dirigentes socialistas que estavam tempo de José Sócrates e 42,9% até agora
nos cargos caíram todos para serem nomea- no Governo de António Costa. Durante a
dos diretores com ligações ao PSD e ao CDS. governação de Passos Coelho, os boys nos

parte dos partidos no poder.


E quem nessa época denunciou a dança centros de emprego representavam pelo
das cadeiras foi o socialista Vieira da Silva, menos 30,7% dos dirigentes, tendo em conta
então deputado da oposição, que já tinha o que o Observador conseguiu identificar.
sido secretário de Estado daquela pasta e
não teve dúvidas em denunciar, indignado,
que se tratavam de “saneamentos políticos”.
E não há dúvida quanto É possível concluir que os cargos mais
apetecíveis e onde predominam as nome-
ações partidárias são no topo e nos cargos
Menos de três anos depois, o mesmo Viei-
ra da Silva assumia a pasta da Segurança aos 376 cargos analisados: intermédios da Segurança Social e do IEFP.
É nos cargos de direção superior que se

os boys tomam conta de tudo


Social, como ministro do Governo Sócra- manifesta de forma muito evidente o Estado
tes, e rapidamente trocava os 18 diretores clientelar. A preponderância de boys vai-
nomeados por Bagão por 18 militantes do -se diluindo depois na base (onde também
PS. Esta é uma matéria circular: por mais
voltas que se dê, todos os partidos fazem o
mesmo e todos partilham culpas no assalto
e não deixam (quase) nada. foi mais difícil ao Observador identificar
todas as ligações partidárias informais que
possam existir).
ao Estado. No geral, contabilizados os 376 cargos
A Segurança Social e o Instituto do Em- ao longo da última década, pelo menos 202
prego e Formação Profissional são um vi- foram ocupados por militantes dos partidos.
veiro dos chamados boys e uma amostra Isto significa que 53,7%, mais de metade,
exemplar da transumância de militantes António Costa — para perceber a dimensão nunciam os casos fazem exatamente o mes- eram militantes da cor política do Governo
dos partidos para os cargos dirigentes da da colonização do aparelho do Estado na mo quando chegam ao poder. Distribuem em funções.
administração pública. Sempre que estão Segurança Social e no Instituto do Em- estas posições pelo aparelho do partido Mesmo com o aparecimento da CRESAP
na oposição (ou melhor: só quando estão prego e Formação Profissional. E não há ou por quadros de confiança política que (Comissão de Recrutamento e Seleção para
na oposição), os partidos fazem sucessivas dúvida quanto aos 376 cargos analisados. já trabalharam no seu ciclo governativo. a Administração Pública), no tempo do Go-
denúncias dessa situação. Em 2010, Pedro Estas são das posições da administração O IEFP tem cinco delegações regionais — verno de Passos Coelho, o peso de boys no
Mota Soares até fez mais do que confrontar pública mais apetecíveis para militantes do Lisboa, Norte, Centro, Alentejo e Algarve aparelho do Estado manteve-se equilibrado.
a ministra Helena André com as nomeações PS, do PSD e do próprio CDS, que também — que correspondem às regiões plano, e Com Sócrates, 47,2% dos cargos da Segu-
políticas do PS. Ele pôs a circular um docu- já entra nas contas. que podem ser dirigidas por um delegado rança Social e do IEFP foram ocupados por
mento em PowerPoint a mostrar que todos No topo da pirâmide, os cartões partidá- regional e por um subdelegado, embora o militantes, mas com o Governo PSD/CDS,
os dirigentes dos centros da Segurança So- rios fazem o pleno. Pelo menos desde 2007, organigrama do instituto varie consoante que criou esta comissão para supostamente
cial — mas mesmo todos — eram socialistas, os cinco administradores do Instituto da os governos. Assim, durante a governação acabar com o assalto ao Estado, o peso das
como forma de demonstrar a colonização do Segurança Social e os quatro membros do de Sócrates, em 13 destes cargos (o con- nomeações partidárias subiu e chegou aos
aparelho de Estado pelo boys do Governo. Conselho Diretivo do IEFP são quase sem- junto de delegados e subdelegados nessa 49,2% (a maior percentagem registada nos
A indignação era tanta que o CDS trans- pre dos partidos do Governo, com raras ex- época), apenas quatro não tinham filiação três ciclos políticos analisados). No último
formaria esta atitude anticlientelar numa ceções. Ao longo da última década, dos 16 partidária evidente. No Governo PSD/CDS ano e meio, com António Costa no poder,
bandeira eleitoral nas eleições seguintes, nomes identificados pelo Observador que que se seguiu, estes cargos foram reduzi- é possível contabilizar 44,1% dos cargos
para se distinguir do PSD. O discurso acen- passaram pela administração do Instituto dos a cinco mas foram todos ocupados no mesmo setor ocupados por militantes
tuou-se antes das legislativas antecipadas da Segurança Social, só três não tinham por militantes e dirigentes do PSD. Com o partidários identificados como tal pelo
de junho de 2011: um dos argumentos de cartão partidário. Um caso para cada um novo Governo socialista, todos os sociais- Observador.
Paulo Portas na campanha era que o CDS dos três governos analisados. -democratas foram exonerados e dos oito Os políticos continuam a negar que haja
tinha “uma vantagem comparativa” por No que diz respeito ao Conselho Diretivo delegados que já foram escolhidos, só três uma relação partido-cargo. O atual ministro
“não depender do Estado para satisfazer do IEFP, os 13 nomes identificados ao lon- não têm filiação partidária identificada do Trabalho, Solidariedade e Segurança
clientelas”. Daí a importância de integrar go desta década eram todos dos partidos pelo Observador. Em quatro das cinco regi- Social, Vieira da Silva, afirma ao Observador
um Governo de coligação. Assim, poderia do Governo, menos Bernardo Sousa, que ões, Vieira da Silva nomeou independentes desconhecer “as filiações políticas e as pro-
atenuar a natureza tentacular do PSD. As foi nomeado para vogal quando o então para delegados, mas escolheu sempre um ximidades políticas de muitas pessoas que
eleições de junho de 2011 foram ganhas pela presidente do IEFP, Octávio Félix, subiu a socialista como número dois (na região são dirigentes”, e garante: “O que sei é que,
coligação PSD/CDS e Pedro Mota Soares secretário de Estado de Pedro Mota Soares remanescente são ambos socialistas). ao nível dos altos dirigentes que foram esco-
ascendeu a ministro da Solidariedade Social durante o Governo PSD/CDS. De resto, aos Mas se a preponderância de boys é alta no lhidos por este Governo neste ministério, a
e do Trabalho. Uma vez no lugar de Helena do PS sucederam dirigentes do PSD e do IEFP, ainda é maior nos Centros Distritais da sua esmagadora maioria, senão a totalidade,
André, mudou todos — mas todos mesmo CDS, aos quais sucederam novos dirigen- Segurança Social. Nos anos de José Sócrates foram escolhidos pela sua competência.”
— os boys socialistas nas 18 delegações re- tes ligados ao Partido Socialista. Nestas — quando Vieira da Silva e Helena André O anterior ministro Luís Pedro Mota So-
gionais da Segurança Social. Esses cargos posições de topo, muito próximas dos de- foram ministros —, os 18 centros distritais ares usou sempre o argumento de ter aca-
passaram a ser integralmente ocupados por cisores políticos, os militantes e dirigentes eram liderados por dirigentes do PS, que bado com os vogais dos centros distritais,
militantes com cartão do PSD ou do CDS. partidários têm o exclusivo das nomeações. foram substituídos durante o Governo de de modo a reduzir o número de dirigentes,
Mas vamos descer um patamar, para Passos Coelho, com a agravante de que nesta mas nunca explicou a razão de nomear ex-
Segurança Social as direções regionais. É a este nível que fase os nomes já tinham de passar pelo crivo clusivamente militantes dos partidos da
os aparelhos partidários mostram um da CRESAP. Quando o democrata-cristão coligação para os cargos que continuaram
e IEFP: absolute boys apetite voraz que confirma as acusações Mota Soares foi ministro desta pasta, os disponíveis (nem o fez nos esclarecimentos
O Observador investigou os três últimos e contra-acusações que os partidos fazem 18 centros passaram a ser dirigidos por 13 que deu ao Observador): “Para acabar com
ciclos governativos desde 2007 — governos aos outros quando estão na oposição. Estes militantes do PSD e por cinco militantes os boys, é preciso acabar com os jobs e ter
de José Sócrates, Pedro Passos Coelho e dados também provam que aqueles que de- do CDS. Outro pleno de 100% de pessoal uma estrutura externa a proceder à sua
12 ASSALTO AO ESTADO 13

Assalto ao Estado O Observador investigou os


Flashback. Fevereiro de 2011. Luís partidário em posições-chave na adminis-
Pedro Mota Soares, deputado do CDS e tração do Estado.
futuro ministro, estava indignado naquela Com a entrada em funções do Governo
comissão parlamentar. Com uma série de
dados na mão, confrontava a socialista He- três últimos ciclos governativos de António Costa, no último ano e meio já
foram exonerados quatro diretores distri-

desde 2007 – governos


lena André, ministra do Trabalho de José tais da Segurança Social que vinham do
Sócrates, com a promoção de 41 dirigentes Governo do PSD/CDS: Faro, Lisboa, Porto e
na Segurança Social. “Todas estas pessoas Setúbal. Do que foi possível ao Observador

Rui Pedro Antunes e Vítor Matos de José Sócrates, Pedro Passos


têm uma ligação direta ao PS. Não tenho apurar, apenas dois desses dirigentes são
a mínima dúvida. O que está por detrás militantes socialistas.
Texto destas promoções?”, perguntava. O Observador também analisou todas as

Coelho e António Costa


Ilustração Lord Mantraste
Helena André recordou ao deputado nomeações dos últimos 10 anos nos mais de
de direita que, anos antes, o ministro da 80 centros de emprego locais espalhados
Segurança Social António Bagão Félix, por todo o país. Na base do IEFP, continua
próximo do CDS, tinha feito muito pior:
“Foi um despedimento de 18 diretores re- – para perceber a dimensão a haver uma preponderância dos partidos,
mas é menor do que nas posições de topo ou

da colonização do aparelho do
gionais, da Segurança Social, por fax, sem intermédias. Do que foi possível apurar em
a capacidade de enfrentar estes diretores, termos de filiação, nos 10 anos analisados
com uma conversa, como seria a forma para os três partidos — PS, PSD e CDS — foi
normal de se fazer em democracia.”
De facto, no dia 20 de setembro de 2002,
eram exatamente 21h41, 18 diretores distri-
Estado na Segurança Social possível identificar 39% de dirigentes com
cartão de militante. Segundo as contas do
Observador na base da pirâmide do IEFP
tais da Segurança Social foram despedidos
por fax por Bagão Félix, sem mais explica- e no Instituto do Emprego foram os socialistas a nomear mais gente
do seu partido: 38,2% das nomeações no

e Formação Profissional por


ções. Os dirigentes socialistas que estavam tempo de José Sócrates e 42,9% até agora
nos cargos caíram todos para serem nomea- no Governo de António Costa. Durante a
dos diretores com ligações ao PSD e ao CDS. governação de Passos Coelho, os boys nos

parte dos partidos no poder.


E quem nessa época denunciou a dança centros de emprego representavam pelo
das cadeiras foi o socialista Vieira da Silva, menos 30,7% dos dirigentes, tendo em conta
então deputado da oposição, que já tinha o que o Observador conseguiu identificar.
sido secretário de Estado daquela pasta e
não teve dúvidas em denunciar, indignado,
que se tratavam de “saneamentos políticos”.
E não há dúvida quanto É possível concluir que os cargos mais
apetecíveis e onde predominam as nome-
ações partidárias são no topo e nos cargos
Menos de três anos depois, o mesmo Viei-
ra da Silva assumia a pasta da Segurança aos 376 cargos analisados: intermédios da Segurança Social e do IEFP.
É nos cargos de direção superior que se

os boys tomam conta de tudo


Social, como ministro do Governo Sócra- manifesta de forma muito evidente o Estado
tes, e rapidamente trocava os 18 diretores clientelar. A preponderância de boys vai-
nomeados por Bagão por 18 militantes do -se diluindo depois na base (onde também
PS. Esta é uma matéria circular: por mais
voltas que se dê, todos os partidos fazem o
mesmo e todos partilham culpas no assalto
e não deixam (quase) nada. foi mais difícil ao Observador identificar
todas as ligações partidárias informais que
possam existir).
ao Estado. No geral, contabilizados os 376 cargos
A Segurança Social e o Instituto do Em- ao longo da última década, pelo menos 202
prego e Formação Profissional são um vi- foram ocupados por militantes dos partidos.
veiro dos chamados boys e uma amostra Isto significa que 53,7%, mais de metade,
exemplar da transumância de militantes António Costa — para perceber a dimensão nunciam os casos fazem exatamente o mes- eram militantes da cor política do Governo
dos partidos para os cargos dirigentes da da colonização do aparelho do Estado na mo quando chegam ao poder. Distribuem em funções.
administração pública. Sempre que estão Segurança Social e no Instituto do Em- estas posições pelo aparelho do partido Mesmo com o aparecimento da CRESAP
na oposição (ou melhor: só quando estão prego e Formação Profissional. E não há ou por quadros de confiança política que (Comissão de Recrutamento e Seleção para
na oposição), os partidos fazem sucessivas dúvida quanto aos 376 cargos analisados. já trabalharam no seu ciclo governativo. a Administração Pública), no tempo do Go-
denúncias dessa situação. Em 2010, Pedro Estas são das posições da administração O IEFP tem cinco delegações regionais — verno de Passos Coelho, o peso de boys no
Mota Soares até fez mais do que confrontar pública mais apetecíveis para militantes do Lisboa, Norte, Centro, Alentejo e Algarve aparelho do Estado manteve-se equilibrado.
a ministra Helena André com as nomeações PS, do PSD e do próprio CDS, que também — que correspondem às regiões plano, e Com Sócrates, 47,2% dos cargos da Segu-
políticas do PS. Ele pôs a circular um docu- já entra nas contas. que podem ser dirigidas por um delegado rança Social e do IEFP foram ocupados por
mento em PowerPoint a mostrar que todos No topo da pirâmide, os cartões partidá- regional e por um subdelegado, embora o militantes, mas com o Governo PSD/CDS,
os dirigentes dos centros da Segurança So- rios fazem o pleno. Pelo menos desde 2007, organigrama do instituto varie consoante que criou esta comissão para supostamente
cial — mas mesmo todos — eram socialistas, os cinco administradores do Instituto da os governos. Assim, durante a governação acabar com o assalto ao Estado, o peso das
como forma de demonstrar a colonização do Segurança Social e os quatro membros do de Sócrates, em 13 destes cargos (o con- nomeações partidárias subiu e chegou aos
aparelho de Estado pelo boys do Governo. Conselho Diretivo do IEFP são quase sem- junto de delegados e subdelegados nessa 49,2% (a maior percentagem registada nos
A indignação era tanta que o CDS trans- pre dos partidos do Governo, com raras ex- época), apenas quatro não tinham filiação três ciclos políticos analisados). No último
formaria esta atitude anticlientelar numa ceções. Ao longo da última década, dos 16 partidária evidente. No Governo PSD/CDS ano e meio, com António Costa no poder,
bandeira eleitoral nas eleições seguintes, nomes identificados pelo Observador que que se seguiu, estes cargos foram reduzi- é possível contabilizar 44,1% dos cargos
para se distinguir do PSD. O discurso acen- passaram pela administração do Instituto dos a cinco mas foram todos ocupados no mesmo setor ocupados por militantes
tuou-se antes das legislativas antecipadas da Segurança Social, só três não tinham por militantes e dirigentes do PSD. Com o partidários identificados como tal pelo
de junho de 2011: um dos argumentos de cartão partidário. Um caso para cada um novo Governo socialista, todos os sociais- Observador.
Paulo Portas na campanha era que o CDS dos três governos analisados. -democratas foram exonerados e dos oito Os políticos continuam a negar que haja
tinha “uma vantagem comparativa” por No que diz respeito ao Conselho Diretivo delegados que já foram escolhidos, só três uma relação partido-cargo. O atual ministro
“não depender do Estado para satisfazer do IEFP, os 13 nomes identificados ao lon- não têm filiação partidária identificada do Trabalho, Solidariedade e Segurança
clientelas”. Daí a importância de integrar go desta década eram todos dos partidos pelo Observador. Em quatro das cinco regi- Social, Vieira da Silva, afirma ao Observador
um Governo de coligação. Assim, poderia do Governo, menos Bernardo Sousa, que ões, Vieira da Silva nomeou independentes desconhecer “as filiações políticas e as pro-
atenuar a natureza tentacular do PSD. As foi nomeado para vogal quando o então para delegados, mas escolheu sempre um ximidades políticas de muitas pessoas que
eleições de junho de 2011 foram ganhas pela presidente do IEFP, Octávio Félix, subiu a socialista como número dois (na região são dirigentes”, e garante: “O que sei é que,
coligação PSD/CDS e Pedro Mota Soares secretário de Estado de Pedro Mota Soares remanescente são ambos socialistas). ao nível dos altos dirigentes que foram esco-
ascendeu a ministro da Solidariedade Social durante o Governo PSD/CDS. De resto, aos Mas se a preponderância de boys é alta no lhidos por este Governo neste ministério, a
e do Trabalho. Uma vez no lugar de Helena do PS sucederam dirigentes do PSD e do IEFP, ainda é maior nos Centros Distritais da sua esmagadora maioria, senão a totalidade,
André, mudou todos — mas todos mesmo CDS, aos quais sucederam novos dirigen- Segurança Social. Nos anos de José Sócrates foram escolhidos pela sua competência.”
— os boys socialistas nas 18 delegações re- tes ligados ao Partido Socialista. Nestas — quando Vieira da Silva e Helena André O anterior ministro Luís Pedro Mota So-
gionais da Segurança Social. Esses cargos posições de topo, muito próximas dos de- foram ministros —, os 18 centros distritais ares usou sempre o argumento de ter aca-
passaram a ser integralmente ocupados por cisores políticos, os militantes e dirigentes eram liderados por dirigentes do PS, que bado com os vogais dos centros distritais,
militantes com cartão do PSD ou do CDS. partidários têm o exclusivo das nomeações. foram substituídos durante o Governo de de modo a reduzir o número de dirigentes,
Mas vamos descer um patamar, para Passos Coelho, com a agravante de que nesta mas nunca explicou a razão de nomear ex-
Segurança Social as direções regionais. É a este nível que fase os nomes já tinham de passar pelo crivo clusivamente militantes dos partidos da
os aparelhos partidários mostram um da CRESAP. Quando o democrata-cristão coligação para os cargos que continuaram
e IEFP: absolute boys apetite voraz que confirma as acusações Mota Soares foi ministro desta pasta, os disponíveis (nem o fez nos esclarecimentos
O Observador investigou os três últimos e contra-acusações que os partidos fazem 18 centros passaram a ser dirigidos por 13 que deu ao Observador): “Para acabar com
ciclos governativos desde 2007 — governos aos outros quando estão na oposição. Estes militantes do PSD e por cinco militantes os boys, é preciso acabar com os jobs e ter
de José Sócrates, Pedro Passos Coelho e dados também provam que aqueles que de- do CDS. Outro pleno de 100% de pessoal uma estrutura externa a proceder à sua
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Mas o próprio Governo que criou a entida-

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da Silva para as estruturas do IEFP e da
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organismo, não se mostra surpreendido da concelhia concelhia PSD/ socialista) dirigente foi nomeado em definitivo, para
PSD/Portalegre PS/Covilhã do PSD do PSD
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com os dados recolhidos pelo Observador. ocupar um cargo vago: precisamente o de
“Tendo em conta aquilo que tem sido a COI presidente do IEFP, que substituiu Jorge
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por militantes de partidos. A fase final da poder. “Com o fim dos governos civis, o Marques, antigo presidente da Federa- é licenciado em Publicidade e Marketing
escolha estava nas mãos do Governo: a único setor que manteve a lógica distrital te ção Distrital da Guarda, que preferiu ser pela Escola Superior de Comunicação Social
comissão seleciona os três melhores can- foi a Segurança Social. É quem tem dinheiro diretor do Centro Distrital da Segurança de Lisboa e em Ciências da Comunicação

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que tem o cartão de militante da cor do apoios ou criar dificuldades a adversários. como deputado. situação deste género pelo que não sei de que
Governo. Para João Bilhim, “o que está É um poder brutal”, afirma. Trata-se de pode estar a falar”, diz Pedro Mota Soares.
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cultura da cunha. Sabemos que a lógica trito” e muitas vezes os nomes são indicados ções ao Observador, recusa fazer comen-
político-partidária é a lógica dos meus e pelas estruturas partidárias, ou é usada a a CRESAP tários sobre os dirigentes escolhidos pelo
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dos nossos. Esta é a cultura vigente e dos rede política do governante em funções na Apesar de a percentagem de militantes anterior Governo, mas diz que “quem qui-
43 anos de democracia que temos.” pasta em questão. Um exemplo: Mário Ruivo partidários até ter subido nos cargos diri- ser fazer esse levantamento, pode fazê-lo”,
A lógica distrital da Segurança Social, foi diretor distrital da Segurança Social do gentes da Segurança Social e do IEFP du- acrescentando que “algumas delas são tão
que já acabou noutros ministérios — como distrito de Coimbra, a seguir chegou a líder rante o Governo PSD/CDS, a CRESAP tem, evidentes que mesmo atuais dirigentes da
na Saúde, na Educação ou na Agricultura da federação distrital do PS e mais tarde foi no entanto, uma vantagem, no entender Segurança Social são dirigentes partidários
—, é o que faz manter a grande partidari- deputado. O mesmo percurso fez o seu nú- de João Bilhim: “Dar um selo de qualida- de partidos da oposição. São dirigentes
zação das estruturas, explica João Bilhim. mero dois, Pedro Coimbra, com quem viria de, independentemente de os candidatos partidários! Não são quadros, não é pro-
“As máquinas partidárias capturaram estas a ter uma disputa fratricida pelo controlo terem ou não ligação partidária. Pelo me- ximidade, são dirigentes partidários.” Em
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cultura da cunha. Sabemos que a lógica trito” e muitas vezes os nomes são indicados ções ao Observador, recusa fazer comen-
político-partidária é a lógica dos meus e pelas estruturas partidárias, ou é usada a a CRESAP tários sobre os dirigentes escolhidos pelo
te

dos nossos. Esta é a cultura vigente e dos rede política do governante em funções na Apesar de a percentagem de militantes anterior Governo, mas diz que “quem qui-
43 anos de democracia que temos.” pasta em questão. Um exemplo: Mário Ruivo partidários até ter subido nos cargos diri- ser fazer esse levantamento, pode fazê-lo”,
A lógica distrital da Segurança Social, foi diretor distrital da Segurança Social do gentes da Segurança Social e do IEFP du- acrescentando que “algumas delas são tão
que já acabou noutros ministérios — como distrito de Coimbra, a seguir chegou a líder rante o Governo PSD/CDS, a CRESAP tem, evidentes que mesmo atuais dirigentes da
na Saúde, na Educação ou na Agricultura da federação distrital do PS e mais tarde foi no entanto, uma vantagem, no entender Segurança Social são dirigentes partidários
—, é o que faz manter a grande partidari- deputado. O mesmo percurso fez o seu nú- de João Bilhim: “Dar um selo de qualida- de partidos da oposição. São dirigentes
zação das estruturas, explica João Bilhim. mero dois, Pedro Coimbra, com quem viria de, independentemente de os candidatos partidários! Não são quadros, não é pro-
“As máquinas partidárias capturaram estas a ter uma disputa fratricida pelo controlo terem ou não ligação partidária. Pelo me- ximidade, são dirigentes partidários.” Em
Governo d
e
16 ASSALTO AO ESTADO
Antó
nio
Co Instituto da
Évora, por exemplo, a diretora distrital
sta

de Vieira gabinete
em 2005 da Silva
da Segurança Social, Sónia Silva Ramos,
Segurança Social

Chefe de ais
é a presidente da distrital do PSD, cargo

Rui Fiolh
a que ascendeu já depois de ser diretora.
Vieira da Silva justifica ainda que algu- CDS-PP
mas das nomeações levadas a cabo por este
Governo
PSD
Governo dizem respeito a “lugares vagos”,

Ind stos ues

nte
de P

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como o caso dos centros distritais da Se- PS

Ro brie

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gurança Social do Porto e de Setúbal, que
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estavam à espera de nomeações desde o
oP

Ribeiro Ferrei
anterior Governo. Relata ainda que havia
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os
outras “em regime de substituição”, tendo

Mariana

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havido já um concurso da CRESAP conclu- rt
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CDS
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ído. O que o ministro não refere é que dos
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cinco dirigentes que já foram substituídos
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nos Centros Distritais da Segurança Social, No oi as etár ran ques

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Manuel Ruivo, de Aveiro, é presidente do PS s aS oM

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Porto, foi candidato a deputado nas listas do

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Membro o
Edmund

Naciona o
PS; e João Ferreira, de Braga, é um quadro
do PS l cr
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técnico tido como próximo do PS, por ter m ir
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sido braço-direito da militante socialista a a d

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S. Nuno
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A rotação do pessoal político tem conse- Pró parte d tunes
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fez a
quências na vida dos visados, apesar de VOG MES Ferreir or na
já saberem quais são as regras do jogo. Ex-vereade Santo
Câmara d
Há quem um dia seja general e no outro Tirso
soldado. César Ferreira, um dirigente local
do PSD em Matosinhos — que chegou a
José António
ser hipótese como candidato à Câmara Manuel da Rapoula
Municipal nas próximas autárquicas —, Silva e Sá Eleito pelo
comandava o IEFP a nível regional na zona Independente CDS na Junta
de Freguesia
de Benfica

Francisco Norte. Com a troca de Governo, foi afas-


Ana Isabel
Coelho
Albergaria
Cristina tado de delegado regional do Norte. Para
de Aguiar o seu lugar foi escolhido António Oliveira
Ex-Assessora Autarca Rodrigues
de Fernando do CDS em Deputada Leite, membro da Comissão Nacional do
Medina Lisboa municipal PS, que já tinha sido diretor regional de
na secretaria e dirigente
de Estado Educação do Norte no segundo mandato
do PS/Óbidos
IS de José Sócrates.
do Emprego Félix VOGA
nio O próprio César Ferreira já tinha ido
EsméPSD and
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substituir um delegado do PS, Manuel
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Milita embro dos Ma rou as TE Joaquim Lopes Ramos, que tinha sido ad-
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Inte do PS àe DE junto de Fernando Medina na Secretaria de
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(que já tinha sido nomeado pelo PS para


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outros cargos), Catarina Campos (que foi


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Ana Isabel Coelho (que tinha sido assessora

Profissional tón de Fernando Medina). Isolado na direção do


io C IEFP, Jorge Gaspar apresentou a demissão

o st
a
18 ASSALTO AO ESTADO

Delegações regionais do IEFP a 18 de maio de 2016. Para o lugar de Jorge


Gaspar foi nomeado o antigo chefe de ga-
viços, imprescindível para a mudança
pretendida”, no sentido de “promover
binete de Ferro Rodrigues, no Governo de o emprego e combater a precariedade”.
CDS-PP PSD PS
António Guterres, António Valadas da Silva. O advogado Eduardo Castro Marques — que
Segue a dança de cadeiras. tem a defesa de oito dos 10 dirigentes que
Governo Governo de Pedro Outro braço de ferro com o Ministério de
Vieira da Silva aconteceu em Braga, com
processaram o Estado — classifica este caso
como um “processo kafkiano”. Em declara-
de António Costa Passos Coelho Rui Barreira, dirigente do CDS, nomeado ções ao Observador, diz não ter dúvidas de
por Pedro Mota Soares como diretor do que o processo de afastamento é “ilegal”
ALGARVE ALGARVE
DELEGADO DELEGADO Centro Distrital da Segurança Social. Em e um “saneamento político”. O advogado
março de 2016, Vieira da Silva disse no explica que as ações pedem, em primeiro
Madalena Feu Carlos Baía
Independente Candidato à assembleia Parlamento que estava há três meses “à lugar, “a anulação do afastamento, por-
ALENTEJO distrital do PSD/Algarve espera da demissão” de Rui Barreira — tanto, o regresso a funções”, mas também
DELEGADO ALENTEJO deputado municipal do CDS em Guima- “indemnizações por danos morais, no total
Arnaldo Frade DELEGADO rães e ex-consultor do Grupo Parlamentar [dos clientes que representa], de cerca de
Candidato do PS à Câmara José Palma Rita centrista —, que em 2013 dissera que se o 100 mil euros”.
Municipal em 2009 e Presidente da concelhia do PSD Governo fosse do PS não ficaria “mais um O ministro do Trabalho, Solidariedade
ex-Vereador do PS na Câmara de Évora dia” à frente da estrutura da Segurança e Segurança Social diz ao Observador que
de Santiago do Cacém LISBOA E VALE DO TEJO Social de Braga. A 24 de fevereiro de 2016, desconhece “o entendimento que o advo-
SUBDELEGADO DELEGADO o ministério abriu mesmo um inquérito a gado terá de processos kafkianos”, bem
- Victor Gil
- Rui Barreira, na sequência de queixas de como “o domínio que ele tem da literatura
Ex-membro da Assembleia
LISBOA E VALE DO TEJO Municipal de Tomar na lista “assédio moral” e “bullying profissional”. de Kafka”. Vieira da Silva explica que “há
DELEGADO liderada por Miguel Relvas O PCP e o Bloco de Esquerda já tinham situações diferentes porque há nomeações
Isabel Henriques CENTRO feito várias queixas de Rui Barreira e envia- feitas pelo Governo e nomeações que são
Independente DELEGADO ram perguntas e requerimentos ao ministro feitas pelas direções dos institutos públi-
SUBDELEGADO Pedro Amaro a pressioná-lo para resolver a situação. O cos”. E justifica: “Por umas, posso responder
Sandra Dias Militante do PSD inquérito enviado a Vieira da Silva tinha com mais propriedade porque conheço os
Foi nº6 na Lista do PS à NORTE 30 páginas de funcionários a queixarem-se processos, outras de forma distante porque
câmara de Abrantes em 2009
-
DELEGADO de serem vítimas de perseguição do dire- esses institutos públicos têm autonomia
CENTRO César Ferreira tor. Em janeiro de 2017, Rui Barreira seria para a escolha dos seus dirigentes intermé-
DELEGADO Vice-presidente do PSD/ afastado. Para o seu lugar foi nomeado dios.” Vieira da Silva garante que todos os
Matosinhos; ex-autarca PSD)
António Magalhães Costa João Ferreira, que tem ligações ao PS e é processos que acompanhou “foram feitos
Independente conhecido por ter sido o “braço-direito” de nos termos da lei”.
SUBDELEGADO Maria do Carmo Antunes, socialista que no Os processos administrativos são, por nor-
Paula Urbano passado dirigiu o Centro Distrital de Braga. ma, longos e ainda não há qualquer decisão
Vereadora do PS na Câmara Nas declarações públicas que fez sobre — nem grandes avanços desde agosto. Caso
de Aveiro o caso, Rui Barreira disse que se tratou de o Estado tenha de pagar indemnizações,
-
uma “decisão política” e criticou os moldes não será a primeira vez que isso acontece
NORTE
DELEGADO em que decorreu o inquérito que ditou o no historial do ministério do Trabalho e da
seu afastamento. “Inquiriram e ouviram Segurança Social. Na sequência do fax de
António de Oliveira Leite
Membro da comissão nacional quem bem quiseram. Deste inquérito faz Bagão Félix — referido no início deste texto
do PS parte todo o meu Facebook, todos os meus —, os 18 diretores afastados recorreram para
SUBDELEGADO artigos de opinião online e todos os outros a justiça. No fim, o Estado acabou condena-
Elsa Teixeira Dias meios onde esteja a minha fotografia e a do pelo Supremo Tribunal Administrativo
Fez parte do gabinete de Ferro minha vida. O escritório onde sou sócio, a pagar um milhão de euros em indemniza-
Rodrigues no Ministério do os sítios onde vou, as minhas intervenções ções aos dirigentes afastados, considerando
Trabalho entre 1996 e 2001 na Assembleia Municipal, até uma referên- os despachos de exoneração “nulos” e com
-
cia, vejam lá o ridículo, à Maga Patalógica “falta de fundamentação”.
e à Madam Min, que foram alvo de uma O advogado dos diretores “expurgados”
Governo de José Sócrates pergunta durante o inquérito”, contou o
ex-diretor da Segurança Social.
por Vieira da Silva, considera que a prova
de que eram competentes para o cargo é
ALGARVE Adelino Coelho Uma das acusações de que Rui Barreira que os que concorreram a cargos no IEFP
DELEGADO Comissão Política Concelhia do PS/ foi alvo foi a de favorecer o Lar de Santa “foram selecionados para a shortlist nos
Maria Fernanda dos Santos /Barreiro Estefânia, onde trabalhava a sua mulher. concursos da CRESAP já com este Governo”.
Independente CENTRO Ora, o inquérito não confirmou que o di- Vieira da Silva está tranquilo e acredita
ALENTEJO DELEGADO retor “tenha dado especial apoio” àquela que o Governo não pagará qualquer in-
DELEGADO Armando Nunes instituição, nem tenha feito “qualquer do- demnização, já que “a lei estabelece conse-
Ana Duarte Independente ação de mobiliário” (outra das acusações), quências diferentes para a situação destes
Vice-presidente da Câmara de SUBDELEGADO e até tinha emitido um “parecer desfa- dirigentes. Há um primeiro ano em que os
Reguengos de Monsaraz pelo PS entre
2002 e 2005
José Simões Soares vorável” relativo ao lar. Foram, porém, dirigentes podem ser substituídos com um
Deputado municipal do PS na Covilhã
SUBDELEGADO confirmadas pelo inquérito as acusações quadro de justificação e, depois, passado um
João Evangelista Cravino de assédio moral. ano, é que há um quadro mais exigente, a ter
Arnaldo Frade Deputado municipal do PS na Figueira
Candidato do PS à câmara municipal da Foz direito a indemnização”. Ora, garante o mi-
em 2009 e ex-vereador do PS na NORTE Denúncia de nistro ao Observador, “na quase totalidade
Câmara de Santiago do Cacém dos casos, os dirigentes foram substituídos
Carlos Alberto Vintém
DELEGADO
Manuel Joaquim Ramos
processo “kaf kiano”. durante o primeiro ano do seu exercício”.
Deputado municipal pelo PS Adjunto em dois governos PS: Ex-dirigentes pedem A colonização do Estado parece inevi-
em Portalegre
LISBOA E VALE DO TEJO
de Fernando Medina e Valter Lemos
mais de 100 mil euros tável. Os partidos de poder são máquinas
SUBDELEGADO imparáveis de ocupação de lugares na ad-
DELEGADO
Ana Rodrigues Como na Segurança Social poucos foram ministração pública. Mesmo com métodos
Catarina Campos Deputada municipal do PS os dirigentes substituídos, os problemas de seleção mais apurados, os partidos in-
Deputada municipal em Santarém em Valongo e dirigente distrital do atual executivo socialista tiveram mais ventam escapes para contornarem as leis
SUBDELEGADO da Federação do Porto
a ver com o IEFP, onde caíram todas as que eles próprios criaram com o objetivo
Victor Santos Coelho José Manuel Castro
Ligação à FAUL Independente direções regionais. Em agosto de 2016, o de dificultar as nomeações de pessoal do
Público noticiou que existiam pelo menos aparelho. Esquizofrénico? Sim. Só que os
dez processos nos tribunais civis contra partidos servem para conquistar o poder;
o Estado, na sequência de afastamentos ter poder significa governar e controlar o
decididos pelo ministro Vieira da Silva que Estado; e para controlar o Estado é preciso
afetaram delegados regionais e diretores acondicionar o partido nos lugares dispo-
de centros de emprego. Todos tinham sido níveis. O rotativismo clientelar fará sempre
● Mesmo com melhores métodos de seleção, submetidos a concurso público realizado
pela CRESAP.
parte do sistema.

os partidos inventam escapes para contornarem Nos despachos publicados em Diário


da República, a justificação dada pelo
Rui Pedro Antunes é jornalista da secção
de Política do Observador, que é editada por
as leis que eles próprios criaram com o objetivo de ministério de Vieira da Silva foi a neces- Vítor Matos. Vítor Matos é autor de vários
sidade de uma política “para imprimir livros, entre os quais uma biografia de Marcelo
dificultar as nomeações de pessoal do aparelho. uma nova orientação à gestão dos ser- Rebelo de Sousa.
18 ASSALTO AO ESTADO

Delegações regionais do IEFP a 18 de maio de 2016. Para o lugar de Jorge


Gaspar foi nomeado o antigo chefe de ga-
viços, imprescindível para a mudança
pretendida”, no sentido de “promover
binete de Ferro Rodrigues, no Governo de o emprego e combater a precariedade”.
CDS-PP PSD PS
António Guterres, António Valadas da Silva. O advogado Eduardo Castro Marques — que
Segue a dança de cadeiras. tem a defesa de oito dos 10 dirigentes que
Governo Governo de Pedro Outro braço de ferro com o Ministério de
Vieira da Silva aconteceu em Braga, com
processaram o Estado — classifica este caso
como um “processo kafkiano”. Em declara-
de António Costa Passos Coelho Rui Barreira, dirigente do CDS, nomeado ções ao Observador, diz não ter dúvidas de
por Pedro Mota Soares como diretor do que o processo de afastamento é “ilegal”
ALGARVE ALGARVE
DELEGADO DELEGADO Centro Distrital da Segurança Social. Em e um “saneamento político”. O advogado
março de 2016, Vieira da Silva disse no explica que as ações pedem, em primeiro
Madalena Feu Carlos Baía
Independente Candidato à assembleia Parlamento que estava há três meses “à lugar, “a anulação do afastamento, por-
ALENTEJO distrital do PSD/Algarve espera da demissão” de Rui Barreira — tanto, o regresso a funções”, mas também
DELEGADO ALENTEJO deputado municipal do CDS em Guima- “indemnizações por danos morais, no total
Arnaldo Frade DELEGADO rães e ex-consultor do Grupo Parlamentar [dos clientes que representa], de cerca de
Candidato do PS à Câmara José Palma Rita centrista —, que em 2013 dissera que se o 100 mil euros”.
Municipal em 2009 e Presidente da concelhia do PSD Governo fosse do PS não ficaria “mais um O ministro do Trabalho, Solidariedade
ex-Vereador do PS na Câmara de Évora dia” à frente da estrutura da Segurança e Segurança Social diz ao Observador que
de Santiago do Cacém LISBOA E VALE DO TEJO Social de Braga. A 24 de fevereiro de 2016, desconhece “o entendimento que o advo-
SUBDELEGADO DELEGADO o ministério abriu mesmo um inquérito a gado terá de processos kafkianos”, bem
- Victor Gil
- Rui Barreira, na sequência de queixas de como “o domínio que ele tem da literatura
Ex-membro da Assembleia
LISBOA E VALE DO TEJO Municipal de Tomar na lista “assédio moral” e “bullying profissional”. de Kafka”. Vieira da Silva explica que “há
DELEGADO liderada por Miguel Relvas O PCP e o Bloco de Esquerda já tinham situações diferentes porque há nomeações
Isabel Henriques CENTRO feito várias queixas de Rui Barreira e envia- feitas pelo Governo e nomeações que são
Independente DELEGADO ram perguntas e requerimentos ao ministro feitas pelas direções dos institutos públi-
SUBDELEGADO Pedro Amaro a pressioná-lo para resolver a situação. O cos”. E justifica: “Por umas, posso responder
Sandra Dias Militante do PSD inquérito enviado a Vieira da Silva tinha com mais propriedade porque conheço os
Foi nº6 na Lista do PS à NORTE 30 páginas de funcionários a queixarem-se processos, outras de forma distante porque
câmara de Abrantes em 2009
-
DELEGADO de serem vítimas de perseguição do dire- esses institutos públicos têm autonomia
CENTRO César Ferreira tor. Em janeiro de 2017, Rui Barreira seria para a escolha dos seus dirigentes intermé-
DELEGADO Vice-presidente do PSD/ afastado. Para o seu lugar foi nomeado dios.” Vieira da Silva garante que todos os
Matosinhos; ex-autarca PSD)
António Magalhães Costa João Ferreira, que tem ligações ao PS e é processos que acompanhou “foram feitos
Independente conhecido por ter sido o “braço-direito” de nos termos da lei”.
SUBDELEGADO Maria do Carmo Antunes, socialista que no Os processos administrativos são, por nor-
Paula Urbano passado dirigiu o Centro Distrital de Braga. ma, longos e ainda não há qualquer decisão
Vereadora do PS na Câmara Nas declarações públicas que fez sobre — nem grandes avanços desde agosto. Caso
de Aveiro o caso, Rui Barreira disse que se tratou de o Estado tenha de pagar indemnizações,
-
uma “decisão política” e criticou os moldes não será a primeira vez que isso acontece
NORTE
DELEGADO em que decorreu o inquérito que ditou o no historial do ministério do Trabalho e da
seu afastamento. “Inquiriram e ouviram Segurança Social. Na sequência do fax de
António de Oliveira Leite
Membro da comissão nacional quem bem quiseram. Deste inquérito faz Bagão Félix — referido no início deste texto
do PS parte todo o meu Facebook, todos os meus —, os 18 diretores afastados recorreram para
SUBDELEGADO artigos de opinião online e todos os outros a justiça. No fim, o Estado acabou condena-
Elsa Teixeira Dias meios onde esteja a minha fotografia e a do pelo Supremo Tribunal Administrativo
Fez parte do gabinete de Ferro minha vida. O escritório onde sou sócio, a pagar um milhão de euros em indemniza-
Rodrigues no Ministério do os sítios onde vou, as minhas intervenções ções aos dirigentes afastados, considerando
Trabalho entre 1996 e 2001 na Assembleia Municipal, até uma referên- os despachos de exoneração “nulos” e com
-
cia, vejam lá o ridículo, à Maga Patalógica “falta de fundamentação”.
e à Madam Min, que foram alvo de uma O advogado dos diretores “expurgados”
Governo de José Sócrates pergunta durante o inquérito”, contou o
ex-diretor da Segurança Social.
por Vieira da Silva, considera que a prova
de que eram competentes para o cargo é
ALGARVE Adelino Coelho Uma das acusações de que Rui Barreira que os que concorreram a cargos no IEFP
DELEGADO Comissão Política Concelhia do PS/ foi alvo foi a de favorecer o Lar de Santa “foram selecionados para a shortlist nos
Maria Fernanda dos Santos /Barreiro Estefânia, onde trabalhava a sua mulher. concursos da CRESAP já com este Governo”.
Independente CENTRO Ora, o inquérito não confirmou que o di- Vieira da Silva está tranquilo e acredita
ALENTEJO DELEGADO retor “tenha dado especial apoio” àquela que o Governo não pagará qualquer in-
DELEGADO Armando Nunes instituição, nem tenha feito “qualquer do- demnização, já que “a lei estabelece conse-
Ana Duarte Independente ação de mobiliário” (outra das acusações), quências diferentes para a situação destes
Vice-presidente da Câmara de SUBDELEGADO e até tinha emitido um “parecer desfa- dirigentes. Há um primeiro ano em que os
Reguengos de Monsaraz pelo PS entre
2002 e 2005
José Simões Soares vorável” relativo ao lar. Foram, porém, dirigentes podem ser substituídos com um
Deputado municipal do PS na Covilhã
SUBDELEGADO confirmadas pelo inquérito as acusações quadro de justificação e, depois, passado um
João Evangelista Cravino de assédio moral. ano, é que há um quadro mais exigente, a ter
Arnaldo Frade Deputado municipal do PS na Figueira
Candidato do PS à câmara municipal da Foz direito a indemnização”. Ora, garante o mi-
em 2009 e ex-vereador do PS na NORTE Denúncia de nistro ao Observador, “na quase totalidade
Câmara de Santiago do Cacém dos casos, os dirigentes foram substituídos
Carlos Alberto Vintém
DELEGADO
Manuel Joaquim Ramos
processo “kaf kiano”. durante o primeiro ano do seu exercício”.
Deputado municipal pelo PS Adjunto em dois governos PS: Ex-dirigentes pedem A colonização do Estado parece inevi-
em Portalegre
LISBOA E VALE DO TEJO
de Fernando Medina e Valter Lemos
mais de 100 mil euros tável. Os partidos de poder são máquinas
SUBDELEGADO imparáveis de ocupação de lugares na ad-
DELEGADO
Ana Rodrigues Como na Segurança Social poucos foram ministração pública. Mesmo com métodos
Catarina Campos Deputada municipal do PS os dirigentes substituídos, os problemas de seleção mais apurados, os partidos in-
Deputada municipal em Santarém em Valongo e dirigente distrital do atual executivo socialista tiveram mais ventam escapes para contornarem as leis
SUBDELEGADO da Federação do Porto
a ver com o IEFP, onde caíram todas as que eles próprios criaram com o objetivo
Victor Santos Coelho José Manuel Castro
Ligação à FAUL Independente direções regionais. Em agosto de 2016, o de dificultar as nomeações de pessoal do
Público noticiou que existiam pelo menos aparelho. Esquizofrénico? Sim. Só que os
dez processos nos tribunais civis contra partidos servem para conquistar o poder;
o Estado, na sequência de afastamentos ter poder significa governar e controlar o
decididos pelo ministro Vieira da Silva que Estado; e para controlar o Estado é preciso
afetaram delegados regionais e diretores acondicionar o partido nos lugares dispo-
de centros de emprego. Todos tinham sido níveis. O rotativismo clientelar fará sempre
● Mesmo com melhores métodos de seleção, submetidos a concurso público realizado
pela CRESAP.
parte do sistema.

os partidos inventam escapes para contornarem Nos despachos publicados em Diário


da República, a justificação dada pelo
Rui Pedro Antunes é jornalista da secção
de Política do Observador, que é editada por
as leis que eles próprios criaram com o objetivo de ministério de Vieira da Silva foi a neces- Vítor Matos. Vítor Matos é autor de vários
sidade de uma política “para imprimir livros, entre os quais uma biografia de Marcelo
dificultar as nomeações de pessoal do aparelho. uma nova orientação à gestão dos ser- Rebelo de Sousa.
20 OPINIÃO OPINIÃO 21

A angústia
dos 60 anos

Lá aconteceu: já sou “sexagenário”.


Mas não é isso que me custa. Custa-me
muito mais fazer contas ao Portugal
que os da minha geração não deixa-
ram, nem estão a deixar, aos seus filhos
José Manuel Fernandes e aos seus netos.
Fiz 60 anos. o tempo parece que acelera e o destino que podia mostrar uma história de suces- sustentarem cada vez mais reformados – e Dois bons exemplos de como tratámos valo dos 15 aos 24 anos (cf. Livro Verde muito que isso custe a admitir. Por isso quase) ir parar a mãos estrangeiras. Demo-
Costumo brincar com os amigos – alguns está a nosso favor. so, esconde uma de insucesso: todo esse provavelmente com os mais novos a terem de nós e pouco cuidámos dos que vêm a sobre as Relações Laborais 2016). Todos não me apanham a repetir “não fui eu, rámos a criar autoridades independentes,
mais adiantados do que eu, outros quase Ben Bradlee, que era director do Wa- aumento da riqueza aconteceu até 2001, ainda menos filhos, porque também têm seguir é o que se passa na Segurança Social são iguais, mas uns, ao que parece, são não tive culpa”. Afinal de contas nasci em e quando finalmente o fizemos começámos
lá – que ninguém gosta de ser sexagenário. shington Post no tempo do Watergate, ano em que a riqueza por habitante era menos oportunidades. e no mercado de trabalho. mais iguais do que outros. 1957, o mesmo ano de José Sócrates. Ou de logo a atacá-las e a miná-las.
É aquela idade em que, se formos atropela- escreveu umas memórias dos seus muitos só marginalmente inferior à de 2015. De Ora sucede que as oportunidades que No sistema de pensões os dados variam A forma como nos organizámos como Marques Mendes. Ou de António Vitorino. Querem um boa demonstração de como
dos, os jornais irão escrever “sexagenário anos como jornalista a que chamou A Good então para cá temos estado estagnados. tivemos nestas décadas dificilmente se conforme o optimismo ou o pessimismo sociedade, as escolhas políticas que refe- Ou ainda de Rui Rio. (E Durão Barroso e até parece que não sabemos viver de outra
atropelado”. Nunca escrevem “septuage- Life, e eu também posso dizer, mantidas as Não foram apenas quatro anos de crise — repetirão. Nasci no mesmo ano em que dos diferentes cenários, mas se hoje um rendámos, não se limitaram a criar essa Pedro Santana Lopes são de 1956.) forma? Vou dar um exemplo pessoal, algo
nário” ou “octogenário”, mas há esta fata- devidas distâncias, que a minha profissão foi uma década e meia de anemia aguda. nasceu a União Europeia, pouco antes de, trabalhador se reforma com uma pensão desigualdade: também atiraram para o Seria fácil culpá-los apenas a eles, aos que me faz imensa impressão. Acontece
lidade de ser sexagenário, uma idade em me proporcionou uma vida cheia, vivida Este falhanço tem imensas implicações ao lado dela, ter nascido também a EFTA, que, em média, se aproxima de 60% do seu futuro com o pior dos legados, o da dívida. “políticos”, até porque houve muita irres- sempre que alguém me bate nas costas e
que antes já se era “velho” mas hoje ainda com a felicidade de quem faz aquilo de que para o futuro dos meus filhos e dos meus ou Associação Europeia de Livre Comércio, último salário (há profissões onde é bem Sim, a dívida. E as dívidas públicas, como ponsabilidade, até porque houve muito elogia o que considera ser a minha “cora-
se é “novo”, ou pelo menos assim se pensa. gosta. Não me queixo, nunca me queixei, netos — de todos os que têm menos de a que Portugal aderiu, começando a abrir- melhor, nomeadamente na administração sabemos desde sempre, são impostos que dolo e corrupção (se houve...). Há mesmo gem”. Coragem? Coragem por escrever o
Não sei, por isso, se foi um aniversário pelo contrário. 35, 40 anos. Em 2001, o tal ano em que -se ao exterior e permitindo o período de pública), em 2025 essa taxa de substituição escolhemos não pagar hoje e deixar para figurões a quem nunca perdoarei. Uns que penso, e sempre o ter feito, acertando
feliz. Nunca tive problemas por ser mais Contudo… éramos mais ou menos tão ricos como so- mais rápido crescimento económico da deverá ter caído para 45% e lá para 2060 que outros paguem amanhã. Podíamos foram políticos, outros banqueiros, outros e errando? Coragem? Afinal não vivemos
velho, ou mais novo, mas aos 60 anos há Contudo, a verdade é que olho à minha mos hoje, as despesas da Segurança Social nossa história, no final da década de 1960 para apenas 30%. Isto para trabalhadores fazê-lo em nome de mais crescimento, espertalhaços que souberam extrair da num país livre? Coragem foi necessária
algo que é para mim cada vez mais eviden- volta e não gosto de demasiadas coisas que consumiam 10,2 do PIB. Em 2014 consumi- e início da de 1970. Assisti, e vivi, a ade- que terão de reformar-se bem mais tarde. mas fizemo-lo com menos crescimento. nossa economia riquezas e privilégios e, noutros tempos, naqueles em que ainda
te: a minha geração não deixou, não está a vejo. Sobretudo não gosto desta sensação ram 21,7%. O que é absolutamente natural: são à União Europeia, que proporcionou Quanto ao mercado de trabalho, este Fizemo-lo mesmo com nenhum cresci- no fim, ainda se estão a rir. Mas enganar- cheguei a andar a fugir da polícia ou a
deixar, aos seus filhos (quando os tiveram) de que a minha geração teve oportunida- quando eu nasci não existia em Portugal o segundo período de rápida expansão é tragicamente dual: uns têm muitos di- mento. Para o futuro só ficou o encargo -me-ia se ficasse apenas por essa recri- esconder-me para distribuir propaganda
e aos seus netos (os que já os têm) o país des que as próximas gerações não terão Estado Providência; enquanto eu cresci da economia. Não sei se mais alguma vez reitos e garantias, os outros quase nada. e os juros. minação. ilegal. Hoje não é preciso ter coragem para
que eles mereciam. – porque não lhas deixamos. esse Estado Providência foi sendo alarga- conseguiremos algo de semelhante. Mas sei Em Portugal quase sempre dominou, e Há mais de seis anos, ainda não tinha Quando olhamos para o mundo à se escrever o que se pensa – mesmo que
Nestas alturas apetece olhar para trás, Eu sei – sei muito bem – que neste meu do e, a cada ano que passa, abarca mais que aquilo que conseguimos com esses dois ainda domina, a cultura de que não há chegado a troika, quando os Deolinda le- nossa volta, vemos sociedades abertas, às vezes se possa estar naquela posição de
pensar um pouco no que vivi e no que este país os mais velhos trabalharam muito, gente por uma boa razão (vivemos muito choques externos que obrigaram a nossa profissões, há posições. Quem as ocupa vantaram os Coliseus de Lisboa e do Porto onde há oportunidades, risco, inovação e “minoria de um”, para usar uma expressão
país viveu — e escolheu. esforçaram-se imenso, e que para a maioria mais anos) e por uma má razão (garante economia a abrir-se nunca mais repetimos chama-lhes suas, e barra o caminho aos com a sua canção sobre “a geração sem criação de riqueza. E vemos outras onde de George Orwell e, também, Margaret
O país em que nasci não tem nada a ver a recompensa é bem escassa: em 2013, úl- demasiado os “direitos adquiridos” de uma quando deixámos que a nossa economia se competidores. A desigualdade é gritante. remuneração”. Escrevi, reconheci, que se os poderes se empenham sobretudo em Thatcher (“a minority of one”) que aprecio
com o Portugal de hoje. Nada mesmo. Não timo ano nas estatísticas (Pordata), 78,6% fracção dos mais velhos e desprotege em habituasse ao conforto da nossa pequenez, Todos conhecemos os números do desem- a minha geração viveu e vive muito melhor autoperpetuar-se, sociedades que em vez de forma especial.
era só o país a preto-e-branco de um tempo das pensões do regime geral da Segurança demasia os direitos futuros dos mais no- dos nossos amparos públicos, dos nossos prego, que penaliza sempre os mais novos do que a dos meus pais, que se eles já vive- de serem criativas e competitivas, são É verdade, não me esqueci que a última
bisonho sem liberdade – era também um Social eram inferiores ao ordenado mí- vos). Mas sendo natural, é assustador: o “empenhos” e dos nossos subsídios. – conhecemos menos os números que nos ram melhor do que os pais deles, quando “extractivas”. A diferença não está nos palavra d’Os Lusíadas é “inveja” e que
país onde a pobreza era uma constante, o nimo. Quase inacreditável de miserável, rolo compressor das despesas sociais pe- O que mais me aflige foi ver como aque- dizem como estes são penalizados no mer- olhava para as gerações que vinham a se- povos, estás nas instituições que estes sou- muitos gostam de invocar essa marca da
atraso uma fatalidade e o atavismo uma mesmo sabendo que muitos pensionistas sará cada vez mais sobre a tal economia les que melhor tiraram partido desses anos cado de trabalho pela tal dualidade entre guir sentia, sabia, que já não iria ser assim. beram criar, como bem explicam Daron cultura nacional (que não iludo) como
condição natural. É bom recordá-lo, até acumulam mais de uma pensão. que não cresce e uma população activa excepcionais foram os que trataram so- quem tem todos os direitos e garantias de Uma parte do que está a acontecer ultra- Acemoglu e James A. Robinson em Porque sendo a razão de mais uma vez termos
para não para nos deixarmos deslumbrar Mas isso não me impede de reconhe- cada vez mais pequena. bretudo de proteger os seus “direitos”, um contrato sem termo e quem apenas passa Portugal. A vida dos millenials não Falham as Nações – e foi aí que a minha falhado. Mas agora que já tenho 60 anos e
pelo imenso caminho percorrido. cer que, ao mesmo tempo, este país se Sim, porque há também o problema da blindar as suas regalias e, sempre que as tem um contrato a prazo. Em média, em parece fácil em todo o mundo desenvol- geração teve a sua grande oportunidade tive a felicidade de uma vida cheia, devo
O tempo que vivi foi excepcional. Tinha foi gradualmente tornando cada vez mais demografia. E sim, é verdade: foi na minha coisas corriam mal, gritarem “a culpa não 2015, 22% dos contratos de trabalho eram a vido, muito porque as nossas economias e o seu grande falhanço. dizer que acho bem pior aquele hábito de
12 anos quando o homem pousou na Lua, complicado para os mais novos. E que isso geração que os portugueses começaram a foi minha”, essa frase tão portuguesa que prazo, uma das percentagens mais elevadas avançadas deixaram de crescer ao ritmo de A revolução criou a oportunidade de estar sempre a repetir “não tenho culpa”.
17 acabadinhos de fazer quando aconteceu não era inevitável. ter menos filhos do que os necessários para Alexandre O’Neill um dia a escolheu para da Europa, uma realidade que é o contra- outros tempos. E, tal como nós, envelhe- reconstruir o Estado, mas fizemo-lo no Nisso o diagnóstico de Alexandre O’Neill
o 25 de Abril, 32 quando o Muro de Berlim A riqueza por habitante nos dias da manter o equilíbrio demográfico. O pri- definir aquilo que somos: “Em Portugal ponto de um dos mercados de trabalho ceram. Os Estados Providência modernos modo clientelar e seguindo regras esta- é porventura bem mais actual e pertinente
caiu. Optimismo tecnológico, optimismo minha vida foi multiplicada por cinco, meiro ano em que isso aconteceu foi 1982, nunca deixamos cair nada; são os objectos mais rígidos, mesmo depois de todas as contavam com ritmos de crescimento mais tistas e centralistas. A integração europeia do que o de Camões.
histórico. E muitas oportunidades para ou mais exactamente por 4,8, se conside- tinha eu 25 anos. A situação só tem piorado que se escapam das nossas mãos.” Desta “reformas”. Mas entre os que tinham de elevados e uma demografia mais favorável. permitiu abrir a economia, mas passámos
viver a História naqueles momentos em rar os PIB per capita em 1960 e em 2015 desde então. O que significa que, no futuro, vez escapou-se a possibilidade de sermos 25 a 29 anos essa percentagem subia para Mas outra parte deriva de escolhas que o tempo a proteger os instalados até que o José Manuel Fernandes, além de
que ela se escreve com H grande, quando (Pordata). O problema é que este número, haverá cada vez menos trabalhadores a um país europeu, mesmo. 43%. Quase o dobro. E para 67% no inter- fizemos. Que a minha geração fez, por país rebentou e, de repente, vimos tudo (ou sexagenário, é publisher do Observador.
20 OPINIÃO OPINIÃO 21

A angústia
dos 60 anos

Lá aconteceu: já sou “sexagenário”.


Mas não é isso que me custa. Custa-me
muito mais fazer contas ao Portugal
que os da minha geração não deixa-
ram, nem estão a deixar, aos seus filhos
José Manuel Fernandes e aos seus netos.
Fiz 60 anos. o tempo parece que acelera e o destino que podia mostrar uma história de suces- sustentarem cada vez mais reformados – e Dois bons exemplos de como tratámos valo dos 15 aos 24 anos (cf. Livro Verde muito que isso custe a admitir. Por isso quase) ir parar a mãos estrangeiras. Demo-
Costumo brincar com os amigos – alguns está a nosso favor. so, esconde uma de insucesso: todo esse provavelmente com os mais novos a terem de nós e pouco cuidámos dos que vêm a sobre as Relações Laborais 2016). Todos não me apanham a repetir “não fui eu, rámos a criar autoridades independentes,
mais adiantados do que eu, outros quase Ben Bradlee, que era director do Wa- aumento da riqueza aconteceu até 2001, ainda menos filhos, porque também têm seguir é o que se passa na Segurança Social são iguais, mas uns, ao que parece, são não tive culpa”. Afinal de contas nasci em e quando finalmente o fizemos começámos
lá – que ninguém gosta de ser sexagenário. shington Post no tempo do Watergate, ano em que a riqueza por habitante era menos oportunidades. e no mercado de trabalho. mais iguais do que outros. 1957, o mesmo ano de José Sócrates. Ou de logo a atacá-las e a miná-las.
É aquela idade em que, se formos atropela- escreveu umas memórias dos seus muitos só marginalmente inferior à de 2015. De Ora sucede que as oportunidades que No sistema de pensões os dados variam A forma como nos organizámos como Marques Mendes. Ou de António Vitorino. Querem um boa demonstração de como
dos, os jornais irão escrever “sexagenário anos como jornalista a que chamou A Good então para cá temos estado estagnados. tivemos nestas décadas dificilmente se conforme o optimismo ou o pessimismo sociedade, as escolhas políticas que refe- Ou ainda de Rui Rio. (E Durão Barroso e até parece que não sabemos viver de outra
atropelado”. Nunca escrevem “septuage- Life, e eu também posso dizer, mantidas as Não foram apenas quatro anos de crise — repetirão. Nasci no mesmo ano em que dos diferentes cenários, mas se hoje um rendámos, não se limitaram a criar essa Pedro Santana Lopes são de 1956.) forma? Vou dar um exemplo pessoal, algo
nário” ou “octogenário”, mas há esta fata- devidas distâncias, que a minha profissão foi uma década e meia de anemia aguda. nasceu a União Europeia, pouco antes de, trabalhador se reforma com uma pensão desigualdade: também atiraram para o Seria fácil culpá-los apenas a eles, aos que me faz imensa impressão. Acontece
lidade de ser sexagenário, uma idade em me proporcionou uma vida cheia, vivida Este falhanço tem imensas implicações ao lado dela, ter nascido também a EFTA, que, em média, se aproxima de 60% do seu futuro com o pior dos legados, o da dívida. “políticos”, até porque houve muita irres- sempre que alguém me bate nas costas e
que antes já se era “velho” mas hoje ainda com a felicidade de quem faz aquilo de que para o futuro dos meus filhos e dos meus ou Associação Europeia de Livre Comércio, último salário (há profissões onde é bem Sim, a dívida. E as dívidas públicas, como ponsabilidade, até porque houve muito elogia o que considera ser a minha “cora-
se é “novo”, ou pelo menos assim se pensa. gosta. Não me queixo, nunca me queixei, netos — de todos os que têm menos de a que Portugal aderiu, começando a abrir- melhor, nomeadamente na administração sabemos desde sempre, são impostos que dolo e corrupção (se houve...). Há mesmo gem”. Coragem? Coragem por escrever o
Não sei, por isso, se foi um aniversário pelo contrário. 35, 40 anos. Em 2001, o tal ano em que -se ao exterior e permitindo o período de pública), em 2025 essa taxa de substituição escolhemos não pagar hoje e deixar para figurões a quem nunca perdoarei. Uns que penso, e sempre o ter feito, acertando
feliz. Nunca tive problemas por ser mais Contudo… éramos mais ou menos tão ricos como so- mais rápido crescimento económico da deverá ter caído para 45% e lá para 2060 que outros paguem amanhã. Podíamos foram políticos, outros banqueiros, outros e errando? Coragem? Afinal não vivemos
velho, ou mais novo, mas aos 60 anos há Contudo, a verdade é que olho à minha mos hoje, as despesas da Segurança Social nossa história, no final da década de 1960 para apenas 30%. Isto para trabalhadores fazê-lo em nome de mais crescimento, espertalhaços que souberam extrair da num país livre? Coragem foi necessária
algo que é para mim cada vez mais eviden- volta e não gosto de demasiadas coisas que consumiam 10,2 do PIB. Em 2014 consumi- e início da de 1970. Assisti, e vivi, a ade- que terão de reformar-se bem mais tarde. mas fizemo-lo com menos crescimento. nossa economia riquezas e privilégios e, noutros tempos, naqueles em que ainda
te: a minha geração não deixou, não está a vejo. Sobretudo não gosto desta sensação ram 21,7%. O que é absolutamente natural: são à União Europeia, que proporcionou Quanto ao mercado de trabalho, este Fizemo-lo mesmo com nenhum cresci- no fim, ainda se estão a rir. Mas enganar- cheguei a andar a fugir da polícia ou a
deixar, aos seus filhos (quando os tiveram) de que a minha geração teve oportunida- quando eu nasci não existia em Portugal o segundo período de rápida expansão é tragicamente dual: uns têm muitos di- mento. Para o futuro só ficou o encargo -me-ia se ficasse apenas por essa recri- esconder-me para distribuir propaganda
e aos seus netos (os que já os têm) o país des que as próximas gerações não terão Estado Providência; enquanto eu cresci da economia. Não sei se mais alguma vez reitos e garantias, os outros quase nada. e os juros. minação. ilegal. Hoje não é preciso ter coragem para
que eles mereciam. – porque não lhas deixamos. esse Estado Providência foi sendo alarga- conseguiremos algo de semelhante. Mas sei Em Portugal quase sempre dominou, e Há mais de seis anos, ainda não tinha Quando olhamos para o mundo à se escrever o que se pensa – mesmo que
Nestas alturas apetece olhar para trás, Eu sei – sei muito bem – que neste meu do e, a cada ano que passa, abarca mais que aquilo que conseguimos com esses dois ainda domina, a cultura de que não há chegado a troika, quando os Deolinda le- nossa volta, vemos sociedades abertas, às vezes se possa estar naquela posição de
pensar um pouco no que vivi e no que este país os mais velhos trabalharam muito, gente por uma boa razão (vivemos muito choques externos que obrigaram a nossa profissões, há posições. Quem as ocupa vantaram os Coliseus de Lisboa e do Porto onde há oportunidades, risco, inovação e “minoria de um”, para usar uma expressão
país viveu — e escolheu. esforçaram-se imenso, e que para a maioria mais anos) e por uma má razão (garante economia a abrir-se nunca mais repetimos chama-lhes suas, e barra o caminho aos com a sua canção sobre “a geração sem criação de riqueza. E vemos outras onde de George Orwell e, também, Margaret
O país em que nasci não tem nada a ver a recompensa é bem escassa: em 2013, úl- demasiado os “direitos adquiridos” de uma quando deixámos que a nossa economia se competidores. A desigualdade é gritante. remuneração”. Escrevi, reconheci, que se os poderes se empenham sobretudo em Thatcher (“a minority of one”) que aprecio
com o Portugal de hoje. Nada mesmo. Não timo ano nas estatísticas (Pordata), 78,6% fracção dos mais velhos e desprotege em habituasse ao conforto da nossa pequenez, Todos conhecemos os números do desem- a minha geração viveu e vive muito melhor autoperpetuar-se, sociedades que em vez de forma especial.
era só o país a preto-e-branco de um tempo das pensões do regime geral da Segurança demasia os direitos futuros dos mais no- dos nossos amparos públicos, dos nossos prego, que penaliza sempre os mais novos do que a dos meus pais, que se eles já vive- de serem criativas e competitivas, são É verdade, não me esqueci que a última
bisonho sem liberdade – era também um Social eram inferiores ao ordenado mí- vos). Mas sendo natural, é assustador: o “empenhos” e dos nossos subsídios. – conhecemos menos os números que nos ram melhor do que os pais deles, quando “extractivas”. A diferença não está nos palavra d’Os Lusíadas é “inveja” e que
país onde a pobreza era uma constante, o nimo. Quase inacreditável de miserável, rolo compressor das despesas sociais pe- O que mais me aflige foi ver como aque- dizem como estes são penalizados no mer- olhava para as gerações que vinham a se- povos, estás nas instituições que estes sou- muitos gostam de invocar essa marca da
atraso uma fatalidade e o atavismo uma mesmo sabendo que muitos pensionistas sará cada vez mais sobre a tal economia les que melhor tiraram partido desses anos cado de trabalho pela tal dualidade entre guir sentia, sabia, que já não iria ser assim. beram criar, como bem explicam Daron cultura nacional (que não iludo) como
condição natural. É bom recordá-lo, até acumulam mais de uma pensão. que não cresce e uma população activa excepcionais foram os que trataram so- quem tem todos os direitos e garantias de Uma parte do que está a acontecer ultra- Acemoglu e James A. Robinson em Porque sendo a razão de mais uma vez termos
para não para nos deixarmos deslumbrar Mas isso não me impede de reconhe- cada vez mais pequena. bretudo de proteger os seus “direitos”, um contrato sem termo e quem apenas passa Portugal. A vida dos millenials não Falham as Nações – e foi aí que a minha falhado. Mas agora que já tenho 60 anos e
pelo imenso caminho percorrido. cer que, ao mesmo tempo, este país se Sim, porque há também o problema da blindar as suas regalias e, sempre que as tem um contrato a prazo. Em média, em parece fácil em todo o mundo desenvol- geração teve a sua grande oportunidade tive a felicidade de uma vida cheia, devo
O tempo que vivi foi excepcional. Tinha foi gradualmente tornando cada vez mais demografia. E sim, é verdade: foi na minha coisas corriam mal, gritarem “a culpa não 2015, 22% dos contratos de trabalho eram a vido, muito porque as nossas economias e o seu grande falhanço. dizer que acho bem pior aquele hábito de
12 anos quando o homem pousou na Lua, complicado para os mais novos. E que isso geração que os portugueses começaram a foi minha”, essa frase tão portuguesa que prazo, uma das percentagens mais elevadas avançadas deixaram de crescer ao ritmo de A revolução criou a oportunidade de estar sempre a repetir “não tenho culpa”.
17 acabadinhos de fazer quando aconteceu não era inevitável. ter menos filhos do que os necessários para Alexandre O’Neill um dia a escolheu para da Europa, uma realidade que é o contra- outros tempos. E, tal como nós, envelhe- reconstruir o Estado, mas fizemo-lo no Nisso o diagnóstico de Alexandre O’Neill
o 25 de Abril, 32 quando o Muro de Berlim A riqueza por habitante nos dias da manter o equilíbrio demográfico. O pri- definir aquilo que somos: “Em Portugal ponto de um dos mercados de trabalho ceram. Os Estados Providência modernos modo clientelar e seguindo regras esta- é porventura bem mais actual e pertinente
caiu. Optimismo tecnológico, optimismo minha vida foi multiplicada por cinco, meiro ano em que isso aconteceu foi 1982, nunca deixamos cair nada; são os objectos mais rígidos, mesmo depois de todas as contavam com ritmos de crescimento mais tistas e centralistas. A integração europeia do que o de Camões.
histórico. E muitas oportunidades para ou mais exactamente por 4,8, se conside- tinha eu 25 anos. A situação só tem piorado que se escapam das nossas mãos.” Desta “reformas”. Mas entre os que tinham de elevados e uma demografia mais favorável. permitiu abrir a economia, mas passámos
viver a História naqueles momentos em rar os PIB per capita em 1960 e em 2015 desde então. O que significa que, no futuro, vez escapou-se a possibilidade de sermos 25 a 29 anos essa percentagem subia para Mas outra parte deriva de escolhas que o tempo a proteger os instalados até que o José Manuel Fernandes, além de
que ela se escreve com H grande, quando (Pordata). O problema é que este número, haverá cada vez menos trabalhadores a um país europeu, mesmo. 43%. Quase o dobro. E para 67% no inter- fizemos. Que a minha geração fez, por país rebentou e, de repente, vimos tudo (ou sexagenário, é publisher do Observador.
22 FEATURE 23

Emmanuel
Macron:
Afinal, quem
é este homem?
Pouco antes de derrotar Marine Le Pen nas eleições presidenciais
francesas, poucos conheciam Emmanuel Macron e a sua história
invulgar. Criança que já nasceu adulta, apaixonado pela professora
de liceu, é um homem complexo e ainda enigmático, que tem agora
a França nas mãos. Estará ele à altura de tamanho desafio?

João de Almeida Dias


Emmanuel Jean-Michel Frédéric delas para escrever um romance, Babylone, estava — só que pensavam, erradamente, (o único da lista que não acabou o curso),
Macron é o mais velho dos três filhos de Babylone, inspirado em Hernán Cortés, que era com Laurence, a filha da professora François Hollande e Emmanuel Macron.
Jean-Michel Macron, neurologista, e Fran- o conquistador espanhol que eliminou o e também aluna da aula de teatro, que “Um estudante de intercâmbio da Re-
çoise Macron, pediatra. Nascido na cidade império azteca. Apesar de o ter proposto Emmanuel Macron namorava. pública Checa que não vai ao barbeiro há
industrial de Amiens, no norte de França, para publicação, o livro nunca foi editado. Quando descobriram o que se estava a décadas.” É desta forma que Marc Ferraci,
cresceu longe das chaminés das fábricas e Foi nesses anos que Emmanuel Macron passar, os pais quiseram cortar a relação um antigo colega de faculdade e amigo
no seio de uma família burguesa, de classe conheceu a mulher com quem viria a do filho com a professora. Ainda menor de próximo de Emmanuel Macron, o descreve.
média-alta, que se instalou numa vivenda casar-se: a sua professora de teatro, uma idade, enviaram-no para o liceu Henri-IV, Já os professores, desdobram-se em elogios
no mesmo bairro onde morreu o escritor mulher com marido e três filhos, 24 anos um dos mais prestigiados de Paris. Quando ao estudante que, ao mesmo tempo que
Júlio Verne. Além de frequentar um colégio mais velha do que ele. À altura, no início ele se despediu da namorada, ter-lhe-á frequentava aqueles corredores, tirava uma
jesuíta privado, Emmanuel Macron tinha dos anos 90, chamava-se Brigitte Auziè- dito: “Não te livres de mim! Eu vou voltar pós-graduação em Filosofia na Universida-
aulas de piano e ténis. Na volta da escola, re, ostentando o apelido ao marido, um e casar-me contigo!” Aos fins de semana, de de Nanterre.
era frequente parar em casa da avó mater- banqueiro de Amiens. Também ela vinha Emmanuel Macron voltava para Amiens Numa entrevista ao site da Sciences Po,
na, Germaine, conhecida como Manette. de uma família abastada, os Trogneux, e para Brigitte, aprofundando ainda mais o historiador e professor François Dosse
A ligação entre a avó e o seu primeiro neto conhecidos fabricantes de chocolate do a relação. A Vanity Fair escreveu que, já recorda a “sua capacidade de fazer uma
era forte. Tão forte que um dia, aos cinco norte de França. com 18 anos, Emmanuel Macron perguntou síntese entre duas lições diferentes e de
anos, Emmanuel disse aos pais que queria ir Durante os ensaios, Emmanuel Macron e aos pais: “Já sou maior de idade. Continuo as interligar” e também “uma motivação
viver com Manette. Os pais não lhe fizeram Brigitte Auzière (apelido que perderia com apaixonado pela Brigitte. Aceitam isso?” constante para fazer debates dentro das
a vontade, mas nem por isso deixou de fre- o divórcio) aproximaram-se. O aluno de 16 A resposta continuava a ser negativa. aulas, de um nível sempre excelente”. Em-
quentar a casa da avó, onde passava vários anos toma o papel de encenador, contando François Macron, a mãe, tirava grande manuel Macron iria ainda estudar na École
dias e noites. Desses dias, como confidenciou para isso com a ajuda da professora de 40 tristeza da probabilidade muito reduzida Nationale d’Administration (ENA), também
aos autores do livro Les Politiques Ont Aussi anos. “Era como se nós nos conhecêssemos de o seu filho mais velho nunca lhe vir conhecida por formar a elite da política
une Mère (Albin Michel, 2016), recorda “a desde sempre”, recorda Emmanuel Macron a dar netos. Ao pai, a ideia também não francesa. O seu nível intelectual era alto,
sua liberdade, a sua exigência”, “a sua voz” e desses tempos, no seu livro Révolution lhe agradava. Em toda a família, só uma como a média, mas a simpatia e as quali-
o “cheiro a café que ela tinha feito às vezes a (Xo, 2016). No documentário Emmanuel pessoa o apoiava na sua relação amorosa: dades pessoais destacavam-no dos demais.
meio da noite”. Muitas vezes ouviam Chopin Macron, La Stratégie du Météore, Brigitte a avó Manette. “É verdadeiramente da natureza dele, na
e bebiam chocolate quente, enquanto a avó Trogneux afirma: “Ele não era como os altura ele não tinha pretensões eleitorais”,
lhe contava histórias do tempo da Segunda outros. Debatia sempre com os professo- Um estudante sublinha ao The Guardian Mathis Vicherat,
Guerra Mundial. res. Tinha sempre muitos livros. Isto não amigo e colega desses tempos.
O jovem estudante levava tudo a sério. é um adolescente. Ele tinha um compor- exemplar Em 2004, aos 27 anos, começa a sua
Além de se destacar no piano e nos courts tamento de adulto, de igual para igual.” Aos 21 anos, Emmanuel Macron entra para carreira profissional como inspetor das
de ténis, era também um dos melhores O romance entre os dois causou escândalo uma das faculdades mais elitistas de Fran- finanças. Em 2006, quando ainda está
alunos do colégio, onde, nas aulas, deixa- em Amiens. Emmanuel era presença assí- ça: a Sciences Po. O epíteto não é ao acaso, nesse emprego, cumpre a promessa feita
va os colegas espantados com o uso das dua na casa da professora. As habitações já que foi ali que estudaram os últimos aos 18 anos e casa com Brigitte, que passa
palavras caras que aprendia nas leituras de um e de outro distavam apenas 200 cinco presidentes franceses: François Mit- a usar então o apelido Macron. Em 2008,
de Molière ou Albert Camus. Serviu-se metros e os pais sabiam onde o seu filho terrand, Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy recebe um convite profissional que ainda

GETTY IMAGES / JOEL SAGET / AFP


22 FEATURE 23

Emmanuel
Macron:
Afinal, quem
é este homem?
Pouco antes de derrotar Marine Le Pen nas eleições presidenciais
francesas, poucos conheciam Emmanuel Macron e a sua história
invulgar. Criança que já nasceu adulta, apaixonado pela professora
de liceu, é um homem complexo e ainda enigmático, que tem agora
a França nas mãos. Estará ele à altura de tamanho desafio?

João de Almeida Dias


Emmanuel Jean-Michel Frédéric delas para escrever um romance, Babylone, estava — só que pensavam, erradamente, (o único da lista que não acabou o curso),
Macron é o mais velho dos três filhos de Babylone, inspirado em Hernán Cortés, que era com Laurence, a filha da professora François Hollande e Emmanuel Macron.
Jean-Michel Macron, neurologista, e Fran- o conquistador espanhol que eliminou o e também aluna da aula de teatro, que “Um estudante de intercâmbio da Re-
çoise Macron, pediatra. Nascido na cidade império azteca. Apesar de o ter proposto Emmanuel Macron namorava. pública Checa que não vai ao barbeiro há
industrial de Amiens, no norte de França, para publicação, o livro nunca foi editado. Quando descobriram o que se estava a décadas.” É desta forma que Marc Ferraci,
cresceu longe das chaminés das fábricas e Foi nesses anos que Emmanuel Macron passar, os pais quiseram cortar a relação um antigo colega de faculdade e amigo
no seio de uma família burguesa, de classe conheceu a mulher com quem viria a do filho com a professora. Ainda menor de próximo de Emmanuel Macron, o descreve.
média-alta, que se instalou numa vivenda casar-se: a sua professora de teatro, uma idade, enviaram-no para o liceu Henri-IV, Já os professores, desdobram-se em elogios
no mesmo bairro onde morreu o escritor mulher com marido e três filhos, 24 anos um dos mais prestigiados de Paris. Quando ao estudante que, ao mesmo tempo que
Júlio Verne. Além de frequentar um colégio mais velha do que ele. À altura, no início ele se despediu da namorada, ter-lhe-á frequentava aqueles corredores, tirava uma
jesuíta privado, Emmanuel Macron tinha dos anos 90, chamava-se Brigitte Auziè- dito: “Não te livres de mim! Eu vou voltar pós-graduação em Filosofia na Universida-
aulas de piano e ténis. Na volta da escola, re, ostentando o apelido ao marido, um e casar-me contigo!” Aos fins de semana, de de Nanterre.
era frequente parar em casa da avó mater- banqueiro de Amiens. Também ela vinha Emmanuel Macron voltava para Amiens Numa entrevista ao site da Sciences Po,
na, Germaine, conhecida como Manette. de uma família abastada, os Trogneux, e para Brigitte, aprofundando ainda mais o historiador e professor François Dosse
A ligação entre a avó e o seu primeiro neto conhecidos fabricantes de chocolate do a relação. A Vanity Fair escreveu que, já recorda a “sua capacidade de fazer uma
era forte. Tão forte que um dia, aos cinco norte de França. com 18 anos, Emmanuel Macron perguntou síntese entre duas lições diferentes e de
anos, Emmanuel disse aos pais que queria ir Durante os ensaios, Emmanuel Macron e aos pais: “Já sou maior de idade. Continuo as interligar” e também “uma motivação
viver com Manette. Os pais não lhe fizeram Brigitte Auzière (apelido que perderia com apaixonado pela Brigitte. Aceitam isso?” constante para fazer debates dentro das
a vontade, mas nem por isso deixou de fre- o divórcio) aproximaram-se. O aluno de 16 A resposta continuava a ser negativa. aulas, de um nível sempre excelente”. Em-
quentar a casa da avó, onde passava vários anos toma o papel de encenador, contando François Macron, a mãe, tirava grande manuel Macron iria ainda estudar na École
dias e noites. Desses dias, como confidenciou para isso com a ajuda da professora de 40 tristeza da probabilidade muito reduzida Nationale d’Administration (ENA), também
aos autores do livro Les Politiques Ont Aussi anos. “Era como se nós nos conhecêssemos de o seu filho mais velho nunca lhe vir conhecida por formar a elite da política
une Mère (Albin Michel, 2016), recorda “a desde sempre”, recorda Emmanuel Macron a dar netos. Ao pai, a ideia também não francesa. O seu nível intelectual era alto,
sua liberdade, a sua exigência”, “a sua voz” e desses tempos, no seu livro Révolution lhe agradava. Em toda a família, só uma como a média, mas a simpatia e as quali-
o “cheiro a café que ela tinha feito às vezes a (Xo, 2016). No documentário Emmanuel pessoa o apoiava na sua relação amorosa: dades pessoais destacavam-no dos demais.
meio da noite”. Muitas vezes ouviam Chopin Macron, La Stratégie du Météore, Brigitte a avó Manette. “É verdadeiramente da natureza dele, na
e bebiam chocolate quente, enquanto a avó Trogneux afirma: “Ele não era como os altura ele não tinha pretensões eleitorais”,
lhe contava histórias do tempo da Segunda outros. Debatia sempre com os professo- Um estudante sublinha ao The Guardian Mathis Vicherat,
Guerra Mundial. res. Tinha sempre muitos livros. Isto não amigo e colega desses tempos.
O jovem estudante levava tudo a sério. é um adolescente. Ele tinha um compor- exemplar Em 2004, aos 27 anos, começa a sua
Além de se destacar no piano e nos courts tamento de adulto, de igual para igual.” Aos 21 anos, Emmanuel Macron entra para carreira profissional como inspetor das
de ténis, era também um dos melhores O romance entre os dois causou escândalo uma das faculdades mais elitistas de Fran- finanças. Em 2006, quando ainda está
alunos do colégio, onde, nas aulas, deixa- em Amiens. Emmanuel era presença assí- ça: a Sciences Po. O epíteto não é ao acaso, nesse emprego, cumpre a promessa feita
va os colegas espantados com o uso das dua na casa da professora. As habitações já que foi ali que estudaram os últimos aos 18 anos e casa com Brigitte, que passa
palavras caras que aprendia nas leituras de um e de outro distavam apenas 200 cinco presidentes franceses: François Mit- a usar então o apelido Macron. Em 2008,
de Molière ou Albert Camus. Serviu-se metros e os pais sabiam onde o seu filho terrand, Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy recebe um convite profissional que ainda

GETTY IMAGES / JOEL SAGET / AFP


24 EMMANUEL MACRON

GETTY IMAGES / PATRICK KOVARIK

● Emmanuel Macron conheceu Brigitte Auzière quando era ainda adolescente, nas aulas de teatro. Ela
era 24 anos mais velha e os pais de Macron achavam que ele namorava a sua filha. Casaram-se em 2007.
hoje lhe é apontado como uma mancha no Hollande e Macron, junto de 107 medidas que o tiraram do um mea culpa que fazia, era um “eu tinha
currículo: uma oferta para trabalhar como uma história anonimato. Num esforço para desregular razão”. Até porque declarou isto logo a
banqueiro de investimento no Rothschild. o mercado, a Lei Macron — foi assim mes- seguir: “Por vezes, falhei na demonstração
Em 2012, por ter facilitado o negócio que imprevisível mo que ela ficou conhecida, sobretudo da necessidade que tínhamos de continuar
resultou na compra, por quase 9 mil mi- Em 2011, François Hollande entra na vida entre os seus adversários — liberalizava e de aumentar o trabalho de transformação
lhões de euros, do negócio de comida para de Emmanuel Macron. O convite dá-se de- a atividade dos taxistas, condutores de da economia em profundidade.” Macron
bebé da Pfizer pela Nestlé, Macron recebeu pois do escândalo que envolveu Dominique camiões, farmacêuticos e notários. Além continuava seguro da sua receita.
uma compensação de 2,8 milhões de euros. Strauss-Kahn, arrasando quaisquer opor- disso, a Lei Macron previa ainda uma Não foi por acaso que quatro meses an-
Foi nesses anos que Emmanuel Macron tunidades de poder vir a ser Presidente. baixa de 40 mil milhões nos impostos às tes, em abril de 2016, quando ainda era
aprendeu a ser capitalista — e rico. Numa A queda de Strauss-Kahn foi a subida de empresas e a obrigação legal de as lojas ministro da Economia, havia fundado o En
entrevista ao Wall Street Journal em que François Hollande — e este levou consigo abrirem pelo menos 12 domingos por ano, Marche!, o movimento que acabaria por o
falava do seu emprego no Rothschild, Emmanuel Macron, tornando-o seu con- em vez de cinco. levar ao poder nas eleições presidenciais
quando já não trabalhava para aquele selheiro para as questões económicas. Foi um cataclismo — apenas outro, o de 2017. A estratégia de Emmanuel Macron
banco, resumiu o seu trabalho desta for- Primeiro, o ex-banqueiro acompanhou da Lei El Khomri (que reformou a Lei do era clara e o Eliseu tomou notas. Em co-
ma: “É como se fosses uma espécie de Hollande ainda como candidato socialis- Trabalho), rivalizou em dimensão. Dentro municado, a presidência disse que ele se
prostituta. Seduzir faz parte do empre- ta. Depois, foi com ele para o Eliseu, na do próprio PS, as fileiras mais à esquerda demitira “para se dedicar inteiramente
go.” Na mesma entrevista, viria a dizer: qualidade de conselheiro. Naquela altura, opuseram-se à aprovação das propostas ao seu movimento político, En Marche!”.
“Trabalhar num banco de investimento Emmanuel Macron já defendia medidas de Emmanuel Macron, impossibilitando Aos olhos de muitos, Emmanuel Macron
não é muito intelectual. O mimetismo do que pudessem afrouxar a regulação das uma aprovação do parlamento. O Go- e François Hollande estavam agora em pó-
meio é a referência.” empresas, baixando-lhes os impostos em verno acabou por aprová-la por decreto los inconciliáveis — não necessariamente
Pelo meio, começou a envolver-se na nome da competitividade. Porém, o Go- — na altura, a imprensa francesa dizia por distarem assim tanto um do outro po-
política, embora sem profundidade. Em verno de François Hollande, que na altura que François Hollande tinha usado uma liticamente, mas porque a confiança entre
2006, convencido pela campanha de Se- estava empenhado em impor uma taxa de bazuca em agosto de 2015. Aos poucos, a eles não passara o teste. Há quem aponte
golène Royal, torna-se militante do Partido 75% sobre os rendimentos dos mais ricos, neutralidade de Macron perante os olhos que a relação entre os dois esfriou com a
Socialista. Ainda assim, aceitou fazer parte não estava nessa onda. dos franceses desfazia-se. Quando certa aprovação da Lei Macron por decreto, ma-
de uma comissão independente, nomeada Emmanuel Macron acabaria por sair vez, como é seu hábito, se dirigiu a dois nobra de que o ministro da Economia não
por Nicolas Sarkozy, para impulsionar o — mas François Hollande foi buscá-lo de manifestantes para tentar falar com eles terá gostado. Outros dizem que a reação de
crescimento da economia francesa. Já o volta. Desta vez, queria que ele fosse mi- cara a cara, Macron acabou por perder a François Hollande aos atentados de 13 de
convite para concorrer à Câmara Municipal nistro da Economia, numa altura em que paciência: “Vocês não me metem medo novembro de 2015 foi a machadada final.
de Touquet pela UMP (atual Os Republica- a taxa de desemprego chegava aos 10,4%. com as vossas t-shirts. A melhor maneira Anne Fulda, autora do livro Emmanuel
nos), que tinha como condição a inscrição Nem todos olharam para esta nomeação de pagar um fato é trabalhar.” Macron, un jeune homme si parfait (Plon,
naquele partido e a desistência do PS, não com bons olhos, sobretudo nos setores Aos poucos, Emmanuel Macron percebeu 2017), apresenta uma terceira versão, mais
teve a mesma resposta. mais à esquerda dentro do PS. Macron era que a sua presença naquele executivo estava pessoal. Segundo a autora disse numa en-
Emmanuel Macron deixava aqui provas um ex-banqueiro, não tinha qualquer cre- a deixar de fazer sentido. Para ser capaz de trevista à BFM TV, tudo se passou quando
da sua elasticidade que valem ainda hoje dencial socialista, para além do cartão de fazer alguma coisa mais tarde, teria de sair a avó de Emmanuel Macron, Manette,
tantas críticas e também elogios. Ao mesmo militante, e nem sequer tinha sido eleito. dele antes que fosse tarde demais. morreu. “[No funeral da avó] ele disse a
tempo que trabalhava para um banco de “Ele provavelmente nem sabe o caminho Em agosto de 2016, já no estertor do um dos seus amigos: ‘Acabou tudo com o
investimento, era militante socialista. Isto para a sede do partido!”, disse um dirigente Governo de François Hollande, Macron sai Hollande.’ O amigo perguntou-lhe: ‘O que
enquanto ajudava o Governo de Nicolas do PS francês à revista alemã Der Spiegel, de cena. No discurso de demissão, disse que é que se passa?’. E ele respondeu: ‘Quando
Sarkozy a impulsionar o crescimento e em agosto de 2014. tinha “tocado nos limites da nossa política”. lhe anunciei a morte da minha avó, ele disse
tinha como prémio a direita a abanar-lhe Se não sabia, encontrou-o. Em 2015, “Não tive um sucesso total, houve empresas algo como: ‘Ah, sim, que pena.’ Essa reação
um cartão de militante à frente do nariz. Emmanuel Macron apresenta um con- que faliram na mesma”, afirmou. Não era significa o fim de uma história entre nós.”
24 EMMANUEL MACRON

GETTY IMAGES / PATRICK KOVARIK

● Emmanuel Macron conheceu Brigitte Auzière quando era ainda adolescente, nas aulas de teatro. Ela
era 24 anos mais velha e os pais de Macron achavam que ele namorava a sua filha. Casaram-se em 2007.
hoje lhe é apontado como uma mancha no Hollande e Macron, junto de 107 medidas que o tiraram do um mea culpa que fazia, era um “eu tinha
currículo: uma oferta para trabalhar como uma história anonimato. Num esforço para desregular razão”. Até porque declarou isto logo a
banqueiro de investimento no Rothschild. o mercado, a Lei Macron — foi assim mes- seguir: “Por vezes, falhei na demonstração
Em 2012, por ter facilitado o negócio que imprevisível mo que ela ficou conhecida, sobretudo da necessidade que tínhamos de continuar
resultou na compra, por quase 9 mil mi- Em 2011, François Hollande entra na vida entre os seus adversários — liberalizava e de aumentar o trabalho de transformação
lhões de euros, do negócio de comida para de Emmanuel Macron. O convite dá-se de- a atividade dos taxistas, condutores de da economia em profundidade.” Macron
bebé da Pfizer pela Nestlé, Macron recebeu pois do escândalo que envolveu Dominique camiões, farmacêuticos e notários. Além continuava seguro da sua receita.
uma compensação de 2,8 milhões de euros. Strauss-Kahn, arrasando quaisquer opor- disso, a Lei Macron previa ainda uma Não foi por acaso que quatro meses an-
Foi nesses anos que Emmanuel Macron tunidades de poder vir a ser Presidente. baixa de 40 mil milhões nos impostos às tes, em abril de 2016, quando ainda era
aprendeu a ser capitalista — e rico. Numa A queda de Strauss-Kahn foi a subida de empresas e a obrigação legal de as lojas ministro da Economia, havia fundado o En
entrevista ao Wall Street Journal em que François Hollande — e este levou consigo abrirem pelo menos 12 domingos por ano, Marche!, o movimento que acabaria por o
falava do seu emprego no Rothschild, Emmanuel Macron, tornando-o seu con- em vez de cinco. levar ao poder nas eleições presidenciais
quando já não trabalhava para aquele selheiro para as questões económicas. Foi um cataclismo — apenas outro, o de 2017. A estratégia de Emmanuel Macron
banco, resumiu o seu trabalho desta for- Primeiro, o ex-banqueiro acompanhou da Lei El Khomri (que reformou a Lei do era clara e o Eliseu tomou notas. Em co-
ma: “É como se fosses uma espécie de Hollande ainda como candidato socialis- Trabalho), rivalizou em dimensão. Dentro municado, a presidência disse que ele se
prostituta. Seduzir faz parte do empre- ta. Depois, foi com ele para o Eliseu, na do próprio PS, as fileiras mais à esquerda demitira “para se dedicar inteiramente
go.” Na mesma entrevista, viria a dizer: qualidade de conselheiro. Naquela altura, opuseram-se à aprovação das propostas ao seu movimento político, En Marche!”.
“Trabalhar num banco de investimento Emmanuel Macron já defendia medidas de Emmanuel Macron, impossibilitando Aos olhos de muitos, Emmanuel Macron
não é muito intelectual. O mimetismo do que pudessem afrouxar a regulação das uma aprovação do parlamento. O Go- e François Hollande estavam agora em pó-
meio é a referência.” empresas, baixando-lhes os impostos em verno acabou por aprová-la por decreto los inconciliáveis — não necessariamente
Pelo meio, começou a envolver-se na nome da competitividade. Porém, o Go- — na altura, a imprensa francesa dizia por distarem assim tanto um do outro po-
política, embora sem profundidade. Em verno de François Hollande, que na altura que François Hollande tinha usado uma liticamente, mas porque a confiança entre
2006, convencido pela campanha de Se- estava empenhado em impor uma taxa de bazuca em agosto de 2015. Aos poucos, a eles não passara o teste. Há quem aponte
golène Royal, torna-se militante do Partido 75% sobre os rendimentos dos mais ricos, neutralidade de Macron perante os olhos que a relação entre os dois esfriou com a
Socialista. Ainda assim, aceitou fazer parte não estava nessa onda. dos franceses desfazia-se. Quando certa aprovação da Lei Macron por decreto, ma-
de uma comissão independente, nomeada Emmanuel Macron acabaria por sair vez, como é seu hábito, se dirigiu a dois nobra de que o ministro da Economia não
por Nicolas Sarkozy, para impulsionar o — mas François Hollande foi buscá-lo de manifestantes para tentar falar com eles terá gostado. Outros dizem que a reação de
crescimento da economia francesa. Já o volta. Desta vez, queria que ele fosse mi- cara a cara, Macron acabou por perder a François Hollande aos atentados de 13 de
convite para concorrer à Câmara Municipal nistro da Economia, numa altura em que paciência: “Vocês não me metem medo novembro de 2015 foi a machadada final.
de Touquet pela UMP (atual Os Republica- a taxa de desemprego chegava aos 10,4%. com as vossas t-shirts. A melhor maneira Anne Fulda, autora do livro Emmanuel
nos), que tinha como condição a inscrição Nem todos olharam para esta nomeação de pagar um fato é trabalhar.” Macron, un jeune homme si parfait (Plon,
naquele partido e a desistência do PS, não com bons olhos, sobretudo nos setores Aos poucos, Emmanuel Macron percebeu 2017), apresenta uma terceira versão, mais
teve a mesma resposta. mais à esquerda dentro do PS. Macron era que a sua presença naquele executivo estava pessoal. Segundo a autora disse numa en-
Emmanuel Macron deixava aqui provas um ex-banqueiro, não tinha qualquer cre- a deixar de fazer sentido. Para ser capaz de trevista à BFM TV, tudo se passou quando
da sua elasticidade que valem ainda hoje dencial socialista, para além do cartão de fazer alguma coisa mais tarde, teria de sair a avó de Emmanuel Macron, Manette,
tantas críticas e também elogios. Ao mesmo militante, e nem sequer tinha sido eleito. dele antes que fosse tarde demais. morreu. “[No funeral da avó] ele disse a
tempo que trabalhava para um banco de “Ele provavelmente nem sabe o caminho Em agosto de 2016, já no estertor do um dos seus amigos: ‘Acabou tudo com o
investimento, era militante socialista. Isto para a sede do partido!”, disse um dirigente Governo de François Hollande, Macron sai Hollande.’ O amigo perguntou-lhe: ‘O que
enquanto ajudava o Governo de Nicolas do PS francês à revista alemã Der Spiegel, de cena. No discurso de demissão, disse que é que se passa?’. E ele respondeu: ‘Quando
Sarkozy a impulsionar o crescimento e em agosto de 2014. tinha “tocado nos limites da nossa política”. lhe anunciei a morte da minha avó, ele disse
tinha como prémio a direita a abanar-lhe Se não sabia, encontrou-o. Em 2015, “Não tive um sucesso total, houve empresas algo como: ‘Ah, sim, que pena.’ Essa reação
um cartão de militante à frente do nariz. Emmanuel Macron apresenta um con- que faliram na mesma”, afirmou. Não era significa o fim de uma história entre nós.”
26 EMMANUEL MACRON

As primeiras sondagens eram claras: a globalização descontrolada, contra este


verdadeira competição seria entre Marine modelo económico vergonhoso. Não estou
Le Pen e François Fillon. O debate estava a comer bolinhos com os representantes que
centrado à direita e, sobretudo, confu- só se representam a eles próprios.”
so. Por um lado, François Fillon tentava Em pânico, a equipa de campanha assistiu
aproximar-se de Marine Le Pen em matéria a tudo isto através de um vídeo em direto no
de imigração e combate ao terrorismo, os Facebook. Entre eles, discutia-se se Macron
seus pontos fortes. Por outro, Marine Le devia ou não encontrar-se com os operários.
Pen procurava alargar a sua base eleitoral Foram levantadas questões de segurança.
ao fazer um discurso estatista na economia Emmanuel Macron, como é possível ver no
e eurocético. documentário Les Coulisse d’Une Victoire,
Esta dinâmica alterou-se por causa de um da TF1, disse: “O coração da batalha é lá,
jornal — um desfecho que muitos tomariam portanto vamos para lá. Se vocês prestam
como improvável, ainda para mais sendo atenção aos tipos da segurança, vão acabar
esse jornal o Canard Enchaîné, predomi- como Hollande. Podem estar em segurança,
nantemente satírico e totalmente ausente mas já estão mortos.” Mesmo que tenha sido
da internet. A 25 de janeiro, esta publicação bom para as câmaras, o bravado de Emma-
lançou suspeitas sobre François Fillon, ale- nuel Macron não escondia uma coisa: aquele
gando que este tinha criado empregos fictí- dia tinha sido um mau dia. Quando chegou
cios para a sua mulher e filhos, pagos com em frente aos operários da Whirlpool, foi
dinheiros públicos ao longo de vários anos. recebido com tochas, apupos e gritos de
Em poucos dias, as sondagens mudaram “Marine Presidente! Marine Presidente!”.
para sempre. François Fillon caiu a pique e Só na noite de 3 de maio, a quatro dias
Emmanuel Macron tomou lenta mas gra- das eleições, é que Emmanuel Macron
dualmente o seu lugar, tornando-se no pôde começar a suspirar de alívio. Num
adversário mais direto para Marine Le Pen. debate televisivo de duas horas e meia, o
A líder da Frente Nacional, ciente de que candidato do En Marche! fez quase tudo
o jogo mudara, começou a centrar os seus bem e a sua adversária fez quase tudo mal.
ataques em Emmanuel Macron, atacando-o Ele manteve a calma na maior parte dos
pelo seu europeísmo, pelo seu passado na momentos, deixou Marine Le Pen falar para
banca e também pela sua ligação a François depois a apanhar em falso, deu resposta às
Hollande. Com Jean-Luc Mélenchon a aju- acusações por ela lançadas e ainda apre-
dar a partir da extrema-esquerda, Le Pen sentou partes do seu programa. Le Pen
criticava Macron diariamente, acusando-o teve momentos de exaltação, entrou em
de querer levar o país a uma “uberização”. contradição quando quis falar da saída
Enquanto isso, surgia nas redes sociais do euro, deixou-se enervar com o estilo
o rumor de que a relação de Emmanuel paternalista de Macron e preferiu atacar o
Macron com a sua mulher Brigitte era de adversário a apresentar propostas.
fachada e que o ex-ministro da Economia No dia seguinte, Macron descolou nas
seria, na verdade, gay. Nessa altura, para sondagens. Os restantes dias correram-lhe
gáudio da imprensa cor-de-rosa e não só, o de feição, com o debate a tornar-se o centro
casal mostrou-se cada vez mais. Se Brigitte das discussões. Pelo meio, Barack Obama
Macron já era vista ocasionalmente ao lado declarou o seu apoio formal ao candidato
do marido (embora estivesse presente nos do En Marche!. Em cima da reta final, um
GETTY IMAGES / CHRISTOPHE MORIN / IP3 bastidores com regularidade), passou a contratempo: a apenas uma hora do início
sê-lo ainda mais vezes. Seguiram-se entre- do dia da reflexão, foi divulgada a notícia
vistas a dois, ou apenas da ex-professora da fuga de e-mails da sua campanha. Mas
de liceu, capas em revistas como a Paris a equipa estava preparada. Segundo o New
Match ou a Gala. Um dia, uma jornalis- York Times, tinha criado dezenas de contas
ta perguntou a Brigitte Macron se estava de e-mails falsas, com documentos forja-
pronta para ser primeira-dama. “Com ele, dos, para confundir os hackers. Macron
estou pronta para tudo”, respondeu-lhe. saiu ileso, e ganhou as eleições, com 66,1%
A 23 de abril, chegou o primeiro dia da dos votos. Foi a segunda maior vitória des-
verdade. Trinta e seis milhões de franceses de a fundação da V República, em 1958.
saíram para votar e uma maioria de 24% Poucas horas depois de ser declarado
deixou-o em primeiro lugar, seguindo de vencedor das eleições, Emmanuel Macron
● Os críticos de Macron afirmam que ele é uma in- Marine Le Pen, em segundo, com 21,3%.
Quando subiu ao palco para fazer o dis-
teve a sua coroação na praça do Museu
do Louvre. O momento foi tão simbólico
venção de François Hollande, de quem foi ministro curso de vitória, Emmanuel Macron levava quanto kitsch. Assim que chegou ao local,
consigo a mulher. No Parc des Expositions, os ecrãs projetaram imagens dele, ao vivo.
da Economia. Mas há também quem garanta que as em Paris, uma plateia multicultural e maio- Estava completamente sozinho. Quando se
ritariamente jovem gritou quase tanto por ouviram os primeiros acordes do Hino à Ale-
relações esfriaram há muito tempo entre os dois. ela como por ele, como um flashback de gria — a música de Beethoven que a União
2008, com Barack e Michelle Obama. Europeia tomou como hino —, começou
a andar em direção ao palco. En Marche!
O início da caminhada uma convicção íntima e profunda, de um Uma história que tinha O momento era solene e a caminhada
até ao Eliseu sentido de História e de uma consciência
tudo para dar errado longa. Tão longa que o Hino à Alegria
do tempo difícil em que vivemos”, afirmou. tocou duas vezes. As luzes fortes que in-
O En Marche!, cuja sigla coincide com as Naquele discurso, tornava-se já evidente A segunda volta começou mal. Logo na cidiam sobre ele obrigavam-no a desviar
iniciais de Emmanuel Macron, começou em que o seu lugar era no centro, com uma noite de 23 de abril, a equipa do centrista o olhar, umas vezes para a esquerda, ou-
abril de 2016 — mas antes disso, já existia um tendência liberal. “Quero libertar a energia liberal é levada a jantar ao La Rotonde, tras para a direita, metáfora perfeita da
grupo, o Jeunes avec Macron (Jovens com dos capazes ao mesmo tempo que protejo os um restaurante conhecido em Paris, entre maneira como procurará governar nos
Macron), um site misterioso que depressa mais fracos”, disse. E continuou: “O que está outras coisas, por não ser para o bolso de próximos anos. A caminhada durou quatro
agregou vários ativistas em torno do ainda em causa para mim não é reunir a esquerda qualquer um. A 26 de abril, Marine Le Pen minutos. Pelo meio, pareceu, por vezes,
ministro da Economia. Teria Emmanuel ou a direita, mas reunir os franceses, para desloca-se até à Amiens de Emmanuel Ma- perdido, como se nem a grande vitória,
Macron uma carta na manga, já? Estaria que França possa entrar no século XXI.” cron para falar com os operários da fábrica nem aquela sofisticada mise-en-scène, fos-
François Hollande, virtualmente inelegível Poucas semanas depois deste anún- da Whirlpool, em processo de despedimento sem suficientes para fazer esquecer todas
para um segundo mandato, por trás de tudo cio, a direita escolhia o seu candidato. coletivo, sabendo que ao mesmo tempo as dúvidas que pairam à sua frente. Aos 39
isto? Ainda é cedo para respostas. Para surpresa das sondagens, venceu o o seu adversário estava a conversar com anos, Emmanuel Macron é o Presidente
Durante meses, o maior segredo de po- ex-primeiro-ministro François Fillon, o patrões e delegados sindicais. A operação é francês mais jovem de sempre. Talvez esti-
lichinelo da política francesa foi a candi- candidato mais à direita. Mais tarde, as pri- feita com mestria por parte da Frente Nacio- vesse a perguntar para si próprio: “Como
datura presidencial de Emmanuel Macron. márias socialistas dariam a vitória a Benoît nal: aparecendo de surpresa, Marine Le Pen é que eu vim parar aqui?”
Enfim, a 16 de novembro de 2016, anun- Hamon, o candidato mais à esquerda. Na deixa-se fotografar ao lado dos trabalhado-
ciou a sua candidatura. “É evidente que extrema-esquerda, Jean-Luc Mélenchon res. Com laivos de Lénine, diz-lhes: “Emma- João de Almeida Dias é jornalista
ninguém se levanta de manhã com esta tentava uma nova vez a presidência. E na nuel Macron está com os oligarcas, com os do Observador, onde escreve sobre temas
revelação, a decisão de me candidatar aos extrema-direita, outra repetente de 2012: patrões! Eu estou aqui, com os empregados internacionais. Esteve em França a
mais altos cargos da República é o fruto de Marine Le Pen. da Whirlpool que estão a lutar contra esta acompanhar a eleição de Emmanuel Macron.
26 EMMANUEL MACRON

As primeiras sondagens eram claras: a globalização descontrolada, contra este


verdadeira competição seria entre Marine modelo económico vergonhoso. Não estou
Le Pen e François Fillon. O debate estava a comer bolinhos com os representantes que
centrado à direita e, sobretudo, confu- só se representam a eles próprios.”
so. Por um lado, François Fillon tentava Em pânico, a equipa de campanha assistiu
aproximar-se de Marine Le Pen em matéria a tudo isto através de um vídeo em direto no
de imigração e combate ao terrorismo, os Facebook. Entre eles, discutia-se se Macron
seus pontos fortes. Por outro, Marine Le devia ou não encontrar-se com os operários.
Pen procurava alargar a sua base eleitoral Foram levantadas questões de segurança.
ao fazer um discurso estatista na economia Emmanuel Macron, como é possível ver no
e eurocético. documentário Les Coulisse d’Une Victoire,
Esta dinâmica alterou-se por causa de um da TF1, disse: “O coração da batalha é lá,
jornal — um desfecho que muitos tomariam portanto vamos para lá. Se vocês prestam
como improvável, ainda para mais sendo atenção aos tipos da segurança, vão acabar
esse jornal o Canard Enchaîné, predomi- como Hollande. Podem estar em segurança,
nantemente satírico e totalmente ausente mas já estão mortos.” Mesmo que tenha sido
da internet. A 25 de janeiro, esta publicação bom para as câmaras, o bravado de Emma-
lançou suspeitas sobre François Fillon, ale- nuel Macron não escondia uma coisa: aquele
gando que este tinha criado empregos fictí- dia tinha sido um mau dia. Quando chegou
cios para a sua mulher e filhos, pagos com em frente aos operários da Whirlpool, foi
dinheiros públicos ao longo de vários anos. recebido com tochas, apupos e gritos de
Em poucos dias, as sondagens mudaram “Marine Presidente! Marine Presidente!”.
para sempre. François Fillon caiu a pique e Só na noite de 3 de maio, a quatro dias
Emmanuel Macron tomou lenta mas gra- das eleições, é que Emmanuel Macron
dualmente o seu lugar, tornando-se no pôde começar a suspirar de alívio. Num
adversário mais direto para Marine Le Pen. debate televisivo de duas horas e meia, o
A líder da Frente Nacional, ciente de que candidato do En Marche! fez quase tudo
o jogo mudara, começou a centrar os seus bem e a sua adversária fez quase tudo mal.
ataques em Emmanuel Macron, atacando-o Ele manteve a calma na maior parte dos
pelo seu europeísmo, pelo seu passado na momentos, deixou Marine Le Pen falar para
banca e também pela sua ligação a François depois a apanhar em falso, deu resposta às
Hollande. Com Jean-Luc Mélenchon a aju- acusações por ela lançadas e ainda apre-
dar a partir da extrema-esquerda, Le Pen sentou partes do seu programa. Le Pen
criticava Macron diariamente, acusando-o teve momentos de exaltação, entrou em
de querer levar o país a uma “uberização”. contradição quando quis falar da saída
Enquanto isso, surgia nas redes sociais do euro, deixou-se enervar com o estilo
o rumor de que a relação de Emmanuel paternalista de Macron e preferiu atacar o
Macron com a sua mulher Brigitte era de adversário a apresentar propostas.
fachada e que o ex-ministro da Economia No dia seguinte, Macron descolou nas
seria, na verdade, gay. Nessa altura, para sondagens. Os restantes dias correram-lhe
gáudio da imprensa cor-de-rosa e não só, o de feição, com o debate a tornar-se o centro
casal mostrou-se cada vez mais. Se Brigitte das discussões. Pelo meio, Barack Obama
Macron já era vista ocasionalmente ao lado declarou o seu apoio formal ao candidato
do marido (embora estivesse presente nos do En Marche!. Em cima da reta final, um
GETTY IMAGES / CHRISTOPHE MORIN / IP3 bastidores com regularidade), passou a contratempo: a apenas uma hora do início
sê-lo ainda mais vezes. Seguiram-se entre- do dia da reflexão, foi divulgada a notícia
vistas a dois, ou apenas da ex-professora da fuga de e-mails da sua campanha. Mas
de liceu, capas em revistas como a Paris a equipa estava preparada. Segundo o New
Match ou a Gala. Um dia, uma jornalis- York Times, tinha criado dezenas de contas
ta perguntou a Brigitte Macron se estava de e-mails falsas, com documentos forja-
pronta para ser primeira-dama. “Com ele, dos, para confundir os hackers. Macron
estou pronta para tudo”, respondeu-lhe. saiu ileso, e ganhou as eleições, com 66,1%
A 23 de abril, chegou o primeiro dia da dos votos. Foi a segunda maior vitória des-
verdade. Trinta e seis milhões de franceses de a fundação da V República, em 1958.
saíram para votar e uma maioria de 24% Poucas horas depois de ser declarado
deixou-o em primeiro lugar, seguindo de vencedor das eleições, Emmanuel Macron
● Os críticos de Macron afirmam que ele é uma in- Marine Le Pen, em segundo, com 21,3%.
Quando subiu ao palco para fazer o dis-
teve a sua coroação na praça do Museu
do Louvre. O momento foi tão simbólico
venção de François Hollande, de quem foi ministro curso de vitória, Emmanuel Macron levava quanto kitsch. Assim que chegou ao local,
consigo a mulher. No Parc des Expositions, os ecrãs projetaram imagens dele, ao vivo.
da Economia. Mas há também quem garanta que as em Paris, uma plateia multicultural e maio- Estava completamente sozinho. Quando se
ritariamente jovem gritou quase tanto por ouviram os primeiros acordes do Hino à Ale-
relações esfriaram há muito tempo entre os dois. ela como por ele, como um flashback de gria — a música de Beethoven que a União
2008, com Barack e Michelle Obama. Europeia tomou como hino —, começou
a andar em direção ao palco. En Marche!
O início da caminhada uma convicção íntima e profunda, de um Uma história que tinha O momento era solene e a caminhada
até ao Eliseu sentido de História e de uma consciência
tudo para dar errado longa. Tão longa que o Hino à Alegria
do tempo difícil em que vivemos”, afirmou. tocou duas vezes. As luzes fortes que in-
O En Marche!, cuja sigla coincide com as Naquele discurso, tornava-se já evidente A segunda volta começou mal. Logo na cidiam sobre ele obrigavam-no a desviar
iniciais de Emmanuel Macron, começou em que o seu lugar era no centro, com uma noite de 23 de abril, a equipa do centrista o olhar, umas vezes para a esquerda, ou-
abril de 2016 — mas antes disso, já existia um tendência liberal. “Quero libertar a energia liberal é levada a jantar ao La Rotonde, tras para a direita, metáfora perfeita da
grupo, o Jeunes avec Macron (Jovens com dos capazes ao mesmo tempo que protejo os um restaurante conhecido em Paris, entre maneira como procurará governar nos
Macron), um site misterioso que depressa mais fracos”, disse. E continuou: “O que está outras coisas, por não ser para o bolso de próximos anos. A caminhada durou quatro
agregou vários ativistas em torno do ainda em causa para mim não é reunir a esquerda qualquer um. A 26 de abril, Marine Le Pen minutos. Pelo meio, pareceu, por vezes,
ministro da Economia. Teria Emmanuel ou a direita, mas reunir os franceses, para desloca-se até à Amiens de Emmanuel Ma- perdido, como se nem a grande vitória,
Macron uma carta na manga, já? Estaria que França possa entrar no século XXI.” cron para falar com os operários da fábrica nem aquela sofisticada mise-en-scène, fos-
François Hollande, virtualmente inelegível Poucas semanas depois deste anún- da Whirlpool, em processo de despedimento sem suficientes para fazer esquecer todas
para um segundo mandato, por trás de tudo cio, a direita escolhia o seu candidato. coletivo, sabendo que ao mesmo tempo as dúvidas que pairam à sua frente. Aos 39
isto? Ainda é cedo para respostas. Para surpresa das sondagens, venceu o o seu adversário estava a conversar com anos, Emmanuel Macron é o Presidente
Durante meses, o maior segredo de po- ex-primeiro-ministro François Fillon, o patrões e delegados sindicais. A operação é francês mais jovem de sempre. Talvez esti-
lichinelo da política francesa foi a candi- candidato mais à direita. Mais tarde, as pri- feita com mestria por parte da Frente Nacio- vesse a perguntar para si próprio: “Como
datura presidencial de Emmanuel Macron. márias socialistas dariam a vitória a Benoît nal: aparecendo de surpresa, Marine Le Pen é que eu vim parar aqui?”
Enfim, a 16 de novembro de 2016, anun- Hamon, o candidato mais à esquerda. Na deixa-se fotografar ao lado dos trabalhado-
ciou a sua candidatura. “É evidente que extrema-esquerda, Jean-Luc Mélenchon res. Com laivos de Lénine, diz-lhes: “Emma- João de Almeida Dias é jornalista
ninguém se levanta de manhã com esta tentava uma nova vez a presidência. E na nuel Macron está com os oligarcas, com os do Observador, onde escreve sobre temas
revelação, a decisão de me candidatar aos extrema-direita, outra repetente de 2012: patrões! Eu estou aqui, com os empregados internacionais. Esteve em França a
mais altos cargos da República é o fruto de Marine Le Pen. da Whirlpool que estão a lutar contra esta acompanhar a eleição de Emmanuel Macron.
28 OPINIÃO OPINIÃO 29

O homem doente
da Europa

No século XIX, usava-se a expressão


“o homem doente da Europa” para
designar um país cujas dificuldades
poderiam pôr em causa os equilíbrios
políticos europeus. Hoje, esse “homem
doente”, do ponto de vista da União
Rui Ramos Europeia, é a França.
Sem a França, não há Europa. A segunda volta também não foi triun- francês como seu. No Reino Unido, os de sempre, a principal reivindicação da o rival que a derrotou. É, nesta fase, o rival República manipular coligações variáveis da Alemanha ou do Reino Unido. O eixo falida e a tentar manter uma província
Por isso, as duas voltas das eleições presi- fal para a Europa. O regime pró-europeu partidos tradicionais mantiveram a ini- Frente Nacional. que a pode salvar. Macron propõe-se, com entre muitos grupos políticos. Para Le Pen, franco-alemão deixou de ser uma relação em África. Quase sessenta anos depois,
denciais francesas, a 23 de Abril e a 7 de francês tinha tudo a seu favor. Enfrentava ciativa política; em França, não. O Brexit Macron foi o cartaz de ocasião da elite tra- o seu novo partido En Marche, destruir os seria a oportunidade de dispor de um gran- de iguais. Paris já não contrabalança o a V República deixou de ser capaz desse
Maio, inspiraram muita ansiedade, para no uma candidata diabolizada todos os dias é, apesar de tudo, conduzido pelo Partido dicional de diplomados das “grandes esco- partidos estabelecidos. Não é impossível. de grupo parlamentar, o que aumentaria poder de Berlim. tipo de grandes decisões.
fim acabarem num grande alívio, quando em todos os ecrãs e primeiras páginas, e Conservador, não pelo UKIP, que desa- las”. Não é de direita nem de esquerda. Acha Os partidos franceses nunca tiveram a con- radicalmente a importância da Frente Há anos que os governos franceses falam A França é um dos países europeus onde
Emmanuel Macron, um candidato europe- contava com um jovem campeão sem o pareceu nas eleições locais de 4 de Maio que tudo tem um lado positivo e negativo: o sistência e a solidez dos partidos ingleses Nacional. Nessas circunstâncias, quanto de reformas do mercado de trabalho ou da os governos avançaram para a integração
ísta, venceu Marine Le Pen, que prometera cartão dos velhos partidos e disposto a deste ano. Em França, porém, os grandes dirigismo estatal e o mercado livre, o protec- ou alemães: são quase que organizações tempo é que uma direita enfraquecida Segurança Social, mas as grandes reformas monetária, sem nunca serem capazes de
um referendo para a França sair do euro. dizer o que fosse para agradar à direita e à partidos do regime ficaram ambos pela cionismo e a globalização... Macron é como pessoais, que os políticos reinventam regu- resistiria à tentação de fazer uma maioria dificilmente conseguem apoio parlamentar fazer as reformas necessárias para a eco-
Não vai haver “Frexit”. A União Europeia esquerda. Mesmo assim, não foi poupado à primeira vez de fora de uma segunda volta se a França tivesse chegado finalmente, com larmente. Manuel Valls, o antigo primeiro- de governo com a Frente Nacional (em e são quase sempre contestadas na rua. A nomia funcionar com uma moeda forte.
está salva. Para muitos, é o fim de um ciclo maior abstenção desde 1969: 20 milhões de das presidenciais. Ora, os Republicanos vinte anos de atraso, à década de 1990 de -ministro de François Hollande, já declarou Portugal, demorou 40 anos, mas o Partido França continua a imaginar-se a si própria Macron promete essas reformas. Mas só em
mau de “populismo”, depois das surpresas eleitores votaram em Macron e 10 milhões (Gaullistas) e os Socialistas são os partidos Bill Clinton e de Tony Blair. Promete fazer o Partido Socialista “morto”. Socialista acabou por dar a mão ao Partido como um país profundamente dividido, Junho, com as eleições legislativas, vere-
do Brexit e de Trump. Desta vez, até as em Le Pen, mas 16 milhões abstiveram-se da União Europeia. as “reformas” que permitam à economia Para Le Pen, o sucesso de Macron contra Comunista e à extrema-esquerda)? E en- em que todas as questões suscitam impas- mos que apoio é que poderá ou não ter no
sondagens de opinião acertaram. Terá a ou votaram nulo (37%). A vantagem dos europeístas em França francesa funcionar melhor no euro. os partidos de governo do regime é funda- tão, mesmo não havendo Frexit, haveria ses. Segundo a célebre fórmula de Michel parlamento. Não é impossível que Macron
“normalidade” regressado finalmente das A comparação com a segunda volta das é esta: os anti-europeístas estão dividi- Le Pen aspira a ser a cabeça da oposição mental. Ajudaria a libertar ainda mais votos provavelmente, da parte da França, aquele Crozier, os franceses fazem revoluções, e os seus rivais socialistas e gaullistas, so-
férias de 2016? O optimismo, porém, é um eleições de 2002, em que Jacques Chirac dos entre a extrema-direita de Le Pen e a Macron. Apela aos “patriotas” contra um para os extremos, e poderia pôr termo aos tipo de pressão que os governos ingleses mas nunca fazem reformas. De facto, ne- bretudo se estes conseguirem uma maioria
prato que precisa sempre de ser muito derrota Jean-Marie Le Pen, não justifica a extrema-esquerda de Mélenchon, e é “sistema” rendido à “globalização selva- tradicionais cruzamentos de voto entre os sempre exerceram sobre a UE, em nome nhum outro país europeu, desde o século no parlamento, acabem por bloquear-se
temperado. euforia. Em 2017, Marine Le Pen perdeu, duvidoso que qualquer deles consiga uni- gem”. Mélenchon, pela extrema-esquerda, partidos do regime na segunda volta das do eurocepticismo doméstico. XIX, teve tantos regimes políticos como a uns aos outros.
mas com 34% de votos duplicou o resul- ficar o campo dos inimigos da Europa. Em quis surfar a mesma onda. Mas a direita legislativas, que tem impedido Le Pen de França, nem mesmo Portugal. A França Uma economia estagnada, instituições
Outro país tado do pai; Macron ganhou, mas os seus contrapartida, os europeístas de direita e nacionalista é mais coerente e completa, reflectir nas instituições o voto que conse- O homem doente foi também a única grande democracia frágeis, divisões políticas e sociais das
65% estão longe da quase unanimidade de esquerda talvez possam colaborar. Mas porque rejeita toda a livre circulação, não gue nas urnas. Mas, acima de tudo, Macron ocidental que no pós-guerra passou por um mais graves do continente, e um jihadismo
eurocéptico? obtida por Jacques Chirac (82%). Em 2002, isso não quer dizer que colaborem, nem só a de bens e de capitais, mas também a de salvará Le Pen se quiser ou puder cumprir a da Europa golpe militar (1958) e por uma insurreição que, recrutando na imigração muçulma-
A primeira volta das eleições presidenciais a abstenção e os nulos não passaram de que consigam dar à França, com Macron, pessoas. Le Pen confiou em que a “discipli- promessa que fez de introduzir a represen- A França está para a UE como a General urbana (1968). na, impôs um “estado de sítio” que dura há
não trouxe boas notícias para a Europa da 25%. Chirac, apesar de já ser então um o governo de que precisa um país econo- na republicana”, que mandou toda a gente tação proporcional nas eleições legislativas. Motors costumava estar para a América. O actual regime da V República, instau- dezoito meses: é em França que a Europa
integração. Se somarmos os votos de Ma- velho politiqueiro suspeito de corrupção, micamente estagnado e literalmente em votar em Chirac contra o seu pai em 2002, O actual sistema eleitoral maioritário A integração europeia sempre fez sentido rada em 1958, é uma oligarquia de diplo- se parte ou se conserta. No século XIX,
rine Le Pen, de Jean-Luc Mélenchon e de convenceu 25 milhões de eleitores (61% estado de sítio. já não funcionasse em 2017. Calculou que com duas voltas tem sido a grande balu- como um eixo franco-alemão. Mas o eixo mados (como a IV República), mas com usava-se a expressão “o homem doente
outros candidatos soberanistas e radicais, do eleitorado). Macron, jovem idealista e muitos conservadores não conseguissem arte do regime francês contra o “populis- requer que a França e a Alemanha estejam a disciplina de uma presidência monár- da Europa” para designar um país cujas
47% dos eleitores franceses mostraram- inocente, ficou-se pelos 20 milhões (43% Macron, o grande aliado votar num crente do progressismo urbano, mo”, na medida em que, na segunda volta, em equilíbrio. Em 1990, François Mitter- quica. Esta fórmula gastou-se, depois das dificuldades poderiam pôr em causa os
-se disponíveis para votar em programas do eleitorado). e que muitos esquerdistas se recusassem a permite aos partidos do regime cruzarem rand temeu que a unificação reforçasse a presidências falhadas de Nicolas Sarkozy equilíbrios políticos europeus. Qual é
hostis ao euro e à União Europeia. É ver- O enraizamento social e geográfico do de Le Pen? eleger um beato do euro e da globalização. os seus votos para eliminar os candidatos Alemanha, e impôs o euro como meio de (2007-2012), que não foi reeleito, e de hoje, para a União Europeia, esse “ho-
dade: Le Pen e Mélenchon, o candidato voto antieuropeu é tão claro em França Estas eleições francesas também não foram De facto, Mélenchon recusou-se a apelar ao da Frente Nacional. Em 2012, com 14% dos aprisionar a economia do vizinho. Mas, François Hollande (2012-2017), que nem mem doente”? A Grécia faliu, mas a UE
da extrema-esquerda, representam po- como em Inglaterra: com Macron e a favor exactamente o fim do chamado “popu- voto em Macron, para escândalo de todos votos na primeira volta, a Frente Nacional ao contrário do que Mitterrand previa, tentou a reeleição. Em 1958, foi preciso pode existir sem a Grécia. O Reino Unido
los opostos. Mas ambos recusam a UE, e da Europa, estiveram as classes médias lismo”. Aqueles que festejaram Macron os inocentes que, durante décadas, leva- elegeu 2 deputados (em contrapartida, o a unificação enfraqueceu a Alemanha, o mudar de regime para liquidar a “Argé- vai sair, mas a UE já existiu sem o Reino
quase pelas mesmas razões: porque para das grandes cidades; com Le Pen e contra como o vencedor de Le Pen esqueceram- ram a sério o “antifascismo” da extrema- Partido Radical da Esquerda, com 1,65% que justificou as reformas do chanceler lia francesa” e liberalizar a economia. Unido. A Itália está estagnada, mas nunca
eles, a UE é a face da “globalização” (ou a Europa, as classes trabalhadoras e as -se ainda de outro facto: em pontos es- -esquerda. A segunda volta provou que Le dos votos, elegeu 12). Com um sistema Schroeder, no princípio do século XXI, O presidente De Gaulle, sustentado no teve um papel de liderança na UE. Não, o
“mundialização”, como se diz em França), regiões rurais. É verdade que as sonda- senciais, Macron quer o mesmo que Le Pen tinha razão: muitos conservadores e proporcional, a Frente Nacional poderia para aumentar a competitividade alemã. exército e no plebiscito, protagonizou verdadeiro “homem doente da Europa” é
e porque a “globalização” implica mudar gens de opinião não detectam em França Pen: a destruição dos velhos partidos do esquerdistas não votaram em Macron; mas ter eleito 140. A França, que não fez reformas, começou essas viragens, que o parlamentarismo da outro: a França.
a França, que eles gostariam de manter os níveis de eurocepticismo inglês. Os regime, a ultrapassagem da dicotomia também não votaram nela. A Macron, o sistema proporcional in- a ficar para trás: sem ter sofrido nenhum IV República não conseguira realizar. Com
como imaginam que tenha sido nos anos franceses ainda sentem a UE como coisa direita-esquerda, e, acima de tudo, um É aqui que Macron passa a fazer parte dos teressa para aumentar o caos no parla- ajustamento, tem hoje uma taxa de desem- isso, viabilizou a integração europeia, que Rui Ramos é historiador, colunista
50 ou 60. sua. Mas já não sentem o sistema político sistema eleitoral proporcional que é, des- cálculos de Le Pen. Macron não foi apenas mento, o que permitiria à Presidência da prego igual à portuguesa, e duas vezes a teria sido impossível com uma França e administrador do Observador.
28 OPINIÃO OPINIÃO 29

O homem doente
da Europa

No século XIX, usava-se a expressão


“o homem doente da Europa” para
designar um país cujas dificuldades
poderiam pôr em causa os equilíbrios
políticos europeus. Hoje, esse “homem
doente”, do ponto de vista da União
Rui Ramos Europeia, é a França.
Sem a França, não há Europa. A segunda volta também não foi triun- francês como seu. No Reino Unido, os de sempre, a principal reivindicação da o rival que a derrotou. É, nesta fase, o rival República manipular coligações variáveis da Alemanha ou do Reino Unido. O eixo falida e a tentar manter uma província
Por isso, as duas voltas das eleições presi- fal para a Europa. O regime pró-europeu partidos tradicionais mantiveram a ini- Frente Nacional. que a pode salvar. Macron propõe-se, com entre muitos grupos políticos. Para Le Pen, franco-alemão deixou de ser uma relação em África. Quase sessenta anos depois,
denciais francesas, a 23 de Abril e a 7 de francês tinha tudo a seu favor. Enfrentava ciativa política; em França, não. O Brexit Macron foi o cartaz de ocasião da elite tra- o seu novo partido En Marche, destruir os seria a oportunidade de dispor de um gran- de iguais. Paris já não contrabalança o a V República deixou de ser capaz desse
Maio, inspiraram muita ansiedade, para no uma candidata diabolizada todos os dias é, apesar de tudo, conduzido pelo Partido dicional de diplomados das “grandes esco- partidos estabelecidos. Não é impossível. de grupo parlamentar, o que aumentaria poder de Berlim. tipo de grandes decisões.
fim acabarem num grande alívio, quando em todos os ecrãs e primeiras páginas, e Conservador, não pelo UKIP, que desa- las”. Não é de direita nem de esquerda. Acha Os partidos franceses nunca tiveram a con- radicalmente a importância da Frente Há anos que os governos franceses falam A França é um dos países europeus onde
Emmanuel Macron, um candidato europe- contava com um jovem campeão sem o pareceu nas eleições locais de 4 de Maio que tudo tem um lado positivo e negativo: o sistência e a solidez dos partidos ingleses Nacional. Nessas circunstâncias, quanto de reformas do mercado de trabalho ou da os governos avançaram para a integração
ísta, venceu Marine Le Pen, que prometera cartão dos velhos partidos e disposto a deste ano. Em França, porém, os grandes dirigismo estatal e o mercado livre, o protec- ou alemães: são quase que organizações tempo é que uma direita enfraquecida Segurança Social, mas as grandes reformas monetária, sem nunca serem capazes de
um referendo para a França sair do euro. dizer o que fosse para agradar à direita e à partidos do regime ficaram ambos pela cionismo e a globalização... Macron é como pessoais, que os políticos reinventam regu- resistiria à tentação de fazer uma maioria dificilmente conseguem apoio parlamentar fazer as reformas necessárias para a eco-
Não vai haver “Frexit”. A União Europeia esquerda. Mesmo assim, não foi poupado à primeira vez de fora de uma segunda volta se a França tivesse chegado finalmente, com larmente. Manuel Valls, o antigo primeiro- de governo com a Frente Nacional (em e são quase sempre contestadas na rua. A nomia funcionar com uma moeda forte.
está salva. Para muitos, é o fim de um ciclo maior abstenção desde 1969: 20 milhões de das presidenciais. Ora, os Republicanos vinte anos de atraso, à década de 1990 de -ministro de François Hollande, já declarou Portugal, demorou 40 anos, mas o Partido França continua a imaginar-se a si própria Macron promete essas reformas. Mas só em
mau de “populismo”, depois das surpresas eleitores votaram em Macron e 10 milhões (Gaullistas) e os Socialistas são os partidos Bill Clinton e de Tony Blair. Promete fazer o Partido Socialista “morto”. Socialista acabou por dar a mão ao Partido como um país profundamente dividido, Junho, com as eleições legislativas, vere-
do Brexit e de Trump. Desta vez, até as em Le Pen, mas 16 milhões abstiveram-se da União Europeia. as “reformas” que permitam à economia Para Le Pen, o sucesso de Macron contra Comunista e à extrema-esquerda)? E en- em que todas as questões suscitam impas- mos que apoio é que poderá ou não ter no
sondagens de opinião acertaram. Terá a ou votaram nulo (37%). A vantagem dos europeístas em França francesa funcionar melhor no euro. os partidos de governo do regime é funda- tão, mesmo não havendo Frexit, haveria ses. Segundo a célebre fórmula de Michel parlamento. Não é impossível que Macron
“normalidade” regressado finalmente das A comparação com a segunda volta das é esta: os anti-europeístas estão dividi- Le Pen aspira a ser a cabeça da oposição mental. Ajudaria a libertar ainda mais votos provavelmente, da parte da França, aquele Crozier, os franceses fazem revoluções, e os seus rivais socialistas e gaullistas, so-
férias de 2016? O optimismo, porém, é um eleições de 2002, em que Jacques Chirac dos entre a extrema-direita de Le Pen e a Macron. Apela aos “patriotas” contra um para os extremos, e poderia pôr termo aos tipo de pressão que os governos ingleses mas nunca fazem reformas. De facto, ne- bretudo se estes conseguirem uma maioria
prato que precisa sempre de ser muito derrota Jean-Marie Le Pen, não justifica a extrema-esquerda de Mélenchon, e é “sistema” rendido à “globalização selva- tradicionais cruzamentos de voto entre os sempre exerceram sobre a UE, em nome nhum outro país europeu, desde o século no parlamento, acabem por bloquear-se
temperado. euforia. Em 2017, Marine Le Pen perdeu, duvidoso que qualquer deles consiga uni- gem”. Mélenchon, pela extrema-esquerda, partidos do regime na segunda volta das do eurocepticismo doméstico. XIX, teve tantos regimes políticos como a uns aos outros.
mas com 34% de votos duplicou o resul- ficar o campo dos inimigos da Europa. Em quis surfar a mesma onda. Mas a direita legislativas, que tem impedido Le Pen de França, nem mesmo Portugal. A França Uma economia estagnada, instituições
Outro país tado do pai; Macron ganhou, mas os seus contrapartida, os europeístas de direita e nacionalista é mais coerente e completa, reflectir nas instituições o voto que conse- O homem doente foi também a única grande democracia frágeis, divisões políticas e sociais das
65% estão longe da quase unanimidade de esquerda talvez possam colaborar. Mas porque rejeita toda a livre circulação, não gue nas urnas. Mas, acima de tudo, Macron ocidental que no pós-guerra passou por um mais graves do continente, e um jihadismo
eurocéptico? obtida por Jacques Chirac (82%). Em 2002, isso não quer dizer que colaborem, nem só a de bens e de capitais, mas também a de salvará Le Pen se quiser ou puder cumprir a da Europa golpe militar (1958) e por uma insurreição que, recrutando na imigração muçulma-
A primeira volta das eleições presidenciais a abstenção e os nulos não passaram de que consigam dar à França, com Macron, pessoas. Le Pen confiou em que a “discipli- promessa que fez de introduzir a represen- A França está para a UE como a General urbana (1968). na, impôs um “estado de sítio” que dura há
não trouxe boas notícias para a Europa da 25%. Chirac, apesar de já ser então um o governo de que precisa um país econo- na republicana”, que mandou toda a gente tação proporcional nas eleições legislativas. Motors costumava estar para a América. O actual regime da V República, instau- dezoito meses: é em França que a Europa
integração. Se somarmos os votos de Ma- velho politiqueiro suspeito de corrupção, micamente estagnado e literalmente em votar em Chirac contra o seu pai em 2002, O actual sistema eleitoral maioritário A integração europeia sempre fez sentido rada em 1958, é uma oligarquia de diplo- se parte ou se conserta. No século XIX,
rine Le Pen, de Jean-Luc Mélenchon e de convenceu 25 milhões de eleitores (61% estado de sítio. já não funcionasse em 2017. Calculou que com duas voltas tem sido a grande balu- como um eixo franco-alemão. Mas o eixo mados (como a IV República), mas com usava-se a expressão “o homem doente
outros candidatos soberanistas e radicais, do eleitorado). Macron, jovem idealista e muitos conservadores não conseguissem arte do regime francês contra o “populis- requer que a França e a Alemanha estejam a disciplina de uma presidência monár- da Europa” para designar um país cujas
47% dos eleitores franceses mostraram- inocente, ficou-se pelos 20 milhões (43% Macron, o grande aliado votar num crente do progressismo urbano, mo”, na medida em que, na segunda volta, em equilíbrio. Em 1990, François Mitter- quica. Esta fórmula gastou-se, depois das dificuldades poderiam pôr em causa os
-se disponíveis para votar em programas do eleitorado). e que muitos esquerdistas se recusassem a permite aos partidos do regime cruzarem rand temeu que a unificação reforçasse a presidências falhadas de Nicolas Sarkozy equilíbrios políticos europeus. Qual é
hostis ao euro e à União Europeia. É ver- O enraizamento social e geográfico do de Le Pen? eleger um beato do euro e da globalização. os seus votos para eliminar os candidatos Alemanha, e impôs o euro como meio de (2007-2012), que não foi reeleito, e de hoje, para a União Europeia, esse “ho-
dade: Le Pen e Mélenchon, o candidato voto antieuropeu é tão claro em França Estas eleições francesas também não foram De facto, Mélenchon recusou-se a apelar ao da Frente Nacional. Em 2012, com 14% dos aprisionar a economia do vizinho. Mas, François Hollande (2012-2017), que nem mem doente”? A Grécia faliu, mas a UE
da extrema-esquerda, representam po- como em Inglaterra: com Macron e a favor exactamente o fim do chamado “popu- voto em Macron, para escândalo de todos votos na primeira volta, a Frente Nacional ao contrário do que Mitterrand previa, tentou a reeleição. Em 1958, foi preciso pode existir sem a Grécia. O Reino Unido
los opostos. Mas ambos recusam a UE, e da Europa, estiveram as classes médias lismo”. Aqueles que festejaram Macron os inocentes que, durante décadas, leva- elegeu 2 deputados (em contrapartida, o a unificação enfraqueceu a Alemanha, o mudar de regime para liquidar a “Argé- vai sair, mas a UE já existiu sem o Reino
quase pelas mesmas razões: porque para das grandes cidades; com Le Pen e contra como o vencedor de Le Pen esqueceram- ram a sério o “antifascismo” da extrema- Partido Radical da Esquerda, com 1,65% que justificou as reformas do chanceler lia francesa” e liberalizar a economia. Unido. A Itália está estagnada, mas nunca
eles, a UE é a face da “globalização” (ou a Europa, as classes trabalhadoras e as -se ainda de outro facto: em pontos es- -esquerda. A segunda volta provou que Le dos votos, elegeu 12). Com um sistema Schroeder, no princípio do século XXI, O presidente De Gaulle, sustentado no teve um papel de liderança na UE. Não, o
“mundialização”, como se diz em França), regiões rurais. É verdade que as sonda- senciais, Macron quer o mesmo que Le Pen tinha razão: muitos conservadores e proporcional, a Frente Nacional poderia para aumentar a competitividade alemã. exército e no plebiscito, protagonizou verdadeiro “homem doente da Europa” é
e porque a “globalização” implica mudar gens de opinião não detectam em França Pen: a destruição dos velhos partidos do esquerdistas não votaram em Macron; mas ter eleito 140. A França, que não fez reformas, começou essas viragens, que o parlamentarismo da outro: a França.
a França, que eles gostariam de manter os níveis de eurocepticismo inglês. Os regime, a ultrapassagem da dicotomia também não votaram nela. A Macron, o sistema proporcional in- a ficar para trás: sem ter sofrido nenhum IV República não conseguira realizar. Com
como imaginam que tenha sido nos anos franceses ainda sentem a UE como coisa direita-esquerda, e, acima de tudo, um É aqui que Macron passa a fazer parte dos teressa para aumentar o caos no parla- ajustamento, tem hoje uma taxa de desem- isso, viabilizou a integração europeia, que Rui Ramos é historiador, colunista
50 ou 60. sua. Mas já não sentem o sistema político sistema eleitoral proporcional que é, des- cálculos de Le Pen. Macron não foi apenas mento, o que permitiria à Presidência da prego igual à portuguesa, e duas vezes a teria sido impossível com uma França e administrador do Observador.
30 FEATURE 31

As lutas, as vitórias,
as derrotas,
os apetites, os
gostos, os gozos,
as amizades e as
confidências de um
dos maiores políticos
portugueses do
século XX.
Mário Soares,
o lutador
Maria João Avillez
GETTY IMAGES / RAPHAEL GAILLARDE
30 FEATURE 31

As lutas, as vitórias,
as derrotas,
os apetites, os
gostos, os gozos,
as amizades e as
confidências de um
dos maiores políticos
portugueses do
século XX.
Mário Soares,
o lutador
Maria João Avillez
GETTY IMAGES / RAPHAEL GAILLARDE
32 MÁRIO SOARES

GETTY IMAGES / JEAN-CLAUDE FRANCOLON

● Mário Soares passeia pelas ruas de Lisboa, depois do 25 de Abril. A vocação para a liberdade vinha de
longe e contaminou toda a sua vida, primeiro na luta contra a ditadura, depois no combate anticomunista.

1. Liberdade, preciso, nos idos de 1976, cerzir um Por- tuição – sorte minha – de perceber que, dos sindicatos, da rua, da “legitimidade” do
tugal dividido, azedo e arruinado. Fechar num certo sentido, talvez ficasse, digamos, 25 de Abril e príncipe numa boa parte dos
Democracia, Europa as feridas. Mário Soares (eu vi-o fazer isso) mais bem servido com uma jornalista “ofi- media; o segundo, Sá Carneiro, governava,
Mário Soares, quando foi grande, foi-o por reconciliou, juntou, reuniu. Cerziu. Voltou cialmente” de direita, o que lhe alargaria mas sobretudo assinara um “antes” e um
ter sido maior do que fronteiras, grupos a fazê-lo após ganhar as eleições presiden- automaticamente o espectro de leitores e “depois” na História ainda breve da nossa
ou barricadas, intuindo melhor do que ciais em 1986, ao aperceber-se de que tinha curiosos, do que com alguém saído de entre democracia, ao tornar indisfarçável, atra-
ninguém onde era o seu lugar e qual a diante de si um país hostilmente dividido os “seus”.) Mas hoje quero especialmente vés do voto, que o centro-direita e a direita
tarefa nacional que lhe competia cumprir. ao meio. recordar que foi sobretudo ao preparar-me valiam quase metade do país.
E não, não foi só no combate anticomunista Das duas vezes tentou sentar Portugal para o que viria a ser o segundo volume A Soares restava uma magra e dura fa-
de 1975, o que, não sendo pouco e sendo à mesma mesa, deixando de fora apenas (Democracia) desta trilogia que me levou tia, mas falta sublinhar o resto do cerco
definitivo, não esgota nem resume aquilo quem voluntária e intencionalmente se re- algum suor a fazer, que voltei a dar-me para relembrar, à distância de décadas,
de que era feito: a vocação da liberdade, cusava a tomar nela assento, preferindo-lhe inteiramente conta da sua fibra de luta- quão magra e dura de mastigar era a fa-
que vinha de longe e tudo contaminou pela heróis duvidosos e líderes indecentes. Ele dor. Singular característica, esta, por nela tia: através do Conselho da Revolução, os
vida fora; a envergadura da sua coragem; o quis ser também, para além do seu constru- ele juntar, numa só passada, a coragem, militares continuavam omnipresentes na
rasgo de alguns gestos políticos, o tamanho tor, o reconciliador da democracia: livre, a intuição, a persistência, a capacidade cena e influentes nos bastidores, e Ramalho
da sua intuição política. pluripartidária, civilista, ocidental. Plena. de luta, a capacidade de levar a água ao Eanes, que detestava o líder do PS e que
Mas há mais neste homem, há duas ou E para isso, e ao serviço disso, fez política, seu moinho. Afinal, o que fez toda a vida, o líder do PS abominava, fora já reeleito
três ideias, claras e simples, que foram avançando e recuando, deixando-se ver ao até aos seus gozosos oitenta anos. (Daí em para Belém, contra a vontade de Soares. No
sempre as mesmas mas tão essenciais ao mundo, batendo à porta da Europa e pe- diante, lembro-me menos bem do que se decurso desse para si tão malfadado ano de
seu propósito de democrata-lutador-pela- dindo para entrar; agradando, hostilizando seguiu). 1980, Mário Soares, sozinho e enfrentando
-democracia que chegaram para lhe confe- ou dividindo; perdendo ou ganhando – mas Voltando a esse segundo volume, recor- o seu próprio partido, recusara-se a apoiar
rir um destino: a liberdade, a democracia, nunca se menorizando por perder, nem se dávamos ambos a década de oitenta, ele a (muito acarinhada) recandidatura pre-
a Europa, a irrefutável certeza da nossa vangloriando excessivamente por ganhar: deixando fluir uma memória por vezes sidencial do general. Um gesto de tão alto
pertença ao mundo ocidental e do com- era a regra do jogo. Ia andando, parece que preguiçosa, eu, de gravador em punho, de- risco quanto de solitária coragem política.
promisso dessa pertença. Do que podíamos só levado pelo instinto, mas reflectindo bruçada sobre a sua cadeira (em Belém ou Dizer cerco é dizer pouco.
ser e representar. porventura muito mais do que se pensa – na sua casa do Campo Grande), e era sem-
Foi isto, mas “isto” foi o essencial. Sem- ou daquilo que ele dava a ver. Reflectindo pre o lutador que eu ouvia. O que nunca 3. O maior dos
pre o percebi, sempre o escrevi. O resto, sobre si, a vida, as coisas. A morte, o tem- desistia e sempre resistia. Sim, nessa época
onde também entram erros e omissões, po. Por vezes tomando notas, rabiscando que agora recordo concretamente, o que espectáculos políticos
conta menos. (E há África, que, para mui- ideias, conjecturas, pensamentos. eu encontrava sempre estampado sobre o Lembro-me de que me calhou seguir
tos, como eu, conta muito; para outros tempo era o lutador, desta feita apanhado profissionalmente no Expresso o gene-
quase nada; e para ele julgo que nada.) 2. Nunca desistiu, no cerco que a política e as suas circuns- ral Soares Carneiro, candidato da AD e,
Mas houve ainda algo determinante e tâncias então lhe moviam: as oposições, à vindo a saber isso, o dr. Soares dizia-me
que não esqueço: depois do tumulto e das sempre resistiu esquerda e à direita, e nem Álvaro Cunhal, por vezes que “passasse por lá”, para lhe
feridas do processo revolucionário em Fiz três livros com ele, o que sempre tomei nem Francisco Sá Carneiro, eram pêra contar as minhas impressões da campanha
curso, após as Fontes Luminosas e outras como um privilégio e me deixou gratas doce. O primeiro era o proprietário único da “direita”. E eu passava. O “lá” era a sua
empreitadas e dolorosos sobressaltos, era recordações. (Soares teve, julgo eu, a in- de um Partido Comunista então forte, dono casa onde estava a bom recato, intencio-
32 MÁRIO SOARES

GETTY IMAGES / JEAN-CLAUDE FRANCOLON

● Mário Soares passeia pelas ruas de Lisboa, depois do 25 de Abril. A vocação para a liberdade vinha de
longe e contaminou toda a sua vida, primeiro na luta contra a ditadura, depois no combate anticomunista.

1. Liberdade, preciso, nos idos de 1976, cerzir um Por- tuição – sorte minha – de perceber que, dos sindicatos, da rua, da “legitimidade” do
tugal dividido, azedo e arruinado. Fechar num certo sentido, talvez ficasse, digamos, 25 de Abril e príncipe numa boa parte dos
Democracia, Europa as feridas. Mário Soares (eu vi-o fazer isso) mais bem servido com uma jornalista “ofi- media; o segundo, Sá Carneiro, governava,
Mário Soares, quando foi grande, foi-o por reconciliou, juntou, reuniu. Cerziu. Voltou cialmente” de direita, o que lhe alargaria mas sobretudo assinara um “antes” e um
ter sido maior do que fronteiras, grupos a fazê-lo após ganhar as eleições presiden- automaticamente o espectro de leitores e “depois” na História ainda breve da nossa
ou barricadas, intuindo melhor do que ciais em 1986, ao aperceber-se de que tinha curiosos, do que com alguém saído de entre democracia, ao tornar indisfarçável, atra-
ninguém onde era o seu lugar e qual a diante de si um país hostilmente dividido os “seus”.) Mas hoje quero especialmente vés do voto, que o centro-direita e a direita
tarefa nacional que lhe competia cumprir. ao meio. recordar que foi sobretudo ao preparar-me valiam quase metade do país.
E não, não foi só no combate anticomunista Das duas vezes tentou sentar Portugal para o que viria a ser o segundo volume A Soares restava uma magra e dura fa-
de 1975, o que, não sendo pouco e sendo à mesma mesa, deixando de fora apenas (Democracia) desta trilogia que me levou tia, mas falta sublinhar o resto do cerco
definitivo, não esgota nem resume aquilo quem voluntária e intencionalmente se re- algum suor a fazer, que voltei a dar-me para relembrar, à distância de décadas,
de que era feito: a vocação da liberdade, cusava a tomar nela assento, preferindo-lhe inteiramente conta da sua fibra de luta- quão magra e dura de mastigar era a fa-
que vinha de longe e tudo contaminou pela heróis duvidosos e líderes indecentes. Ele dor. Singular característica, esta, por nela tia: através do Conselho da Revolução, os
vida fora; a envergadura da sua coragem; o quis ser também, para além do seu constru- ele juntar, numa só passada, a coragem, militares continuavam omnipresentes na
rasgo de alguns gestos políticos, o tamanho tor, o reconciliador da democracia: livre, a intuição, a persistência, a capacidade cena e influentes nos bastidores, e Ramalho
da sua intuição política. pluripartidária, civilista, ocidental. Plena. de luta, a capacidade de levar a água ao Eanes, que detestava o líder do PS e que
Mas há mais neste homem, há duas ou E para isso, e ao serviço disso, fez política, seu moinho. Afinal, o que fez toda a vida, o líder do PS abominava, fora já reeleito
três ideias, claras e simples, que foram avançando e recuando, deixando-se ver ao até aos seus gozosos oitenta anos. (Daí em para Belém, contra a vontade de Soares. No
sempre as mesmas mas tão essenciais ao mundo, batendo à porta da Europa e pe- diante, lembro-me menos bem do que se decurso desse para si tão malfadado ano de
seu propósito de democrata-lutador-pela- dindo para entrar; agradando, hostilizando seguiu). 1980, Mário Soares, sozinho e enfrentando
-democracia que chegaram para lhe confe- ou dividindo; perdendo ou ganhando – mas Voltando a esse segundo volume, recor- o seu próprio partido, recusara-se a apoiar
rir um destino: a liberdade, a democracia, nunca se menorizando por perder, nem se dávamos ambos a década de oitenta, ele a (muito acarinhada) recandidatura pre-
a Europa, a irrefutável certeza da nossa vangloriando excessivamente por ganhar: deixando fluir uma memória por vezes sidencial do general. Um gesto de tão alto
pertença ao mundo ocidental e do com- era a regra do jogo. Ia andando, parece que preguiçosa, eu, de gravador em punho, de- risco quanto de solitária coragem política.
promisso dessa pertença. Do que podíamos só levado pelo instinto, mas reflectindo bruçada sobre a sua cadeira (em Belém ou Dizer cerco é dizer pouco.
ser e representar. porventura muito mais do que se pensa – na sua casa do Campo Grande), e era sem-
Foi isto, mas “isto” foi o essencial. Sem- ou daquilo que ele dava a ver. Reflectindo pre o lutador que eu ouvia. O que nunca 3. O maior dos
pre o percebi, sempre o escrevi. O resto, sobre si, a vida, as coisas. A morte, o tem- desistia e sempre resistia. Sim, nessa época
onde também entram erros e omissões, po. Por vezes tomando notas, rabiscando que agora recordo concretamente, o que espectáculos políticos
conta menos. (E há África, que, para mui- ideias, conjecturas, pensamentos. eu encontrava sempre estampado sobre o Lembro-me de que me calhou seguir
tos, como eu, conta muito; para outros tempo era o lutador, desta feita apanhado profissionalmente no Expresso o gene-
quase nada; e para ele julgo que nada.) 2. Nunca desistiu, no cerco que a política e as suas circuns- ral Soares Carneiro, candidato da AD e,
Mas houve ainda algo determinante e tâncias então lhe moviam: as oposições, à vindo a saber isso, o dr. Soares dizia-me
que não esqueço: depois do tumulto e das sempre resistiu esquerda e à direita, e nem Álvaro Cunhal, por vezes que “passasse por lá”, para lhe
feridas do processo revolucionário em Fiz três livros com ele, o que sempre tomei nem Francisco Sá Carneiro, eram pêra contar as minhas impressões da campanha
curso, após as Fontes Luminosas e outras como um privilégio e me deixou gratas doce. O primeiro era o proprietário único da “direita”. E eu passava. O “lá” era a sua
empreitadas e dolorosos sobressaltos, era recordações. (Soares teve, julgo eu, a in- de um Partido Comunista então forte, dono casa onde estava a bom recato, intencio-
34 MÁRIO SOARES

nalmente afastado dos palcos de ambas


as candidaturas. Subia então ao 2.º andar
do prédio da Rua João Soares, a Olinda
abria-me a porta, eu sentava-me e desfiava
o que vira e ouvira nessa semana eleitoral.
Ouvidor interessado et pour cause, não via
élan nem encontrava fulgor político em
Soares Carneiro para derrotar os podero-
sos apoios que ancoravam Eanes no país
e na intenção de votos dos portugueses.
Via bem. Depois, Sá Carneiro morreu (e
foi também a casa do dr. Soares que, após
ter sabido, antes da televisão, dessa notícia
tão brutal, eu obviamente fui nessa noite),
a AD esmorecia, o PS voltava devagarinho
à tona, o cerco ia-se esbatendo.
Seguiram-se mais episódios felizes ou
menos felizes com um governo pelo meio
(Bloco Central) até à densa e tensa campa-
nha eleitoral presidencial de 1986, e é aqui
que me interessa chegar, pois é de novo de
um cerco à roda do lutador que se trata:
falar de Freitas do Amaral, de um lado, com
meios avultados e metade do país atrás de si
e em festa; de Zenha, capturado pelo PC e
por grande parte do PS na pele do “irmão-
-traidor”; ou de Pintasilgo, que confundia
e dividia, o que é senão um cerco político?
Um dia, estava a corrida presidencial a
dar os seus primeiros passos e estava eu com
o dr. Soares em Braga em pré-campanha,
quando, numa quieta manhã de sol que se
diria impossível de subverter, o Expres- LUSA / MANUEL MOURA

so estampa uma bomba na sua primeira


página: Soares partia para a empreitada ● Maria Barroso e Mário Soares em 1986, após a sua eleição como Presidente da
eleitoral com... 8% das intenções de voto (ou
seria ainda menos?). A entourage gelou, ele República. Casaram-se em 1949, quando Soares se encontrava preso no Aljube.
não. Aparentando uma segurança que não
sentia, continuou olimpicamente a comer
castanhas descendo a avenida bracarense,
e fez simplesmente o que sempre fizera a ele (Presidente da República) caía mal. da finança. Reagiu agastado, discordando. impacientava-se com a necessidade de al-
porque era o que sabia fazer: não desistiu. A veleidade apagou-se ali mesmo. Insisti na pergunta com base em informa- guns rituais inerentes às suas funções, des-
Lutou, acreditou, enganou-os a todos. Ou quando, em 1987, contra o desejo ções recolhidas on the record na própria prezava excessivamente o protocolo e eu,
Proporcionando ao país e aos portugueses dos “seus”, convocou eleições em vez de Confederação da Indústria Portuguesa. Um institucional até à medula, afligia-me: “Dr.
um dos melhores (o melhor?) espectáculos acreditar na bondade política da solução segundo depois, Soares, que me dissera Soares, não quis seguir o ritual do protocolo
políticos da história desta democracia. Com governativa que lhe vendia Vítor Cons- meia hora antes “ter pressa”, esqueceu- ao lado da rainha esta tarde na cerimó-
felicidade e brilho e com Maria de Jesus tâncio, então secretário-geral do PS, que, -se dela, despachou-me porta fora e ligou nia?”, perguntei-lhe uma vez, no Castelo
Barroso sempre ao seu lado – junto de si de braço dado com o PRD, se propunha (directamente) a Pedro Ferraz da Costa, de Windsor, na Grã-Bretanha, no final da
desde anos infindos, companheira e insubs- substituir o governo do PSD, de Aníbal então líder da CIP. Demorei tempo a agar- evocação comemorativa dos 600 anos do
tituível presença feminina e política – abriu Cavaco Silva, derrubado nesse ano no he- rar o casaco, vesti-lo, sair dali, mas sempre Tratado de Windsor, que eu acompanhava
o Palácio de Belém a uma outra história, miciclo de São Bento. O gesto presidencial fui ouvindo o que, entretanto, adivinhara: profissionalmente. “Eu? Mas porque havia
outra época, outros usos. É certo que, para viria a provocar a entrada em cena, meses apercebendo-se do inconveniente político de me ajoelhar, se nunca o fiz? Por ela ser
atingir a meta presidencial, não hesitara depois, de um Cavaco Silva ampliado em que seria governar com a hostilidade mani- a rainha de Inglaterra?” Engoli em seco.
em apelidar de “fascista” (para dizer o força e votos, um Cavaco em ponto grande, festa das confederações patronais, Soares Era Soares no seu melhor, isto é, igual a
mínimo) o seu adversário, Diogo Freitas mas o que quero referir aqui hoje são duas apressara-se a tranquilizar Ferraz da Costa si mesmo. Nunca será demais sublinhá-lo, e
do Amaral, um ex-muito-conveniente- coisas, não despiciendas. Primeiro, Soares sobre as suas verdadeiras intenções. Não hoje ainda menos: Mário Soares, no poder
-parceiro-de-coligação governamental não tinha, nunca teve medo. De cortar, de ouvi mais (só se me escondesse atrás das ou fora dele, de fato de banho ou dentro
nos idos de 1977, aquando do governo PS/ inverter, de escolher, de decidir, de gostar, cortinas, mas a Olinda certamente chocar- de um coche enfeitado, num palácio, numa
CDS. No dia seguinte às eleições, Mário de preferir. Segundo, nunca lhe bastaram -se-ia), apanhei porém o essencial. Mas tasca ou em cima de um elefante, ao lado de
Soares mandou flores à esposa do seu rival, simpatias e bonomias, facilidades e abraços até hoje nunca troquei uma só palavra Mitterrand ou engraxando os sapatos, era
e pronto: o que fora, lá ia. populares. Nem ele se consentiria que os com o então presidente da CIP sobre tal o mesmo. Foi sempre o mesmo. Chapeau.
A vida continuava. seus cargos, fossem quais fossem, se esgo- telefonema. Por falar em Mitterrand, son ami, uma
Ficou dois mandatos, eleito no primeiro tassem nisso, nem a política que entendia vez em Paris, encontrando-me a ler um
à tangente e cinco anos depois reeleito com fazer se compadecia com receita tão magra. 5. Sempre igual jornal na esplanada envidraçada de um
folga e pouca graça: Basílio Horta não tinha Ser “popular” ou “amado” não era o seu café da Rive Gauche, vejo subitamente
estatuto de challenger, faltou tensão e in- objectivo exclusivo. a si mesmo Mário Soares, passada lenta e ar feliz, a
teresse. Foram mandatos desiguais, restam Quem não se lembra de escolhas, riscos, O dr. Soares não era pretensioso. Era teimo- passear na rua, com dois infelizes atrás
boas e más memórias, mas não será este prioridades, decisões? Algumas fortes, du- so, podia ser caprichoso, mas só se levava dele, a tomarem conta da ocorrência. Sabia
correr da pena – a que me entrego com o ras, difíceis – contra o ar do tempo, contra assim-assim a sério. Não tinha grandes que ele estava em França (eu ia entrevistar
coração – o melhor momento para mais o seu partido, contra o “socialismo”, con- pretensões, nem se reivindicava de grandes Françoise Giroud), mas nunca me passaria
fundamentados e sérios balanços. tra o que estava. E bem mais pesadas de intelectualidades. Gostava da nossa Histó- pela cabeça que andasse à solta e sozinho
consequências do que a futilidade oca do ria e de alguns dos nossos reis, apreciava a flanar pela sua Paris. Dei um salto até ao
“ir” ou do “ser visto”. Por isso, qualquer algumas artes, coleccionava pintura, tinha passeio, mas já o criado vinha alvoraça-
4. Presidente-Rei comparação com o actual locatário de imensos devotos no universo cultural. E do atrás de mim: “Vous êtes le President
O certo é que o país gostava daquele presi- Belém, como costumo ouvir, a propósito gostava de livros, e sobretudo de ter livros, Soares, n’est-ce pas?” Soares entrou, não
dente-rei e que Soares podia ser irresistível da sua “informalidade” e “proximidade” mesmo que os não lesse a todos. Pude ob- quis café, quis conversa. “Mas o que é que
de bonomia e simpatia. Sucede que tam- que seriam “parecidas” com as de Soares, servá-lo, em dezenas e dezenas de livrarias, eu estava ali a fazer?” (subentendido: sim,
bém sabia – por achar que devia – ser duro me parecem pura simplesmente um quase em Portugal e no estrangeiro, a aspirar o que fazia eu ali se não estava a acompanhar
e cortante com uns e com outros, pares e insulto à memória de Mário Soares. cheiro dos volumes acabados de chegar a viagem dele a França?) Sentou-se, deu
adversários. Como ocorreu um dia quando, Mas ainda a propósito de “prioridades” a escaparates e estantes, devorando-os dois dedos de conversa e logo saiu com os
a pretexto de uma cerimónia oficial nos – e do sentido agudo e arguto com que, com os olhos, folheando-os com gula. E infelizes atrás, mas quem não tinha pressa
Açores, se meteu num avião e foi à região conforme as circunstâncias, ele as ia or- comprando-os: às grosas, às centenas. de aviar o seu espanto eram os emprega-
acabar com a “guerra das bandeiras”, expli- ganizando politicamente – recordo-me Era também um bocadinho (ou um bo- dos do Deux Magots: “Un President qui se
cando a Mota Amaral, à época presidente de uma manhã estar a entrevistá-lo na cado?) vaidoso, claro, como todos os gran- ballade comme ça, tout seul...”. Era isso:
do Governo Regional, que a fantasia pouco sua casa lisboeta a pretexto de recentes des chefes, mas por aí ficava. E, graças a não faziam ideia de quem era um homem
patriótica da bandeira local estar hasteada medidas do seu governo (Bloco Central) Deus, não era nem pomposo, nem grave, chamado Mário Soares, só conheciam o
mais alto do que a nacional era algo que que desagradavam aos patrões e ao mundo nem solene, às vezes até o era de menos, Presidente e não sabiam que era o mesmo.
34 MÁRIO SOARES

nalmente afastado dos palcos de ambas


as candidaturas. Subia então ao 2.º andar
do prédio da Rua João Soares, a Olinda
abria-me a porta, eu sentava-me e desfiava
o que vira e ouvira nessa semana eleitoral.
Ouvidor interessado et pour cause, não via
élan nem encontrava fulgor político em
Soares Carneiro para derrotar os podero-
sos apoios que ancoravam Eanes no país
e na intenção de votos dos portugueses.
Via bem. Depois, Sá Carneiro morreu (e
foi também a casa do dr. Soares que, após
ter sabido, antes da televisão, dessa notícia
tão brutal, eu obviamente fui nessa noite),
a AD esmorecia, o PS voltava devagarinho
à tona, o cerco ia-se esbatendo.
Seguiram-se mais episódios felizes ou
menos felizes com um governo pelo meio
(Bloco Central) até à densa e tensa campa-
nha eleitoral presidencial de 1986, e é aqui
que me interessa chegar, pois é de novo de
um cerco à roda do lutador que se trata:
falar de Freitas do Amaral, de um lado, com
meios avultados e metade do país atrás de si
e em festa; de Zenha, capturado pelo PC e
por grande parte do PS na pele do “irmão-
-traidor”; ou de Pintasilgo, que confundia
e dividia, o que é senão um cerco político?
Um dia, estava a corrida presidencial a
dar os seus primeiros passos e estava eu com
o dr. Soares em Braga em pré-campanha,
quando, numa quieta manhã de sol que se
diria impossível de subverter, o Expres- LUSA / MANUEL MOURA

so estampa uma bomba na sua primeira


página: Soares partia para a empreitada ● Maria Barroso e Mário Soares em 1986, após a sua eleição como Presidente da
eleitoral com... 8% das intenções de voto (ou
seria ainda menos?). A entourage gelou, ele República. Casaram-se em 1949, quando Soares se encontrava preso no Aljube.
não. Aparentando uma segurança que não
sentia, continuou olimpicamente a comer
castanhas descendo a avenida bracarense,
e fez simplesmente o que sempre fizera a ele (Presidente da República) caía mal. da finança. Reagiu agastado, discordando. impacientava-se com a necessidade de al-
porque era o que sabia fazer: não desistiu. A veleidade apagou-se ali mesmo. Insisti na pergunta com base em informa- guns rituais inerentes às suas funções, des-
Lutou, acreditou, enganou-os a todos. Ou quando, em 1987, contra o desejo ções recolhidas on the record na própria prezava excessivamente o protocolo e eu,
Proporcionando ao país e aos portugueses dos “seus”, convocou eleições em vez de Confederação da Indústria Portuguesa. Um institucional até à medula, afligia-me: “Dr.
um dos melhores (o melhor?) espectáculos acreditar na bondade política da solução segundo depois, Soares, que me dissera Soares, não quis seguir o ritual do protocolo
políticos da história desta democracia. Com governativa que lhe vendia Vítor Cons- meia hora antes “ter pressa”, esqueceu- ao lado da rainha esta tarde na cerimó-
felicidade e brilho e com Maria de Jesus tâncio, então secretário-geral do PS, que, -se dela, despachou-me porta fora e ligou nia?”, perguntei-lhe uma vez, no Castelo
Barroso sempre ao seu lado – junto de si de braço dado com o PRD, se propunha (directamente) a Pedro Ferraz da Costa, de Windsor, na Grã-Bretanha, no final da
desde anos infindos, companheira e insubs- substituir o governo do PSD, de Aníbal então líder da CIP. Demorei tempo a agar- evocação comemorativa dos 600 anos do
tituível presença feminina e política – abriu Cavaco Silva, derrubado nesse ano no he- rar o casaco, vesti-lo, sair dali, mas sempre Tratado de Windsor, que eu acompanhava
o Palácio de Belém a uma outra história, miciclo de São Bento. O gesto presidencial fui ouvindo o que, entretanto, adivinhara: profissionalmente. “Eu? Mas porque havia
outra época, outros usos. É certo que, para viria a provocar a entrada em cena, meses apercebendo-se do inconveniente político de me ajoelhar, se nunca o fiz? Por ela ser
atingir a meta presidencial, não hesitara depois, de um Cavaco Silva ampliado em que seria governar com a hostilidade mani- a rainha de Inglaterra?” Engoli em seco.
em apelidar de “fascista” (para dizer o força e votos, um Cavaco em ponto grande, festa das confederações patronais, Soares Era Soares no seu melhor, isto é, igual a
mínimo) o seu adversário, Diogo Freitas mas o que quero referir aqui hoje são duas apressara-se a tranquilizar Ferraz da Costa si mesmo. Nunca será demais sublinhá-lo, e
do Amaral, um ex-muito-conveniente- coisas, não despiciendas. Primeiro, Soares sobre as suas verdadeiras intenções. Não hoje ainda menos: Mário Soares, no poder
-parceiro-de-coligação governamental não tinha, nunca teve medo. De cortar, de ouvi mais (só se me escondesse atrás das ou fora dele, de fato de banho ou dentro
nos idos de 1977, aquando do governo PS/ inverter, de escolher, de decidir, de gostar, cortinas, mas a Olinda certamente chocar- de um coche enfeitado, num palácio, numa
CDS. No dia seguinte às eleições, Mário de preferir. Segundo, nunca lhe bastaram -se-ia), apanhei porém o essencial. Mas tasca ou em cima de um elefante, ao lado de
Soares mandou flores à esposa do seu rival, simpatias e bonomias, facilidades e abraços até hoje nunca troquei uma só palavra Mitterrand ou engraxando os sapatos, era
e pronto: o que fora, lá ia. populares. Nem ele se consentiria que os com o então presidente da CIP sobre tal o mesmo. Foi sempre o mesmo. Chapeau.
A vida continuava. seus cargos, fossem quais fossem, se esgo- telefonema. Por falar em Mitterrand, son ami, uma
Ficou dois mandatos, eleito no primeiro tassem nisso, nem a política que entendia vez em Paris, encontrando-me a ler um
à tangente e cinco anos depois reeleito com fazer se compadecia com receita tão magra. 5. Sempre igual jornal na esplanada envidraçada de um
folga e pouca graça: Basílio Horta não tinha Ser “popular” ou “amado” não era o seu café da Rive Gauche, vejo subitamente
estatuto de challenger, faltou tensão e in- objectivo exclusivo. a si mesmo Mário Soares, passada lenta e ar feliz, a
teresse. Foram mandatos desiguais, restam Quem não se lembra de escolhas, riscos, O dr. Soares não era pretensioso. Era teimo- passear na rua, com dois infelizes atrás
boas e más memórias, mas não será este prioridades, decisões? Algumas fortes, du- so, podia ser caprichoso, mas só se levava dele, a tomarem conta da ocorrência. Sabia
correr da pena – a que me entrego com o ras, difíceis – contra o ar do tempo, contra assim-assim a sério. Não tinha grandes que ele estava em França (eu ia entrevistar
coração – o melhor momento para mais o seu partido, contra o “socialismo”, con- pretensões, nem se reivindicava de grandes Françoise Giroud), mas nunca me passaria
fundamentados e sérios balanços. tra o que estava. E bem mais pesadas de intelectualidades. Gostava da nossa Histó- pela cabeça que andasse à solta e sozinho
consequências do que a futilidade oca do ria e de alguns dos nossos reis, apreciava a flanar pela sua Paris. Dei um salto até ao
“ir” ou do “ser visto”. Por isso, qualquer algumas artes, coleccionava pintura, tinha passeio, mas já o criado vinha alvoraça-
4. Presidente-Rei comparação com o actual locatário de imensos devotos no universo cultural. E do atrás de mim: “Vous êtes le President
O certo é que o país gostava daquele presi- Belém, como costumo ouvir, a propósito gostava de livros, e sobretudo de ter livros, Soares, n’est-ce pas?” Soares entrou, não
dente-rei e que Soares podia ser irresistível da sua “informalidade” e “proximidade” mesmo que os não lesse a todos. Pude ob- quis café, quis conversa. “Mas o que é que
de bonomia e simpatia. Sucede que tam- que seriam “parecidas” com as de Soares, servá-lo, em dezenas e dezenas de livrarias, eu estava ali a fazer?” (subentendido: sim,
bém sabia – por achar que devia – ser duro me parecem pura simplesmente um quase em Portugal e no estrangeiro, a aspirar o que fazia eu ali se não estava a acompanhar
e cortante com uns e com outros, pares e insulto à memória de Mário Soares. cheiro dos volumes acabados de chegar a viagem dele a França?) Sentou-se, deu
adversários. Como ocorreu um dia quando, Mas ainda a propósito de “prioridades” a escaparates e estantes, devorando-os dois dedos de conversa e logo saiu com os
a pretexto de uma cerimónia oficial nos – e do sentido agudo e arguto com que, com os olhos, folheando-os com gula. E infelizes atrás, mas quem não tinha pressa
Açores, se meteu num avião e foi à região conforme as circunstâncias, ele as ia or- comprando-os: às grosas, às centenas. de aviar o seu espanto eram os emprega-
acabar com a “guerra das bandeiras”, expli- ganizando politicamente – recordo-me Era também um bocadinho (ou um bo- dos do Deux Magots: “Un President qui se
cando a Mota Amaral, à época presidente de uma manhã estar a entrevistá-lo na cado?) vaidoso, claro, como todos os gran- ballade comme ça, tout seul...”. Era isso:
do Governo Regional, que a fantasia pouco sua casa lisboeta a pretexto de recentes des chefes, mas por aí ficava. E, graças a não faziam ideia de quem era um homem
patriótica da bandeira local estar hasteada medidas do seu governo (Bloco Central) Deus, não era nem pomposo, nem grave, chamado Mário Soares, só conheciam o
mais alto do que a nacional era algo que que desagradavam aos patrões e ao mundo nem solene, às vezes até o era de menos, Presidente e não sabiam que era o mesmo.
36 MÁRIO SOARES

de vida, anedotas, “retratos” de pessoas, Ao aterrarmos, como Mário Soares gos-


adversários, amigos, inimigos. No acanha- tava da vida e das suas coisas, agarrou em
do perímetro daquela viatura cabia tudo e, Felipe González (os outros tinham com-
sobretudo, cabia inteiro o contraste entre promissos), na sua filha Isabel e em mim
o entendimento de um – Soares – do que própria, e rumou a um restaurante perto de
se poderia fazer da vida e com a vida; e Vilamoura, para se saciar, com um fresquís-
do outro – Sousa Franco – que dela tinha simo peixe, antes do palco que os esperava
uma noção, digamos, mais serenamen- à noite. Felipe González quase rejubilava:
te compartimentada e menos deslizante. aquele jantar à mesa de um restaurante
Quando chegávamos às localidades – pra- marítimo, num ambiente quase familiar,
ças, recintos, ginásios, mercados, jardins, longe do seu duro quotidiano, levou-o, com
hotéis – Soares aspirava de imediato o ar charme e vivacidade, a contar histórias e a
do tempo. Apercebia-se de sentimentos, falar um pouco de si. Duas horas depois, em
aspirações e aflições, intuía o que devia Portimão, já integralmente “vestidos” de
dizer e o que deveria fazer e agia em con- políticos, Soares, González, Mitterrand (e de
formidade. Sem réstia de esforço. Caso novo julgo que Craxi) dariam o seu melhor
fosse o contrário ou quase o contrário do com casa cheia e plateia animada. Eleitoral-
que dissera dez minutos antes, ou que de mente não serviu de muito; politicamente foi
algum modo contradissesse o que decidira um feito, fruto da conhecida capacidade de
publicamente na véspera, paciência: as convocação internacional de Mário Soares.
coisas eram o que eram, ele estava a fazer A personalidade do líder socialista conferiu
política e tratava-se de ganhar as eleições. àquele dia singular um tom de simplicidade
Sem sombra de pecado. E se naquele dia, porventura raro de encontrar, nas mesmas
já noite entrada, ainda fosse preciso cons- circunstâncias, noutro país europeu.
pirar um bocadinho, conspirava. (Sempre O regresso a Lisboa, após o comício al-
o fizera, aliás, e onde lhe desse jeito: em garvio, já se efectuou num voo regular
escritórios da Rua do Ouro, no tempo da da TAP. Vindo do avião, Felipe González,
outra senhora; à mesa do Avis, ou em zim- apontando para dois matulões que o aguar-
bórios e embaixadas com os Carluccis deste davam semiadormecidos dentro do edifício
mundo – e dou só estes exemplos, haveria do aeroporto, não resistiu à auto-ironia:
obviamente mil outros.) “Olha para eles, ali à minha espera… Se
eu agora quisesse ir dançar contigo, não
7. Soares, Mitterrand, me deixavam...”
González e Craxi
● Mário Soares cumprimenta a modelo holandesa numa avioneta 8. “Você não percebeu
Ainda a propósito da campanha que acabo nada!”
Lola Conchita na praia do Vau, em Agosto de 1986. de mencionar, é-me irresistível deixar Nos anos noventa fui à América Latina
O El País intitulou a foto “La bella y el presidente”. aqui um outro extraordinário episódio
vivido nessas legislativas, o qual talvez
fazer umas reportagens para um livro en-
comendado pela Fundação Gulbenkian.
Soares sempre esteve de bem com a vida. Amava-a só tivesse sido possível de ocorrer – com Uma das paragens foi no Uruguai, onde
a “naturalidade” com que ocorreu – no em Montevideu (coincidência das coin-
com paixão e coleccionava os seus prazeres. país que somos e com as característi- cidências para uma jornalista política) se
cas que temos. Contando com amigos encontravam nessa mesma altura o então
socialistas por essa Europa fora, Mário primeiro-ministro Cavaco Silva e o então
6. A vida era para ser Republicana e Socialista), aliança política Soares lembrou-se de convidar alguns chefe de Estado Mário Soares, a pretexto
bem vivida inventada semi à pressa pelo PS de Soares, deles a vir a Portugal “dar uma mão”. de mais uma cimeira ibero-americana. Por
nos finais da década de setenta, e concreti- E tendo de adequar as pesadas agendas amável convite da embaixada de Portugal,
Se com a morte de Mário Soares perdi al- zada com o severo António Lopes Cardoso dos seus convidados ao calendário da sua pude almoçar com Soares (Cavaco ainda
gumas referências do que para mim conta (UEDS) e o circunspecto António Sousa própria campanha, verificou que seria o não aterrara na capital do Uruguai), o qual,
politicamente e que Soares praticava – o Franco (ASDI), com o intuito, aliás gorado, Sul – onde, em determinado dia, a Frente vendo-me ali, ainda mais simpaticamente
gosto pelo ofício, a fibra na luta, a energia de “dar cabo” (eleitoralmente, bem enten- Republicana e Socialista passaria uma me convidou nessa noite para jantar. O
do combate, o fôlego –, o que eu perdi dido) da nefasta Aliança Democrática. Era jornada eleitoral – a servir as agendas de restaurante logo inventou uma mesa que
definitivamente foi a presença de alguém a AD de Sá Carneiro, que então governava todos. E assim compactou-os a todos num não havia, os comensais entreolharam-se,
que em Portugal fazia política com gosto e que corria o risco de voltar a ganhar comício nocturno em Portimão, terra de os músicos tocaram mais alto, o empregado
e gozo. Sem sombra de queixume (coisa as legislativas desse ano de 1980 (como beira-mar, bom peixe e estrelas no céu. de mesa desenrolou elogios rasgados.
pouco nacional), dispensando evocações ganharia). Soares sentava-se no seu carro, Foi assim que um dia Felipe González, Quase fiquei contagiada: “Ah, dr. Soares,
grandiloquentes de “serviço”, não lhe ao lado da sua filha Isabel, exímia condu- François Mitterrand e julgo que também toda a gente neste mundo o conhece... até
ocorrendo alusões a “sacrifícios”, nem à tora, conversadora inteligente (quem sai Bettino Craxi – líderes todos eles das hos- este empregado a elogiar assim o Presiden-
“pátria”. Estava bem com a vida, tinha-a na aos seus...) e até hoje amiga do peito. No tes socialistas em Espanha, Itália e França te da República de um país tão distante...”
pele, mas, sobretudo (e este “sobretudo” banco de trás, Sousa Franco e eu. Foram –, ladeando um feliz Mário Soares, se me- Soares irritou-se e não foi pouco: “Você não
muito aclara a sua personalidade), amava-a quilómetros e quilómetros disto. teram todos em Lisboa na mesma avioneta percebeu nada! O que o homem estava a
com paixão e coleccionava os seus prazeres. Portugal não é grande mas dantes ia-se – a mesma! – a caminho do Algarve. Muito louvar era o meu combate contra a ditadu-
Numa quase vertigem, onde a política tinha ainda mais a todos os sítios e lugarejos e, mais feliz, porém, estava eu que tive a sor- ra, o meu apego à liberdade. A Presidência
obviamente lugar cativo no centro do palco não raro, Soares entrava de roldão por te de também seguir viagem, fazendo-o, não interessa nada, o homem falou foi da
onde se desenrolaram as várias estações uma pastelaria na busca gulosa das “es- quase incrédula, com a oportunidade de minha luta pela liberdade, foi o que ele
da sua vária e vasta vida. E se nunca Má- pecialidades” do Portugal profundo que conviver com um painel de políticos de reteve de mim e reteve bem.”
rio Soares desligou a política do imenso, ele se lembrava existirem aqui ou ali. No primeiro plano (todos viriam, de resto, a Chapeau. Outra vez.
inesgotável gosto de a praticar, também carro, refastelava-se com elas perante o ser primeiros-ministros dos seus respec- Sim, vi Mário Soares viver. E vi-o com-
nunca separou a vida do quase telúrico fastio hesitante de Sousa Franco, pouco tivos países, em 1981, 82 e 83), ali ao vivo bater. Vi-o viver dezenas, centenas de ve-
prazer de a viver, numa espécie de vasos propenso a tais exuberâncias de apetite e e em carne e osso, naquele exíguo espaço. zes, festejando a vida no Campo Grande,
comunicantes, de incessante circulação mal à l’aise face ao repetido espectáculo Soares, convivial e bem-disposto, dis- em Nafarros, no Alvor; na minha casa e
entre vida e política, política e vida. daquela vitalidade em estado quimica- tribuía conversa. Mitterand, grave, sisudo, em casa de amigos comuns; festejando-a
Minutos antes de um comício crucial mente puro: “Oh Sousa Franco, você não sentado ao lado de uma conhecida jorna- ao mesmo tempo que lutava na rua, no
(quando os comícios podiam ser cruciais) come, homem...? Olhe eu já comi dois bolos lista política francesa que o acompanhara exílio, em “manifs”, nas sedes do PS; no
ou em vésperas de legislativas igualmente destes e vou comer outro...” E depois, sem a Lisboa, pouco falou durante o voo. Ao Parlamento, no seu gabinete de S. Bento;
cruciais, era capaz de subverter o ritmo do transição, dormitava, indiferente às curvas contrário de González, um sedutor político nos gabinetes e salões de Belém e nos seus
dia “eleitoral” quando de repente lhe acon- dos caminhos (não havia auto-estradas e convicto da sua luta à frente do PSOE e cer- banquetes e jardins; e, depois, na Fundação
tecia disparar para um restaurante que “ele muito menos se vislumbrava ainda o ca- to do seu êxito futuro. E, sobretudo, livre e Mário Soares. Vi-o celebrar o facto de estar
lá sabia”, onde se comia um bacalhau ou vaquismo), e quando acordava verberava solto, por breves momentos, da tensão de vivo. Aqui, lá fora, na Europa e fora dela.
umas favas, já não sei, porque a vida era ferozmente a oposição (de que eu era, in- uma Espanha assombrada pela ETA: “Só Num museu de Washington que estava
para ser bem vivida. E a política, nesse variavelmente, sem emenda nem remédio, para dar apenas um exemplo, todos os dias fechado e “se” mandou abrir para ele e
dia, podia ser tão importante quanto um a “representante”, quando não mesmo a alguém na sede do meu partido me estende onde de caminho me levou consigo. Em
também imperdível bacalhau com todos. “reaccionária” representante). um papel com o nome do restaurante onde Moscovo, no Azerbaijão e na Arménia, na
Lembro-me como se fosse hoje da nossa Ou então o carro enchia-se das suas devo almoçar nesse dia. Nunca sei onde mais inesquecível, mais impressiva, mais
volta a Portugal aquando da infausta cam- histórias, ninguém as contava como ele, vou, não sou dono dos meus passos… Vivo alucinante, mais (porque não confessá-lo?)
panha da não menos infausta FRS (Frente recordações de outras campanhas, pedaços vigiado vinte e quatro horas por dia.” divertida das viagens de Estado em que o
36 MÁRIO SOARES

de vida, anedotas, “retratos” de pessoas, Ao aterrarmos, como Mário Soares gos-


adversários, amigos, inimigos. No acanha- tava da vida e das suas coisas, agarrou em
do perímetro daquela viatura cabia tudo e, Felipe González (os outros tinham com-
sobretudo, cabia inteiro o contraste entre promissos), na sua filha Isabel e em mim
o entendimento de um – Soares – do que própria, e rumou a um restaurante perto de
se poderia fazer da vida e com a vida; e Vilamoura, para se saciar, com um fresquís-
do outro – Sousa Franco – que dela tinha simo peixe, antes do palco que os esperava
uma noção, digamos, mais serenamen- à noite. Felipe González quase rejubilava:
te compartimentada e menos deslizante. aquele jantar à mesa de um restaurante
Quando chegávamos às localidades – pra- marítimo, num ambiente quase familiar,
ças, recintos, ginásios, mercados, jardins, longe do seu duro quotidiano, levou-o, com
hotéis – Soares aspirava de imediato o ar charme e vivacidade, a contar histórias e a
do tempo. Apercebia-se de sentimentos, falar um pouco de si. Duas horas depois, em
aspirações e aflições, intuía o que devia Portimão, já integralmente “vestidos” de
dizer e o que deveria fazer e agia em con- políticos, Soares, González, Mitterrand (e de
formidade. Sem réstia de esforço. Caso novo julgo que Craxi) dariam o seu melhor
fosse o contrário ou quase o contrário do com casa cheia e plateia animada. Eleitoral-
que dissera dez minutos antes, ou que de mente não serviu de muito; politicamente foi
algum modo contradissesse o que decidira um feito, fruto da conhecida capacidade de
publicamente na véspera, paciência: as convocação internacional de Mário Soares.
coisas eram o que eram, ele estava a fazer A personalidade do líder socialista conferiu
política e tratava-se de ganhar as eleições. àquele dia singular um tom de simplicidade
Sem sombra de pecado. E se naquele dia, porventura raro de encontrar, nas mesmas
já noite entrada, ainda fosse preciso cons- circunstâncias, noutro país europeu.
pirar um bocadinho, conspirava. (Sempre O regresso a Lisboa, após o comício al-
o fizera, aliás, e onde lhe desse jeito: em garvio, já se efectuou num voo regular
escritórios da Rua do Ouro, no tempo da da TAP. Vindo do avião, Felipe González,
outra senhora; à mesa do Avis, ou em zim- apontando para dois matulões que o aguar-
bórios e embaixadas com os Carluccis deste davam semiadormecidos dentro do edifício
mundo – e dou só estes exemplos, haveria do aeroporto, não resistiu à auto-ironia:
obviamente mil outros.) “Olha para eles, ali à minha espera… Se
eu agora quisesse ir dançar contigo, não
7. Soares, Mitterrand, me deixavam...”
González e Craxi
● Mário Soares cumprimenta a modelo holandesa numa avioneta 8. “Você não percebeu
Ainda a propósito da campanha que acabo nada!”
Lola Conchita na praia do Vau, em Agosto de 1986. de mencionar, é-me irresistível deixar Nos anos noventa fui à América Latina
O El País intitulou a foto “La bella y el presidente”. aqui um outro extraordinário episódio
vivido nessas legislativas, o qual talvez
fazer umas reportagens para um livro en-
comendado pela Fundação Gulbenkian.
Soares sempre esteve de bem com a vida. Amava-a só tivesse sido possível de ocorrer – com Uma das paragens foi no Uruguai, onde
a “naturalidade” com que ocorreu – no em Montevideu (coincidência das coin-
com paixão e coleccionava os seus prazeres. país que somos e com as característi- cidências para uma jornalista política) se
cas que temos. Contando com amigos encontravam nessa mesma altura o então
socialistas por essa Europa fora, Mário primeiro-ministro Cavaco Silva e o então
6. A vida era para ser Republicana e Socialista), aliança política Soares lembrou-se de convidar alguns chefe de Estado Mário Soares, a pretexto
bem vivida inventada semi à pressa pelo PS de Soares, deles a vir a Portugal “dar uma mão”. de mais uma cimeira ibero-americana. Por
nos finais da década de setenta, e concreti- E tendo de adequar as pesadas agendas amável convite da embaixada de Portugal,
Se com a morte de Mário Soares perdi al- zada com o severo António Lopes Cardoso dos seus convidados ao calendário da sua pude almoçar com Soares (Cavaco ainda
gumas referências do que para mim conta (UEDS) e o circunspecto António Sousa própria campanha, verificou que seria o não aterrara na capital do Uruguai), o qual,
politicamente e que Soares praticava – o Franco (ASDI), com o intuito, aliás gorado, Sul – onde, em determinado dia, a Frente vendo-me ali, ainda mais simpaticamente
gosto pelo ofício, a fibra na luta, a energia de “dar cabo” (eleitoralmente, bem enten- Republicana e Socialista passaria uma me convidou nessa noite para jantar. O
do combate, o fôlego –, o que eu perdi dido) da nefasta Aliança Democrática. Era jornada eleitoral – a servir as agendas de restaurante logo inventou uma mesa que
definitivamente foi a presença de alguém a AD de Sá Carneiro, que então governava todos. E assim compactou-os a todos num não havia, os comensais entreolharam-se,
que em Portugal fazia política com gosto e que corria o risco de voltar a ganhar comício nocturno em Portimão, terra de os músicos tocaram mais alto, o empregado
e gozo. Sem sombra de queixume (coisa as legislativas desse ano de 1980 (como beira-mar, bom peixe e estrelas no céu. de mesa desenrolou elogios rasgados.
pouco nacional), dispensando evocações ganharia). Soares sentava-se no seu carro, Foi assim que um dia Felipe González, Quase fiquei contagiada: “Ah, dr. Soares,
grandiloquentes de “serviço”, não lhe ao lado da sua filha Isabel, exímia condu- François Mitterrand e julgo que também toda a gente neste mundo o conhece... até
ocorrendo alusões a “sacrifícios”, nem à tora, conversadora inteligente (quem sai Bettino Craxi – líderes todos eles das hos- este empregado a elogiar assim o Presiden-
“pátria”. Estava bem com a vida, tinha-a na aos seus...) e até hoje amiga do peito. No tes socialistas em Espanha, Itália e França te da República de um país tão distante...”
pele, mas, sobretudo (e este “sobretudo” banco de trás, Sousa Franco e eu. Foram –, ladeando um feliz Mário Soares, se me- Soares irritou-se e não foi pouco: “Você não
muito aclara a sua personalidade), amava-a quilómetros e quilómetros disto. teram todos em Lisboa na mesma avioneta percebeu nada! O que o homem estava a
com paixão e coleccionava os seus prazeres. Portugal não é grande mas dantes ia-se – a mesma! – a caminho do Algarve. Muito louvar era o meu combate contra a ditadu-
Numa quase vertigem, onde a política tinha ainda mais a todos os sítios e lugarejos e, mais feliz, porém, estava eu que tive a sor- ra, o meu apego à liberdade. A Presidência
obviamente lugar cativo no centro do palco não raro, Soares entrava de roldão por te de também seguir viagem, fazendo-o, não interessa nada, o homem falou foi da
onde se desenrolaram as várias estações uma pastelaria na busca gulosa das “es- quase incrédula, com a oportunidade de minha luta pela liberdade, foi o que ele
da sua vária e vasta vida. E se nunca Má- pecialidades” do Portugal profundo que conviver com um painel de políticos de reteve de mim e reteve bem.”
rio Soares desligou a política do imenso, ele se lembrava existirem aqui ou ali. No primeiro plano (todos viriam, de resto, a Chapeau. Outra vez.
inesgotável gosto de a praticar, também carro, refastelava-se com elas perante o ser primeiros-ministros dos seus respec- Sim, vi Mário Soares viver. E vi-o com-
nunca separou a vida do quase telúrico fastio hesitante de Sousa Franco, pouco tivos países, em 1981, 82 e 83), ali ao vivo bater. Vi-o viver dezenas, centenas de ve-
prazer de a viver, numa espécie de vasos propenso a tais exuberâncias de apetite e e em carne e osso, naquele exíguo espaço. zes, festejando a vida no Campo Grande,
comunicantes, de incessante circulação mal à l’aise face ao repetido espectáculo Soares, convivial e bem-disposto, dis- em Nafarros, no Alvor; na minha casa e
entre vida e política, política e vida. daquela vitalidade em estado quimica- tribuía conversa. Mitterand, grave, sisudo, em casa de amigos comuns; festejando-a
Minutos antes de um comício crucial mente puro: “Oh Sousa Franco, você não sentado ao lado de uma conhecida jorna- ao mesmo tempo que lutava na rua, no
(quando os comícios podiam ser cruciais) come, homem...? Olhe eu já comi dois bolos lista política francesa que o acompanhara exílio, em “manifs”, nas sedes do PS; no
ou em vésperas de legislativas igualmente destes e vou comer outro...” E depois, sem a Lisboa, pouco falou durante o voo. Ao Parlamento, no seu gabinete de S. Bento;
cruciais, era capaz de subverter o ritmo do transição, dormitava, indiferente às curvas contrário de González, um sedutor político nos gabinetes e salões de Belém e nos seus
dia “eleitoral” quando de repente lhe acon- dos caminhos (não havia auto-estradas e convicto da sua luta à frente do PSOE e cer- banquetes e jardins; e, depois, na Fundação
tecia disparar para um restaurante que “ele muito menos se vislumbrava ainda o ca- to do seu êxito futuro. E, sobretudo, livre e Mário Soares. Vi-o celebrar o facto de estar
lá sabia”, onde se comia um bacalhau ou vaquismo), e quando acordava verberava solto, por breves momentos, da tensão de vivo. Aqui, lá fora, na Europa e fora dela.
umas favas, já não sei, porque a vida era ferozmente a oposição (de que eu era, in- uma Espanha assombrada pela ETA: “Só Num museu de Washington que estava
para ser bem vivida. E a política, nesse variavelmente, sem emenda nem remédio, para dar apenas um exemplo, todos os dias fechado e “se” mandou abrir para ele e
dia, podia ser tão importante quanto um a “representante”, quando não mesmo a alguém na sede do meu partido me estende onde de caminho me levou consigo. Em
também imperdível bacalhau com todos. “reaccionária” representante). um papel com o nome do restaurante onde Moscovo, no Azerbaijão e na Arménia, na
Lembro-me como se fosse hoje da nossa Ou então o carro enchia-se das suas devo almoçar nesse dia. Nunca sei onde mais inesquecível, mais impressiva, mais
volta a Portugal aquando da infausta cam- histórias, ninguém as contava como ele, vou, não sou dono dos meus passos… Vivo alucinante, mais (porque não confessá-lo?)
panha da não menos infausta FRS (Frente recordações de outras campanhas, pedaços vigiado vinte e quatro horas por dia.” divertida das viagens de Estado em que o
38 MÁRIO SOARES OPINIÃO 39

O comentador de “direita”:
uma profissão de futuro

Alberto Gonçalves
O comentador de “direita” é o proverbial idiota útil.
● Mário Soares durante a campanha presidencial de 2006, que deu a vitória a Cavaco Silva. Soares viajou
GETTY IMAGES / ANADOLU AGENCY

Útil para a esquerda no poder, que assim finge velar pela


muito, viveu muito, quis muito, alcançou muito. E não deixou de combater politicamente até ao fim.
liberdade de expressão. Útil para os media avençados, que
acompanhei. (Semanas depois, na sede digamos, do que o seu zelo. África nunca lhe ia cimentando ao longo de décadas e que tinto, comer, ver pintura, discutir pintura.
assim fingem “pluralismo”.
do PCP em Lisboa, Cunhal, no decurso de interessou, tudo dela ignorava. Era longe julgo poder apelidar de amizade. Palavra E de viajar. Incansável, a sua curiosidade
um dos encontros que de vez em quando e um empecilho. Um dia, quando diante pesada. Será, mas não me ocorre outra que era ainda mais incansável. Sim, quis muito, Graças ao milagre económi- 2. O comentador de “direita” mal dis- Sócrates e ainda por cima escreveu um livro termina no momento em que a coerência
mantínhamos, haveria de me franzir o seu do gravador ele me recordava a ordem de descreva melhor este novelo de sentimen- alcançou muito. Vivendo e fruindo a vida co português, não só cai o desemprego farça o júbilo que lhe suscita um governo a contar tudo. O segundo porque correu recomendaria a condenação de todos os
espesso sobrolho pelos ecos que tivera de despejo que Salazar lhe dera ao exilá-lo para tos onde desde há muitos anos sempre se mas politicamente combatendo sempre. Li- como se levantam novos e fascinantes a reboque da extrema-esquerda. Dado que com o “eng.” Sócrates, venceu o dr. Costa e imoderados. Vinte deputados “fascistas”
diversos comportamentos menos ortodo- S. Tomé e Príncipe, no final dos anos sessen- misturaram a gratidão pelo protagonista derando, governando, actuando, intervindo, empregos. Caso o desejem, os portugue- ninguém o confronta com tamanha bizarria, nunca convidou o comentador de “direita” na Holanda (ou o “populismo”) tiram-lhe
xos, entre eles o meu.) ta, perguntei-lhe de chofre: “E o dr. Soares da liberdade, a muito clara consciência das escolhendo, decidindo. Presidindo. Vida que ses realmente apetrechados para o ofício beneficia de rédea solta para elogiar o dr. para o cargo que este, indubitavelmente, alegadamente o sono. Quarenta deputados
não soube encontrar S. Tomé no mapa, pois duas ou três coisas políticas que lhe fiquei era política, política que não se distinguia podem enveredar por uma carreira de Costa, que o comentador de “direita” consi- merecia. E ambos porque estão vivos. leninistas em Portugal (ou a “representati-
9. África nunca não?” O meu interlocutor não hesitou: “Não a dever; a consideração pelo “general em da vida. A celebração de uma, implicava a comentador político, na imprensa ou, se dera uma personagem de gabarito. Também 5. O comentador de “direita” não pode vidade”) embalam-no como os anjos.
fazia a menor ideia, tive de ir ver onde era.” chefe” dessas mesmas coisas; o gosto pelo celebração da outra. Nunca foram desligá- lhes sair a sorte grande, na televisão, que louva com empenho a “irreverência” das admitir com franqueza que gosta do “eng.” 9. O comentador de “direita” alinha
lhe interessou Anos mais tarde, enquanto as ex-co- Presidente que ele foi, cá dentro e lá fora. veis. Eis o que talvez possa explicá-lo. dá “visibilidade” e tira a maçada de escre- meninas do BE e a “coerência” do sr. Jeróni- Sócrates. Mas como de facto não desgosta sempre com as “causas” do momento. Dos
Voltando a Soares, foi uma vida com mai- lónias ardiam em guerras fratricidas e E, claro, essa espécie de terna cumplici- ver. Aqui, as possibilidades são diversas, mo. A cada dois meses, não é desajustada a do “eng.” Sócrates, condói-se imenso com movimentos “gay” ao apoio a refugiados
úscula e alta intensidade. A política era o centenas de milhares de desamparados dade sentimental, civilizacional, cultural 11. Aquela noite em que ainda que apenas uma valha a pena. Os referência simpática à dra. Cristas, a fim de o tratamento que o Ministério Público tem que linchariam “gays” mal pudessem, da li-
centro, a família foi a retaguarda, a melhor portugueses as largavam em debandada, e até política que a vida me foi mostrando comentadores de esquerda, com filiação provar que, ao invés de que sucede com Pe- dispensado ao antigo governante. Acerca beralização das drogas “leves” à proibição
retaguarda (e não se pode pura e simples- a prioridade de Soares era o PREC, a luta que existia. Não sei – não sei mesmo – se a (não) se despediu partidária confessa ou pessimamente ca- dro Passos Coelho, é possível uma oposição do tema, começa as intervenções com a dos refrigerantes, do aborto à eutanásia, o
mente evocar Soares sem logo a seguir pela liberdade sindical de Salgado Zenha, cumplicidade era recíproca, nem isso tem No dia 7 de Dezembro de 2004 fez oitenta muflada, já ocupam dois terços das vagas construtiva. Na “óptica” do comentador de imprescindível frase: “Sou insuspeito de comentador de “direita” não perde tempo
atribuir a maior das importâncias e o maior a democratização, os seus governos, ele de resto grande importância. Não mudaria anos. O que me levou a ser parte – com disponíveis. Os comentadores que não são “direita” (por motivos que ignoro, é usual ser um admirador do eng. Sócrates, mas…”. a ponderar a complexidade dos assuntos e
relevo ao papel de Maria de Jesus na sua próprio, a sua carreira política. A pro- uma só linha do que acabo de escrever. Ou enérgico gosto e forte empenho – de um de esquerda querem-se escassos, obse- o comentador de “direita” vender óculos), Ao “mas” segue-se lengalenga épica contra assume imediata e histericamente a posição
vida, toda a sua vida, familiar, doméstica, pósito disso, perguntei-lhe (no livro) se das que possa vir ainda a escrever. dos mais extraordinariamente concorridos quiosos e, de preferência, calados. Pelo oposição construtiva é aquela que evita a as cabalas, as escutas, as insinuações, as que lhe parece mais “progressista” e lhe
social, cultural e obviamente política). entre Portugal e o drama lancinante de Mário Soares teve sorte. Quis muito, al- jantares a que assisti na minha vida. O am- que se vê nos inúmeros programas de “crispação” e aplaude o governo. infâmias, a justiça “mediática”, o “Correio assegura a bancada dos “progressistas” em
Sim, Mário Soares fartou-se de lutar e suar, Angola que ocorria em simultâneo, ele es- cançou muito. A vida, bem vistas as coisas, biente era alegre, o tom festivo, a plateia “debate” e similares, as oportunidades 3. O comentador de “direita” só pode da Manhã”, o juiz Carlos Alexandre e o futuros “Prós e Contras”, a consagração
não adorava contas nem sabia grande coisa colhera unicamente Portugal. A pergunta tratou-o bem. E ele a ela. Tinha amigos, multipartidária, multicultural, multigera- passam sobretudo pelo cargo, hoje im- apreciar líderes da direita se estes se cha- mundo em geral. televisiva da ortodoxia. Passar por retró-
de números (embora haja quem me afiance espantou-o: “Claro!” tinha companheiros, tinha fiéis, tinha de- cional. Havia brilho e glamour no ar, coisa prescindível, de comentador de “direita”. marem Sá Carneiro, mesmo que na época 6. O comentador de “direita” tende a grado assusta-o mais do que acordar em
o contrário), nem foi o melhor governante. Apesar disto, julgo que as grandes “cul- votos. Era genuinamente popular, no mais pouquíssimo portuguesa. No final, Soares As aspas resumem a coisa. Nos parágrafos de Sá Carneiro o comentador de direi- achar positivo o desempenho do prof. Mar- cuecas no Rossio.
Foi um óptimo Presidente para o país, pese pas” pela descolonização lhe cabem apenas nobre sentido do termo. E tinha, felizmen- despediu-se. “Vou-me embora. Não voltarei abaixo, eu desenvolvo-a, de modo a forne- ta frequentasse a creche ou os convívios celo, à superfície por via da “proximidade” 10. O comentador de “direita” é o pro-
embora a desfaçatez com que não hesitou em pequena parte. Os seus pecados foram te, adversários e inimigos (quem não os à política.” Não duvidei (se Vítor Cunha cer aos presumíveis candidatos um guia do PCTP. Tolera-se a ocasional menção à e dos “afectos” (juro), no fundo por via verbial idiota útil. Útil para a esquerda no
várias vezes e de vários modos, exorbitando de omissão muito mais do que de interven- tem, também não tem amigos). Rego estivesse vivo ter-me-ia proibido de profissional adequado. dra. Ferreira Leite, a Marques Mendes, no do matrimónio entre o PR e o PM. Se, por poder, que assim finge velar pela liberdade
das suas funções, em assassinar politicamente ção e eu tenho isto muito claro na minha Jamais ninguém nos contará histórias e acreditar naquilo). Fizemos, aliás, os dois 1. O comentador de “direita” não é de fundo outros comentadores de “direita”, absurdo, houver divórcio, o comentador de expressão. Útil para os media avença-
o seu primeiro-ministro, Cavaco Silva, que cabeça. O que obviamente não exclui penas aventuras como ele contava. Sagas extraor- mal: eu, por ter acreditado; o dr. Soares, direita, embora o apresentem à direita e para legitimar encómios ao governo ac- de “direita” achará o desempenho do prof. dos, que assim fingem “pluralismo”. Útil
lhe preferia o Pulo do Lobo. A razão era só nem apaga responsabilidades, mas isso é dinárias a seu propósito ou de outros, sendo por não ter cumprido. Mais uma vez, não ele pactue com a encenação. A julgar pelas tual. Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho Marcelo menos positivo. para ele, que assim ganha a vida mas não
uma: Soares não conferia direito de cidade outra história, para outro dia. porém sempre o primeiro a troçar de si mes- teve importância. Os seus combates – os opiniões de que se alivia, por exemplo o são interditos absolutos. Também podem 7. O comentador de “direita” orgulha-se vergonha na cara. E útil para nós: o comen-
a um provinciano que em Lisboa ninguém mo; podia ser mordazmente exímio a fazer que mudaram irreversivelmente o rumo ardor com que defende o actual governo e evocar com grande nostalgia Mário Soa- de ter amigos de esquerda. Se repararmos tador de “direita” é consequência de um
sabia quem era, sem galões nem currículo 10. “Amizade”, palavra digressões pelo mundo da política nacional das coisas – já estavam inscritos na História. execra o anterior, um ingénuo seria levado res, a quem aparentemente devem tudo: a bem, o comentador de “direita” tem exclu- país triste, mas, se o contemplarmos na
(mesmo que doutorado por uma universida- e dos seus bastidores; imitava com verve e a pensar que o comentador de “direita” é liberdade, a democracia, a alegria de viver sivamente amigos de esquerda. perspectiva que merece, é causa de muitas
de britânica), que bisava maiorias absolutas pesada graça pares nacionais e internacionais, tinha Maria João Avillez é jornalista e de esquerda. Aliás, toda a gente, incluin- e um almoço na Tia Matilde. 8. O comentador de “direita” não se limi- gargalhadas.
e valia muito mais do que o seu partido. Que Mas nem África – que é tudo menos irrele- ódios de estimação; descrevia com gozo visi- colaboradora do Observador. É autora de do o próprio, pensa exactamente isso. O 4. O comentador de “direita” deve jus- ta a abominar a direita a que diz pertencer:
burguês esclarecido olharia para aquilo? vante – nem o facto de ter votado pouquís- tas insólitas a chefes de Estado estrangeiros vários livros de entrevistas, três dos quais comentador de “direita” não necessita de ta, específica e activamente odiar Cavaco quase tão má é a extrema-direita, cujas Alberto Gonçalves é colunista do
Sim, Soares nunca percebeu quase nada simas vezes em Mário Soares, interferiu na e pelava-se por anedotas picantes. Ria bem feitos a partir de longas conversas com Mário uma filiação no PSD, mas esta pode ser Silva e Pedro Passos Coelho. O primeiro sombras, repete ele, ameaçam a Europa e os Observador e autor de dois livros de crónicas,
da África que falava português e não per- minha relação com ele. Nem – ainda menos e conspirava bem. Gostava de mexer nos Soares, nos anos 90: “Ditadura e Revolução”, um incentivo para tentar a expulsão e o porque, cito, abusou dos poderes presiden- EUA. Misteriosamente, o apreço do comen- o últimos dos quais intitulado “Ninguém Diga
cebeu porque o seu desinteresse era maior, – impediu aquilo que estruturadamente se seus livros, de banhos de mar, beber vinho “Democracia” e “O Presidente”. subsequente martírio. ciais, conspirou contra os governos do “eng.” tador de “direita” pela moderação política que Está Bem”.
38 MÁRIO SOARES OPINIÃO 39

O comentador de “direita”:
uma profissão de futuro

Alberto Gonçalves
O comentador de “direita” é o proverbial idiota útil.
● Mário Soares durante a campanha presidencial de 2006, que deu a vitória a Cavaco Silva. Soares viajou
GETTY IMAGES / ANADOLU AGENCY

Útil para a esquerda no poder, que assim finge velar pela


muito, viveu muito, quis muito, alcançou muito. E não deixou de combater politicamente até ao fim.
liberdade de expressão. Útil para os media avençados, que
acompanhei. (Semanas depois, na sede digamos, do que o seu zelo. África nunca lhe ia cimentando ao longo de décadas e que tinto, comer, ver pintura, discutir pintura.
assim fingem “pluralismo”.
do PCP em Lisboa, Cunhal, no decurso de interessou, tudo dela ignorava. Era longe julgo poder apelidar de amizade. Palavra E de viajar. Incansável, a sua curiosidade
um dos encontros que de vez em quando e um empecilho. Um dia, quando diante pesada. Será, mas não me ocorre outra que era ainda mais incansável. Sim, quis muito, Graças ao milagre económi- 2. O comentador de “direita” mal dis- Sócrates e ainda por cima escreveu um livro termina no momento em que a coerência
mantínhamos, haveria de me franzir o seu do gravador ele me recordava a ordem de descreva melhor este novelo de sentimen- alcançou muito. Vivendo e fruindo a vida co português, não só cai o desemprego farça o júbilo que lhe suscita um governo a contar tudo. O segundo porque correu recomendaria a condenação de todos os
espesso sobrolho pelos ecos que tivera de despejo que Salazar lhe dera ao exilá-lo para tos onde desde há muitos anos sempre se mas politicamente combatendo sempre. Li- como se levantam novos e fascinantes a reboque da extrema-esquerda. Dado que com o “eng.” Sócrates, venceu o dr. Costa e imoderados. Vinte deputados “fascistas”
diversos comportamentos menos ortodo- S. Tomé e Príncipe, no final dos anos sessen- misturaram a gratidão pelo protagonista derando, governando, actuando, intervindo, empregos. Caso o desejem, os portugue- ninguém o confronta com tamanha bizarria, nunca convidou o comentador de “direita” na Holanda (ou o “populismo”) tiram-lhe
xos, entre eles o meu.) ta, perguntei-lhe de chofre: “E o dr. Soares da liberdade, a muito clara consciência das escolhendo, decidindo. Presidindo. Vida que ses realmente apetrechados para o ofício beneficia de rédea solta para elogiar o dr. para o cargo que este, indubitavelmente, alegadamente o sono. Quarenta deputados
não soube encontrar S. Tomé no mapa, pois duas ou três coisas políticas que lhe fiquei era política, política que não se distinguia podem enveredar por uma carreira de Costa, que o comentador de “direita” consi- merecia. E ambos porque estão vivos. leninistas em Portugal (ou a “representati-
9. África nunca não?” O meu interlocutor não hesitou: “Não a dever; a consideração pelo “general em da vida. A celebração de uma, implicava a comentador político, na imprensa ou, se dera uma personagem de gabarito. Também 5. O comentador de “direita” não pode vidade”) embalam-no como os anjos.
fazia a menor ideia, tive de ir ver onde era.” chefe” dessas mesmas coisas; o gosto pelo celebração da outra. Nunca foram desligá- lhes sair a sorte grande, na televisão, que louva com empenho a “irreverência” das admitir com franqueza que gosta do “eng.” 9. O comentador de “direita” alinha
lhe interessou Anos mais tarde, enquanto as ex-co- Presidente que ele foi, cá dentro e lá fora. veis. Eis o que talvez possa explicá-lo. dá “visibilidade” e tira a maçada de escre- meninas do BE e a “coerência” do sr. Jeróni- Sócrates. Mas como de facto não desgosta sempre com as “causas” do momento. Dos
Voltando a Soares, foi uma vida com mai- lónias ardiam em guerras fratricidas e E, claro, essa espécie de terna cumplici- ver. Aqui, as possibilidades são diversas, mo. A cada dois meses, não é desajustada a do “eng.” Sócrates, condói-se imenso com movimentos “gay” ao apoio a refugiados
úscula e alta intensidade. A política era o centenas de milhares de desamparados dade sentimental, civilizacional, cultural 11. Aquela noite em que ainda que apenas uma valha a pena. Os referência simpática à dra. Cristas, a fim de o tratamento que o Ministério Público tem que linchariam “gays” mal pudessem, da li-
centro, a família foi a retaguarda, a melhor portugueses as largavam em debandada, e até política que a vida me foi mostrando comentadores de esquerda, com filiação provar que, ao invés de que sucede com Pe- dispensado ao antigo governante. Acerca beralização das drogas “leves” à proibição
retaguarda (e não se pode pura e simples- a prioridade de Soares era o PREC, a luta que existia. Não sei – não sei mesmo – se a (não) se despediu partidária confessa ou pessimamente ca- dro Passos Coelho, é possível uma oposição do tema, começa as intervenções com a dos refrigerantes, do aborto à eutanásia, o
mente evocar Soares sem logo a seguir pela liberdade sindical de Salgado Zenha, cumplicidade era recíproca, nem isso tem No dia 7 de Dezembro de 2004 fez oitenta muflada, já ocupam dois terços das vagas construtiva. Na “óptica” do comentador de imprescindível frase: “Sou insuspeito de comentador de “direita” não perde tempo
atribuir a maior das importâncias e o maior a democratização, os seus governos, ele de resto grande importância. Não mudaria anos. O que me levou a ser parte – com disponíveis. Os comentadores que não são “direita” (por motivos que ignoro, é usual ser um admirador do eng. Sócrates, mas…”. a ponderar a complexidade dos assuntos e
relevo ao papel de Maria de Jesus na sua próprio, a sua carreira política. A pro- uma só linha do que acabo de escrever. Ou enérgico gosto e forte empenho – de um de esquerda querem-se escassos, obse- o comentador de “direita” vender óculos), Ao “mas” segue-se lengalenga épica contra assume imediata e histericamente a posição
vida, toda a sua vida, familiar, doméstica, pósito disso, perguntei-lhe (no livro) se das que possa vir ainda a escrever. dos mais extraordinariamente concorridos quiosos e, de preferência, calados. Pelo oposição construtiva é aquela que evita a as cabalas, as escutas, as insinuações, as que lhe parece mais “progressista” e lhe
social, cultural e obviamente política). entre Portugal e o drama lancinante de Mário Soares teve sorte. Quis muito, al- jantares a que assisti na minha vida. O am- que se vê nos inúmeros programas de “crispação” e aplaude o governo. infâmias, a justiça “mediática”, o “Correio assegura a bancada dos “progressistas” em
Sim, Mário Soares fartou-se de lutar e suar, Angola que ocorria em simultâneo, ele es- cançou muito. A vida, bem vistas as coisas, biente era alegre, o tom festivo, a plateia “debate” e similares, as oportunidades 3. O comentador de “direita” só pode da Manhã”, o juiz Carlos Alexandre e o futuros “Prós e Contras”, a consagração
não adorava contas nem sabia grande coisa colhera unicamente Portugal. A pergunta tratou-o bem. E ele a ela. Tinha amigos, multipartidária, multicultural, multigera- passam sobretudo pelo cargo, hoje im- apreciar líderes da direita se estes se cha- mundo em geral. televisiva da ortodoxia. Passar por retró-
de números (embora haja quem me afiance espantou-o: “Claro!” tinha companheiros, tinha fiéis, tinha de- cional. Havia brilho e glamour no ar, coisa prescindível, de comentador de “direita”. marem Sá Carneiro, mesmo que na época 6. O comentador de “direita” tende a grado assusta-o mais do que acordar em
o contrário), nem foi o melhor governante. Apesar disto, julgo que as grandes “cul- votos. Era genuinamente popular, no mais pouquíssimo portuguesa. No final, Soares As aspas resumem a coisa. Nos parágrafos de Sá Carneiro o comentador de direi- achar positivo o desempenho do prof. Mar- cuecas no Rossio.
Foi um óptimo Presidente para o país, pese pas” pela descolonização lhe cabem apenas nobre sentido do termo. E tinha, felizmen- despediu-se. “Vou-me embora. Não voltarei abaixo, eu desenvolvo-a, de modo a forne- ta frequentasse a creche ou os convívios celo, à superfície por via da “proximidade” 10. O comentador de “direita” é o pro-
embora a desfaçatez com que não hesitou em pequena parte. Os seus pecados foram te, adversários e inimigos (quem não os à política.” Não duvidei (se Vítor Cunha cer aos presumíveis candidatos um guia do PCTP. Tolera-se a ocasional menção à e dos “afectos” (juro), no fundo por via verbial idiota útil. Útil para a esquerda no
várias vezes e de vários modos, exorbitando de omissão muito mais do que de interven- tem, também não tem amigos). Rego estivesse vivo ter-me-ia proibido de profissional adequado. dra. Ferreira Leite, a Marques Mendes, no do matrimónio entre o PR e o PM. Se, por poder, que assim finge velar pela liberdade
das suas funções, em assassinar politicamente ção e eu tenho isto muito claro na minha Jamais ninguém nos contará histórias e acreditar naquilo). Fizemos, aliás, os dois 1. O comentador de “direita” não é de fundo outros comentadores de “direita”, absurdo, houver divórcio, o comentador de expressão. Útil para os media avença-
o seu primeiro-ministro, Cavaco Silva, que cabeça. O que obviamente não exclui penas aventuras como ele contava. Sagas extraor- mal: eu, por ter acreditado; o dr. Soares, direita, embora o apresentem à direita e para legitimar encómios ao governo ac- de “direita” achará o desempenho do prof. dos, que assim fingem “pluralismo”. Útil
lhe preferia o Pulo do Lobo. A razão era só nem apaga responsabilidades, mas isso é dinárias a seu propósito ou de outros, sendo por não ter cumprido. Mais uma vez, não ele pactue com a encenação. A julgar pelas tual. Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho Marcelo menos positivo. para ele, que assim ganha a vida mas não
uma: Soares não conferia direito de cidade outra história, para outro dia. porém sempre o primeiro a troçar de si mes- teve importância. Os seus combates – os opiniões de que se alivia, por exemplo o são interditos absolutos. Também podem 7. O comentador de “direita” orgulha-se vergonha na cara. E útil para nós: o comen-
a um provinciano que em Lisboa ninguém mo; podia ser mordazmente exímio a fazer que mudaram irreversivelmente o rumo ardor com que defende o actual governo e evocar com grande nostalgia Mário Soa- de ter amigos de esquerda. Se repararmos tador de “direita” é consequência de um
sabia quem era, sem galões nem currículo 10. “Amizade”, palavra digressões pelo mundo da política nacional das coisas – já estavam inscritos na História. execra o anterior, um ingénuo seria levado res, a quem aparentemente devem tudo: a bem, o comentador de “direita” tem exclu- país triste, mas, se o contemplarmos na
(mesmo que doutorado por uma universida- e dos seus bastidores; imitava com verve e a pensar que o comentador de “direita” é liberdade, a democracia, a alegria de viver sivamente amigos de esquerda. perspectiva que merece, é causa de muitas
de britânica), que bisava maiorias absolutas pesada graça pares nacionais e internacionais, tinha Maria João Avillez é jornalista e de esquerda. Aliás, toda a gente, incluin- e um almoço na Tia Matilde. 8. O comentador de “direita” não se limi- gargalhadas.
e valia muito mais do que o seu partido. Que Mas nem África – que é tudo menos irrele- ódios de estimação; descrevia com gozo visi- colaboradora do Observador. É autora de do o próprio, pensa exactamente isso. O 4. O comentador de “direita” deve jus- ta a abominar a direita a que diz pertencer:
burguês esclarecido olharia para aquilo? vante – nem o facto de ter votado pouquís- tas insólitas a chefes de Estado estrangeiros vários livros de entrevistas, três dos quais comentador de “direita” não necessita de ta, específica e activamente odiar Cavaco quase tão má é a extrema-direita, cujas Alberto Gonçalves é colunista do
Sim, Soares nunca percebeu quase nada simas vezes em Mário Soares, interferiu na e pelava-se por anedotas picantes. Ria bem feitos a partir de longas conversas com Mário uma filiação no PSD, mas esta pode ser Silva e Pedro Passos Coelho. O primeiro sombras, repete ele, ameaçam a Europa e os Observador e autor de dois livros de crónicas,
da África que falava português e não per- minha relação com ele. Nem – ainda menos e conspirava bem. Gostava de mexer nos Soares, nos anos 90: “Ditadura e Revolução”, um incentivo para tentar a expulsão e o porque, cito, abusou dos poderes presiden- EUA. Misteriosamente, o apreço do comen- o últimos dos quais intitulado “Ninguém Diga
cebeu porque o seu desinteresse era maior, – impediu aquilo que estruturadamente se seus livros, de banhos de mar, beber vinho “Democracia” e “O Presidente”. subsequente martírio. ciais, conspirou contra os governos do “eng.” tador de “direita” pela moderação política que Está Bem”.
O
40 DANTE VACCHI 41

pai
Chegou a Angola como fotógrafo.
Em poucas semanas, teve luz verde para
formar a tropa especial que ainda hoje é
considerada a elite do exército português.

fantasma Estaria o italiano Dante Vacchi


ligado aos serviços secretos?
A sua vida é um mistério.

dos
Comandos Foi como um fantasma que apa-
recia e desaparecia sem deixar rasto. O
misterioso jornalista e aventureiro italiano
Cesare Dante Vacchi viajou para Angola com
a sua namorada francesa quando rebentou
a guerra. No dia 1 de abril de 1962, cerca de
um ano depois de se iniciarem as hostilida-
des, começou a acompanhar um batalhão de
mandos. António Neves, tenente-coronel
na reforma, estuda há três anos o papel de
Dante Vacchi na criação daquela tropa de
elite. O militar fez o curso de comandos
em 1970 e interessou-se pela história do
homem que deu origem à temida força
anti-guerrilha durante a Guerra Colonial.
“Não tinha interesse nenhum no Dante
coronel Raul Folques, que se cruzou com
o jornalista em Zemba, no primeiro curso
de Comandos, em 1962.
Mas o secretismo vai além da sua ima-
gem. Do espólio do jornalista, também
não há sinal. E mesmo quem privou mais
de perto com o italiano perdeu-lhe o rasto.
Fora os livros que publicou, Cesare Dante
apareceu lá para fazer uma reportagem”,
recorda o então alferes miliciano João Vieira
Pereira, ao Observador, que no início da
guerra comandava um grupo de homens
em Nóqui. O antigo combatente conta que
Dante Vacchi “era bem visto em Portugal
pelo regime de Salazar e pela PIDE”.
“Para um jornalista, ainda para mais
tropas portuguesas em Nóqui, no norte do Vacchi a não ser no seu papel na origem Vacchi é como um fantasma que deixou italiano, poder fazer uma reportagem com

portugueses
país, junto à fronteira com o Congo. dos Comandos – que não passa de quatro uma marca profunda no Exército para as tropas portuguesas em Nóqui era pre-
Mas ele era mais do que apenas um ou cinco meses –, mas comecei a investigá- desaparecer de seguida. “É frustrante”, ciso ter o agreament [a concordância] da
repórter. Tinha treino militar desde o -lo e percebi que era mais interessante desabafa António Neves, que continua a PIDE e o agreament do Estado-maior do
tempo do fascismo italiano. E poderá ter do que isso, era um homem do mundo, procurar informações sobre aquele que Exército”, sublinha o coronel Raul Folques.
passado pela Legião Estrangeira. Homem um nómada, metia-se em todo o lado no pode ser considerado o pai desta tropa es- Para o militar, Vacchi não chegou a An-
relativamente baixo, com menos de 1,67 seu trabalho de correspondente”, conta pecial. Há, no entanto, “demasiados hiatos, gola por acaso. “Em condições normais,
metros, rosto magro, Vacchi era um civil, António Neves ao Observador. falta muita documentação”, o que o impede um jornalista estrangeiro que viesse para
mas era um duro. Mais duro do que os A história do jornalista que criou os de preencher os espaços em branco. Portugal – e estamos a falar do regime de
militares portugueses com quem seguia. Comandos é uma imensa sombra, sobre- Cesare Dante Vacchi terá aterrado em Salazar – tinha de ser referenciado”, acres-
Um dia, a meio de um percurso, o grupo tudo o antes e o depois de ter lançado as Luanda no início da década de 1960. Chegou centa o tenente-coronel António Neves.
sofreu uma emboscada de guerrilheiros bases da tropa especial, em Angola. A como jornalista. Queria viajar para o norte Poucas semanas depois da emboscada
angolanos. E então percebeu que as tropas ligação entre o italiano e as tropas por- de Angola para fazer uma reportagem com que viveu junto das tropas portuguesas,
portuguesas não estavam preparadas para tuguesas – curta, mas intensa – também as tropas portuguesas que combatiam na Dante Vacchi passava a ter uma influên-
o combate de guerrilha. Ainda usavam nunca foi contada em pormenor. Imagens região de Nóqui, na margem do Congo, o cia pouco comum para um estrangeiro,
velhas espingardas Mauser e capacetes do próprio fotógrafo são raras, quase não rio que separa Angola daquela república jornalista e civil: era um tipo extrovertido,

Pedro Rainho
de aço, armamento obsoleto do tempo há registo gráfico da sua existência. “O africana. Com ele viajava Anne Dominique que tinha sempre conversa, um bon vivant
da Segunda Guerra Mundial. Dante Vacchi nunca entrava em fotos, Gauzes, fotógrafa de nacionalidade fran- que ia contribuir para formar o primeiro
A partir desta experiência, havia de nunca ia a eventos em que pudesse ser cesa, apelido alemão e com um percurso grupo de Comandos portugueses. “Não me
nascer uma nova força especial: os Co- identificado”, recorda ao Observador o tão misterioso quanto o do colega. “Ele custa nada a aceitar que, aqui em Portugal,

LUSA
O
40 DANTE VACCHI 41

pai
Chegou a Angola como fotógrafo.
Em poucas semanas, teve luz verde para
formar a tropa especial que ainda hoje é
considerada a elite do exército português.

fantasma Estaria o italiano Dante Vacchi


ligado aos serviços secretos?
A sua vida é um mistério.

dos
Comandos Foi como um fantasma que apa-
recia e desaparecia sem deixar rasto. O
misterioso jornalista e aventureiro italiano
Cesare Dante Vacchi viajou para Angola com
a sua namorada francesa quando rebentou
a guerra. No dia 1 de abril de 1962, cerca de
um ano depois de se iniciarem as hostilida-
des, começou a acompanhar um batalhão de
mandos. António Neves, tenente-coronel
na reforma, estuda há três anos o papel de
Dante Vacchi na criação daquela tropa de
elite. O militar fez o curso de comandos
em 1970 e interessou-se pela história do
homem que deu origem à temida força
anti-guerrilha durante a Guerra Colonial.
“Não tinha interesse nenhum no Dante
coronel Raul Folques, que se cruzou com
o jornalista em Zemba, no primeiro curso
de Comandos, em 1962.
Mas o secretismo vai além da sua ima-
gem. Do espólio do jornalista, também
não há sinal. E mesmo quem privou mais
de perto com o italiano perdeu-lhe o rasto.
Fora os livros que publicou, Cesare Dante
apareceu lá para fazer uma reportagem”,
recorda o então alferes miliciano João Vieira
Pereira, ao Observador, que no início da
guerra comandava um grupo de homens
em Nóqui. O antigo combatente conta que
Dante Vacchi “era bem visto em Portugal
pelo regime de Salazar e pela PIDE”.
“Para um jornalista, ainda para mais
tropas portuguesas em Nóqui, no norte do Vacchi a não ser no seu papel na origem Vacchi é como um fantasma que deixou italiano, poder fazer uma reportagem com

portugueses
país, junto à fronteira com o Congo. dos Comandos – que não passa de quatro uma marca profunda no Exército para as tropas portuguesas em Nóqui era pre-
Mas ele era mais do que apenas um ou cinco meses –, mas comecei a investigá- desaparecer de seguida. “É frustrante”, ciso ter o agreament [a concordância] da
repórter. Tinha treino militar desde o -lo e percebi que era mais interessante desabafa António Neves, que continua a PIDE e o agreament do Estado-maior do
tempo do fascismo italiano. E poderá ter do que isso, era um homem do mundo, procurar informações sobre aquele que Exército”, sublinha o coronel Raul Folques.
passado pela Legião Estrangeira. Homem um nómada, metia-se em todo o lado no pode ser considerado o pai desta tropa es- Para o militar, Vacchi não chegou a An-
relativamente baixo, com menos de 1,67 seu trabalho de correspondente”, conta pecial. Há, no entanto, “demasiados hiatos, gola por acaso. “Em condições normais,
metros, rosto magro, Vacchi era um civil, António Neves ao Observador. falta muita documentação”, o que o impede um jornalista estrangeiro que viesse para
mas era um duro. Mais duro do que os A história do jornalista que criou os de preencher os espaços em branco. Portugal – e estamos a falar do regime de
militares portugueses com quem seguia. Comandos é uma imensa sombra, sobre- Cesare Dante Vacchi terá aterrado em Salazar – tinha de ser referenciado”, acres-
Um dia, a meio de um percurso, o grupo tudo o antes e o depois de ter lançado as Luanda no início da década de 1960. Chegou centa o tenente-coronel António Neves.
sofreu uma emboscada de guerrilheiros bases da tropa especial, em Angola. A como jornalista. Queria viajar para o norte Poucas semanas depois da emboscada
angolanos. E então percebeu que as tropas ligação entre o italiano e as tropas por- de Angola para fazer uma reportagem com que viveu junto das tropas portuguesas,
portuguesas não estavam preparadas para tuguesas – curta, mas intensa – também as tropas portuguesas que combatiam na Dante Vacchi passava a ter uma influên-
o combate de guerrilha. Ainda usavam nunca foi contada em pormenor. Imagens região de Nóqui, na margem do Congo, o cia pouco comum para um estrangeiro,
velhas espingardas Mauser e capacetes do próprio fotógrafo são raras, quase não rio que separa Angola daquela república jornalista e civil: era um tipo extrovertido,

Pedro Rainho
de aço, armamento obsoleto do tempo há registo gráfico da sua existência. “O africana. Com ele viajava Anne Dominique que tinha sempre conversa, um bon vivant
da Segunda Guerra Mundial. Dante Vacchi nunca entrava em fotos, Gauzes, fotógrafa de nacionalidade fran- que ia contribuir para formar o primeiro
A partir desta experiência, havia de nunca ia a eventos em que pudesse ser cesa, apelido alemão e com um percurso grupo de Comandos portugueses. “Não me
nascer uma nova força especial: os Co- identificado”, recorda ao Observador o tão misterioso quanto o do colega. “Ele custa nada a aceitar que, aqui em Portugal,

LUSA
42 DANTE VACCHI DANTE VACCHI 43

ele tivesse ligações a um qualquer serviço impressionar o comandante do batalhão próprio Vieira Pereira e os alferes-médicos aceite quem estivesse em boas condições
secreto, mas não tenho nenhuma evidência português em Nóqui. Quando chegou ao Resina Rodrigues e Freire Agualusa. O re- físicas. Já no anúncio do Exército se per-
disso. Nem aqui nem lá, em Angola”, admite norte de Angola, italiano, francês, inglês, pórter Dante Vacchi completava o grupo, cebia que o curso seria duro, com treinos
António Neves. alemão e árabe eram línguas que domi- como adjunto do comandante de campo. em que era usado fogo real e em que se
nava. Mas não o português. Uma barreira Rodeado por militares sem qualquer expe- apostava no contacto direto com o inimigo
que ultrapassou em poucas semanas. “Os riência de forças especiais, cabia ao italiano ainda durante a formação.
O homem fantasma palavrões que nós dizíamos, ele dizia-os orientar a instrução. A instrução começou no início do verão
Antes de saber como Vacchi acabou a for- também, em português da tropa, estivesse Foi essa a versão da história a que An- de 1962, com a presença de um dos dois
mar os Comandos, há outro ponto sem o general ou quem fosse”, conta Vieira tónio Neves chegou na sua investigação. grupos formados por Vacchi em Nóqui,
resposta: como foi que o italiano conseguiu Pereira. Mas, ao Observador, o coronel Raul Fol- para “servir de exemplo” aos novos re-
autorização para acompanhar os militares A aproximação aos militares portugue- ques apresenta outra leitura desse período crutas. António Neves conta que começou
portugueses destacados no norte de Ango- ses foi quase imediata: “A imagem mais inicial. “Ele não estava em permanência nesse tempo a música subitamente ligada
la? Ninguém tem ideia. Nos registos oficiais vincada que tenho dele é a disponibilidade em Zemba, ia e vinha, às vezes ficava dois no máximo, de dia e de noite, sem aviso
permanece um vazio. para nos acompanhar nas operações, du- ou três dias e voltava”, recorda o militar, prévio, acompanhada dos gritos de ordem
António Neves procurou nos arquivos rassem um dia, dois, três dias, dormir em que recusa atribuir a Vacchi a paternidade dos instrutores. “Um dos grandes contribu-
do Secretariado Nacional de Informação qualquer lado como nós dormíamos – em desta força especial. tos que todos reconhecem a Dante Vacchi
– organismo que centralizava a ação de cima de um ribeiro a correr, por exem- “O papel que Dante Vacchi teve foi fun- foi a ação psicológica”, garante António
todos os ministérios de Salazar e tinha mão plo – e comer a mesma ração de combate damental pela sua ideia inovadora, mas Neves. “Era preciso criar nos instruendos
de ferro sobre a imprensa – e deparou-se que nos era distribuída”, lembra o antigo mais fundamental ainda foi o facto de o instabilidade, para que estivessem sempre
com “dezenas e dezenas de referências a oficial miliciano. tenente-coronel Nave ter sido recetivo às prontos para a reação”, refere o tenente-
jornalistas estrangeiros creditados” para Ao mesmo tempo, Vacchi ia ganhando ideias daquele civil, porque se não fosse -coronel, que ainda é uma característica
trabalhar em Portugal (no início da década a “confiança” das chefias militares. Vieira assim aquilo não teria acontecido”, defende dos cursos atuais de Comandos, a par da
de 1960, Angola ainda era uma extensão da Pereira recorda: “Ele era um indivíduo Raul Folques – militar que se inscreveu agressividade desta formação.
metrópole). “Dante Vacchi nunca aparece.” muito expansivo e foi-se familiarizando como formando no curso de Comandos de João Vieira Pereira não tem memória de
Mas a busca do tenente-coronel ainda mal com o meu comandante de batalhão, o Zemba e acabou a dar instrução a outros que esse tipo de práticas tivesse surgido nas
tinha começado. Neves também vasculhou tenente-coronel Almeida Nave. Foram fa- militares. primeiras instruções. “A única coisa que se
os arquivos do Governo Civil, a entidade lando sobre táticas, sobre guerras, sobre “Os Comandos devem a Santos e Cas- fazia era, durante os treinos de progressão
do regime que nesse tempo era responsá- movimentação no terreno”, continua Vieira tro, comandante do segundo curso, em no terreno, com uma espingarda pressão
vel por colocar os vistos nos passaportes. Pereira, que haveria de tornar-se o braço- Quibala, a fama que hoje têm”, entende o de ar, ao longe, enfiar um chumbo no rabo
“Nada.” Pesquisou nos arquivos da PIDE e -direito de Dante Vacchi no Ultramar. Já coronel. “Foi ele que criou uma instrução, de quem se levantasse”, recorda. Os mili-
“nada”. Percorreu os arquivos do Ministério de pistola à cintura – uma arma cedida criou uma mística, criou uma motivação, tares deviam tornar-se peritos em ganhar
da Defesa, procurou pistas na Torre do pelo Exército –, o jornalista “chegou a fa- uma doutrina, ele é que é de facto o pai”, terreno ao inimigo sem serem detetados
Tombo, foi à Câmara Municipal do Porto zer demonstrações com soldados” para defende com convicção. pelos guerrilheiros.
para consultar revistas angolanas em busca exemplificar como a preparação daqueles Vieira Pereira contrapõe, assertivo: Em Zemba, quando se formaliza a instru-
de trabalhos do jornalista. Zero. homens podia ser melhorada. “Dante Vacchi é o pai dos Comandos.” O ção da nova tropa especial, formaram-se
E é garantido que Vacchi esteve em “O comandante foi sensível às sugestões miliciano sustenta a sua opinião no con- seis grupos com homens vindos de seis
Lisboa, antes e depois da sua incursão de Dante Vacchi, ao ponto de o italiano tributo que o italiano deu às tropas esta- batalhões diferentes. Cada grupo tinha 40
por Angola. O nome do italiano aparece, sugerir que, se o comandante quisesse, cionadas em Nóqui, com uma mudança militares. O primeiro curso de comandos
juntamente com outros jornalistas, numa ele estava disponível para dar-lhes uma de mentalidade que contrastou com o que acabou no final de novembro e os homens
entrevista a Marcelo Caetano quando este instrução à imagem daquilo que tinha visto existia até essa altura. O protagonismo regressaram aos respetivos batalhões, onde
substituiu António de Oliveira Salazar na nos paraquedistas franceses ou na Legião do jornalista na preparação do curso de começaram a atuar como grupos especiais
liderança do Governo, em 1968. O trabalho Estrangeira”, explica António Neves ao Zemba sugere que Vacchi teve mais do de intervenção imediata.
foi publicado na revista Flama em outubro. Observador. que um papel acessório na criação desta António Neves refere que, mesmo antes
Ainda antes desse trabalho, em 1961, o jor- Já com a autorização do comandante tropa especial. do Natal (a 21 de dezembro de 1962), Dan-
nalista assinou um artigo na revista Notícia de batalhão, Vacchi reuniria 40 homens, te Vacchi – que, pela sua atitude já tinha
com uma reportagem sobre o “palacete divididos em dois grupos, para começar entrado em choque com o rigor militar
senhoril” em que vivia Salazar. Eram raras a revolucionar a formação dos militares
Entrar no gabinete dos oficiais de Zemba e, por isso, estava
as vezes em que o ditador abria as portas portugueses. “Aqueles dois grupos pre- do general sem pedir de volta a Luanda – voou com o ajudante
da sua casa a um jornalista (em 1952, por pararam-se bem, havia treino físico, muita licença de campo do general Deslandes até Nóqui.
exemplo, Christine Garnier tinha escrito carreira de tiro, aprenderam a progredir na Entregaram pessoalmente os crachás e
Férias com Salazar). Mas, nos registos mata, a andar em silêncio.” Era o próprio Com a passagem dos meses, o miliciano o cartão de comando aos militares dos
oficiais do antigo regime, garante Antó- jornalista quem, no terreno, com o apoio Vieira Pereira tornou-se próximo do ita- dois grupos iniciais formados no início
nio Neves, se alguma informação havia dos oficiais, dava orientações sobre como a liano, ainda em Nóqui. Ao Observador, o desse ano em Nóqui, além das divisas com
sobre a presença de Vacchi em Portugal, instrução devia ser feita. Além disso, man- antigo militar lembra que “ninguém lhe a inscrição da tropa especial. Mais tarde,
ela desapareceu. dou arrancar as proteções dos jipes usados punha travão” e conta um episódio que os homens de Zemba também receberiam
“Em 1970, quando entrei para o curso de pelas tropas portuguesas, que impediam ilustra a liberdade, pouco comum, com que as insígnias.
Comandos, ainda ouvi falar de um jornalis- os militares de saltar rapidamente quando o italiano se movia entre as altas patentes O coronel Folques recorda-se de só ter
ta italiano que fazia mil e umas coisas, que apanhados numa emboscada. militares em Angola. “Ele entrava pelo recebido esse material mais tarde. “Só fo-
tinha sido membro da Legião Estrangeira Era um contraste com a formação que quartel-general adentro, vestido à civil, mos considerados comandos depois de
e combatido na Indochina e na Argélia”, tinham recebido em Portugal antes de em- sem passar cartão ao sentinela, chegava sairmos de Angola. Eu recebi uma carta a
recorda ao Observador o tenente-coronel barcarem para Angola. E os resultados ao gabinete do general, batia à porta – ‘oh dizer que tinha passado no curso de Co-
Neves. “Mas isso era o que se dizia, porque foram imediatos. “Em meia dúzia de dias, DR
senhor general’ – e entrava.” Além disso, mandos, mandaram-me um crachá borda-
ninguém o provou.” Vacchi transformou por completo aqueles “tinha à-vontade suficiente para chegar ao do, já em 1964.”
Aos militares em Nóqui, o jornalista dois grupos, que já se diferenciavam bem quartel-general, dizer que queria ir para Nos anos seguintes, foram criados e
apresentava-se como ex-militar com ex- do resto do pessoal. Começaram a ir para a que ele tinha bastantes ideias que, para organizado e estruturado, para preparar Zemba e arranjar um avião”. extintos mais dois campos de treino de
periência de combate na Indochina. Com mata, foram alvo de emboscadas e a reação nós, mais tarde, seriam consideradas ele- uma tropa especial com características Em meados de 1962, Vieira Pereira con- comandos em Angola. E só em 1965 foi ins-
base na sua investigação, António Neves
conseguiu confirmar que Vacchi esteve no
já era completamente diferente”, assinala
António Neves.
mentares.”
No fundo, “naquele tempo, tudo o que
próprias para andar naquele teatro ope-
racional”, indica Bettencourt Rodrigues.
● Dante Vacchi está ao centro, em cima, com uma tinuava em Luanda a preparar o primeiro
curso da tropa especial, reunido com o
talado, em Luanda, o Centro de Instrução
de Comandos, de onde passariam a sair
Líbano nos primeiros anos de confronto viesse para melhorar a situação era apro- Mas isso seria mais tarde. máquina fotográfica ao peito. Anne Gauzes, a sua mis- capitão Marquilhas e com o futuro coman- regularmente novos militares formados.
entre muçulmanos e cristãos. Também veitado”. Mais do que consentidos, os re- No imediato, o Exército tentou aprovei- dante Jasmins de Freitas no quartel-gene-
Carta branca teriosa companheira, surge à esquerda na imagem.
tinha assistido a confrontos militares no
da hierarquia para
sultados conseguidos por Vacchi foram tar os ensinamentos de Vacchi. Numa “con- ral. “Íamos fazendo desenhos sobre como O desaparecimento
Médio Oriente e na Indochina. “Mas sem- apreciados pela hierarquia. De tal forma versa de duas horas, muito interessante” ia ser o campo de instrução, apontávamos
pre como repórter, como correspondente, dar instrução que, em meados de maio, cerca de um mês – escreveu Bettencourt Rodrigues no seu a nordeste de Luanda. A instalação do cam- dar instrução no campo de Comandos se o que seria preciso.” do misterioso italiano
nunca como militar.” A experiência militar e meio depois de o jornalista ter chegado diário, registando o encontro –, o italiano po de treino – o centro de instrução 21 – você for.’ Logo eu, que nunca me tinha Foi também nessas reuniões que nasceu Nesta fase, Dante Vacchi voltaria a evapo-
de Dante Vacchi começara muito antes, As informações sobre a intervenção de ao norte de Angola, e já depois de oficiais foi sondado pelo tenente-coronel sobre foi decretada pelo general Venâncio Des- voluntariado para nada na tropa... Mas a primeira versão do emblema que os co- rar-se. António Neves enviou dezenas de
quando se voluntariou para o Exército Dante Vacchi chegaram a Luanda. Os portugueses visitarem o acampamento a sua disponibilidade para dar formação landes, governador de Angola e comandan- lá pensei que entre fazer o campo de ins- mandos usam atualmente: o capacete de cartas e emails para tudo o que havia de
italiano com apenas 15 anos. relatórios sobre a situação dos militares de Nóqui, o comandante do batalhão foi às tropas portuguesas. Vacchi avançaria te das Forças Armadas no país. “O Zemba trução e preparar as coisas todas, aquilo aço e a cimitarra (uma espada de lâmina instituições ligação ao italiano. “Escrevi
destacados já referem a intervenção de convocado à capital. E devia levar consigo rapidamente, assinando um contrato com era um descampado, ninguém lá tinha ido ainda dava para passar uns dias bons em curva) brancos sobre um fundo preto, um para a Paris Match, escrevi para o Sin-
“dois grupos de comandos de Nóqui” em o italiano. o Exército onde se estabeleceu o seu salário desde que tinha começado a tropa”, des- Luanda”, diz Vieira Pereira ao Observador. ramo folhado e, em baixo, a divisa, em latim, dicato de Jornalistas Franceses, para a
Dante Vacchi: incursões pelo norte de Angola. Mas as “Houve uma reunião entre o tenente- (ia ser pago em dólares) e as condições creve Vieira Pereira. O capitão Jasmins de Freitas (atualmente “Audaces Fortuna Juvat” (“a sorte protege Associação de Repórteres de Guerra fran-
um jornalista a treinar referências a um jornalista que estava a -coronel Bettencourt Rodrigues, chefe para a colaboração. No regresso de uma viagem a Moçam- com mais de 90 anos), que também tinha os audazes”). O emblema foi desenhado ceses, mas ninguém sabia de nada. E em
Comandos formar um grupo de tropas especiais pa- do Estado-Maior do Quartel-General de bique, para gozar férias ao fim de um ano acabado de regressar de Lisboa, foi nomea- pelo capitão Jasmins de Freitas, porque Itália passou-se exatamente a mesma coisa:
reciam não levantar ondas. É preciso ter Angola, e o comandante de batalhão, que A paternidade dos de comissão em Angola, o oficial miliciano do para comandar o centro. Para dar a ins- “ele tinha mais jeito”, diz Vieira Pereira. escrevi para as revistas onde ele publicou
O antigo miliciano do norte de Itália tam- em mente o “contexto” em que a guerra se lhe descreveu tudo o que se passava” no recebeu uma convocatória para se apre- trução, foram convocados alguns oficiais: Nessas semanas de preparação do curso, fotografias ou artigos e não sabem de nada.
bém acompanhou de perto a preparação fazia, ressalva António Neves: “Não havia acampamento a norte, conta o investiga- Comandos contestada sentar de imediato em Luanda. “Quando os então capitães Marquilhas e Ramalho, Dante Vacchi pouco aparecia em Luanda. Escrevi para a editora [que publicou as
de militares de elite franceses. E essa nada. Os próprios homens que trabalharam dor António Neves. “O futuro passaria por O primeiro curso oficial de Comandos foi lá cheguei, um oficial do quartel-general o tenente Caçorino Dias, os alferes Raul Em breve ia começar um curso novo. obras do fotógrafo] e nada. Escrevi para
experiência terá sido fundamental para com ele – e eu já falei com muitos – dizem criar um centro de instrução, devidamente dado em Zemba, cerca de 300 quilómetros disse-me: ‘O Dante Vacchi diz que só vai Folques, Vasco Ramires, César Rodrigues, o Candidatava-se quem queria, mas só seria a câmara municipal da terra dele, para os
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ele tivesse ligações a um qualquer serviço impressionar o comandante do batalhão próprio Vieira Pereira e os alferes-médicos aceite quem estivesse em boas condições
secreto, mas não tenho nenhuma evidência português em Nóqui. Quando chegou ao Resina Rodrigues e Freire Agualusa. O re- físicas. Já no anúncio do Exército se per-
disso. Nem aqui nem lá, em Angola”, admite norte de Angola, italiano, francês, inglês, pórter Dante Vacchi completava o grupo, cebia que o curso seria duro, com treinos
António Neves. alemão e árabe eram línguas que domi- como adjunto do comandante de campo. em que era usado fogo real e em que se
nava. Mas não o português. Uma barreira Rodeado por militares sem qualquer expe- apostava no contacto direto com o inimigo
que ultrapassou em poucas semanas. “Os riência de forças especiais, cabia ao italiano ainda durante a formação.
O homem fantasma palavrões que nós dizíamos, ele dizia-os orientar a instrução. A instrução começou no início do verão
Antes de saber como Vacchi acabou a for- também, em português da tropa, estivesse Foi essa a versão da história a que An- de 1962, com a presença de um dos dois
mar os Comandos, há outro ponto sem o general ou quem fosse”, conta Vieira tónio Neves chegou na sua investigação. grupos formados por Vacchi em Nóqui,
resposta: como foi que o italiano conseguiu Pereira. Mas, ao Observador, o coronel Raul Fol- para “servir de exemplo” aos novos re-
autorização para acompanhar os militares A aproximação aos militares portugue- ques apresenta outra leitura desse período crutas. António Neves conta que começou
portugueses destacados no norte de Ango- ses foi quase imediata: “A imagem mais inicial. “Ele não estava em permanência nesse tempo a música subitamente ligada
la? Ninguém tem ideia. Nos registos oficiais vincada que tenho dele é a disponibilidade em Zemba, ia e vinha, às vezes ficava dois no máximo, de dia e de noite, sem aviso
permanece um vazio. para nos acompanhar nas operações, du- ou três dias e voltava”, recorda o militar, prévio, acompanhada dos gritos de ordem
António Neves procurou nos arquivos rassem um dia, dois, três dias, dormir em que recusa atribuir a Vacchi a paternidade dos instrutores. “Um dos grandes contribu-
do Secretariado Nacional de Informação qualquer lado como nós dormíamos – em desta força especial. tos que todos reconhecem a Dante Vacchi
– organismo que centralizava a ação de cima de um ribeiro a correr, por exem- “O papel que Dante Vacchi teve foi fun- foi a ação psicológica”, garante António
todos os ministérios de Salazar e tinha mão plo – e comer a mesma ração de combate damental pela sua ideia inovadora, mas Neves. “Era preciso criar nos instruendos
de ferro sobre a imprensa – e deparou-se que nos era distribuída”, lembra o antigo mais fundamental ainda foi o facto de o instabilidade, para que estivessem sempre
com “dezenas e dezenas de referências a oficial miliciano. tenente-coronel Nave ter sido recetivo às prontos para a reação”, refere o tenente-
jornalistas estrangeiros creditados” para Ao mesmo tempo, Vacchi ia ganhando ideias daquele civil, porque se não fosse -coronel, que ainda é uma característica
trabalhar em Portugal (no início da década a “confiança” das chefias militares. Vieira assim aquilo não teria acontecido”, defende dos cursos atuais de Comandos, a par da
de 1960, Angola ainda era uma extensão da Pereira recorda: “Ele era um indivíduo Raul Folques – militar que se inscreveu agressividade desta formação.
metrópole). “Dante Vacchi nunca aparece.” muito expansivo e foi-se familiarizando como formando no curso de Comandos de João Vieira Pereira não tem memória de
Mas a busca do tenente-coronel ainda mal com o meu comandante de batalhão, o Zemba e acabou a dar instrução a outros que esse tipo de práticas tivesse surgido nas
tinha começado. Neves também vasculhou tenente-coronel Almeida Nave. Foram fa- militares. primeiras instruções. “A única coisa que se
os arquivos do Governo Civil, a entidade lando sobre táticas, sobre guerras, sobre “Os Comandos devem a Santos e Cas- fazia era, durante os treinos de progressão
do regime que nesse tempo era responsá- movimentação no terreno”, continua Vieira tro, comandante do segundo curso, em no terreno, com uma espingarda pressão
vel por colocar os vistos nos passaportes. Pereira, que haveria de tornar-se o braço- Quibala, a fama que hoje têm”, entende o de ar, ao longe, enfiar um chumbo no rabo
“Nada.” Pesquisou nos arquivos da PIDE e -direito de Dante Vacchi no Ultramar. Já coronel. “Foi ele que criou uma instrução, de quem se levantasse”, recorda. Os mili-
“nada”. Percorreu os arquivos do Ministério de pistola à cintura – uma arma cedida criou uma mística, criou uma motivação, tares deviam tornar-se peritos em ganhar
da Defesa, procurou pistas na Torre do pelo Exército –, o jornalista “chegou a fa- uma doutrina, ele é que é de facto o pai”, terreno ao inimigo sem serem detetados
Tombo, foi à Câmara Municipal do Porto zer demonstrações com soldados” para defende com convicção. pelos guerrilheiros.
para consultar revistas angolanas em busca exemplificar como a preparação daqueles Vieira Pereira contrapõe, assertivo: Em Zemba, quando se formaliza a instru-
de trabalhos do jornalista. Zero. homens podia ser melhorada. “Dante Vacchi é o pai dos Comandos.” O ção da nova tropa especial, formaram-se
E é garantido que Vacchi esteve em “O comandante foi sensível às sugestões miliciano sustenta a sua opinião no con- seis grupos com homens vindos de seis
Lisboa, antes e depois da sua incursão de Dante Vacchi, ao ponto de o italiano tributo que o italiano deu às tropas esta- batalhões diferentes. Cada grupo tinha 40
por Angola. O nome do italiano aparece, sugerir que, se o comandante quisesse, cionadas em Nóqui, com uma mudança militares. O primeiro curso de comandos
juntamente com outros jornalistas, numa ele estava disponível para dar-lhes uma de mentalidade que contrastou com o que acabou no final de novembro e os homens
entrevista a Marcelo Caetano quando este instrução à imagem daquilo que tinha visto existia até essa altura. O protagonismo regressaram aos respetivos batalhões, onde
substituiu António de Oliveira Salazar na nos paraquedistas franceses ou na Legião do jornalista na preparação do curso de começaram a atuar como grupos especiais
liderança do Governo, em 1968. O trabalho Estrangeira”, explica António Neves ao Zemba sugere que Vacchi teve mais do de intervenção imediata.
foi publicado na revista Flama em outubro. Observador. que um papel acessório na criação desta António Neves refere que, mesmo antes
Ainda antes desse trabalho, em 1961, o jor- Já com a autorização do comandante tropa especial. do Natal (a 21 de dezembro de 1962), Dan-
nalista assinou um artigo na revista Notícia de batalhão, Vacchi reuniria 40 homens, te Vacchi – que, pela sua atitude já tinha
com uma reportagem sobre o “palacete divididos em dois grupos, para começar entrado em choque com o rigor militar
senhoril” em que vivia Salazar. Eram raras a revolucionar a formação dos militares
Entrar no gabinete dos oficiais de Zemba e, por isso, estava
as vezes em que o ditador abria as portas portugueses. “Aqueles dois grupos pre- do general sem pedir de volta a Luanda – voou com o ajudante
da sua casa a um jornalista (em 1952, por pararam-se bem, havia treino físico, muita licença de campo do general Deslandes até Nóqui.
exemplo, Christine Garnier tinha escrito carreira de tiro, aprenderam a progredir na Entregaram pessoalmente os crachás e
Férias com Salazar). Mas, nos registos mata, a andar em silêncio.” Era o próprio Com a passagem dos meses, o miliciano o cartão de comando aos militares dos
oficiais do antigo regime, garante Antó- jornalista quem, no terreno, com o apoio Vieira Pereira tornou-se próximo do ita- dois grupos iniciais formados no início
nio Neves, se alguma informação havia dos oficiais, dava orientações sobre como a liano, ainda em Nóqui. Ao Observador, o desse ano em Nóqui, além das divisas com
sobre a presença de Vacchi em Portugal, instrução devia ser feita. Além disso, man- antigo militar lembra que “ninguém lhe a inscrição da tropa especial. Mais tarde,
ela desapareceu. dou arrancar as proteções dos jipes usados punha travão” e conta um episódio que os homens de Zemba também receberiam
“Em 1970, quando entrei para o curso de pelas tropas portuguesas, que impediam ilustra a liberdade, pouco comum, com que as insígnias.
Comandos, ainda ouvi falar de um jornalis- os militares de saltar rapidamente quando o italiano se movia entre as altas patentes O coronel Folques recorda-se de só ter
ta italiano que fazia mil e umas coisas, que apanhados numa emboscada. militares em Angola. “Ele entrava pelo recebido esse material mais tarde. “Só fo-
tinha sido membro da Legião Estrangeira Era um contraste com a formação que quartel-general adentro, vestido à civil, mos considerados comandos depois de
e combatido na Indochina e na Argélia”, tinham recebido em Portugal antes de em- sem passar cartão ao sentinela, chegava sairmos de Angola. Eu recebi uma carta a
recorda ao Observador o tenente-coronel barcarem para Angola. E os resultados ao gabinete do general, batia à porta – ‘oh dizer que tinha passado no curso de Co-
Neves. “Mas isso era o que se dizia, porque foram imediatos. “Em meia dúzia de dias, DR
senhor general’ – e entrava.” Além disso, mandos, mandaram-me um crachá borda-
ninguém o provou.” Vacchi transformou por completo aqueles “tinha à-vontade suficiente para chegar ao do, já em 1964.”
Aos militares em Nóqui, o jornalista dois grupos, que já se diferenciavam bem quartel-general, dizer que queria ir para Nos anos seguintes, foram criados e
apresentava-se como ex-militar com ex- do resto do pessoal. Começaram a ir para a que ele tinha bastantes ideias que, para organizado e estruturado, para preparar Zemba e arranjar um avião”. extintos mais dois campos de treino de
periência de combate na Indochina. Com mata, foram alvo de emboscadas e a reação nós, mais tarde, seriam consideradas ele- uma tropa especial com características Em meados de 1962, Vieira Pereira con- comandos em Angola. E só em 1965 foi ins-
base na sua investigação, António Neves
conseguiu confirmar que Vacchi esteve no
já era completamente diferente”, assinala
António Neves.
mentares.”
No fundo, “naquele tempo, tudo o que
próprias para andar naquele teatro ope-
racional”, indica Bettencourt Rodrigues.
● Dante Vacchi está ao centro, em cima, com uma tinuava em Luanda a preparar o primeiro
curso da tropa especial, reunido com o
talado, em Luanda, o Centro de Instrução
de Comandos, de onde passariam a sair
Líbano nos primeiros anos de confronto viesse para melhorar a situação era apro- Mas isso seria mais tarde. máquina fotográfica ao peito. Anne Gauzes, a sua mis- capitão Marquilhas e com o futuro coman- regularmente novos militares formados.
entre muçulmanos e cristãos. Também veitado”. Mais do que consentidos, os re- No imediato, o Exército tentou aprovei- dante Jasmins de Freitas no quartel-gene-
Carta branca teriosa companheira, surge à esquerda na imagem.
tinha assistido a confrontos militares no
da hierarquia para
sultados conseguidos por Vacchi foram tar os ensinamentos de Vacchi. Numa “con- ral. “Íamos fazendo desenhos sobre como O desaparecimento
Médio Oriente e na Indochina. “Mas sem- apreciados pela hierarquia. De tal forma versa de duas horas, muito interessante” ia ser o campo de instrução, apontávamos
pre como repórter, como correspondente, dar instrução que, em meados de maio, cerca de um mês – escreveu Bettencourt Rodrigues no seu a nordeste de Luanda. A instalação do cam- dar instrução no campo de Comandos se o que seria preciso.” do misterioso italiano
nunca como militar.” A experiência militar e meio depois de o jornalista ter chegado diário, registando o encontro –, o italiano po de treino – o centro de instrução 21 – você for.’ Logo eu, que nunca me tinha Foi também nessas reuniões que nasceu Nesta fase, Dante Vacchi voltaria a evapo-
de Dante Vacchi começara muito antes, As informações sobre a intervenção de ao norte de Angola, e já depois de oficiais foi sondado pelo tenente-coronel sobre foi decretada pelo general Venâncio Des- voluntariado para nada na tropa... Mas a primeira versão do emblema que os co- rar-se. António Neves enviou dezenas de
quando se voluntariou para o Exército Dante Vacchi chegaram a Luanda. Os portugueses visitarem o acampamento a sua disponibilidade para dar formação landes, governador de Angola e comandan- lá pensei que entre fazer o campo de ins- mandos usam atualmente: o capacete de cartas e emails para tudo o que havia de
italiano com apenas 15 anos. relatórios sobre a situação dos militares de Nóqui, o comandante do batalhão foi às tropas portuguesas. Vacchi avançaria te das Forças Armadas no país. “O Zemba trução e preparar as coisas todas, aquilo aço e a cimitarra (uma espada de lâmina instituições ligação ao italiano. “Escrevi
destacados já referem a intervenção de convocado à capital. E devia levar consigo rapidamente, assinando um contrato com era um descampado, ninguém lá tinha ido ainda dava para passar uns dias bons em curva) brancos sobre um fundo preto, um para a Paris Match, escrevi para o Sin-
“dois grupos de comandos de Nóqui” em o italiano. o Exército onde se estabeleceu o seu salário desde que tinha começado a tropa”, des- Luanda”, diz Vieira Pereira ao Observador. ramo folhado e, em baixo, a divisa, em latim, dicato de Jornalistas Franceses, para a
Dante Vacchi: incursões pelo norte de Angola. Mas as “Houve uma reunião entre o tenente- (ia ser pago em dólares) e as condições creve Vieira Pereira. O capitão Jasmins de Freitas (atualmente “Audaces Fortuna Juvat” (“a sorte protege Associação de Repórteres de Guerra fran-
um jornalista a treinar referências a um jornalista que estava a -coronel Bettencourt Rodrigues, chefe para a colaboração. No regresso de uma viagem a Moçam- com mais de 90 anos), que também tinha os audazes”). O emblema foi desenhado ceses, mas ninguém sabia de nada. E em
Comandos formar um grupo de tropas especiais pa- do Estado-Maior do Quartel-General de bique, para gozar férias ao fim de um ano acabado de regressar de Lisboa, foi nomea- pelo capitão Jasmins de Freitas, porque Itália passou-se exatamente a mesma coisa:
reciam não levantar ondas. É preciso ter Angola, e o comandante de batalhão, que A paternidade dos de comissão em Angola, o oficial miliciano do para comandar o centro. Para dar a ins- “ele tinha mais jeito”, diz Vieira Pereira. escrevi para as revistas onde ele publicou
O antigo miliciano do norte de Itália tam- em mente o “contexto” em que a guerra se lhe descreveu tudo o que se passava” no recebeu uma convocatória para se apre- trução, foram convocados alguns oficiais: Nessas semanas de preparação do curso, fotografias ou artigos e não sabem de nada.
bém acompanhou de perto a preparação fazia, ressalva António Neves: “Não havia acampamento a norte, conta o investiga- Comandos contestada sentar de imediato em Luanda. “Quando os então capitães Marquilhas e Ramalho, Dante Vacchi pouco aparecia em Luanda. Escrevi para a editora [que publicou as
de militares de elite franceses. E essa nada. Os próprios homens que trabalharam dor António Neves. “O futuro passaria por O primeiro curso oficial de Comandos foi lá cheguei, um oficial do quartel-general o tenente Caçorino Dias, os alferes Raul Em breve ia começar um curso novo. obras do fotógrafo] e nada. Escrevi para
experiência terá sido fundamental para com ele – e eu já falei com muitos – dizem criar um centro de instrução, devidamente dado em Zemba, cerca de 300 quilómetros disse-me: ‘O Dante Vacchi diz que só vai Folques, Vasco Ramires, César Rodrigues, o Candidatava-se quem queria, mas só seria a câmara municipal da terra dele, para os
44 DANTE VACCHI OPINIÃO 45

Da circulação das espécies

Helena Matos
Onde andam os amigos de Sócrates, o jornalista ofegante e os esfomeados? Circulam
por aí porque em Portugal, as espécies, politicamente falando, não evoluem, circulam.
Em Portugal as espécies não evo- zoologicamente falando interessantíssimo, Certamente por conselho do seu pneu- uma comentadora consensual quando, já
luem, circulam. Ou mais correctamente pois estas pessoas, que de si mesmas, entre mologista, o jornalista ofegantemente in- derrotada, passou a ocupar boa parte das
dizendo, hoje estão num grupo, amanhã 2005 e 2011, declaram não ter percebido dignado transfigurou-se no jornalista ora suas intervenções a criticar Passos Coelho.
regressam àquele em que estiveram ante- nada do que se passava diante dos seus venerando, ora militante. Nada o perturba. Não só nunca mais foi ridicularizada como,
riormente e em cada uma dessas passagens olhos, estão agora, muitas delas, no grupo O jornalista ofegante deixou de perguntar. pasme-se, deixou de ser velha! Voltará a
retornam ao que já foram como se nunca dos clarividentes, perspicazes e argutos Agora anuncia, sobretudo anuncia tudo sê-lo mal critique António Costa. Note-se
tivessem deixado de o ser. Vivem o presente que integram e apoiam o actual governo. aquilo que de maravilhoso o Governo vai que este grupo só existe no ecossistema
sem passado. Dessa grande circulação das Fazem-no com idêntico proselitismo e obrigar as empresas a fazer: ora são as PSD. Encontrar um opositor ao líder do
espécies entre o último semestre de 2015 e presume-se que dotados da mesma dis- penalizações para as empresas que contra- PS em funções em qualquer jornal, revista,
o momento presente temos a destacar os ponibilidade do esqueleto para passarem tam precários; ora as quotas para obrigar rádio, televisão, boletim ou papel volante
DR

seguinte mutantes. Ou reencarnados numa a novo estado quando necessário. empresas cotadas em bolsa a incluir 33,3% tornou-se, com Sócrates e António Costa,
● O grupo de Nóqui, primeiros militares portugueses treinados por Vacchi, são a génese dos Comandos. perspectiva mais teológica: de mulheres nos seus quadros, a que se uma tarefa, biologicamente falando, quase
Os esfomeados, junta o anúncio da obrigatoriedade de impossível.
serviços do turismo, cultura da terra dele e de laço?’ De laço já podia entrar”, recorda que encontrou nas mulheres com que se no Exército italiano. Mas a experiência “apresentação das estatísticas das dispari-
Os amigos de Sócrates os indignados
de várias cidades ali à volta, a pedir infor- o antigo miliciano. “Ele baixou-se, desaper- cruzou em Angola; e, em 1967, um livro de guerra mais marcante viria mais tar-
e os desistentes
dades salariais de género, com a indicação Espécie recentemente
mações sobre ele. Fui à internet e tirei uma tou os sapatos, tirou um atacador, fez-lhe sobre as margens do Porto vinhateiro, de quando Vacchi respondeu ao apelo Eram aos milhares. Todos lhe telefona- das respetivas médias”.
lista de todas as paróquias da província de um laço que pôs ao pescoço e perguntou: chamado Porto. de Mussolini e formou uma milícia para vam. Todos o abraçavam. Contavam-nos Entre 2011 e 2015 estava um em cada esqui- Todos os dias o jornalista outrora ofe- descoberta
Verona, escrevi a todos os padres e nada, ‘E agora, já está?’ Passou pelo porteiro e Em 1967 seria também publicada, na combater a presença das tropas aliadas as graças – e tudo nele tinha graça! – re- na. Aliás, a fome estava por todo o lado. Se gante de indignação anuncia irradiando A Austrália tem o ornitorrinco, nas flores-
nada, nada.” As respostas – porque houve entrou.” revista portuguesa Eva do Natal, uma re- (norte-americanos, britânicos e soviéti- verenciavam-no, achavam que com ele o o desemprego baixava era porque os desis- felicidade que “o Governo quer” – a expres- tas do Bornéu volta e meia descobre-se um
quase sempre resposta – nunca trouxeram “Encontrámo-nos muitas vezes em Lis- portagem sobre a pesca do bacalhau, que cos) no sul de Itália. O grupo comandado PS era imbatível. Não havia opositor que, tentes já nem procuravam trabalho, pois são “o Governo quer” é agora uma espécie ser de aspecto bizarro que logo é anuncia-
pistas à investigação do tenente-coronel. boa”, recorda Vieira Pereira. Com o tempo, Vacchi fez em conjunto com a companheira pelo italiano ficou conhecido pelo nome afiançavam os amigos de Sócrates que eram não se conseguiam arrastar, mergulhados de salvo-conduto –, e quando àquilo que do como espécie até agora desconhecida
“Alguma coisa tinha de haver, mas nada, o jornalista italiano e o oficial miliciano de viagem a Angola. O casal embarcou “Os sombras”. por assim dizer a quase totalidade do país na depressão e falta de vitaminas. Diante “o Governo quer” se junta a expressão mas que afinal existe há milhões de anos e
nem aqui nem lá fora”, diz António Neves. – que já tinha deixado a realidade militar no navio-hospital Gil Eanes, que prestava “Eu sei isto porque, mais tarde, no fim falante, não fosse esmagado pela superio- de cada microfone estava um indignado. “obrigar as empresas”, os amanhãs cantam, que mal foi descoberta já está em perigo de
Nessa busca incessante por informações e estava a tirar o curso de Direito na Clás- apoio à frota bacalhoeira, e esteve nos da guerra [a Segunda Guerra Mundial], ridade argumentativa de Sócrates. Dos Agora, os esfomeados reconverteram- as notícias rebrilham e Portugal avança. extinção. Nós, para lá dos ovos dos dinos-
sobre o homem que levou o Exército a criar sica de Lisboa – mantiveram uma relação mares do norte a fazer uma reportagem ele foi preso e julgado em tribunal”, ex- membros dos seus governos jamais vinha -se em dinamizadores de programas para sauros na Lourinhã e do menino do Lape-
o Regimento de Comandos, António Neves de “amizade”, ainda que o contacto fosse que não agradou ao regime, por trazer a plica António Neves. Condenado a pena uma palavra de discordância em relação combater os erros alimentares. Os indig- do, que pôs os arqueólogos literalmente à
chegou apenas a uma prova oficial clara sendo cada vez menos regular. Mas mesmo público as difíceis condições de trabalho – de prisão, Vacchi beneficiou de uma am- ao primeiro-ministro. nados esperam por ordens para saber se
Os dirigentes do PSD chapada por causa dos cruzamentos entre
de que as autoridades civis portuguesas de Vieira Pereira é difícil obter mais do “a escravatura”, refere Vieira Pereira – em nistia para cumprir apenas alguns meses Todo este numeroso e tonitruante gru- se devem indignar um poucochinho, e se que acham que este o Cro-Magnon e o Homo sapiens neander-
sabiam da sua existência. que algumas informações vagas sobre a que se trabalhava no alto-mar. da pena. po desapareceu. Nem os dinossauros se já chegou a hora de irem buscar outra vez partido deve ser uma talensis, não tínhamos nada de relevante
Num documento da PIDE, com data de segunda passagem de Dante Vacchi por Há ainda um outro livro, Os Jesuítas Só depois começou a sua carreira como sumiram de forma tão abrupta e defini- as bandeiras negras, e os desistentes estão até que apareceu o presidente do povo.
1963, o chefe da secção da cidade angolana Lisboa. “Ele vivia cá, não sei do que vivia, em Liberdade, publicado em França e na jornalista/fotógrafo, na mesma altura em tiva. Quanto aos governos que Sócrates hiperactivos de tanto optimismo. sucursal do PS O presidente do povo é um ser que nasceu
de Carmona escreveu ao Comando-Geral a mas estava no último andar de um belís- Alemanha muito mais tarde, já em 1990. que se casou com uma franco-marroquina, chefiou, face à desresponsabilização geral A banhos devem andar a senhora cor- Não há futuro mais risonho do que inte- nas televisões, viveu nelas e prolonga o seu
dizer: “O jornalista Cesare Dante Vacchi, de simo prédio, do lado direito de quem está E, como prova do perfil eclético do italia- de quem teve dois filhos – um rapaz e uma dos seus membros, quase somos levados a -de-rosa mais a outra senhora de bege que grar este grupo. Qualquer líder do PSD mandato nelas. Correcto seria chamar-lhe
nacionalidade italiana, e a jornalista Anne virado para a Fonte Luminosa.” no, sobram duas reportagens. Um desses rapariga. Mas essas relações familiares não acreditar que esses governos foram apenas fez uma inolvidável performance do filho que tenha sofrido nessa qualidade uma presidente dos directos televisivos, mas
Dominique, de nacionalidade francesa, De política, nunca falavam. “Ele não di- trabalhos, publicado na New Look fran- perduraram. “Foi considerado persona non compostos por Sócrates, que numas horas emigrado durante a última campanha forte derrota, ou que tenha conduzido o como as televisões tendem a confundir o
solicitam uma prorrogação do visto de zia mal nem dizia bem [do Estado Novo], cesa, fala sobre uma expedição ao Tibete. grata pela família, pelas ligações duran- era primeiro-ministro, noutras ministro eleitoral. Todas estas pessoas trocaram o seu partido à irrelevância, torna-se uma povo com as audiência, o presidente do
permanência por mais de 30 dias. Aguardo não falávamos disso da mesma maneira Dante Vacchi acompanhou uma equipa de te a guerra aos fascistas. Toda a família, com pasta, noutras sem pasta, noutras grupo etnográfico do neo-realismo pela figura incontornável, um poço de saber povo é a expressão vulgarizada. Confundi-
instruções”, retrata, de memória, António que não falávamos da guerra”, diz Vieira cientistas que percorreu o país à procura incluindo os pais de Vacchi, mudou-se da secretário de Estado… Sócrates tinha in- associação cultural das maravilhas do go- e, claro, um comentador de referência. dos devem andar Eanes, Sampaio e Cavaco
Neves. “Este documento atesta que estes Pereira. A vida pessoal também não era do Ieti, o Abominável Homem das Neves. aldeia natal para uma vila.” António Neves teresse pessoal num determinado negócio verno das esquerdas. Desempenham ambos Se a par disso reconhecer a superiori- Silva, todos eles devidamente eleitos pelo
dois indivíduos estavam lá”, sublinha o assunto entre os dois, nos espaçados en- O outro retrata uma travessia do deserto conta que todos os familiares do italiano, ou contacto internacional? Numa espécie os papéis com empenho e brio. dade do líder do PS em funções face a povo, mas que não são nem foram (feliz-
tenente-coronel. Foi a única referência contros na capital. Uma eventual ligação do Saara, feita por Vacchi numa scooter com exceção de uma irmã (que terá mais de desdobramento pessoano, Sócrates pri- quem lhe sucedeu na liderança do PSD mente para eles e para nós!) considerados
explícita que encontrou em três anos de de Vacchi aos serviços secretos é assunto italiana da mítica marca Vespa. de 90 anos), já morreram. O único sobrinho meiro-ministro tratava com o seu heteró- (invariavelmente uma pessoa sem ideias, presidentes do povo. A evolução do nosso
investigação. nebuloso. Aqui, Vieira Pereira limita-se a de quem conseguiu o contacto não sabe nimo ministro da tutela dessa negociação.
O jornalista ofegante alma e consciência social), então está no endémico “presidente do povo” é, por en-
Uma noite, em Luanda, Dante Vacchi e referir a ligação do italiano às milícias do nada do tio. Sócrates estava interessado num apoio a O pobre não aguentava mais. Era a passa- Olimpo mediático. quanto, um enigma, mas o ecossistema à
Vieira Pereira foram à boîte do hotel “mais fascismo de Mussolini.
Comandante de Cesare Dante Vacchi morreu em 1994, determinada empresa? Pois ele Sócrates da forte a acompanhar as manifestações Podem até acontecer milagres. Por exem- sua volta começa a apresentar sinais de
luxuoso” da cidade. “Eu ia fardado, ele ia Do percurso do jornalista, ficaram, ain- milícias na Itália em Itália. tratava de tudo consigo mesmo. Aliás, a dos esfomeados, os acampamentos dos plo, Manuela Ferreira Leite, pessoa que forte degradação.
com umas calcinhas e uma camisa. Andar da, algumas obras assinadas por Cesare ocupada fazer fé na desresponsabilização presente, indignados, o olhar faiscante do senhor como se sabe era “a velha” quando debatia
de gravata, naquela altura, era uma coisa Dante Vacchi, em conjunto com Anne Pedro Rainho é jornalista da secção o conselho de ministros era Sócrates mais Nogueira. Os directos minuto a minuto com Sócrates, o qual claramente a esmaga- Helena Matos é colunista do Observador,
essencial. À entrada, dizem-lhe que não Gauze. Em Portugal foram três livros: Filho de uma professora primária e de de Política do Observador. As guerras de Sócrates e só Sócrates. sempre à espera que fosse aquele o dia va nos debates, nomeadamente naqueles faz pesquisa histórica para programas de
pode entrar. ‘Não posso entrar porquê?’, Angola 61-63, um álbum fotográfico de um eletricista dos caminhos de ferro ita- guerrilha que habitualmente costuma cobrir Seja como for, ninguém achou nada es- da invasão do Parlamento, da queda do em que a dita velha lhe perguntava, face ao televisão e rádio, e é autora de vários livros, entre
perguntou Vacchi ao porteiro. ‘Porque não militares; Penteados de Angola, preci- lianos, Dante Vacchi nasceu em 1925. Aos são do género metafórico, nos corredores da tranho, ninguém percebeu nada. Só falta governo. A denúncia ininterrupta das ne- anúncio de estrambólicos investimentos, os quais “Os Filhos do Zip Zip - Portugal nos
tem gravata’, respondeu-lhe o porteiro. ‘E samente com imagens dos penteados 15 anos, apresentava-se como voluntário Assembleia da República. dizer que foram todos enganados. O caso é gociações dos bastidores. “onde é que está o dinheiro?”, tornou-se Anos 70”.
44 DANTE VACCHI OPINIÃO 45

Da circulação das espécies

Helena Matos
Onde andam os amigos de Sócrates, o jornalista ofegante e os esfomeados? Circulam
por aí porque em Portugal, as espécies, politicamente falando, não evoluem, circulam.
Em Portugal as espécies não evo- zoologicamente falando interessantíssimo, Certamente por conselho do seu pneu- uma comentadora consensual quando, já
luem, circulam. Ou mais correctamente pois estas pessoas, que de si mesmas, entre mologista, o jornalista ofegantemente in- derrotada, passou a ocupar boa parte das
dizendo, hoje estão num grupo, amanhã 2005 e 2011, declaram não ter percebido dignado transfigurou-se no jornalista ora suas intervenções a criticar Passos Coelho.
regressam àquele em que estiveram ante- nada do que se passava diante dos seus venerando, ora militante. Nada o perturba. Não só nunca mais foi ridicularizada como,
riormente e em cada uma dessas passagens olhos, estão agora, muitas delas, no grupo O jornalista ofegante deixou de perguntar. pasme-se, deixou de ser velha! Voltará a
retornam ao que já foram como se nunca dos clarividentes, perspicazes e argutos Agora anuncia, sobretudo anuncia tudo sê-lo mal critique António Costa. Note-se
tivessem deixado de o ser. Vivem o presente que integram e apoiam o actual governo. aquilo que de maravilhoso o Governo vai que este grupo só existe no ecossistema
sem passado. Dessa grande circulação das Fazem-no com idêntico proselitismo e obrigar as empresas a fazer: ora são as PSD. Encontrar um opositor ao líder do
espécies entre o último semestre de 2015 e presume-se que dotados da mesma dis- penalizações para as empresas que contra- PS em funções em qualquer jornal, revista,
o momento presente temos a destacar os ponibilidade do esqueleto para passarem tam precários; ora as quotas para obrigar rádio, televisão, boletim ou papel volante
DR

seguinte mutantes. Ou reencarnados numa a novo estado quando necessário. empresas cotadas em bolsa a incluir 33,3% tornou-se, com Sócrates e António Costa,
● O grupo de Nóqui, primeiros militares portugueses treinados por Vacchi, são a génese dos Comandos. perspectiva mais teológica: de mulheres nos seus quadros, a que se uma tarefa, biologicamente falando, quase
Os esfomeados, junta o anúncio da obrigatoriedade de impossível.
serviços do turismo, cultura da terra dele e de laço?’ De laço já podia entrar”, recorda que encontrou nas mulheres com que se no Exército italiano. Mas a experiência “apresentação das estatísticas das dispari-
Os amigos de Sócrates os indignados
de várias cidades ali à volta, a pedir infor- o antigo miliciano. “Ele baixou-se, desaper- cruzou em Angola; e, em 1967, um livro de guerra mais marcante viria mais tar-
e os desistentes
dades salariais de género, com a indicação Espécie recentemente
mações sobre ele. Fui à internet e tirei uma tou os sapatos, tirou um atacador, fez-lhe sobre as margens do Porto vinhateiro, de quando Vacchi respondeu ao apelo Eram aos milhares. Todos lhe telefona- das respetivas médias”.
lista de todas as paróquias da província de um laço que pôs ao pescoço e perguntou: chamado Porto. de Mussolini e formou uma milícia para vam. Todos o abraçavam. Contavam-nos Entre 2011 e 2015 estava um em cada esqui- Todos os dias o jornalista outrora ofe- descoberta
Verona, escrevi a todos os padres e nada, ‘E agora, já está?’ Passou pelo porteiro e Em 1967 seria também publicada, na combater a presença das tropas aliadas as graças – e tudo nele tinha graça! – re- na. Aliás, a fome estava por todo o lado. Se gante de indignação anuncia irradiando A Austrália tem o ornitorrinco, nas flores-
nada, nada.” As respostas – porque houve entrou.” revista portuguesa Eva do Natal, uma re- (norte-americanos, britânicos e soviéti- verenciavam-no, achavam que com ele o o desemprego baixava era porque os desis- felicidade que “o Governo quer” – a expres- tas do Bornéu volta e meia descobre-se um
quase sempre resposta – nunca trouxeram “Encontrámo-nos muitas vezes em Lis- portagem sobre a pesca do bacalhau, que cos) no sul de Itália. O grupo comandado PS era imbatível. Não havia opositor que, tentes já nem procuravam trabalho, pois são “o Governo quer” é agora uma espécie ser de aspecto bizarro que logo é anuncia-
pistas à investigação do tenente-coronel. boa”, recorda Vieira Pereira. Com o tempo, Vacchi fez em conjunto com a companheira pelo italiano ficou conhecido pelo nome afiançavam os amigos de Sócrates que eram não se conseguiam arrastar, mergulhados de salvo-conduto –, e quando àquilo que do como espécie até agora desconhecida
“Alguma coisa tinha de haver, mas nada, o jornalista italiano e o oficial miliciano de viagem a Angola. O casal embarcou “Os sombras”. por assim dizer a quase totalidade do país na depressão e falta de vitaminas. Diante “o Governo quer” se junta a expressão mas que afinal existe há milhões de anos e
nem aqui nem lá fora”, diz António Neves. – que já tinha deixado a realidade militar no navio-hospital Gil Eanes, que prestava “Eu sei isto porque, mais tarde, no fim falante, não fosse esmagado pela superio- de cada microfone estava um indignado. “obrigar as empresas”, os amanhãs cantam, que mal foi descoberta já está em perigo de
Nessa busca incessante por informações e estava a tirar o curso de Direito na Clás- apoio à frota bacalhoeira, e esteve nos da guerra [a Segunda Guerra Mundial], ridade argumentativa de Sócrates. Dos Agora, os esfomeados reconverteram- as notícias rebrilham e Portugal avança. extinção. Nós, para lá dos ovos dos dinos-
sobre o homem que levou o Exército a criar sica de Lisboa – mantiveram uma relação mares do norte a fazer uma reportagem ele foi preso e julgado em tribunal”, ex- membros dos seus governos jamais vinha -se em dinamizadores de programas para sauros na Lourinhã e do menino do Lape-
o Regimento de Comandos, António Neves de “amizade”, ainda que o contacto fosse que não agradou ao regime, por trazer a plica António Neves. Condenado a pena uma palavra de discordância em relação combater os erros alimentares. Os indig- do, que pôs os arqueólogos literalmente à
chegou apenas a uma prova oficial clara sendo cada vez menos regular. Mas mesmo público as difíceis condições de trabalho – de prisão, Vacchi beneficiou de uma am- ao primeiro-ministro. nados esperam por ordens para saber se
Os dirigentes do PSD chapada por causa dos cruzamentos entre
de que as autoridades civis portuguesas de Vieira Pereira é difícil obter mais do “a escravatura”, refere Vieira Pereira – em nistia para cumprir apenas alguns meses Todo este numeroso e tonitruante gru- se devem indignar um poucochinho, e se que acham que este o Cro-Magnon e o Homo sapiens neander-
sabiam da sua existência. que algumas informações vagas sobre a que se trabalhava no alto-mar. da pena. po desapareceu. Nem os dinossauros se já chegou a hora de irem buscar outra vez partido deve ser uma talensis, não tínhamos nada de relevante
Num documento da PIDE, com data de segunda passagem de Dante Vacchi por Há ainda um outro livro, Os Jesuítas Só depois começou a sua carreira como sumiram de forma tão abrupta e defini- as bandeiras negras, e os desistentes estão até que apareceu o presidente do povo.
1963, o chefe da secção da cidade angolana Lisboa. “Ele vivia cá, não sei do que vivia, em Liberdade, publicado em França e na jornalista/fotógrafo, na mesma altura em tiva. Quanto aos governos que Sócrates hiperactivos de tanto optimismo. sucursal do PS O presidente do povo é um ser que nasceu
de Carmona escreveu ao Comando-Geral a mas estava no último andar de um belís- Alemanha muito mais tarde, já em 1990. que se casou com uma franco-marroquina, chefiou, face à desresponsabilização geral A banhos devem andar a senhora cor- Não há futuro mais risonho do que inte- nas televisões, viveu nelas e prolonga o seu
dizer: “O jornalista Cesare Dante Vacchi, de simo prédio, do lado direito de quem está E, como prova do perfil eclético do italia- de quem teve dois filhos – um rapaz e uma dos seus membros, quase somos levados a -de-rosa mais a outra senhora de bege que grar este grupo. Qualquer líder do PSD mandato nelas. Correcto seria chamar-lhe
nacionalidade italiana, e a jornalista Anne virado para a Fonte Luminosa.” no, sobram duas reportagens. Um desses rapariga. Mas essas relações familiares não acreditar que esses governos foram apenas fez uma inolvidável performance do filho que tenha sofrido nessa qualidade uma presidente dos directos televisivos, mas
Dominique, de nacionalidade francesa, De política, nunca falavam. “Ele não di- trabalhos, publicado na New Look fran- perduraram. “Foi considerado persona non compostos por Sócrates, que numas horas emigrado durante a última campanha forte derrota, ou que tenha conduzido o como as televisões tendem a confundir o
solicitam uma prorrogação do visto de zia mal nem dizia bem [do Estado Novo], cesa, fala sobre uma expedição ao Tibete. grata pela família, pelas ligações duran- era primeiro-ministro, noutras ministro eleitoral. Todas estas pessoas trocaram o seu partido à irrelevância, torna-se uma povo com as audiência, o presidente do
permanência por mais de 30 dias. Aguardo não falávamos disso da mesma maneira Dante Vacchi acompanhou uma equipa de te a guerra aos fascistas. Toda a família, com pasta, noutras sem pasta, noutras grupo etnográfico do neo-realismo pela figura incontornável, um poço de saber povo é a expressão vulgarizada. Confundi-
instruções”, retrata, de memória, António que não falávamos da guerra”, diz Vieira cientistas que percorreu o país à procura incluindo os pais de Vacchi, mudou-se da secretário de Estado… Sócrates tinha in- associação cultural das maravilhas do go- e, claro, um comentador de referência. dos devem andar Eanes, Sampaio e Cavaco
Neves. “Este documento atesta que estes Pereira. A vida pessoal também não era do Ieti, o Abominável Homem das Neves. aldeia natal para uma vila.” António Neves teresse pessoal num determinado negócio verno das esquerdas. Desempenham ambos Se a par disso reconhecer a superiori- Silva, todos eles devidamente eleitos pelo
dois indivíduos estavam lá”, sublinha o assunto entre os dois, nos espaçados en- O outro retrata uma travessia do deserto conta que todos os familiares do italiano, ou contacto internacional? Numa espécie os papéis com empenho e brio. dade do líder do PS em funções face a povo, mas que não são nem foram (feliz-
tenente-coronel. Foi a única referência contros na capital. Uma eventual ligação do Saara, feita por Vacchi numa scooter com exceção de uma irmã (que terá mais de desdobramento pessoano, Sócrates pri- quem lhe sucedeu na liderança do PSD mente para eles e para nós!) considerados
explícita que encontrou em três anos de de Vacchi aos serviços secretos é assunto italiana da mítica marca Vespa. de 90 anos), já morreram. O único sobrinho meiro-ministro tratava com o seu heteró- (invariavelmente uma pessoa sem ideias, presidentes do povo. A evolução do nosso
investigação. nebuloso. Aqui, Vieira Pereira limita-se a de quem conseguiu o contacto não sabe nimo ministro da tutela dessa negociação.
O jornalista ofegante alma e consciência social), então está no endémico “presidente do povo” é, por en-
Uma noite, em Luanda, Dante Vacchi e referir a ligação do italiano às milícias do nada do tio. Sócrates estava interessado num apoio a O pobre não aguentava mais. Era a passa- Olimpo mediático. quanto, um enigma, mas o ecossistema à
Vieira Pereira foram à boîte do hotel “mais fascismo de Mussolini.
Comandante de Cesare Dante Vacchi morreu em 1994, determinada empresa? Pois ele Sócrates da forte a acompanhar as manifestações Podem até acontecer milagres. Por exem- sua volta começa a apresentar sinais de
luxuoso” da cidade. “Eu ia fardado, ele ia Do percurso do jornalista, ficaram, ain- milícias na Itália em Itália. tratava de tudo consigo mesmo. Aliás, a dos esfomeados, os acampamentos dos plo, Manuela Ferreira Leite, pessoa que forte degradação.
com umas calcinhas e uma camisa. Andar da, algumas obras assinadas por Cesare ocupada fazer fé na desresponsabilização presente, indignados, o olhar faiscante do senhor como se sabe era “a velha” quando debatia
de gravata, naquela altura, era uma coisa Dante Vacchi, em conjunto com Anne Pedro Rainho é jornalista da secção o conselho de ministros era Sócrates mais Nogueira. Os directos minuto a minuto com Sócrates, o qual claramente a esmaga- Helena Matos é colunista do Observador,
essencial. À entrada, dizem-lhe que não Gauze. Em Portugal foram três livros: Filho de uma professora primária e de de Política do Observador. As guerras de Sócrates e só Sócrates. sempre à espera que fosse aquele o dia va nos debates, nomeadamente naqueles faz pesquisa histórica para programas de
pode entrar. ‘Não posso entrar porquê?’, Angola 61-63, um álbum fotográfico de um eletricista dos caminhos de ferro ita- guerrilha que habitualmente costuma cobrir Seja como for, ninguém achou nada es- da invasão do Parlamento, da queda do em que a dita velha lhe perguntava, face ao televisão e rádio, e é autora de vários livros, entre
perguntou Vacchi ao porteiro. ‘Porque não militares; Penteados de Angola, preci- lianos, Dante Vacchi nasceu em 1925. Aos são do género metafórico, nos corredores da tranho, ninguém percebeu nada. Só falta governo. A denúncia ininterrupta das ne- anúncio de estrambólicos investimentos, os quais “Os Filhos do Zip Zip - Portugal nos
tem gravata’, respondeu-lhe o porteiro. ‘E samente com imagens dos penteados 15 anos, apresentava-se como voluntário Assembleia da República. dizer que foram todos enganados. O caso é gociações dos bastidores. “onde é que está o dinheiro?”, tornou-se Anos 70”.
Um mundo
PORCOS FASCISTAS 47

Trump é fascista, o Estado islâmico

cheio de porcos é fascista, a Alemanha é nazi, a Holanda


para lá caminha. O discurso político
fascistas está a regredir para a infantilidade.
Mas fascismo e nazismo são assuntos
demasiado sérios para serem
tratados com tão pouco rigor.
José Carlos Fernandes

“Vão bardamerda mais o ção, pela parte de um tribunal alemão, de peculiaridades do comportamento social bem do período do PREC, em que “fas-
fascista!” foi a imortal frase com que o um comício que contaria com a presença humano, uma vez que são primatas que cista” era empregue indiscriminadamen-
almirante Pinheiro de Azevedo, então de Erdoğan em vídeo: “A Alemanha, que vivem em sociedade e que partilham com te para designar alguém de quem não se
primeiro-ministro de Portugal, presen- nunca conseguiu libertar-se do seu passado o Homo sapiens problemas como a hiper- gostava ou que fizera algo contrário aos
teou os trabalhadores da construção civil nazi, deixou cair a sua máscara”, acusou o tensão, a ansiedade e a dependência do interesses de quem lançava o insulto. Em-
que tinham sitiado o Palácio de São Bento jornal Takvim. Também em 2016, já tinham álcool. Um dos aspectos mais estudado bora menos frequente, ainda hoje, na lin-
e sequestrado os deputados da nação, a surgido acusações de nazismo por alguns dos C. pygerythrus são os seus gritos de guagem corrente, o apodo de “fascista” não
12 de Novembro de 1975. As tentativas de media turcos, em resposta à aprovação alarme: estes são diferenciados consoante pressupõe que o alvo tenha o Mein Kampf
argumentação e apelo à razoabilidade da pelo parlamento alemão de uma resolução o predador avistado é um leopardo, uma ou os discursos de Mussolini como livros
parte de Pinheiro de Azevedo despertavam que classificava o massacre de arménios serpente ou uma águia, e desencadeiam de cabeceira, tal como, numa quezília de
invariavelmente nos manifestantes/seques- pelos turcos, em 1915, como um genocídio. comportamentos diferentes no bando (por trânsito, o uso de “cabrão” não pressupõe
tradores uma vozearia de “Fascista! Fascis- Mas o “fascismo” tem aplicações varia- exemplo: quando os investigadores repro- que o ofensor esteja a par de casos extra-
ta!” e o almirante acabou por deixar sair a das: desde que o Estado Islâmico se tor- duzem o grito que significa “águia”, todos conjugais da esposa do ofendido.
imprecação, que não sendo um modelo de nou numa óbvia ameaça que é rotulado olham para o céu), o que demonstra que a O uso de “fascista” como insulto de
oratória e subtileza exprime genuinamente de “islamo-fascista”, uma designação que sua linguagem comporta alguma sofistica- largo espectro tem raízes no URSS das
a exasperação perante um interlocutor surgiu pela primeira vez em 1933 e que ção semântica, havendo investigadores que primeiras décadas após a Revolução de
que não está disposto a dialogar e apenas ressurgiu num discurso de George W. Bush, defendem que os gritos de alarme podem Outubro, em que a palavra servia para de-
repete um insulto que nem sequer sabe após os ataques de 11 de Setembro de 2001. exibir 30 variedades diferentes, consoante signar tudo o que fosse contrário aos inte-
bem o que significa. Também Donald Trump tem vindo a a natureza do perigo e as circunstâncias. resses da URSS e do Partido Bolchevique,
É possível que, de vez em quando, An- atrair tal designação, com os mais literatos A diferenciação nos gritos de alarme tem o que incluía não só a Alemanha, como
gela Merkel sinta, no seu íntimo, o impulso entre os descontentes com o resultado das óbvias vantagens adaptativas, mas para todas as democracias liberais e capitalis-
de dar resposta similar à do “almirante eleições americanas a apontar para su- tal é preciso que haja rigor no seu uso. Se, tas, como qualquer grupo ou tendência no
sem medo”, pois de cada vez que um país postos paralelismos com The Plot Against num bando de Homo sapiens numa praia, interior da própria URSS que não estivesse
entra em desacordo com a actuação do America (2004), um romance de “histó- alguém gritar “tubarão”, todos fugirão rigorosamente alinhada com as directri-
governo alemão, a acusação que surge na ria alternativa” (medíocre e esquemático, para terra firme, e se gritar “tigre”, todos zes oficiais, o que levou a que também
ponta da língua é “fascistas!” ou “nazis!”. diga-se) de Philip Roth em que Charles procurarão refúgio no mar. Mas se alguém o trotskysmo recebesse tal epíteto. Mas
Em Março passado, as interdições de co- Lindbergh, um simpatizante do nazismo, gritar “tigre” quando avista um tubarão as os operários que, embora destituídos de
mícios em território alemão em favor do derrota Roosevelt nas eleições presiden- consequências podem ser fatais. motivações políticas, não mostrassem zelo
alargamento dos poderes do presidente ciais americanas de 1940 e logo empreende Algo análogo pode acontecer quando se suficiente poderiam também facilmente
turco, levaram Recep Tayyip Erdoğan a uma aproximação à Alemanha de Hitler e rotula Trump de “fascista”. Trump é peri- receber o rótulo de fascistas.
proclamar: “As vossas práticas não dife- lança um programa de “americanização” goso, mas não é fascista. Analogamente, Nem as forças políticas ocidentais si-
rem das dos nazis. Julgava que há muito a dos rapazes de origem judia, através de aplicar a designação de “islamo-fascista” ao tuadas mais à esquerda no espectro po-
Alemanha abandonara tais práticas, mas um programa de reeducação em campos Estado Islâmico revela completa ignorância lítico escaparam e os sociais-democratas
enganei-me.” Quando o governo holandês de férias, enquanto cresce pelo país a dis- sobre islamismo e fascismo. Não identificar converteram-se, na terminologia oficial co-
adoptou postura similar, Erdoğan não hesi- criminação anti-sionista. correctamente o adversário é meio caminho munista em “social-fascistas”. Ironicamen-
tou em voltar para ele a acusação: “Eles são andado para se ser derrotado. É esse o risco te, tal designação acabaria, no Portugal
fascistas [...] Julgava que o nazismo tinha Porcos fascistas que se corre quando a preguiça mental nos do PREC, por ser usada pelos partidos de
acabado, mas estava errado. Na verdade, leva a usar designações equívocas. extrema-esquerda contra o Partido Comu-
está vivo no Ocidente.” e macacos nista. “Nem fascismo nem social-fascismo!
As acusações de nazismo ao governo Os macacos Chlorocebus pygerythrus (que Governo popular!”, exigiam os cartazes e
alemão tinham já surgido no Verão passa- o mundo anglófono designa por vervet
Um insulto genérico manifestos do MRPP, que se referiam ao
do, saídas não da boca de Erdoğan mas de monkeys e para o qual não há nome co- A acusação de fascismo/nazismo lançada PCP como “o partido social-fascista de
jornais turcos alinhados com o seu partido, mum em português) têm sido uma im- sobre a Alemanha e a Holanda filia-se numa Barreirinhas Cunhal”.
o AKP, em resposta à negação de autoriza- portante fonte de informação sobre as tradição que os portugueses conhecem Quando uma palavra serve para usos tão
Um mundo
PORCOS FASCISTAS 47

Trump é fascista, o Estado islâmico

cheio de porcos é fascista, a Alemanha é nazi, a Holanda


para lá caminha. O discurso político
fascistas está a regredir para a infantilidade.
Mas fascismo e nazismo são assuntos
demasiado sérios para serem
tratados com tão pouco rigor.
José Carlos Fernandes

“Vão bardamerda mais o ção, pela parte de um tribunal alemão, de peculiaridades do comportamento social bem do período do PREC, em que “fas-
fascista!” foi a imortal frase com que o um comício que contaria com a presença humano, uma vez que são primatas que cista” era empregue indiscriminadamen-
almirante Pinheiro de Azevedo, então de Erdoğan em vídeo: “A Alemanha, que vivem em sociedade e que partilham com te para designar alguém de quem não se
primeiro-ministro de Portugal, presen- nunca conseguiu libertar-se do seu passado o Homo sapiens problemas como a hiper- gostava ou que fizera algo contrário aos
teou os trabalhadores da construção civil nazi, deixou cair a sua máscara”, acusou o tensão, a ansiedade e a dependência do interesses de quem lançava o insulto. Em-
que tinham sitiado o Palácio de São Bento jornal Takvim. Também em 2016, já tinham álcool. Um dos aspectos mais estudado bora menos frequente, ainda hoje, na lin-
e sequestrado os deputados da nação, a surgido acusações de nazismo por alguns dos C. pygerythrus são os seus gritos de guagem corrente, o apodo de “fascista” não
12 de Novembro de 1975. As tentativas de media turcos, em resposta à aprovação alarme: estes são diferenciados consoante pressupõe que o alvo tenha o Mein Kampf
argumentação e apelo à razoabilidade da pelo parlamento alemão de uma resolução o predador avistado é um leopardo, uma ou os discursos de Mussolini como livros
parte de Pinheiro de Azevedo despertavam que classificava o massacre de arménios serpente ou uma águia, e desencadeiam de cabeceira, tal como, numa quezília de
invariavelmente nos manifestantes/seques- pelos turcos, em 1915, como um genocídio. comportamentos diferentes no bando (por trânsito, o uso de “cabrão” não pressupõe
tradores uma vozearia de “Fascista! Fascis- Mas o “fascismo” tem aplicações varia- exemplo: quando os investigadores repro- que o ofensor esteja a par de casos extra-
ta!” e o almirante acabou por deixar sair a das: desde que o Estado Islâmico se tor- duzem o grito que significa “águia”, todos conjugais da esposa do ofendido.
imprecação, que não sendo um modelo de nou numa óbvia ameaça que é rotulado olham para o céu), o que demonstra que a O uso de “fascista” como insulto de
oratória e subtileza exprime genuinamente de “islamo-fascista”, uma designação que sua linguagem comporta alguma sofistica- largo espectro tem raízes no URSS das
a exasperação perante um interlocutor surgiu pela primeira vez em 1933 e que ção semântica, havendo investigadores que primeiras décadas após a Revolução de
que não está disposto a dialogar e apenas ressurgiu num discurso de George W. Bush, defendem que os gritos de alarme podem Outubro, em que a palavra servia para de-
repete um insulto que nem sequer sabe após os ataques de 11 de Setembro de 2001. exibir 30 variedades diferentes, consoante signar tudo o que fosse contrário aos inte-
bem o que significa. Também Donald Trump tem vindo a a natureza do perigo e as circunstâncias. resses da URSS e do Partido Bolchevique,
É possível que, de vez em quando, An- atrair tal designação, com os mais literatos A diferenciação nos gritos de alarme tem o que incluía não só a Alemanha, como
gela Merkel sinta, no seu íntimo, o impulso entre os descontentes com o resultado das óbvias vantagens adaptativas, mas para todas as democracias liberais e capitalis-
de dar resposta similar à do “almirante eleições americanas a apontar para su- tal é preciso que haja rigor no seu uso. Se, tas, como qualquer grupo ou tendência no
sem medo”, pois de cada vez que um país postos paralelismos com The Plot Against num bando de Homo sapiens numa praia, interior da própria URSS que não estivesse
entra em desacordo com a actuação do America (2004), um romance de “histó- alguém gritar “tubarão”, todos fugirão rigorosamente alinhada com as directri-
governo alemão, a acusação que surge na ria alternativa” (medíocre e esquemático, para terra firme, e se gritar “tigre”, todos zes oficiais, o que levou a que também
ponta da língua é “fascistas!” ou “nazis!”. diga-se) de Philip Roth em que Charles procurarão refúgio no mar. Mas se alguém o trotskysmo recebesse tal epíteto. Mas
Em Março passado, as interdições de co- Lindbergh, um simpatizante do nazismo, gritar “tigre” quando avista um tubarão as os operários que, embora destituídos de
mícios em território alemão em favor do derrota Roosevelt nas eleições presiden- consequências podem ser fatais. motivações políticas, não mostrassem zelo
alargamento dos poderes do presidente ciais americanas de 1940 e logo empreende Algo análogo pode acontecer quando se suficiente poderiam também facilmente
turco, levaram Recep Tayyip Erdoğan a uma aproximação à Alemanha de Hitler e rotula Trump de “fascista”. Trump é peri- receber o rótulo de fascistas.
proclamar: “As vossas práticas não dife- lança um programa de “americanização” goso, mas não é fascista. Analogamente, Nem as forças políticas ocidentais si-
rem das dos nazis. Julgava que há muito a dos rapazes de origem judia, através de aplicar a designação de “islamo-fascista” ao tuadas mais à esquerda no espectro po-
Alemanha abandonara tais práticas, mas um programa de reeducação em campos Estado Islâmico revela completa ignorância lítico escaparam e os sociais-democratas
enganei-me.” Quando o governo holandês de férias, enquanto cresce pelo país a dis- sobre islamismo e fascismo. Não identificar converteram-se, na terminologia oficial co-
adoptou postura similar, Erdoğan não hesi- criminação anti-sionista. correctamente o adversário é meio caminho munista em “social-fascistas”. Ironicamen-
tou em voltar para ele a acusação: “Eles são andado para se ser derrotado. É esse o risco te, tal designação acabaria, no Portugal
fascistas [...] Julgava que o nazismo tinha Porcos fascistas que se corre quando a preguiça mental nos do PREC, por ser usada pelos partidos de
acabado, mas estava errado. Na verdade, leva a usar designações equívocas. extrema-esquerda contra o Partido Comu-
está vivo no Ocidente.” e macacos nista. “Nem fascismo nem social-fascismo!
As acusações de nazismo ao governo Os macacos Chlorocebus pygerythrus (que Governo popular!”, exigiam os cartazes e
alemão tinham já surgido no Verão passa- o mundo anglófono designa por vervet
Um insulto genérico manifestos do MRPP, que se referiam ao
do, saídas não da boca de Erdoğan mas de monkeys e para o qual não há nome co- A acusação de fascismo/nazismo lançada PCP como “o partido social-fascista de
jornais turcos alinhados com o seu partido, mum em português) têm sido uma im- sobre a Alemanha e a Holanda filia-se numa Barreirinhas Cunhal”.
o AKP, em resposta à negação de autoriza- portante fonte de informação sobre as tradição que os portugueses conhecem Quando uma palavra serve para usos tão
48 PORCOS FASCISTAS

tismo nacionalista transcendente e puri- são descabeladas e gritantemente falsas,


ficador através do paramilitarismo”. Para pois os apoiantes a quem se dirigem que-
Mann, para que um regime seja fascista rem acreditar nelas e são impermeáveis
são necessários estes requisitos: a qualquer argumentação racional e não
1) Nacionalismo: identificação popu- querem ouvir falar de verificação de factos.
lista para com uma nação “orgânica” ou Porém, Trump não cumpre as restantes
“integral”, acompanhada da rejeição da quatro condições. A sua ideologia – se é
diversidade étnica e de uma agressividade que tem alguma digna desse nome ou se a
extrema para com quem seja identificado que tem de manhã possui afinidades com
como ameaça à nação. a que defende à tarde – é mesmo anti-
2) Estatismo: promoção de um Estado -estatista e visa fazer emagrecer o Estado
forte e autoritário, presente em todos os e restringir as suas funções regulatórias,
domínios da vida. nomeadamente na área do ambiente ou dos
3) Transcendência: rejeição das “noções mercados financeiros, dando mais espaço
liberais e sociais-democratas de que o con- à “livre iniciativa”.
flito entre grupos de interesses é uma ca- Outro aspecto central da ideologia fascis-
racterística normal da sociedade” e que só ta é a rejeição do capitalismo, bem evidente
o fascismo permite “transcender o conflito em trechos de Mein Kampf (que acena com
social, reprimindo primeiro os que fomen- o espectro da “escravidão do capitalismo
tavam o conflito [...] e incorporando depois internacional e dos seus senhores, os ju-
as classes e outros grupos de interesses em deus”), nos discursos de Hitler, e em escritos
instituições corporativistas estatais”. de Himmler (“o capitalismo toma conta da
4) Depuração: uma vez que o fascismo maior invenção do homem, a máquina, e
encara todos os opositores – em termos com ela escraviza as pessoas”).
ideológicos ou étnicos – como inimigos, Também Mussolini era um crítico daqui-
há que removê-los da nação. Enquanto um lo a que denominava “supercapitalismo”,
“inimigo ideológico” pode ser “convenci- isto é, a forma decadente de capitalismo
do”, graças a alguma persuasão e reeduca- que ele entendia ser a dominante no seu
ção, a “ver a luz” e alterar a sua mundivi- tempo: “Nesta fase, o supercapitalismo en-
dência, o inimigo étnico é, por definição, contra a sua inspiração e justificação numa
irredutível e a única forma de livrar a nação utopia, a utopia do consumo ilimitado.
dele é expulsando-o ou exterminando-o. O ideal do supercapitalismo é a padroni-
Mann assinala, por exemplo, que, enquanto zação da raça humana desde o berço até à
o fascismo italiano e espanhol perseguiram morte.” Ora Trump não pretende combater
essencialmente inimigos ideológicos, o o capitalismo, já que ele mesmo é um dos
fascismo alemão também foi implacável seus mais exuberantes representantes, e
com o inimigo étnico (embora o discurso capitalistas são também os multimilioná-
amalgamasse tudo, ao considerar o judeu rios a quem confiou boa parte dos postos
como sendo a força sinistra por trás do de responsabilidade da sua administração.
DR capitalismo e do bolchevismo). Pelo contrário, Trump pretende dar maior
5) Paramilitarismo: as forças parami- liberdade ao capitalismo, abolindo os me-
litares, nascidas “espontaneamente” das canismos que o regulam.
bases, unidas pela “camaradagem” e com Trump poderá ser um monstro narcísico
actuação pautada pela violência radical são e arrogante, um sexista impenitente, uma
o motor da ascensão dos fascistas. “Em ne- criatura vaidosa e susceptível que convi-
nhum caso um movimento fascista foi ape- ve mal com a liberdade de expressão e
nas um ‘partido’”, era uma organização que opiniões contrárias à sua, um milionário
também dispunha de forças uniformizadas que colocará sempre os interesses do seu
e armadas, que intimidavam os adversários império empresarial acima do bem comum
e desestabilizavam a ordem vigente. do povo americano, um espírito autocrá-
tico com atitudes de criança mimada, um
mentiroso compulsivo, um campeão da
● Durante o período do PREC a palavra “fascista” era Trump é fascista? fanfarronice e um ego caprichoso e instá-
usada indiscriminadamente, para designar alguém Éé nacionalista,
verdade que o discurso de Donald Trump
como está patente na pro-
vel, sem maturidade emocional para ser
presidente de uma república das bana-
de quem não se gostava ou que fizera algo contrário messa de devolver a grandeza à América,
na constante exaltação dos valores ameri-
nas, quanto mais da nação mais poderosa
do mundo – mas dificilmente encaixa na
aos interesses de quem lançava o insulto. canos (embora a natureza recente e hete- definição de fascista. Não é por isso que é
róclita dos EUA faça com que estes sejam menos perigoso.
diversos e contraditórios, acaba por per- rasteiro e é um sinal de demissão do pen- bem mais nebulosos e discutíveis do que Seria sensato, a bem da clareza de comu-
der significado e disso se queixava, já em samento e de afunilamento da memória. os “valores germânicos” na Alemanha dos nicação, reservar o uso de “fascista” e
1944, George Orwell: “A palavra ‘fascista’ A história do século XX deu a conhecer anos 30), na identificação dos estrangeiros “nazi”, para os casos em que a sua aplica-
é hoje quase completamente destituída de os mais diversos tipos de regimes auto- como “bad hombres” (violadores, trafican- ção se justifica do ponto de vista históri-
significado.” Em 2006, o Tribunal Europeu ritários – a URSS de Estaline, a China de tes de droga, criminosos) ou terroristas. co e ideológico e arranjar um repertório
dos Direitos Humanos, ao apreciar o caso Mao, a Coreia do Norte da dinastia Kim, a É também certo que o discurso público de insultos para apostrofar criaturas que
de um jornalista que classificara alguém Grécia de Metaxas, o Chile de Pinochet, a de Trump retoma estratégias empregues julgamos desprezíveis ou detestáveis. Tal-
como “neo-fascista”, admitiu que, embora Argentina sob governo militar de 1966-73, pelo nazismo nas décadas de 1920 e 1930, vez a leitura de As Aventuras de Tintin
o jornalista não tivesse aduzido provas de o Brasil sob governo militar de 1964-80, o como sejam a) a rejeição das elites políti- e, em particular, do vociferante capitão
que o acusado era efectivamente fascista, Kampuchea de Pol Pot, a França de Vichy, cas e intelectuais vistas como corruptas Haddock, pudesse ajudar a enriquecer
tal juízo de valor era admissível dentro do a Cuba dos manos Castro, a Arábia Saudita e venais, que se propõe afastar estabele- alguns vocabulários aflitivamente curtos
quadro da liberdade de expressão. sob a dinastia Saud – mas a Alemanha de cendo uma “ligação directa” entre líder e e simplistas.
Em 1990, ainda a Internet estava na sua Hitler é sempre a eleita para comparações povo; e b) o estabelecimento de um pacto
infância e já o advogado Mike Godwin quando se pretende acusar um governo entre o líder e os seus apoiantes que faz
enunciara, prescientemente, aquela que de autoritarismo. Ora, 1) nem todos os re- com que pouca importa que o que o líder
é hoje conhecida como “lei de Godwin”: gimes autoritários são de direita, 2) nem diz seja verdade ou sequer que ele creia
“À medida que uma discussão online se todos os regimes autoritários de direita nisso, bastando que “ambas as partes se
prolonga, a probabilidade de surgir uma são fascistas, 3) nem ser ou não fascista entendam [...] na concordância ostensi-
comparação com Hitler aproxima-se de reflecte o grau de repressão e iniquidade va quanto a afirmações extremas, quanto
100%”. A “lei” dizia respeito aos fóruns de de um regime autoritário. a embriagarem-se consigo próprias e a
discussão da Usenet, mas encontra ampla perturbarem de maneira triunfante quem
confirmação na World Wide Web dos nos- Como reconhecer está de fora”. Estas são palavras escritas
sos dias e, uma vez que esta se converteu por Albrecht Koschorke a propósito de
no meio eleito pelos governantes para um fascista Mein Kampf, mas aplicam-se com justeza
fazer importantes proclamações (vejam-se Michael Mann, um dos mais reputados es- ao presente clima de “pós-verdade”, “fac- José Carlos Fernandes é colaborador
os tweets de Trump), no debate político. tudiosos do fascismo, define-o assim em tos alternativos”, “atentados na Suécia” e do Observador e um afamado ex-autor de
O argumento “ad Hitlerum” é um sinal Fascists (2004), publicado em Portugal “escutas na Trump Tower ordenadas por BD, que vive, trabalha e reflecte rodeado de
de decaimento do debate para o nível mais pelas Edições 70: “é a busca de um esta- Obama”. Pouco interessa se as afirmações cigarras, em plena serra algarvia.
48 PORCOS FASCISTAS

tismo nacionalista transcendente e puri- são descabeladas e gritantemente falsas,


ficador através do paramilitarismo”. Para pois os apoiantes a quem se dirigem que-
Mann, para que um regime seja fascista rem acreditar nelas e são impermeáveis
são necessários estes requisitos: a qualquer argumentação racional e não
1) Nacionalismo: identificação popu- querem ouvir falar de verificação de factos.
lista para com uma nação “orgânica” ou Porém, Trump não cumpre as restantes
“integral”, acompanhada da rejeição da quatro condições. A sua ideologia – se é
diversidade étnica e de uma agressividade que tem alguma digna desse nome ou se a
extrema para com quem seja identificado que tem de manhã possui afinidades com
como ameaça à nação. a que defende à tarde – é mesmo anti-
2) Estatismo: promoção de um Estado -estatista e visa fazer emagrecer o Estado
forte e autoritário, presente em todos os e restringir as suas funções regulatórias,
domínios da vida. nomeadamente na área do ambiente ou dos
3) Transcendência: rejeição das “noções mercados financeiros, dando mais espaço
liberais e sociais-democratas de que o con- à “livre iniciativa”.
flito entre grupos de interesses é uma ca- Outro aspecto central da ideologia fascis-
racterística normal da sociedade” e que só ta é a rejeição do capitalismo, bem evidente
o fascismo permite “transcender o conflito em trechos de Mein Kampf (que acena com
social, reprimindo primeiro os que fomen- o espectro da “escravidão do capitalismo
tavam o conflito [...] e incorporando depois internacional e dos seus senhores, os ju-
as classes e outros grupos de interesses em deus”), nos discursos de Hitler, e em escritos
instituições corporativistas estatais”. de Himmler (“o capitalismo toma conta da
4) Depuração: uma vez que o fascismo maior invenção do homem, a máquina, e
encara todos os opositores – em termos com ela escraviza as pessoas”).
ideológicos ou étnicos – como inimigos, Também Mussolini era um crítico daqui-
há que removê-los da nação. Enquanto um lo a que denominava “supercapitalismo”,
“inimigo ideológico” pode ser “convenci- isto é, a forma decadente de capitalismo
do”, graças a alguma persuasão e reeduca- que ele entendia ser a dominante no seu
ção, a “ver a luz” e alterar a sua mundivi- tempo: “Nesta fase, o supercapitalismo en-
dência, o inimigo étnico é, por definição, contra a sua inspiração e justificação numa
irredutível e a única forma de livrar a nação utopia, a utopia do consumo ilimitado.
dele é expulsando-o ou exterminando-o. O ideal do supercapitalismo é a padroni-
Mann assinala, por exemplo, que, enquanto zação da raça humana desde o berço até à
o fascismo italiano e espanhol perseguiram morte.” Ora Trump não pretende combater
essencialmente inimigos ideológicos, o o capitalismo, já que ele mesmo é um dos
fascismo alemão também foi implacável seus mais exuberantes representantes, e
com o inimigo étnico (embora o discurso capitalistas são também os multimilioná-
amalgamasse tudo, ao considerar o judeu rios a quem confiou boa parte dos postos
como sendo a força sinistra por trás do de responsabilidade da sua administração.
DR capitalismo e do bolchevismo). Pelo contrário, Trump pretende dar maior
5) Paramilitarismo: as forças parami- liberdade ao capitalismo, abolindo os me-
litares, nascidas “espontaneamente” das canismos que o regulam.
bases, unidas pela “camaradagem” e com Trump poderá ser um monstro narcísico
actuação pautada pela violência radical são e arrogante, um sexista impenitente, uma
o motor da ascensão dos fascistas. “Em ne- criatura vaidosa e susceptível que convi-
nhum caso um movimento fascista foi ape- ve mal com a liberdade de expressão e
nas um ‘partido’”, era uma organização que opiniões contrárias à sua, um milionário
também dispunha de forças uniformizadas que colocará sempre os interesses do seu
e armadas, que intimidavam os adversários império empresarial acima do bem comum
e desestabilizavam a ordem vigente. do povo americano, um espírito autocrá-
tico com atitudes de criança mimada, um
mentiroso compulsivo, um campeão da
● Durante o período do PREC a palavra “fascista” era Trump é fascista? fanfarronice e um ego caprichoso e instá-
usada indiscriminadamente, para designar alguém Éé nacionalista,
verdade que o discurso de Donald Trump
como está patente na pro-
vel, sem maturidade emocional para ser
presidente de uma república das bana-
de quem não se gostava ou que fizera algo contrário messa de devolver a grandeza à América,
na constante exaltação dos valores ameri-
nas, quanto mais da nação mais poderosa
do mundo – mas dificilmente encaixa na
aos interesses de quem lançava o insulto. canos (embora a natureza recente e hete- definição de fascista. Não é por isso que é
róclita dos EUA faça com que estes sejam menos perigoso.
diversos e contraditórios, acaba por per- rasteiro e é um sinal de demissão do pen- bem mais nebulosos e discutíveis do que Seria sensato, a bem da clareza de comu-
der significado e disso se queixava, já em samento e de afunilamento da memória. os “valores germânicos” na Alemanha dos nicação, reservar o uso de “fascista” e
1944, George Orwell: “A palavra ‘fascista’ A história do século XX deu a conhecer anos 30), na identificação dos estrangeiros “nazi”, para os casos em que a sua aplica-
é hoje quase completamente destituída de os mais diversos tipos de regimes auto- como “bad hombres” (violadores, trafican- ção se justifica do ponto de vista históri-
significado.” Em 2006, o Tribunal Europeu ritários – a URSS de Estaline, a China de tes de droga, criminosos) ou terroristas. co e ideológico e arranjar um repertório
dos Direitos Humanos, ao apreciar o caso Mao, a Coreia do Norte da dinastia Kim, a É também certo que o discurso público de insultos para apostrofar criaturas que
de um jornalista que classificara alguém Grécia de Metaxas, o Chile de Pinochet, a de Trump retoma estratégias empregues julgamos desprezíveis ou detestáveis. Tal-
como “neo-fascista”, admitiu que, embora Argentina sob governo militar de 1966-73, pelo nazismo nas décadas de 1920 e 1930, vez a leitura de As Aventuras de Tintin
o jornalista não tivesse aduzido provas de o Brasil sob governo militar de 1964-80, o como sejam a) a rejeição das elites políti- e, em particular, do vociferante capitão
que o acusado era efectivamente fascista, Kampuchea de Pol Pot, a França de Vichy, cas e intelectuais vistas como corruptas Haddock, pudesse ajudar a enriquecer
tal juízo de valor era admissível dentro do a Cuba dos manos Castro, a Arábia Saudita e venais, que se propõe afastar estabele- alguns vocabulários aflitivamente curtos
quadro da liberdade de expressão. sob a dinastia Saud – mas a Alemanha de cendo uma “ligação directa” entre líder e e simplistas.
Em 1990, ainda a Internet estava na sua Hitler é sempre a eleita para comparações povo; e b) o estabelecimento de um pacto
infância e já o advogado Mike Godwin quando se pretende acusar um governo entre o líder e os seus apoiantes que faz
enunciara, prescientemente, aquela que de autoritarismo. Ora, 1) nem todos os re- com que pouca importa que o que o líder
é hoje conhecida como “lei de Godwin”: gimes autoritários são de direita, 2) nem diz seja verdade ou sequer que ele creia
“À medida que uma discussão online se todos os regimes autoritários de direita nisso, bastando que “ambas as partes se
prolonga, a probabilidade de surgir uma são fascistas, 3) nem ser ou não fascista entendam [...] na concordância ostensi-
comparação com Hitler aproxima-se de reflecte o grau de repressão e iniquidade va quanto a afirmações extremas, quanto
100%”. A “lei” dizia respeito aos fóruns de de um regime autoritário. a embriagarem-se consigo próprias e a
discussão da Usenet, mas encontra ampla perturbarem de maneira triunfante quem
confirmação na World Wide Web dos nos- Como reconhecer está de fora”. Estas são palavras escritas
sos dias e, uma vez que esta se converteu por Albrecht Koschorke a propósito de
no meio eleito pelos governantes para um fascista Mein Kampf, mas aplicam-se com justeza
fazer importantes proclamações (vejam-se Michael Mann, um dos mais reputados es- ao presente clima de “pós-verdade”, “fac- José Carlos Fernandes é colaborador
os tweets de Trump), no debate político. tudiosos do fascismo, define-o assim em tos alternativos”, “atentados na Suécia” e do Observador e um afamado ex-autor de
O argumento “ad Hitlerum” é um sinal Fascists (2004), publicado em Portugal “escutas na Trump Tower ordenadas por BD, que vive, trabalha e reflecte rodeado de
de decaimento do debate para o nível mais pelas Edições 70: “é a busca de um esta- Obama”. Pouco interessa se as afirmações cigarras, em plena serra algarvia.
ELIZABETH HOLMES 51

Como a “menina querida”


das startups perdeu
8 mil milhões em 8 meses
Ana Pimentel
Foi a mulher mais jovem a integrar o ranking de milionários da Forbes
e o rosto de um dos maiores escândalos da comunidade tecnológica.
Esta é a história da queda vertiginosa da startup de Elizabeth Holmes.
Era a “menina querida” dos investi- multimilionária, nem milionária, nem rica. se arrastou nas páginas dos jornais e nos dois na Califórnia e um na Pensilvânia.
dores, a “próxima Steve Jobs”, a mulher A fortuna de Elizabeth Holmes valia zero. tribunais norte-americanos. E que acabou E tinha feito lobby no estado do Arizona
que ia revolucionar a indústria mundial Pelo meio, um nome: John Carreyrou. por levar à demissão de 340 pessoas. Se- para que fosse possível realizar os testes
das análises ao sangue. Tornou-se num E uma data: 16 de outubro de 2015. O dia gundo o que vários ex-colaboradores da sem prescrição médica. Holmes prometia
dos maiores escândalos de alegada fraude em que as pedras do castelo da rainha da Theranos contaram ao jornalista do Wall resultados rápidos a um custo inferior ao
da comunidade tecnológica. A Elizabeth tecnologia começaram a ruir. Onde: no Street Journal, a tecnologia com que a praticado pelos grandes laboratórios. E
Holmes (e à sua Theranos) não lhe faltou Wall Street Journal. startup conquistou o mercado – e que se como não disponibilizava o sistema Edi-
nada: honras de capa nas mais prestigiadas chamava Edison – era capaz de realizar, em son a outras marcas, não precisava da
revistas de negócios, entrada direta para o Como John Carreyrou dezembro de 2014, apenas 15 testes (a The- aprovação da FDA para começar a ven-
ranking dos mais ricos da Forbes, rasgados ranos anunciava, na altura, que conseguia der os testes. Ainda assim – e segundo o
elogios de Silicon Valley – onde estão os destronou a rainha da realizar 240 testes). Mais: desconfiavam da que Holmes disse à CNBC – a tecnológica
players de topo da inovação tecnológica tecnologia precisão dos poucos resultados que tinham, enviou mais de 130 pedidos de aprovação
– e comparações imediatas aos membros Foi um dos escândalos empresariais que fazendo chegar as suspeitas ao regulador. ao regulador. Só se soube do parecer da
do clube mais apetecível da comunidade marcou 2016. Elizabeth Holmes cativou A polémica estava lançada. Em resposta FDA sobre um deles: o que permitia a
empreendedora, o dos famosos college empreendedores, investidores e jornalistas ao jornal, o advogado da empresa, David deteção de herpes.
dropouts – aqueles que se tornaram multi- com uma tecnologia que pretendia revolu- Boies, afirmou que os laboratórios da The-
milionários sem nunca terem concluído os cionar a indústria das análises ao sangue. ranos cumpriam com todas as regulações Do Wall Street Journal
estudos na universidade. Mark Zuckerberg Aos 19 anos, deixou de estudar para se estatais, que a forma como a empresa tinha
(fundador do Facebook), Steve Jobs (fun- dedicar em exclusivo ao desenvolvimento promovido a sua tecnologia não foi exage- ao mea culpa de
dador da Apple) ou Bill Gates (fundador da de uma metodologia que permitia, através rada e que já tinham utilizado o sistema Holmes
Microsoft) são apenas alguns dos exemplos. de uma só gota de sangue, fazer análises Edison para realizar milhões de testes em Apesar de poder dispensar a FDA, a The-
A imprensa internacional e de especia- a mais de 30 doenças, obtendo resultados pacientes. A Jim Cramer, apresentador ranos não podia evitar a passagem pelo
lidade rendeu-se a Elizabeth Holmes, e num curto espaço de tempo (ao contrá- do programa Mad Money, na CNBC, Eli- carimbo do organismo público Centers for
depressa a história da jovem de 19 anos que rio dos laboratórios tradicionais). E tudo zabeth Holmes disse estar “chocada” com Medicare & Medicaid Services (CMS), ao
deixou o curso de Engenharia Química a porque tinha medo de agulhas. Onze anos a notícia do Wall Street Journal. “Isto é o qual todos os laboratórios têm de provar
meio, na Universidade de Stanford, para depois, a Theranos foi considerada a star- que acontece quando estás a tentar mudar que os seus testes produzem resultados
lançar um negócio próprio, virou refe- tup de tecnologia médica mais sexy do as coisas. Primeiro, pensam que és doido, rigorosos e precisos. De acordo com os
rência. Tinha tudo para ser inspiradora: mercado. E a mais valiosa da esfera privada. depois lutam contra ti e, de repente, mudas emails a que o Wall Street Journal teve
a persistência dos 200 telefonemas a in- Por cada ação que os investidores compra- o mundo. Devo dizer que, pessoalmente, acesso, a Theranos produziu testes em dois
vestidores, o medo das agulhas, os 3 mil ram na última ronda, pagaram cerca de 17 fiquei chocada por ver o Wall Street Jour- equipamentos diferentes: no Edison, que
dólares em poupanças que depositou num dólares (16 euros). nal publicar algo assim”, disse. utilizava a tecnologia desenvolvida pela
sonho que se chamava Theranos, a fé de No dia em que o Wall Street Journal Holmes não se ficou por palavras va- Theranos, e em máquinas de outros labo-
um professor. E o facto de ser mulher – a revelou que, afinal, a tecnologia da The- gas. Afirmou que tinha enviado milhares ratórios. Nalguns casos, os testes feitos em
primeira mulher a estar entre os líderes de ranos só era responsável por uma pequena de páginas de documentação ao jornal ambos os equipamentos deram respostas
topo dos principais unicórnios (startups percentagem (10%) dos mais de 200 tes- para demonstrar que as acusações dos ex- diferentes.
avaliadas em mais de mil milhões de dó- tes que anunciava, a startup valia 9 mil -colaboradores eram falsas, e que as fontes Ao perceberem que os resultados eram
lares) do mundo. A mulher mais jovem a milhões de dólares. Oito meses depois, citadas pelo Wall Street Journal tinham divergentes, os técnicos da Theranos ques-
entrar para a lista dos multimilionários da valia 800 milhões (760 milhões de euros). pedido à Theranos cerca de 25 mil dóla- tionaram Sunny Balwani, responsável pela
Forbes, com uma fortuna pessoal avaliada Para a Forbes, as razões para a revisão em res para se encontrarem com Elizabeth parte operacional da Theranos, sobre que
em 4,5 mil milhões de dólares (4,2 mil baixa (que se traduzia numa desvaloriza- Holmes. Objetivo: explicarem-lhe o que amostras deviam enviar para a CMS (se a
milhões de euros). Tinha 30 anos. ção superior a 8 mil milhões de dólares) conversaram com o jornalista. Apesar de que foi testada no sistema Edison ou nos
De golas altas pretas, à semelhança de eram três: havia demasiada informação ter demorado cinco meses a dar uma res- outros equipamentos). A resposta foi clara.
Steve Jobs, Elizabeth Holmes começou a dar em falta sobre a atividade da empresa posta ao pedido de entrevista do jornal, Balwani deu-lhes ordem para pararem de
nas vistas na última ronda de investimento (os relatórios com dados sobre os testes Holmes diz que se ofereceu para levar a realizar testes no sistema Edison e reportar
da Theranos, em junho de 2014, que avaliou nunca foram publicados); a Theranos já tecnologia Edison à redação e mostrar, ao apenas os resultados obtidos através de
a empresa em cerca de 9 mil milhões de tinha sido proibida pela entidade regula- vivo e a cores, como esta funcionava, mas equipamentos de outras empresas. Mais:
dólares (8,5 mil milhões de euros). Com dora norte-americana, a Food and Drugs que a publicação recusou recebê-la. “Infe- disse-lhes que, “as amostras nunca deviam
a entrada para o clube dos unicórnios, a Administration (FDA), de prosseguir com lizmente, neste caso, o jornalista focou-se ter sido testadas no sistema Edison, para
fortuna da empreendedora sensação de os testes; e os especialistas da área não em fontes que conhecemos em 2004 e em começar”, conta o The Wall Street Journal.
Silicon Valley foi revista em alta. Detentora acreditavam que a Theranos pudesse valer 2005 e que me tinham dito que nunca ia Em janeiro de 2016, a CMS enviou uma
de 50% do capital acionista da empresa, em tanto como os seus concorrentes, onde se conseguir construir esta empresa e ter carta à Theranos, afirmando que os seus
outubro de 2014, viu o seu nome entrar para inclui o Laboratory Corp. of America, que sucesso”, afirmou. testes “colocavam em risco imediato a saú-
o ranking das 400 pessoas mais ricas dos tem uma capitalização bolsista de 13 mil A Theranos tinha começado a disponi- de e a segurança dos pacientes” e dava 10
Estados Unidos, segundo a Forbes. Menos milhões de dólares. bilizar testes ao mercado no final de 2013. dias à empresa de Elizabeth Holmes “para
de dois anos depois, chegou a correção. Afi- A reportagem assinada por John Car- Desde então, tinha aberto 42 centros para corrigir as deficiências observadas”. O su-
nal, a fortuna de Elizabeth Holmes não era reyrou foi o início de um processo que recolha de sangue na zona de Phoenix, pervisor comunicou ainda que a startup
ELIZABETH HOLMES 51

Como a “menina querida”


das startups perdeu
8 mil milhões em 8 meses
Ana Pimentel
Foi a mulher mais jovem a integrar o ranking de milionários da Forbes
e o rosto de um dos maiores escândalos da comunidade tecnológica.
Esta é a história da queda vertiginosa da startup de Elizabeth Holmes.
Era a “menina querida” dos investi- multimilionária, nem milionária, nem rica. se arrastou nas páginas dos jornais e nos dois na Califórnia e um na Pensilvânia.
dores, a “próxima Steve Jobs”, a mulher A fortuna de Elizabeth Holmes valia zero. tribunais norte-americanos. E que acabou E tinha feito lobby no estado do Arizona
que ia revolucionar a indústria mundial Pelo meio, um nome: John Carreyrou. por levar à demissão de 340 pessoas. Se- para que fosse possível realizar os testes
das análises ao sangue. Tornou-se num E uma data: 16 de outubro de 2015. O dia gundo o que vários ex-colaboradores da sem prescrição médica. Holmes prometia
dos maiores escândalos de alegada fraude em que as pedras do castelo da rainha da Theranos contaram ao jornalista do Wall resultados rápidos a um custo inferior ao
da comunidade tecnológica. A Elizabeth tecnologia começaram a ruir. Onde: no Street Journal, a tecnologia com que a praticado pelos grandes laboratórios. E
Holmes (e à sua Theranos) não lhe faltou Wall Street Journal. startup conquistou o mercado – e que se como não disponibilizava o sistema Edi-
nada: honras de capa nas mais prestigiadas chamava Edison – era capaz de realizar, em son a outras marcas, não precisava da
revistas de negócios, entrada direta para o Como John Carreyrou dezembro de 2014, apenas 15 testes (a The- aprovação da FDA para começar a ven-
ranking dos mais ricos da Forbes, rasgados ranos anunciava, na altura, que conseguia der os testes. Ainda assim – e segundo o
elogios de Silicon Valley – onde estão os destronou a rainha da realizar 240 testes). Mais: desconfiavam da que Holmes disse à CNBC – a tecnológica
players de topo da inovação tecnológica tecnologia precisão dos poucos resultados que tinham, enviou mais de 130 pedidos de aprovação
– e comparações imediatas aos membros Foi um dos escândalos empresariais que fazendo chegar as suspeitas ao regulador. ao regulador. Só se soube do parecer da
do clube mais apetecível da comunidade marcou 2016. Elizabeth Holmes cativou A polémica estava lançada. Em resposta FDA sobre um deles: o que permitia a
empreendedora, o dos famosos college empreendedores, investidores e jornalistas ao jornal, o advogado da empresa, David deteção de herpes.
dropouts – aqueles que se tornaram multi- com uma tecnologia que pretendia revolu- Boies, afirmou que os laboratórios da The-
milionários sem nunca terem concluído os cionar a indústria das análises ao sangue. ranos cumpriam com todas as regulações Do Wall Street Journal
estudos na universidade. Mark Zuckerberg Aos 19 anos, deixou de estudar para se estatais, que a forma como a empresa tinha
(fundador do Facebook), Steve Jobs (fun- dedicar em exclusivo ao desenvolvimento promovido a sua tecnologia não foi exage- ao mea culpa de
dador da Apple) ou Bill Gates (fundador da de uma metodologia que permitia, através rada e que já tinham utilizado o sistema Holmes
Microsoft) são apenas alguns dos exemplos. de uma só gota de sangue, fazer análises Edison para realizar milhões de testes em Apesar de poder dispensar a FDA, a The-
A imprensa internacional e de especia- a mais de 30 doenças, obtendo resultados pacientes. A Jim Cramer, apresentador ranos não podia evitar a passagem pelo
lidade rendeu-se a Elizabeth Holmes, e num curto espaço de tempo (ao contrá- do programa Mad Money, na CNBC, Eli- carimbo do organismo público Centers for
depressa a história da jovem de 19 anos que rio dos laboratórios tradicionais). E tudo zabeth Holmes disse estar “chocada” com Medicare & Medicaid Services (CMS), ao
deixou o curso de Engenharia Química a porque tinha medo de agulhas. Onze anos a notícia do Wall Street Journal. “Isto é o qual todos os laboratórios têm de provar
meio, na Universidade de Stanford, para depois, a Theranos foi considerada a star- que acontece quando estás a tentar mudar que os seus testes produzem resultados
lançar um negócio próprio, virou refe- tup de tecnologia médica mais sexy do as coisas. Primeiro, pensam que és doido, rigorosos e precisos. De acordo com os
rência. Tinha tudo para ser inspiradora: mercado. E a mais valiosa da esfera privada. depois lutam contra ti e, de repente, mudas emails a que o Wall Street Journal teve
a persistência dos 200 telefonemas a in- Por cada ação que os investidores compra- o mundo. Devo dizer que, pessoalmente, acesso, a Theranos produziu testes em dois
vestidores, o medo das agulhas, os 3 mil ram na última ronda, pagaram cerca de 17 fiquei chocada por ver o Wall Street Jour- equipamentos diferentes: no Edison, que
dólares em poupanças que depositou num dólares (16 euros). nal publicar algo assim”, disse. utilizava a tecnologia desenvolvida pela
sonho que se chamava Theranos, a fé de No dia em que o Wall Street Journal Holmes não se ficou por palavras va- Theranos, e em máquinas de outros labo-
um professor. E o facto de ser mulher – a revelou que, afinal, a tecnologia da The- gas. Afirmou que tinha enviado milhares ratórios. Nalguns casos, os testes feitos em
primeira mulher a estar entre os líderes de ranos só era responsável por uma pequena de páginas de documentação ao jornal ambos os equipamentos deram respostas
topo dos principais unicórnios (startups percentagem (10%) dos mais de 200 tes- para demonstrar que as acusações dos ex- diferentes.
avaliadas em mais de mil milhões de dó- tes que anunciava, a startup valia 9 mil -colaboradores eram falsas, e que as fontes Ao perceberem que os resultados eram
lares) do mundo. A mulher mais jovem a milhões de dólares. Oito meses depois, citadas pelo Wall Street Journal tinham divergentes, os técnicos da Theranos ques-
entrar para a lista dos multimilionários da valia 800 milhões (760 milhões de euros). pedido à Theranos cerca de 25 mil dóla- tionaram Sunny Balwani, responsável pela
Forbes, com uma fortuna pessoal avaliada Para a Forbes, as razões para a revisão em res para se encontrarem com Elizabeth parte operacional da Theranos, sobre que
em 4,5 mil milhões de dólares (4,2 mil baixa (que se traduzia numa desvaloriza- Holmes. Objetivo: explicarem-lhe o que amostras deviam enviar para a CMS (se a
milhões de euros). Tinha 30 anos. ção superior a 8 mil milhões de dólares) conversaram com o jornalista. Apesar de que foi testada no sistema Edison ou nos
De golas altas pretas, à semelhança de eram três: havia demasiada informação ter demorado cinco meses a dar uma res- outros equipamentos). A resposta foi clara.
Steve Jobs, Elizabeth Holmes começou a dar em falta sobre a atividade da empresa posta ao pedido de entrevista do jornal, Balwani deu-lhes ordem para pararem de
nas vistas na última ronda de investimento (os relatórios com dados sobre os testes Holmes diz que se ofereceu para levar a realizar testes no sistema Edison e reportar
da Theranos, em junho de 2014, que avaliou nunca foram publicados); a Theranos já tecnologia Edison à redação e mostrar, ao apenas os resultados obtidos através de
a empresa em cerca de 9 mil milhões de tinha sido proibida pela entidade regula- vivo e a cores, como esta funcionava, mas equipamentos de outras empresas. Mais:
dólares (8,5 mil milhões de euros). Com dora norte-americana, a Food and Drugs que a publicação recusou recebê-la. “Infe- disse-lhes que, “as amostras nunca deviam
a entrada para o clube dos unicórnios, a Administration (FDA), de prosseguir com lizmente, neste caso, o jornalista focou-se ter sido testadas no sistema Edison, para
fortuna da empreendedora sensação de os testes; e os especialistas da área não em fontes que conhecemos em 2004 e em começar”, conta o The Wall Street Journal.
Silicon Valley foi revista em alta. Detentora acreditavam que a Theranos pudesse valer 2005 e que me tinham dito que nunca ia Em janeiro de 2016, a CMS enviou uma
de 50% do capital acionista da empresa, em tanto como os seus concorrentes, onde se conseguir construir esta empresa e ter carta à Theranos, afirmando que os seus
outubro de 2014, viu o seu nome entrar para inclui o Laboratory Corp. of America, que sucesso”, afirmou. testes “colocavam em risco imediato a saú-
o ranking das 400 pessoas mais ricas dos tem uma capitalização bolsista de 13 mil A Theranos tinha começado a disponi- de e a segurança dos pacientes” e dava 10
Estados Unidos, segundo a Forbes. Menos milhões de dólares. bilizar testes ao mercado no final de 2013. dias à empresa de Elizabeth Holmes “para
de dois anos depois, chegou a correção. Afi- A reportagem assinada por John Car- Desde então, tinha aberto 42 centros para corrigir as deficiências observadas”. O su-
nal, a fortuna de Elizabeth Holmes não era reyrou foi o início de um processo que recolha de sangue na zona de Phoenix, pervisor comunicou ainda que a startup
52 ELIZABETH HOLMES OPINIÃO 53

podia ser alvo de multas diárias por não

O regresso da austeridade
estar a cumprir com as condições exigidas
pelos serviços de saúde. Em resposta, Hol-
mes afirmou que “os testes levados a cabo
pela CMS tinham sido realizados há vários

(quase) sem disfarces


meses e não refletiam o estado atual do
laboratório”. “Quando esta investigação
ocorreu, estávamos a realizar, em simul-
tâneo, uma revisão aos procedimentos e
processos dos nossos laboratórios, para
assegurar que temos o sistema com a me-
lhor qualidade de que há memória”, lia-se
no comunicado.
Começou a avalanche. Dois meses de-
pois, a CMS enviou nova carta informando
que ia banir Elizabeth Holmes e Sunny
Balwani da indústria, proibindo-os de
exercer atividade na área dos cuidados
médicos durante dois anos. As ameaças
não se ficaram por aqui e envolveram mais
reguladores: o unicórnio das análises ao
sangue podia perder a licença para operar
se a Theranos não resolvesse os problemas
detetados nos laboratórios que detinha
na Califórnia. Em maio, o mea culpa: Eli-
zabeth Holmes notificou os reguladores
para a saúde norte-americana, incluindo
a CMS, de que tinha corrigido as milhares

Helena Garrido
de análises ao sangue que efetuou em 2014
e 2015, anulando alguns desse resultados,
e notificando os pacientes e médicos das
alterações.
E 3, 2, 1. Em junho, a Forbes revê em bai-
xa a avaliação da Theranos e desvaloriza-a
em mais de 8 mil milhões de dólares. Em O mais extraordinário dos tempos que vivemos em Portugal é a brutal diferença
julho, a Theranos perde a licença para
operar e Elizabeth Holmes é banida da entre aquela que é a mensagem política do Governo e aquilo que ele, de facto, faz.
indústria durante dois anos, recorrendo
da decisão. E, em outubro, a jovem de 32 Só agora se começa a assumir a austeridade que sempre se praticou.
anos anuncia que vai despedir 340 cola-
boradores da empresa e fechar os vários A política orçamental do Gover- o défice público. Foi tudo de facto histó- foi a troika. A diferença mais significativa baixas e a avaliação do risco do país po-
laboratórios clínicos da empresa. Tinha no de António Costa foi, e promete ser, rico. O défice mais baixo da democracia em relação aos anos da troika está na dose. deria já ter subido. No caso do rating é,
passado um ano desde a primeira notícia mais austera do que a concretizada pelo e um dos saldos primários mais elevados O medicamento para a grave doença das aliás, interessante verificar que só agora,
publicada no Wall Street Journal. último ano de Governo de Pedro Passos do euro são devidamente acompanhados finanças públicas tem a mesma substância há uma semana, é que começam a surgir
“Depois de termos passado muitos me- Coelho. As perspectivas desenhadas no por cativações de despesa historicamente activa: apertar o cinto de quem trabalha análises sobre a possibilidade de o risco de
ses a avaliar as nossas forças e as nossas Programa de Estabilidade e Crescimento elevados, cortes recorde no investimento para o Estado e de todos os que pagam Portugal melhorar a curto prazo. Foi o caso
fraquezas, decidimos estruturar a nossa 2017-2021 dizem-nos exactamente isso: a público e o já tradicional perdão fiscal. impostos. As doses da medicação são agora do Commerzbank – a admitir que a DBRS
empresa em torno de um modelo mais Holmes. Só a cadeia de farmácias Walgre- omissões”. “Os réus estão envolvidos numa Jennifer Lawrence página da designada austeridade não foi Claro que a recuperação da economia e obviamente mais baixas, porque não esta- pode melhorar o ‘rating’ de Portugal – ou
alinhado com os nossos valores e missão. ens – que era a grande parceira da The- fraude de valores mobiliários e outras vio- será Elizabeth Holmes nem será virada. Como não podia ser, se especialmente o aumento do emprego aju- mos à beira da bancarrota e sem acesso a da Standard & Poor’s, a sistematizar as
Decidimos encerrar os nossos laborató- ranos para a comercialização dos testes lações por terem induzido fraudulenta- o PS continuasse a ser aquilo que sempre daram. Mas até isso pode ter surpreendido financiamento. Agora a austeridade pode condições em que a sua classificação pode
rios clínicos e centros de bem-estar The- – processou a empresa em 140 milhões de mente a PFM a investir e a manter os seus no cinema foi, um partido que defende a integração o próprio Governo – nunca o saberemos. aproveitar a recuperação já obtida com a subir: se a economia recuperar e o crédito
ranos, que afetarão aproximadamente dólares (montante que se crê ser igual ao investimentos na empresa”, lia-se numa E agora que “a bolha em que estava a The- de Portugal no euro e o respeito pelos É apenas uma hipótese a colocar face ao terapia de choque do passado e a retoma da malparado baixar. Parece óbvio, mas até
340 funcionários no Arizona, Califórnia investido pela empresa na Theranos). A carta enviada pelo fundo ao Wall Street ranos rebentou”, a história da queda verti- compromissos da República Portuguesa resultado de 2% obtido no défice — bastava economia ditada em grande parte pelo tu- há bem pouco tempo o problema não era
e Pensilvânia. Estamos profundamente farmacêutica queixa-se de que foi “consis- Journal. ginosa de Elizabeth Holmes e da Thernaos em relação aos tratados que assinou e à ter chegado aos 2,3% para se considerar um rismo. Além disso, e não menos importante, colocado desta forma. Pelo contrário, o que
gratos aos membros da nossa equipa, tentemente enganada pela Theranos” – e Já o investidor Robert Colman, cofun- prepara-se para chegar ao cinema. No papel dívida que contraiu. bom resultado, mesmo do ponto de vista da criou-se para o “doente” um ambiente de se discutia era o risco de baixar o rating e
muitos dos quais dedicaram vários anos que nem sequer foi informada dos 31 mil dador da empresa de investimento Ro- da rainha da tecnologia estará Jennifer La- O mais extraordinário dos tempos que prova da sustentabilidade da dívida (prova e descontracção, garantido pelo discurso do não as condições para o subir.
à Theranos e à nossa missão”, escreveu resultados de testes ao sangue que tinha bertson Stephens, processou a Theranos wrence e na realização Adam McKay, que vivemos em Portugal é a brutal diferença não realidade). Olhando para trás, percebe- Governo de fim da austeridade e pela alian- Em termos gerais, neste exercício de rea-
Holmes numa carta aberta, publicada no fornecido aos seus clientes até 11 de junho no final de novembro por esta ter “enga- esteve por detrás das câmaras em The Big entre aquela que é a mensagem política -se que o Governo pode ter sobre-reagido ça com o PCP – o dono das manifestações lidade alternativa, é possível admitir que o
site da empresa. e que foram anulados, conta a Fortune. A nado consistente e deliberadamente os Short – A Queda de Wall Street, filme ins- e aquilo que, de facto, o Governo faz. É e até desperdiçado um das armas de que de rua – e com o Bloco – de que se pode crescimento da economia seria mais eleva-
De startup de tecnologia médica mais farmacêutica só soube da anulação pela seus investidores”, promovendo de forma pirado na obra de Michael Lewis, que versa o ditado popular “faz o que eu digo, não pode precisar mais tarde, a do perdão fiscal. dizer, simplificadamente, que influencia do por via da confiança de quem investe já
sexy do mercado para um laboratório clí- comunicação social. desproporcional a sua tecnologia. “Milha- sobre a crise financeira de 2007 e de 2008. faças o que eu faço” adaptado numa fór- Quando se olha para o que se passou mais o espaço da opinião publicada. que a confiança de quem consome – para
nico padrão. Em agosto de 2016, Holmes A farmacêutica acusa a Theranos de ter res de investidores na Theranos, incluindo O filme que vai contar a história daquela mula do género “acredita no que eu digo, nas contas públicas em 2016 e aquilo que O que poderia ser diferente sem nunca a qual se dirigiu o actual Governo – teve
anunciou que a empresa ia dedicar-se ao quebrado todas as promessas que tinha aqueles que participam nesta ação judicial, que já foi “o próximo Steve Jobs” chamar- sem olhar para as estatísticas, nem para o o Governo promete fazer este ano e nos termos a certeza de que o seria? O ano de um efeito mais limitado, que pode também
desenvolvimento de um produto novo, a feito e de ter “falhado os padrões de quali- foram alimentados por mentiras contínuas -se-á Bad Blood (“Mau Sangue”, em portu- dinheiro que te entra de facto no bolso e próximos, através do Programa de Estabi- 2016 poderia ter sido menos turbulento, ser explicado pela falta de confiança do
plataforam miniLab, através da qual pre- dade mais básicos bem como as exigências da presidente da empresa, que promovia guês) e vai ser produzido pela Legendary muito menos para o teu poder de compra”. lidade e Crescimento 2017-2021 (PEC17-21), menos volátil, com um horizonte mais sector privado.
tendem comercializar minilaboratórios, legais”. Mais: diz que a empresa de Holmes uma tecnologia que ‘ia mudar o mundo’ Pictures (responsável pela produção de Portugal já tinha sido um caso de estudo percebemos que António Costa persegue claro, aquele que só agora se está a con- Mas o ponto a que chegámos hoje permi-
automatizados, capazes de testar pequenos anulou 11,3% dos testes que fez aos clientes e ‘revolucionar a indústria’”, afirmou o filmes biográficos como Straight Outta pela resistência que os cidadãos revelaram o mesmo objectivo do seu antecessor Pe- seguir ter. Ou seja, a margem de manobra te-nos respirar de alívio, porque as piores
volumes de amostras de pacientes mais vul- da cadeia de farmácias. Elizabeth Holmes advogado da ação, Steve Berman. Compton), que pagou cerca de 3 milhões perante a dose de austeridade a que foram dro Passos Coelho: controlar o “monstro” política que António Costa ganhou em perspectivas não se confirmaram. O Gover-
neráveis, como os de oncologia, pediatria respondeu em carta aberta, afirmando que O processo mais recente já data de 2017. de dólares (2,8 milhões de euros) para ficar submetidos, especialmente em 2012. Volta financeiro em que se transformaram as 2016 teve como preço a incerteza gerada no não fez o que disse que ia fazer e deu-nos
ou de cuidados intensivos. Ou seja, nada a farmacêutica também “tinha falhado O estado do Arizona acusa a Theranos de com os direitos do filme. O orçamento para agora a ser um caso de estudo, para econo- administrações públicas e especialmente o pelo discurso agressivo contra a Europa uma austeridade disfarçada, com menos
a ver com a estratégia inicial. “Temos a consistentemente os compromissos que estar por detrás de um “esquema de longa eternizar a polémica da Theranos ronda os mistas e políticos, que queiram investigar Estado central. E percebe-se melhor agora e a dita austeridade e pelas medidas de investimento e mais impostos indirectos, da-
sorte de os nossos parceiros e investidores tinha com a Theranos”. “Por causa da má duração de atos danosos e falsas declara- 50 milhões de dólares, segundo o IMDb. como se aplica uma política de austerida- do que há um ano porque, finalmente, An- “reversão” adoptadas nos primeiros meses quela que só conseguimos perceber passado
acreditarem fortemente na nossa missão gestão da nossa parceria e agora deste ções”, num processo de alegada “fraude Sobre a Theranos, a Fox Business estima de financeira, com o apoio da esquerda tónio Costa pode começar a mostrar o seu de governação. Como é que esse preço se algum tempo, animados (ou preocupados)
de termos testes menos invasivos e mais processo, a Walgreens causou danos sig- aos consumidores”. As autoridades do es- que a empresa não vai conseguir resistir a tradicional e moderna, e convencendo a jogo, condicionados que estão os partidos consubstanciou na economia? Não sabe- que estávamos com o que António Costa e
económicos, e de termos a estrada que nificativos à Theranos e aos seus inves- tado afirmam que a empresa de Holmes tanta polémica e que vai fechar portas este população em geral de que a sua vida está de esquerda que o apoiam. mos. Resta-nos admitir a hipótese de que o Mário Centeno nos diziam. E podemos ainda
nos vai permitir realizar a nossa visão”, tidores. Responderemos vigorosamente violou o Arizona’s Consumer Fraud Act e ano. Quanto a John Carreyrou, ganhou um e vai ficar muito melhor do que de facto É, de facto, uma pena não se conseguir investimento seria mais alto – com elevada dar um segundo suspiro de alívio quando
lê-se na carta aberta. Mas seria bem assim? às alegações infundadas da Walgreens e avançou com um processo em nome dos prémio de jornalismo, o George Polk, com está. É de se lhe tirar o chapéu. saber exactamente qual seria a realidade probabilidade. Recorde-se que a reposição lemos o Programa de Estabilidade. Estão lá
tentaremos responsabilizá-la pelos danos consumidores que recorreram aos centros a investigação que fez à “menina querida” O grande erro cometido por todos quan- alternativa. Mas podemos fazer um exercício de salários da função pública prometida os objectivos de honrar os compromissos
Theranos alvo de que causou à Theranos e aos seus investi- de bem-estar da Theranos. Mas as polémi- das startups, que soma aos dois Pulitzer (a tos há um ano se preocuparam com o futu- apenas económico-financeiro do que teria por Passos Coelho era mais lenta, o que financeiros e reduzir a dimensão do Estado.
dores”, lê-se. cas não se ficam por aqui. O Wall Street distinção mais prestigiante do setor) que já ro do país, no quadro do euro, foi acreditar sido a continuidade de Pedro Passos Coe- significa que poderia ter gasto mais em Só não sabemos como é que o Governo o
múltiplos processos Mas a farmacêutica não é a única a que- Journal revelou também quais eram os recebeu na sua carreira, em 2003 e em 2015. no que ouviam em vez de esperarem pelos lho na governação. (Apenas no domínio da investimento público. De alguma forma, vai fazer. Mas a austeridade que já existia
por fraude rer ver Elizabeth Holmes sentada nos tri- grandes nomes que estavam por detrás De Elizabeth Holmes, não se esperam galar- actos antes de se pronunciarem. Os actos economia e das finanças, porque a dinâmica António Costa trocou investimento público é agora assumida, com menos disfarces,
A par das notificações dos reguladores, bunais. O fundo de investimento Partner da Theranos, incluindo James Mattis, o dões, mas esta história unsexy não acaba aqui. revelaram uma profunda contradição com política teria sido completamente diferente, pela reposição de salários. menos mascarada.
as dos tribunais. Em 2016, a Theranos Fund Management, que tinha investido 96,1 general que Donald Trump disse recen- as palavras. Depois de ter devolvido os salá- nomeadamente na vida do PS, que estava sob Além disso, podemos admitir que as
é alvo de vários processos judiciais por milhões de dólares na Theranos, também temente ter escolhido para Secretário de Ana Pimentel é jornalista do Observador rios à função pública e algumas pensões, o séria ameaça se não tivesse subido ao poder.) taxas de juro da dívida pública (aqui Helena Garrido é jornalista e colunista
alegada fraude, oriundos de investidores e processou a empresa, acusando-a de “uma Defesa, mas que já se demitiu do conselho e autora da newsletter semanal sobre o Governo fez uso de tudo o que tinha à mão, Comecemos pelo mais fácil, que é a di- avaliadas pela média mensal da taxa de do Observador. É autora do livro “A Vida
parceiros que se sentirem enganados por série de mentiras, distorções materiais e de administração da empresa. florescente mundo das startups. e não era visível de imediato, para reduzir ferença entre o que se prevê e aquilo que rendibilidade a 10 anos) estariam mais e a Morte dos Nossos Bancos”.
52 ELIZABETH HOLMES OPINIÃO 53

podia ser alvo de multas diárias por não

O regresso da austeridade
estar a cumprir com as condições exigidas
pelos serviços de saúde. Em resposta, Hol-
mes afirmou que “os testes levados a cabo
pela CMS tinham sido realizados há vários

(quase) sem disfarces


meses e não refletiam o estado atual do
laboratório”. “Quando esta investigação
ocorreu, estávamos a realizar, em simul-
tâneo, uma revisão aos procedimentos e
processos dos nossos laboratórios, para
assegurar que temos o sistema com a me-
lhor qualidade de que há memória”, lia-se
no comunicado.
Começou a avalanche. Dois meses de-
pois, a CMS enviou nova carta informando
que ia banir Elizabeth Holmes e Sunny
Balwani da indústria, proibindo-os de
exercer atividade na área dos cuidados
médicos durante dois anos. As ameaças
não se ficaram por aqui e envolveram mais
reguladores: o unicórnio das análises ao
sangue podia perder a licença para operar
se a Theranos não resolvesse os problemas
detetados nos laboratórios que detinha
na Califórnia. Em maio, o mea culpa: Eli-
zabeth Holmes notificou os reguladores
para a saúde norte-americana, incluindo
a CMS, de que tinha corrigido as milhares

Helena Garrido
de análises ao sangue que efetuou em 2014
e 2015, anulando alguns desse resultados,
e notificando os pacientes e médicos das
alterações.
E 3, 2, 1. Em junho, a Forbes revê em bai-
xa a avaliação da Theranos e desvaloriza-a
em mais de 8 mil milhões de dólares. Em O mais extraordinário dos tempos que vivemos em Portugal é a brutal diferença
julho, a Theranos perde a licença para
operar e Elizabeth Holmes é banida da entre aquela que é a mensagem política do Governo e aquilo que ele, de facto, faz.
indústria durante dois anos, recorrendo
da decisão. E, em outubro, a jovem de 32 Só agora se começa a assumir a austeridade que sempre se praticou.
anos anuncia que vai despedir 340 cola-
boradores da empresa e fechar os vários A política orçamental do Gover- o défice público. Foi tudo de facto histó- foi a troika. A diferença mais significativa baixas e a avaliação do risco do país po-
laboratórios clínicos da empresa. Tinha no de António Costa foi, e promete ser, rico. O défice mais baixo da democracia em relação aos anos da troika está na dose. deria já ter subido. No caso do rating é,
passado um ano desde a primeira notícia mais austera do que a concretizada pelo e um dos saldos primários mais elevados O medicamento para a grave doença das aliás, interessante verificar que só agora,
publicada no Wall Street Journal. último ano de Governo de Pedro Passos do euro são devidamente acompanhados finanças públicas tem a mesma substância há uma semana, é que começam a surgir
“Depois de termos passado muitos me- Coelho. As perspectivas desenhadas no por cativações de despesa historicamente activa: apertar o cinto de quem trabalha análises sobre a possibilidade de o risco de
ses a avaliar as nossas forças e as nossas Programa de Estabilidade e Crescimento elevados, cortes recorde no investimento para o Estado e de todos os que pagam Portugal melhorar a curto prazo. Foi o caso
fraquezas, decidimos estruturar a nossa 2017-2021 dizem-nos exactamente isso: a público e o já tradicional perdão fiscal. impostos. As doses da medicação são agora do Commerzbank – a admitir que a DBRS
empresa em torno de um modelo mais Holmes. Só a cadeia de farmácias Walgre- omissões”. “Os réus estão envolvidos numa Jennifer Lawrence página da designada austeridade não foi Claro que a recuperação da economia e obviamente mais baixas, porque não esta- pode melhorar o ‘rating’ de Portugal – ou
alinhado com os nossos valores e missão. ens – que era a grande parceira da The- fraude de valores mobiliários e outras vio- será Elizabeth Holmes nem será virada. Como não podia ser, se especialmente o aumento do emprego aju- mos à beira da bancarrota e sem acesso a da Standard & Poor’s, a sistematizar as
Decidimos encerrar os nossos laborató- ranos para a comercialização dos testes lações por terem induzido fraudulenta- o PS continuasse a ser aquilo que sempre daram. Mas até isso pode ter surpreendido financiamento. Agora a austeridade pode condições em que a sua classificação pode
rios clínicos e centros de bem-estar The- – processou a empresa em 140 milhões de mente a PFM a investir e a manter os seus no cinema foi, um partido que defende a integração o próprio Governo – nunca o saberemos. aproveitar a recuperação já obtida com a subir: se a economia recuperar e o crédito
ranos, que afetarão aproximadamente dólares (montante que se crê ser igual ao investimentos na empresa”, lia-se numa E agora que “a bolha em que estava a The- de Portugal no euro e o respeito pelos É apenas uma hipótese a colocar face ao terapia de choque do passado e a retoma da malparado baixar. Parece óbvio, mas até
340 funcionários no Arizona, Califórnia investido pela empresa na Theranos). A carta enviada pelo fundo ao Wall Street ranos rebentou”, a história da queda verti- compromissos da República Portuguesa resultado de 2% obtido no défice — bastava economia ditada em grande parte pelo tu- há bem pouco tempo o problema não era
e Pensilvânia. Estamos profundamente farmacêutica queixa-se de que foi “consis- Journal. ginosa de Elizabeth Holmes e da Thernaos em relação aos tratados que assinou e à ter chegado aos 2,3% para se considerar um rismo. Além disso, e não menos importante, colocado desta forma. Pelo contrário, o que
gratos aos membros da nossa equipa, tentemente enganada pela Theranos” – e Já o investidor Robert Colman, cofun- prepara-se para chegar ao cinema. No papel dívida que contraiu. bom resultado, mesmo do ponto de vista da criou-se para o “doente” um ambiente de se discutia era o risco de baixar o rating e
muitos dos quais dedicaram vários anos que nem sequer foi informada dos 31 mil dador da empresa de investimento Ro- da rainha da tecnologia estará Jennifer La- O mais extraordinário dos tempos que prova da sustentabilidade da dívida (prova e descontracção, garantido pelo discurso do não as condições para o subir.
à Theranos e à nossa missão”, escreveu resultados de testes ao sangue que tinha bertson Stephens, processou a Theranos wrence e na realização Adam McKay, que vivemos em Portugal é a brutal diferença não realidade). Olhando para trás, percebe- Governo de fim da austeridade e pela alian- Em termos gerais, neste exercício de rea-
Holmes numa carta aberta, publicada no fornecido aos seus clientes até 11 de junho no final de novembro por esta ter “enga- esteve por detrás das câmaras em The Big entre aquela que é a mensagem política -se que o Governo pode ter sobre-reagido ça com o PCP – o dono das manifestações lidade alternativa, é possível admitir que o
site da empresa. e que foram anulados, conta a Fortune. A nado consistente e deliberadamente os Short – A Queda de Wall Street, filme ins- e aquilo que, de facto, o Governo faz. É e até desperdiçado um das armas de que de rua – e com o Bloco – de que se pode crescimento da economia seria mais eleva-
De startup de tecnologia médica mais farmacêutica só soube da anulação pela seus investidores”, promovendo de forma pirado na obra de Michael Lewis, que versa o ditado popular “faz o que eu digo, não pode precisar mais tarde, a do perdão fiscal. dizer, simplificadamente, que influencia do por via da confiança de quem investe já
sexy do mercado para um laboratório clí- comunicação social. desproporcional a sua tecnologia. “Milha- sobre a crise financeira de 2007 e de 2008. faças o que eu faço” adaptado numa fór- Quando se olha para o que se passou mais o espaço da opinião publicada. que a confiança de quem consome – para
nico padrão. Em agosto de 2016, Holmes A farmacêutica acusa a Theranos de ter res de investidores na Theranos, incluindo O filme que vai contar a história daquela mula do género “acredita no que eu digo, nas contas públicas em 2016 e aquilo que O que poderia ser diferente sem nunca a qual se dirigiu o actual Governo – teve
anunciou que a empresa ia dedicar-se ao quebrado todas as promessas que tinha aqueles que participam nesta ação judicial, que já foi “o próximo Steve Jobs” chamar- sem olhar para as estatísticas, nem para o o Governo promete fazer este ano e nos termos a certeza de que o seria? O ano de um efeito mais limitado, que pode também
desenvolvimento de um produto novo, a feito e de ter “falhado os padrões de quali- foram alimentados por mentiras contínuas -se-á Bad Blood (“Mau Sangue”, em portu- dinheiro que te entra de facto no bolso e próximos, através do Programa de Estabi- 2016 poderia ter sido menos turbulento, ser explicado pela falta de confiança do
plataforam miniLab, através da qual pre- dade mais básicos bem como as exigências da presidente da empresa, que promovia guês) e vai ser produzido pela Legendary muito menos para o teu poder de compra”. lidade e Crescimento 2017-2021 (PEC17-21), menos volátil, com um horizonte mais sector privado.
tendem comercializar minilaboratórios, legais”. Mais: diz que a empresa de Holmes uma tecnologia que ‘ia mudar o mundo’ Pictures (responsável pela produção de Portugal já tinha sido um caso de estudo percebemos que António Costa persegue claro, aquele que só agora se está a con- Mas o ponto a que chegámos hoje permi-
automatizados, capazes de testar pequenos anulou 11,3% dos testes que fez aos clientes e ‘revolucionar a indústria’”, afirmou o filmes biográficos como Straight Outta pela resistência que os cidadãos revelaram o mesmo objectivo do seu antecessor Pe- seguir ter. Ou seja, a margem de manobra te-nos respirar de alívio, porque as piores
volumes de amostras de pacientes mais vul- da cadeia de farmácias. Elizabeth Holmes advogado da ação, Steve Berman. Compton), que pagou cerca de 3 milhões perante a dose de austeridade a que foram dro Passos Coelho: controlar o “monstro” política que António Costa ganhou em perspectivas não se confirmaram. O Gover-
neráveis, como os de oncologia, pediatria respondeu em carta aberta, afirmando que O processo mais recente já data de 2017. de dólares (2,8 milhões de euros) para ficar submetidos, especialmente em 2012. Volta financeiro em que se transformaram as 2016 teve como preço a incerteza gerada no não fez o que disse que ia fazer e deu-nos
ou de cuidados intensivos. Ou seja, nada a farmacêutica também “tinha falhado O estado do Arizona acusa a Theranos de com os direitos do filme. O orçamento para agora a ser um caso de estudo, para econo- administrações públicas e especialmente o pelo discurso agressivo contra a Europa uma austeridade disfarçada, com menos
a ver com a estratégia inicial. “Temos a consistentemente os compromissos que estar por detrás de um “esquema de longa eternizar a polémica da Theranos ronda os mistas e políticos, que queiram investigar Estado central. E percebe-se melhor agora e a dita austeridade e pelas medidas de investimento e mais impostos indirectos, da-
sorte de os nossos parceiros e investidores tinha com a Theranos”. “Por causa da má duração de atos danosos e falsas declara- 50 milhões de dólares, segundo o IMDb. como se aplica uma política de austerida- do que há um ano porque, finalmente, An- “reversão” adoptadas nos primeiros meses quela que só conseguimos perceber passado
acreditarem fortemente na nossa missão gestão da nossa parceria e agora deste ções”, num processo de alegada “fraude Sobre a Theranos, a Fox Business estima de financeira, com o apoio da esquerda tónio Costa pode começar a mostrar o seu de governação. Como é que esse preço se algum tempo, animados (ou preocupados)
de termos testes menos invasivos e mais processo, a Walgreens causou danos sig- aos consumidores”. As autoridades do es- que a empresa não vai conseguir resistir a tradicional e moderna, e convencendo a jogo, condicionados que estão os partidos consubstanciou na economia? Não sabe- que estávamos com o que António Costa e
económicos, e de termos a estrada que nificativos à Theranos e aos seus inves- tado afirmam que a empresa de Holmes tanta polémica e que vai fechar portas este população em geral de que a sua vida está de esquerda que o apoiam. mos. Resta-nos admitir a hipótese de que o Mário Centeno nos diziam. E podemos ainda
nos vai permitir realizar a nossa visão”, tidores. Responderemos vigorosamente violou o Arizona’s Consumer Fraud Act e ano. Quanto a John Carreyrou, ganhou um e vai ficar muito melhor do que de facto É, de facto, uma pena não se conseguir investimento seria mais alto – com elevada dar um segundo suspiro de alívio quando
lê-se na carta aberta. Mas seria bem assim? às alegações infundadas da Walgreens e avançou com um processo em nome dos prémio de jornalismo, o George Polk, com está. É de se lhe tirar o chapéu. saber exactamente qual seria a realidade probabilidade. Recorde-se que a reposição lemos o Programa de Estabilidade. Estão lá
tentaremos responsabilizá-la pelos danos consumidores que recorreram aos centros a investigação que fez à “menina querida” O grande erro cometido por todos quan- alternativa. Mas podemos fazer um exercício de salários da função pública prometida os objectivos de honrar os compromissos
Theranos alvo de que causou à Theranos e aos seus investi- de bem-estar da Theranos. Mas as polémi- das startups, que soma aos dois Pulitzer (a tos há um ano se preocuparam com o futu- apenas económico-financeiro do que teria por Passos Coelho era mais lenta, o que financeiros e reduzir a dimensão do Estado.
dores”, lê-se. cas não se ficam por aqui. O Wall Street distinção mais prestigiante do setor) que já ro do país, no quadro do euro, foi acreditar sido a continuidade de Pedro Passos Coe- significa que poderia ter gasto mais em Só não sabemos como é que o Governo o
múltiplos processos Mas a farmacêutica não é a única a que- Journal revelou também quais eram os recebeu na sua carreira, em 2003 e em 2015. no que ouviam em vez de esperarem pelos lho na governação. (Apenas no domínio da investimento público. De alguma forma, vai fazer. Mas a austeridade que já existia
por fraude rer ver Elizabeth Holmes sentada nos tri- grandes nomes que estavam por detrás De Elizabeth Holmes, não se esperam galar- actos antes de se pronunciarem. Os actos economia e das finanças, porque a dinâmica António Costa trocou investimento público é agora assumida, com menos disfarces,
A par das notificações dos reguladores, bunais. O fundo de investimento Partner da Theranos, incluindo James Mattis, o dões, mas esta história unsexy não acaba aqui. revelaram uma profunda contradição com política teria sido completamente diferente, pela reposição de salários. menos mascarada.
as dos tribunais. Em 2016, a Theranos Fund Management, que tinha investido 96,1 general que Donald Trump disse recen- as palavras. Depois de ter devolvido os salá- nomeadamente na vida do PS, que estava sob Além disso, podemos admitir que as
é alvo de vários processos judiciais por milhões de dólares na Theranos, também temente ter escolhido para Secretário de Ana Pimentel é jornalista do Observador rios à função pública e algumas pensões, o séria ameaça se não tivesse subido ao poder.) taxas de juro da dívida pública (aqui Helena Garrido é jornalista e colunista
alegada fraude, oriundos de investidores e processou a empresa, acusando-a de “uma Defesa, mas que já se demitiu do conselho e autora da newsletter semanal sobre o Governo fez uso de tudo o que tinha à mão, Comecemos pelo mais fácil, que é a di- avaliadas pela média mensal da taxa de do Observador. É autora do livro “A Vida
parceiros que se sentirem enganados por série de mentiras, distorções materiais e de administração da empresa. florescente mundo das startups. e não era visível de imediato, para reduzir ferença entre o que se prevê e aquilo que rendibilidade a 10 anos) estariam mais e a Morte dos Nossos Bancos”.
55

A reforma que a Suécia fez na educação


foi elogiada à esquerda e à direita. Mas falhou. Suécia:
O mais difícil é explicar porquê. ascensão e queda
de uma reforma
educativa
Texto Alexandre Homem Cristo
Ilustração Marta Monteiro

Foi, durante anos, a reforma 520


legais para que qualquer aluno se pudesse
de que toda a gente falava na Educação. matricular em qualquer escola. Não é
À direita, defendida por quem pretendia 515 preciso recordar as polémicas, que as
maior autonomia, descentralização e li- houve. Sem surpresa, na Suécia e por todo
berdade de escolha da escola. À esquerda, o mundo, foram as segunda e terceira
usada como referência para os perigos da 510 partes da reforma que entusiasmaram
abertura da rede pública aos privados. Na as discussões. Mas, como veremos mais à
década de 1990, o governo sueco decidiu frente, foi a primeira parte que realmente
reformar a sua administração pública e, 505 se revelou problemática.
na educação, isso significou transitar de Como qualquer reforma, também esta
um sistema tradicionalmente centrali- 500 foi um processo longo e repleto de ajus-
zado para uma descentralização na qual tes. Mas os seus primeiros passos foram
os municípios ganharam novas respon- abruptos. Propositadamente abruptos, de
sabilidades e a rede pública permitiu a 495 modo a que os municípios assumissem as
entrada de escolas privadas (financiadas suas novas funções sem enviesamentos
pelo Estado e sem custo para os alunos). ou orientações excessivas. Assim, de um
Não faltou, à época, quem aplaudisse a 490 momento para o outro, a responsabilidade
reforma e ali adivinhasse o futuro. Mas sobre o sistema educativo sueco repartiu-
o certo é que, quando o futuro chegou, 485
-se. De um lado, um Ministério da Educação
os resultados não impressionaram: uma emagrecido, com poderes de monitoriza-
queda contínua e acentuada dos alunos ção, avaliação e fiscalização face às metas
suecos nas avaliações internacionais do 480 curriculares estabelecidas. Do outro lado,
PISA (OCDE). O facto é incontornável: a os municípios, que passaram a ter em mãos
reforma foi mal desenhada e, por isso, não a organização escolar, o funcionamento
foi bem-sucedida no tempo que se espera- 475 das escolas e a alocação de recursos fi-
va. A questão mais difícil é identificar-se 2000 2003 2005 2009 2012 2015 nanceiros, para além de serem a entidade
os porquês. Afinal, onde está a origem patronal de professores e directores es-
LEITURA MATEMÁTICA CIÊNCIAS
do problema? colares – já o eram antes, mas depois até
É aqui que o assunto se complica e que as condições de trabalho passaram a ser
os diagnósticos surgem ao ritmo dos pre- ● Desempenho dos alunos suecos no PISA. Fonte: OCDE negociadas pelos municípios.
conceitos. À direita, apontou-se ao cres- Na prática, quase tudo foi para os mu-
cimento do fluxo de imigração, que fez nicípios: currículo (desde que em cumpri-
chegar à Suécia crianças que, tendo um mento das metas), professores, directores,
perfil socioeconómico abaixo da média na- no Cameron, com Michael Gove a liderar monitorização, avaliação, orientação para edifícios escolares e projectos educativos.
cional, puxaram os resultados para baixo. a educação). Mas, apesar das inúmeras resultados, metas curriculares, autono- E ainda a gestão de um novo modelo de
À esquerda, responsabilizou-se a entrada discussões, permanece no debate público mia reforçada, liberdade de escolha da financiamento, no qual as verbas transfe-
das escolas privadas na rede pública pela uma incompreensão transversal acerca do escola. Como foi possível encaixar tantas ridas pelo Estado aos municípios passavam
deterioração da qualidade geral do ensino. que correu mal, do que explica a queda de mudanças? Através de um plano dividido a ser geridas por inteiro a nível local, para
Quem tem razão? Ninguém: as explicações resultados dos alunos no PISA e de como em três partes. A primeira: a descentrali- satisfazer as necessidades educativas da
para a queda dos desempenhos nas ava- inverter a tendência. É a essas questões zação da decisão, que transpôs a tomada comunidade. Acha muito? É que ainda não
liações internacionais são bastante mais que aqui se responderá. de decisão do Estado central para os mu- acabou. Simultaneamente a esta transferên-
complexas. nicípios. A segunda: a liberalização das cia de competências, o próprio modelo de
É verdade que poucas reformas educa- regras de abertura de escolas privadas, sistema educativo foi alterado. À rede de
tivas terão sido tão debatidas nos palcos
Uma tripla reforma do seu funcionamento e do seu financia- escolas públicas do Estado juntaram-se pri-
políticos europeus como foi a sueca. Até O plano da reforma política começou a mento público. A terceira: a introdução vados financiados pelo Estado para garantir
porque não foram raras as vezes em que ser desenhado antes, mas o seu arranque de um sistema de escolha da escola para liberdade de escolha. Ou seja, acabaram
governantes escolheram essa reforma no terreno começou em 1991. E, num ins- os pais e para os alunos, acabando com as restrições geográficas nas matrículas,
como modelo a seguir (aconteceu, por tante, mudou tudo. Tudo é mesmo tudo: a relação estreita entre as escolas e a sua introduziu-se competição entre escolas para
exemplo, no Reino Unido com o gover- tutela política, organização do sistema, área residencial – já não haveria entraves cativar alunos e revolucionou-se o modelo
55

A reforma que a Suécia fez na educação


foi elogiada à esquerda e à direita. Mas falhou. Suécia:
O mais difícil é explicar porquê. ascensão e queda
de uma reforma
educativa
Texto Alexandre Homem Cristo
Ilustração Marta Monteiro

Foi, durante anos, a reforma 520


legais para que qualquer aluno se pudesse
de que toda a gente falava na Educação. matricular em qualquer escola. Não é
À direita, defendida por quem pretendia 515 preciso recordar as polémicas, que as
maior autonomia, descentralização e li- houve. Sem surpresa, na Suécia e por todo
berdade de escolha da escola. À esquerda, o mundo, foram as segunda e terceira
usada como referência para os perigos da 510 partes da reforma que entusiasmaram
abertura da rede pública aos privados. Na as discussões. Mas, como veremos mais à
década de 1990, o governo sueco decidiu frente, foi a primeira parte que realmente
reformar a sua administração pública e, 505 se revelou problemática.
na educação, isso significou transitar de Como qualquer reforma, também esta
um sistema tradicionalmente centrali- 500 foi um processo longo e repleto de ajus-
zado para uma descentralização na qual tes. Mas os seus primeiros passos foram
os municípios ganharam novas respon- abruptos. Propositadamente abruptos, de
sabilidades e a rede pública permitiu a 495 modo a que os municípios assumissem as
entrada de escolas privadas (financiadas suas novas funções sem enviesamentos
pelo Estado e sem custo para os alunos). ou orientações excessivas. Assim, de um
Não faltou, à época, quem aplaudisse a 490 momento para o outro, a responsabilidade
reforma e ali adivinhasse o futuro. Mas sobre o sistema educativo sueco repartiu-
o certo é que, quando o futuro chegou, 485
-se. De um lado, um Ministério da Educação
os resultados não impressionaram: uma emagrecido, com poderes de monitoriza-
queda contínua e acentuada dos alunos ção, avaliação e fiscalização face às metas
suecos nas avaliações internacionais do 480 curriculares estabelecidas. Do outro lado,
PISA (OCDE). O facto é incontornável: a os municípios, que passaram a ter em mãos
reforma foi mal desenhada e, por isso, não a organização escolar, o funcionamento
foi bem-sucedida no tempo que se espera- 475 das escolas e a alocação de recursos fi-
va. A questão mais difícil é identificar-se 2000 2003 2005 2009 2012 2015 nanceiros, para além de serem a entidade
os porquês. Afinal, onde está a origem patronal de professores e directores es-
LEITURA MATEMÁTICA CIÊNCIAS
do problema? colares – já o eram antes, mas depois até
É aqui que o assunto se complica e que as condições de trabalho passaram a ser
os diagnósticos surgem ao ritmo dos pre- ● Desempenho dos alunos suecos no PISA. Fonte: OCDE negociadas pelos municípios.
conceitos. À direita, apontou-se ao cres- Na prática, quase tudo foi para os mu-
cimento do fluxo de imigração, que fez nicípios: currículo (desde que em cumpri-
chegar à Suécia crianças que, tendo um mento das metas), professores, directores,
perfil socioeconómico abaixo da média na- no Cameron, com Michael Gove a liderar monitorização, avaliação, orientação para edifícios escolares e projectos educativos.
cional, puxaram os resultados para baixo. a educação). Mas, apesar das inúmeras resultados, metas curriculares, autono- E ainda a gestão de um novo modelo de
À esquerda, responsabilizou-se a entrada discussões, permanece no debate público mia reforçada, liberdade de escolha da financiamento, no qual as verbas transfe-
das escolas privadas na rede pública pela uma incompreensão transversal acerca do escola. Como foi possível encaixar tantas ridas pelo Estado aos municípios passavam
deterioração da qualidade geral do ensino. que correu mal, do que explica a queda de mudanças? Através de um plano dividido a ser geridas por inteiro a nível local, para
Quem tem razão? Ninguém: as explicações resultados dos alunos no PISA e de como em três partes. A primeira: a descentrali- satisfazer as necessidades educativas da
para a queda dos desempenhos nas ava- inverter a tendência. É a essas questões zação da decisão, que transpôs a tomada comunidade. Acha muito? É que ainda não
liações internacionais são bastante mais que aqui se responderá. de decisão do Estado central para os mu- acabou. Simultaneamente a esta transferên-
complexas. nicípios. A segunda: a liberalização das cia de competências, o próprio modelo de
É verdade que poucas reformas educa- regras de abertura de escolas privadas, sistema educativo foi alterado. À rede de
tivas terão sido tão debatidas nos palcos
Uma tripla reforma do seu funcionamento e do seu financia- escolas públicas do Estado juntaram-se pri-
políticos europeus como foi a sueca. Até O plano da reforma política começou a mento público. A terceira: a introdução vados financiados pelo Estado para garantir
porque não foram raras as vezes em que ser desenhado antes, mas o seu arranque de um sistema de escolha da escola para liberdade de escolha. Ou seja, acabaram
governantes escolheram essa reforma no terreno começou em 1991. E, num ins- os pais e para os alunos, acabando com as restrições geográficas nas matrículas,
como modelo a seguir (aconteceu, por tante, mudou tudo. Tudo é mesmo tudo: a relação estreita entre as escolas e a sua introduziu-se competição entre escolas para
exemplo, no Reino Unido com o gover- tutela política, organização do sistema, área residencial – já não haveria entraves cativar alunos e revolucionou-se o modelo
56 EDUCAÇÃO NA SUÉCIA

de financiamento escolar – baseado no nú-


mero de alunos matriculados, sem distinguir
entre escolas municipais e escolas privadas
(todas eram públicas e em nenhuma os alu-
nos teriam custos de frequência).
As opções da reforma sueca são discutí-
veis? Evidentemente. Como são quase todas
as das reformas sectoriais. A implementa-
ção desta grande reforma foi abrupta, mas
não foi consensual. Ainda hoje, não o é.
Nomeadamente entre os professores, que
passaram a ter de se articular por com-
pleto com os municípios. E, claro, entre
representantes sindicais dos professores,
que preferiam a negociação com o Esta-
do central e viram na negociação com os
municípios uma perda da sua influência
política. Mas, contestada ou elogiada, no
fim o que conta são os resultados. E os re-
sultados da reforma sueca não foram bons.

A queda nas avaliações


internacionais
(2000–2012)
Os primeiros resultados pós-reforma até
foram recebidos com entusiasmo. Em 2000,
na primeira avaliação do PISA da OCDE, a
Suécia apareceu entre os países cujos alu-
nos evidenciaram melhores desempenhos.
Havia que esperar pelos anos seguintes,
para verificar se o perfil de desempenhos
elevados se consolidava. Não se consolidou.
Pelo contrário, foi sempre a descer até 2012,
quando soou o alarme e todos se convence-
ram de que algo havia que ser alterado no
sistema educativo sueco (ver gráfico). No
PISA 2012, a Suécia consolida-se no terço
inferior da classificação de países – em 34
países da OCDE, foi o 28.º em Matemática
e 27.º em Leitura e em Ciências. Ou seja,

PUB
muito abaixo dos seus países vizinhos do É claro que as avaliações não são todas debate político, a primeira é mais comum à ram os seus resultados. Segundo, porque
norte da Europa. Pior: entre 2000 e 2012, iguais nem medem todas as mesmas com- direita e a segunda mais comum à esquer- não há escolas privadas na rede pública
nenhum país piorou tanto como a Suécia. petências, pelo que não é forçoso encontrar da. Quem tem razão? Ninguém: ambas as em todos os municípios – mas a baixa de
A queda nos resultados foi transver- aqui uma contradição. Contudo, transfor- explicações estão erradas. resultados foi transversal no país. Terceiro,
sal. Nas três áreas de avaliação (Leitura, mar uma tendência tão negativa numa Comecemos pela imigração. A primei- porque não há indicadores de as escolas
Matemática e Ciências), a percentagem tendência positiva levantou suspeitas. ra década dos anos 2000 observou um privadas prejudicarem resultados para os
de alunos com muito maus desempenhos E, consequentemente, críticas da própria aumento da imigração na Suécia. E, efec- seus alunos ou para os das escolas à sua
aumentou. Por exemplo, em Matemática OCDE quanto à fiabilidade das avaliações tivamente, em 2012 nenhum país escandi- volta. E se os resultados pioraram ao longo
essa percentagem passou de 17% do total nacionais na Suécia. O maior dos proble- navo tinha uma taxa tão elevada de alunos de uma década, é factual que, entre 2006 e
em 2003 para 27% do total em 2012 – um mas? A disparidade entre os critérios de imigrantes como a sueca: 15%. Estes são os 2015, a percentagem de alunos de 15 anos
aumento muito acentuado e o maior entre avaliação utilizados por parte dos profes- factos que, à partida, poderiam sugerir um em escolas privadas duplicou (de 8% para
a OCDE. No mesmo sentido, a percentagem sores, que inviabilizaria as comparações impacto directo da imigração nos desem- 16%), num período em que os resultados
de alunos com muito bons desempenhos entre escolas. penhos médios dos alunos suecos. Só que, no PISA até melhoraram – ou seja, não há
diminuiu em todas as áreas, sendo que É habitual falar-se sobretudo de desem- analisando os dados das avaliações inter- aqui nenhuma relação causa-efeito, seja
em Matemática, entre 2003 e 2012, essa penhos escolares. Mas, da mesma forma nacionais, essa relação não surge como num sentido seja noutro.
percentagem reduziu-se para metade (de que a educação não é apenas as notas, tantos alegam. Mesmo que superior à taxa Resumindo: a raiz do problema não es-
16% para 8%). Ou seja, os alunos pioraram os problemas do sistema educativo sueco em 2003 (12%), em 2012 a diferença é pe- tava nos sítios para onde toda a gente tem
a todos os níveis e em todas as áreas. manifestaram-se noutras áreas. Nomeada- quena e pequena é igualmente a influência estado a olhar e para onde o debate político
A deterioração dos resultados não se mente numa: a equidade entre escolas. Em desses alunos na descida transversal dos focou as suas atenções.
manifestou somente no PISA. A mesma 1998, a diferença de resultados entre esco- desempenhos escolares. É que todos os alu- Sendo assim, qual é o diagnóstico cor-
tendência surgiu noutras avaliações in- las rondava os 8%. Em 2011, ultrapassava os nos pioraram, fossem imigrantes ou não, recto?
ternacionais, como o TIMSS (que mede 18%. Este dado foi um dos mais discutidos frequentassem ou não escolas com maior A pergunta não motivou apenas o deba-
competências em matemática) e no PIRLS ao longo dos anos. Seria uma consequência presença de alunos imigrantes, estivessem te público, levou peritos internacionais à
(que mede competências em leitura). No da reforma? Seria uma consequência da ou não em municípios com imigração. Suécia para tentar responder ao mistério.
TIMSS, entre 1995 e 2011, os alunos suecos imigração? Não há respostas definitivas Isto não significa que a chegada de alunos E a principal conclusão é que a raiz do
pioraram em 55 pontos – a maior queda para nenhuma das perguntas em termos imigrantes, com bases escolares abaixo das problema estava na forma precipitada
entre os países participantes. E, no PIRLS, de relação causa-efeito. Mas, dito isto, seria exigências suecas e muitas vezes sem sequer como se implementou a descentralização
entre 2001 e 2011, os alunos suecos de 10/11 uma ingenuidade ignorar que, com maior falar a língua, não causasse dificuldades ao de competências para os municípios, entre-
anos exibiram uma acentuada queda nos ou menor intensidade, tanto a reforma sistema educativo sueco. Ainda hoje esse é gando a autonomia de decisão a quem não
seus desempenhos. como a imigração contribuíram para este um grande desafio. Mas um desafio à parte. estava preparado para a assumir. Vejamos
Se os resultados negativos são inequívo- acentuar de desigualdades. Simplesmente, a imigração não justifica a o diagnóstico, a partir de duas sínteses
cos, o que justificou a demora na reacção O que se diz (erradamente) que provo- queda dos desempenhos dos alunos suecos da OCDE – Improving Schools in Sweden
das autoridades suecas? A pergunta é ób- cou a queda de resultados? nas avaliações internacionais. (2015) e Shifting Responsabilities: 20 Ye-
via, mas enganadora. Ao longo dos anos, Identificar os sintomas é fácil. Fazer o O que dizer, então, da liberalização do ars of Educational Devolution in Sweden
as autoridades suecas até foram afinando diagnóstico correcto é difícil. Quem segue sistema educativo, que introduziu escolas (2014) – destacando três principais pro-
as características do seu sistema educa- o debate público na educação já decerto privadas na rede pública? Que, em ter- blemas.
tivo. O ponto é que essas alterações não ouviu várias explicações para o que suce- mos de desempenhos escolares, não está Primeiro: a falta de uma visão sistémica e
foram suficientemente profundas e ágeis deu na Suécia. Duas explicações em parti- relacionada com a queda de resultados. de capacidade instalada. A reforma definiu-
para produzirem resultados imediatos. E cular. Primeira: por causa do aumento de Apesar de este ser um dos aspectos que -se pela sua brusquidão. De um momento
parte da prudência com que essas altera- imigrantes na Suécia, a entrada de alunos mais controvérsia gera no debate, os da- para o outro, entregaram as responsabi-
ções foram preparadas está relacionada estrangeiros no sistema educativo puxou os dos do PISA não confirmam a existência lidades da governação da educação aos
com um fenómeno curioso: enquanto as resultados para baixo. Segunda: a entrada dessa relação causal. E, de facto, é simples municípios – sem apoio ou orientação
avaliações internacionais apontavam para de escolas privadas na rede pública e o perceber os fundamentos dessa rejeição. das autoridades centrais. Resultado: uma
um descalabro, as avaliações nacionais exercício de escolha da escola por parte do Primeiro, porque apenas uma minoria dos montanha de equívocos. Uma vez que os
indicavam uma melhoria consistente dos país desequilibrou o sistema e deteriorou alunos frequenta escolas privadas na rede municípios não foram preparados para a
resultados escolares. a qualidade das escolas municipais. No pública – e todos os alunos suecos baixa- transição, ou sequer consultados duran-
56 EDUCAÇÃO NA SUÉCIA

de financiamento escolar – baseado no nú-


mero de alunos matriculados, sem distinguir
entre escolas municipais e escolas privadas
(todas eram públicas e em nenhuma os alu-
nos teriam custos de frequência).
As opções da reforma sueca são discutí-
veis? Evidentemente. Como são quase todas
as das reformas sectoriais. A implementa-
ção desta grande reforma foi abrupta, mas
não foi consensual. Ainda hoje, não o é.
Nomeadamente entre os professores, que
passaram a ter de se articular por com-
pleto com os municípios. E, claro, entre
representantes sindicais dos professores,
que preferiam a negociação com o Esta-
do central e viram na negociação com os
municípios uma perda da sua influência
política. Mas, contestada ou elogiada, no
fim o que conta são os resultados. E os re-
sultados da reforma sueca não foram bons.

A queda nas avaliações


internacionais
(2000–2012)
Os primeiros resultados pós-reforma até
foram recebidos com entusiasmo. Em 2000,
na primeira avaliação do PISA da OCDE, a
Suécia apareceu entre os países cujos alu-
nos evidenciaram melhores desempenhos.
Havia que esperar pelos anos seguintes,
para verificar se o perfil de desempenhos
elevados se consolidava. Não se consolidou.
Pelo contrário, foi sempre a descer até 2012,
quando soou o alarme e todos se convence-
ram de que algo havia que ser alterado no
sistema educativo sueco (ver gráfico). No
PISA 2012, a Suécia consolida-se no terço
inferior da classificação de países – em 34
países da OCDE, foi o 28.º em Matemática
e 27.º em Leitura e em Ciências. Ou seja,

PUB
muito abaixo dos seus países vizinhos do É claro que as avaliações não são todas debate político, a primeira é mais comum à ram os seus resultados. Segundo, porque
norte da Europa. Pior: entre 2000 e 2012, iguais nem medem todas as mesmas com- direita e a segunda mais comum à esquer- não há escolas privadas na rede pública
nenhum país piorou tanto como a Suécia. petências, pelo que não é forçoso encontrar da. Quem tem razão? Ninguém: ambas as em todos os municípios – mas a baixa de
A queda nos resultados foi transver- aqui uma contradição. Contudo, transfor- explicações estão erradas. resultados foi transversal no país. Terceiro,
sal. Nas três áreas de avaliação (Leitura, mar uma tendência tão negativa numa Comecemos pela imigração. A primei- porque não há indicadores de as escolas
Matemática e Ciências), a percentagem tendência positiva levantou suspeitas. ra década dos anos 2000 observou um privadas prejudicarem resultados para os
de alunos com muito maus desempenhos E, consequentemente, críticas da própria aumento da imigração na Suécia. E, efec- seus alunos ou para os das escolas à sua
aumentou. Por exemplo, em Matemática OCDE quanto à fiabilidade das avaliações tivamente, em 2012 nenhum país escandi- volta. E se os resultados pioraram ao longo
essa percentagem passou de 17% do total nacionais na Suécia. O maior dos proble- navo tinha uma taxa tão elevada de alunos de uma década, é factual que, entre 2006 e
em 2003 para 27% do total em 2012 – um mas? A disparidade entre os critérios de imigrantes como a sueca: 15%. Estes são os 2015, a percentagem de alunos de 15 anos
aumento muito acentuado e o maior entre avaliação utilizados por parte dos profes- factos que, à partida, poderiam sugerir um em escolas privadas duplicou (de 8% para
a OCDE. No mesmo sentido, a percentagem sores, que inviabilizaria as comparações impacto directo da imigração nos desem- 16%), num período em que os resultados
de alunos com muito bons desempenhos entre escolas. penhos médios dos alunos suecos. Só que, no PISA até melhoraram – ou seja, não há
diminuiu em todas as áreas, sendo que É habitual falar-se sobretudo de desem- analisando os dados das avaliações inter- aqui nenhuma relação causa-efeito, seja
em Matemática, entre 2003 e 2012, essa penhos escolares. Mas, da mesma forma nacionais, essa relação não surge como num sentido seja noutro.
percentagem reduziu-se para metade (de que a educação não é apenas as notas, tantos alegam. Mesmo que superior à taxa Resumindo: a raiz do problema não es-
16% para 8%). Ou seja, os alunos pioraram os problemas do sistema educativo sueco em 2003 (12%), em 2012 a diferença é pe- tava nos sítios para onde toda a gente tem
a todos os níveis e em todas as áreas. manifestaram-se noutras áreas. Nomeada- quena e pequena é igualmente a influência estado a olhar e para onde o debate político
A deterioração dos resultados não se mente numa: a equidade entre escolas. Em desses alunos na descida transversal dos focou as suas atenções.
manifestou somente no PISA. A mesma 1998, a diferença de resultados entre esco- desempenhos escolares. É que todos os alu- Sendo assim, qual é o diagnóstico cor-
tendência surgiu noutras avaliações in- las rondava os 8%. Em 2011, ultrapassava os nos pioraram, fossem imigrantes ou não, recto?
ternacionais, como o TIMSS (que mede 18%. Este dado foi um dos mais discutidos frequentassem ou não escolas com maior A pergunta não motivou apenas o deba-
competências em matemática) e no PIRLS ao longo dos anos. Seria uma consequência presença de alunos imigrantes, estivessem te público, levou peritos internacionais à
(que mede competências em leitura). No da reforma? Seria uma consequência da ou não em municípios com imigração. Suécia para tentar responder ao mistério.
TIMSS, entre 1995 e 2011, os alunos suecos imigração? Não há respostas definitivas Isto não significa que a chegada de alunos E a principal conclusão é que a raiz do
pioraram em 55 pontos – a maior queda para nenhuma das perguntas em termos imigrantes, com bases escolares abaixo das problema estava na forma precipitada
entre os países participantes. E, no PIRLS, de relação causa-efeito. Mas, dito isto, seria exigências suecas e muitas vezes sem sequer como se implementou a descentralização
entre 2001 e 2011, os alunos suecos de 10/11 uma ingenuidade ignorar que, com maior falar a língua, não causasse dificuldades ao de competências para os municípios, entre-
anos exibiram uma acentuada queda nos ou menor intensidade, tanto a reforma sistema educativo sueco. Ainda hoje esse é gando a autonomia de decisão a quem não
seus desempenhos. como a imigração contribuíram para este um grande desafio. Mas um desafio à parte. estava preparado para a assumir. Vejamos
Se os resultados negativos são inequívo- acentuar de desigualdades. Simplesmente, a imigração não justifica a o diagnóstico, a partir de duas sínteses
cos, o que justificou a demora na reacção O que se diz (erradamente) que provo- queda dos desempenhos dos alunos suecos da OCDE – Improving Schools in Sweden
das autoridades suecas? A pergunta é ób- cou a queda de resultados? nas avaliações internacionais. (2015) e Shifting Responsabilities: 20 Ye-
via, mas enganadora. Ao longo dos anos, Identificar os sintomas é fácil. Fazer o O que dizer, então, da liberalização do ars of Educational Devolution in Sweden
as autoridades suecas até foram afinando diagnóstico correcto é difícil. Quem segue sistema educativo, que introduziu escolas (2014) – destacando três principais pro-
as características do seu sistema educa- o debate público na educação já decerto privadas na rede pública? Que, em ter- blemas.
tivo. O ponto é que essas alterações não ouviu várias explicações para o que suce- mos de desempenhos escolares, não está Primeiro: a falta de uma visão sistémica e
foram suficientemente profundas e ágeis deu na Suécia. Duas explicações em parti- relacionada com a queda de resultados. de capacidade instalada. A reforma definiu-
para produzirem resultados imediatos. E cular. Primeira: por causa do aumento de Apesar de este ser um dos aspectos que -se pela sua brusquidão. De um momento
parte da prudência com que essas altera- imigrantes na Suécia, a entrada de alunos mais controvérsia gera no debate, os da- para o outro, entregaram as responsabi-
ções foram preparadas está relacionada estrangeiros no sistema educativo puxou os dos do PISA não confirmam a existência lidades da governação da educação aos
com um fenómeno curioso: enquanto as resultados para baixo. Segunda: a entrada dessa relação causal. E, de facto, é simples municípios – sem apoio ou orientação
avaliações internacionais apontavam para de escolas privadas na rede pública e o perceber os fundamentos dessa rejeição. das autoridades centrais. Resultado: uma
um descalabro, as avaliações nacionais exercício de escolha da escola por parte do Primeiro, porque apenas uma minoria dos montanha de equívocos. Uma vez que os
indicavam uma melhoria consistente dos país desequilibrou o sistema e deteriorou alunos frequenta escolas privadas na rede municípios não foram preparados para a
resultados escolares. a qualidade das escolas municipais. No pública – e todos os alunos suecos baixa- transição, ou sequer consultados duran-
58 EDUCAÇÃO NA SUÉCIA OPINIÃO 59

Viagem socrática pela


presunção de inocência

Maria João Marques


Segundo nos dizem, enquanto não houver uma sentença
judicial transitada em julgado, devemos permanecer to-
dos intimamente convencidos de que Sócrates é inocente
te o processo de concepção da reforma, -se mesmo uma agência exclusivamente -se o currículo e as metas, tornando-as mais sem ter um plano sustentável para o efeito,
ficaram desorientados sem perceber, para a inspecção das escolas. claras e fáceis de apreender. Introduziu-se como se viu na posterior implementação
efectivamente, quais eram as suas novas Terceiro: a impreparação dos professores um novo sistema de avaliação para tornar e desorientação de todos os envolvidos.
responsabilidades. Consequentemente, para lidar com novos desafios. A transi- mais fiável a monitorização dos desem- Segundo: se é certo que a reforma, tal
cada município fez o possível em função
das circunstâncias com que se foi depa-
rando, sem qualquer estratégia ou visão
ção de competências para municípios e o
aumento de autonomia nas escolas, que
foram um choque para muitos professores.
penhos dos alunos. Apostou-se na forma-
ção inicial dos professores e impôs-se a
obrigatoriedade de realização de estágio
como desenhada no início, não correu
bem, os motivos por detrás disso estão
muito longe daqueles que ainda motivam
como um rebento de jasmim a aromatizar um chá verde.
sistémica. E, também, com grandes falhas A ausência de orientações de uma autori- pedagógico. E flexibilizaram-se as regras o debate político. Tanto a direita como a
de capacidade instalada, uma vez que os dade central deixou, para muitos, um vazio de financiamento, de modo a poder apoiar esquerda, inclusive em Portugal, recorre- O caso Sócrates mostra-nos rantia de que não cometeu nenhum crime: É isto: temos gente que tem espaço em em 2007 e que, nesta, os prazos de inves-
municípios não tinham recursos humanos inesperado: que opções curriculares tomar, alunos à medida do grau das suas neces- ram aos seus preconceitos para avaliar a bem como há gente naquela instituição é reconhecimento de que não há indícios jornais e televisões, numa democracia li- tigação de que Sócrates se queixa foram
qualificados para assumir as novas funções. que abordagens pedagógicas preferir, que sidades – alunos com mais dificuldades reforma – seja culpando a imigração (direi- própria das democracias – comunicação suficientemente fortes para levar à privação beral em 2017, a afirmar que os indivíduos considerados bons para aplicar à populaça
Segundo: um desequilíbrio de poderes. projecto educativo implementar? Os profes- justificam maior financiamento às escolas. ta) ou as escolas privadas (esquerda). Em social independente – que não percebe o de liberdade, ao pagamento de multas e não podem ajuizar por si próprios da cul- não política.
Por um lado, as autoridades centrais de- sores suecos não estavam preparados para Os resultados apareceram. No PISA 2015, boa verdade, o que falhou na reforma do que é uma democracia. Os anos formativos indemnizações, à censura pública em forma pabilidade de um ex-primeiro-ministro. As O que importa é questionar o tempo da
finiram para si mesmas competências de terem de tomar estas decisões. Além de que, a Suécia inverteu a tendência negativa, sistema educativo foi o aspecto organiza- passaram-nos no Estado Novo ou durante de condenação. Desde logo porque muitos convicções de cada um não podem ser por investigação – de que Sócrates é o primeiro
monitorização e fiscalização do desempe- no processo de desenho da reforma, poucas com resultados equiparados ou superiores cional – a descentralização, a nova divisão a década seguinte ao 25 de Abril e, vai daí, crimes são difíceis de provar – os crimino- si determinadas, nada disso, temos de ficar responsável político – não vá alguém lem-
nho do sistema educativo. O problema foi vezes foram consultados. A adaptação fez-se à média da OCDE nas três áreas avaliadas. de responsabilidades, a capacidade insta- nunca mais abandonaram os mecanismos sos geralmente aproveitam-se da falta de à espera que um tribunal nos diga como brar-se de perguntar como paga Sócrates
que falharam em construir os instrumentos no terreno, com a implementação da refor- A melhoria de desempenhos foi, de resto, lada para tomar decisões sem pressões do de respeitinho e temor. Não concebem esse testemunhas e de registos de imagem e som devemos considerar, na nossa consciência, as custas judiciais de todos os recursos
necessários para impor o respeito pelas ma em andamento – o que, obviamente, transversal: diminuiu a percentagem de alu- ministério, a preparação para tirar proveito conceito excêntrico de uma consciência para cometerem os crimes. Só nas séries Sócrates – inocente ou culpado. Vade retro fracassados que interpôs. Ou os advogados.
regras e pelos objectivos definidos a nível significa que sob pressão nem sempre se nos que se posiciona no fundo e aumentou da autonomia, os mecanismos de avaliação individual que avalia o mundo por si e televisivas como The Closer é que Kyra Sed- conceito demoníaco de formar opinião em Porque a grande fortuna da mãe afinal era
nacional. Na prática, os seus poderes fica- tomaram as opções mais correctas. a percentagem dos que alcançam desempe- e de fiscalização. Se, durante anos, o debate pelos seus valores. Um indivíduo teima gwick convence os meliantes a confessarem regime de livre iniciativa. O estado ensina- mesmo só alegada.
ram muito limitados, dificultando a relação Dito de forma simples: a reforma do siste- nhos de topo. Nada disso impede o reconhe- se alongou, hoje o diagnóstico está feito. numa opinião que não está validada pe- tudo. Acresce que a justiça é administrada -lhe generosamente em que acreditar. Temos de reconhecer: quem se entrega
com os municípios incumpridores – não ma educativo sueco bloqueou nas questões cimento de que muitos dos desafios ainda Insistir no erro, de um lado ou de outro, las autoridades ou, no mínimo, por umas por humanos, limitados, com a tendência Para mim isto é mais ou menos a des- a argumentar tanto disparate não o faz em
havia forma de forçar o cumprimento de organizacionais. Ao nível das autoridades estão por resolver, nomeadamente quanto já não tem desculpa. eleições? O drama e o horror. para disparatar que todos temos (mesmo crição de um mundo distópico – só temos defesa de Sócrates. Está a defender o seu
estratégias que assegurassem o respeito pe- locais, que sentiram dificuldades em assu- à imigração e às desigualdades sociais. Mas, Terceiro: se os suecos falharam no pla- Vejam, por exemplo, os disparates que quando com boas intenções), e suscetíveis autorização para pensar e crer como os valor de mercado depois de ter gloriosa-
las metas nacionais. Por outro lado, nos mu- mir as novas responsabilidades. Ao nível após uma década em queda, o recente PISA neamento da implementação da reforma, foram ditos e escritos sobre a presunção a preconceitos e estados de alma. tribunais nos guiam – mas aparentemente mente enfiado o barrete da modernidade
nicípios, o poder de distribuição das verbas das autoridades centrais, que não souberam 2015 permite um optimismo moderado acertaram na correcção dos seus erros. de inocência de Sócrates. A presunção Mas do que se lê por aí os argumentos pela por cá é opinião valorizada. Em vez de ser e do otimismo socrático. Afinal, que credi-
orçamentais pareceu demasiado pesado desde o início tomar uma posição de mo- quanto ao futuro do sistema sueco. Em momento algum esteve em causa uma de inocência é um conceito jurídico que presunção de inocência de Sócrates são ain- recebida com gargalhadas e comentários bilidade têm os jornalistas e comentadores
para as suas estruturas. Sem capacidade nitorização e fiscalização suficientemente reversão política do caminho trilhado e garante que ninguém é condenado sem da mais salazarentos que esta constatação de “o tipo é lunático”, estas opiniões são que passaram anos enamorados de Sócra-
para gerir a informação e os dados para forte, deixando o sistema entregue a si pró- So what? As três lições a destruição dos pilares que definiram a que existam provas sólidas de um crime de que a justiça humana é falível. Segun- tidas como sensatas. tes e defendendo-o mesmo nos momentos
aferir as necessidades das escolas, as ver- prio. E ao nível das escolas, onde professo- reforma do sistema educativo. Os ajustes e cometido. Ponto final. Ora como qualquer do nos dizem, enquanto não houver uma Passa-se o mesmo com o escândalo infin- indefensáveis? Ou a atacar quem investigou
bas foram essencialmente distribuídas em res e directores tiveram a necessidade de políticas a retirar da as melhorias introduzidas foram respostas pessoa pensante percebe, o que existe e sentença judicial transitada em julgado, dável com o tempo que demora a investiga- Sócrates, do MP ao Correio da Manhã? Ne-
função de escolhas políticas, desvirtuando tomar decisões para as quais não se tinham reforma educativa na necessárias a problemas concretos. Andar ocorre no mundo, seja criminoso ou não, devemos permanecer todos intimamente ção a Sócrates. Pobre homem perseguido. nhuma, evidentemente. A quem interessa
as regras do sistema de financiamento. O preparado atempadamente. Suécia aos ziguezagues, entre reformas e contra- não é apenas o que é suscetível de ser pro- convencidos de que Sócrates é inocente Que justiça malévola. Vamos convocar uma ler e ouvir a opinião de pessoas confusas
reconhecimento destes problemas levou Ora, feito o diagnóstico, aplicou-se o -reformas, nunca é a solução. vado em tribunal – e provado segundo como um rebento de jasmim a aromatizar manifestação para carpirmos todos juntos que não viram como Sócrates era tóxico?
a que, ao longo de uma década, a Suécia tratamento. Nos últimos cinco anos, re- Primeiro: as reformas baseadas na ideo- regras que são elas próprias mutáveis e um chá verde. Quando, e se, houver conde- esta justiça abusadora que esmaga como A ninguém. Se erraram tão rotundamente
procurasse reforçar as suas instituições de forçaram-se os mecanismos de prestação logia, em vez de num plano sustentado em Alexandre Homem Cristo é colunista discutíveis, não desceram dos céus como nação pelos tribunais, passaremos então, no um mosquito um cidadão indefeso. Im- aqui, errarão no resto.
monitorização, revendo a sua natureza e de contas, com regras mais apertadas para evidências, reúnem todos os ingredientes do Observador. Foi Conselheiro Nacional de presente intergalático de uma qualquer momento em que lermos ou ouvirmos tal portante é concentramos as críticas no
os seus poderes – por exemplo, em 2003 as inspecções escolares. Harmonizaram-se para correr mal. Olhando para trás, é im- Educação e é autor do estudo “Escolas para deusa da justiça do mundo greco-romano. ansiada notícia, a acreditar convictamente Ministério Público e nos tribunais. Nada de Maria João Marques é empresária,
voltou a haver inspecções nas escolas por as regras de fiscalização às escolas, sendo pressionante como o governo sueco alterou o Século XXI”, publicado pela Fundação Alguém ser absolvido em tribunal, ou (por ordem do tribunal) que Sócrates é lembrar que o governo de José Sócrates e licenciada em Economia, mestre em Estudos
uma autoridade central e, em 2008, criou- comuns para municipais e privadas. Reviu- os pilares de todo um sistema educativo Francisco Manuel dos Santos. nem sequer ser acusado, não é selo de ga- culpado dos crimes por que for condenado. de António Costa fez uma reforma penal Orientais e colunista do Observador.
58 EDUCAÇÃO NA SUÉCIA OPINIÃO 59

Viagem socrática pela


presunção de inocência

Maria João Marques


Segundo nos dizem, enquanto não houver uma sentença
judicial transitada em julgado, devemos permanecer to-
dos intimamente convencidos de que Sócrates é inocente
te o processo de concepção da reforma, -se mesmo uma agência exclusivamente -se o currículo e as metas, tornando-as mais sem ter um plano sustentável para o efeito,
ficaram desorientados sem perceber, para a inspecção das escolas. claras e fáceis de apreender. Introduziu-se como se viu na posterior implementação
efectivamente, quais eram as suas novas Terceiro: a impreparação dos professores um novo sistema de avaliação para tornar e desorientação de todos os envolvidos.
responsabilidades. Consequentemente, para lidar com novos desafios. A transi- mais fiável a monitorização dos desem- Segundo: se é certo que a reforma, tal
cada município fez o possível em função
das circunstâncias com que se foi depa-
rando, sem qualquer estratégia ou visão
ção de competências para municípios e o
aumento de autonomia nas escolas, que
foram um choque para muitos professores.
penhos dos alunos. Apostou-se na forma-
ção inicial dos professores e impôs-se a
obrigatoriedade de realização de estágio
como desenhada no início, não correu
bem, os motivos por detrás disso estão
muito longe daqueles que ainda motivam
como um rebento de jasmim a aromatizar um chá verde.
sistémica. E, também, com grandes falhas A ausência de orientações de uma autori- pedagógico. E flexibilizaram-se as regras o debate político. Tanto a direita como a
de capacidade instalada, uma vez que os dade central deixou, para muitos, um vazio de financiamento, de modo a poder apoiar esquerda, inclusive em Portugal, recorre- O caso Sócrates mostra-nos rantia de que não cometeu nenhum crime: É isto: temos gente que tem espaço em em 2007 e que, nesta, os prazos de inves-
municípios não tinham recursos humanos inesperado: que opções curriculares tomar, alunos à medida do grau das suas neces- ram aos seus preconceitos para avaliar a bem como há gente naquela instituição é reconhecimento de que não há indícios jornais e televisões, numa democracia li- tigação de que Sócrates se queixa foram
qualificados para assumir as novas funções. que abordagens pedagógicas preferir, que sidades – alunos com mais dificuldades reforma – seja culpando a imigração (direi- própria das democracias – comunicação suficientemente fortes para levar à privação beral em 2017, a afirmar que os indivíduos considerados bons para aplicar à populaça
Segundo: um desequilíbrio de poderes. projecto educativo implementar? Os profes- justificam maior financiamento às escolas. ta) ou as escolas privadas (esquerda). Em social independente – que não percebe o de liberdade, ao pagamento de multas e não podem ajuizar por si próprios da cul- não política.
Por um lado, as autoridades centrais de- sores suecos não estavam preparados para Os resultados apareceram. No PISA 2015, boa verdade, o que falhou na reforma do que é uma democracia. Os anos formativos indemnizações, à censura pública em forma pabilidade de um ex-primeiro-ministro. As O que importa é questionar o tempo da
finiram para si mesmas competências de terem de tomar estas decisões. Além de que, a Suécia inverteu a tendência negativa, sistema educativo foi o aspecto organiza- passaram-nos no Estado Novo ou durante de condenação. Desde logo porque muitos convicções de cada um não podem ser por investigação – de que Sócrates é o primeiro
monitorização e fiscalização do desempe- no processo de desenho da reforma, poucas com resultados equiparados ou superiores cional – a descentralização, a nova divisão a década seguinte ao 25 de Abril e, vai daí, crimes são difíceis de provar – os crimino- si determinadas, nada disso, temos de ficar responsável político – não vá alguém lem-
nho do sistema educativo. O problema foi vezes foram consultados. A adaptação fez-se à média da OCDE nas três áreas avaliadas. de responsabilidades, a capacidade insta- nunca mais abandonaram os mecanismos sos geralmente aproveitam-se da falta de à espera que um tribunal nos diga como brar-se de perguntar como paga Sócrates
que falharam em construir os instrumentos no terreno, com a implementação da refor- A melhoria de desempenhos foi, de resto, lada para tomar decisões sem pressões do de respeitinho e temor. Não concebem esse testemunhas e de registos de imagem e som devemos considerar, na nossa consciência, as custas judiciais de todos os recursos
necessários para impor o respeito pelas ma em andamento – o que, obviamente, transversal: diminuiu a percentagem de alu- ministério, a preparação para tirar proveito conceito excêntrico de uma consciência para cometerem os crimes. Só nas séries Sócrates – inocente ou culpado. Vade retro fracassados que interpôs. Ou os advogados.
regras e pelos objectivos definidos a nível significa que sob pressão nem sempre se nos que se posiciona no fundo e aumentou da autonomia, os mecanismos de avaliação individual que avalia o mundo por si e televisivas como The Closer é que Kyra Sed- conceito demoníaco de formar opinião em Porque a grande fortuna da mãe afinal era
nacional. Na prática, os seus poderes fica- tomaram as opções mais correctas. a percentagem dos que alcançam desempe- e de fiscalização. Se, durante anos, o debate pelos seus valores. Um indivíduo teima gwick convence os meliantes a confessarem regime de livre iniciativa. O estado ensina- mesmo só alegada.
ram muito limitados, dificultando a relação Dito de forma simples: a reforma do siste- nhos de topo. Nada disso impede o reconhe- se alongou, hoje o diagnóstico está feito. numa opinião que não está validada pe- tudo. Acresce que a justiça é administrada -lhe generosamente em que acreditar. Temos de reconhecer: quem se entrega
com os municípios incumpridores – não ma educativo sueco bloqueou nas questões cimento de que muitos dos desafios ainda Insistir no erro, de um lado ou de outro, las autoridades ou, no mínimo, por umas por humanos, limitados, com a tendência Para mim isto é mais ou menos a des- a argumentar tanto disparate não o faz em
havia forma de forçar o cumprimento de organizacionais. Ao nível das autoridades estão por resolver, nomeadamente quanto já não tem desculpa. eleições? O drama e o horror. para disparatar que todos temos (mesmo crição de um mundo distópico – só temos defesa de Sócrates. Está a defender o seu
estratégias que assegurassem o respeito pe- locais, que sentiram dificuldades em assu- à imigração e às desigualdades sociais. Mas, Terceiro: se os suecos falharam no pla- Vejam, por exemplo, os disparates que quando com boas intenções), e suscetíveis autorização para pensar e crer como os valor de mercado depois de ter gloriosa-
las metas nacionais. Por outro lado, nos mu- mir as novas responsabilidades. Ao nível após uma década em queda, o recente PISA neamento da implementação da reforma, foram ditos e escritos sobre a presunção a preconceitos e estados de alma. tribunais nos guiam – mas aparentemente mente enfiado o barrete da modernidade
nicípios, o poder de distribuição das verbas das autoridades centrais, que não souberam 2015 permite um optimismo moderado acertaram na correcção dos seus erros. de inocência de Sócrates. A presunção Mas do que se lê por aí os argumentos pela por cá é opinião valorizada. Em vez de ser e do otimismo socrático. Afinal, que credi-
orçamentais pareceu demasiado pesado desde o início tomar uma posição de mo- quanto ao futuro do sistema sueco. Em momento algum esteve em causa uma de inocência é um conceito jurídico que presunção de inocência de Sócrates são ain- recebida com gargalhadas e comentários bilidade têm os jornalistas e comentadores
para as suas estruturas. Sem capacidade nitorização e fiscalização suficientemente reversão política do caminho trilhado e garante que ninguém é condenado sem da mais salazarentos que esta constatação de “o tipo é lunático”, estas opiniões são que passaram anos enamorados de Sócra-
para gerir a informação e os dados para forte, deixando o sistema entregue a si pró- So what? As três lições a destruição dos pilares que definiram a que existam provas sólidas de um crime de que a justiça humana é falível. Segun- tidas como sensatas. tes e defendendo-o mesmo nos momentos
aferir as necessidades das escolas, as ver- prio. E ao nível das escolas, onde professo- reforma do sistema educativo. Os ajustes e cometido. Ponto final. Ora como qualquer do nos dizem, enquanto não houver uma Passa-se o mesmo com o escândalo infin- indefensáveis? Ou a atacar quem investigou
bas foram essencialmente distribuídas em res e directores tiveram a necessidade de políticas a retirar da as melhorias introduzidas foram respostas pessoa pensante percebe, o que existe e sentença judicial transitada em julgado, dável com o tempo que demora a investiga- Sócrates, do MP ao Correio da Manhã? Ne-
função de escolhas políticas, desvirtuando tomar decisões para as quais não se tinham reforma educativa na necessárias a problemas concretos. Andar ocorre no mundo, seja criminoso ou não, devemos permanecer todos intimamente ção a Sócrates. Pobre homem perseguido. nhuma, evidentemente. A quem interessa
as regras do sistema de financiamento. O preparado atempadamente. Suécia aos ziguezagues, entre reformas e contra- não é apenas o que é suscetível de ser pro- convencidos de que Sócrates é inocente Que justiça malévola. Vamos convocar uma ler e ouvir a opinião de pessoas confusas
reconhecimento destes problemas levou Ora, feito o diagnóstico, aplicou-se o -reformas, nunca é a solução. vado em tribunal – e provado segundo como um rebento de jasmim a aromatizar manifestação para carpirmos todos juntos que não viram como Sócrates era tóxico?
a que, ao longo de uma década, a Suécia tratamento. Nos últimos cinco anos, re- Primeiro: as reformas baseadas na ideo- regras que são elas próprias mutáveis e um chá verde. Quando, e se, houver conde- esta justiça abusadora que esmaga como A ninguém. Se erraram tão rotundamente
procurasse reforçar as suas instituições de forçaram-se os mecanismos de prestação logia, em vez de num plano sustentado em Alexandre Homem Cristo é colunista discutíveis, não desceram dos céus como nação pelos tribunais, passaremos então, no um mosquito um cidadão indefeso. Im- aqui, errarão no resto.
monitorização, revendo a sua natureza e de contas, com regras mais apertadas para evidências, reúnem todos os ingredientes do Observador. Foi Conselheiro Nacional de presente intergalático de uma qualquer momento em que lermos ou ouvirmos tal portante é concentramos as críticas no
os seus poderes – por exemplo, em 2003 as inspecções escolares. Harmonizaram-se para correr mal. Olhando para trás, é im- Educação e é autor do estudo “Escolas para deusa da justiça do mundo greco-romano. ansiada notícia, a acreditar convictamente Ministério Público e nos tribunais. Nada de Maria João Marques é empresária,
voltou a haver inspecções nas escolas por as regras de fiscalização às escolas, sendo pressionante como o governo sueco alterou o Século XXI”, publicado pela Fundação Alguém ser absolvido em tribunal, ou (por ordem do tribunal) que Sócrates é lembrar que o governo de José Sócrates e licenciada em Economia, mestre em Estudos
uma autoridade central e, em 2008, criou- comuns para municipais e privadas. Reviu- os pilares de todo um sistema educativo Francisco Manuel dos Santos. nem sequer ser acusado, não é selo de ga- culpado dos crimes por que for condenado. de António Costa fez uma reforma penal Orientais e colunista do Observador.
60 O CONSENSO 61

O consenso foi desde o duvidoso princípio do nosso liberalismo


a suprema ambição de quase todos os regimes e governos.
Teve vários nomes — conciliação, partilha, fusão, pastel, marmelada,
juste milieu — e conduziu invariavelmente às piores catástrofes.
Ponham o consenso a governar e vão ver o que arranjam.
Espero que, apesar dos acanha- A paz de 1834 tornou a pôr em cena timos a curto prazo, o futuro programa de e reduzindo as remessas dos emigrantes,
dos limites da sua inteligência e da sua os fervorosos adeptos do “consenso”, de “melhoramentos materiais” (só estradas, que cobriam um terço do défice anual da
quase completa incultura histórica, os que, como se sabe, D. Pedro fazia parte. por enquanto). De nada lhe valeu. Perse- balança de pagamentos, provocou uma
promotores do consenso — que hoje vão Em Setembro, antes de morrer, nomeou guido pelo intenso ódio dos setembristas, crise duradora. E a crise foi, como sempre,
do Presidente da República ao mais pe- Palmela. E Palmela, por excelência o ho- que se manifestavam de norte a sul numa a grande oportunidade para os loucos e
queno oportunista do CDS; e, como de mem das combinações, partiu em busca imprensa livre; insultado, caluniado, cari- aventureiros que rondavam o regime e “a
costume, vêm da classe dirigente e dos da concórdia universal. Essa concórdia caturado, perante a indiferença e o deleite gente de bem”. Mas, significativamente,
grupos privilegiados da sociedade portu- era agora, segundo a opinião da opinião dos que ele protegia e dos que aspiravam no meio da balbúrdia os partidários do
guesa — percebam a figura triste e nociva “respeitável”, a amalgação (uma palavra a substituí-lo, Cabral ficou isolado, com o consenso criaram a Fusão, que juntava a
que andam a fazer. O consenso foi desde o do vocabulário militar francês) entre os único apoio da rainha e um segmento do ala direita do Partido Histórico de Loulé
duvidoso princípio do nosso liberalismo a liberais conservadores e os miguelistas exército, cada vez menor, que obedecia a (a “unha branca”), herdeiro da Patuleia,
suprema ambição de quase todos os regi- que ainda mandavam no norte, no centro Terceira. Se houvesse um embaraço ou um com a ala esquerda da direita, que Fon-
mes e governos (tirando, claro, o Terror de e no interior (alguns “grandes” do Reino, erro, cairia logo. E em 46 houve um em- tes comandava. Este suavíssimo arranjo
D. Miguel, o de Afonso Costa e a Ditadura de pequena nobreza territorial, morgados, an- baraço financeiro, que o forçou a decretar aguentou-se perto de dois anos e caiu pe-
Salazar). Nem sempre se chamou consenso. tigos oficiais da já extinta Milícia). Bastaram o célebre “imposto de repartição”, igual rante a denominada “Janeirinha” (um le-
Teve vários nomes: conciliação, partilha, uns meses para o nobre duque, o primeiro ao que existia em França; e também um vantamento contra o imposto de consumo
fusão, pastel, marmelada, amalgação, con- presidente do Conselho português, se ver erro incompreensível, a lei sanitária, que e uma reforma administrativa que diminuía
vivência, juste milieu, regeneração e união obrigado a fugir pelos telhados de Lisboa proibia que se enterrassem os mortos nas o número de concelhos) deixando como de
nacional (muito antes do Estado Novo). para não ser morto pela plebe jacobina. igrejas e os mandava enterrar nos cemité- costume o caos atrás de si.
E conduziu invariavelmente às piores ca- Nunca mais se atreveu a mostrar a cara rios. Daqui nasceu a revolta dita da Maria Mas, por sorte, a guerra do Paraguai
tástrofes, quando não conduziu ao longo e o governo que continuou em funções, da Fonte e logo a seguir outra guerra civil, acabou e em Outubro de 1871 Fontes to-
monopólio do poder de um único partido. dirigido por Silva Carvalho, quis logo fa- a da Patuleia. mou conta do país, com pequenas inter-
A história começa em 1823-25, depois bricar um novo “consenso”, desta vez entre A guerra, ela própria, não passou de uma mitências, até 1886. O Partido Progressista
da Vila-Francada, quando D. João VI de- os moderados e os radicais do liberalismo. mascarada, em que ainda assim morreram (resultado de outra “fusão”, a do Partido
cidiu seguir uma via média que sossegasse Falhou também e a inevitável consequência 3.000 homens, que divertia o Times mas Reformista, fundado pelo radicalismo
tanto os jacobinos vintistas como os apos- foi a chamada “revolução de Setembro” e que enfurecia as Potências. A Inglaterra moderno e pela “unha negra” do tempo
tólicos realistas, prometendo vagamente uma segunda guerra civil. e a Espanha depressa resolveram pôr os de Loulé, com o Partido Histórico) caiu
uma Carta Constitucional, e indo buscar Esta excelentíssima emergência do radi- portugueses na ordem. Palmerston ditou com os desastres de 1867-68, a inflação e
os representantes da Inglaterra e da França calismo à tona das águas turvas de Lisboa, os termos da paz e um exército espanhol a mobilização popular dos “mitingueiros”.
(que ocupava a Espanha), respectivamente, do Porto e do país provocou um ano de submeteu os rebeldes do Porto. E a seguir Daí nasceram os governos de “concentra-
Palmela e Subserra, os dois sem a mais leve perseguições (com generosa aplicação aos Costa Cabral, que andava escondido sob ção partidária” e “extra-partidários”, que
influência em Portugal, para com eles apre- incréus de tortura e cadeia). Em Março de o disfarce de embaixador em Madrid, vol- achavam eles reuniam o consenso do país
sentar ao “povo” um ministério ecuménico, 38, os Batalhões Nacionais, braço arma- tou a Portugal e pretendeu discretamente político e letrado. Não reuniam. Quando as
que só existia na fantasia dos “moderados”, do da revolução, atraídos ao Rossio pelos conciliar as facções sem perceber que o coisas acalmaram, começou o rotativismo,
e depressa caiu. E, já agora, o Rei também chefes que tinham derrotado o exército da chefe do exclusivismo nunca podia ser o que se aguentou com várias deformações
resolveu, para acalmar “os ânimos”, fazer Carta e uma dúzia de civis “arrependidos” chefe da concertação. Provocado por isto, até 1906, quando D. Carlos entregou o
a paz com D. Pedro e aceitar a “união de (Costa Cabral , por exemplo) acabaram e pelo regresso de Costa Cabral ao favor poder ao Partido Regenerador-Liberal
coroas”, que por natureza só se lhe aplicava cercados e fuzilados por tropas “seguras”, da rainha e à presidência do Conselho em de João Franco, um partido da burguesia
a ele e pela qual Portugal reconhecia oficial- no célebre “massacre do Rossio”. Muitas 1850, Saldanha revoltou o exército do Norte bem-pensante, e declarou em público que
mente o Brasil (1825). Isto causou a maior dezenas morreram e durante uns dias apa- e desceu para Lisboa. Ao seu encontro foi o antigo regime era um “gâchis” e devia
confusão “de interesses e de homens”, para receram cadáveres a boiar no Tejo. o exército do Sul, comandado pelo marido ser rapidamente liquidado. Franco desapa-
parafrasear Oliveira Martins. Esta “vitória” permitiu ao Portugal letra- da rainha, D. Fernando. Nem D. Fernando, receu de cena com o assassinato. No curto
Mas D. Pedro arranjou um sarilho mui- do pensar outra vez na sua indispensável nem Saldanha queriam combater: e não reinado de D. Manuel II (1908-1910) houve
to pior. Pela necessidade de não parecer união. Os deputados a uma nova Consti- combateram. Vieram juntos para Lisboa seis governos e ninguém se entendia com
absoluto no seu novo Império e, como de tuinte, eleita pelos setembristas, tentaram e Saldanha tomou conta do poder, que ninguém, nem os republicanos entre si.
costume, preocupado com a harmonia e o fabricar uma Constituição tanto quanto com a fuga de Cabral estava vago. Era a Da República não vale a pena falar: foi o
acordo da “família portuguesa”, outorgou possível parecida com a Carta (abolida em Regeneração. terrorismo até Dezembro de 1917 e a seguir
uma Carta Constitucional, que ninguém 36). E fabricaram. Parecia que o consenso A Regeneração era finalmente o consen- uma ilimitada corrupção, que se julgava
lhe pedira e ninguém lhe agradecia, con- estava finalmente estabelecido e, mais, so. Como disse João Franco, na essência favorável a Portugal inteiro, sem distinções
geminada no Rio, entregue em Lisboa por institucionalizado. Durou quatro anos. Em servia para “apascentar duas clientelas”, geográficas e sociais. Salazar extinguiu
um emissário inglês e, no fim, imposta 42, o conde de Santa Maria, governador das alternada ou simultaneamente, a dos estes festejos e estabeleceu a ditadura que
a Portugal por um pronunciamento de armas do Porto, incitado pelo ministro da cartistas e a dos setembristas. Saldanha se conhece ou que talvez hoje, 2017, já seja
Saldanha. Mas mais grave do que a Carta Justiça de um ministério centrista, Costa começou por neutralizar o exército, pro- uma memória vaga. Mas mesmo Salazar
era a solução dinástica: D. Pedro deu aos Cabral, proclamou a Carta e Costa Cabral movendo todos os oficiais (miguelistas, não se coibiu de ridicularizar o consenso.
liberais uma Câmara electiva e aos realistas voltou para Lisboa, onde o receberam em cartistas ou setembristas) ao posto a que A oposição pedia liberdade. Mas para quê?
uma Câmara dos Pares (hereditária, como triunfo. por antiguidade tinham direito. Esta “pro- Para, como antigamente procurar a união
se calculará) que ele mesmo escolheu. Para O regime que se seguiu, presidido pelo moção-monstro” transformou o exército dos democratas? Se era de união que se
resolver o caso bicudo da sucessão no- marechal duque da Terceira, adoptou, que numa agremiação passiva e burocrática, tratava, ela já existia e chamava-se União
meou D. Miguel Regente, se e quando ele outra coisa!, o juste milieu e só excluía e de que para não perturbar a “escala” daí em Nacional, que, como se sabia, não era um
jurasse a Carta e mais tarde se casasse com facto só excluiu os impenitentes do migue- diante recusou qualquer aventura política. partido. Em 1968, quando Caetano chegou,
a filha dele, Dona Maria, na altura com lismo e do jacobinismo, que recusavam a lei As clientelas da esquerda e da direita fo- chegou preso à guerra colonial e às polí-
7 anos. Era a solução das notabilidades e constitucional em vigor. Esta política ficou ram logo distribuídas pelo país, e durante cias, o que não o impediu, segundo as suas

O consenso
dos chefes moderados e sérios dos dois conhecida pelo nome de exclusivismo, sessenta anos sugaram o “povinho” com próprias palavras, de procurar sempre o
lados do conflito larvar do reino. Da he- o que mostra bem a educação histórica entusiasmo e minúcia. O primeiro governo “ponto de equilíbrio” da “razão e do senso”.
rança do bom rei João, D. Pedro ficava com do indigenato. De qualquer maneira esta da Regeneração, o de Saldanha, misturava Na nossa II (ou III) República, recebe-
o Brasil e o irmão com Portugal: metade- clássica tentativa de “consenso”, que che- toda a gente e até apanhava gente nova, mos sem protesto o Bloco Central e agora
-metade, como aconselhava o bom senso. A gara de França, não se aguentou muito como Fontes Pereira de Melo. Durou cinco temos os propagandistas do consenso.
guerra civil explodiu dali a semanas (1826) tempo. Cabral pagava pontualmente ao anos. A seguir veio um governo de Loulé Ponham o consenso a governar e verão o
e durou até 1834, deixando para trás cente- funcionalismo do Estado, restabeleceu (tio do rei), ou seja, dos setembristas con- que arranjam.
nas de milhares de mortos (entre militares relações normais com Roma e a hierar- vertidos à Carta, que durou de 1856 a 1865

Vasco Pulido Valente


e população civil) e o país exausto e num quia da Igreja, tomou algumas medidas com um pequeno intervalo de um ano. Vasco Pulido Valente é historiador
caos impossível de descrever aqui como para aumentar a segurança da população Em 1865, a guerra do Paraguai (1864- e colunista do Observador. O seu último livro
ele merece. e começou hesitantemente, com emprés- -1870), desvalorizando a moeda brasileira chama-se “De Mal a Pior”.
60 O CONSENSO 61

O consenso foi desde o duvidoso princípio do nosso liberalismo


a suprema ambição de quase todos os regimes e governos.
Teve vários nomes — conciliação, partilha, fusão, pastel, marmelada,
juste milieu — e conduziu invariavelmente às piores catástrofes.
Ponham o consenso a governar e vão ver o que arranjam.
Espero que, apesar dos acanha- A paz de 1834 tornou a pôr em cena timos a curto prazo, o futuro programa de e reduzindo as remessas dos emigrantes,
dos limites da sua inteligência e da sua os fervorosos adeptos do “consenso”, de “melhoramentos materiais” (só estradas, que cobriam um terço do défice anual da
quase completa incultura histórica, os que, como se sabe, D. Pedro fazia parte. por enquanto). De nada lhe valeu. Perse- balança de pagamentos, provocou uma
promotores do consenso — que hoje vão Em Setembro, antes de morrer, nomeou guido pelo intenso ódio dos setembristas, crise duradora. E a crise foi, como sempre,
do Presidente da República ao mais pe- Palmela. E Palmela, por excelência o ho- que se manifestavam de norte a sul numa a grande oportunidade para os loucos e
queno oportunista do CDS; e, como de mem das combinações, partiu em busca imprensa livre; insultado, caluniado, cari- aventureiros que rondavam o regime e “a
costume, vêm da classe dirigente e dos da concórdia universal. Essa concórdia caturado, perante a indiferença e o deleite gente de bem”. Mas, significativamente,
grupos privilegiados da sociedade portu- era agora, segundo a opinião da opinião dos que ele protegia e dos que aspiravam no meio da balbúrdia os partidários do
guesa — percebam a figura triste e nociva “respeitável”, a amalgação (uma palavra a substituí-lo, Cabral ficou isolado, com o consenso criaram a Fusão, que juntava a
que andam a fazer. O consenso foi desde o do vocabulário militar francês) entre os único apoio da rainha e um segmento do ala direita do Partido Histórico de Loulé
duvidoso princípio do nosso liberalismo a liberais conservadores e os miguelistas exército, cada vez menor, que obedecia a (a “unha branca”), herdeiro da Patuleia,
suprema ambição de quase todos os regi- que ainda mandavam no norte, no centro Terceira. Se houvesse um embaraço ou um com a ala esquerda da direita, que Fon-
mes e governos (tirando, claro, o Terror de e no interior (alguns “grandes” do Reino, erro, cairia logo. E em 46 houve um em- tes comandava. Este suavíssimo arranjo
D. Miguel, o de Afonso Costa e a Ditadura de pequena nobreza territorial, morgados, an- baraço financeiro, que o forçou a decretar aguentou-se perto de dois anos e caiu pe-
Salazar). Nem sempre se chamou consenso. tigos oficiais da já extinta Milícia). Bastaram o célebre “imposto de repartição”, igual rante a denominada “Janeirinha” (um le-
Teve vários nomes: conciliação, partilha, uns meses para o nobre duque, o primeiro ao que existia em França; e também um vantamento contra o imposto de consumo
fusão, pastel, marmelada, amalgação, con- presidente do Conselho português, se ver erro incompreensível, a lei sanitária, que e uma reforma administrativa que diminuía
vivência, juste milieu, regeneração e união obrigado a fugir pelos telhados de Lisboa proibia que se enterrassem os mortos nas o número de concelhos) deixando como de
nacional (muito antes do Estado Novo). para não ser morto pela plebe jacobina. igrejas e os mandava enterrar nos cemité- costume o caos atrás de si.
E conduziu invariavelmente às piores ca- Nunca mais se atreveu a mostrar a cara rios. Daqui nasceu a revolta dita da Maria Mas, por sorte, a guerra do Paraguai
tástrofes, quando não conduziu ao longo e o governo que continuou em funções, da Fonte e logo a seguir outra guerra civil, acabou e em Outubro de 1871 Fontes to-
monopólio do poder de um único partido. dirigido por Silva Carvalho, quis logo fa- a da Patuleia. mou conta do país, com pequenas inter-
A história começa em 1823-25, depois bricar um novo “consenso”, desta vez entre A guerra, ela própria, não passou de uma mitências, até 1886. O Partido Progressista
da Vila-Francada, quando D. João VI de- os moderados e os radicais do liberalismo. mascarada, em que ainda assim morreram (resultado de outra “fusão”, a do Partido
cidiu seguir uma via média que sossegasse Falhou também e a inevitável consequência 3.000 homens, que divertia o Times mas Reformista, fundado pelo radicalismo
tanto os jacobinos vintistas como os apos- foi a chamada “revolução de Setembro” e que enfurecia as Potências. A Inglaterra moderno e pela “unha negra” do tempo
tólicos realistas, prometendo vagamente uma segunda guerra civil. e a Espanha depressa resolveram pôr os de Loulé, com o Partido Histórico) caiu
uma Carta Constitucional, e indo buscar Esta excelentíssima emergência do radi- portugueses na ordem. Palmerston ditou com os desastres de 1867-68, a inflação e
os representantes da Inglaterra e da França calismo à tona das águas turvas de Lisboa, os termos da paz e um exército espanhol a mobilização popular dos “mitingueiros”.
(que ocupava a Espanha), respectivamente, do Porto e do país provocou um ano de submeteu os rebeldes do Porto. E a seguir Daí nasceram os governos de “concentra-
Palmela e Subserra, os dois sem a mais leve perseguições (com generosa aplicação aos Costa Cabral, que andava escondido sob ção partidária” e “extra-partidários”, que
influência em Portugal, para com eles apre- incréus de tortura e cadeia). Em Março de o disfarce de embaixador em Madrid, vol- achavam eles reuniam o consenso do país
sentar ao “povo” um ministério ecuménico, 38, os Batalhões Nacionais, braço arma- tou a Portugal e pretendeu discretamente político e letrado. Não reuniam. Quando as
que só existia na fantasia dos “moderados”, do da revolução, atraídos ao Rossio pelos conciliar as facções sem perceber que o coisas acalmaram, começou o rotativismo,
e depressa caiu. E, já agora, o Rei também chefes que tinham derrotado o exército da chefe do exclusivismo nunca podia ser o que se aguentou com várias deformações
resolveu, para acalmar “os ânimos”, fazer Carta e uma dúzia de civis “arrependidos” chefe da concertação. Provocado por isto, até 1906, quando D. Carlos entregou o
a paz com D. Pedro e aceitar a “união de (Costa Cabral , por exemplo) acabaram e pelo regresso de Costa Cabral ao favor poder ao Partido Regenerador-Liberal
coroas”, que por natureza só se lhe aplicava cercados e fuzilados por tropas “seguras”, da rainha e à presidência do Conselho em de João Franco, um partido da burguesia
a ele e pela qual Portugal reconhecia oficial- no célebre “massacre do Rossio”. Muitas 1850, Saldanha revoltou o exército do Norte bem-pensante, e declarou em público que
mente o Brasil (1825). Isto causou a maior dezenas morreram e durante uns dias apa- e desceu para Lisboa. Ao seu encontro foi o antigo regime era um “gâchis” e devia
confusão “de interesses e de homens”, para receram cadáveres a boiar no Tejo. o exército do Sul, comandado pelo marido ser rapidamente liquidado. Franco desapa-
parafrasear Oliveira Martins. Esta “vitória” permitiu ao Portugal letra- da rainha, D. Fernando. Nem D. Fernando, receu de cena com o assassinato. No curto
Mas D. Pedro arranjou um sarilho mui- do pensar outra vez na sua indispensável nem Saldanha queriam combater: e não reinado de D. Manuel II (1908-1910) houve
to pior. Pela necessidade de não parecer união. Os deputados a uma nova Consti- combateram. Vieram juntos para Lisboa seis governos e ninguém se entendia com
absoluto no seu novo Império e, como de tuinte, eleita pelos setembristas, tentaram e Saldanha tomou conta do poder, que ninguém, nem os republicanos entre si.
costume, preocupado com a harmonia e o fabricar uma Constituição tanto quanto com a fuga de Cabral estava vago. Era a Da República não vale a pena falar: foi o
acordo da “família portuguesa”, outorgou possível parecida com a Carta (abolida em Regeneração. terrorismo até Dezembro de 1917 e a seguir
uma Carta Constitucional, que ninguém 36). E fabricaram. Parecia que o consenso A Regeneração era finalmente o consen- uma ilimitada corrupção, que se julgava
lhe pedira e ninguém lhe agradecia, con- estava finalmente estabelecido e, mais, so. Como disse João Franco, na essência favorável a Portugal inteiro, sem distinções
geminada no Rio, entregue em Lisboa por institucionalizado. Durou quatro anos. Em servia para “apascentar duas clientelas”, geográficas e sociais. Salazar extinguiu
um emissário inglês e, no fim, imposta 42, o conde de Santa Maria, governador das alternada ou simultaneamente, a dos estes festejos e estabeleceu a ditadura que
a Portugal por um pronunciamento de armas do Porto, incitado pelo ministro da cartistas e a dos setembristas. Saldanha se conhece ou que talvez hoje, 2017, já seja
Saldanha. Mas mais grave do que a Carta Justiça de um ministério centrista, Costa começou por neutralizar o exército, pro- uma memória vaga. Mas mesmo Salazar
era a solução dinástica: D. Pedro deu aos Cabral, proclamou a Carta e Costa Cabral movendo todos os oficiais (miguelistas, não se coibiu de ridicularizar o consenso.
liberais uma Câmara electiva e aos realistas voltou para Lisboa, onde o receberam em cartistas ou setembristas) ao posto a que A oposição pedia liberdade. Mas para quê?
uma Câmara dos Pares (hereditária, como triunfo. por antiguidade tinham direito. Esta “pro- Para, como antigamente procurar a união
se calculará) que ele mesmo escolheu. Para O regime que se seguiu, presidido pelo moção-monstro” transformou o exército dos democratas? Se era de união que se
resolver o caso bicudo da sucessão no- marechal duque da Terceira, adoptou, que numa agremiação passiva e burocrática, tratava, ela já existia e chamava-se União
meou D. Miguel Regente, se e quando ele outra coisa!, o juste milieu e só excluía e de que para não perturbar a “escala” daí em Nacional, que, como se sabia, não era um
jurasse a Carta e mais tarde se casasse com facto só excluiu os impenitentes do migue- diante recusou qualquer aventura política. partido. Em 1968, quando Caetano chegou,
a filha dele, Dona Maria, na altura com lismo e do jacobinismo, que recusavam a lei As clientelas da esquerda e da direita fo- chegou preso à guerra colonial e às polí-
7 anos. Era a solução das notabilidades e constitucional em vigor. Esta política ficou ram logo distribuídas pelo país, e durante cias, o que não o impediu, segundo as suas

O consenso
dos chefes moderados e sérios dos dois conhecida pelo nome de exclusivismo, sessenta anos sugaram o “povinho” com próprias palavras, de procurar sempre o
lados do conflito larvar do reino. Da he- o que mostra bem a educação histórica entusiasmo e minúcia. O primeiro governo “ponto de equilíbrio” da “razão e do senso”.
rança do bom rei João, D. Pedro ficava com do indigenato. De qualquer maneira esta da Regeneração, o de Saldanha, misturava Na nossa II (ou III) República, recebe-
o Brasil e o irmão com Portugal: metade- clássica tentativa de “consenso”, que che- toda a gente e até apanhava gente nova, mos sem protesto o Bloco Central e agora
-metade, como aconselhava o bom senso. A gara de França, não se aguentou muito como Fontes Pereira de Melo. Durou cinco temos os propagandistas do consenso.
guerra civil explodiu dali a semanas (1826) tempo. Cabral pagava pontualmente ao anos. A seguir veio um governo de Loulé Ponham o consenso a governar e verão o
e durou até 1834, deixando para trás cente- funcionalismo do Estado, restabeleceu (tio do rei), ou seja, dos setembristas con- que arranjam.
nas de milhares de mortos (entre militares relações normais com Roma e a hierar- vertidos à Carta, que durou de 1856 a 1865

Vasco Pulido Valente


e população civil) e o país exausto e num quia da Igreja, tomou algumas medidas com um pequeno intervalo de um ano. Vasco Pulido Valente é historiador
caos impossível de descrever aqui como para aumentar a segurança da população Em 1865, a guerra do Paraguai (1864- e colunista do Observador. O seu último livro
ele merece. e começou hesitantemente, com emprés- -1870), desvalorizando a moeda brasileira chama-se “De Mal a Pior”.
64 FÁTIMA 65

Fátima:
100 anos
de uma
história
mal
contada
Durante o último século, o que se fez em Fátima
foi isto: manipular um acontecimento até fazer
desaparecer toda a surpresa e complexidade. Mas
Fátima resiste às suas caricaturas. Eis como três
crianças numa charneca iniciaram um dos maiores
movimentos de massa da história de Portugal.

Rui Ramos
Na história de Fátima, a explicação certas circunstâncias, até fazer desaparecer sistematicamente documentado. Sem sair dizia o cónego Manuel Nunes Formigão, de Fátima conseguiram ser claros. Em que revelações. Eram meninos incultos? Não pelas cidades. Para eles, a população que uma população integrada no Estado e na
mais simples é a da “aparição” – ou da “vi- toda a sua surpresa e complexidade. Em A da história, é possível sugerir um contexto professor do Seminário de Santarém, “não sentido eram os pais das crianças “gente frequentavam a escola, mas uma das reco- cavava a terra e criava gado era uma mas- igreja, que fazia muita questão de respeitar
são”, como preferem os teólogos mais me- Fabricação de Fátima, traduzido em 1971, mais interessante para Fátima do que o da são cabeças onde pudesse germinar o gigan- pobre”? Na aldeia de Aljustrel, os seus vi- mendações da Virgem foi que aprendessem sa indistintamente “pobre” e “simples”. a autoridade, fosse a do clero ou a da admi-
lindrosos – da Virgem Maria. Todas as outras o professor da Universidade de Estrasburgo “religiosidade popular” e o do conflito entre tesco desígnio de mistificar toda a gente”. zinhos achavam-nos “abastados”. O pai de a ler, o que aliás deixou “descrente” a mãe A passagem do tempo generalizou essa nistração pública. Quando o administrador
explicações são mais ou menos rebuscadas. Prosper Alfaric ensinou como proceder: o Estado e a Igreja. Para os inimigos de Fátima, pelo contrário, Lúcia era precisamente o dono da Cova de de Lúcia, porque, conforme declarou no impressão. Com o fim da sociedade rural do concelho de Ourém mandou chamar os
O problema é o da proverbial borboleta bastaria descrever o lugar e a época, e “os era a prova da sua vulnerabilidade a delírios Iria. A Cova de Iria era um ermo distante, diz inquérito canónico de 1923, custava-lhe a e a aplicação retrospectiva da noção de videntes, a 11 de Agosto de 1917, o pai de
que bate as asas na Amazónia e causa uma factos maravilhosos explicar-se-ão então 1. Uma história e a manipulação. Que se poderia esperar – Formigão, mas depois nota, inocentemente, crer que “Nossa Senhora (tivesse) vindo à “subdesenvolvimento”, as imagens da época Jacinta e de Francisco não os levou, mas
tempestade na Florida: como é que em Maio muito naturalmente”. O lugar: uma povoa- segundo João Ilharco, autor de um violento que a “trezentos metros” corria uma “gran- terra para lhe dizer que aprendesse a ler”. transformaram-se em janelas para um mun- teve o cuidado de se apresentar ele próprio.
de 1917 três crianças numa charneca – Lúcia ção isolada e pobre na serra de Aire, perdida do povo panfleto publicado em 1971 – de um “luga- de estrada distrital”, em macadame. Os seus A mãe de Lúcia, todavia, era alfabetizada, do que o moderno espectador urbano só O administrador irritou-se: “então desobe-
Santos, de 10 anos, Francisco Marto, de 9 numa idade média de lendas e folclore. A No começo de Fátima, não está, como em rejo perdido no meio de cerros”, habitado habitantes eram gente isolada do resto do e lia livros de devoção aos filhos (entre os pode considerar exótico: as expressões, as dece?!” O lavrador respondeu, habilmente:
anos, e Jacinta Marto, de 7 anos – iniciaram época: 1917, na Europa mais um ano de guer- outros acontecimentos do tempo, um chefe por “pessoas ignorantes e crendeiras”, e de mundo? Numa nota dos Documentos Crí- quais, a Missão Abreviada, que descrevia roupas, as casas, tudo suscita agora aquela “Não, porque aqui estou.” A mãe de Lúcia
um dos maiores movimentos de massas da ra, com faltas generalizadas de alimentos e doutorado ou um partido político, mas três três crianças de “tipo grosseiro”, “broncas e ticos de Fátima, descobrimos que um dos a aparição de La Salette). Antes de 1917, a mistura de repulsa e de comiseração que os não se inquietou quando o administrador,
história de Portugal, de que resultaria, nas de combustíveis, e em Portugal mais um ano crianças da aldeia de Aljustrel, na serra de abúlicas”, em que eram manifestos o “atro- irmãos mais velhos de Lúcia tinha estado família já conhecia o Padre Cruz, o mais povos das colónias inspiravam outrora ao no dia 13 de Agosto de 1917, sequestrou os
décadas seguintes, um dos mais importantes de confronto entre um governo republicano Aire. Os apologistas de Fátima e os seus fiamento das actividades mentais e falta de emigrado no Brasil, donde voltara em 1917 célebre padre de Lisboa. explorador europeu. Uma espécie de olhar videntes, “porque sabia que não comiam
santuários europeus, uma nova cidade e um laicista e o clero católico. inimigos caracterizaram-nas da mesma entendimento”? e para onde regressaria em 1925. Um irmão O problema é que todos os autores que colonial contaminou quase tudo o que se as crianças”.
culto que já trouxe a Portugal vários papas? Há mais alguma coisa para saber? Há, maneira: seriam “simples” e “ignorantes”. Curiosamente, para teses que dependiam de Jacinta cumpria serviço militar em Cabo nesse tempo escreveram sobre Fátima, in- escreveu sobre Fátima e os seus habitantes. A freguesia de Fátima, em 1917, também
Há um truque para não ter problemas: muita coisa. Nenhum outro acontecimento Para os apologistas, estava aí a garantia da tanto da caracterização dos protagonistas e Verde. As crianças, aliás, fizeram do fim da cluindo os padres locais, eram membros Este não era, porém, o povo selvagem e não era exactamente um local inacessível
é agarrar no acontecimento, e reduzi-lo a histórico do século XX em Portugal está tão sinceridade dos videntes: “evidentemente”, do seu meio, nem apologistas nem inimigos guerra na Europa a matéria principal das de uma classe letrada que viera ou passara messiânico dos romances de aventuras. Era e parado no tempo. A população estava
64 FÁTIMA 65

Fátima:
100 anos
de uma
história
mal
contada
Durante o último século, o que se fez em Fátima
foi isto: manipular um acontecimento até fazer
desaparecer toda a surpresa e complexidade. Mas
Fátima resiste às suas caricaturas. Eis como três
crianças numa charneca iniciaram um dos maiores
movimentos de massa da história de Portugal.

Rui Ramos
Na história de Fátima, a explicação certas circunstâncias, até fazer desaparecer sistematicamente documentado. Sem sair dizia o cónego Manuel Nunes Formigão, de Fátima conseguiram ser claros. Em que revelações. Eram meninos incultos? Não pelas cidades. Para eles, a população que uma população integrada no Estado e na
mais simples é a da “aparição” – ou da “vi- toda a sua surpresa e complexidade. Em A da história, é possível sugerir um contexto professor do Seminário de Santarém, “não sentido eram os pais das crianças “gente frequentavam a escola, mas uma das reco- cavava a terra e criava gado era uma mas- igreja, que fazia muita questão de respeitar
são”, como preferem os teólogos mais me- Fabricação de Fátima, traduzido em 1971, mais interessante para Fátima do que o da são cabeças onde pudesse germinar o gigan- pobre”? Na aldeia de Aljustrel, os seus vi- mendações da Virgem foi que aprendessem sa indistintamente “pobre” e “simples”. a autoridade, fosse a do clero ou a da admi-
lindrosos – da Virgem Maria. Todas as outras o professor da Universidade de Estrasburgo “religiosidade popular” e o do conflito entre tesco desígnio de mistificar toda a gente”. zinhos achavam-nos “abastados”. O pai de a ler, o que aliás deixou “descrente” a mãe A passagem do tempo generalizou essa nistração pública. Quando o administrador
explicações são mais ou menos rebuscadas. Prosper Alfaric ensinou como proceder: o Estado e a Igreja. Para os inimigos de Fátima, pelo contrário, Lúcia era precisamente o dono da Cova de de Lúcia, porque, conforme declarou no impressão. Com o fim da sociedade rural do concelho de Ourém mandou chamar os
O problema é o da proverbial borboleta bastaria descrever o lugar e a época, e “os era a prova da sua vulnerabilidade a delírios Iria. A Cova de Iria era um ermo distante, diz inquérito canónico de 1923, custava-lhe a e a aplicação retrospectiva da noção de videntes, a 11 de Agosto de 1917, o pai de
que bate as asas na Amazónia e causa uma factos maravilhosos explicar-se-ão então 1. Uma história e a manipulação. Que se poderia esperar – Formigão, mas depois nota, inocentemente, crer que “Nossa Senhora (tivesse) vindo à “subdesenvolvimento”, as imagens da época Jacinta e de Francisco não os levou, mas
tempestade na Florida: como é que em Maio muito naturalmente”. O lugar: uma povoa- segundo João Ilharco, autor de um violento que a “trezentos metros” corria uma “gran- terra para lhe dizer que aprendesse a ler”. transformaram-se em janelas para um mun- teve o cuidado de se apresentar ele próprio.
de 1917 três crianças numa charneca – Lúcia ção isolada e pobre na serra de Aire, perdida do povo panfleto publicado em 1971 – de um “luga- de estrada distrital”, em macadame. Os seus A mãe de Lúcia, todavia, era alfabetizada, do que o moderno espectador urbano só O administrador irritou-se: “então desobe-
Santos, de 10 anos, Francisco Marto, de 9 numa idade média de lendas e folclore. A No começo de Fátima, não está, como em rejo perdido no meio de cerros”, habitado habitantes eram gente isolada do resto do e lia livros de devoção aos filhos (entre os pode considerar exótico: as expressões, as dece?!” O lavrador respondeu, habilmente:
anos, e Jacinta Marto, de 7 anos – iniciaram época: 1917, na Europa mais um ano de guer- outros acontecimentos do tempo, um chefe por “pessoas ignorantes e crendeiras”, e de mundo? Numa nota dos Documentos Crí- quais, a Missão Abreviada, que descrevia roupas, as casas, tudo suscita agora aquela “Não, porque aqui estou.” A mãe de Lúcia
um dos maiores movimentos de massas da ra, com faltas generalizadas de alimentos e doutorado ou um partido político, mas três três crianças de “tipo grosseiro”, “broncas e ticos de Fátima, descobrimos que um dos a aparição de La Salette). Antes de 1917, a mistura de repulsa e de comiseração que os não se inquietou quando o administrador,
história de Portugal, de que resultaria, nas de combustíveis, e em Portugal mais um ano crianças da aldeia de Aljustrel, na serra de abúlicas”, em que eram manifestos o “atro- irmãos mais velhos de Lúcia tinha estado família já conhecia o Padre Cruz, o mais povos das colónias inspiravam outrora ao no dia 13 de Agosto de 1917, sequestrou os
décadas seguintes, um dos mais importantes de confronto entre um governo republicano Aire. Os apologistas de Fátima e os seus fiamento das actividades mentais e falta de emigrado no Brasil, donde voltara em 1917 célebre padre de Lisboa. explorador europeu. Uma espécie de olhar videntes, “porque sabia que não comiam
santuários europeus, uma nova cidade e um laicista e o clero católico. inimigos caracterizaram-nas da mesma entendimento”? e para onde regressaria em 1925. Um irmão O problema é que todos os autores que colonial contaminou quase tudo o que se as crianças”.
culto que já trouxe a Portugal vários papas? Há mais alguma coisa para saber? Há, maneira: seriam “simples” e “ignorantes”. Curiosamente, para teses que dependiam de Jacinta cumpria serviço militar em Cabo nesse tempo escreveram sobre Fátima, in- escreveu sobre Fátima e os seus habitantes. A freguesia de Fátima, em 1917, também
Há um truque para não ter problemas: muita coisa. Nenhum outro acontecimento Para os apologistas, estava aí a garantia da tanto da caracterização dos protagonistas e Verde. As crianças, aliás, fizeram do fim da cluindo os padres locais, eram membros Este não era, porém, o povo selvagem e não era exactamente um local inacessível
é agarrar no acontecimento, e reduzi-lo a histórico do século XX em Portugal está tão sinceridade dos videntes: “evidentemente”, do seu meio, nem apologistas nem inimigos guerra na Europa a matéria principal das de uma classe letrada que viera ou passara messiânico dos romances de aventuras. Era e parado no tempo. A população estava
66 FÁTIMA FÁTIMA 67

dispersa por várias aldeias, e as suas pro- da estação de Chão de Maçãs, na Linha do autoridade eclesiástica (em 1938, ainda Lú- quando tudo estava a mudar. Durante muito
priedades espalhadas por toda a região. Norte, e a 25 km da estação de Leiria, na cia dizia a Antero de Figueiredo, acerca dos tempo, o catolicismo parecera destinado a
As deslocações eram constantes. Foi pelas Linha do Oeste. De facto, o milagre deu- “segredos”: “Ninguém na terra tem poder não passar de uma “reacção” nostálgica
serranas que vinham vender carvão que em -se no que era um dos principais eixos de para me mandar falar sobre tal assunto”). contra a época moderna. O papa Leão XIII,
Torres Novas se soube das aparições logo comunicação do país, o que explica que hoje Os riscos eram óbvios. Era impossível com a “doutrina social da Igreja” e o “neo-
no princípio de Julho. Não era um povo o santuário esteja convenientemente ao pé adivinhar o que crianças sujeitas às maiores -tomismo”, começara a reconstruí-lo como
dado à crença fácil. A mãe de Lúcia não da A1. Em 1917, ainda os acessos não eram pressões acabariam por dizer ou fazer. O uma resposta aos impasses e insuficiências
acreditou na filha e tentou obrigá-la a con- tão fáceis (de Santarém, demorava-se três administrador do concelho e os militantes da modernidade. Novos movimentos cató-
fessar: “vocês andam a enganar o povo”. horas de automóvel), mas a paciência dos laicistas estavam vigilantes. Toda a gen- licos passaram a aspirar a uma Igreja da
Angustiou-a sempre a “vergonha a que se viajantes era outra, e estes foram também te desconfiava de toda a gente. O pároco sociedade civil, e não do Estado, e a uma
expunha”. A aldeia dividiu-se. O jornalista os anos em que os veículos automóveis se de Fátima foi acusado de colaborar com a religião de crença e militância, e não de sim-
Avelino de Almeida, em 13 de Outubro de multiplicaram: 4335 registados em 1917, 5183 administração do concelho, e ele próprio ples cerimónia e rotina. Tudo isso provocou
1917, tomou nota do sarcasmo do carroceiro em 1919, 14 868 em 1925, 23 463 em 1927, suspeitou do prior de Porto de Mós. O povo conflitos dentro da igreja, como a polémica
a quem perguntou se vira a “Senhora” na com 50 carreiras de transporte no sul e 80 oscilou: a 11 de Novembro de 1917, o prior sobre o “modernismo” (1907), mas gerou o
Cova de Iria: “eu cá só lá vi pedras, carros, no norte. Em Outubro de 1917, os jornalistas de Porto de Mós informava o patriarcado ambiente em que Fátima pôde escapar a ser
automóveis, cavalgaduras e gente”. Em contaram mais de 100 automóveis estacio- que a fé “resfriara”, devido à continuação arquivada entre o folclore rural.
Vila Nova de Ourém, na véspera, muitas nados na estrada, ao pé da Cova de Iria. da guerra, cujo fim Lúcia anunciara a 13 A história de Fátima não fez parte da
“mulheres do povo” riam-se: “Então vais Houve quem tivesse decidido ir na véspera, de Outubro. Nem os mais devotos estavam restauração de um catolicismo tradicional,
ver amanhã a santa?” No seu depoimento como o Sr. Alfredo da Silva Santos contou a constantemente disponíveis: em 1920, For- mas da emergência de um novo catolicis-
de 1923, uma das primeiras crentes, Maria John de Marchi, um padre americano que migão lamentou que quando Jacinta ado- mo, que iria ser protagonizado por uma
Carreira, lembrou como no Verão de 1917 investigou a história de Fátima nos anos eceu, não se tivesse conseguido encontrar Igreja muito diferente da Igreja do século
“tivera de arrostar com a troça das pessoas 40: a 12 de Outubro de 1917, sexta-feira, em Lisboa uma “pessoa abastada” para XIX. O contraste de opiniões entre os cató-
da sua terra”. Em 1938, o escritor Antero de Silva Santos estava no café Martinho, em a acolher, embora depois da sua morte, licos é, a esse respeito, sugestivo. Um dos
Figueiredo descreveu Fátima como “um Lisboa, quando um primo lhe apareceu, a se “mostra(ssem) solícitas em lhe prestar artigos mais cépticos sobre Fátima saiu no
sítio ao mesmo tempo de fé intensa e de dizer: “Toda a gente vai a Fátima amanhã.” homenagem”. principal jornal católico, A Ordem, a 17 de
extensa incredulidade; de alta beleza, e de Ali mesmo, num dos centros da vida social Como não podia deixar de ser, dada a Outubro de 1917. O seu autor, o advogado
intriga e mesquinhez”. Por alguma razão, e intelectual da Baixa, decidiram ir juntos. natureza do caso, o clero esteve sempre en- Domingos Pinto Coelho, de uma família
Lúcia pediu sempre à Virgem um “milagre” Com outros amigos, em três automóveis, volvido, desde os párocos locais, pelas suas miguelista, era, aos 62 anos, a encarnação
para a população acreditar. Mas segundo saíram de manhã cedo e chegaram à Cova funções, até aos seminaristas que Avelino de do mais rigoroso tradicionalismo. Não he-
o jornalista Costa Brochado, teria sido o de Iria por volta do meio-dia. Almeida viu na Cova de Iria a 13 de Outubro sitou em aplicar a Fátima um duche gelado:
Padre Cruz quem, ao fazer uma visita ao A localização e a propaganda jornalística de 1917, movidos pela curiosidade, mas man- “o milagre é excepção. E as excepções não
local, estabeleceu finalmente a “confiança tornaram possível que a 13 de Outubro, para tendo-se prudentemente à distância, como se presumem. Precisam de prova cabal.”
de toda a gente” no milagre. O padre de a última aparição, em que se esperava um “mirones”. Nos interrogatórios aos videntes, Ora, havia apenas “as afirmações de três
Lisboa obteve o que a suposta credulidade “sinal”, tivessem aparecido milhares de pes- o pároco de Fátima, o cónego Formigão ou crianças e mais nada”: “é muito pouco”.
indígena não produzira. soas de fora da freguesia. Para muita gente, o padre José Ferreira Lacerda, director do Pinto Coelho também estivera na Cova de
Na verdade, foi preciso mais do que su- como o padre Luís de Andrade e Silva, num jornal Mensageiro de Leiria, mostraram- Iria, como “curioso”. O fenómeno solar seria
perstição montanhesa. A serra já tinha sido depoimento de 30 de Dezembro de 1917, o -se determinados, e com muita habilidade, “coisa excepcional”? Não: vira o mesmo
o local de uma antiga romaria no século que fez destacar Fátima de todos os outros em despistar histeria, sugestão ou malícia. espectáculo em Lisboa, uns dias depois. Em
XVII, a da Nossa Senhora da Ortiga, e toda casos de “aparições” foi precisamente este Perguntou-se aos videntes se conheciam Fátima, funcionara apenas a “psicologia
a região, como outras em Portugal, estava facto: a sua “rápida propagação por todo a história de La Salette, ou o que “veste colectiva” das “multidões”, agitadas por
cheia de invocações marianas. Mas Fátima o país”, arrastando gente “de todas as clas- a imagem da capela onde costumam ir à uma “grande onda de fé”.
não foi simplesmente um episódio daquela ses sociais”. Na manhã de 13 de Outubro, missa”. Nunca a excitação venceu a cautela. A dissonância com o artigo do escritor
“religiosidade popular”, primitiva e rural, a baronesa de Almeirim veio trazer dois Em 1918, o pároco de Fátima reportou ao António Sardinha no jornal Monarquia, de
que fascinou os folcloristas românticos e vestidos novos às videntes: um azul para patriarcado que a mãe de Lúcia, em Maio de 8 de Novembro de 1917, não podia ser maior.
depois alimentou doutoramentos de antro- Lúcia, e outro branco para Jacinta, além 1917, lhe pedira que instruísse a filha sobre Aos 30 anos de idade, Sardinha liderava
pologia. Na segunda aparição, a 13 de Junho de grinaldas de flores artificiais. O barão que dizer à aparição: “disso a dissuadi, para um novo movimento intelectual, o “Inte-
de 1917, esteve pouca gente, umas 40 a 50 de Alvaiázere, advogado e funcionário do evitar algum mau conceito que a impiedade gralismo Lusitano”. Ao contrário de Pinto
pessoas, porque as famílias dos videntes Registo Civil, encontrou na Cova de Iria ou os mal intencionados pudessem fazer, Coelho, tinha poucos anos de monárquico
tal como a demais população de Aljustrel muitos conhecidos de Lisboa. E por uma como ainda assim fizeram”. Mas os padres e católico. Em 1910, ainda era republicano e
preferiram as festas de Santo António em desprevenida nota de Tomás da Fonseca, não estavam apenas a prevenir, maquiave- “livrepensador”. Sardinha não citou autori-
Ourém. Em Julho, teriam aparecido umas no seu livro Fátima, descobrimos que o licamente, as objecções de outros. Carlos dades e protocolos eclesiásticos, como Pinto
2500 pessoas, segundo o administrador do célebre escritor António Sérgio também de Azevedo Mendes, advogado de Torres Coelho, mas cientistas, filósofos e matemáti-
concelho de Ourém. Mas foi a partir do mês esteve na Cova de Iria no dia 13 de Outubro, Novas, almoçou com o pároco de Fátima e cos contemporâneos (William James, Henri
seguinte que se deu uma explosão: sempre a “acompanhar a esposa”. mais seis padres no dia 7 de Setembro de Bergson, Henri Poincaré, Georg Riemann,
segundo o administrador, muito contido nas A quatro anos de começar a colaborar na se desvanecem”. Acontece que Fátima não um inimigo de Fátima, mas o seu princi- ● Fátima impôs-se muito antes de receber o patrocí- 1917, e reparou que a insistência das crian- etc.), para defender que as aparições faziam
estimativas, acorreram 12 a 15 000 pessoas Seara Nova, Sérgio já era a encarnação viva foi simplesmente um surto de “sonhos se- pal propagandista, o cónego Formigão, no ças sob interrogatório “impressionava-os”, todo o sentido, não à luz da pseudociência
em Agosto, 20 000 em Setembro e, final- do “racionalismo”. Como seria de esperar, dutores e brilhantes” num círculo singelo processo canónico diocesano de 1930. Os nio do Estado Novo e da sua expansão internacional. mas que todos concordavam em que “não materialista do século XIX, mas da nova ci-
mente, em Outubro, entre 30 a 40 000. não lhe foi difícil criar uma explicação para de lavradores analfabetos, confundidos por anti-fatimistas copiaram depois estes dados era razão suficiente para poderem formar ência do século XX. Inverteu assim os termos
Ora, entre Julho e Agosto, o que aconte- a célebre “dança do sol”, testemunhada tradições marianas e fenómenos atmosféri- para demonstrar que Fátima nada tivera e o episcopado de Portugal foram indife- fronteira da França com a Espanha, atraía um juízo”. do debate: o materialismo é que era uma
ceu não foi uma súbita erupção de fé rural, por milhares de pessoas na tarde de 13 de cos. O “facto extraordinário” não aconteceu de extraordinário. Formigão usara-os de rentes e, em parte, hostis às aparições e ao centenas, por vezes milhares de peregrinos Em 1930, o bispo de Leiria arranjou ainda superstição, e os “livres pensadores” é que
mas a intervenção sensacionalista da grande Outubro: “ao fitar o sol, quando irrompeu apenas na serra de Aire, mas em Lisboa, no outra maneira. Todas as “visões e aparições” movimento popular dirigido para a Cova de portugueses (em 1909, 1250; em 1910, 2500). outro argumento para refutar a tese da eram uns pobres ignorantes.
imprensa de Lisboa, a começar com uma das nuvens, verificara terem ficado ainda, a Porto e em todas as localidades de onde veio tinham inspirado “grandes levantamentos Iria”. O pároco de Fátima nunca acreditara Mas a possibilidade de replicar Lourdes na “fabricação clerical”: como é que um clero Sardinha começava o artigo com uma
notícia do maior diário português de então, embaciá-lo, leves flocos, que, tocados pela gente e onde serviu de tema de conversa e do povo durante muitos dias”, mas “caíram nos videntes. A imprensa católica demorou Cova de Iria não era óbvia no Verão de 1917. “espoliado”, “perseguido” e “caluniado”, citação de Ernest Renan: “a razão e o bom
O Século, a 23 de Julho. Significativamente, aragem, se tinham enovelado, provocando de discussão no Verão de 1917. todas por si, desaparecendo como que por a reagir. O patriarcado de Lisboa proibira O próprio Formigão, inicialmente, teria ido ainda por cima na mais “pequenina e pobre senso não chegam”. O seu catolicismo não
foi só a partir das que a imprensa local re- movimentos giratórios que nada tinham Porquê? O costume aqui é invocar o as- encanto”, menos Fátima. O que, para For- o clero de participar nas manifestações. Só a Fátima com a intenção de “parar aquela diocese” do país, “teria poder para criar o era o dos crentes tradicionais, como Pinto
parou no caso. Fátima é, em grande medi- de maravilhoso”. Mas a “multidão devota, pecto apocalíptico da época. A guerra euro- migão, só podia ter uma explicação divina. em 1921 foi celebrada a primeira missa na impostura”. movimento religioso de Fátima que hoje se Coelho, centrados nas instituições eclesiás-
da, a prova da capacidade de jornais como sugestionada pelo grito de Lúcia, caíra de peia, no seu quarto ano, não acabava. A falta Para um inimigo de Fátima, como João Cova de Iria, só em 1927 o bispo de Leiria O distanciamento do clero não foi um estende a todo o Portugal”? É uma boa ques- ticas, mas o dos conversos, disponíveis para
O Século, com tiragens de 100 000 exem- joelhos”. Acontece que para muitos crentes, de abastecimentos era cada vez maior. A 19 Ilharco, em 1971, não havia necessidade de compareceu oficialmente, e só em 1930 deu simples estratagema para dissimular uma tão. De facto, as aparições ocorreram fora todos os entusiasmos. O jovem advogado
plares, para criarem uma conversa nacional. o “fenómeno solar” foi fundamental, não de Maio de 1917, em Lisboa, uma população incomodar Deus: Fátima tinha sido simples- crédito às aparições. Em 1929, ainda o bis- direcção oculta. A tendência para supor das regiões de mais densa malha eclesiástica Carlos de Azevedo Mendes, membro do
A aparição de Outubro teve intensa cober- por si, mas pelo seu contexto: uma testemu- desesperada com a falta de pão saqueou as mente “uma reacção do clero português po de Portalegre não autorizara o culto de que Fátima estava, desde o princípio, des- e de mais intensa devoção tradicional em Centro Académico de Democracia Cristã
tura jornalística, incluindo a reportagem nha ouvida pelo pároco de Fátima declarou lojas e atacou a Guarda Republicana, que contra o regime republicano”, uma enco- Fátima na sua diocese. tinada a acabar num grande santuário, faz Portugal, como era o norte do país. Leiria de Coimbra, representava bem a tendência.
fotográfica da Ilustração Portuguesa. Mui- que meses depois, a 2 de Fevereiro de 1918, matou talvez 40 pessoas e prendeu mais menda para sabotar a Lei da Separação de Mas numa carta ao Mensageiro de Leiria, frequentemente os historiadores esque- nem sequer era diocese (restaurada em 1918, Foi ele o homem muito alto (media quase
tos comerciantes trataram de aproveitar. Na “verificou no sol idênticos sinais aos do dia de 500. Mas antes de assumirmos que as 1911. Antes dele, em 1950, Tomás da Fonseca de 22 de Agosto de 1917, o pároco de Fátima cerem o carácter “caótico”, inicialmente só teria bispo em 1920). O momento, para um 1,90 m) que, no dia 13 de Outubro, na
manhã do dia 13, na Cova de Iria, Avelino 13 de Outubro (de 1917)”. Mas os “sinais” do dificuldades, só por si, tivessem transfor- descreveu a conjura. Tudo teria começado explicara que a sua “aparente indiferen- imprevisível e incerto, que Fátima teve para o catolicismo português, também não era Cova de Iria, levantou Lúcia ao colo de-
de Almeida já viu vendedores ambulantes dia 13 tinham sido previstos pelos videntes e mado todo o Portugal numa crédula aldeia em 1914. O pároco de Fátima queixava-se ça” se devia a não querer dar pretexto aos os seus contemporâneos. A carta do pároco o mais áureo. Depois da Lei da Separação pois da aparição. Numa carta ao irmão,
a apregoar “os retratos das crianças em haviam acontecido perante “cinquenta mil serrana, será importante percebermos que da pobreza da sua paróquia. Alguém o teria “inimigos da religião”. Para os críticos de de Fátima, padre Manuel Marques Ferreira, de 1911, mas sobretudo depois de décadas explicou que passara por muitas dúvidas.
bilhetes postais”, e “outros bilhetes que pessoas”. Era isso que o convencia de que o outras condições levaram tanta gente a inte- então convencido a “provocar uma aparição Fátima, estava aqui confessada a estratégia ao patriarcado de Lisboa, a 15 de Outubro de tutela liberal no século XIX, a Igreja por- Um mês antes, a 13 de Setembro, também
representam um soldado do CEP pensando fenómeno, natural em Fevereiro, teria sido ressar-se por um “facto extraordinário”, e a como a de La Salette (1846) ou a de Lourdes da Igreja: operar na sombra. Acontece que de 1917, não parece a de um conspirador tuguesa dependia de um clero expropriado estivera na Cova de Iria, mas “nada vi nem
no auxílio da sua protectora para salvação sobrenatural em Outubro. continuarem interessadas, mesmo quando (1858)” para “enriquecer depressa”. O páro- o pároco estava a defender-se da acusação na posse do fio da meada. Tantos “aconte- e vigiado, cujos números diminuíam havia senti”. A multidão apertava as videntes, que
da pátria”. Para Prosper Alfaric, os “milagres” eram o contexto original mudou. co recrutou assim uns “filhos de gente pobre de que colaborara com o administrador cimentos espantosos” haviam-no deixado um século. Os liberais tinham reduzido o choravam “aflitas”. No dia 13 de Outubro,
Para quem tivesse de vir de Lisboa, a Cova necessariamente um fenómeno rural, de e inculta”, a quem “ensaiou” durante meses. do concelho no sequestro dos videntes. De perplexo: “careço e imploro (...) urgentes e catolicismo a uma disciplina social, usada voltou com “ansiedade”. Tudo foi diferente.
de Iria não estava no fim do mundo. Fica- montanhas e de pastores, porque “nas ci- Daí que tudo lembrasse o que ocorrera em facto, a ideia de Fátima como uma “cons- acertados conselhos para o governo desta para controlar o povo menos instruído e Tal como Pinto Coelho, Azevedo Mendes
va a dois quilómetros de Fátima, sede da dades, nos grandes meios em que as gentes
2. Um novo catolicismo França: ermos, pastores, “segredos”. Uma trução” friamente planeada e dirigida no freguesia”. O sucesso final de Fátima impede sobretudo as mulheres. Os republicanos perguntava: os fenómenos atmosféricos
freguesia, a 12 km de Vila Nova de Ourém, se acotovelam e esbarram umas nas outras, O primeiro autor a fazer o elenco de todas “fabricação clerical”. segredo das sacristias é uma ilusão. Alguns que se perceba o que, para o clero, começou pretendiam agora reduzi-lo ainda mais, a “seriam naturais?” Mas respondia de outra
sede do concelho, e a 60 km de Santarém sobretudo na escola em que devem subme- as “visões e aparições celestiais” de que Os propagandistas de Fátima, como o padres entusiasmaram-se desde cedo com a por ser um desafio difícil. Videntes leigos, um culto privado sem expressão pública. maneira: “Que me importa?” O “extraor-
(capital do distrito). Era rodeada por duas ter-se à disciplina intelectual, os sonhos houve notícia nesta época, classificando- cónego Casimir Barthas, mantiveram o perspectiva de uma “Lourdes portuguesa”, em contacto directo com a divindade, sem Mas o que o bispo de Leiria esquecia dinário de tudo o que vi é a coincidência
das principais vias-férreas do país: a 20 km mais brilhantes e mais sedutores depressa -as como “explorações ignóbeis”, não foi contrário: “na sua grande maioria, o clero como o cónego Formigão. Lourdes, perto da a mediação da Igreja, nunca confortaram a em 1930 é que Fátima também aconteceu de sinais atmosféricos com a prevenção da
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dispersa por várias aldeias, e as suas pro- da estação de Chão de Maçãs, na Linha do autoridade eclesiástica (em 1938, ainda Lú- quando tudo estava a mudar. Durante muito
priedades espalhadas por toda a região. Norte, e a 25 km da estação de Leiria, na cia dizia a Antero de Figueiredo, acerca dos tempo, o catolicismo parecera destinado a
As deslocações eram constantes. Foi pelas Linha do Oeste. De facto, o milagre deu- “segredos”: “Ninguém na terra tem poder não passar de uma “reacção” nostálgica
serranas que vinham vender carvão que em -se no que era um dos principais eixos de para me mandar falar sobre tal assunto”). contra a época moderna. O papa Leão XIII,
Torres Novas se soube das aparições logo comunicação do país, o que explica que hoje Os riscos eram óbvios. Era impossível com a “doutrina social da Igreja” e o “neo-
no princípio de Julho. Não era um povo o santuário esteja convenientemente ao pé adivinhar o que crianças sujeitas às maiores -tomismo”, começara a reconstruí-lo como
dado à crença fácil. A mãe de Lúcia não da A1. Em 1917, ainda os acessos não eram pressões acabariam por dizer ou fazer. O uma resposta aos impasses e insuficiências
acreditou na filha e tentou obrigá-la a con- tão fáceis (de Santarém, demorava-se três administrador do concelho e os militantes da modernidade. Novos movimentos cató-
fessar: “vocês andam a enganar o povo”. horas de automóvel), mas a paciência dos laicistas estavam vigilantes. Toda a gen- licos passaram a aspirar a uma Igreja da
Angustiou-a sempre a “vergonha a que se viajantes era outra, e estes foram também te desconfiava de toda a gente. O pároco sociedade civil, e não do Estado, e a uma
expunha”. A aldeia dividiu-se. O jornalista os anos em que os veículos automóveis se de Fátima foi acusado de colaborar com a religião de crença e militância, e não de sim-
Avelino de Almeida, em 13 de Outubro de multiplicaram: 4335 registados em 1917, 5183 administração do concelho, e ele próprio ples cerimónia e rotina. Tudo isso provocou
1917, tomou nota do sarcasmo do carroceiro em 1919, 14 868 em 1925, 23 463 em 1927, suspeitou do prior de Porto de Mós. O povo conflitos dentro da igreja, como a polémica
a quem perguntou se vira a “Senhora” na com 50 carreiras de transporte no sul e 80 oscilou: a 11 de Novembro de 1917, o prior sobre o “modernismo” (1907), mas gerou o
Cova de Iria: “eu cá só lá vi pedras, carros, no norte. Em Outubro de 1917, os jornalistas de Porto de Mós informava o patriarcado ambiente em que Fátima pôde escapar a ser
automóveis, cavalgaduras e gente”. Em contaram mais de 100 automóveis estacio- que a fé “resfriara”, devido à continuação arquivada entre o folclore rural.
Vila Nova de Ourém, na véspera, muitas nados na estrada, ao pé da Cova de Iria. da guerra, cujo fim Lúcia anunciara a 13 A história de Fátima não fez parte da
“mulheres do povo” riam-se: “Então vais Houve quem tivesse decidido ir na véspera, de Outubro. Nem os mais devotos estavam restauração de um catolicismo tradicional,
ver amanhã a santa?” No seu depoimento como o Sr. Alfredo da Silva Santos contou a constantemente disponíveis: em 1920, For- mas da emergência de um novo catolicis-
de 1923, uma das primeiras crentes, Maria John de Marchi, um padre americano que migão lamentou que quando Jacinta ado- mo, que iria ser protagonizado por uma
Carreira, lembrou como no Verão de 1917 investigou a história de Fátima nos anos eceu, não se tivesse conseguido encontrar Igreja muito diferente da Igreja do século
“tivera de arrostar com a troça das pessoas 40: a 12 de Outubro de 1917, sexta-feira, em Lisboa uma “pessoa abastada” para XIX. O contraste de opiniões entre os cató-
da sua terra”. Em 1938, o escritor Antero de Silva Santos estava no café Martinho, em a acolher, embora depois da sua morte, licos é, a esse respeito, sugestivo. Um dos
Figueiredo descreveu Fátima como “um Lisboa, quando um primo lhe apareceu, a se “mostra(ssem) solícitas em lhe prestar artigos mais cépticos sobre Fátima saiu no
sítio ao mesmo tempo de fé intensa e de dizer: “Toda a gente vai a Fátima amanhã.” homenagem”. principal jornal católico, A Ordem, a 17 de
extensa incredulidade; de alta beleza, e de Ali mesmo, num dos centros da vida social Como não podia deixar de ser, dada a Outubro de 1917. O seu autor, o advogado
intriga e mesquinhez”. Por alguma razão, e intelectual da Baixa, decidiram ir juntos. natureza do caso, o clero esteve sempre en- Domingos Pinto Coelho, de uma família
Lúcia pediu sempre à Virgem um “milagre” Com outros amigos, em três automóveis, volvido, desde os párocos locais, pelas suas miguelista, era, aos 62 anos, a encarnação
para a população acreditar. Mas segundo saíram de manhã cedo e chegaram à Cova funções, até aos seminaristas que Avelino de do mais rigoroso tradicionalismo. Não he-
o jornalista Costa Brochado, teria sido o de Iria por volta do meio-dia. Almeida viu na Cova de Iria a 13 de Outubro sitou em aplicar a Fátima um duche gelado:
Padre Cruz quem, ao fazer uma visita ao A localização e a propaganda jornalística de 1917, movidos pela curiosidade, mas man- “o milagre é excepção. E as excepções não
local, estabeleceu finalmente a “confiança tornaram possível que a 13 de Outubro, para tendo-se prudentemente à distância, como se presumem. Precisam de prova cabal.”
de toda a gente” no milagre. O padre de a última aparição, em que se esperava um “mirones”. Nos interrogatórios aos videntes, Ora, havia apenas “as afirmações de três
Lisboa obteve o que a suposta credulidade “sinal”, tivessem aparecido milhares de pes- o pároco de Fátima, o cónego Formigão ou crianças e mais nada”: “é muito pouco”.
indígena não produzira. soas de fora da freguesia. Para muita gente, o padre José Ferreira Lacerda, director do Pinto Coelho também estivera na Cova de
Na verdade, foi preciso mais do que su- como o padre Luís de Andrade e Silva, num jornal Mensageiro de Leiria, mostraram- Iria, como “curioso”. O fenómeno solar seria
perstição montanhesa. A serra já tinha sido depoimento de 30 de Dezembro de 1917, o -se determinados, e com muita habilidade, “coisa excepcional”? Não: vira o mesmo
o local de uma antiga romaria no século que fez destacar Fátima de todos os outros em despistar histeria, sugestão ou malícia. espectáculo em Lisboa, uns dias depois. Em
XVII, a da Nossa Senhora da Ortiga, e toda casos de “aparições” foi precisamente este Perguntou-se aos videntes se conheciam Fátima, funcionara apenas a “psicologia
a região, como outras em Portugal, estava facto: a sua “rápida propagação por todo a história de La Salette, ou o que “veste colectiva” das “multidões”, agitadas por
cheia de invocações marianas. Mas Fátima o país”, arrastando gente “de todas as clas- a imagem da capela onde costumam ir à uma “grande onda de fé”.
não foi simplesmente um episódio daquela ses sociais”. Na manhã de 13 de Outubro, missa”. Nunca a excitação venceu a cautela. A dissonância com o artigo do escritor
“religiosidade popular”, primitiva e rural, a baronesa de Almeirim veio trazer dois Em 1918, o pároco de Fátima reportou ao António Sardinha no jornal Monarquia, de
que fascinou os folcloristas românticos e vestidos novos às videntes: um azul para patriarcado que a mãe de Lúcia, em Maio de 8 de Novembro de 1917, não podia ser maior.
depois alimentou doutoramentos de antro- Lúcia, e outro branco para Jacinta, além 1917, lhe pedira que instruísse a filha sobre Aos 30 anos de idade, Sardinha liderava
pologia. Na segunda aparição, a 13 de Junho de grinaldas de flores artificiais. O barão que dizer à aparição: “disso a dissuadi, para um novo movimento intelectual, o “Inte-
de 1917, esteve pouca gente, umas 40 a 50 de Alvaiázere, advogado e funcionário do evitar algum mau conceito que a impiedade gralismo Lusitano”. Ao contrário de Pinto
pessoas, porque as famílias dos videntes Registo Civil, encontrou na Cova de Iria ou os mal intencionados pudessem fazer, Coelho, tinha poucos anos de monárquico
tal como a demais população de Aljustrel muitos conhecidos de Lisboa. E por uma como ainda assim fizeram”. Mas os padres e católico. Em 1910, ainda era republicano e
preferiram as festas de Santo António em desprevenida nota de Tomás da Fonseca, não estavam apenas a prevenir, maquiave- “livrepensador”. Sardinha não citou autori-
Ourém. Em Julho, teriam aparecido umas no seu livro Fátima, descobrimos que o licamente, as objecções de outros. Carlos dades e protocolos eclesiásticos, como Pinto
2500 pessoas, segundo o administrador do célebre escritor António Sérgio também de Azevedo Mendes, advogado de Torres Coelho, mas cientistas, filósofos e matemáti-
concelho de Ourém. Mas foi a partir do mês esteve na Cova de Iria no dia 13 de Outubro, Novas, almoçou com o pároco de Fátima e cos contemporâneos (William James, Henri
seguinte que se deu uma explosão: sempre a “acompanhar a esposa”. mais seis padres no dia 7 de Setembro de Bergson, Henri Poincaré, Georg Riemann,
segundo o administrador, muito contido nas A quatro anos de começar a colaborar na se desvanecem”. Acontece que Fátima não um inimigo de Fátima, mas o seu princi- ● Fátima impôs-se muito antes de receber o patrocí- 1917, e reparou que a insistência das crian- etc.), para defender que as aparições faziam
estimativas, acorreram 12 a 15 000 pessoas Seara Nova, Sérgio já era a encarnação viva foi simplesmente um surto de “sonhos se- pal propagandista, o cónego Formigão, no ças sob interrogatório “impressionava-os”, todo o sentido, não à luz da pseudociência
em Agosto, 20 000 em Setembro e, final- do “racionalismo”. Como seria de esperar, dutores e brilhantes” num círculo singelo processo canónico diocesano de 1930. Os nio do Estado Novo e da sua expansão internacional. mas que todos concordavam em que “não materialista do século XIX, mas da nova ci-
mente, em Outubro, entre 30 a 40 000. não lhe foi difícil criar uma explicação para de lavradores analfabetos, confundidos por anti-fatimistas copiaram depois estes dados era razão suficiente para poderem formar ência do século XX. Inverteu assim os termos
Ora, entre Julho e Agosto, o que aconte- a célebre “dança do sol”, testemunhada tradições marianas e fenómenos atmosféri- para demonstrar que Fátima nada tivera e o episcopado de Portugal foram indife- fronteira da França com a Espanha, atraía um juízo”. do debate: o materialismo é que era uma
ceu não foi uma súbita erupção de fé rural, por milhares de pessoas na tarde de 13 de cos. O “facto extraordinário” não aconteceu de extraordinário. Formigão usara-os de rentes e, em parte, hostis às aparições e ao centenas, por vezes milhares de peregrinos Em 1930, o bispo de Leiria arranjou ainda superstição, e os “livres pensadores” é que
mas a intervenção sensacionalista da grande Outubro: “ao fitar o sol, quando irrompeu apenas na serra de Aire, mas em Lisboa, no outra maneira. Todas as “visões e aparições” movimento popular dirigido para a Cova de portugueses (em 1909, 1250; em 1910, 2500). outro argumento para refutar a tese da eram uns pobres ignorantes.
imprensa de Lisboa, a começar com uma das nuvens, verificara terem ficado ainda, a Porto e em todas as localidades de onde veio tinham inspirado “grandes levantamentos Iria”. O pároco de Fátima nunca acreditara Mas a possibilidade de replicar Lourdes na “fabricação clerical”: como é que um clero Sardinha começava o artigo com uma
notícia do maior diário português de então, embaciá-lo, leves flocos, que, tocados pela gente e onde serviu de tema de conversa e do povo durante muitos dias”, mas “caíram nos videntes. A imprensa católica demorou Cova de Iria não era óbvia no Verão de 1917. “espoliado”, “perseguido” e “caluniado”, citação de Ernest Renan: “a razão e o bom
O Século, a 23 de Julho. Significativamente, aragem, se tinham enovelado, provocando de discussão no Verão de 1917. todas por si, desaparecendo como que por a reagir. O patriarcado de Lisboa proibira O próprio Formigão, inicialmente, teria ido ainda por cima na mais “pequenina e pobre senso não chegam”. O seu catolicismo não
foi só a partir das que a imprensa local re- movimentos giratórios que nada tinham Porquê? O costume aqui é invocar o as- encanto”, menos Fátima. O que, para For- o clero de participar nas manifestações. Só a Fátima com a intenção de “parar aquela diocese” do país, “teria poder para criar o era o dos crentes tradicionais, como Pinto
parou no caso. Fátima é, em grande medi- de maravilhoso”. Mas a “multidão devota, pecto apocalíptico da época. A guerra euro- migão, só podia ter uma explicação divina. em 1921 foi celebrada a primeira missa na impostura”. movimento religioso de Fátima que hoje se Coelho, centrados nas instituições eclesiás-
da, a prova da capacidade de jornais como sugestionada pelo grito de Lúcia, caíra de peia, no seu quarto ano, não acabava. A falta Para um inimigo de Fátima, como João Cova de Iria, só em 1927 o bispo de Leiria O distanciamento do clero não foi um estende a todo o Portugal”? É uma boa ques- ticas, mas o dos conversos, disponíveis para
O Século, com tiragens de 100 000 exem- joelhos”. Acontece que para muitos crentes, de abastecimentos era cada vez maior. A 19 Ilharco, em 1971, não havia necessidade de compareceu oficialmente, e só em 1930 deu simples estratagema para dissimular uma tão. De facto, as aparições ocorreram fora todos os entusiasmos. O jovem advogado
plares, para criarem uma conversa nacional. o “fenómeno solar” foi fundamental, não de Maio de 1917, em Lisboa, uma população incomodar Deus: Fátima tinha sido simples- crédito às aparições. Em 1929, ainda o bis- direcção oculta. A tendência para supor das regiões de mais densa malha eclesiástica Carlos de Azevedo Mendes, membro do
A aparição de Outubro teve intensa cober- por si, mas pelo seu contexto: uma testemu- desesperada com a falta de pão saqueou as mente “uma reacção do clero português po de Portalegre não autorizara o culto de que Fátima estava, desde o princípio, des- e de mais intensa devoção tradicional em Centro Académico de Democracia Cristã
tura jornalística, incluindo a reportagem nha ouvida pelo pároco de Fátima declarou lojas e atacou a Guarda Republicana, que contra o regime republicano”, uma enco- Fátima na sua diocese. tinada a acabar num grande santuário, faz Portugal, como era o norte do país. Leiria de Coimbra, representava bem a tendência.
fotográfica da Ilustração Portuguesa. Mui- que meses depois, a 2 de Fevereiro de 1918, matou talvez 40 pessoas e prendeu mais menda para sabotar a Lei da Separação de Mas numa carta ao Mensageiro de Leiria, frequentemente os historiadores esque- nem sequer era diocese (restaurada em 1918, Foi ele o homem muito alto (media quase
tos comerciantes trataram de aproveitar. Na “verificou no sol idênticos sinais aos do dia de 500. Mas antes de assumirmos que as 1911. Antes dele, em 1950, Tomás da Fonseca de 22 de Agosto de 1917, o pároco de Fátima cerem o carácter “caótico”, inicialmente só teria bispo em 1920). O momento, para um 1,90 m) que, no dia 13 de Outubro, na
manhã do dia 13, na Cova de Iria, Avelino 13 de Outubro (de 1917)”. Mas os “sinais” do dificuldades, só por si, tivessem transfor- descreveu a conjura. Tudo teria começado explicara que a sua “aparente indiferen- imprevisível e incerto, que Fátima teve para o catolicismo português, também não era Cova de Iria, levantou Lúcia ao colo de-
de Almeida já viu vendedores ambulantes dia 13 tinham sido previstos pelos videntes e mado todo o Portugal numa crédula aldeia em 1914. O pároco de Fátima queixava-se ça” se devia a não querer dar pretexto aos os seus contemporâneos. A carta do pároco o mais áureo. Depois da Lei da Separação pois da aparição. Numa carta ao irmão,
a apregoar “os retratos das crianças em haviam acontecido perante “cinquenta mil serrana, será importante percebermos que da pobreza da sua paróquia. Alguém o teria “inimigos da religião”. Para os críticos de de Fátima, padre Manuel Marques Ferreira, de 1911, mas sobretudo depois de décadas explicou que passara por muitas dúvidas.
bilhetes postais”, e “outros bilhetes que pessoas”. Era isso que o convencia de que o outras condições levaram tanta gente a inte- então convencido a “provocar uma aparição Fátima, estava aqui confessada a estratégia ao patriarcado de Lisboa, a 15 de Outubro de tutela liberal no século XIX, a Igreja por- Um mês antes, a 13 de Setembro, também
representam um soldado do CEP pensando fenómeno, natural em Fevereiro, teria sido ressar-se por um “facto extraordinário”, e a como a de La Salette (1846) ou a de Lourdes da Igreja: operar na sombra. Acontece que de 1917, não parece a de um conspirador tuguesa dependia de um clero expropriado estivera na Cova de Iria, mas “nada vi nem
no auxílio da sua protectora para salvação sobrenatural em Outubro. continuarem interessadas, mesmo quando (1858)” para “enriquecer depressa”. O páro- o pároco estava a defender-se da acusação na posse do fio da meada. Tantos “aconte- e vigiado, cujos números diminuíam havia senti”. A multidão apertava as videntes, que
da pátria”. Para Prosper Alfaric, os “milagres” eram o contexto original mudou. co recrutou assim uns “filhos de gente pobre de que colaborara com o administrador cimentos espantosos” haviam-no deixado um século. Os liberais tinham reduzido o choravam “aflitas”. No dia 13 de Outubro,
Para quem tivesse de vir de Lisboa, a Cova necessariamente um fenómeno rural, de e inculta”, a quem “ensaiou” durante meses. do concelho no sequestro dos videntes. De perplexo: “careço e imploro (...) urgentes e catolicismo a uma disciplina social, usada voltou com “ansiedade”. Tudo foi diferente.
de Iria não estava no fim do mundo. Fica- montanhas e de pastores, porque “nas ci- Daí que tudo lembrasse o que ocorrera em facto, a ideia de Fátima como uma “cons- acertados conselhos para o governo desta para controlar o povo menos instruído e Tal como Pinto Coelho, Azevedo Mendes
va a dois quilómetros de Fátima, sede da dades, nos grandes meios em que as gentes
2. Um novo catolicismo França: ermos, pastores, “segredos”. Uma trução” friamente planeada e dirigida no freguesia”. O sucesso final de Fátima impede sobretudo as mulheres. Os republicanos perguntava: os fenómenos atmosféricos
freguesia, a 12 km de Vila Nova de Ourém, se acotovelam e esbarram umas nas outras, O primeiro autor a fazer o elenco de todas “fabricação clerical”. segredo das sacristias é uma ilusão. Alguns que se perceba o que, para o clero, começou pretendiam agora reduzi-lo ainda mais, a “seriam naturais?” Mas respondia de outra
sede do concelho, e a 60 km de Santarém sobretudo na escola em que devem subme- as “visões e aparições celestiais” de que Os propagandistas de Fátima, como o padres entusiasmaram-se desde cedo com a por ser um desafio difícil. Videntes leigos, um culto privado sem expressão pública. maneira: “Que me importa?” O “extraor-
(capital do distrito). Era rodeada por duas ter-se à disciplina intelectual, os sonhos houve notícia nesta época, classificando- cónego Casimir Barthas, mantiveram o perspectiva de uma “Lourdes portuguesa”, em contacto directo com a divindade, sem Mas o que o bispo de Leiria esquecia dinário de tudo o que vi é a coincidência
das principais vias-férreas do país: a 20 km mais brilhantes e mais sedutores depressa -as como “explorações ignóbeis”, não foi contrário: “na sua grande maioria, o clero como o cónego Formigão. Lourdes, perto da a mediação da Igreja, nunca confortaram a em 1930 é que Fátima também aconteceu de sinais atmosféricos com a prevenção da
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criança, e depois aquela mole imensa de de “Torres Vedras” (sic, por Torres Novas) pensamento dos outros que não pensam 1922, demonstraram que Fátima já só podia
gente”. Azevedo Mendes tornou-se um dos a um “charlatão” que, a fim de explorar o como o Sr. Administrador do concelho”. ser atacada na sombra. Quando, em Maio,
grandes activistas de Fátima. Anos depois, “povo bisonho”, “industria pobres crianças No mês de Dezembro de 1917, o poder o governador civil de Santarém sugeriu
no santuário, comentaria: “o grande milagre a verem a santa”. No terreno, já o adminis- do PRP de Afonso Costa desmoronou-se que se proibisse a peregrinação, o novo
de Fátima é tudo aquilo que vemos, essas trador do concelho de Ourém, Artur de perante a sublevação militar comandada em administrador de Ourém respondeu que
multidões penitentes... Essa devoção... Essas Oliveira Santos, maçon e militante do “livre- Lisboa pelo major e professor universitário um tal acto só serviria para “desprestigiar a
conversões...” O que era “pouco” para Pinto -pensamento”, recorria a todos os meios Sidónio Pais. Sidónio, embora ateu, rompeu República”, e que não cumpriria nenhumas
Coelho, o idoso tradicionalista, era tudo para liquidar a “especulação clerical”. A com o livre-pensamento radical. Emendou a ordens nesse sentido, para o que já contava
para Azevedo Mendes, o jovem militante. 13 de Agosto, no dia previsto para a quarta Lei da Separação, restabeleceu relações com com o apoio de todos “os republicanos de
O lado “caótico” dos acontecimentos foi aparição, apareceu de surpresa em Fátima o Vaticano e, como Presidente da República, várias cores do concelho”. Não precisou
essencial, porque a surpresa e a admiração, e raptou os videntes, com intenção de os assistiu a missas solenes em Lisboa. Segundo de se insubordinar, porque o governo, em
no contexto desta nova sensibilidade religio- submeter a exames médicos e os internar o ex-administrador do concelho de Ourém, Lisboa, apressou-se a esclarecer que nunca
sa, jogaram a favor de Fátima. O professor “numa casa de educação”. Durante dois dias, o “sidonismo” deixou os “reaccionários à dera tais instruções ao governador civil (em
da Universidade de Bamberg, Ludwig Fis- manteve as crianças presas em sua casa. A vontade” em Fátima. Curiosamente, isso Outubro de 1924, num novo momento de
cher, rendeu-se a Fátima em 1929, quan- certa altura, para as aterrorizar, levou-as à não pareceu beneficiar muito o culto, que ascendência radical, houve outra tentativa
do, depois de visitar a Cova de Iria, entre cadeia, onde teriam sido ameaçadas de ser nestes anos perdeu dois dos videntes para de proibição, frustrada). O antigo adminis-
a multidão de peregrinos, seguiu para um “fritas em azeite”. a gripe pneumónica. Mas com o regresso trador, Oliveira Santos, estava desconsolado:
congresso eclesiástico em Sevilha. Entre Os seus correligionários mostraram ao poder do PRP, depois de 1919, os “livre- “A reacção vai triunfando.”
as grandes autoridades da igreja, sentiu o igual zelo. Na noite de 22 de Outubro, -pensadores” decidiram tentar novamente a O último golpe no “livre-pensamento”
contraste: “Sevilha é organização – Fátima um bando de “livres-pensadores” de San- eliminação de Fátima, outra vez com Artur viria a 27 de Dezembro de 1922, quando
é fé. Sevilha é tradição, rotina – Fátima é tarém viajou de automóvel até à Cova de de Oliveira Santos à frente da administração o Mundo anunciou sensacionalmente que
actualidade, é vida. Sevilha é obra do ho- Iria. Vandalizaram o local, cortaram a de Ourém. Em 1920, com a morte de Jacinta, o Presidente da República iria ao Palácio
mem – Fátima é obra de Deus. Sevilha é o azinheira, e fizeram depois em Santarém receou uma grande peregrinação a 13 de da Ajuda, como os antigos reis, impor o
fim – Fátima é o princípio”. uma procissão de paródia com os objec- Maio. Forças da GNR cercaram a Cova de Iria barrete cardinalício ao núncio apostólico,
Deste ponto de vista, a logística de Fáti- tos roubados, o que lhes valeu um balde e Lúcia, aos 13 anos, foi presa pela segunda como prova de que “o regime republicano
ma, em que os seus inimigos descortinam de água atirado de uma janela por uma vez por uma patrulha a cavalo da GNR. No é tolerante”. Almeida explicou então que a
a causa, só podia parecer a consequência. mulher indignada. Em Dezembro, a Fede- jornal A Guarda, um “republicano histó- república, embora neutra, “tem especiais
O bispo de Leiria, D. José Alves Correia ração do Livre-Pensamento e a Associação rico” estranhou: “na França republicana”, deferências” para com o catolicismo, por
da Silva, devoto de Lourdes, foi criando de Registo Civil de Lisboa voltaram ao os governos facilitavam as peregrinações a ser a religião da “quase totalidade da Na-
condições para uma eventual regulariza- terreno, com uma conferência em Ourém Lourdes, e nunca “o regime correu por esse ção”. Até Sebastião de Magalhães Lima, o
ção do culto: comprou terrenos na Cova e um comício na própria Cova de Iria, para motivo algum perigo”. Grão-Mestre da maçonaria, concordava:
de Iria, deixou rezar missas, e nomeou uma denunciar o “vil embuste de Fátima”. No O cerco de 1920 foi, em relação a Fáti- “a época dos mata-frades passou”. Para o
comissão de inquérito canónico em 1922 (o comício, não terão comparecido mais do ma, uma das últimas grandes exibições Mundo, sempre o órgão do PRP, mas já com
seu argumento a favor da possibilidade de que oito pessoas, apesar da protecção de de poder dos “livres-pensadores”. A sua pouco em comum com o jornal de 1917, era
um milagre é curioso: se os homens podiam uma grande força da Guarda Republicana influência cairia dramaticamente nos anos uma excelente notícia: “nunca mais po-
“desviar as águas de um rio, utilizá-lo para vinda de Tomar e de Torres Novas. seguintes, quando o presidente António derão especular junto da pobre gente da
a produção de energia eléctrica que nos dá Tanto afã acabou por suscitar dúvi- José de Almeida (1919-1923), com o apoio província com a lenda de que a República
luz, calor, movimento”, como não admitir das. A 18 de Novembro de 1917, Tomás do novo líder do PRP e chefe do governo, odeia Deus, persegue e tortura os padres,
que Deus pudesse “produzir efeitos muito da Fonseca, num artigo para O Mundo, António Maria da Silva, pôs fim à “guerra profana os templos e impede o culto da
superiores”? Afinal, o progresso tecnológi- perguntou-se mesmo se não eram os “li- religiosa”, ao mesmo tempo que a Igreja, religião católica”. Entretanto, a burocracia
co tinha “introduzido no mundo material vres-pensadores” que estavam a alimentar através do Centro Católico, se desinteressa- do Estado legalizava Fátima: a 12 de Maio
mais mudanças do que todos os milagres o “fogacho” de Fátima com “a lenha seca va da “questão do regime”. A década de 20 de 1924, a Divisão de Estradas do Distrito
do cristianismo”).
A propósito da comissão canónica, Lu-
dos nossos escritos e conversas”. De facto,
a perseguição teve este efeito: deixou a
● As fotos da Ilustração tam a servir essa mentira para iludir os
papalvos”. Era uma referência ao Século,
assembleias de voto em toda a cidade, e
não chover. A conclusão era tremenda: “Se
fim, não hesitou em aproveitar a imagís-
tica mariana. Em 1911, no poema Marános
teve momentos duros. Os governos tiveram
de praticar uma austeridade violenta, para
de Santarém concedeu a primeira licença
de obras na Cova da Iria, para os muros do
dwig Fischer reparou que “trabalhava com imprensa católica à vontade para abor- Portuguesa retratando o o maior diário português, que tinha sido cada vez parece haver mais quem faça fé na (grafia da época), apelou à “saudade” limitar uma das maiores inflações da Eu- recinto das aparições.
extrema lentidão”, mas “a fim de permitir dar Fátima, não como um “milagre”, de também o maior jornal republicano antes Virgem, porque é que cada vez há menos como à Virgem: “Ó Saudade! Ó Sauda- ropa. Houve greves e terrorismo. Para via- A aceitação de Fátima pelo “poder do
que o tempo e os factos se encarregassem de discussão delicada entre católicos, mas dia do milagre do Sol, a de 1910. A 15 de Outubro, a reportagem de quem faça fé nos homens? Com certeza não de! Ó Virgem Mãe,/ Que sobre a terra bilizar novas alianças, a elite republicana Estado” não teve, assim, de esperar pela
falar”. Entretanto, os entusiastas fundavam como um caso de falta de liberdade reli- Avelino de Almeida sobre o dia 13 na Cova é por culpa da Virgem.” santa portuguesa,/ Conceberás, isenta investiu fortemente no que pudesse servir cumplicidade entre a ditadura de Salazar
jornais e associações. Na passagem para a giosa, com que todas as pessoas decentes, 13 de Outubro de 1917, de Iria causara enorme sensação. Almeida Desde o fim do século XIX, o tipo de de pecado,/ O Cristo da Esperança e da como base de consenso. Foi uma época de e a Igreja do cardeal Cerejeira nos anos
década de 1930, Fátima assinalou a reorgani-
zação da Igreja portuguesa: deslocada para
independentemente das suas convicções,
se podiam escandalizar. Há a esse respeito,
demonstram a intensa havia sido um célebre ferrabrás do anticle-
ricalismo. Agora, aparecia deslumbrado
materialismo cientista que alimentava o
chamado “livre-pensamento” recuava,
Beleza!” Pascoaes não estava sozinho neste
marianismo republicano. A sua expressão
ouro de eventos e cerimónias patrióticas,
como a viagem aérea de Gago Coutinho e
30, nem pelo fortalecimento da sua res-
sonância profética a partir da década de
sul, mais popular, e mais “romana”, através na transcrição do que a Virgem terá dito cobertura jornalística por “um espectáculo único e inacreditável como já Eça de Queirós constatara em mais fantástica ocorreu na oração patrió- de Sacadura Cabral ao Brasil em 1922, ou 1940. Resultou, em primeiro lugar, de um
de um marianismo associado à afirmação a 19 de Agosto a Lúcia, uma incerteza para quem não foi testemunha dele”: uma 1893 no seu ensaio “Positivismo e Idealis- tica que o maior intelectual do regime, o a adopção pelo Estado do culto do con- novo republicanismo, traumatizado pelo
da autoridade do Papa. O clero, porém, curiosa: o pároco de Fátima registou: que Fátima rapidamente “imensa multidão” num “alarido colos- mo”, depois incluído no livro Notas Con- poeta Guerra Junqueiro, enviou ao jornal destável Nuno Álvares Pereira, beatificado fracasso do “livre-pensamento” e fascinado
nunca esteve totalmente à vontade. Tentou “se não tivessem abalado contigo para sal”, a gritar “milagre!, milagre!”. Tinha temporâneas. As ciências experimentais, República, a 13 de Fevereiro de 1917: “Pá- em 1918 e a quem a república consagrou pela ideia de um consenso de tipo religioso,
regularizar as “curas”, através de um serviço a Aldeia (Ourém) o milagre seria mais obteve e que em muito sido avassalador: “a sugestão colectiva que em meados do século XIX pareciam tria divina de Camões e de Nun’Álvares, um “feriado cívico”, a “Festa da Pátria”, que aliás inspirara o republicanismo euro-
de assistência aos doentes, a que se chamava
Gabinete de Verificações, como em Lourdes,
conhecido”; mas o cónego Formigão,
mais tarde, anotou o contrário: “se não
contribuiu para alimentar de que o sobrenatural impera ali e de
que um poder extra-humano empolga os
o critério de todos os valores, tinham-se
revelado limitadas e incertas. A religião,
santificado seja o vosso nome. (...) perdoai,
Senhora, os nossos erros. Para nos liber-
a 14 de Agosto. Mais uma vez, imitava-se
a França: Nuno Álvares constituía, como
peu desde a “religião civil” de Rousseau.
Mas resultou também da disponibilidade
e esforçou-se por tirar a Fátima o aspecto tivessem sido presas, não seria o milagre a audiência das aparições. circunstantes é tão forte e tão arrebatador de patologia condenada pelo progresso, tar de toda a fraqueza e de todo o crime, Jeanne d’Arc, um ponto de encontro entre a da Igreja em inserir o catolicismo na nação
de um romaria tradicional, com barracas tão conhecido”. Na versão de Formigão, a que os olhos se marejam de lágrimas, há passou a exemplo de um impulso vital ou encheremos os corações do vosso amor, “fé patriótica” e a “fé religiosa”. Em 1921, a histórica, como um selo providencialista do
de comes e bebes, foguetório, e mendigos, Virgem confirmava os receios do Mundo. rostos que se cobrem de uma palidez de expressão de uma transcendência inultra- Ámen”. Os intelectuais cosmopolitas e 14 de Agosto, houve grandes festas em Lis- patriotismo.
tal como hoje se esforça por transformar as O pormenor que tem escapado à his- morte, homens e mulheres prostram-se passável. A literatura dita “simbolista” anticatólicos da república tinham visto boa, com desfile militar, mas também mis- A história de Fátima está assim para além
“aparições” em “visões” (fenómeno místico, toriografia é que os chamados “livres- em terra, entoando cânticos e rezam o reabilitou a indeterminação, a vida inte- a Virgem muito antes dos pastorinhos sa. Os “livres-pensadores”, desesperados, do fait-divers de uma suposta religiosidade
em vez de físico). -pensadores” precisavam de Fátima muito terço em coro”. rior, o sonho, a religião, o hermetismo. de Aljustrel. declararam uma “Semana Anti-Clerical”. rural, ou da guerra entre a Igreja e o Estado.
mais do que os católicos. Os “livres-pensa- Avelino de Almeida não se convertera. Foi essa a inspiração do mais impor- Começara uma espécie de fascínio pela fé Estavam a perder. A prática religiosa re- Tudo é um pouco mais complicado. E, no
3. Um novo dores” constituíam apenas uma corrente Apenas ficara impressionado por duas tante movimento intelectual republicano que, anos depois, em 1938, levaria o escritor crudescera em Portugal, como na Europa, fim, para tornar a história ainda mais difí-
no republicanismo. Em 1917, sentiam a sua coisas em Fátima. Por um lado, uma de- destes anos, a Renascença Portuguesa, Antero de Figueiredo, em Fátima, a maravi- com a Grande Guerra. Nestes anos, como cil, conviria regressar ao princípio, às três
republicanismo influência ameaçada, não por Fátima, mas monstração da “psicologia das multidões”, que juntou Teixeira Pascoaes, Leonardo lhar-se: “A Fé! Que força extraordinária, que em França, só se falava das espectaculares crianças de Aljustrel. Em 1921, quando duas
A 31 de Outubro de 1942, o cardeal Cere- pelo próprio regime. A guerra, como em popularizada pelo escritor francês Gustave Coimbra, Jaime Cortesão, Raul Proença, espiritual potência! Se esta multidão soer- conversões de escritores ateus: Gomes Leal, já tinham morrido, a terceira desapareceu,
jeira resumiu assim a história de Fátima: França, levara à tentativa de estabelecer Le Bon. Mas, acima de tudo, a comunhão António Sérgio, Raul Brandão, e, ao prin- guesse as costas, levantaria cordilheiras; se Guerra Junqueiro, Manuel Ribeiro, mais internada em instituições eclesiásticas. Só
“sem a igreja e contra o poder do Estado”. uma “união sagrada”. Nesse espírito, o -pensadores” qualquer acordo com a numa crença colectiva, como a que os repu- cípio, Fernando Pessoa. Nos seus artigos e esbracejasse, afastaria continentes.” E teve tarde Leonardo Coimbra. Até Afonso Cos- em 1938, Lúcia voltou a falar em público,
Não era exacto. Nem pelo que dizia respeito governo aceitara a assistência religiosa em “reacção clerical” era impensável. Ora, blicanos, por outros meios, desejavam ob- conferências, Pascoaes, o líder da Renas- esta nota significativa: “É neste instante, ta, segundo os boatos, frequentava sessões por intermédio de Antero de Figueiredo.
à igreja, nem pelo que dizia respeito ao campanha, nomeando capelães militares. que melhor do que Fátima, ressurgência ter. Fátima mostrava à república, de modo cença, citava, tal como Sardinha, Henri único, que tem realidade a ideologia (aliás, espíritas em Paris. Fátima, o livro do encontro, descreve-a
“poder do Estado”. Era verdade que Fátima Mas corriam rumores mais preocupantes: de uma credulidade fraudulenta, para perverso, aquilo que a república gostaria Bergson e William James, para repudiar socialmente falsa) da Revolução.” Ora, o O cónego Formigão procurou situar Fá- como uma “figura meã de camponesa”, com
fora, desde o princípio, um alvo do chamado que estaria a ser considerado o restabele- provar a inconveniência de o regime se de ter sido: a ultrapassagem dos egoísmos, o “egoísmo materialista”, o “cientismo que oferecia o “livre-pensamento” mate- tima neste contexto. Em artigos no jornal “cara plebeia”, viva e jovial, talvez com uma
“livre-pensamento” republicano, mas este cimento de relações diplomáticas com a moderar? No primeiro artigo do Mundo a disponibilidade de tudo sacrificar por estreito e superficial”, e saudar o “espírito rialista em alternativa? Piadas sobre o “sol Voz de Fátima, inseriu as aparições num “pontinha de génio”, igualmente dada a
nem sempre contou com o “poder do Es- Santa Sé ou até mesmo a revisão da “in- sobre Fátima, a 18 de Agosto, era essa a um ideal. Foi esse precisamente o tema religioso que ora aparece na Europa”. em folias”, dichotes contra os “pequenos triângulo nacional, situado no centro do ditos humorísticos e a reflexões espirituais.
tado”. O “livre-pensamento” era uma causa tangível” Lei da Separação. A intervenção verdadeira nota: “e é sob esta união sa- do Século num artigo de 17 de Outubro, Acreditava que só “pelo sentimento re- labrostes”, troças da “crendice indígena”, país, cujos vértices seriam a Batalha, Fá- Mas durante as conversas, Figueiredo repa-
das lojas maçónicas em que quase todos na guerra não era popular e as dificulda- grada (...), que com ousadia extrema os em que comparou Fátima com as eleições ligioso” a humanidade poderia elevar-se ou a hilariante descoberta, em Agosto de tima e Ourém, de que Nuno Álvares tinha rou que em alguns momentos, de repente,
os chefes republicanos estavam filiados. des de abastecimentos eram graves. Para impostores vão praticando sem punições municipais de 14 de Outubro: “Em Fátima, “àquela altitude, onde todas as almas se 1917, de um “menino virtuoso” que, na rua sido conde. Estavam assim unidos o cato- havia nela uma “certa estranha expressão
Mas aplicava-se mais especialmente a uma o regime, uma trégua com os católicos todas essas proezas de estupidez e de ce- cerca de cinquenta mil pessoas se mobili- encontram, como que libertas de seus dos Poiais de S. Bento, em Lisboa, previa licismo e o patriotismo. A 10 de Abril de que surpreende e impressiona”: “Nos seus
corrente radical, protagonizada por asso- poderia ser conveniente, e parecia haver gueira”. Era urgente voltar às “punições”. zaram para presenciar um milagre. Idas de corpos e esquecidas da sua tenebrosa uma “aparição” na capital. Em 1917, eram os 1921, o bispo de Leiria participou com o olhos, há lá dentro, lá no fundo, lá muito
ciações próximas do Partido Republicano boa expectativa disso. Foi o que aconteceu a 23 de Agosto, com longínquas paragens, nem os incómodos da existência”. Pascoaes abominava o cleri- homens do livre-pensamento que pareciam Presidente da República na cerimónia de longe, um inatingível e insondável mundo.”
Português de Afonso Costa, no poder. A sua A igreja patrocinava um novo movi- o desterro do cardeal patriarca. jornada, nem a inclemência do tempo as calismo católico, mas sonhava com uma estéreis e intolerantes. A 26 de Outubro de inumação do Soldado Desconhecido, no Como em toda esta história.
reacção a Fátima foi quase instantânea. A 18 mento político, o Centro Católico, que no Mas a influência dos “livres-pensado- demoveram do seu propósito”. Mas “no dia “democracia rústica e campestre”, feita 1917, o Diário de Notícias resumia assim, mosteiro da Batalha. As bombas que des-
de Agosto de 1917, o diário O Mundo, órgão fundo significava o seu distanciamento res” diminuía. A 20 de Outubro de 1917, seguinte, a concorrência às urnas em Lisboa de “lavradores” a quem queria dar uma a propósito de Fátima, em que consistia o conhecidos colocaram na capela da Cova Rui Ramos é historiador, colunista
do PRP, imputou logo os acontecimentos dos monárquicos. Mas para os “livres- o Mundo atacou os jornais “que se pres- foi uma coisa irrisória”, apesar de haver religião nova, a da “saudade”. Com esse livre-pensamento oficial: no ataque ao “livre de Iria, na noite de 5 para 6 de Março de e administrador do Observador.
68 FÁTIMA FÁTIMA 69

criança, e depois aquela mole imensa de de “Torres Vedras” (sic, por Torres Novas) pensamento dos outros que não pensam 1922, demonstraram que Fátima já só podia
gente”. Azevedo Mendes tornou-se um dos a um “charlatão” que, a fim de explorar o como o Sr. Administrador do concelho”. ser atacada na sombra. Quando, em Maio,
grandes activistas de Fátima. Anos depois, “povo bisonho”, “industria pobres crianças No mês de Dezembro de 1917, o poder o governador civil de Santarém sugeriu
no santuário, comentaria: “o grande milagre a verem a santa”. No terreno, já o adminis- do PRP de Afonso Costa desmoronou-se que se proibisse a peregrinação, o novo
de Fátima é tudo aquilo que vemos, essas trador do concelho de Ourém, Artur de perante a sublevação militar comandada em administrador de Ourém respondeu que
multidões penitentes... Essa devoção... Essas Oliveira Santos, maçon e militante do “livre- Lisboa pelo major e professor universitário um tal acto só serviria para “desprestigiar a
conversões...” O que era “pouco” para Pinto -pensamento”, recorria a todos os meios Sidónio Pais. Sidónio, embora ateu, rompeu República”, e que não cumpriria nenhumas
Coelho, o idoso tradicionalista, era tudo para liquidar a “especulação clerical”. A com o livre-pensamento radical. Emendou a ordens nesse sentido, para o que já contava
para Azevedo Mendes, o jovem militante. 13 de Agosto, no dia previsto para a quarta Lei da Separação, restabeleceu relações com com o apoio de todos “os republicanos de
O lado “caótico” dos acontecimentos foi aparição, apareceu de surpresa em Fátima o Vaticano e, como Presidente da República, várias cores do concelho”. Não precisou
essencial, porque a surpresa e a admiração, e raptou os videntes, com intenção de os assistiu a missas solenes em Lisboa. Segundo de se insubordinar, porque o governo, em
no contexto desta nova sensibilidade religio- submeter a exames médicos e os internar o ex-administrador do concelho de Ourém, Lisboa, apressou-se a esclarecer que nunca
sa, jogaram a favor de Fátima. O professor “numa casa de educação”. Durante dois dias, o “sidonismo” deixou os “reaccionários à dera tais instruções ao governador civil (em
da Universidade de Bamberg, Ludwig Fis- manteve as crianças presas em sua casa. A vontade” em Fátima. Curiosamente, isso Outubro de 1924, num novo momento de
cher, rendeu-se a Fátima em 1929, quan- certa altura, para as aterrorizar, levou-as à não pareceu beneficiar muito o culto, que ascendência radical, houve outra tentativa
do, depois de visitar a Cova de Iria, entre cadeia, onde teriam sido ameaçadas de ser nestes anos perdeu dois dos videntes para de proibição, frustrada). O antigo adminis-
a multidão de peregrinos, seguiu para um “fritas em azeite”. a gripe pneumónica. Mas com o regresso trador, Oliveira Santos, estava desconsolado:
congresso eclesiástico em Sevilha. Entre Os seus correligionários mostraram ao poder do PRP, depois de 1919, os “livre- “A reacção vai triunfando.”
as grandes autoridades da igreja, sentiu o igual zelo. Na noite de 22 de Outubro, -pensadores” decidiram tentar novamente a O último golpe no “livre-pensamento”
contraste: “Sevilha é organização – Fátima um bando de “livres-pensadores” de San- eliminação de Fátima, outra vez com Artur viria a 27 de Dezembro de 1922, quando
é fé. Sevilha é tradição, rotina – Fátima é tarém viajou de automóvel até à Cova de de Oliveira Santos à frente da administração o Mundo anunciou sensacionalmente que
actualidade, é vida. Sevilha é obra do ho- Iria. Vandalizaram o local, cortaram a de Ourém. Em 1920, com a morte de Jacinta, o Presidente da República iria ao Palácio
mem – Fátima é obra de Deus. Sevilha é o azinheira, e fizeram depois em Santarém receou uma grande peregrinação a 13 de da Ajuda, como os antigos reis, impor o
fim – Fátima é o princípio”. uma procissão de paródia com os objec- Maio. Forças da GNR cercaram a Cova de Iria barrete cardinalício ao núncio apostólico,
Deste ponto de vista, a logística de Fáti- tos roubados, o que lhes valeu um balde e Lúcia, aos 13 anos, foi presa pela segunda como prova de que “o regime republicano
ma, em que os seus inimigos descortinam de água atirado de uma janela por uma vez por uma patrulha a cavalo da GNR. No é tolerante”. Almeida explicou então que a
a causa, só podia parecer a consequência. mulher indignada. Em Dezembro, a Fede- jornal A Guarda, um “republicano histó- república, embora neutra, “tem especiais
O bispo de Leiria, D. José Alves Correia ração do Livre-Pensamento e a Associação rico” estranhou: “na França republicana”, deferências” para com o catolicismo, por
da Silva, devoto de Lourdes, foi criando de Registo Civil de Lisboa voltaram ao os governos facilitavam as peregrinações a ser a religião da “quase totalidade da Na-
condições para uma eventual regulariza- terreno, com uma conferência em Ourém Lourdes, e nunca “o regime correu por esse ção”. Até Sebastião de Magalhães Lima, o
ção do culto: comprou terrenos na Cova e um comício na própria Cova de Iria, para motivo algum perigo”. Grão-Mestre da maçonaria, concordava:
de Iria, deixou rezar missas, e nomeou uma denunciar o “vil embuste de Fátima”. No O cerco de 1920 foi, em relação a Fáti- “a época dos mata-frades passou”. Para o
comissão de inquérito canónico em 1922 (o comício, não terão comparecido mais do ma, uma das últimas grandes exibições Mundo, sempre o órgão do PRP, mas já com
seu argumento a favor da possibilidade de que oito pessoas, apesar da protecção de de poder dos “livres-pensadores”. A sua pouco em comum com o jornal de 1917, era
um milagre é curioso: se os homens podiam uma grande força da Guarda Republicana influência cairia dramaticamente nos anos uma excelente notícia: “nunca mais po-
“desviar as águas de um rio, utilizá-lo para vinda de Tomar e de Torres Novas. seguintes, quando o presidente António derão especular junto da pobre gente da
a produção de energia eléctrica que nos dá Tanto afã acabou por suscitar dúvi- José de Almeida (1919-1923), com o apoio província com a lenda de que a República
luz, calor, movimento”, como não admitir das. A 18 de Novembro de 1917, Tomás do novo líder do PRP e chefe do governo, odeia Deus, persegue e tortura os padres,
que Deus pudesse “produzir efeitos muito da Fonseca, num artigo para O Mundo, António Maria da Silva, pôs fim à “guerra profana os templos e impede o culto da
superiores”? Afinal, o progresso tecnológi- perguntou-se mesmo se não eram os “li- religiosa”, ao mesmo tempo que a Igreja, religião católica”. Entretanto, a burocracia
co tinha “introduzido no mundo material vres-pensadores” que estavam a alimentar através do Centro Católico, se desinteressa- do Estado legalizava Fátima: a 12 de Maio
mais mudanças do que todos os milagres o “fogacho” de Fátima com “a lenha seca va da “questão do regime”. A década de 20 de 1924, a Divisão de Estradas do Distrito
do cristianismo”).
A propósito da comissão canónica, Lu-
dos nossos escritos e conversas”. De facto,
a perseguição teve este efeito: deixou a
● As fotos da Ilustração tam a servir essa mentira para iludir os
papalvos”. Era uma referência ao Século,
assembleias de voto em toda a cidade, e
não chover. A conclusão era tremenda: “Se
fim, não hesitou em aproveitar a imagís-
tica mariana. Em 1911, no poema Marános
teve momentos duros. Os governos tiveram
de praticar uma austeridade violenta, para
de Santarém concedeu a primeira licença
de obras na Cova da Iria, para os muros do
dwig Fischer reparou que “trabalhava com imprensa católica à vontade para abor- Portuguesa retratando o o maior diário português, que tinha sido cada vez parece haver mais quem faça fé na (grafia da época), apelou à “saudade” limitar uma das maiores inflações da Eu- recinto das aparições.
extrema lentidão”, mas “a fim de permitir dar Fátima, não como um “milagre”, de também o maior jornal republicano antes Virgem, porque é que cada vez há menos como à Virgem: “Ó Saudade! Ó Sauda- ropa. Houve greves e terrorismo. Para via- A aceitação de Fátima pelo “poder do
que o tempo e os factos se encarregassem de discussão delicada entre católicos, mas dia do milagre do Sol, a de 1910. A 15 de Outubro, a reportagem de quem faça fé nos homens? Com certeza não de! Ó Virgem Mãe,/ Que sobre a terra bilizar novas alianças, a elite republicana Estado” não teve, assim, de esperar pela
falar”. Entretanto, os entusiastas fundavam como um caso de falta de liberdade reli- Avelino de Almeida sobre o dia 13 na Cova é por culpa da Virgem.” santa portuguesa,/ Conceberás, isenta investiu fortemente no que pudesse servir cumplicidade entre a ditadura de Salazar
jornais e associações. Na passagem para a giosa, com que todas as pessoas decentes, 13 de Outubro de 1917, de Iria causara enorme sensação. Almeida Desde o fim do século XIX, o tipo de de pecado,/ O Cristo da Esperança e da como base de consenso. Foi uma época de e a Igreja do cardeal Cerejeira nos anos
década de 1930, Fátima assinalou a reorgani-
zação da Igreja portuguesa: deslocada para
independentemente das suas convicções,
se podiam escandalizar. Há a esse respeito,
demonstram a intensa havia sido um célebre ferrabrás do anticle-
ricalismo. Agora, aparecia deslumbrado
materialismo cientista que alimentava o
chamado “livre-pensamento” recuava,
Beleza!” Pascoaes não estava sozinho neste
marianismo republicano. A sua expressão
ouro de eventos e cerimónias patrióticas,
como a viagem aérea de Gago Coutinho e
30, nem pelo fortalecimento da sua res-
sonância profética a partir da década de
sul, mais popular, e mais “romana”, através na transcrição do que a Virgem terá dito cobertura jornalística por “um espectáculo único e inacreditável como já Eça de Queirós constatara em mais fantástica ocorreu na oração patrió- de Sacadura Cabral ao Brasil em 1922, ou 1940. Resultou, em primeiro lugar, de um
de um marianismo associado à afirmação a 19 de Agosto a Lúcia, uma incerteza para quem não foi testemunha dele”: uma 1893 no seu ensaio “Positivismo e Idealis- tica que o maior intelectual do regime, o a adopção pelo Estado do culto do con- novo republicanismo, traumatizado pelo
da autoridade do Papa. O clero, porém, curiosa: o pároco de Fátima registou: que Fátima rapidamente “imensa multidão” num “alarido colos- mo”, depois incluído no livro Notas Con- poeta Guerra Junqueiro, enviou ao jornal destável Nuno Álvares Pereira, beatificado fracasso do “livre-pensamento” e fascinado
nunca esteve totalmente à vontade. Tentou “se não tivessem abalado contigo para sal”, a gritar “milagre!, milagre!”. Tinha temporâneas. As ciências experimentais, República, a 13 de Fevereiro de 1917: “Pá- em 1918 e a quem a república consagrou pela ideia de um consenso de tipo religioso,
regularizar as “curas”, através de um serviço a Aldeia (Ourém) o milagre seria mais obteve e que em muito sido avassalador: “a sugestão colectiva que em meados do século XIX pareciam tria divina de Camões e de Nun’Álvares, um “feriado cívico”, a “Festa da Pátria”, que aliás inspirara o republicanismo euro-
de assistência aos doentes, a que se chamava
Gabinete de Verificações, como em Lourdes,
conhecido”; mas o cónego Formigão,
mais tarde, anotou o contrário: “se não
contribuiu para alimentar de que o sobrenatural impera ali e de
que um poder extra-humano empolga os
o critério de todos os valores, tinham-se
revelado limitadas e incertas. A religião,
santificado seja o vosso nome. (...) perdoai,
Senhora, os nossos erros. Para nos liber-
a 14 de Agosto. Mais uma vez, imitava-se
a França: Nuno Álvares constituía, como
peu desde a “religião civil” de Rousseau.
Mas resultou também da disponibilidade
e esforçou-se por tirar a Fátima o aspecto tivessem sido presas, não seria o milagre a audiência das aparições. circunstantes é tão forte e tão arrebatador de patologia condenada pelo progresso, tar de toda a fraqueza e de todo o crime, Jeanne d’Arc, um ponto de encontro entre a da Igreja em inserir o catolicismo na nação
de um romaria tradicional, com barracas tão conhecido”. Na versão de Formigão, a que os olhos se marejam de lágrimas, há passou a exemplo de um impulso vital ou encheremos os corações do vosso amor, “fé patriótica” e a “fé religiosa”. Em 1921, a histórica, como um selo providencialista do
de comes e bebes, foguetório, e mendigos, Virgem confirmava os receios do Mundo. rostos que se cobrem de uma palidez de expressão de uma transcendência inultra- Ámen”. Os intelectuais cosmopolitas e 14 de Agosto, houve grandes festas em Lis- patriotismo.
tal como hoje se esforça por transformar as O pormenor que tem escapado à his- morte, homens e mulheres prostram-se passável. A literatura dita “simbolista” anticatólicos da república tinham visto boa, com desfile militar, mas também mis- A história de Fátima está assim para além
“aparições” em “visões” (fenómeno místico, toriografia é que os chamados “livres- em terra, entoando cânticos e rezam o reabilitou a indeterminação, a vida inte- a Virgem muito antes dos pastorinhos sa. Os “livres-pensadores”, desesperados, do fait-divers de uma suposta religiosidade
em vez de físico). -pensadores” precisavam de Fátima muito terço em coro”. rior, o sonho, a religião, o hermetismo. de Aljustrel. declararam uma “Semana Anti-Clerical”. rural, ou da guerra entre a Igreja e o Estado.
mais do que os católicos. Os “livres-pensa- Avelino de Almeida não se convertera. Foi essa a inspiração do mais impor- Começara uma espécie de fascínio pela fé Estavam a perder. A prática religiosa re- Tudo é um pouco mais complicado. E, no
3. Um novo dores” constituíam apenas uma corrente Apenas ficara impressionado por duas tante movimento intelectual republicano que, anos depois, em 1938, levaria o escritor crudescera em Portugal, como na Europa, fim, para tornar a história ainda mais difí-
no republicanismo. Em 1917, sentiam a sua coisas em Fátima. Por um lado, uma de- destes anos, a Renascença Portuguesa, Antero de Figueiredo, em Fátima, a maravi- com a Grande Guerra. Nestes anos, como cil, conviria regressar ao princípio, às três
republicanismo influência ameaçada, não por Fátima, mas monstração da “psicologia das multidões”, que juntou Teixeira Pascoaes, Leonardo lhar-se: “A Fé! Que força extraordinária, que em França, só se falava das espectaculares crianças de Aljustrel. Em 1921, quando duas
A 31 de Outubro de 1942, o cardeal Cere- pelo próprio regime. A guerra, como em popularizada pelo escritor francês Gustave Coimbra, Jaime Cortesão, Raul Proença, espiritual potência! Se esta multidão soer- conversões de escritores ateus: Gomes Leal, já tinham morrido, a terceira desapareceu,
jeira resumiu assim a história de Fátima: França, levara à tentativa de estabelecer Le Bon. Mas, acima de tudo, a comunhão António Sérgio, Raul Brandão, e, ao prin- guesse as costas, levantaria cordilheiras; se Guerra Junqueiro, Manuel Ribeiro, mais internada em instituições eclesiásticas. Só
“sem a igreja e contra o poder do Estado”. uma “união sagrada”. Nesse espírito, o -pensadores” qualquer acordo com a numa crença colectiva, como a que os repu- cípio, Fernando Pessoa. Nos seus artigos e esbracejasse, afastaria continentes.” E teve tarde Leonardo Coimbra. Até Afonso Cos- em 1938, Lúcia voltou a falar em público,
Não era exacto. Nem pelo que dizia respeito governo aceitara a assistência religiosa em “reacção clerical” era impensável. Ora, blicanos, por outros meios, desejavam ob- conferências, Pascoaes, o líder da Renas- esta nota significativa: “É neste instante, ta, segundo os boatos, frequentava sessões por intermédio de Antero de Figueiredo.
à igreja, nem pelo que dizia respeito ao campanha, nomeando capelães militares. que melhor do que Fátima, ressurgência ter. Fátima mostrava à república, de modo cença, citava, tal como Sardinha, Henri único, que tem realidade a ideologia (aliás, espíritas em Paris. Fátima, o livro do encontro, descreve-a
“poder do Estado”. Era verdade que Fátima Mas corriam rumores mais preocupantes: de uma credulidade fraudulenta, para perverso, aquilo que a república gostaria Bergson e William James, para repudiar socialmente falsa) da Revolução.” Ora, o O cónego Formigão procurou situar Fá- como uma “figura meã de camponesa”, com
fora, desde o princípio, um alvo do chamado que estaria a ser considerado o restabele- provar a inconveniência de o regime se de ter sido: a ultrapassagem dos egoísmos, o “egoísmo materialista”, o “cientismo que oferecia o “livre-pensamento” mate- tima neste contexto. Em artigos no jornal “cara plebeia”, viva e jovial, talvez com uma
“livre-pensamento” republicano, mas este cimento de relações diplomáticas com a moderar? No primeiro artigo do Mundo a disponibilidade de tudo sacrificar por estreito e superficial”, e saudar o “espírito rialista em alternativa? Piadas sobre o “sol Voz de Fátima, inseriu as aparições num “pontinha de génio”, igualmente dada a
nem sempre contou com o “poder do Es- Santa Sé ou até mesmo a revisão da “in- sobre Fátima, a 18 de Agosto, era essa a um ideal. Foi esse precisamente o tema religioso que ora aparece na Europa”. em folias”, dichotes contra os “pequenos triângulo nacional, situado no centro do ditos humorísticos e a reflexões espirituais.
tado”. O “livre-pensamento” era uma causa tangível” Lei da Separação. A intervenção verdadeira nota: “e é sob esta união sa- do Século num artigo de 17 de Outubro, Acreditava que só “pelo sentimento re- labrostes”, troças da “crendice indígena”, país, cujos vértices seriam a Batalha, Fá- Mas durante as conversas, Figueiredo repa-
das lojas maçónicas em que quase todos na guerra não era popular e as dificulda- grada (...), que com ousadia extrema os em que comparou Fátima com as eleições ligioso” a humanidade poderia elevar-se ou a hilariante descoberta, em Agosto de tima e Ourém, de que Nuno Álvares tinha rou que em alguns momentos, de repente,
os chefes republicanos estavam filiados. des de abastecimentos eram graves. Para impostores vão praticando sem punições municipais de 14 de Outubro: “Em Fátima, “àquela altitude, onde todas as almas se 1917, de um “menino virtuoso” que, na rua sido conde. Estavam assim unidos o cato- havia nela uma “certa estranha expressão
Mas aplicava-se mais especialmente a uma o regime, uma trégua com os católicos todas essas proezas de estupidez e de ce- cerca de cinquenta mil pessoas se mobili- encontram, como que libertas de seus dos Poiais de S. Bento, em Lisboa, previa licismo e o patriotismo. A 10 de Abril de que surpreende e impressiona”: “Nos seus
corrente radical, protagonizada por asso- poderia ser conveniente, e parecia haver gueira”. Era urgente voltar às “punições”. zaram para presenciar um milagre. Idas de corpos e esquecidas da sua tenebrosa uma “aparição” na capital. Em 1917, eram os 1921, o bispo de Leiria participou com o olhos, há lá dentro, lá no fundo, lá muito
ciações próximas do Partido Republicano boa expectativa disso. Foi o que aconteceu a 23 de Agosto, com longínquas paragens, nem os incómodos da existência”. Pascoaes abominava o cleri- homens do livre-pensamento que pareciam Presidente da República na cerimónia de longe, um inatingível e insondável mundo.”
Português de Afonso Costa, no poder. A sua A igreja patrocinava um novo movi- o desterro do cardeal patriarca. jornada, nem a inclemência do tempo as calismo católico, mas sonhava com uma estéreis e intolerantes. A 26 de Outubro de inumação do Soldado Desconhecido, no Como em toda esta história.
reacção a Fátima foi quase instantânea. A 18 mento político, o Centro Católico, que no Mas a influência dos “livres-pensado- demoveram do seu propósito”. Mas “no dia “democracia rústica e campestre”, feita 1917, o Diário de Notícias resumia assim, mosteiro da Batalha. As bombas que des-
de Agosto de 1917, o diário O Mundo, órgão fundo significava o seu distanciamento res” diminuía. A 20 de Outubro de 1917, seguinte, a concorrência às urnas em Lisboa de “lavradores” a quem queria dar uma a propósito de Fátima, em que consistia o conhecidos colocaram na capela da Cova Rui Ramos é historiador, colunista
do PRP, imputou logo os acontecimentos dos monárquicos. Mas para os “livres- o Mundo atacou os jornais “que se pres- foi uma coisa irrisória”, apesar de haver religião nova, a da “saudade”. Com esse livre-pensamento oficial: no ataque ao “livre de Iria, na noite de 5 para 6 de Março de e administrador do Observador.
70 FÉ E CIÊNCIA 71

Noventa anos depois do


aparecimento da teoria do Big Bang,
o físico Carlos Fiolhais e o jesuíta
Guy Consolmagno, diretor do
Um cientista Observatório do Vaticano, falam da
e um padre ciência de Deus, da fé dos cientistas
entram e de uma das perguntas mais
num bar debatidas dos últimos 300 anos:
fé e ciência são realmente
compatíveis?
Texto João Francisco Gomes
Ilustração Nuno Saraiva

Em 1927, o astrónomo belga Georges frente a frente, uma vez que acontece através Foi esse o caso de Galileu, no século XVI, tes e cientistas. Nascido em 1894 na cidade
Lemaître dava os primeiros passos rumo à do Observador, eles falaram como se estives- que se dedicou a defender o modelo helio- belga de Charleroi, Lemaître dedicou-se aos
hipótese que hoje é conhecida como teo- sem a conversar com uma bebida nas mãos. cêntrico (ou seja, a hipótese de que o Sol estudos na área da ciência até aos 20 anos,
ria do Big Bang. Naquela altura, Lemaître “Não faço ideia de como quebrar esse ocupava o lugar central no Sistema Solar altura em que os interrompeu para cumprir
propôs a ideia de que o Uuniverso teria mito”, admite o irmão jesuíta norte-ame- e que todos os outros planetas giravam em o seu dever militar. A participação na I Guer-
de estar em constante expansão e sugeriu ricano Guy Consolmagno, escolhido pelo torno dele). Problema: na altura a Igreja ra Mundial valeu-lhe até uma condecoração,
a hipótese do átomo primordial – uma papa Francisco, em 2015, para liderar o Católica considerava que o modelo geocên- mas os horrores da guerra levaram-no a
única partícula estaria na origem de tudo. Observatório Astronómico do Vaticano, um trico, que olhava para a Terra como centro virar-se para a Igreja e a decidir ser padre.
As origens dessa ideia do Big Bang como dos mais antigos do mundo. Mais otimista do Universo, era o único que correspondia No entanto, não deixou a vocação científica,
momento criador do Universo são habitual- é o físico português Carlos Fiolhais. “Reli- à realidade, e considerou que as afirmações e depois da guerra ainda fez um doutora-
mente atribuídas ao astrónomo americano gião e ciência são duas dimensões do ser de Galileu como heresia. mento em física no MIT. Admirador de Al-
Edwin Hubble (cujo nome serviu até para humano que podem coexistir, como mos- Vamos lá então à discussão nesta espécie bert Einstein, Lemaître partiu das ideias do
batizar o primeiro telescópio em órbita). tram não só o caso de Galileu como o do de balcão de bar fictício. “O caso Galileu foi físico alemão para chegar, em 1927, a uma
De facto, foi ele quem viria, mais tarde, a padre Lemaître e tantos outros”, considera um confronto de poder, numa altura em conclusão que o intrigou: o Universo devia
desenvolver e a confirmar a teoria. Mas o cientista, que admira o papa Francisco que a Igreja, baseada na Bíblia, considerava estar em expansão para se manter estável.
a verdade é que a hipótese foi avançada por “conhecer o valor da ciência”. que os assuntos da astronomia estavam Einstein não gostou, inicialmente, das
primeiro por Lemaître. Lemaître que, além sob a sua alçada”, explica o físico Carlos conclusões de Lemaître, mas isso não im-
de astrofísico, era um padre católico. Georges Lemaître, Fiolhais, recordando a posição do cardeal pediu o belga de aprofundar o seu estudo
Isso mesmo. A teoria que, aparentemen- Gianfranco Ravasi, atualmente um dos e de publicar, pouco depois, o trabalho
te, contradiz tudo o que a Igreja Católica o padre que propôs mais influentes cardeais do Vaticano. “Para definitivo em que defendia a hipótese do
afirma sobre a criação do Universo foi pro- a teoria do Big Bang o cardeal Ravasi, que preside ao Pontifício átomo primordial e do Big Bang. Albert
posta por um padre católico. Comecemos pelo princípio, já que é disso Conselho para a Cultura, não tinha apenas Einstein viria mais tarde a concordar com
Noventa anos depois da publicação da que vamos falar. Igreja e ciência têm uma razão o cientista Galileu no que respeita o padre-cientista e terá chegado mesmo
teoria do Big Bang, fomos perguntar a um longa história de conflito. Em tempos a ao movimento da Terra e do Sol, tinha a dizer: “Esta é a mais bela explicação
religioso e a um cientista se a ciência e a ciência esteve, aliás, sob tutela exclusiva também razão o teólogo Galileu. Isto é, ele da criação que já ouvi.” Os dois viriam a
religião continuam a ser mundos opostos. da Igreja Católica e quem contrariasse as sabia, do ponto de vista atual, mais teologia encontrar-se várias vezes ao longo da vida e
Uma conversa do género “um padre e um ideias instituídas arriscava-se a enfren- do que os clérigos que o julgaram.” a trabalhar em conjunto. As fotografias dos
cientista entram num bar…” para ver até tar graves consequências por parte da Trezentos anos depois, Georges Lemaître dois acabariam por se tornar ícones de uma
onde iam. E mesmo não sendo um encontro Inquisição. deu o passo definitivo na relação entre cren- relação saudável entre ciência e religião.
70 FÉ E CIÊNCIA 71

Noventa anos depois do


aparecimento da teoria do Big Bang,
o físico Carlos Fiolhais e o jesuíta
Guy Consolmagno, diretor do
Um cientista Observatório do Vaticano, falam da
e um padre ciência de Deus, da fé dos cientistas
entram e de uma das perguntas mais
num bar debatidas dos últimos 300 anos:
fé e ciência são realmente
compatíveis?
Texto João Francisco Gomes
Ilustração Nuno Saraiva

Em 1927, o astrónomo belga Georges frente a frente, uma vez que acontece através Foi esse o caso de Galileu, no século XVI, tes e cientistas. Nascido em 1894 na cidade
Lemaître dava os primeiros passos rumo à do Observador, eles falaram como se estives- que se dedicou a defender o modelo helio- belga de Charleroi, Lemaître dedicou-se aos
hipótese que hoje é conhecida como teo- sem a conversar com uma bebida nas mãos. cêntrico (ou seja, a hipótese de que o Sol estudos na área da ciência até aos 20 anos,
ria do Big Bang. Naquela altura, Lemaître “Não faço ideia de como quebrar esse ocupava o lugar central no Sistema Solar altura em que os interrompeu para cumprir
propôs a ideia de que o Uuniverso teria mito”, admite o irmão jesuíta norte-ame- e que todos os outros planetas giravam em o seu dever militar. A participação na I Guer-
de estar em constante expansão e sugeriu ricano Guy Consolmagno, escolhido pelo torno dele). Problema: na altura a Igreja ra Mundial valeu-lhe até uma condecoração,
a hipótese do átomo primordial – uma papa Francisco, em 2015, para liderar o Católica considerava que o modelo geocên- mas os horrores da guerra levaram-no a
única partícula estaria na origem de tudo. Observatório Astronómico do Vaticano, um trico, que olhava para a Terra como centro virar-se para a Igreja e a decidir ser padre.
As origens dessa ideia do Big Bang como dos mais antigos do mundo. Mais otimista do Universo, era o único que correspondia No entanto, não deixou a vocação científica,
momento criador do Universo são habitual- é o físico português Carlos Fiolhais. “Reli- à realidade, e considerou que as afirmações e depois da guerra ainda fez um doutora-
mente atribuídas ao astrónomo americano gião e ciência são duas dimensões do ser de Galileu como heresia. mento em física no MIT. Admirador de Al-
Edwin Hubble (cujo nome serviu até para humano que podem coexistir, como mos- Vamos lá então à discussão nesta espécie bert Einstein, Lemaître partiu das ideias do
batizar o primeiro telescópio em órbita). tram não só o caso de Galileu como o do de balcão de bar fictício. “O caso Galileu foi físico alemão para chegar, em 1927, a uma
De facto, foi ele quem viria, mais tarde, a padre Lemaître e tantos outros”, considera um confronto de poder, numa altura em conclusão que o intrigou: o Universo devia
desenvolver e a confirmar a teoria. Mas o cientista, que admira o papa Francisco que a Igreja, baseada na Bíblia, considerava estar em expansão para se manter estável.
a verdade é que a hipótese foi avançada por “conhecer o valor da ciência”. que os assuntos da astronomia estavam Einstein não gostou, inicialmente, das
primeiro por Lemaître. Lemaître que, além sob a sua alçada”, explica o físico Carlos conclusões de Lemaître, mas isso não im-
de astrofísico, era um padre católico. Georges Lemaître, Fiolhais, recordando a posição do cardeal pediu o belga de aprofundar o seu estudo
Isso mesmo. A teoria que, aparentemen- Gianfranco Ravasi, atualmente um dos e de publicar, pouco depois, o trabalho
te, contradiz tudo o que a Igreja Católica o padre que propôs mais influentes cardeais do Vaticano. “Para definitivo em que defendia a hipótese do
afirma sobre a criação do Universo foi pro- a teoria do Big Bang o cardeal Ravasi, que preside ao Pontifício átomo primordial e do Big Bang. Albert
posta por um padre católico. Comecemos pelo princípio, já que é disso Conselho para a Cultura, não tinha apenas Einstein viria mais tarde a concordar com
Noventa anos depois da publicação da que vamos falar. Igreja e ciência têm uma razão o cientista Galileu no que respeita o padre-cientista e terá chegado mesmo
teoria do Big Bang, fomos perguntar a um longa história de conflito. Em tempos a ao movimento da Terra e do Sol, tinha a dizer: “Esta é a mais bela explicação
religioso e a um cientista se a ciência e a ciência esteve, aliás, sob tutela exclusiva também razão o teólogo Galileu. Isto é, ele da criação que já ouvi.” Os dois viriam a
religião continuam a ser mundos opostos. da Igreja Católica e quem contrariasse as sabia, do ponto de vista atual, mais teologia encontrar-se várias vezes ao longo da vida e
Uma conversa do género “um padre e um ideias instituídas arriscava-se a enfren- do que os clérigos que o julgaram.” a trabalhar em conjunto. As fotografias dos
cientista entram num bar…” para ver até tar graves consequências por parte da Trezentos anos depois, Georges Lemaître dois acabariam por se tornar ícones de uma
onde iam. E mesmo não sendo um encontro Inquisição. deu o passo definitivo na relação entre cren- relação saudável entre ciência e religião.
72 FÉ E CIÊNCIA FÉ E CIÊNCIA 73

Carlos Fiolhais recorda alguns detalhes O físico Carlos Fiolhais pensa da mes- O aborto e a eutanásia. sendo um documento teológico, está em
sobre a vida do padre belga. “Lemaître teve ma forma: “A ciência não tem a ilusão de “A ciência é óbvia”, boa parte alicerçado em ciência sólida.
o cuidado de prevenir o Vaticano de que a responder a todas as questões. Só pode Admiro o papa Francisco, que conhece o
sua teoria não devia ser considerada uma responder às questões para as quais, com a fé nem tanto valor da ciência, até por alguma formação
confirmação da criação escrita no Géne- método científico, fundado na lógica, na Práticas como o aborto e a eutanásia estão que teve na área da química e que quer
sis”, explica. Para Fiolhais, “a posição do observação e na experiência, funciona. A frequentemente no centro da discórdia contribuir para a sobrevivência a médio
astrofísico e padre belga Georges Lemaître ciência não consegue, e provavelmente entre quem usa a religião como argumento e longo prazo na vida na terra.”
ajudou a clarificar as relações entre ciência não vai responder nunca, sou cauteloso, contra e quem usa a ciência como argu- “Vivendo ao lado uma da outra e poden-
e religião, mas de facto tudo estava já muito à questão sobre o que aconteceu antes mento a favor. E talvez seja neste tópico do coexistir nalgumas pessoas, ciência e
claro na cabeça de Galileu, há 400 anos”. do Big Bang, se é que houve um antes.” que é mais difícil encontrar um consenso religião têm vantagens em falar uma com
Isto porque “para Galileu, uma coisa era Sublinhando que a ciência pode tentar entre o físico português e o jesuíta norte- a outra. Ambas têm em comum a ligação
a ciência e outra a religião, podendo as responder a alguns “porquês”, o cientis- -americano. Carlos Fiolhais faz questão ao homem, ambas tentam responder a
duas coabitar. Foi ele quem declarou que ta admite que “os ‘porquês dos porquês’ de sublinhar que “a eutanásia e o aborto questões humanas. A religião pode saber
‘a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos podem estar do lado da filosofia, ou, se são questões éticas, sobre as quais a Igreja da ciência como funciona o mundo. E
como ir para o céu e não como o céu se quisermos, da teologia”. Católica tem posições conhecidas de opo- a ciência pode saber da religião que há
move’”, explica agora o físico, professor “Gostei muito de que o papa Francisco sição”. A ciência, acrescenta o físico, “pode mais mundos para além do mundo que ela
catedrático da Faculdade de Ciências e tivesse dito que Deus não é um mágico”, dar informações sobre o que está em causa, estuda. Do diálogo entre as duas podem
Tecnologia da Universidade de Coimbra. assume Fiolhais. O cientista, admirador do mas não toma posições sobre o que fazer”. surgir, além de uma melhor compreensão
“Lemaître, baseado nas ideias de Einstein, Papa, destaca que “não é nova a posição Esse é o papel da política, que deve “esta- recíproca, projetos conjuntos”, afirma
aventou a hipótese de um Universo em ex- da Igreja Católica sobre a aceitação do Big belecer regras o mais consensuais possível Carlos Fiolhais.
pansão, que foi mais quente no seu início – o Bang e, embora com algumas dificuldades na casa comum”, diz Carlos Fiolhais. O jesuíta Guy Consolmagno é um dos
Big Bang. Essa teoria recebeu tantas provas pontuais, da teoria da evolução”. Tal como a Apesar de também ser cientista, o jesuíta melhores exemplos destas pessoas refe-
observacionais que neste momento não tem teoria do Big Bang é a melhor hipótese para Guy Consolmagno tem uma visão diferente ridas por Carlos Fiolhais em quem fé e
alternativa”, sublinha o cientista português. explicar a criação do mundo, também a te- do assunto. “Nenhuma pessoa religiosa usa ciência podem coexistir. Escolhido a 18
Uma teoria que, para Fiolhais, apesar de “ter oria da evolução, sobretudo marcada pelas argumentos de base religiosa em discus- de setembro de 2015 pelo papa Francisco
ainda muita coisa por explicar, não perde o ideias de Charles Darwin, “não precisou de sões sobre o entendimento científico atual como diretor do Observatório do Vatica-
estatuto de ser não só a nossa melhor teoria ter respondido a todo o tipo de questões relativamente ao que acontece quando um no, o jesuíta de 65 anos tem vindo a defen-
sobre a criação do mundo como até a única”. sobre o desenvolvimento da vida para se feto é abortado ou quando uma pessoa der que “o Vaticano apoia a astronomia
O mesmo pensa o jesuíta Guy Consol- afirmar não só como a melhor, mas também doente é morta”, defende Consolmagno, porque é uma parte importante de ser
magno, apesar de considerar que o facto como a única teoria sobre a história da vida”. argumentando que nestes casos “a ‘ciência’ humano”. Ao Observador, Consolmagno
de ter sido um padre a propor a teoria do Sobre a explicação presente no Génesis é óbvia”. Em vez disso, afirma o diretor do explica que, quando chegou ao Observa-
Big Bang não é suficiente para quebrar sobre a criação do mundo e dos seres hu- Observatório Astronómico do Vaticano, “o tório do Vaticano, lhe disseram apenas
o mito do afastamento radical entre fé e manos, o físico descreve-a como “um relato que uma pessoa religiosa faz é levantar que deveria fazer “boa ciência”. “Também
ciência. “As pessoas acreditam naquilo em poético, espiritual, que não pode, eviden- uma questão que a ciência não pode fazer: sei que uma parte essencial desta tarefa
que querem acreditar, mesmo na presença temente, ser levado à letra, ao contrário só porque é possível fazer uma coisa, isso é mostrar ao mundo a ciência que nós
de evidências que apontam exatamente do que os criacionistas dizem”. O jesuíta quer dizer que seja uma boa ideia fazê-lo?” fazemos”, destaca.
para o contrário”, diz o responsável pelo norte-americano concorda: “O Génesis Guy Consolmagno defende este papel da O contributo do Vaticano para o pro-
Observatório Astronómico do Vaticano. não é uma descrição científica da cosmo- religião – o de levantar as perguntas que gresso científico tem, inclusivamente, sido
Ainda assim, Consolmagno mantém-se logia. Como podia ser, se a ciência ainda a ciência não levanta – recordando que reconhecido pela própria comunidade
otimista: “Há muito menos cientistas que se não tinha sido inventada?” Consolmagno “a religião era a única parte da sociedade científica, destaca Consolmagno. “Os
consideram agnósticos ou ateus do que se deixa também uma crítica aos criacionis- contra a eutanásia há 100 anos, na altura nossos astrónomos são altamente pro-
possa pensar. Especialmente astrónomos e tas: “Qualquer pessoa que tente fazer uma em que todos os pensadores trendy do curados para colaborar com cientistas
físicos, que estão habituados a um Universo comparação direta entre as duas áreas não final do século XIX e do início do século em todo o mundo. Não só fazemos um
que é muito mais estranho e interessante do tem qualquer conhecimento sobre ciência XX pensavam que a eutanásia ia levar à bom trabalho, como o fazemos sem contar
que o antigo Universo mecânico do século ou sobre teologia.” perfeição da raça humana”. Mais: o astró- com as mesmas garantias e recursos que
XIX.” E a comunidade científica não tem Criticados até pelo próprio papa, os nomo do Vaticano acrescenta que naquela financiam os outros cientistas”, sublinha.
problemas em reconhecer o trabalho do criacionistas baseiam-se sobretudo numa altura “a ciência por trás da eutanásia era Carlos Fiolhais concorda. “Apesar de os
sacerdote, diz o jesuíta. “Nunca encontrei interpretação literal da Bíblia para negar uma ciência de lixo”, muito pouco evoluída discursos e os métodos serem diferentes,
relutância em reconhecer o trabalho de Le- hipóteses científicas como o Big Bang ou a e “mesmo que tivesse resultado da forma o diálogo, como aquele que o Vaticano
maître, tendo em conta, como é óbvio, que teoria da evolução das espécies. Para Carlos que as pessoas pensavam na altura, teria tem proporcionado através da Academia
o nosso conhecimento, que teve o seu início Fiolhais, as ideias criacionistas “não são sido completamente horrível e errado”. Pontifícia das Ciências e outros organis-
com o seu trabalho, já progrediu muito além ciência, porque os seus defensores aban- Carlos Fiolhais, que se assume como não- mos, não só é possível como muito útil”,
do que ele podia ter proposto há 90 anos.” donaram o método científico, embora se -crente, apesar da admiração que demons- e o papa Francisco tem tido um papel
procurem fazer passar por ciência”. Tanto tra pelos católicos e de citar sem problemas fundamental nele. “O seu papel de líder
Big Bang e teoria da Fiolhais como Consolmagno concordam os documentos da Igreja, prefere manter-se espiritual é importantíssimo, porque a
com a ideia de que as descrições bíblicas pelo que a ciência pode observar. “Eu vejo sua voz está num plano diferente da dos
evolução vs. Génesis: não devem ser interpretadas literalmente. as coisas do lado da ciência, mas tenho líderes políticos”, diz o físico.
como apareceu o “Desde o tempo de Galileu que a Bíblia não muito respeito pelo lado da religião, até Carlos Fiolhais e Guy Consolmagno
mundo? é considerada um livro de ciência”, diz o porque foi essa a tradição cultural e moral concordam num ponto fundamental:
GETTY IMAGES / BETTMANN

físico português. que recebi”, sublinha. Questões como o ciência e religião hão de fazer sempre parte
Deus disse “faça-se luz” e fez-se luz? Ou aborto e a eutanásia “são do foro da cons- da vida humana. “Não sendo um católico
uma grande libertação de energia deu ori- Deus existe mesmo? ciência de cada um”. praticante, tento aprender a dimensão
gem a todas as partículas que existem hoje espiritual dada pela Igreja”, afirma o físi-
no Universo? É provavelmente a questão “Os cientistas não têm ● Em 1933, Einstein e Lamaître encontraram-se na co português, que acredita que “há uma
mais comum quando fé e ciência aparecem como responder às A ciência no Vaticano espiritualidade inerente ao humano que
na mesma conversa, mas tanto a comunida- perguntas que não são Califórnia. Fé e ciência juntas, numa foto histórica. Discórdias à parte, a verdade é que a ciên- não tem necessariamente de ser enqua-
de científica como a Igreja reconhecem que cia ocupa uma boa parte do investimento, drada por esta ou aquela Igreja”. E recorda
as duas ideias não estão assim tão distantes. do seu domínio” Da mesma forma, continua Consolmag- “Não sabendo muito de teologia, julgo que forma de olhar para o Universo, nenhum “há uma corrente de cientistas ateus muito tanto financeiro, como humano, do Vati- o amigo improvável do padre Lemaître,
Guy Consolmagno simplifica a questão do A existência ou não de Deus é outro dos tó- no, “posso decidir de forma igualmente Santo Agostinho resumiu a questão da fé entendimento de Deus ou da natureza ruidosos, à cabeça dos quais talvez esteja cano, como reconhece Carlos Fiolhais. “O Albert Einstein. “Einstein falava de uma
ponto de vista religioso: “O Génesis diz- picos que, aparentemente, mais dividem os fácil que não quero acreditar em Deus ao dizer: ‘Se compreendeis, não é Deus.’ que seja perfeito ou definitivo”. Consol- o biólogo Richard Dawkins, que têm feito Observatório Astronómico do Vaticano, ‘religiosidade cósmica’. Há uma inquieta-
-nos quem é responsável por existir um crentes e os cientistas. Guy Consolmagno, e começar com a suposição de que não Deus está para lá da compreensão”, des- magno defende, por isso, que “nunca po- uma espécie de cruzada contra a religião, hoje com o irmão Guy Consolmagno à fren- ção nos seres humanos, que são pequenos
Universo. A ciência explica como é que Ele a quem o papa Francisco confiou a missão existe Deus. Nesse caso, a minha lógica irá taca o físico da Universidade de Coimbra. demos deixar de aprender nem deixar alicerçados na ciência”, mas considera que te, é muito antigo, é um dos mais antigos no imenso Universo, e que é uma marca
o criou. A resposta à primeira não muda, de promover a ciência no Vaticano, usa um numa direção diferente. Mas em nenhum Fiolhais vai mesmo mais longe, ao dizer de trabalhar e, sobretudo, não devemos eles não constituem uma maioria dentro do mundo”, sublinha. Fundado em 1572 maior do humano.”
é Deus. A resposta à segunda, dada pela princípio matemático para explicar que a dos casos eu estou a provar alguma coisa que “os cientistas não têm como responder pensar que já temos tudo esclarecido”. O da comunidade científica. “Algumas re- pelo papa Gregório XIII, que precisava Consolmagno vai mais longe: “Passamos
ciência, nunca para de mudar e de crescer.” existência de Deus nunca será cientifica- sobre Deus. Deus é o axioma, a premis- às perguntas que não são do seu domínio. melhor talvez seja, segundo Carlos Fio- ligiões têm extremistas e também na ci- de conhecimentos em astronomia para a nossa vida a viver com o Universo, cada
O próprio papa Francisco foi perentório mente comprovada, mas que é premissa sa com que eu começo e não algo que E há tantas.” Como por exemplo? “O que lhais, seguir os passos de Galileu. “Ele, ência há posições radicais de cientismo, criar um novo calendário (o calendário vez mais intimamente, tornando-nos cada
sobre o assunto, durante um encontro com inicial para a atividade humana. “Toda a vem no fim de alguma cadeia lógica.” O é o belo? O que é a felicidade? O que é que era crente em Deus – mesmo após que ignoram outras dimensões do homem gregoriano, que ainda hoje usamos), o Ob- vez mais habituados ao que lá existe.” E é
cientistas no Vaticano, em 2014. “Quando razão começa com uma suposição, isto é jesuíta faz ainda questão de sublinhar o amor?” Tentar não custa, e o cientista a condenação inquisitorial, que hoje é para lá da científica”, explica o físico. “Mas servatório Astronómico do Vaticano conta assim que um religioso acaba por fazer
lemos sobre a criação, no Génesis, corre- um teorema matemático conhecido como que é “suscetível ao erro” quando tenta garante que é possível “decompor estas reconhecida pela Igreja como errada –, essas posições estão hoje ultrapassadas. atualmente com o trabalho permanente de da ciência a sua vida: “Quero lembrar aos
mos o risco de imaginar Deus como um lei de Godel. Posso começar por assumir “esclarecer alguma coisa”. “É por isso perguntas em algumas outras, mais aces- dizia que se Deus tinha dado a razão aos A imensa maioria dos cientistas trabalha mais de uma dezena de astrónomos, além nossos amigos não-cientistas que vivemos
mágico, com uma varinha mágica, capaz de que existe um Deus, que é responsável pelo que testo sempre as minhas ideias com síveis, para as quais a ciência pode dar seres humanos era para eles a exercerem, lado a lado com pessoas de várias fés ou de inúmeras colaborações com instituições num universo maravilhoso e que podemos
fazer tudo. Mas não é bem assim”, disse na Universo, e depois interpretar tudo o que experiências científicas.” algum contributo”. em particular na compreensão do mundo. sem fé nenhuma, sem se preocupar com científicas. obter muita alegria de aprender mais e
altura o papa, acrescentando que “a teoria vejo e experimento à luz desta suposição. Carlos Fiolhais explica que “entre os A inquietação das perguntas por res- Uma coisa era a fé e a moral, outra era a diferenças religiosas. Este é, aliás, um dos O papa Francisco tem tido um papel mais sobre ele.”
do Big Bang, que hoje consideramos como Se eu o fizer, irei conseguir conhecer Deus objetivos da ciência não está a demonstra- ponder é partilhada pelo astrónomo jesu- mecânica celeste.” grandes méritos da ciência: a ciência une, determinante nesta crescente aproximação Tchim tchim.
explicação para a origem do mundo, não muito mais intimamente. Mas tenho de ção da existência ou da não-existência de íta norte-americano, para quem “o maior A posição partilhada por Consolmagno e uma vez que o método científico tem apli- entre os campos da ciência e da fé, afirma
contradiz a intervenção do criador divino, começar com esta suposição antes de agir”, Deus”, e recorre mais uma vez a referências desafio à aproximação entre ciência e fé é Fiolhais não é verdadeiramente consensual. cação universal e tem dado bons resultados Carlos Fiolhais. “A encíclica Laudato Si João Francisco Gomes é jornalista
mas, pelo contrário, requere-a.” explica o jesuíta norte-americano. religiosas para ilustrar o seu pensamento. lembrar-nos de que não existe nenhuma O físico português admite que atualmente por todo o lado.” [publicada pelo Papa em maio de 2015], do Observador, onde iniciou a sua carreira.
72 FÉ E CIÊNCIA FÉ E CIÊNCIA 73

Carlos Fiolhais recorda alguns detalhes O físico Carlos Fiolhais pensa da mes- O aborto e a eutanásia. sendo um documento teológico, está em
sobre a vida do padre belga. “Lemaître teve ma forma: “A ciência não tem a ilusão de “A ciência é óbvia”, boa parte alicerçado em ciência sólida.
o cuidado de prevenir o Vaticano de que a responder a todas as questões. Só pode Admiro o papa Francisco, que conhece o
sua teoria não devia ser considerada uma responder às questões para as quais, com a fé nem tanto valor da ciência, até por alguma formação
confirmação da criação escrita no Géne- método científico, fundado na lógica, na Práticas como o aborto e a eutanásia estão que teve na área da química e que quer
sis”, explica. Para Fiolhais, “a posição do observação e na experiência, funciona. A frequentemente no centro da discórdia contribuir para a sobrevivência a médio
astrofísico e padre belga Georges Lemaître ciência não consegue, e provavelmente entre quem usa a religião como argumento e longo prazo na vida na terra.”
ajudou a clarificar as relações entre ciência não vai responder nunca, sou cauteloso, contra e quem usa a ciência como argu- “Vivendo ao lado uma da outra e poden-
e religião, mas de facto tudo estava já muito à questão sobre o que aconteceu antes mento a favor. E talvez seja neste tópico do coexistir nalgumas pessoas, ciência e
claro na cabeça de Galileu, há 400 anos”. do Big Bang, se é que houve um antes.” que é mais difícil encontrar um consenso religião têm vantagens em falar uma com
Isto porque “para Galileu, uma coisa era Sublinhando que a ciência pode tentar entre o físico português e o jesuíta norte- a outra. Ambas têm em comum a ligação
a ciência e outra a religião, podendo as responder a alguns “porquês”, o cientis- -americano. Carlos Fiolhais faz questão ao homem, ambas tentam responder a
duas coabitar. Foi ele quem declarou que ta admite que “os ‘porquês dos porquês’ de sublinhar que “a eutanásia e o aborto questões humanas. A religião pode saber
‘a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos podem estar do lado da filosofia, ou, se são questões éticas, sobre as quais a Igreja da ciência como funciona o mundo. E
como ir para o céu e não como o céu se quisermos, da teologia”. Católica tem posições conhecidas de opo- a ciência pode saber da religião que há
move’”, explica agora o físico, professor “Gostei muito de que o papa Francisco sição”. A ciência, acrescenta o físico, “pode mais mundos para além do mundo que ela
catedrático da Faculdade de Ciências e tivesse dito que Deus não é um mágico”, dar informações sobre o que está em causa, estuda. Do diálogo entre as duas podem
Tecnologia da Universidade de Coimbra. assume Fiolhais. O cientista, admirador do mas não toma posições sobre o que fazer”. surgir, além de uma melhor compreensão
“Lemaître, baseado nas ideias de Einstein, Papa, destaca que “não é nova a posição Esse é o papel da política, que deve “esta- recíproca, projetos conjuntos”, afirma
aventou a hipótese de um Universo em ex- da Igreja Católica sobre a aceitação do Big belecer regras o mais consensuais possível Carlos Fiolhais.
pansão, que foi mais quente no seu início – o Bang e, embora com algumas dificuldades na casa comum”, diz Carlos Fiolhais. O jesuíta Guy Consolmagno é um dos
Big Bang. Essa teoria recebeu tantas provas pontuais, da teoria da evolução”. Tal como a Apesar de também ser cientista, o jesuíta melhores exemplos destas pessoas refe-
observacionais que neste momento não tem teoria do Big Bang é a melhor hipótese para Guy Consolmagno tem uma visão diferente ridas por Carlos Fiolhais em quem fé e
alternativa”, sublinha o cientista português. explicar a criação do mundo, também a te- do assunto. “Nenhuma pessoa religiosa usa ciência podem coexistir. Escolhido a 18
Uma teoria que, para Fiolhais, apesar de “ter oria da evolução, sobretudo marcada pelas argumentos de base religiosa em discus- de setembro de 2015 pelo papa Francisco
ainda muita coisa por explicar, não perde o ideias de Charles Darwin, “não precisou de sões sobre o entendimento científico atual como diretor do Observatório do Vatica-
estatuto de ser não só a nossa melhor teoria ter respondido a todo o tipo de questões relativamente ao que acontece quando um no, o jesuíta de 65 anos tem vindo a defen-
sobre a criação do mundo como até a única”. sobre o desenvolvimento da vida para se feto é abortado ou quando uma pessoa der que “o Vaticano apoia a astronomia
O mesmo pensa o jesuíta Guy Consol- afirmar não só como a melhor, mas também doente é morta”, defende Consolmagno, porque é uma parte importante de ser
magno, apesar de considerar que o facto como a única teoria sobre a história da vida”. argumentando que nestes casos “a ‘ciência’ humano”. Ao Observador, Consolmagno
de ter sido um padre a propor a teoria do Sobre a explicação presente no Génesis é óbvia”. Em vez disso, afirma o diretor do explica que, quando chegou ao Observa-
Big Bang não é suficiente para quebrar sobre a criação do mundo e dos seres hu- Observatório Astronómico do Vaticano, “o tório do Vaticano, lhe disseram apenas
o mito do afastamento radical entre fé e manos, o físico descreve-a como “um relato que uma pessoa religiosa faz é levantar que deveria fazer “boa ciência”. “Também
ciência. “As pessoas acreditam naquilo em poético, espiritual, que não pode, eviden- uma questão que a ciência não pode fazer: sei que uma parte essencial desta tarefa
que querem acreditar, mesmo na presença temente, ser levado à letra, ao contrário só porque é possível fazer uma coisa, isso é mostrar ao mundo a ciência que nós
de evidências que apontam exatamente do que os criacionistas dizem”. O jesuíta quer dizer que seja uma boa ideia fazê-lo?” fazemos”, destaca.
para o contrário”, diz o responsável pelo norte-americano concorda: “O Génesis Guy Consolmagno defende este papel da O contributo do Vaticano para o pro-
Observatório Astronómico do Vaticano. não é uma descrição científica da cosmo- religião – o de levantar as perguntas que gresso científico tem, inclusivamente, sido
Ainda assim, Consolmagno mantém-se logia. Como podia ser, se a ciência ainda a ciência não levanta – recordando que reconhecido pela própria comunidade
otimista: “Há muito menos cientistas que se não tinha sido inventada?” Consolmagno “a religião era a única parte da sociedade científica, destaca Consolmagno. “Os
consideram agnósticos ou ateus do que se deixa também uma crítica aos criacionis- contra a eutanásia há 100 anos, na altura nossos astrónomos são altamente pro-
possa pensar. Especialmente astrónomos e tas: “Qualquer pessoa que tente fazer uma em que todos os pensadores trendy do curados para colaborar com cientistas
físicos, que estão habituados a um Universo comparação direta entre as duas áreas não final do século XIX e do início do século em todo o mundo. Não só fazemos um
que é muito mais estranho e interessante do tem qualquer conhecimento sobre ciência XX pensavam que a eutanásia ia levar à bom trabalho, como o fazemos sem contar
que o antigo Universo mecânico do século ou sobre teologia.” perfeição da raça humana”. Mais: o astró- com as mesmas garantias e recursos que
XIX.” E a comunidade científica não tem Criticados até pelo próprio papa, os nomo do Vaticano acrescenta que naquela financiam os outros cientistas”, sublinha.
problemas em reconhecer o trabalho do criacionistas baseiam-se sobretudo numa altura “a ciência por trás da eutanásia era Carlos Fiolhais concorda. “Apesar de os
sacerdote, diz o jesuíta. “Nunca encontrei interpretação literal da Bíblia para negar uma ciência de lixo”, muito pouco evoluída discursos e os métodos serem diferentes,
relutância em reconhecer o trabalho de Le- hipóteses científicas como o Big Bang ou a e “mesmo que tivesse resultado da forma o diálogo, como aquele que o Vaticano
maître, tendo em conta, como é óbvio, que teoria da evolução das espécies. Para Carlos que as pessoas pensavam na altura, teria tem proporcionado através da Academia
o nosso conhecimento, que teve o seu início Fiolhais, as ideias criacionistas “não são sido completamente horrível e errado”. Pontifícia das Ciências e outros organis-
com o seu trabalho, já progrediu muito além ciência, porque os seus defensores aban- Carlos Fiolhais, que se assume como não- mos, não só é possível como muito útil”,
do que ele podia ter proposto há 90 anos.” donaram o método científico, embora se -crente, apesar da admiração que demons- e o papa Francisco tem tido um papel
procurem fazer passar por ciência”. Tanto tra pelos católicos e de citar sem problemas fundamental nele. “O seu papel de líder
Big Bang e teoria da Fiolhais como Consolmagno concordam os documentos da Igreja, prefere manter-se espiritual é importantíssimo, porque a
com a ideia de que as descrições bíblicas pelo que a ciência pode observar. “Eu vejo sua voz está num plano diferente da dos
evolução vs. Génesis: não devem ser interpretadas literalmente. as coisas do lado da ciência, mas tenho líderes políticos”, diz o físico.
como apareceu o “Desde o tempo de Galileu que a Bíblia não muito respeito pelo lado da religião, até Carlos Fiolhais e Guy Consolmagno
mundo? é considerada um livro de ciência”, diz o porque foi essa a tradição cultural e moral concordam num ponto fundamental:
GETTY IMAGES / BETTMANN

físico português. que recebi”, sublinha. Questões como o ciência e religião hão de fazer sempre parte
Deus disse “faça-se luz” e fez-se luz? Ou aborto e a eutanásia “são do foro da cons- da vida humana. “Não sendo um católico
uma grande libertação de energia deu ori- Deus existe mesmo? ciência de cada um”. praticante, tento aprender a dimensão
gem a todas as partículas que existem hoje espiritual dada pela Igreja”, afirma o físi-
no Universo? É provavelmente a questão “Os cientistas não têm ● Em 1933, Einstein e Lamaître encontraram-se na co português, que acredita que “há uma
mais comum quando fé e ciência aparecem como responder às A ciência no Vaticano espiritualidade inerente ao humano que
na mesma conversa, mas tanto a comunida- perguntas que não são Califórnia. Fé e ciência juntas, numa foto histórica. Discórdias à parte, a verdade é que a ciên- não tem necessariamente de ser enqua-
de científica como a Igreja reconhecem que cia ocupa uma boa parte do investimento, drada por esta ou aquela Igreja”. E recorda
as duas ideias não estão assim tão distantes. do seu domínio” Da mesma forma, continua Consolmag- “Não sabendo muito de teologia, julgo que forma de olhar para o Universo, nenhum “há uma corrente de cientistas ateus muito tanto financeiro, como humano, do Vati- o amigo improvável do padre Lemaître,
Guy Consolmagno simplifica a questão do A existência ou não de Deus é outro dos tó- no, “posso decidir de forma igualmente Santo Agostinho resumiu a questão da fé entendimento de Deus ou da natureza ruidosos, à cabeça dos quais talvez esteja cano, como reconhece Carlos Fiolhais. “O Albert Einstein. “Einstein falava de uma
ponto de vista religioso: “O Génesis diz- picos que, aparentemente, mais dividem os fácil que não quero acreditar em Deus ao dizer: ‘Se compreendeis, não é Deus.’ que seja perfeito ou definitivo”. Consol- o biólogo Richard Dawkins, que têm feito Observatório Astronómico do Vaticano, ‘religiosidade cósmica’. Há uma inquieta-
-nos quem é responsável por existir um crentes e os cientistas. Guy Consolmagno, e começar com a suposição de que não Deus está para lá da compreensão”, des- magno defende, por isso, que “nunca po- uma espécie de cruzada contra a religião, hoje com o irmão Guy Consolmagno à fren- ção nos seres humanos, que são pequenos
Universo. A ciência explica como é que Ele a quem o papa Francisco confiou a missão existe Deus. Nesse caso, a minha lógica irá taca o físico da Universidade de Coimbra. demos deixar de aprender nem deixar alicerçados na ciência”, mas considera que te, é muito antigo, é um dos mais antigos no imenso Universo, e que é uma marca
o criou. A resposta à primeira não muda, de promover a ciência no Vaticano, usa um numa direção diferente. Mas em nenhum Fiolhais vai mesmo mais longe, ao dizer de trabalhar e, sobretudo, não devemos eles não constituem uma maioria dentro do mundo”, sublinha. Fundado em 1572 maior do humano.”
é Deus. A resposta à segunda, dada pela princípio matemático para explicar que a dos casos eu estou a provar alguma coisa que “os cientistas não têm como responder pensar que já temos tudo esclarecido”. O da comunidade científica. “Algumas re- pelo papa Gregório XIII, que precisava Consolmagno vai mais longe: “Passamos
ciência, nunca para de mudar e de crescer.” existência de Deus nunca será cientifica- sobre Deus. Deus é o axioma, a premis- às perguntas que não são do seu domínio. melhor talvez seja, segundo Carlos Fio- ligiões têm extremistas e também na ci- de conhecimentos em astronomia para a nossa vida a viver com o Universo, cada
O próprio papa Francisco foi perentório mente comprovada, mas que é premissa sa com que eu começo e não algo que E há tantas.” Como por exemplo? “O que lhais, seguir os passos de Galileu. “Ele, ência há posições radicais de cientismo, criar um novo calendário (o calendário vez mais intimamente, tornando-nos cada
sobre o assunto, durante um encontro com inicial para a atividade humana. “Toda a vem no fim de alguma cadeia lógica.” O é o belo? O que é a felicidade? O que é que era crente em Deus – mesmo após que ignoram outras dimensões do homem gregoriano, que ainda hoje usamos), o Ob- vez mais habituados ao que lá existe.” E é
cientistas no Vaticano, em 2014. “Quando razão começa com uma suposição, isto é jesuíta faz ainda questão de sublinhar o amor?” Tentar não custa, e o cientista a condenação inquisitorial, que hoje é para lá da científica”, explica o físico. “Mas servatório Astronómico do Vaticano conta assim que um religioso acaba por fazer
lemos sobre a criação, no Génesis, corre- um teorema matemático conhecido como que é “suscetível ao erro” quando tenta garante que é possível “decompor estas reconhecida pela Igreja como errada –, essas posições estão hoje ultrapassadas. atualmente com o trabalho permanente de da ciência a sua vida: “Quero lembrar aos
mos o risco de imaginar Deus como um lei de Godel. Posso começar por assumir “esclarecer alguma coisa”. “É por isso perguntas em algumas outras, mais aces- dizia que se Deus tinha dado a razão aos A imensa maioria dos cientistas trabalha mais de uma dezena de astrónomos, além nossos amigos não-cientistas que vivemos
mágico, com uma varinha mágica, capaz de que existe um Deus, que é responsável pelo que testo sempre as minhas ideias com síveis, para as quais a ciência pode dar seres humanos era para eles a exercerem, lado a lado com pessoas de várias fés ou de inúmeras colaborações com instituições num universo maravilhoso e que podemos
fazer tudo. Mas não é bem assim”, disse na Universo, e depois interpretar tudo o que experiências científicas.” algum contributo”. em particular na compreensão do mundo. sem fé nenhuma, sem se preocupar com científicas. obter muita alegria de aprender mais e
altura o papa, acrescentando que “a teoria vejo e experimento à luz desta suposição. Carlos Fiolhais explica que “entre os A inquietação das perguntas por res- Uma coisa era a fé e a moral, outra era a diferenças religiosas. Este é, aliás, um dos O papa Francisco tem tido um papel mais sobre ele.”
do Big Bang, que hoje consideramos como Se eu o fizer, irei conseguir conhecer Deus objetivos da ciência não está a demonstra- ponder é partilhada pelo astrónomo jesu- mecânica celeste.” grandes méritos da ciência: a ciência une, determinante nesta crescente aproximação Tchim tchim.
explicação para a origem do mundo, não muito mais intimamente. Mas tenho de ção da existência ou da não-existência de íta norte-americano, para quem “o maior A posição partilhada por Consolmagno e uma vez que o método científico tem apli- entre os campos da ciência e da fé, afirma
contradiz a intervenção do criador divino, começar com esta suposição antes de agir”, Deus”, e recorre mais uma vez a referências desafio à aproximação entre ciência e fé é Fiolhais não é verdadeiramente consensual. cação universal e tem dado bons resultados Carlos Fiolhais. “A encíclica Laudato Si João Francisco Gomes é jornalista
mas, pelo contrário, requere-a.” explica o jesuíta norte-americano. religiosas para ilustrar o seu pensamento. lembrar-nos de que não existe nenhuma O físico português admite que atualmente por todo o lado.” [publicada pelo Papa em maio de 2015], do Observador, onde iniciou a sua carreira.
74 LISBOA EM AGOSTO 75
74 LISBOA EM AGOSTO 75
76 CRIANÇAS E MICRÓBIOS 77

A chupeta caiu e não tem onde lavar? O seu filho


acabou de meter as mãos cheias de terra na boca?
O melhor é respirar fundo e não dramatizar. A maioria
dos micróbios até faz bem, explica Brett Finlay.

“Deve
deixar
“Rodrigo, não mexas aí. É caca.” Que evidências existem dessa ligação quando chegam a casa de um passeio. Ou terra e com a erva. Ter um cão em casa,
“Miguel, deixa a mãe limpar as mãos.” entre os micróbios e a prevenção de ainda se tocarem em lixo ou em resíduos por exemplo, diminui em 20% casos de
“Maria, tira isso da boca.” Basta sair à rua doenças como a asma e a obesidade? de animais. Mas lavar com água e sabão e asma e outros problemas semelhantes. Já
para ouvir frases deste género, ao mesmo Há duas linhas a provar isso. Existem não com sabonetes antibacterianos. os gatos não trazem grandes mais-valias,
tempo que nas malas das mães se multipli- muitas provas que mostram que preci- porque vivem no seu mundo e não lambem
cam toalhitas com desinfetante e bisnagas samos da exposição a estes micróbios. Quer dizer que usar produtos antibac- as crianças. Mas é tudo uma questão de

a criança
com álcool em gel. Tudo para proteger ao Por exemplo, as crianças que vivem em terianos é mau? sensatez. Nós não dizemos no livro que
máximo as crianças dos perigos da sujidade quintas, as crianças que nascem por parto Sim, é mau. Estudos atrás de estudos têm devemos encher um balde de lixo para as
e dos micróbios. natural, ao invés de cesariana, e as crian- mostrado que usar produtos antibacteria- crianças levarem à boca assim que nascem.
É um erro. A obsessão pela limpeza e ças que têm cães estão menos expostas nos não faz mais efeito do que lavar com Mas os pais têm de perceber que tem de
pela higiene está a matar não só os micró- a estas doenças. E há muitos estudos já água e sabão. Outro problema de usar esses haver essa exposição aos micróbios. Outra
bios maus – que, no passado, provocavam feitos, com ratos, que mostram que existe produtos é que aumentamos as resistências boa ideia, embora aborrecida, é comer
infeções que levavam à morte –, mas tam- uma correlação entre os diferentes micró- das bactérias à sua utilização. Portanto, alimentos saudáveis. Quando comemos

tocar
bém os bons, que contribuem, entre outras bios e doenças como a asma, as alergias, usar água e sabão está ótimo, e apenas açúcar e farinha branca há uma transfor-
coisas, para o desenvolvimento do sistema a obesidade e a diabetes. Agora estamos antes das refeições e depois de uma ida à mação muito rápida no intestino delgado
imunitário das crianças. a tentar perceber como é que eles de- casa de banho, ou depois de estarem em e não desce para o intestino grosso que
Em entrevista ao Observador, um dos au- sempenham esse papel. Por exemplo, na contacto com alguém doente. É tudo o que é onde estão os micróbios. Daí dizermos
tores do livro Deixe-os Comer Terra (edição obesidade, os micróbios afetam a forma precisamos em termos de higiene pessoal. que se deve comer frutas, vegetais, frutos
Matéria-Prima), Brett Finlay – professor como a comida é metabolizada. secos, fibras.
de Microbiologia na Universidade British Também não é necessário esterilizar
Columbia, em Vancouver, no Canadá, e Vocês escrevem no livro que é melhor os biberões? O problema é convencer as crianças a

na terra,
que há 20 anos se debruça sobre o estudo deixar as crianças comerem terra e Não. A Academia Americana de Pediatria comerem comida saudável.
dos micróbios –, alerta para os riscos de sujarem-se. Mas não corremos o risco já mudou isso. Lavar na máquina da loiça É, mas no livro damos o exemplo do que
um mundo super-higienizado e onde se de dar um passo atrás no percurso e ou em água a ferver é suficiente. Usar uma a Claire fez com a filha. Um dia ela disse
abusa dos antibióticos, fala da importância fazer aumentar as infeções? escova de garrafas é o ideal. à filha que ela tinha um zoo na barriga,
dos micróbios e deixa sugestões aos pais. Comer terra hoje é mais seguro do que com muitos bichinhos, e convenceu-a que
no passado. Já não temos poliomielite. E as E a chupeta? O que devem os pais fazer os bichinhos cantavam e faziam festas e
hipóteses de contrair disenteria no jardim quando a chupeta cai ao chão? adoravam viver na barriga dela, mas que

na lama e
são muito baixas. O que os pais têm de Um estudo sueco recente sugere que a estavam sempre com fome e que ela tinha
perceber é que, tal como dizemos no livro, melhor maneira de limpar a chupeta que cai de os alimentar, caso contrário eles mor-
as crianças podem provavelmente lamber no chão é colocá-la primeiro na própria boca riam. Mas os bichinhos não gostavam de
o chão em casa, mas não é uma boa ideia e só depois dar à criança. Claro que se a mãe doces, nem gelados, nem hambúrgueres.
deixá-las lamber o chão do metro. Brincar ou o pai estiverem doentes isso não será boa Só gostavam de frutas e vegetais. E assim
numa caixa de areia provavelmente não ideia, mas em circunstâncias normais colocá- conseguiu pôr a filha a comer comida sau-
tem mal nenhum, mas se tiver fezes de gato -la na própria boca vai diminuir o risco de a dável. Não é fácil, mas consegue-se.

nos insetos”
– que contêm parasitas –, já não é boa ideia. criança vir a ter asma, alergias e obesidade
Se o seu filho tiver uma infeção bacteriana, durante a sua vida, porque partilham os A flora microbiana desenvolve-se nos
usar antibióticos vai salvar-lhe a vida, mas micróbios da boca com o progenitor e isso primeiros tempos de vida. Pode uma
No livro Deixe-os Comer Terra escre- se tiver uma infeção viral os antibióticos reforça o sistema imunitário das crianças. criança nascida através de cesariana
vem que vivemos num mundo demasia- não vão funcionar e até podem provocar desenvolver a sua flora microbiana, tal
do limpo e que isso pode ser perigoso. danos. Portanto, é preciso ter em conta que Mas o adulto não corre risco ao expor- como a criança que nasce por parto
Porquê? hoje o mundo não está nem perto de ser -se aos micróbios? natural?
Andámos séculos a tentar limpar todo tão perigoso como no passado no que diz Quando somos adultos temos mais de- O que os estudos nos dizem é que uma
o mundo e deixá-lo a salvo das infeções respeito às infeções. Mesmo quando o seu fesas, portanto não vamos ficar infetados. criança quando nasce de parto natural
provocadas por bactérias. E isso correu filho está a brincar num parque infantil não fica logo exposta aos micróbios vaginais e

Marlene Carriço
muito bem. Introduzimos o saneamento, a tem de estar sempre a limpar-lhe as mãos. Voltando às crianças. Quando falam fecais maternos. É o primeiro encontro do
recolha de lixo, a água potável, alimentos em deixar as crianças sujarem-se, não bebé com os micróbios. É uma verdadeira
seguros e antibióticos. Esta tem sido uma Mesmo que esse parque seja público? se estão a referir a todo o tipo de lixo, primeira prenda de aniversário. Os micró-
história de sucesso, porque diminuímos as Sim, a menos que haja crianças com ou estão? bios que o bebé recebe nesse momento são
taxas de infeções nas crianças. São boas gripe, a tossir ou a espirrar. Se não for Deixem-nas sujar-se um pouco, isso não do tipo de micróbios que ajudam a digerir
notícias. O que nós não percebemos foi assim, provavelmente, não tem mal ne- lhes vai fazer mal. Hoje em dia as crian- o leite materno. Daí que seja melhor para
que, à medida que fomos matando esses nhum. Estar em contacto com os micróbios ças passam sete horas por dia em frente a os bebés nascerem de parto natural do que
germes, os micróbios maus, também fo- das outras crianças até vai ser bom. Deve ecrãs e reduziram em metade o tempo que por cesariana. Os bebés que nascem por
mos destruindo outros que, entretanto, deixar-se a criança tocar na terra, na lama, passavam na rua. Já não há exposição aos cesariana têm uma maior taxa de asma e
percebemos que são bons. Agora per- nas árvores e nos insetos. E mesmo que se micróbios e isso é preocupante. obesidade só porque não contactam com
cebemos que fomos longe demais e que suje, não deve apressar-se a limpá-la. Nor- esses micróbios. Por isso, se uma mulher
já não temos os micróbios com os quais malmente, quando uma coisa está suja, a Vocês falam muito do campo no livro, tiver de fazer uma cesariana por razões
costumávamos contactar logo cedo na tendência é dizermos “blherc”. Mas porque mas grande parte das famílias mora médicas, sejam elas quais forem, há uma
nossa vida, e que contribuem para o pensamos assim? Porque a maioria das nas cidades. Aí é preciso ter cuidados técnica que já começa a ser usada em vários
normal desenvolvimento humano. E nós pessoas pensa nos micróbios como algo redobrados, certo? Esta teoria de dei- hospitais em todo o mundo e que consiste
precisamos desses micróbios a viver neste mau e essa visão devia mudar porque nem xar as crianças sujarem-se aplica-se a em esfregar as secreções vaginais da mãe
mundo. Descobrimos isso há cinco anos, todos os micróbios são maus. quem vive nas cidades? na criança mal ela nasce.
quando começámos a estudar as ligações Sim, claro. Um parque infantil públi-
entre os micróbios e aquilo que chamamos Então quando se deve lavar as mãos? co é, à partida, um bom lugar para levar Marlene Carriço é jornalista do
de doenças da sociedade ocidental, como Aconselhamos a lavar as mãos antes de as crianças a passear e deve-se deixá-las Observador, onde boa parte do seu tempo
a asma, as alergias e a obesidade. as crianças irem comer, por exemplo, ou estar com os amigos e fazer bolos com a escreve sobre Saúde e Educação.
76 CRIANÇAS E MICRÓBIOS 77

A chupeta caiu e não tem onde lavar? O seu filho


acabou de meter as mãos cheias de terra na boca?
O melhor é respirar fundo e não dramatizar. A maioria
dos micróbios até faz bem, explica Brett Finlay.

“Deve
deixar
“Rodrigo, não mexas aí. É caca.” Que evidências existem dessa ligação quando chegam a casa de um passeio. Ou terra e com a erva. Ter um cão em casa,
“Miguel, deixa a mãe limpar as mãos.” entre os micróbios e a prevenção de ainda se tocarem em lixo ou em resíduos por exemplo, diminui em 20% casos de
“Maria, tira isso da boca.” Basta sair à rua doenças como a asma e a obesidade? de animais. Mas lavar com água e sabão e asma e outros problemas semelhantes. Já
para ouvir frases deste género, ao mesmo Há duas linhas a provar isso. Existem não com sabonetes antibacterianos. os gatos não trazem grandes mais-valias,
tempo que nas malas das mães se multipli- muitas provas que mostram que preci- porque vivem no seu mundo e não lambem
cam toalhitas com desinfetante e bisnagas samos da exposição a estes micróbios. Quer dizer que usar produtos antibac- as crianças. Mas é tudo uma questão de

a criança
com álcool em gel. Tudo para proteger ao Por exemplo, as crianças que vivem em terianos é mau? sensatez. Nós não dizemos no livro que
máximo as crianças dos perigos da sujidade quintas, as crianças que nascem por parto Sim, é mau. Estudos atrás de estudos têm devemos encher um balde de lixo para as
e dos micróbios. natural, ao invés de cesariana, e as crian- mostrado que usar produtos antibacteria- crianças levarem à boca assim que nascem.
É um erro. A obsessão pela limpeza e ças que têm cães estão menos expostas nos não faz mais efeito do que lavar com Mas os pais têm de perceber que tem de
pela higiene está a matar não só os micró- a estas doenças. E há muitos estudos já água e sabão. Outro problema de usar esses haver essa exposição aos micróbios. Outra
bios maus – que, no passado, provocavam feitos, com ratos, que mostram que existe produtos é que aumentamos as resistências boa ideia, embora aborrecida, é comer
infeções que levavam à morte –, mas tam- uma correlação entre os diferentes micró- das bactérias à sua utilização. Portanto, alimentos saudáveis. Quando comemos

tocar
bém os bons, que contribuem, entre outras bios e doenças como a asma, as alergias, usar água e sabão está ótimo, e apenas açúcar e farinha branca há uma transfor-
coisas, para o desenvolvimento do sistema a obesidade e a diabetes. Agora estamos antes das refeições e depois de uma ida à mação muito rápida no intestino delgado
imunitário das crianças. a tentar perceber como é que eles de- casa de banho, ou depois de estarem em e não desce para o intestino grosso que
Em entrevista ao Observador, um dos au- sempenham esse papel. Por exemplo, na contacto com alguém doente. É tudo o que é onde estão os micróbios. Daí dizermos
tores do livro Deixe-os Comer Terra (edição obesidade, os micróbios afetam a forma precisamos em termos de higiene pessoal. que se deve comer frutas, vegetais, frutos
Matéria-Prima), Brett Finlay – professor como a comida é metabolizada. secos, fibras.
de Microbiologia na Universidade British Também não é necessário esterilizar
Columbia, em Vancouver, no Canadá, e Vocês escrevem no livro que é melhor os biberões? O problema é convencer as crianças a

na terra,
que há 20 anos se debruça sobre o estudo deixar as crianças comerem terra e Não. A Academia Americana de Pediatria comerem comida saudável.
dos micróbios –, alerta para os riscos de sujarem-se. Mas não corremos o risco já mudou isso. Lavar na máquina da loiça É, mas no livro damos o exemplo do que
um mundo super-higienizado e onde se de dar um passo atrás no percurso e ou em água a ferver é suficiente. Usar uma a Claire fez com a filha. Um dia ela disse
abusa dos antibióticos, fala da importância fazer aumentar as infeções? escova de garrafas é o ideal. à filha que ela tinha um zoo na barriga,
dos micróbios e deixa sugestões aos pais. Comer terra hoje é mais seguro do que com muitos bichinhos, e convenceu-a que
no passado. Já não temos poliomielite. E as E a chupeta? O que devem os pais fazer os bichinhos cantavam e faziam festas e
hipóteses de contrair disenteria no jardim quando a chupeta cai ao chão? adoravam viver na barriga dela, mas que

na lama e
são muito baixas. O que os pais têm de Um estudo sueco recente sugere que a estavam sempre com fome e que ela tinha
perceber é que, tal como dizemos no livro, melhor maneira de limpar a chupeta que cai de os alimentar, caso contrário eles mor-
as crianças podem provavelmente lamber no chão é colocá-la primeiro na própria boca riam. Mas os bichinhos não gostavam de
o chão em casa, mas não é uma boa ideia e só depois dar à criança. Claro que se a mãe doces, nem gelados, nem hambúrgueres.
deixá-las lamber o chão do metro. Brincar ou o pai estiverem doentes isso não será boa Só gostavam de frutas e vegetais. E assim
numa caixa de areia provavelmente não ideia, mas em circunstâncias normais colocá- conseguiu pôr a filha a comer comida sau-
tem mal nenhum, mas se tiver fezes de gato -la na própria boca vai diminuir o risco de a dável. Não é fácil, mas consegue-se.

nos insetos”
– que contêm parasitas –, já não é boa ideia. criança vir a ter asma, alergias e obesidade
Se o seu filho tiver uma infeção bacteriana, durante a sua vida, porque partilham os A flora microbiana desenvolve-se nos
usar antibióticos vai salvar-lhe a vida, mas micróbios da boca com o progenitor e isso primeiros tempos de vida. Pode uma
No livro Deixe-os Comer Terra escre- se tiver uma infeção viral os antibióticos reforça o sistema imunitário das crianças. criança nascida através de cesariana
vem que vivemos num mundo demasia- não vão funcionar e até podem provocar desenvolver a sua flora microbiana, tal
do limpo e que isso pode ser perigoso. danos. Portanto, é preciso ter em conta que Mas o adulto não corre risco ao expor- como a criança que nasce por parto
Porquê? hoje o mundo não está nem perto de ser -se aos micróbios? natural?
Andámos séculos a tentar limpar todo tão perigoso como no passado no que diz Quando somos adultos temos mais de- O que os estudos nos dizem é que uma
o mundo e deixá-lo a salvo das infeções respeito às infeções. Mesmo quando o seu fesas, portanto não vamos ficar infetados. criança quando nasce de parto natural
provocadas por bactérias. E isso correu filho está a brincar num parque infantil não fica logo exposta aos micróbios vaginais e

Marlene Carriço
muito bem. Introduzimos o saneamento, a tem de estar sempre a limpar-lhe as mãos. Voltando às crianças. Quando falam fecais maternos. É o primeiro encontro do
recolha de lixo, a água potável, alimentos em deixar as crianças sujarem-se, não bebé com os micróbios. É uma verdadeira
seguros e antibióticos. Esta tem sido uma Mesmo que esse parque seja público? se estão a referir a todo o tipo de lixo, primeira prenda de aniversário. Os micró-
história de sucesso, porque diminuímos as Sim, a menos que haja crianças com ou estão? bios que o bebé recebe nesse momento são
taxas de infeções nas crianças. São boas gripe, a tossir ou a espirrar. Se não for Deixem-nas sujar-se um pouco, isso não do tipo de micróbios que ajudam a digerir
notícias. O que nós não percebemos foi assim, provavelmente, não tem mal ne- lhes vai fazer mal. Hoje em dia as crian- o leite materno. Daí que seja melhor para
que, à medida que fomos matando esses nhum. Estar em contacto com os micróbios ças passam sete horas por dia em frente a os bebés nascerem de parto natural do que
germes, os micróbios maus, também fo- das outras crianças até vai ser bom. Deve ecrãs e reduziram em metade o tempo que por cesariana. Os bebés que nascem por
mos destruindo outros que, entretanto, deixar-se a criança tocar na terra, na lama, passavam na rua. Já não há exposição aos cesariana têm uma maior taxa de asma e
percebemos que são bons. Agora per- nas árvores e nos insetos. E mesmo que se micróbios e isso é preocupante. obesidade só porque não contactam com
cebemos que fomos longe demais e que suje, não deve apressar-se a limpá-la. Nor- esses micróbios. Por isso, se uma mulher
já não temos os micróbios com os quais malmente, quando uma coisa está suja, a Vocês falam muito do campo no livro, tiver de fazer uma cesariana por razões
costumávamos contactar logo cedo na tendência é dizermos “blherc”. Mas porque mas grande parte das famílias mora médicas, sejam elas quais forem, há uma
nossa vida, e que contribuem para o pensamos assim? Porque a maioria das nas cidades. Aí é preciso ter cuidados técnica que já começa a ser usada em vários
normal desenvolvimento humano. E nós pessoas pensa nos micróbios como algo redobrados, certo? Esta teoria de dei- hospitais em todo o mundo e que consiste
precisamos desses micróbios a viver neste mau e essa visão devia mudar porque nem xar as crianças sujarem-se aplica-se a em esfregar as secreções vaginais da mãe
mundo. Descobrimos isso há cinco anos, todos os micróbios são maus. quem vive nas cidades? na criança mal ela nasce.
quando começámos a estudar as ligações Sim, claro. Um parque infantil públi-
entre os micróbios e aquilo que chamamos Então quando se deve lavar as mãos? co é, à partida, um bom lugar para levar Marlene Carriço é jornalista do
de doenças da sociedade ocidental, como Aconselhamos a lavar as mãos antes de as crianças a passear e deve-se deixá-las Observador, onde boa parte do seu tempo
a asma, as alergias e a obesidade. as crianças irem comer, por exemplo, ou estar com os amigos e fazer bolos com a escreve sobre Saúde e Educação.
78 CEGUEIRA E PRISÃO 79

gosta de ver-me com isto.” Sem ele, sente-se carrinhas não têm condições para isso”,
sempre numa sala às escuras. conta. A própria Direção Geral de Rein-
Ajudamo-lo a sentar-se e explicamos serção e Serviços Prisionais desconhece
porque estamos ali. Como é cumprir uma quantos reclusos nas cadeias portuguesas
pena de prisão completamente às escu- sofrem de mobilidade reduzida e preci-
ras? Sem ver? As respostas começam por sam de condições especiais. “Esta Direção
sair amiúde. Palavras meio gagas. Até que Geral está, neste momento, a proceder
os nervos o libertam aos poucos. Recua ao levantamento do número de reclusos
ao ano do acidente, o de 2009. Estava na com necessidades especiais, sendo que,
zona de Aveiro, para onde foi viver de- nos casos existentes, cada estabelecimento
pois de uma infância passada em Coim- prisional procura encontrar as respostas
bra, quando foi apanhado no meio de uma adequadas às circunstâncias e às especi-
rixa entre ciganos. Alguém abriu fogo com ficidades das pessoas”, responderam os
uma caçadeira e os estilhaços do chumbo serviços ao Observador.
atingiram-no na cara e na vista. Chegou Afonso sabe que pode correr riscos na
a ser operado mais do que uma vez, mas prisão por não ver. E que não passa 24
a visão do lado esquerdo perdeu-se para horas ao lado do pai para garantir que
sempre, enquanto a do lado direito ficou este veja por si e que o salvaguarde de
com 10% de capacidade. “Conseguia ver tudo. Mas à medida que se adapta à vida
um pouco”, diz. O suficiente para manter sem visão, vai também apurando outros
alguma independência. sentidos. Ouve melhor, por exemplo. E
Afonso diz que naquele ano tinha sido pai isso transtorna-o. Afonso não consegue
de uma menina, que fará agora sete anos. descrever o espaço em que se encontra,
Ainda guardou a imagem da última vez que se é grande ou pequeno, em que direção
lhe viu a face, tinha ela meses. Mas até essa é a sua cela ou a escola. Mas consegue des-
memória se perdeu. Fugiu com a visão. O crever a cadeia como um local com muito
rapaz nasceu pouco mais de um ano depois. “barulho”.
Já não lhe viu a cara. Hoje conhece-lhes A prisão tem capacidade para cerca de
apenas a voz, porque insiste em falar com 500 reclusos. As paredes altas e os corre-
eles frequentemente por telefone. Naquele dores profundos alimentam os ecos. E isso
ano, o do acidente, Afonso decidiu mudar- perturba. “Fico completamente descon-
-se com a família para Coimbra para “estar trolado”, conta. Por isso pediu para não
mais perto dos médicos”. Chegou a ter con- almoçar no refeitório nem estar presente
sultas semanais, na tentativa de recuperar entre grandes grupos. É o pai quem lhe
a visão. Até que, em 2011, foi apanhado pela traz o almoço todos os dias para a cela.
polícia num processo por tráfico de droga. A rotina é sempre a mesma. Além dos
E acabou preso. “Foi a 18 de maio”, recorda períodos de aulas e de limpeza, Afonso diz
Afonso, que não deixou escapar as datas que é livre para ir até ao terraço o tempo
da memória. que quiser. Naquela manhã, apenas três
Os registos criminais consultados pelo reclusos circulavam à volta do grande pátio

Viver cego atrás


Observador não coincidem com o seu que separa a ala onde se encontram os
relato. Mas é frequente que assim seja. serviços administrativos e a sala de visitas,
A versão dos reclusos raramente coincide da ala dos reclusos. Não são permitidas fo-
com o papel do tribunal. No papel apre- tografias naquela zona por uma questão de
ciado pelo Tribunal de Execução de Penas segurança, advertem os guardas prisionais.
– que avalia o comportamento do recluso Afonso só fica fechado com o pai entre as

das grades
na prisão – Afonso perdeu a visão durante 13 e as 14 horas e entre as 19h00 e as 8h00.
um acidente de viação ocorrido em 2009. Nesse período as celas são trancadas. “À
Dois anos depois seria detido por tráfico de noite oiço a televisão para me distrair. Gosto
droga e posse de arma proibida e, como já da telenovela. Só me deito pelas onze.” Vive
tinha antecedentes criminais, acabou em ● Afonso Monteiro pediu para ser transferido para assim, cada dia, sem nunca esperar pelo
prisão preventiva à espera de julgamento. fim de semana, porque não tem visitas. “A
O juiz julgou-o dois anos depois e não foi Vale de Judeus, onde o pai também cumpre uma pena minha família vem às vezes, de dois em dois
condescendente com a sua incapacida-
de física. “Não quis saber de eu ser cego,
por tráfico de droga e o poderia ajudar no dia-a-dia. meses, porque está longe. A minha mãe está
presa em Tires, a minha mulher fugiu... Era

Sónia Simões Fotografia Hugo Amaral


condenou-me e pronto”, queixa-se Afonso. olho se perderam, deixando-o à mercê da sora Marina, prossegue Afonso, conseguiu ainda muito nova. Ainda esperou três anos,
A pena foi fixada em sete anos e seis gratidão de outros reclusos. “Tinha amigos “arranjar um aparelho” para ele aprender mas depois foi embora...Os meus filhos são
Texto meses de cadeia, mas em 2014 o tribunal
somaria a esta pena duas outras que esta-
que me ajudavam a ir ao balneário e ao
refeitório.” Foram mais de três anos a viver
a ler braille. “Antes do acidente sabia ler e
escrever, depois esqueci tudo”, argumenta.
pequenos. Mas tenho tios e primos.”
Terá sido este o cenário que levou o
vam suspensas e que tinham sido aplicadas de favores dentro da prisão. Favores que “Por isso estou ainda no primeiro ano.” juiz do Tribunal de Execução de Penas a
anos antes a Afonso por apropriação e rou- dificilmente podia pagar, até que pediu Além desta ocupação, Afonso foi destacado recusar-lhe qualquer período de liberdade
bo com violência. A sentença total acabou à Direção-Geral dos Serviços Prisionais ainda para fazer as limpezas das salas de condicional depois da avaliação feita na
por bater nos nove anos e três meses de autorização para ser transferido para Vale aulas. “Foi o melhor que me podiam ter ar- metade da pena cumprida. Na verdade,
cadeia. E terão sido estes antecedentes a de Judeus, onde o pai também cumpre ranjado”, confessa. Aqui consegue sentir-se Afonso está mais acompanhado na cadeia,

Afonso Monteiro, 36 anos, Já estava preso quando a luz se


apagou. Foi isso mesmo, parecia uma luz
existe um único quadro ou informação.
Apenas a imagem do exterior através da
levarem o juiz a ser inflexível.
Os mesmos registos mostram que foi
uma pena por tráfico de droga e onde o
poderia ajudá-lo no dia-a-dia.
útil e explorar o espaço usando os outros
sentidos. “Era esse o nosso objetivo, que
onde está o pai, do que cá fora.
A reclusão torna-se ainda mais difícil

é invisual e cumpre uma


a apagar-se para sempre, descreve Afonso janela gradeada. em 1997, tinha Afonso 17 anos, que ele foi A cadeia de Vale de Judeus é uma cadeia ele começasse a sentir-se mais autónomo. porque nem sequer pode praticar desporto.
Monteiro. Os últimos 10% de visão do olho Neste ambiente austero, ouve-se um leve detido pela primeira vez por roubo e con- com classificação de segurança alta, segun- Até para segurança dele dentro da prisão, “Não posso fazer qualquer esforço físico,
direito fugiram-lhe e apagaram-lhe da me- som de uma bengala a tocar no chão. É a dução ilegal. Desta vez seria condenado e do a informação dos Serviços Prisionais, porque se acontece alguma coisa, uma porque tenho a retina do olho descolada e

pena de nove anos e três mória imagens como as da cara da própria


filha, ainda pequena. “Não conheço a cara
dos meus filhos”, diz, na sala vazia de visi-
guia de Afonso Monteiro, 36 anos. Chega
acompanhado do pai, também ele conde-
nado e preso por tráfico de droga. O pai é
preso na cadeia de Leiria. “Aqui foi mais
fácil estar na prisão, porque eu via e fazia
tudo sozinho.” Nas palavras de Afonso,
e com um elevado grau de complexidade
de gestão. É que aqui estão presos reclusos
que cumprem penas elevadas. Grande par-
briga entre reclusos por exemplo, como é
que ele se salva?”, interroga ao Observador
uma fonte prisional.
fico a sentir-me mal”, justifica. Um proble-
ma que os médicos, segundo ele, lhe dizem
poder ser corrigido com uma intervenção
meses de cadeia por tráfico tas, o recluso com o número 238 da cadeia
de Vale de Judeus, em Alcoentre. A partir
retirado pelos guardas porque a autoriza-
ção que a Direção-Geral de Reinserção e
porém, as contas com a Justiça são outras.
Estava já cego quando “alguém” lhe pôs
te mais de seis anos de cadeia. Os reclusos
têm celas individuais com casas de banho
Contactado pelo Observador, o presi-
dente do Sindicato Nacional do Corpo da
cirúrgica quando sair em liberdade. Afonso
continua a ir às consultas a Coimbra, e

de droga, posse de
daquele momento, todos os dias, Afonso Serviços Prisionais concedeu não permite uma coisa nas mãos “para entregar a uma sem chuveiro. A direção da prisão abriu Guarda Prisional explica que estes casos a alimentar a esperança de que um dia
aprendeu a ser cego na prisão. que ele escute ou sequer participe na con- pessoa”. “Não sabia que era droga. Eram uma exceção e colocou na cela do pai de são raros. Por uma questão de seguran- aquele olho lhe vá permitir voltar a ver.
São quase 11h00. Foi preciso passar por versa. “Porta-te bem”, diz-lhe o pai, antes umas gramas”, admite. E só percebeu que Afonso outra cama – permitindo a trans- ça, um recluso com mobilidade reduzida Até lá, conta o tempo que lhe falta da pena.

arma ilegal e roubo com um apertado procedimento de segurança à


entrada da cadeia de Vale de Judeus e per-
correr um caminho labiríntico, e silencioso,
de abandonar a sala. Estamos sozinhos.
Afonso Monteiro está nervoso. Cumpre
uma pena de nove anos e três meses de
o tinham “tramado” quando foi detido. E
já tinha sido arguido noutros processos?
“Não. Só há muitos anos fui apanhado sem
ferência. Os dois estão na Ala A da cadeia,
maioritariamente ocupada por reclusos
que trabalham e “se portam bem”, nas
é sempre colocado nas enfermarias das
prisões para poder ter acompanhamen-
to permanente de uma equipa médica.
Não se importa de ser fotografado, desde
que o ajudem a deslocar-se e a colocar-se
na posição que pretenderem. A conversa
violência. Esta é a vida até chegar à fria sala de visitas. É aqui que,
aos sábados e domingos, os reclusos de Vale
prisão por tráfico de droga e posse de
uma arma proibida por lei, mas mesmo
carta e cumpri pena na cadeia de Leiria”,
insiste.
palavras de Afonso.
É naquele espaço, ali confinados, que
Jorge Alves recorda o caso de uma reclu-
sa da cadeia feminina de Santa Cruz do
termina e chamam-se os guardas, que vêm
acompanhados do pai de Afonso. “Portou-

de um cego na prisão
de Judeus recebem por uma hora amigos assim sente-se intimidado. Os seus passos Afonso foi detido em 2011 e só foi trans- todos os dias pai e filho tomam o pequeno- Bispo, que necessitava de se deslocar ao -se bem ele?”, pergunta o pai. E abando-
e familiares. As paredes são brancas, com são ainda curtos e inseguros. Quando está ferido da cadeia de preventivos, em Aveiro, -almoço. “O meu pai prepara café”, conta exterior de cadeira de rodas. “Foi preciso nam os dois a sala de visitas.
uma fina risca vermelha, e estão despidas. sem o pai, sente que não tem chão e nem para a cadeia de Paços de Ferreira quando Afonso. Depois de tratar da sua higiene contratar uma auxiliar para acompanhá-la.

de Vale de Judeus. As cadeiras estão arrumadas por cima das


mesas como se o seu uso fosse raro. Não
a bengala guia o salva. “Eu uso isto para
não bater com a cabeça, mas o meu pai não
foi condenado. Foi aqui que as últimas ima-
gens que conseguia captar através de um
pessoal, o pai ajuda-o a chegar à escola e
segue para as oficinas da prisão. A profes-
Assim como foi necessário contratar um
transporte adequado, porque as nossas
Sónia Simões é jornalista do Observador,
onde integra a secção País.
78 CEGUEIRA E PRISÃO 79

gosta de ver-me com isto.” Sem ele, sente-se carrinhas não têm condições para isso”,
sempre numa sala às escuras. conta. A própria Direção Geral de Rein-
Ajudamo-lo a sentar-se e explicamos serção e Serviços Prisionais desconhece
porque estamos ali. Como é cumprir uma quantos reclusos nas cadeias portuguesas
pena de prisão completamente às escu- sofrem de mobilidade reduzida e preci-
ras? Sem ver? As respostas começam por sam de condições especiais. “Esta Direção
sair amiúde. Palavras meio gagas. Até que Geral está, neste momento, a proceder
os nervos o libertam aos poucos. Recua ao levantamento do número de reclusos
ao ano do acidente, o de 2009. Estava na com necessidades especiais, sendo que,
zona de Aveiro, para onde foi viver de- nos casos existentes, cada estabelecimento
pois de uma infância passada em Coim- prisional procura encontrar as respostas
bra, quando foi apanhado no meio de uma adequadas às circunstâncias e às especi-
rixa entre ciganos. Alguém abriu fogo com ficidades das pessoas”, responderam os
uma caçadeira e os estilhaços do chumbo serviços ao Observador.
atingiram-no na cara e na vista. Chegou Afonso sabe que pode correr riscos na
a ser operado mais do que uma vez, mas prisão por não ver. E que não passa 24
a visão do lado esquerdo perdeu-se para horas ao lado do pai para garantir que
sempre, enquanto a do lado direito ficou este veja por si e que o salvaguarde de
com 10% de capacidade. “Conseguia ver tudo. Mas à medida que se adapta à vida
um pouco”, diz. O suficiente para manter sem visão, vai também apurando outros
alguma independência. sentidos. Ouve melhor, por exemplo. E
Afonso diz que naquele ano tinha sido pai isso transtorna-o. Afonso não consegue
de uma menina, que fará agora sete anos. descrever o espaço em que se encontra,
Ainda guardou a imagem da última vez que se é grande ou pequeno, em que direção
lhe viu a face, tinha ela meses. Mas até essa é a sua cela ou a escola. Mas consegue des-
memória se perdeu. Fugiu com a visão. O crever a cadeia como um local com muito
rapaz nasceu pouco mais de um ano depois. “barulho”.
Já não lhe viu a cara. Hoje conhece-lhes A prisão tem capacidade para cerca de
apenas a voz, porque insiste em falar com 500 reclusos. As paredes altas e os corre-
eles frequentemente por telefone. Naquele dores profundos alimentam os ecos. E isso
ano, o do acidente, Afonso decidiu mudar- perturba. “Fico completamente descon-
-se com a família para Coimbra para “estar trolado”, conta. Por isso pediu para não
mais perto dos médicos”. Chegou a ter con- almoçar no refeitório nem estar presente
sultas semanais, na tentativa de recuperar entre grandes grupos. É o pai quem lhe
a visão. Até que, em 2011, foi apanhado pela traz o almoço todos os dias para a cela.
polícia num processo por tráfico de droga. A rotina é sempre a mesma. Além dos
E acabou preso. “Foi a 18 de maio”, recorda períodos de aulas e de limpeza, Afonso diz
Afonso, que não deixou escapar as datas que é livre para ir até ao terraço o tempo
da memória. que quiser. Naquela manhã, apenas três
Os registos criminais consultados pelo reclusos circulavam à volta do grande pátio

Viver cego atrás


Observador não coincidem com o seu que separa a ala onde se encontram os
relato. Mas é frequente que assim seja. serviços administrativos e a sala de visitas,
A versão dos reclusos raramente coincide da ala dos reclusos. Não são permitidas fo-
com o papel do tribunal. No papel apre- tografias naquela zona por uma questão de
ciado pelo Tribunal de Execução de Penas segurança, advertem os guardas prisionais.
– que avalia o comportamento do recluso Afonso só fica fechado com o pai entre as

das grades
na prisão – Afonso perdeu a visão durante 13 e as 14 horas e entre as 19h00 e as 8h00.
um acidente de viação ocorrido em 2009. Nesse período as celas são trancadas. “À
Dois anos depois seria detido por tráfico de noite oiço a televisão para me distrair. Gosto
droga e posse de arma proibida e, como já da telenovela. Só me deito pelas onze.” Vive
tinha antecedentes criminais, acabou em ● Afonso Monteiro pediu para ser transferido para assim, cada dia, sem nunca esperar pelo
prisão preventiva à espera de julgamento. fim de semana, porque não tem visitas. “A
O juiz julgou-o dois anos depois e não foi Vale de Judeus, onde o pai também cumpre uma pena minha família vem às vezes, de dois em dois
condescendente com a sua incapacida-
de física. “Não quis saber de eu ser cego,
por tráfico de droga e o poderia ajudar no dia-a-dia. meses, porque está longe. A minha mãe está
presa em Tires, a minha mulher fugiu... Era

Sónia Simões Fotografia Hugo Amaral


condenou-me e pronto”, queixa-se Afonso. olho se perderam, deixando-o à mercê da sora Marina, prossegue Afonso, conseguiu ainda muito nova. Ainda esperou três anos,
A pena foi fixada em sete anos e seis gratidão de outros reclusos. “Tinha amigos “arranjar um aparelho” para ele aprender mas depois foi embora...Os meus filhos são
Texto meses de cadeia, mas em 2014 o tribunal
somaria a esta pena duas outras que esta-
que me ajudavam a ir ao balneário e ao
refeitório.” Foram mais de três anos a viver
a ler braille. “Antes do acidente sabia ler e
escrever, depois esqueci tudo”, argumenta.
pequenos. Mas tenho tios e primos.”
Terá sido este o cenário que levou o
vam suspensas e que tinham sido aplicadas de favores dentro da prisão. Favores que “Por isso estou ainda no primeiro ano.” juiz do Tribunal de Execução de Penas a
anos antes a Afonso por apropriação e rou- dificilmente podia pagar, até que pediu Além desta ocupação, Afonso foi destacado recusar-lhe qualquer período de liberdade
bo com violência. A sentença total acabou à Direção-Geral dos Serviços Prisionais ainda para fazer as limpezas das salas de condicional depois da avaliação feita na
por bater nos nove anos e três meses de autorização para ser transferido para Vale aulas. “Foi o melhor que me podiam ter ar- metade da pena cumprida. Na verdade,
cadeia. E terão sido estes antecedentes a de Judeus, onde o pai também cumpre ranjado”, confessa. Aqui consegue sentir-se Afonso está mais acompanhado na cadeia,

Afonso Monteiro, 36 anos, Já estava preso quando a luz se


apagou. Foi isso mesmo, parecia uma luz
existe um único quadro ou informação.
Apenas a imagem do exterior através da
levarem o juiz a ser inflexível.
Os mesmos registos mostram que foi
uma pena por tráfico de droga e onde o
poderia ajudá-lo no dia-a-dia.
útil e explorar o espaço usando os outros
sentidos. “Era esse o nosso objetivo, que
onde está o pai, do que cá fora.
A reclusão torna-se ainda mais difícil

é invisual e cumpre uma


a apagar-se para sempre, descreve Afonso janela gradeada. em 1997, tinha Afonso 17 anos, que ele foi A cadeia de Vale de Judeus é uma cadeia ele começasse a sentir-se mais autónomo. porque nem sequer pode praticar desporto.
Monteiro. Os últimos 10% de visão do olho Neste ambiente austero, ouve-se um leve detido pela primeira vez por roubo e con- com classificação de segurança alta, segun- Até para segurança dele dentro da prisão, “Não posso fazer qualquer esforço físico,
direito fugiram-lhe e apagaram-lhe da me- som de uma bengala a tocar no chão. É a dução ilegal. Desta vez seria condenado e do a informação dos Serviços Prisionais, porque se acontece alguma coisa, uma porque tenho a retina do olho descolada e

pena de nove anos e três mória imagens como as da cara da própria


filha, ainda pequena. “Não conheço a cara
dos meus filhos”, diz, na sala vazia de visi-
guia de Afonso Monteiro, 36 anos. Chega
acompanhado do pai, também ele conde-
nado e preso por tráfico de droga. O pai é
preso na cadeia de Leiria. “Aqui foi mais
fácil estar na prisão, porque eu via e fazia
tudo sozinho.” Nas palavras de Afonso,
e com um elevado grau de complexidade
de gestão. É que aqui estão presos reclusos
que cumprem penas elevadas. Grande par-
briga entre reclusos por exemplo, como é
que ele se salva?”, interroga ao Observador
uma fonte prisional.
fico a sentir-me mal”, justifica. Um proble-
ma que os médicos, segundo ele, lhe dizem
poder ser corrigido com uma intervenção
meses de cadeia por tráfico tas, o recluso com o número 238 da cadeia
de Vale de Judeus, em Alcoentre. A partir
retirado pelos guardas porque a autoriza-
ção que a Direção-Geral de Reinserção e
porém, as contas com a Justiça são outras.
Estava já cego quando “alguém” lhe pôs
te mais de seis anos de cadeia. Os reclusos
têm celas individuais com casas de banho
Contactado pelo Observador, o presi-
dente do Sindicato Nacional do Corpo da
cirúrgica quando sair em liberdade. Afonso
continua a ir às consultas a Coimbra, e

de droga, posse de
daquele momento, todos os dias, Afonso Serviços Prisionais concedeu não permite uma coisa nas mãos “para entregar a uma sem chuveiro. A direção da prisão abriu Guarda Prisional explica que estes casos a alimentar a esperança de que um dia
aprendeu a ser cego na prisão. que ele escute ou sequer participe na con- pessoa”. “Não sabia que era droga. Eram uma exceção e colocou na cela do pai de são raros. Por uma questão de seguran- aquele olho lhe vá permitir voltar a ver.
São quase 11h00. Foi preciso passar por versa. “Porta-te bem”, diz-lhe o pai, antes umas gramas”, admite. E só percebeu que Afonso outra cama – permitindo a trans- ça, um recluso com mobilidade reduzida Até lá, conta o tempo que lhe falta da pena.

arma ilegal e roubo com um apertado procedimento de segurança à


entrada da cadeia de Vale de Judeus e per-
correr um caminho labiríntico, e silencioso,
de abandonar a sala. Estamos sozinhos.
Afonso Monteiro está nervoso. Cumpre
uma pena de nove anos e três meses de
o tinham “tramado” quando foi detido. E
já tinha sido arguido noutros processos?
“Não. Só há muitos anos fui apanhado sem
ferência. Os dois estão na Ala A da cadeia,
maioritariamente ocupada por reclusos
que trabalham e “se portam bem”, nas
é sempre colocado nas enfermarias das
prisões para poder ter acompanhamen-
to permanente de uma equipa médica.
Não se importa de ser fotografado, desde
que o ajudem a deslocar-se e a colocar-se
na posição que pretenderem. A conversa
violência. Esta é a vida até chegar à fria sala de visitas. É aqui que,
aos sábados e domingos, os reclusos de Vale
prisão por tráfico de droga e posse de
uma arma proibida por lei, mas mesmo
carta e cumpri pena na cadeia de Leiria”,
insiste.
palavras de Afonso.
É naquele espaço, ali confinados, que
Jorge Alves recorda o caso de uma reclu-
sa da cadeia feminina de Santa Cruz do
termina e chamam-se os guardas, que vêm
acompanhados do pai de Afonso. “Portou-

de um cego na prisão
de Judeus recebem por uma hora amigos assim sente-se intimidado. Os seus passos Afonso foi detido em 2011 e só foi trans- todos os dias pai e filho tomam o pequeno- Bispo, que necessitava de se deslocar ao -se bem ele?”, pergunta o pai. E abando-
e familiares. As paredes são brancas, com são ainda curtos e inseguros. Quando está ferido da cadeia de preventivos, em Aveiro, -almoço. “O meu pai prepara café”, conta exterior de cadeira de rodas. “Foi preciso nam os dois a sala de visitas.
uma fina risca vermelha, e estão despidas. sem o pai, sente que não tem chão e nem para a cadeia de Paços de Ferreira quando Afonso. Depois de tratar da sua higiene contratar uma auxiliar para acompanhá-la.

de Vale de Judeus. As cadeiras estão arrumadas por cima das


mesas como se o seu uso fosse raro. Não
a bengala guia o salva. “Eu uso isto para
não bater com a cabeça, mas o meu pai não
foi condenado. Foi aqui que as últimas ima-
gens que conseguia captar através de um
pessoal, o pai ajuda-o a chegar à escola e
segue para as oficinas da prisão. A profes-
Assim como foi necessário contratar um
transporte adequado, porque as nossas
Sónia Simões é jornalista do Observador,
onde integra a secção País.
80 FAUSTINO CAVACO 81

A fuga
que parou
o país

Há 30 anos, seis condenados


escapavam da cadeia. Os “Cavacos”
eram os mais mediáticos e Faustino o
mais temido. Esta é a história dos seus
crimes e da paranóia colectiva que tomou
conta de Portugal.
Bruno Vieira Amaral LUSA / ANTÓNIO COTRIM
80 FAUSTINO CAVACO 81

A fuga
que parou
o país

Há 30 anos, seis condenados


escapavam da cadeia. Os “Cavacos”
eram os mais mediáticos e Faustino o
mais temido. Esta é a história dos seus
crimes e da paranóia colectiva que tomou
conta de Portugal.
Bruno Vieira Amaral LUSA / ANTÓNIO COTRIM
82 FAUSTINO CAVACO

A 29 de Julho de 1986, a caravana


da 48.ª Volta a Portugal em bicicleta chega-
va a Grândola, vila morena. Marco Chagas,
do Sporting, venceu essa 6.ª etapa, embora
a camisola amarela continuasse com um
inglês de nome difícil de pronunciar e de
escrever, Cayn Theakston. Porém, naquela
tarde, o interesse pela prova velocipédica
era mínimo. Nas ruas, nas lojas e nos cafés
só havia um assunto de conversa. No dia
anterior, seis perigosos reclusos tinham
conseguido fugir da cadeia de Pinheiro
da Cruz, a vinte quilómetros de Grândola,
deixando para trás três guardas prisionais
mortos e outros dois feridos com alguma
gravidade. As autoridades montaram uma
gigantesca operação de caça ao homem
mas, um dia depois, enquanto se abriam
as garrafas de champanhe no pódio da
Volta, tinham perdido o rasto aos fugitivos.

A fuga
Por volta das quatro e meia da tarde de
28 de Julho, Germano Ramiro Raposinho,
de 32 anos e a cumprir uma pena de 25
por homicídio, dirigiu-se ao edifício da
portaria para entregar toalhas lavadas para
a casa de banho. Apesar da reconhecida
perigosidade, Raposinho, um algarvio filho
de negociantes de peixe, trabalhava na la-
GLOBAL IMAGENS / ANTÓNIO AGUIAR

vandaria e, como tal, beneficiava de alguma


liberdade de movimentos no interior da do extenso cadastro de quase todos e de dos associados de Faustino, mas apenas por-
prisão. Recebido pelo guarda António José alguns deles já terem experiência de fuga que, sendo criminosos oriundos da mesma
Paulino, atingiu-o de imediato com dois de estabelecimentos prisionais. região, partilhavam alguns contactos.
tiros de uma pistola escondida entre as No final do dia, havia uma certeza: aquela Embora Raposinho fosse, desde o iní-
toalhas. Outros cinco reclusos que aguar- era a fuga mais sangrenta na história das cio, apontado como o “cérebro” da fuga,
davam no pátio juntaram-se a Raposinho. prisões portuguesas. De acordo com o DN, Faustino Cavaco era considerado o mais
No interior do edifício, destruíram o rádio desde 1961 tinham fugido 374 presos, mas só perigoso dos seis. Um agente da PJ envol-
para impedir comunicações com o exterior numa ocasião se tinha registado uma vítima vido na perseguição disse ao Expresso que
e arrombaram o armeiro de onde tiraram mortal, quando dois reclusos assassinaram entre os dois, Faustino e Raposinho, havia
quatro G3 e cinco pistolas. Três guardas um guarda da Penitenciária de Coimbra, diferenças fundamentais: “O primeiro é
que tentaram travar a fuga foram abatidos precisamente em 1961. A situação era alar- um tipo frio, calculista e determinado. O
a sangue-frio e outro ficou ferido. Outros mante porque estavam a monte seis homens segundo é um exibicionista puro, gosta é do
três foram feitos reféns e usados como es- perigosos, fortemente armados e que não folclore.” Além disso, os dotes de atirador
cudo pelos cadastrados para chegarem ao hesitavam em disparar. O país entrava numa de Faustino Cavaco eram quase lendários
exterior. Aí entraram numa carrinha celular espécie de paranóia colectiva. entre as autoridades e no meio criminoso.
Ford Transit e, já na estrada, dispararam Dizia-se que se tivesse seguido a carreira
rajadas de metralhadora na direcção de de atirador desportivo teria sido campeão
uma bomba de gasolina nas imediações da
Quem eram? do mundo.
prisão, com o provável intuito de provocar Do grupo de seis fugitivos faziam parte dois Com estes perfis, era estranho que a auto-
uma explosão que atrasasse a perseguição. ex-pára-quedistas, Augusto José Ramalho, ria dos disparos que vitimaram os guardas
Poucos quilómetros à frente, no cruza- o “Tony”, e José Fernandes Gaspar, o “Zé prisionais fosse atribuída a Raposinho. No
mento de Grândola e do Carvalhal, man- Guerreiro”, o primeiro condenado a cinco dia seguinte à fuga, o DN e o Diário de
daram parar um Ford Fiesta de matrícula anos por roubo e o segundo a vinte anos Lisboa davam essa informação. O Correio
espanhola (BI-4624-YO), expulsaram os por assalto à mão armada. Carlos Alberto da Manhã de 29 de Julho dizia que teria
ocupantes. Quatro dos fugitivos entraram Ferreira Pereira, natural de Alenquer e sido Faustino a disparar mas, no dia seguin-
para o carro tendo os outros dois seguido conhecido como “Carlos da Malveira”, cum- te, uma testemunha dos acontecimentos,
viagem na Ford Transit. Ainda precisa- pria uma pena de dezassete anos também uma guarda prisional, confirmava que o
vam de outro carro, que não demoraram por assalto à mão armada. Os outros três autor dos disparos tinha sido Raposinho.
a encontrar. Era um Ford Escort branco de eram algarvios: Germano Raposinho, que Só alguns dias mais tarde, com a revelação
um casal que ia de férias para o Algarve. cumpria a pena mais pesada pelo homicídio de outros pormenores sobre a fuga, é que
A mulher só pediu que não fizessem mal de um funcionário de uma bomba de gaso- ficaria claro que o assassino dos guardas
ao gatinho que levava ao colo. Os fugiti- lina durante um assalto, era da Quarteira; era Faustino Cavaco. De acordo com o Di-
vos abandonaram o carro celular com os Vítor Clemente Cavaco, de 32 anos, o “Vítor ário de Lisboa, a outra versão teria sido
reféns lá dentro (um dos cadastrados terá Ameixa”, condenado a 17 anos por vários posta a circular para escamotear o facto
defendido que os deveriam matar, tendo roubos, era natural de Loulé; José Fausti- de Raposinho gozar de um regime libe-
sido dissuadido pelos outros), dividiram-se no Cavaco, o “Americano”, condenado a ral incompatível com a sua reconhecida
em dois grupos de três e seguiram para Sul 19 anos pelo homicídio de um agente da perigosidade, ainda por cima num esta-
nas viaturas roubadas. A partir daí a polícia
perdeu-lhes o rasto.
PSP, Manuel Laginha, que teria sido seu
cúmplice em vários assaltos, era de Salir,
● A prisão de Pinheiro belecimento de segurança máxima que
era conhecido pelos presidiários como o
“A primeira parte da fuga”, escrevia o DN, concelho de Loulé. da Cruz, na manhã após “inferno”. Alguém tinha falhado e estava
“planeada com rigor militar, estava termi- A imprensa adiantava que os algarvios a tentar encobrir o erro.
nada.” Na altura ainda não havia maneira de pertenciam ao bando que ficou conhecido a fuga.
se saber, mas “rigor militar” não era a ex- como as FP-27, uma quadrilha que entre Pinheiro da Cruz:
pressão ideal para descrever o planeamento 1982 e 1985 assaltara com violência mais
e a execução da fuga e ainda menos para de duas dezenas de bancos, casas de câm- ● Notícia de primeira pá- um inferno
descrever a desorientação das autoridades
logo depois. Pinheiro da Cruz demorou
bio e hotéis por todo o país. Tinham sido
igualmente responsáveis pela morte de dois
gina do Diário de Lisboa de A Colónia Penal de Pinheiro da Cruz era
um estabelecimento prisional de segurança
meia hora a alertar o posto da GNR mais guardas-fiscais durante um assalto a um 20 de Fevereiro de 1984, máxima. Além disso, gozava de uma re-
próximo, situado a 25 quilómetros, por restaurante na Praia da Falésia, em Albu- putação assustadora entre os criminosos,
só haver uma linha telefónica. Os serviços feira, a 19 de Fevereiro de 1984. Na verdade, sobre a morte dos dois mesmo entre aqueles que nunca lá tinham
prisionais também não tinham fotogra-
fias dos evadidos pelo que nas primeiras
Faustino Cavaco era o único dos seis que po-
dia legitimamente incluir essa distinção no
guardas-fiscais. A arma de estado. Havia rumores de que os guardas,
baptizados com o nome de “Esquadrão da
horas os agentes no terreno andavam à currículo. Vítor Clemente Cavaco, que não um deles foi utilizada na Morte”, tinham matado reclusos à pancada
procura de homens cujos rostos lhes eram tinha qualquer ligação de parentesco nem e os tinham enterrado alegando depois
completamente desconhecidos, isto apesar “profissional” com o outro, conhecia alguns fuga de Pinheiro da Cruz. que teriam fugido. À chegada, os novos
82 FAUSTINO CAVACO

A 29 de Julho de 1986, a caravana


da 48.ª Volta a Portugal em bicicleta chega-
va a Grândola, vila morena. Marco Chagas,
do Sporting, venceu essa 6.ª etapa, embora
a camisola amarela continuasse com um
inglês de nome difícil de pronunciar e de
escrever, Cayn Theakston. Porém, naquela
tarde, o interesse pela prova velocipédica
era mínimo. Nas ruas, nas lojas e nos cafés
só havia um assunto de conversa. No dia
anterior, seis perigosos reclusos tinham
conseguido fugir da cadeia de Pinheiro
da Cruz, a vinte quilómetros de Grândola,
deixando para trás três guardas prisionais
mortos e outros dois feridos com alguma
gravidade. As autoridades montaram uma
gigantesca operação de caça ao homem
mas, um dia depois, enquanto se abriam
as garrafas de champanhe no pódio da
Volta, tinham perdido o rasto aos fugitivos.

A fuga
Por volta das quatro e meia da tarde de
28 de Julho, Germano Ramiro Raposinho,
de 32 anos e a cumprir uma pena de 25
por homicídio, dirigiu-se ao edifício da
portaria para entregar toalhas lavadas para
a casa de banho. Apesar da reconhecida
perigosidade, Raposinho, um algarvio filho
de negociantes de peixe, trabalhava na la-
GLOBAL IMAGENS / ANTÓNIO AGUIAR

vandaria e, como tal, beneficiava de alguma


liberdade de movimentos no interior da do extenso cadastro de quase todos e de dos associados de Faustino, mas apenas por-
prisão. Recebido pelo guarda António José alguns deles já terem experiência de fuga que, sendo criminosos oriundos da mesma
Paulino, atingiu-o de imediato com dois de estabelecimentos prisionais. região, partilhavam alguns contactos.
tiros de uma pistola escondida entre as No final do dia, havia uma certeza: aquela Embora Raposinho fosse, desde o iní-
toalhas. Outros cinco reclusos que aguar- era a fuga mais sangrenta na história das cio, apontado como o “cérebro” da fuga,
davam no pátio juntaram-se a Raposinho. prisões portuguesas. De acordo com o DN, Faustino Cavaco era considerado o mais
No interior do edifício, destruíram o rádio desde 1961 tinham fugido 374 presos, mas só perigoso dos seis. Um agente da PJ envol-
para impedir comunicações com o exterior numa ocasião se tinha registado uma vítima vido na perseguição disse ao Expresso que
e arrombaram o armeiro de onde tiraram mortal, quando dois reclusos assassinaram entre os dois, Faustino e Raposinho, havia
quatro G3 e cinco pistolas. Três guardas um guarda da Penitenciária de Coimbra, diferenças fundamentais: “O primeiro é
que tentaram travar a fuga foram abatidos precisamente em 1961. A situação era alar- um tipo frio, calculista e determinado. O
a sangue-frio e outro ficou ferido. Outros mante porque estavam a monte seis homens segundo é um exibicionista puro, gosta é do
três foram feitos reféns e usados como es- perigosos, fortemente armados e que não folclore.” Além disso, os dotes de atirador
cudo pelos cadastrados para chegarem ao hesitavam em disparar. O país entrava numa de Faustino Cavaco eram quase lendários
exterior. Aí entraram numa carrinha celular espécie de paranóia colectiva. entre as autoridades e no meio criminoso.
Ford Transit e, já na estrada, dispararam Dizia-se que se tivesse seguido a carreira
rajadas de metralhadora na direcção de de atirador desportivo teria sido campeão
uma bomba de gasolina nas imediações da
Quem eram? do mundo.
prisão, com o provável intuito de provocar Do grupo de seis fugitivos faziam parte dois Com estes perfis, era estranho que a auto-
uma explosão que atrasasse a perseguição. ex-pára-quedistas, Augusto José Ramalho, ria dos disparos que vitimaram os guardas
Poucos quilómetros à frente, no cruza- o “Tony”, e José Fernandes Gaspar, o “Zé prisionais fosse atribuída a Raposinho. No
mento de Grândola e do Carvalhal, man- Guerreiro”, o primeiro condenado a cinco dia seguinte à fuga, o DN e o Diário de
daram parar um Ford Fiesta de matrícula anos por roubo e o segundo a vinte anos Lisboa davam essa informação. O Correio
espanhola (BI-4624-YO), expulsaram os por assalto à mão armada. Carlos Alberto da Manhã de 29 de Julho dizia que teria
ocupantes. Quatro dos fugitivos entraram Ferreira Pereira, natural de Alenquer e sido Faustino a disparar mas, no dia seguin-
para o carro tendo os outros dois seguido conhecido como “Carlos da Malveira”, cum- te, uma testemunha dos acontecimentos,
viagem na Ford Transit. Ainda precisa- pria uma pena de dezassete anos também uma guarda prisional, confirmava que o
vam de outro carro, que não demoraram por assalto à mão armada. Os outros três autor dos disparos tinha sido Raposinho.
a encontrar. Era um Ford Escort branco de eram algarvios: Germano Raposinho, que Só alguns dias mais tarde, com a revelação
um casal que ia de férias para o Algarve. cumpria a pena mais pesada pelo homicídio de outros pormenores sobre a fuga, é que
A mulher só pediu que não fizessem mal de um funcionário de uma bomba de gaso- ficaria claro que o assassino dos guardas
ao gatinho que levava ao colo. Os fugiti- lina durante um assalto, era da Quarteira; era Faustino Cavaco. De acordo com o Di-
vos abandonaram o carro celular com os Vítor Clemente Cavaco, de 32 anos, o “Vítor ário de Lisboa, a outra versão teria sido
reféns lá dentro (um dos cadastrados terá Ameixa”, condenado a 17 anos por vários posta a circular para escamotear o facto
defendido que os deveriam matar, tendo roubos, era natural de Loulé; José Fausti- de Raposinho gozar de um regime libe-
sido dissuadido pelos outros), dividiram-se no Cavaco, o “Americano”, condenado a ral incompatível com a sua reconhecida
em dois grupos de três e seguiram para Sul 19 anos pelo homicídio de um agente da perigosidade, ainda por cima num esta-
nas viaturas roubadas. A partir daí a polícia
perdeu-lhes o rasto.
PSP, Manuel Laginha, que teria sido seu
cúmplice em vários assaltos, era de Salir,
● A prisão de Pinheiro belecimento de segurança máxima que
era conhecido pelos presidiários como o
“A primeira parte da fuga”, escrevia o DN, concelho de Loulé. da Cruz, na manhã após “inferno”. Alguém tinha falhado e estava
“planeada com rigor militar, estava termi- A imprensa adiantava que os algarvios a tentar encobrir o erro.
nada.” Na altura ainda não havia maneira de pertenciam ao bando que ficou conhecido a fuga.
se saber, mas “rigor militar” não era a ex- como as FP-27, uma quadrilha que entre Pinheiro da Cruz:
pressão ideal para descrever o planeamento 1982 e 1985 assaltara com violência mais
e a execução da fuga e ainda menos para de duas dezenas de bancos, casas de câm- ● Notícia de primeira pá- um inferno
descrever a desorientação das autoridades
logo depois. Pinheiro da Cruz demorou
bio e hotéis por todo o país. Tinham sido
igualmente responsáveis pela morte de dois
gina do Diário de Lisboa de A Colónia Penal de Pinheiro da Cruz era
um estabelecimento prisional de segurança
meia hora a alertar o posto da GNR mais guardas-fiscais durante um assalto a um 20 de Fevereiro de 1984, máxima. Além disso, gozava de uma re-
próximo, situado a 25 quilómetros, por restaurante na Praia da Falésia, em Albu- putação assustadora entre os criminosos,
só haver uma linha telefónica. Os serviços feira, a 19 de Fevereiro de 1984. Na verdade, sobre a morte dos dois mesmo entre aqueles que nunca lá tinham
prisionais também não tinham fotogra-
fias dos evadidos pelo que nas primeiras
Faustino Cavaco era o único dos seis que po-
dia legitimamente incluir essa distinção no
guardas-fiscais. A arma de estado. Havia rumores de que os guardas,
baptizados com o nome de “Esquadrão da
horas os agentes no terreno andavam à currículo. Vítor Clemente Cavaco, que não um deles foi utilizada na Morte”, tinham matado reclusos à pancada
procura de homens cujos rostos lhes eram tinha qualquer ligação de parentesco nem e os tinham enterrado alegando depois
completamente desconhecidos, isto apesar “profissional” com o outro, conhecia alguns fuga de Pinheiro da Cruz. que teriam fugido. À chegada, os novos
84 FAUSTINO CAVACO FAUSTINO CAVACO 85

reclusos eram avisados sobre aquilo que tedor para as autoridades. Aquele lugar posinho contou tudo à revista do Expresso
os esperava: “Isto aqui é uma cadeia para ficava a três quilómetros da casa de Faustino de 15 de Agosto: “Não resisti à selvajaria de-
endireitar toda a gente. Se algum de vocês Cavaco. No interior do carro havia manchas les, sabe? Fizeram-nos a vida negra, reben-
está com más ideias, aqui usa-se a lei do de sangue, o que levou a polícia a concluir taram com a casa da minha mãe, puseram
mais forte. Portanto, se algum tiver ma- que um deles estaria ferido embora não polícias lá dentro dia e noite, sem respeito
nias e se armar em esperto ou engraçado precisasse de tratamento médico urgente. por nada nem ninguém, ameaçaram-nos de
sofrerá as consequências. Aqui é à base da Levantava-se também a hipótese de esses toda a maneira. E eu não aguentei e acabei
pancada, não se brinca, tudo quanto se ferimentos terem sido causados por um por confessar onde é que eles estavam.”
faz é a sério. E mais, aqui também não há desentendimento entre os fugitivos, o que E acrescentava: “É preciso dar a conhecer
homens fortes. Se algum de vocês veio com acabou por não se confirmar. o que é esta polícia e os atropelos que faz a
essa ideia aconselho a deixarem os tomates Pouco depois, perto de Almancil, as au- torto e a direito só para dar a entender que
lá fora. Se não o fizerem, irão saber o que toridades encontraram o segundo carro sabe tudo, que tem tudo controlado, que
é o regime de Pinheiro da Cruz.” usado na fuga, o Ford Escort da família que é a maior! E é mentira! Só à nossa custa é
Mesmo que não fosse possível confirmar ia de férias para o Algarve. Na bagageira que conseguiram apanhá-los!” Para Maria
estas afirmações, era assim que os presidiá- estava uma caçadeira e carregadores, além Helena, a prova mais cabal da desorien-
rios viam aquela cadeia. Com a fuga de seis de comida e roupas dos legítimos donos tação das autoridades era o facto de não
reclusos, surgiam algumas questões: como do carro, mas de que os seis se tinham ser- fazerem a mínima ideia do paradeiro dos
é que num regime tão severo Germano vido. Apesar de todo o aparato policial, Cavacos. A polícia negou todas as acusações
Raposinho andava à vontade? Mais grave das barreiras levantadas nas estradas e de de brutalidade, mas não podia esconder as
ainda era a questão da arma utilizada para um helicóptero a participar nas buscas, os dificuldades para capturar Faustino e Vítor.
dar início à fuga: como é que a arma tinha evadidos conseguiram sacar outro carro,
sido introduzida numa prisão de segurança desta vez um Mitsubishi Colt de matrícula
máxima, indo parar às mãos de condenados luxemburguesa, que seria encontrado no
Os Cavacos invisíveis
altamente perigosos? dia seguinte, 31 de Julho, perto do campo de Com a captura de quatro dos seis fugitivos,
Enquanto os serviços prisionais denun- golfe de Vilamoura. No interior da viatura, outros pormenores sobre a fuga começa-
ciavam as más condições e a sobrelotação um bilhete de agradecimento destinado ao vam a emergir. Os serviços prisionais des-
das cadeias, o ministro da Justiça, Mário proprietário. mentiam inequivocamente o envolvimento
Raposo, não tinha dúvidas de que a fuga se As manchetes do Diário de Notícias dos de qualquer funcionário na preparação da
devera a “um conjunto de falhas humanas”. dias 1 e 2 de Agosto revelavam a montanha- fuga. Raposinho tinha afinal usado uma
Essa constatação não o impediu de anun- -russa em que se tornara a perseguição. Dia pistola de madeira pintada com graxa e
ciar, no dia seguinte à fuga, a contratação 1: “Apertado cerco no Algarve para detec- feita na oficina de carpintaria da prisão.
de trezentos novos guardas prisionais e a tar os bandidos.” Dia 2: “Caça ao homem O autor dos disparos mortais tinha sido
construção de três novas cadeias, uma das esmorece sem resultados.” Um agente da mesmo Faustino Cavaco, usando para tal
quais de segurança máxima em Lisboa (a Judiciária confessava ao Expresso: “Isto uma arma que em tempos enterrara num
de Monsanto). Sem resultados concretos no é inglório. Não só eles conhecem a zona terreno perto da sua casa.
que dizia respeito à captura dos evadidos melhor do que as palmas das mãos como Dias depois, soube-se que tinha sido a
era preciso fazer alguma coisa. se aproveitam de muitas fraquezas nossas. mulher de Faustino a desenterrar a arma e
A batata não estava quente, estava em Estão é a dar-me um grande baile.” a entregá-la a uma irmã de Raposinho e à
chamas. Um informador da prisão dizia ao Para confundir ainda mais as autorida- mulher de Vítor Cavaco, que posteriormen-
DN que o aparecimento da arma nas mãos des, multiplicavam-se as falsas pistas e os te tinham introduzido a pistola na prisão
do Raposinho era “muito estranho” – “Há avistamentos um pouco por todo o país. através de outro recluso. Na mesma altu-
um traidor no meio disto. Nós gostaríamos Uma das denúncias era a de que um dos ra, por coincidência, o Correio da Manhã
de saber quem é.” Nessa altura, a imprensa fugitivos andaria a passear com o filho às publicava uma carta deixada por Augusto
divulgou o primeiro suspeito de auxiliar os cavalitas numa vila perto de Faro. Afinal, Ramalho, que se suicidara durante o cerco
reclusos. Teria sido um educador da cadeia era o irmão de um deles. Numa discoteca em Quarteira. A carta era quase um mani-
a levar a arma para o interior a troco de perto de Ourique teriam sido vistos cinco festo sociológico: “É absolutamente verdade
duzentos contos pagos por Germano Rapo- dos seis fugitivos. Três homens que tinham que não somos nenhuns meninos do coro,
sinho. As funções de um educador passavam jantado num restaurante em Lagos sem pa- mas também lhes afirmo que não somos os
por acompanhar os reclusos, organizar os gar a conta também tinham sido apontados terríveis criminosos de que todos falam.”
tempos livres e emitir pareceres sobre o como fazendo parte do bando de fugitivos. Num registo filosófico e humanista,
comportamento e liberdade condicional. Em Lagos, a empregada de uma sapataria culpava o sistema por aquilo em que se
Dizia-se também que o educador em causa entrou em pânico pensando que um homem tinham tornado: “Foram as cadeias que
não teria o cadastro limpo e que teria sido que pedira para experimentar uns sapa- destruíram o que de bom nós tínhamos,
mesmo acusado de violação da filha de um tos tamanho 42 era Germano Raposinho. que nos transformaram naquilo que pre-
colega. As autoridades não confirmavam A polícia encontrou o indivíduo à noite, LUSA / ANTÓNIO COTRIM
sentemente somos.” Acrescentava que a
nenhuma das informações, mas os efeitos acompanhado de outro. Não resistiram às “sangrenta evasão de Pinheiro da Cruz
para a imagem da cadeia e da respectiva autoridades e depois descobriu-se que se uns perdidos. Tudo bem-disposto! Ainda terça-feira, dia 5 de Agosto, foi montado foi um reflexo do desespero, da raiva e
direcção eram claramente negativos. tratava de dois pregadores do evangelho por cima havia montes de carne assada e um cerco ao anexo na Rua da Cabine, num ● Já depois da captura, os Cavacos continuaram a ser figuras mediáticas. Esta é da revolta de homens maltratados, que
que aparentemente sofriam de perturba- roupa com fartura nos carros que tínhamos lugar a que curiosamente chamavam “zona não pretendiam mais do que a almejada
A perseguição ções mentais. roubado aos espanhóis e a uns portugueses. dos cavacos”, porque havia ali muita lenha. uma foto do julgamento, tirada a 2 de Novembro de 1988, no Tribunal de Grândola. e sagrada liberdade”. Mais importante,
Fartámo-nos de rir com aquilo.” A polícia tentou negociar com os homens, de um ponto de vista da investigação, era
A 30 de Julho, sob um clima de grande Regressou no sábado, 2 de agosto. Tinha desconhecendo ainda quantos estavam Cruz desde 1974, foi demitido e enviado Reboleira, também chegava ao fim a fuga Raposinho, que estava no apartamento, a a confirmação definitiva de que os guar-
comoção, revolta e medo dos populares,
A primeira captura planos de fugir para o Brasil e contou à barricados. Ramalho e Gaspar, os únicos para Lisboa por “conveniência de serviço” de Germano Raposinho e Carlos da Mal- entregar-se. Nenhum dos dois ofereceu re- das tinham sido baleados pela pistola de
foram a enterrar os três guardas prisio- A polícia acreditava que, naquela altura, irmã que os Cavacos se tinham separado do ocupantes do anexo, decidiram responder devido a “declarações e actuações desfa- veira. Ao contrário do que as autoridades sistência. O repórter do vespertino contava Faustino Cavaco. A imprensa dizia que a
nais abatidos, dois em Grândola e um em os seis homens já se tivessem separado. grupo: “Os sacanas saíram os dois, numa a tiros de metralhadora. “Parecia o far- sadas da realidade”. O ministro da Justiça tinham divulgado, os dois tinham mesmo que a pacatez suburbana da Reboleira tinha arma, uma Walter de calibre 7.65, teria
Melides. Luís Emílio Ambrósio, Manuel Juntos, eram um alvo mais fácil, embora motorizada, para irem buscar documentos -west”, disseram as testemunhas. A troca era claro: “Os evadidos da Colónia Penal de conseguido entrar em Lisboa e sempre com sido alterada pela chegada de inúmeros pertencido a Manuel Laginha, o agente
Pereira Matias Espada e Arlindo Pereira ainda esquivo. Já tinham cometido vários e papéis para a gente todos e deram mas foi de tiros com a polícia terá durado cerca Pinheiro da Cruz gozavam de uma situação o mesmo carro, o Toyota Corolla, ao qual carros da polícia, incluindo os “supermira- da PSP e comparsa do bando de Faustino
dos Santos deixavam viúvas e dois filhos erros, mas com sorte e alguma inépcia das à sola, nunca mais lhes pusemos os olhos de 45 minutos, ao fim dos quais Gaspar prisional profundamente anormal, que tem só tinham mudado a matrícula. Diriam mais fiori” da PJ: “Por um dia, a Reboleira saía Cavaco, assassinado por este em 1984 e
cada um deles. No cemitério de Grândola, autoridades nenhum fora suficientemente em cima.” Pediu também à irmã que lhes resolveu entregar-se. Ramalho disse-lhe de ter responsáveis”. Mais do que os outros, tarde que estiveram quase a ser mandados do triste anonimato de dormitório, para cujo corpo fora encontrado na serra do
o padre rogava a Deus: “Senhor, abri-lhes grave para levar à sua captura. De uma arranjasse um lugar para se esconderem. que não seria capturado. Quando Gaspar era esse o caso de Germano Raposinho. O parar numa operação stop na Ponte 25 de se converter em mais um palco das acções Caldeirão. Estava perto da verdade.
as portas do paraíso.” forma ou de outra, tinham conseguido Maria Helena Raposinho alugou um anexo apareceu na rua, ouviu-se um tiro. O amigo Expresso registou declarações dos guardas Abril destinada a apanhá-los, mas que a po- policiais com vista à recaptura dos evadidos A 14 de Agosto, certamente motivada
Logo no dia da fuga, tinha sido encontra- escapar. Só que a sorte não podia durar na Rua da Cabine, em Quarteira. Foi aí que, tinha-se suicidado. prisionais que o vigiavam há nove anos e lícia, convencida de que iriam tentar entrar de Pinheiro da Cruz.” pelas informações de Raposinho, a polícia
do num comboio que chegara ao Barreiro para sempre e chegaria a altura em que um no domingo, se refugiaram os quatro fugi- Nos dias seguintes, familiares de Augusto que o classificavam como um preso exem- em Lisboa dentro de um camião, mandara O inspector da PJ responsável pelas in- delimitara um (enorme) triângulo no Al-
vindo de Beja um carregador para oito mu- erro seria decisivo. Esse erro foi cometido tivos que permaneciam juntos: Raposinho, Ramalho levantaram dúvidas quanto à tese plar, “invulgarmente comunicativo e com seguir o carro. Depois tinham-se instalado vestigações, Sousa Martins, afirmou que garve – entre São Marcos da Serra, Loulé e
nições de nove milímetros, calibre idêntico pelo elemento mais provável, Germano Carlos da Malveira e os dois ex-pára-que- de suicídio, mas alegavam não ter dinheiro simpatias generalizadas”. Segundo o jornal, num apartamento propriedade do marido “em tempos um cadastrado com ligações Alcoutim – onde acreditava que os Cavacos
a três das cinco armas roubadas do armeiro, Raposinho, o “exibicionista puro”. distas, Augusto Ramalho e José Fernandes para apurar os factos. “A polícia é que te ma- a opinião era partilhada por Silvano da da afilhada de Carlos. De acordo com uma aos homens em fuga tivera aquele aparta- estariam escondidos. A captura estaria por
mas a polícia acreditava tratar-se de uma Na noite de 1 de Agosto, às duas da ma- Gaspar. Na segunda-feira à tarde, os dois tou… dizem que te mataste mas é mentira”, Costa que acreditou sempre que “era pos- vizinha, tinham o frigorífico “cheio de co- mento sob aluguer”, uma informação que horas. Não estava. Um mês depois da fuga,
manobra de diversão e continuava con- nhã, Maria Helena Raposinho, irmã de primeiros saíram do Algarve em direcção gritou uma familiar durante o funeral, em sível recuperá-lo” e, como tal, o colocou em mida, tinham um saco de batatas ao pé do tinha sido decisiva para a captura dos dois não havia rasto dos dois homens mais procu-
vencida de que os seis homens tinham ido Germano, ouviu alguém bater à porta da a Lisboa no carro da mãe de Raposinho, Setúbal. No entanto, os resultados da autóp- regime especial. Agora, pagava essa decisão fogão e até tinham Martini”. evadidos. Mas mesmo que isso fosse verda- rados do país e já nem havia a certeza de que
para o Algarve. E estava certa. No mesmo sua casa, em Quarteira. Era o irmão. Estava um Toyota Corolla azul-metalizado, supos- sia confirmavam o suicídio. A 7 de Agosto, com o afastamento das suas funções. O Diário de Lisboa contava que os dois de, o facto é que, uma vez mais, a polícia estivessem no Algarve. Tanto podiam estar
dia do enterro dos guardas, o Ford Fiesta com saudades da família, sobretudo dos so- tamente para entrarem em contacto com na sequência da fuga de Raposinho e de evadidos tinham passado a semana a ler tinha conseguido arrancar a informação a a Norte como no estrangeiro. O semanário
de matrícula espanhola foi encontrado na brinhos. Contou-lhe como tinham passado antigos comparsas de Carlos da Malveira. Carlos da Malveira, foi montado um enorme jornais, a ouvir rádio e a ver televisão e Maria Helena Raposinho. No sábado antes O Jornal adiantava a possibilidade de terem
serra algarvia, na Quinta do Freixo, entre os dias em fuga: “Estávamos escondidos no No mesmo dia, a polícia levou Maria He- dispositivo policial para controlar todos os
Raposinho enjaulado revistas pornográficas. Carlos da Malveira de ser apanhado, Raposinho ligou à irmã e fugido a nado para Espanha e o Expresso
São Bartolomeu de Messines e Paderne, a cemitério, o carro guardado debaixo de lena Raposinho para interrogatório. Ao fim acessos a Lisboa. O Toyota Corolla teria sido A 10 de Agosto terminava a Volta a Portugal foi apanhado por volta das oito da manhã deixou-lhe um número de telefone, caso ela ironizava dizendo que “talvez nem sejam os
180 quilómetros de Pinheiro da Cruz. Só umas árvores, ali perto, e quando vimos de algumas horas, as autoridades tinham a visto pela última vez na recta de Pegões. com a consagração de Marco Chagas, que logo depois de ter comprado o Correio da precisasse de entrar em contacto com ele. Cavacos quem esteja a meter mais água”. Já
dias mais tarde é que a imprensa reparou o helicóptero andar às voltas lá por cima, primeira informação exacta sobre o para- No dia seguinte, rolava a primeira cabeça. assim conquistava a sua quarta vitória na Manhã e A Bola num quiosque. Poucos No domingo, a polícia já sabia onde os O Século dizia que estariam escondidos na
num pormenor inquietante e comprome- à nossa procura, desatámos a rir que nem deiro dos fugitivos. Às primeiras horas de Silvano da Costa, director de Pinheiro da prova, um recorde. Na manhã seguinte, na minutos depois, as autoridades convenciam homens se encontravam. Maria Helena Ra- serra do Caldeirão, numa das muitas aldeias
84 FAUSTINO CAVACO FAUSTINO CAVACO 85

reclusos eram avisados sobre aquilo que tedor para as autoridades. Aquele lugar posinho contou tudo à revista do Expresso
os esperava: “Isto aqui é uma cadeia para ficava a três quilómetros da casa de Faustino de 15 de Agosto: “Não resisti à selvajaria de-
endireitar toda a gente. Se algum de vocês Cavaco. No interior do carro havia manchas les, sabe? Fizeram-nos a vida negra, reben-
está com más ideias, aqui usa-se a lei do de sangue, o que levou a polícia a concluir taram com a casa da minha mãe, puseram
mais forte. Portanto, se algum tiver ma- que um deles estaria ferido embora não polícias lá dentro dia e noite, sem respeito
nias e se armar em esperto ou engraçado precisasse de tratamento médico urgente. por nada nem ninguém, ameaçaram-nos de
sofrerá as consequências. Aqui é à base da Levantava-se também a hipótese de esses toda a maneira. E eu não aguentei e acabei
pancada, não se brinca, tudo quanto se ferimentos terem sido causados por um por confessar onde é que eles estavam.”
faz é a sério. E mais, aqui também não há desentendimento entre os fugitivos, o que E acrescentava: “É preciso dar a conhecer
homens fortes. Se algum de vocês veio com acabou por não se confirmar. o que é esta polícia e os atropelos que faz a
essa ideia aconselho a deixarem os tomates Pouco depois, perto de Almancil, as au- torto e a direito só para dar a entender que
lá fora. Se não o fizerem, irão saber o que toridades encontraram o segundo carro sabe tudo, que tem tudo controlado, que
é o regime de Pinheiro da Cruz.” usado na fuga, o Ford Escort da família que é a maior! E é mentira! Só à nossa custa é
Mesmo que não fosse possível confirmar ia de férias para o Algarve. Na bagageira que conseguiram apanhá-los!” Para Maria
estas afirmações, era assim que os presidiá- estava uma caçadeira e carregadores, além Helena, a prova mais cabal da desorien-
rios viam aquela cadeia. Com a fuga de seis de comida e roupas dos legítimos donos tação das autoridades era o facto de não
reclusos, surgiam algumas questões: como do carro, mas de que os seis se tinham ser- fazerem a mínima ideia do paradeiro dos
é que num regime tão severo Germano vido. Apesar de todo o aparato policial, Cavacos. A polícia negou todas as acusações
Raposinho andava à vontade? Mais grave das barreiras levantadas nas estradas e de de brutalidade, mas não podia esconder as
ainda era a questão da arma utilizada para um helicóptero a participar nas buscas, os dificuldades para capturar Faustino e Vítor.
dar início à fuga: como é que a arma tinha evadidos conseguiram sacar outro carro,
sido introduzida numa prisão de segurança desta vez um Mitsubishi Colt de matrícula
máxima, indo parar às mãos de condenados luxemburguesa, que seria encontrado no
Os Cavacos invisíveis
altamente perigosos? dia seguinte, 31 de Julho, perto do campo de Com a captura de quatro dos seis fugitivos,
Enquanto os serviços prisionais denun- golfe de Vilamoura. No interior da viatura, outros pormenores sobre a fuga começa-
ciavam as más condições e a sobrelotação um bilhete de agradecimento destinado ao vam a emergir. Os serviços prisionais des-
das cadeias, o ministro da Justiça, Mário proprietário. mentiam inequivocamente o envolvimento
Raposo, não tinha dúvidas de que a fuga se As manchetes do Diário de Notícias dos de qualquer funcionário na preparação da
devera a “um conjunto de falhas humanas”. dias 1 e 2 de Agosto revelavam a montanha- fuga. Raposinho tinha afinal usado uma
Essa constatação não o impediu de anun- -russa em que se tornara a perseguição. Dia pistola de madeira pintada com graxa e
ciar, no dia seguinte à fuga, a contratação 1: “Apertado cerco no Algarve para detec- feita na oficina de carpintaria da prisão.
de trezentos novos guardas prisionais e a tar os bandidos.” Dia 2: “Caça ao homem O autor dos disparos mortais tinha sido
construção de três novas cadeias, uma das esmorece sem resultados.” Um agente da mesmo Faustino Cavaco, usando para tal
quais de segurança máxima em Lisboa (a Judiciária confessava ao Expresso: “Isto uma arma que em tempos enterrara num
de Monsanto). Sem resultados concretos no é inglório. Não só eles conhecem a zona terreno perto da sua casa.
que dizia respeito à captura dos evadidos melhor do que as palmas das mãos como Dias depois, soube-se que tinha sido a
era preciso fazer alguma coisa. se aproveitam de muitas fraquezas nossas. mulher de Faustino a desenterrar a arma e
A batata não estava quente, estava em Estão é a dar-me um grande baile.” a entregá-la a uma irmã de Raposinho e à
chamas. Um informador da prisão dizia ao Para confundir ainda mais as autorida- mulher de Vítor Cavaco, que posteriormen-
DN que o aparecimento da arma nas mãos des, multiplicavam-se as falsas pistas e os te tinham introduzido a pistola na prisão
do Raposinho era “muito estranho” – “Há avistamentos um pouco por todo o país. através de outro recluso. Na mesma altu-
um traidor no meio disto. Nós gostaríamos Uma das denúncias era a de que um dos ra, por coincidência, o Correio da Manhã
de saber quem é.” Nessa altura, a imprensa fugitivos andaria a passear com o filho às publicava uma carta deixada por Augusto
divulgou o primeiro suspeito de auxiliar os cavalitas numa vila perto de Faro. Afinal, Ramalho, que se suicidara durante o cerco
reclusos. Teria sido um educador da cadeia era o irmão de um deles. Numa discoteca em Quarteira. A carta era quase um mani-
a levar a arma para o interior a troco de perto de Ourique teriam sido vistos cinco festo sociológico: “É absolutamente verdade
duzentos contos pagos por Germano Rapo- dos seis fugitivos. Três homens que tinham que não somos nenhuns meninos do coro,
sinho. As funções de um educador passavam jantado num restaurante em Lagos sem pa- mas também lhes afirmo que não somos os
por acompanhar os reclusos, organizar os gar a conta também tinham sido apontados terríveis criminosos de que todos falam.”
tempos livres e emitir pareceres sobre o como fazendo parte do bando de fugitivos. Num registo filosófico e humanista,
comportamento e liberdade condicional. Em Lagos, a empregada de uma sapataria culpava o sistema por aquilo em que se
Dizia-se também que o educador em causa entrou em pânico pensando que um homem tinham tornado: “Foram as cadeias que
não teria o cadastro limpo e que teria sido que pedira para experimentar uns sapa- destruíram o que de bom nós tínhamos,
mesmo acusado de violação da filha de um tos tamanho 42 era Germano Raposinho. que nos transformaram naquilo que pre-
colega. As autoridades não confirmavam A polícia encontrou o indivíduo à noite, LUSA / ANTÓNIO COTRIM
sentemente somos.” Acrescentava que a
nenhuma das informações, mas os efeitos acompanhado de outro. Não resistiram às “sangrenta evasão de Pinheiro da Cruz
para a imagem da cadeia e da respectiva autoridades e depois descobriu-se que se uns perdidos. Tudo bem-disposto! Ainda terça-feira, dia 5 de Agosto, foi montado foi um reflexo do desespero, da raiva e
direcção eram claramente negativos. tratava de dois pregadores do evangelho por cima havia montes de carne assada e um cerco ao anexo na Rua da Cabine, num ● Já depois da captura, os Cavacos continuaram a ser figuras mediáticas. Esta é da revolta de homens maltratados, que
que aparentemente sofriam de perturba- roupa com fartura nos carros que tínhamos lugar a que curiosamente chamavam “zona não pretendiam mais do que a almejada
A perseguição ções mentais. roubado aos espanhóis e a uns portugueses. dos cavacos”, porque havia ali muita lenha. uma foto do julgamento, tirada a 2 de Novembro de 1988, no Tribunal de Grândola. e sagrada liberdade”. Mais importante,
Fartámo-nos de rir com aquilo.” A polícia tentou negociar com os homens, de um ponto de vista da investigação, era
A 30 de Julho, sob um clima de grande Regressou no sábado, 2 de agosto. Tinha desconhecendo ainda quantos estavam Cruz desde 1974, foi demitido e enviado Reboleira, também chegava ao fim a fuga Raposinho, que estava no apartamento, a a confirmação definitiva de que os guar-
comoção, revolta e medo dos populares,
A primeira captura planos de fugir para o Brasil e contou à barricados. Ramalho e Gaspar, os únicos para Lisboa por “conveniência de serviço” de Germano Raposinho e Carlos da Mal- entregar-se. Nenhum dos dois ofereceu re- das tinham sido baleados pela pistola de
foram a enterrar os três guardas prisio- A polícia acreditava que, naquela altura, irmã que os Cavacos se tinham separado do ocupantes do anexo, decidiram responder devido a “declarações e actuações desfa- veira. Ao contrário do que as autoridades sistência. O repórter do vespertino contava Faustino Cavaco. A imprensa dizia que a
nais abatidos, dois em Grândola e um em os seis homens já se tivessem separado. grupo: “Os sacanas saíram os dois, numa a tiros de metralhadora. “Parecia o far- sadas da realidade”. O ministro da Justiça tinham divulgado, os dois tinham mesmo que a pacatez suburbana da Reboleira tinha arma, uma Walter de calibre 7.65, teria
Melides. Luís Emílio Ambrósio, Manuel Juntos, eram um alvo mais fácil, embora motorizada, para irem buscar documentos -west”, disseram as testemunhas. A troca era claro: “Os evadidos da Colónia Penal de conseguido entrar em Lisboa e sempre com sido alterada pela chegada de inúmeros pertencido a Manuel Laginha, o agente
Pereira Matias Espada e Arlindo Pereira ainda esquivo. Já tinham cometido vários e papéis para a gente todos e deram mas foi de tiros com a polícia terá durado cerca Pinheiro da Cruz gozavam de uma situação o mesmo carro, o Toyota Corolla, ao qual carros da polícia, incluindo os “supermira- da PSP e comparsa do bando de Faustino
dos Santos deixavam viúvas e dois filhos erros, mas com sorte e alguma inépcia das à sola, nunca mais lhes pusemos os olhos de 45 minutos, ao fim dos quais Gaspar prisional profundamente anormal, que tem só tinham mudado a matrícula. Diriam mais fiori” da PJ: “Por um dia, a Reboleira saía Cavaco, assassinado por este em 1984 e
cada um deles. No cemitério de Grândola, autoridades nenhum fora suficientemente em cima.” Pediu também à irmã que lhes resolveu entregar-se. Ramalho disse-lhe de ter responsáveis”. Mais do que os outros, tarde que estiveram quase a ser mandados do triste anonimato de dormitório, para cujo corpo fora encontrado na serra do
o padre rogava a Deus: “Senhor, abri-lhes grave para levar à sua captura. De uma arranjasse um lugar para se esconderem. que não seria capturado. Quando Gaspar era esse o caso de Germano Raposinho. O parar numa operação stop na Ponte 25 de se converter em mais um palco das acções Caldeirão. Estava perto da verdade.
as portas do paraíso.” forma ou de outra, tinham conseguido Maria Helena Raposinho alugou um anexo apareceu na rua, ouviu-se um tiro. O amigo Expresso registou declarações dos guardas Abril destinada a apanhá-los, mas que a po- policiais com vista à recaptura dos evadidos A 14 de Agosto, certamente motivada
Logo no dia da fuga, tinha sido encontra- escapar. Só que a sorte não podia durar na Rua da Cabine, em Quarteira. Foi aí que, tinha-se suicidado. prisionais que o vigiavam há nove anos e lícia, convencida de que iriam tentar entrar de Pinheiro da Cruz.” pelas informações de Raposinho, a polícia
do num comboio que chegara ao Barreiro para sempre e chegaria a altura em que um no domingo, se refugiaram os quatro fugi- Nos dias seguintes, familiares de Augusto que o classificavam como um preso exem- em Lisboa dentro de um camião, mandara O inspector da PJ responsável pelas in- delimitara um (enorme) triângulo no Al-
vindo de Beja um carregador para oito mu- erro seria decisivo. Esse erro foi cometido tivos que permaneciam juntos: Raposinho, Ramalho levantaram dúvidas quanto à tese plar, “invulgarmente comunicativo e com seguir o carro. Depois tinham-se instalado vestigações, Sousa Martins, afirmou que garve – entre São Marcos da Serra, Loulé e
nições de nove milímetros, calibre idêntico pelo elemento mais provável, Germano Carlos da Malveira e os dois ex-pára-que- de suicídio, mas alegavam não ter dinheiro simpatias generalizadas”. Segundo o jornal, num apartamento propriedade do marido “em tempos um cadastrado com ligações Alcoutim – onde acreditava que os Cavacos
a três das cinco armas roubadas do armeiro, Raposinho, o “exibicionista puro”. distas, Augusto Ramalho e José Fernandes para apurar os factos. “A polícia é que te ma- a opinião era partilhada por Silvano da da afilhada de Carlos. De acordo com uma aos homens em fuga tivera aquele aparta- estariam escondidos. A captura estaria por
mas a polícia acreditava tratar-se de uma Na noite de 1 de Agosto, às duas da ma- Gaspar. Na segunda-feira à tarde, os dois tou… dizem que te mataste mas é mentira”, Costa que acreditou sempre que “era pos- vizinha, tinham o frigorífico “cheio de co- mento sob aluguer”, uma informação que horas. Não estava. Um mês depois da fuga,
manobra de diversão e continuava con- nhã, Maria Helena Raposinho, irmã de primeiros saíram do Algarve em direcção gritou uma familiar durante o funeral, em sível recuperá-lo” e, como tal, o colocou em mida, tinham um saco de batatas ao pé do tinha sido decisiva para a captura dos dois não havia rasto dos dois homens mais procu-
vencida de que os seis homens tinham ido Germano, ouviu alguém bater à porta da a Lisboa no carro da mãe de Raposinho, Setúbal. No entanto, os resultados da autóp- regime especial. Agora, pagava essa decisão fogão e até tinham Martini”. evadidos. Mas mesmo que isso fosse verda- rados do país e já nem havia a certeza de que
para o Algarve. E estava certa. No mesmo sua casa, em Quarteira. Era o irmão. Estava um Toyota Corolla azul-metalizado, supos- sia confirmavam o suicídio. A 7 de Agosto, com o afastamento das suas funções. O Diário de Lisboa contava que os dois de, o facto é que, uma vez mais, a polícia estivessem no Algarve. Tanto podiam estar
dia do enterro dos guardas, o Ford Fiesta com saudades da família, sobretudo dos so- tamente para entrarem em contacto com na sequência da fuga de Raposinho e de evadidos tinham passado a semana a ler tinha conseguido arrancar a informação a a Norte como no estrangeiro. O semanário
de matrícula espanhola foi encontrado na brinhos. Contou-lhe como tinham passado antigos comparsas de Carlos da Malveira. Carlos da Malveira, foi montado um enorme jornais, a ouvir rádio e a ver televisão e Maria Helena Raposinho. No sábado antes O Jornal adiantava a possibilidade de terem
serra algarvia, na Quinta do Freixo, entre os dias em fuga: “Estávamos escondidos no No mesmo dia, a polícia levou Maria He- dispositivo policial para controlar todos os
Raposinho enjaulado revistas pornográficas. Carlos da Malveira de ser apanhado, Raposinho ligou à irmã e fugido a nado para Espanha e o Expresso
São Bartolomeu de Messines e Paderne, a cemitério, o carro guardado debaixo de lena Raposinho para interrogatório. Ao fim acessos a Lisboa. O Toyota Corolla teria sido A 10 de Agosto terminava a Volta a Portugal foi apanhado por volta das oito da manhã deixou-lhe um número de telefone, caso ela ironizava dizendo que “talvez nem sejam os
180 quilómetros de Pinheiro da Cruz. Só umas árvores, ali perto, e quando vimos de algumas horas, as autoridades tinham a visto pela última vez na recta de Pegões. com a consagração de Marco Chagas, que logo depois de ter comprado o Correio da precisasse de entrar em contacto com ele. Cavacos quem esteja a meter mais água”. Já
dias mais tarde é que a imprensa reparou o helicóptero andar às voltas lá por cima, primeira informação exacta sobre o para- No dia seguinte, rolava a primeira cabeça. assim conquistava a sua quarta vitória na Manhã e A Bola num quiosque. Poucos No domingo, a polícia já sabia onde os O Século dizia que estariam escondidos na
num pormenor inquietante e comprome- à nossa procura, desatámos a rir que nem deiro dos fugitivos. Às primeiras horas de Silvano da Costa, director de Pinheiro da prova, um recorde. Na manhã seguinte, na minutos depois, as autoridades convenciam homens se encontravam. Maria Helena Ra- serra do Caldeirão, numa das muitas aldeias
106 QUIM BARREIROS CRÓNICA 107

Não era olhado de lado pelos fadistas? Em 2017 vai fazer 70 anos. Quando é

Optimismos
Ah pois. Naquele tempo havia casas que se imagina a largar a estrada e o
de fado que eram exatamente catedrais acordeão?
do fado. Entrar um acordeonista numa Quando me sentir a mais em cima de um
casa daquelas era um sacrilégio para os palco, podes ter a certeza de que arrumo

antigos e novos
fadistas mais velhos, não é? O tio Alfredo as botas. Agora sinto que ainda sou capaz
Marceneiro era contra a minha presença de fazer um bom espetáculo, com a minha
lá. Dizia-me: “Acordeonista aqui nas casas banda. Vi gente famosa que se andou a
de fados... Eu não gosto muito, mas pronto, arrastar em palco e não quero que isso me
és bom rapaz, toda a gente gosta de ti.” aconteça. Vou saber parar. Acho que nem
a minha família me admite isso.
E ao longo da carreira, foi sentindo
olhares superiores? Quem pensa em Quim Barreiros pensa
Não, não. Participei em muitas caravanas inevitavelmente em festa e alegria...
de artistas portugueses populares, que É que eu não admito tristezas. Na minha
naquele tempo iam ter com as comuni- vida tenho amigos e amigas que a primeira
dades portuguesas para todo o mundo. coisa que me dizem é: “Olha, sabes? Morreu
Acompanhei o Francisco José, Tony de fulano e beltrano, tenho aqui uma dor...” Eu
Matos, Duo Ouro Negro, Trio Odemira, travo logo. Sou uma pessoa positiva. Muitas
Paco Bandeira, eu sei lá. Fazia a minha vezes convidam-se para ir a hospitais, lares
parte e eles faziam a deles. Sempre senti de idosos, para estar um bocadinho com as
RICARDO CASTELO

amizade por parte de todos. O meu tipo de pessoas, e francamente não me sinto bem.
música não tinha nada a ver com o deles, Dou sempre uma desculpa. Agora se me
eu era um acordeonista, um tocador de disseres para irmos a uma maternidade,

Paulo Tunhas
sanfona, um brejeiro. Sempre me dei e dou é o contrário. Gosto dos bebés, da vida!
bem com toda a malta da minha profissão. Gosto de ouvir um bebé a chorar. Quando
● Quim Barreiros é um homem do Norte. Nasceu vou num avião há pessoas que se sentem
O primeiro disco que lançou, em 1971, incomodadas com o choro de um bebé e
era de instrumentais da música tra- em Vila Praia de Âncora e é aí que ainda hoje vive e eu não, isso faz-me feliz. Vivi em Lisboa
faz negócio: tem uma albergaria em frente à praia.
Alguém que se sente fisicamente bem, tende naturalmente
dicional portuguesa. Quando é que num apartamento onde o bebé do andar
entrou no mundo dos trocadilhos de cima chorava toda a noite. Acordava e
brejeiros? brejeirada. Isto é nosso e por isso é que E em relação a outros músicos portu- sentia-me bem, para mim o choro de um

para o optimismo; alguém que se sente fisicamente mal,


Exatamente quando, passados dois ou tem piada. Comecei a cantar novo e já o gueses que lhe copiaram o estilo, que bebé soa-me a música.
três anos de andar nas comunidades com Pedro Homem de Melo me dizia: “Quim, andam de acordeão na mão e fazem
esses artistas, percebi que podia fazer tu canta tudo de maneira a que as crianças trocadilhos. Sente-se bem com isso? Quantas horas dorme por noite?
espetáculos sozinho mas, para isso, preci- não entendam!” “Pronto, sotôr, eu vou Acho que nem copiaram. Se copiassem Olha, sem comprimidos durmo quatro.
sava de cantar. Porque só tocar acordeão
não dava. Comecei a olhar para o lado e
via grandes acordeonistas portugueses
fazer isso.” E é o que faço. De maneira que
as crianças gostam das minhas cantigas,
mas não as entendem. Bonito é eles mais
eu até me sentia feliz. Há aí uma rapazia-
da... Olha, governam-se e fazem eles muito
bem. O mercado é tão grande que dá para
Quando tomo Xanax, ou Lorenin, ou uma
porcaria qualquer, durmo seis ou sete. para o pessimismo. Quem pensa, procurando abstrair-
que ficavam parados. O Carlos Areias, o
Isidro Baptista, a própria Eugénia Lima.
Comecei a fazer aquilo e o sucesso foi
tarde descobrirem: “Ah, ele quis dizer
aquilo!”. Olha, a frase do “entra a gosto”
[da música “Qual é o Melhor Dia Para
todos, e alguns deles até me telefonam: “Ó
sr. Quim, olhe, como é que eu devo fazer,
faço assim?”. Estou farto de os aturar, mas
Gosta de sair?
Gostava de ir a uma discoteca beber um
copo, mas o meu maior problema é que
-se do estado, feliz ou infeliz, das suas vísceras, não é
optimista nem pessimista.
tão grande que a partir daí nunca mais Casar”] foi-me dada por um reitor da até os ajudo. toda a gente quer tirar selfies comigo, não
deixei de gravar. Universidade de Vila Real! Ele disse-me me deixam estar descansado. Gostava de
qualquer coisa de entrar a gosto, para Então se, por exemplo, a Rosinha lhe ser um cidadão qualquer e de poder entrar,
Podia ter começado a cantar sobre o me dar o toque, mas eu não atingi logo ligar, não desliga o telefone. sentar-me e estar ali um bocadinho sem
amor, ou sobre outra coisa qualquer. também. Ele ficou calado e então é que eu Sou muito amigo da Rosinha e fico satis- chatices, mas não dá. Qual foi a maior contribuição bilidade do mundo e motivo de conflito agora: como a primeira edição surgiu sem o particularmente enaltecido, e o pessimis-
Porquê os trocadilhos sobre sexo? percebi: “Eh pá! Ó professor Mascarenhas, feito que ela leve no pacote [risos]. de Portugal para o pensamento moderno? entre os dois tipos de explicação possíveis, nome de Leibniz nela aparecer, aprendi no mo extremamente mal visto. Marcelo é um
Ó minha querida, isto é muito simples. isso vai dar uma canção”, disse-lhe logo. Aqui em Vila Praia se calhar consegue Não é talvez bom para a auto-estima, como a religiosa e a científica. Kant sugeria uma outro dia, houve quem julgasse que “teo- caso exemplar. Vê-se a si próprio como um
Cada um tem de saber para o que nas- Gosta do reconhecimento que tem? com mais facilidade. agora se diz, mas foi indisputavelmente o explicação científica, enquanto jansenistas diceia” fosse um pseudónimo do autor. “optimista racional”, um conceito difícil de
ce. Eu comecei a tocar aos oito anos no Sai tudo da sua cabeça? Gosto, mas sou contra o elogio. Não gosto Não tenho tempo. Um homem que faz terramoto de Lisboa de 1755. É verdade e jesuítas ofereciam versões religiosas em A doutrina de Leibniz não esperou pelo aprofundar, porque junta dois termos que
Conjunto Alegria, com o meu pai, tenho Eu escrevo, mas há várias letras que me que me elogiem, que digam que sou bom. duzentas e tal festas por ano, que tem que a responsabilidade dessa nossa no- que mutuamente se acusavam: os jansenis- terramoto de Lisboa para ser criticada. não comunicam entre si, e vê em António
essa escola toda de conjuntos musicais, de são enviadas por artistas de forró do nor- Eu não sou nada bom, sou igual ao teu discos e cantigas para fazer, mais a vida toriedade não nos pode ser atribuída, co- tas sustentavam que, sendo Portugal um Em particular, um jesuíta francês, o padre Costa um “optimista crónico e ligeiramente
grupos folclóricos, portanto eu sei do que deste do Brasil. Lá há muitos Quim Barrei- pai, o teu pai é igual a mim, somos os dois familiar, a albergaria, não dá. E também lectiva ou individualmente. Os dois únicos viveiro de jesuítas, Deus quisera esmagar Louis-Bertrand Castel, em 1737, criticou-a, irritante”. No fundo, a acreditar na sinceri-
o povo gosta. Quem são os emigrantes? ros. “A Garagem da Vizinha”, assim como a iguaizinhos. E homenagens, então, fujo nunca fui homem de beber copos. Tenho candidatos, Deus e a natureza, não consta a Inquisição (prova: o número de igrejas e, nessa crítica, inventou uma palavra com dade dos propósitos, seriam duas variações
São pessoas que saíram da aldeia. Eu sei “A Cabritinha” é de origem brasileira, não é disso! Quantas vezes me telefonam a dizer 69 anos e não sei o que é apanhar uma que sejam portugueses. Mas nada como o destruídas e o facto de uma rua inteira indiscutível futuro, para designar a dou- do Dr. Pangloss, uma fraca e outra forte.
o que é que eles querem, que é aquilo que minha. Nem letra nem música. O “Bacalhau que me querem homenagear, até aqui de bebedeira na vida. terramoto de Lisboa pôs tanto as cabeças com bordéis ter sido deixada intacta); os trina combatida: “optimismo”. A palavra Estas elocubrações não teriam em si mal
eu lhes dou. E, ao mesmo tempo, sei as à Portuguesa” e o “Chupa Teresa” também Espanha. Não quero nada disso. pensantes da Europa, de Voltaire a Kant, a jesuítas, pelo seu lado, ripostaram que o ficou, e já o título completo do Cândido de algum se não tendessem a lançar uma cor-
minhas possibilidades. Tu já imaginaste o são deles. Nunca?! falar de Portugal. Voltaire publicou em 1756 castigo divino resultaria do relaxamento Voltaire (1759) é Cândido, ou o optimismo. tina de fumo sobre os nossos problemas
Quim Barreiros a cantar o fado? Não dá, [Aparece a polícia e para junto ao carro Nunca ninguém me viu bêbado. Nunca. um Poema sobre o desastre de Lisboa, e, na das práticas inquisitoriais, algo remediável No mesmo movimento, criou-se uma cor- reais, que se estão nas tintas para opti-
eu não tenho voz para isso. Já viste o que Não me diga que o “Mestre de Culiná- de Quim Barreiros, mal estacionado. Ele Sei o que é uma má-disposição, uma ou mesma linha de resposta aos que acredi- com penitências e autos-de-fé. De qualquer rente adversa, o “contra-optimismo”, e há mismos e pessimismos e restantes subjec-
era o Quim Barreiros a cantar uma música ria” afinal é brasileiro. vai lá, mas nada feito. É preciso estacionar duas vezes na minha vida, porque bebi tavam que o nosso mundo é o melhor dos maneira, como Kant explicou depois, o quem defenda que o pessimismo de Scho- tividades viscerais. Não nos arriscamos,
do Marco Paulo? Também não dá! E eu Essa é minha, tenho muitas minhas. Ali- a viatura noutro local.] um uísque, depois um champanhe e tal, mundos, fez, no Cândido, o Dr. Pangloss terramoto pôs decisivamente em cheque penhauer, já no século xix, corresponde felizmente, a ser de novo objecto da mais
também não estou a ver o Marco Paulo a ás, se pegares nos discos podes ver de quem mas não fico bêbado, não fico é bem. Eu passar pela nossa terra para mais uma vez todas as tentativas de teodiceia, isto é, de ao estado último do desenvolvimento dessa profunda curiosidade intelectual da Euro-
cantar o “Quero Cheirar Teu Bacalhau”, são as letras e as músicas, está lá tudo. Ser o Quim Barreiros não dá direito a às vezes até gostava de estar numa festa e ser maltratado. Kant escreveu três ensaios compreender os males do mundo como um última corrente. pa pelas desagradáveis razões de 1775. Mas
nem o Carlos do Carmo a cantar “A Gara- uns privilégios junto das autoridades beber, beber, beber e ficar assim meio... a partir do terramoto (também em 1756) efeito necessário, se bem que marginal, da A verdade é que nem optimismo nem uma curiosidade menor e burocrática é
gem da Vizinha”. A primeira música que Recentemente foi notícia por ter sido locais? Mas chega ali um momento e entope, não e lembrou-se deles quando, muitos anos sabedoria divina. pessimismo são conceitos com grande in- sempre possível, por razões afins às de 2011
eu gravei destas foi “Recebi um Convite plagiado por um conjunto holandês, Não, não. Eu respeito. Eu ando muito na consigo beber mais. depois, em 1791, publicou o seu escrito O filósofo visado por Voltaire e Kant era teresse filosófico e que nunca atravessaram (ou de 1977, ou de 1983). E, a ouvir tanto
(À Casa da Jóquina)”, uma canção popu- precisamente com “A Garagem da Vi- estrada e não me lembro de apanhar uma Sobre o insucesso de todas as tentativas o maravilhoso Leibniz, que criara um sis- o espírito de Leibniz, embora tivessem falar de optimismo, com o desvio em re-
lar. Depois comecei a gravar já por minha zinha”. multa, nem aqui nem em Lisboa. Muitas Nunca teve um padre que se tenha filosóficas em matéria de teodiceia. E Kant tema filosófico de uma admirável riqueza ocupado, na sua juventude, o de Kant, algo lação à realidade que a coisa implica, uma
conta e o meu primeiro grande sucesso foi Isso não foi plágio. Sabes que há coisas vezes mandam-me parar em operações oposto à sua presença numa festa em e Voltaire foram apenas dois entre muitos. e complexidade que resultava na doutrina do qual este futuramente se arrependeu. É pessoa apanha-se a pensar que é racional
o “Franguito da Maria”, em 1975. que me interessa entrar na onda porque stop, reconhecem-me e mandam-me em- honra do santo local? Como notou uma filósofa, Susan Neiman, segundo a qual Deus, criando o Universo, até legítimo, em grande medida, supor que julgar vir algo assim e ter medo. Nem as
quanto mais se fala do bicho, melhor. En- bora. Posso soprar ao balão que nunca Já houve um padre ou dois que não qui- o acontecimento não poderia ter provoca- escolhera fazer passar à existência todos os estados de espírito ao qual se referem igrejas nem os bordéis sofreriam muito: os
Vem de uma família conservadora. tão, plágio abaixo, plágio acima, vêm cá as tenho nada. Aliás, eu ando com um balão seram que fosse cantar. Um ou outro mais do a reacção intelectual que provocou se os possíveis que, conjuntamente reunidos, têm a sua origem em condições fisiológi- nossos bolsos sim. E duma tal catástrofe
Quando o seu pai ouviu as letras não televisões e tal, mas isto é assim: eu lancei no carro igual aos deles, porque às vezes conservador. Às vezes até são as beatas, que tivesse ocorrido em outras épocas. Num constituiriam o melhor dos mundos. O mal cas. Alguém que se sente fisicamente bem, seremos mesmo responsáveis. Em especial
ficou chateado? agora o Eu Faço 69, não é? O disco sai para bebo uma cervejinha ou duas e gosto de dizem que eu sou malcriado. Nunca cantei mundo pré-moderno, o terramoto teria (metafísico, físico e moral) aparecia como tende naturalmente para o optimismo; alguns. Nem Deus nem a natureza estão
Não. Repara: se tu fores à nossa litera- a rua e amanhã tu podes pegar numa mú- saber. Mas nunca acuso nada. uma asneira na minha vida. De resto, a apenas sido prova de um justo castigo de consequência de um cálculo divino na es- alguém que se sente fisicamente mal, para já compreensivelmente disponíveis para
tura dos séculos XVI, XVII, XVIII, às can- sica dali, gravas, mas depois pagas direitos minha vida até é ser chamado por padres Deus e teria tido como efeito o reforço da colha dos possíveis que passariam a existir, o pessimismo. Quem pensa, procurando aparecerem na história como culpados.
tigas de escárnio e maldizer, estas letras e tens de pôr “música do brasileiro X” e Ainda não se cansou de percorrer tan- para participar nas festas religiosas. Ainda crença religiosa. No nosso mundo con- visando a maior beleza e harmonia do todo. abstrair-se do estado, feliz ou infeliz, das Nem sequer, como quer a nova teologia da
brejeiras estão lá todas! Há antologias de letra com autorização do brasileiro para tos quilómetros? na semana passada fui contratado pela temporâneo, a explicação recorreria ao O mal só poderia ser visto como um ingre- suas vísceras, não é optimista nem pessi- esquerda, disfarçados de Europa.
autores portugueses, do Guerra Junqueiro fazer a adaptação para holandês. Há que Quem corre por gosto não cansa. En- paróquia de Pero Pinheiro, pelo sr. padre encontro de placas tectónicas e as pessoas diente de que Deus, por razões de lógica, mista. Busca, se possível, alguma raciona-
até, que já tinham esta malandrice lá toda. pedir autorização à Associação Brasileira quanto tiver saúde... Gosto da estrada, Avelino. indignar-se-iam com a incúria do Estado não tinha maneira de se privar. A explicação lidade nos seus pensamentos. Paulo Tunhas é professor de Filosofia
Isto não é meu, isto é nosso, eu não vim de Autores, que por sua vez pede ao autor. gosto de andar de um lado para o outro. e dos seus funcionários, que poderiam ter dessa doutrina encontrava-se, na sua forma O que não impede, é claro, que os con- na Faculdade de Letras da Universidade
descobrir nada. Tu ainda hoje se fores Isto não tem nada a ver com contrafação, Não gosto é de estar parado. Parar é morrer Sara Otto Coelho é jornalista do tomado precauções que não tomaram para mais conhecida, num livro publicado em ceitos sejam usados a torto e a direito como do Porto. É autor de vários livros, entre os
a uma festa popular em Portugal ouves qualquer pessoa em todo o mundo pode e, como já viste, eu sou um gajo elétrico. Observador. Escreve a partir do Porto e, tal minorar as consequências do desastre. 1710, Ensaios de teodiceia. A palavra “teodi- se tivessem algum valor substantivo. Em quais “As Questões que Se Repetem –
os homens e as mulheres a cantarem ao gravar as minhas músicas, tem é de pôr lá Gosto que mexam comigo e gosto de mexer como Quim Barreiros, é proprietária de um Naquela altura precisa, não. O terramoto ceia”, por ele forjada, significa, a partir dos Portugal, por exemplo, são muito acari- Uma Breve História da Filosofia”,
desafio e no meio daquilo tudo lá vem uma a quem pertence. com as pessoas. acordeão. foi sentido como uma perda de inteligi- seus elementos gregos, “justiça de Deus”. Já nhados. O optimismo, nomeadamente, é em colaboração com Alexandra Abranches.
106 QUIM BARREIROS CRÓNICA 107

Não era olhado de lado pelos fadistas? Em 2017 vai fazer 70 anos. Quando é

Optimismos
Ah pois. Naquele tempo havia casas que se imagina a largar a estrada e o
de fado que eram exatamente catedrais acordeão?
do fado. Entrar um acordeonista numa Quando me sentir a mais em cima de um
casa daquelas era um sacrilégio para os palco, podes ter a certeza de que arrumo

antigos e novos
fadistas mais velhos, não é? O tio Alfredo as botas. Agora sinto que ainda sou capaz
Marceneiro era contra a minha presença de fazer um bom espetáculo, com a minha
lá. Dizia-me: “Acordeonista aqui nas casas banda. Vi gente famosa que se andou a
de fados... Eu não gosto muito, mas pronto, arrastar em palco e não quero que isso me
és bom rapaz, toda a gente gosta de ti.” aconteça. Vou saber parar. Acho que nem
a minha família me admite isso.
E ao longo da carreira, foi sentindo
olhares superiores? Quem pensa em Quim Barreiros pensa
Não, não. Participei em muitas caravanas inevitavelmente em festa e alegria...
de artistas portugueses populares, que É que eu não admito tristezas. Na minha
naquele tempo iam ter com as comuni- vida tenho amigos e amigas que a primeira
dades portuguesas para todo o mundo. coisa que me dizem é: “Olha, sabes? Morreu
Acompanhei o Francisco José, Tony de fulano e beltrano, tenho aqui uma dor...” Eu
Matos, Duo Ouro Negro, Trio Odemira, travo logo. Sou uma pessoa positiva. Muitas
Paco Bandeira, eu sei lá. Fazia a minha vezes convidam-se para ir a hospitais, lares
parte e eles faziam a deles. Sempre senti de idosos, para estar um bocadinho com as
RICARDO CASTELO

amizade por parte de todos. O meu tipo de pessoas, e francamente não me sinto bem.
música não tinha nada a ver com o deles, Dou sempre uma desculpa. Agora se me
eu era um acordeonista, um tocador de disseres para irmos a uma maternidade,

Paulo Tunhas
sanfona, um brejeiro. Sempre me dei e dou é o contrário. Gosto dos bebés, da vida!
bem com toda a malta da minha profissão. Gosto de ouvir um bebé a chorar. Quando
● Quim Barreiros é um homem do Norte. Nasceu vou num avião há pessoas que se sentem
O primeiro disco que lançou, em 1971, incomodadas com o choro de um bebé e
era de instrumentais da música tra- em Vila Praia de Âncora e é aí que ainda hoje vive e eu não, isso faz-me feliz. Vivi em Lisboa
faz negócio: tem uma albergaria em frente à praia.
Alguém que se sente fisicamente bem, tende naturalmente
dicional portuguesa. Quando é que num apartamento onde o bebé do andar
entrou no mundo dos trocadilhos de cima chorava toda a noite. Acordava e
brejeiros? brejeirada. Isto é nosso e por isso é que E em relação a outros músicos portu- sentia-me bem, para mim o choro de um

para o optimismo; alguém que se sente fisicamente mal,


Exatamente quando, passados dois ou tem piada. Comecei a cantar novo e já o gueses que lhe copiaram o estilo, que bebé soa-me a música.
três anos de andar nas comunidades com Pedro Homem de Melo me dizia: “Quim, andam de acordeão na mão e fazem
esses artistas, percebi que podia fazer tu canta tudo de maneira a que as crianças trocadilhos. Sente-se bem com isso? Quantas horas dorme por noite?
espetáculos sozinho mas, para isso, preci- não entendam!” “Pronto, sotôr, eu vou Acho que nem copiaram. Se copiassem Olha, sem comprimidos durmo quatro.
sava de cantar. Porque só tocar acordeão
não dava. Comecei a olhar para o lado e
via grandes acordeonistas portugueses
fazer isso.” E é o que faço. De maneira que
as crianças gostam das minhas cantigas,
mas não as entendem. Bonito é eles mais
eu até me sentia feliz. Há aí uma rapazia-
da... Olha, governam-se e fazem eles muito
bem. O mercado é tão grande que dá para
Quando tomo Xanax, ou Lorenin, ou uma
porcaria qualquer, durmo seis ou sete. para o pessimismo. Quem pensa, procurando abstrair-
que ficavam parados. O Carlos Areias, o
Isidro Baptista, a própria Eugénia Lima.
Comecei a fazer aquilo e o sucesso foi
tarde descobrirem: “Ah, ele quis dizer
aquilo!”. Olha, a frase do “entra a gosto”
[da música “Qual é o Melhor Dia Para
todos, e alguns deles até me telefonam: “Ó
sr. Quim, olhe, como é que eu devo fazer,
faço assim?”. Estou farto de os aturar, mas
Gosta de sair?
Gostava de ir a uma discoteca beber um
copo, mas o meu maior problema é que
-se do estado, feliz ou infeliz, das suas vísceras, não é
optimista nem pessimista.
tão grande que a partir daí nunca mais Casar”] foi-me dada por um reitor da até os ajudo. toda a gente quer tirar selfies comigo, não
deixei de gravar. Universidade de Vila Real! Ele disse-me me deixam estar descansado. Gostava de
qualquer coisa de entrar a gosto, para Então se, por exemplo, a Rosinha lhe ser um cidadão qualquer e de poder entrar,
Podia ter começado a cantar sobre o me dar o toque, mas eu não atingi logo ligar, não desliga o telefone. sentar-me e estar ali um bocadinho sem
amor, ou sobre outra coisa qualquer. também. Ele ficou calado e então é que eu Sou muito amigo da Rosinha e fico satis- chatices, mas não dá. Qual foi a maior contribuição bilidade do mundo e motivo de conflito agora: como a primeira edição surgiu sem o particularmente enaltecido, e o pessimis-
Porquê os trocadilhos sobre sexo? percebi: “Eh pá! Ó professor Mascarenhas, feito que ela leve no pacote [risos]. de Portugal para o pensamento moderno? entre os dois tipos de explicação possíveis, nome de Leibniz nela aparecer, aprendi no mo extremamente mal visto. Marcelo é um
Ó minha querida, isto é muito simples. isso vai dar uma canção”, disse-lhe logo. Aqui em Vila Praia se calhar consegue Não é talvez bom para a auto-estima, como a religiosa e a científica. Kant sugeria uma outro dia, houve quem julgasse que “teo- caso exemplar. Vê-se a si próprio como um
Cada um tem de saber para o que nas- Gosta do reconhecimento que tem? com mais facilidade. agora se diz, mas foi indisputavelmente o explicação científica, enquanto jansenistas diceia” fosse um pseudónimo do autor. “optimista racional”, um conceito difícil de
ce. Eu comecei a tocar aos oito anos no Sai tudo da sua cabeça? Gosto, mas sou contra o elogio. Não gosto Não tenho tempo. Um homem que faz terramoto de Lisboa de 1755. É verdade e jesuítas ofereciam versões religiosas em A doutrina de Leibniz não esperou pelo aprofundar, porque junta dois termos que
Conjunto Alegria, com o meu pai, tenho Eu escrevo, mas há várias letras que me que me elogiem, que digam que sou bom. duzentas e tal festas por ano, que tem que a responsabilidade dessa nossa no- que mutuamente se acusavam: os jansenis- terramoto de Lisboa para ser criticada. não comunicam entre si, e vê em António
essa escola toda de conjuntos musicais, de são enviadas por artistas de forró do nor- Eu não sou nada bom, sou igual ao teu discos e cantigas para fazer, mais a vida toriedade não nos pode ser atribuída, co- tas sustentavam que, sendo Portugal um Em particular, um jesuíta francês, o padre Costa um “optimista crónico e ligeiramente
grupos folclóricos, portanto eu sei do que deste do Brasil. Lá há muitos Quim Barrei- pai, o teu pai é igual a mim, somos os dois familiar, a albergaria, não dá. E também lectiva ou individualmente. Os dois únicos viveiro de jesuítas, Deus quisera esmagar Louis-Bertrand Castel, em 1737, criticou-a, irritante”. No fundo, a acreditar na sinceri-
o povo gosta. Quem são os emigrantes? ros. “A Garagem da Vizinha”, assim como a iguaizinhos. E homenagens, então, fujo nunca fui homem de beber copos. Tenho candidatos, Deus e a natureza, não consta a Inquisição (prova: o número de igrejas e, nessa crítica, inventou uma palavra com dade dos propósitos, seriam duas variações
São pessoas que saíram da aldeia. Eu sei “A Cabritinha” é de origem brasileira, não é disso! Quantas vezes me telefonam a dizer 69 anos e não sei o que é apanhar uma que sejam portugueses. Mas nada como o destruídas e o facto de uma rua inteira indiscutível futuro, para designar a dou- do Dr. Pangloss, uma fraca e outra forte.
o que é que eles querem, que é aquilo que minha. Nem letra nem música. O “Bacalhau que me querem homenagear, até aqui de bebedeira na vida. terramoto de Lisboa pôs tanto as cabeças com bordéis ter sido deixada intacta); os trina combatida: “optimismo”. A palavra Estas elocubrações não teriam em si mal
eu lhes dou. E, ao mesmo tempo, sei as à Portuguesa” e o “Chupa Teresa” também Espanha. Não quero nada disso. pensantes da Europa, de Voltaire a Kant, a jesuítas, pelo seu lado, ripostaram que o ficou, e já o título completo do Cândido de algum se não tendessem a lançar uma cor-
minhas possibilidades. Tu já imaginaste o são deles. Nunca?! falar de Portugal. Voltaire publicou em 1756 castigo divino resultaria do relaxamento Voltaire (1759) é Cândido, ou o optimismo. tina de fumo sobre os nossos problemas
Quim Barreiros a cantar o fado? Não dá, [Aparece a polícia e para junto ao carro Nunca ninguém me viu bêbado. Nunca. um Poema sobre o desastre de Lisboa, e, na das práticas inquisitoriais, algo remediável No mesmo movimento, criou-se uma cor- reais, que se estão nas tintas para opti-
eu não tenho voz para isso. Já viste o que Não me diga que o “Mestre de Culiná- de Quim Barreiros, mal estacionado. Ele Sei o que é uma má-disposição, uma ou mesma linha de resposta aos que acredi- com penitências e autos-de-fé. De qualquer rente adversa, o “contra-optimismo”, e há mismos e pessimismos e restantes subjec-
era o Quim Barreiros a cantar uma música ria” afinal é brasileiro. vai lá, mas nada feito. É preciso estacionar duas vezes na minha vida, porque bebi tavam que o nosso mundo é o melhor dos maneira, como Kant explicou depois, o quem defenda que o pessimismo de Scho- tividades viscerais. Não nos arriscamos,
do Marco Paulo? Também não dá! E eu Essa é minha, tenho muitas minhas. Ali- a viatura noutro local.] um uísque, depois um champanhe e tal, mundos, fez, no Cândido, o Dr. Pangloss terramoto pôs decisivamente em cheque penhauer, já no século xix, corresponde felizmente, a ser de novo objecto da mais
também não estou a ver o Marco Paulo a ás, se pegares nos discos podes ver de quem mas não fico bêbado, não fico é bem. Eu passar pela nossa terra para mais uma vez todas as tentativas de teodiceia, isto é, de ao estado último do desenvolvimento dessa profunda curiosidade intelectual da Euro-
cantar o “Quero Cheirar Teu Bacalhau”, são as letras e as músicas, está lá tudo. Ser o Quim Barreiros não dá direito a às vezes até gostava de estar numa festa e ser maltratado. Kant escreveu três ensaios compreender os males do mundo como um última corrente. pa pelas desagradáveis razões de 1775. Mas
nem o Carlos do Carmo a cantar “A Gara- uns privilégios junto das autoridades beber, beber, beber e ficar assim meio... a partir do terramoto (também em 1756) efeito necessário, se bem que marginal, da A verdade é que nem optimismo nem uma curiosidade menor e burocrática é
gem da Vizinha”. A primeira música que Recentemente foi notícia por ter sido locais? Mas chega ali um momento e entope, não e lembrou-se deles quando, muitos anos sabedoria divina. pessimismo são conceitos com grande in- sempre possível, por razões afins às de 2011
eu gravei destas foi “Recebi um Convite plagiado por um conjunto holandês, Não, não. Eu respeito. Eu ando muito na consigo beber mais. depois, em 1791, publicou o seu escrito O filósofo visado por Voltaire e Kant era teresse filosófico e que nunca atravessaram (ou de 1977, ou de 1983). E, a ouvir tanto
(À Casa da Jóquina)”, uma canção popu- precisamente com “A Garagem da Vi- estrada e não me lembro de apanhar uma Sobre o insucesso de todas as tentativas o maravilhoso Leibniz, que criara um sis- o espírito de Leibniz, embora tivessem falar de optimismo, com o desvio em re-
lar. Depois comecei a gravar já por minha zinha”. multa, nem aqui nem em Lisboa. Muitas Nunca teve um padre que se tenha filosóficas em matéria de teodiceia. E Kant tema filosófico de uma admirável riqueza ocupado, na sua juventude, o de Kant, algo lação à realidade que a coisa implica, uma
conta e o meu primeiro grande sucesso foi Isso não foi plágio. Sabes que há coisas vezes mandam-me parar em operações oposto à sua presença numa festa em e Voltaire foram apenas dois entre muitos. e complexidade que resultava na doutrina do qual este futuramente se arrependeu. É pessoa apanha-se a pensar que é racional
o “Franguito da Maria”, em 1975. que me interessa entrar na onda porque stop, reconhecem-me e mandam-me em- honra do santo local? Como notou uma filósofa, Susan Neiman, segundo a qual Deus, criando o Universo, até legítimo, em grande medida, supor que julgar vir algo assim e ter medo. Nem as
quanto mais se fala do bicho, melhor. En- bora. Posso soprar ao balão que nunca Já houve um padre ou dois que não qui- o acontecimento não poderia ter provoca- escolhera fazer passar à existência todos os estados de espírito ao qual se referem igrejas nem os bordéis sofreriam muito: os
Vem de uma família conservadora. tão, plágio abaixo, plágio acima, vêm cá as tenho nada. Aliás, eu ando com um balão seram que fosse cantar. Um ou outro mais do a reacção intelectual que provocou se os possíveis que, conjuntamente reunidos, têm a sua origem em condições fisiológi- nossos bolsos sim. E duma tal catástrofe
Quando o seu pai ouviu as letras não televisões e tal, mas isto é assim: eu lancei no carro igual aos deles, porque às vezes conservador. Às vezes até são as beatas, que tivesse ocorrido em outras épocas. Num constituiriam o melhor dos mundos. O mal cas. Alguém que se sente fisicamente bem, seremos mesmo responsáveis. Em especial
ficou chateado? agora o Eu Faço 69, não é? O disco sai para bebo uma cervejinha ou duas e gosto de dizem que eu sou malcriado. Nunca cantei mundo pré-moderno, o terramoto teria (metafísico, físico e moral) aparecia como tende naturalmente para o optimismo; alguns. Nem Deus nem a natureza estão
Não. Repara: se tu fores à nossa litera- a rua e amanhã tu podes pegar numa mú- saber. Mas nunca acuso nada. uma asneira na minha vida. De resto, a apenas sido prova de um justo castigo de consequência de um cálculo divino na es- alguém que se sente fisicamente mal, para já compreensivelmente disponíveis para
tura dos séculos XVI, XVII, XVIII, às can- sica dali, gravas, mas depois pagas direitos minha vida até é ser chamado por padres Deus e teria tido como efeito o reforço da colha dos possíveis que passariam a existir, o pessimismo. Quem pensa, procurando aparecerem na história como culpados.
tigas de escárnio e maldizer, estas letras e tens de pôr “música do brasileiro X” e Ainda não se cansou de percorrer tan- para participar nas festas religiosas. Ainda crença religiosa. No nosso mundo con- visando a maior beleza e harmonia do todo. abstrair-se do estado, feliz ou infeliz, das Nem sequer, como quer a nova teologia da
brejeiras estão lá todas! Há antologias de letra com autorização do brasileiro para tos quilómetros? na semana passada fui contratado pela temporâneo, a explicação recorreria ao O mal só poderia ser visto como um ingre- suas vísceras, não é optimista nem pessi- esquerda, disfarçados de Europa.
autores portugueses, do Guerra Junqueiro fazer a adaptação para holandês. Há que Quem corre por gosto não cansa. En- paróquia de Pero Pinheiro, pelo sr. padre encontro de placas tectónicas e as pessoas diente de que Deus, por razões de lógica, mista. Busca, se possível, alguma raciona-
até, que já tinham esta malandrice lá toda. pedir autorização à Associação Brasileira quanto tiver saúde... Gosto da estrada, Avelino. indignar-se-iam com a incúria do Estado não tinha maneira de se privar. A explicação lidade nos seus pensamentos. Paulo Tunhas é professor de Filosofia
Isto não é meu, isto é nosso, eu não vim de Autores, que por sua vez pede ao autor. gosto de andar de um lado para o outro. e dos seus funcionários, que poderiam ter dessa doutrina encontrava-se, na sua forma O que não impede, é claro, que os con- na Faculdade de Letras da Universidade
descobrir nada. Tu ainda hoje se fores Isto não tem nada a ver com contrafação, Não gosto é de estar parado. Parar é morrer Sara Otto Coelho é jornalista do tomado precauções que não tomaram para mais conhecida, num livro publicado em ceitos sejam usados a torto e a direito como do Porto. É autor de vários livros, entre os
a uma festa popular em Portugal ouves qualquer pessoa em todo o mundo pode e, como já viste, eu sou um gajo elétrico. Observador. Escreve a partir do Porto e, tal minorar as consequências do desastre. 1710, Ensaios de teodiceia. A palavra “teodi- se tivessem algum valor substantivo. Em quais “As Questões que Se Repetem –
os homens e as mulheres a cantarem ao gravar as minhas músicas, tem é de pôr lá Gosto que mexam comigo e gosto de mexer como Quim Barreiros, é proprietária de um Naquela altura precisa, não. O terramoto ceia”, por ele forjada, significa, a partir dos Portugal, por exemplo, são muito acari- Uma Breve História da Filosofia”,
desafio e no meio daquilo tudo lá vem uma a quem pertence. com as pessoas. acordeão. foi sentido como uma perda de inteligi- seus elementos gregos, “justiça de Deus”. Já nhados. O optimismo, nomeadamente, é em colaboração com Alexandra Abranches.
88 VÍTOR OLIVEIRA 89

“Na estreia,
empatámos
6–0 na Luz”
Vítor Oliveira é o campeão das subidas à
1ª- divisão, com um currículo impressionante:
dez subidas em 17 tentativas, sempre
com clubes diferentes. O último sortudo
chama-se Portimonense.
Rui Miguel Tovar

No estádio do Portimonense, acaba equipas que acompanho, em casa ou fora. Imagino a quantidade de jogos do Lei- Eusébio, Coluna, Torres. Onde estava
mais um treino e há jogadores a cantar no E olhe que já não vou muito ao futebol. xões vistos pelo Vítor. o Vítor Oliveira no Mundial 66?
duche. Vítor Oliveira está com pressa e Uiiii, tantos. Tinha 12 anos e chumbei nesse ano. Por
recebe-me sem mais demoras. Procurem, Já jogava futebol? isso, o meu pai meteu-me a trabalhar numa
se quiserem. Mergulhem nos arquivos, nos Cresci na praia de Matosinhos, onde Na final da Taça de Portugal com o Por- mercearia de retalho. Lá fui trabalhar nes-
excels desta vida e da outra, no Google. cresceram muitos bebés que se tornaram to, em 1961, onde estava? ses três meses de verão.
E depois encontrem. Ah poizeeeé, desafio- grandes figuras nos Portos, Benficas e Spor- Não vi, nem fui. Provavelmente, o meu
-vos a encontrarem um treinador (um só tingues. Aos 15 anos, eu e os meus amigos pai protegeu-me da multidão e não me Viu algum jogo de Portugal?
basta) com dez subidas à 1.ª divisão na- fomos às captações dos juvenis do Leixões. levou. Na festa, aí sim, andei lá no meio. Todos. A minha sorte era que a subgeren-
cional. À exceção de Vítor Oliveira, claro Foi uma tarde gloriosa para o Leixões. te da loja, uma senhora simpatiquíssima,
está. O seu currículo é mais preenchido do Só aos 15? Está a ver, não é? Porto, 0 – Leixões, 2 arranjava-me sempre serviços para ficar
que uma folha do IRS. Inclui Paços (1991), Não havia para trás, só aos 15 é que era nas Antas. Memorável. Tive uma infân- fora da loja durante os jogos. Num deles,
Académica (1997), União de Leiria (1998), o primeiro ano das camadas jovens do Lei- cia muito feliz, interessante e divertida, com a Coreia, salvo erro, o serviço era
Belenenses (1999), Leixões (2007), Arou- xões. Saímos da praia e lá fomos. medianamente virada para a escola. Con- levar uns volumes de tabaco para a praia
ca (2013), Moreirense (2014), União da verso às vezes com os meus filhos e eles internacional. Isso deu-me tempo para
Madeira (2015), Chaves (2016) e Portimo- Resultado? ficam surpreendidos com as coisas que ver o jogo em casa. Nunca mais vi essa
nense (2017). Sim senhor, cinco subidas Ficaram todos menos eu. E eu até era o fazíamos naquela altura. senhora até aparecer no Estádio do Mar
nos últimos cinco anos. É de homem. É melhor do grupo. Pronto, tudo bem, fui-me em 2006-07, na época em que o Leixões
Vítor Oliveira, 63 anos de idade e ligado embora. Passadas duas semanas, o Leixões Havia acesso às estrelas quando o Lei- subiu à 1.ª divisão.
ao futebol desde 1969. voltou a chamar-me. xões recebia os grandes?
Agora que me lembra, havia um vizinho Qual a grande alegria nas camadas
O Vítor Oliveira nasceu em Matosinhos. Então? em frente à casa dos meus pais que tinha jovens do Leixões?
No dia 17 de novembro de 1953, uma O treinador era o Óscar Marques, uma sido observador do Benfica no Norte e os Chegámos a ir duas vezes às meias-finais
data bonita. figura do futebol leixonense, que muito jogadores do Benfica costumavam ficar do campeonato nacional, uma nos juvenis,
fez por nós e por todos os outros. Os meus lá quando jogavam em Matosinhos. Era outra nos juniores.
O Vítor gostava de futebol? amigos, os tais escolhidos nas captações, um senhor chamado Custódio Antunes.
Sempre, sempre gostei. foram dizer-lhe que o melhor jogador era Lembro-me de ver o Eusébio, o Mário Colu- Eliminados por quem?
eu e que me tinham mandado embora. na, o José Torres. Aquilo era uma romaria, Primeiro, o Benfica de Shéu, Fidalgo e
E ia ao estádio? O Óscar Marques pediu então uma nova uma festa inacreditável. E parece que estou Norton de Matos. Depois, a Académica.
Sempre. Primeiro no Campo Santana, avaliação e lá fui. Acabei por ficar. a ver o Coluna com uma tranquilidade ab- Naquela altura, os três grandes iam sempre
que era perto da minha casa, depois no solutamente diabólica, com uma voz muito às meias-finais e a quarta vaga sobrava para
Estádio do Mar, já mais espigadote. Ia sem- Estamos a falar de que ano? pausada a falar connosco no meio da rua. um Leixões, um Vitória, uma Académica
pre ver o Leixões. Ainda hoje é das poucas 1969. ou um Belenenses. Nós fomos duas vezes

GLOBAL IMAGENS / ANDRÉ VIDIGAL


88 VÍTOR OLIVEIRA 89

“Na estreia,
empatámos
6–0 na Luz”
Vítor Oliveira é o campeão das subidas à
1ª- divisão, com um currículo impressionante:
dez subidas em 17 tentativas, sempre
com clubes diferentes. O último sortudo
chama-se Portimonense.
Rui Miguel Tovar

No estádio do Portimonense, acaba equipas que acompanho, em casa ou fora. Imagino a quantidade de jogos do Lei- Eusébio, Coluna, Torres. Onde estava
mais um treino e há jogadores a cantar no E olhe que já não vou muito ao futebol. xões vistos pelo Vítor. o Vítor Oliveira no Mundial 66?
duche. Vítor Oliveira está com pressa e Uiiii, tantos. Tinha 12 anos e chumbei nesse ano. Por
recebe-me sem mais demoras. Procurem, Já jogava futebol? isso, o meu pai meteu-me a trabalhar numa
se quiserem. Mergulhem nos arquivos, nos Cresci na praia de Matosinhos, onde Na final da Taça de Portugal com o Por- mercearia de retalho. Lá fui trabalhar nes-
excels desta vida e da outra, no Google. cresceram muitos bebés que se tornaram to, em 1961, onde estava? ses três meses de verão.
E depois encontrem. Ah poizeeeé, desafio- grandes figuras nos Portos, Benficas e Spor- Não vi, nem fui. Provavelmente, o meu
-vos a encontrarem um treinador (um só tingues. Aos 15 anos, eu e os meus amigos pai protegeu-me da multidão e não me Viu algum jogo de Portugal?
basta) com dez subidas à 1.ª divisão na- fomos às captações dos juvenis do Leixões. levou. Na festa, aí sim, andei lá no meio. Todos. A minha sorte era que a subgeren-
cional. À exceção de Vítor Oliveira, claro Foi uma tarde gloriosa para o Leixões. te da loja, uma senhora simpatiquíssima,
está. O seu currículo é mais preenchido do Só aos 15? Está a ver, não é? Porto, 0 – Leixões, 2 arranjava-me sempre serviços para ficar
que uma folha do IRS. Inclui Paços (1991), Não havia para trás, só aos 15 é que era nas Antas. Memorável. Tive uma infân- fora da loja durante os jogos. Num deles,
Académica (1997), União de Leiria (1998), o primeiro ano das camadas jovens do Lei- cia muito feliz, interessante e divertida, com a Coreia, salvo erro, o serviço era
Belenenses (1999), Leixões (2007), Arou- xões. Saímos da praia e lá fomos. medianamente virada para a escola. Con- levar uns volumes de tabaco para a praia
ca (2013), Moreirense (2014), União da verso às vezes com os meus filhos e eles internacional. Isso deu-me tempo para
Madeira (2015), Chaves (2016) e Portimo- Resultado? ficam surpreendidos com as coisas que ver o jogo em casa. Nunca mais vi essa
nense (2017). Sim senhor, cinco subidas Ficaram todos menos eu. E eu até era o fazíamos naquela altura. senhora até aparecer no Estádio do Mar
nos últimos cinco anos. É de homem. É melhor do grupo. Pronto, tudo bem, fui-me em 2006-07, na época em que o Leixões
Vítor Oliveira, 63 anos de idade e ligado embora. Passadas duas semanas, o Leixões Havia acesso às estrelas quando o Lei- subiu à 1.ª divisão.
ao futebol desde 1969. voltou a chamar-me. xões recebia os grandes?
Agora que me lembra, havia um vizinho Qual a grande alegria nas camadas
O Vítor Oliveira nasceu em Matosinhos. Então? em frente à casa dos meus pais que tinha jovens do Leixões?
No dia 17 de novembro de 1953, uma O treinador era o Óscar Marques, uma sido observador do Benfica no Norte e os Chegámos a ir duas vezes às meias-finais
data bonita. figura do futebol leixonense, que muito jogadores do Benfica costumavam ficar do campeonato nacional, uma nos juvenis,
fez por nós e por todos os outros. Os meus lá quando jogavam em Matosinhos. Era outra nos juniores.
O Vítor gostava de futebol? amigos, os tais escolhidos nas captações, um senhor chamado Custódio Antunes.
Sempre, sempre gostei. foram dizer-lhe que o melhor jogador era Lembro-me de ver o Eusébio, o Mário Colu- Eliminados por quem?
eu e que me tinham mandado embora. na, o José Torres. Aquilo era uma romaria, Primeiro, o Benfica de Shéu, Fidalgo e
E ia ao estádio? O Óscar Marques pediu então uma nova uma festa inacreditável. E parece que estou Norton de Matos. Depois, a Académica.
Sempre. Primeiro no Campo Santana, avaliação e lá fui. Acabei por ficar. a ver o Coluna com uma tranquilidade ab- Naquela altura, os três grandes iam sempre
que era perto da minha casa, depois no solutamente diabólica, com uma voz muito às meias-finais e a quarta vaga sobrava para
Estádio do Mar, já mais espigadote. Ia sem- Estamos a falar de que ano? pausada a falar connosco no meio da rua. um Leixões, um Vitória, uma Académica
pre ver o Leixões. Ainda hoje é das poucas 1969. ou um Belenenses. Nós fomos duas vezes

GLOBAL IMAGENS / ANDRÉ VIDIGAL


90 VÍTOR OLIVEIRA VÍTOR OLIVEIRA 91

às meias do campeonato nacional, depois Em 1975, o Vítor sai do Leixões, na 1.ª Como é que o Vítor passa de jogador
de quase um ano a jogar no campeonato divisão, e assina pelo Paredes, da 2.ª. a treinador do Portimonense assim
distrital. Um pouco como agora, aliás. Porquê? de repente?
O Paredes estava a começar a aparecer. Acabou por acontecer sem ter feito nada
E o Leixões era forte? A cidade cresceu muito com a indústria do por isso. O Manuel José foi contratado pelo
Deixava a sua marca no futebol, sempre mobiliário, havia algum dinheiro e tinha Sporting e eu fui nomeado. Havia um nome
tivemos boas equipas. A prova disso é que acabado de subir da 3.ª para a 2.ª. Fez-se ou outro em carteira, como Álvaro Caro-
cheguei à seleção. um investimento grande e, de uma assenta- lino e Raúl Águas, só que o Portimonense
Portimonense da, o Paredes levou quatro/cinco jogadores acertou comigo. Naquela altura, não podia
A sério? 2017 de Matosinhos. Ainda hoje me recordo da ser treinador porque não tinha as habilita-
A sério. Fui convocado umas três/qua- assinatura do contrato com o Paredes. Es- ções necessárias. Ia para o banco como di-
tro vezes pela seleção júnior e joguei duas, távamos numa salinha da sede, que ainda retor, eu que nunca assinei um cheque nem
ambas com a Suíça, na qualificação para hoje existe, e, de repente, soa a sirene. nada parecido. Fui então tirar os cursos e
o Europeu-72. Estreei-me na Tapadinha, Havia um incêndio nas proximidades, os rapidamente consegui chegar ao quarto
campo do Atlético. Era uma equipa jeitosa, diretores do Paredes eram bombeiros e a nível. A meio da terceira época, saí daqui
com Pietra, Bastos Lopes, Alexandre Alhi- assinatura foi adiada por um dia. e fui para o Norte. Voltei agora, 30 anos
nho, Norton de Matos, Pedroto, um lateral- depois. Um acontecimento inacreditável.
-direito chamado Ramalho, Rodolfo, Ibraim, E assinou?
Francisco Vital. O guarda-redes era o Quim. Sim, sim. No dia seguinte, tudo assinado. Como treinador de 1.ª divisão, ganhou
Cheguei a casa, já noite alta, e apanhei o algumas vezes no campo dos três gran-
Lembra-se do resultado desse Portu- Chaves União da Madeira Moreirense meu pai a sair para o mar. Perguntou-me des?
gal-Suíça. 2016 2015 2014 que tal tinha sido o dia. Os meus pais, honra Já falámos do 3-0 do Gil em Alvalade.
Acho que ganhámos 1-0, golo do Pedroto. lhes seja feita, nunca se meteram na minha Nunca ganhei nas Antas ou Dragão, só
Ou será do Rodolfo? Não me lembro. [NA: vida profissional. Deram-me sempre uma como jogador, numa Taça de Honra da
Foi do Rodolfo, aos 78 minutos.] liberdade enorme. Bom, perguntou-me AF Porto e até marquei um golo no 2-1.
como tinha corrido o dia. Disse-lhe que Na Luz, ganhei duas vezes, uma pelo Gil,
E lembra-se se estava nervoso? tinha assinado pelo Paredes e ele ques- golo de Mangonga, outra pelo Belenen-
Nãããã, nunca fui um jogador muito ner- tionou essa opção com aquela pergunta ses, um 3-2 com golo de Rui Gregório.
voso ou de tremer com adversários mais sacramental do “vais ganhar quanto?”. 14 Curiosamente, a vez que fiz mais mossa
fortes. Encarava o jogo com tranquilidade.
Até porque se o futebol não desse certo,
contos. Era um contrato muuuuito bom,
muito mais do que ganhava no Leixões
● Vítor Oliveira no Portimonense de 1983/1984. O segundo em pé, à esquerda, foi um empate, pelo Vitória. Marcámos o
1-1 em cima dos 90’, por Ricardo Lopes,
ia para engenharia. Estudava ao mesmo
Arouca Leixões Belenenses
na 1.ª divisão. O meu pai começou então a é Rui Águas. O primeiro em pé, à direita, é o guarda-redes Vítor Damas. se não me engano, e o Artur Jorge saiu
tempo que jogava e só abdiquei do curso fazer-me perguntas sobre onde é que era do Benfica no dia seguinte.
2013 2007 1999
quando decidi enveredar pelo futebol a Paredes? Ali ao pé de Penafiel, a uns 40 Assim, sem mais nem menos? Qual era a missão? muito giro. Apareceu-nos assim de surpresa,
sério. km do Porto, disse-lhe. E ele, já de saída: Havia um grande desnivelamento. No Ganhar no Restelo para evitar a des- no hall do hotel. Ninguém estava à espera. Obr...
“Jogar, não jogas grande coisa, mas és fino Sul, jogava-se bem em termos técnicos. promoção. Como sempre, aliás. O Quinito era dos que Espere aí, que lembrei-me de outra vitória
E isso aconteceu quando? para fazer contratos.” No Norte, havia mais força e intensidade. mais surpreendia as gentes do futebol. Por em Alvalade, como jogador. Um Sporting-
Quando vim jogar para Portimão, aos Regra geral, as equipas do Norte saíam- E? isso é que sentimos a sua falta, desde que -Leixões em 1972-73 que acaba aos seis, sete
27/28 anos. Aí, sim, larguei a faculdade. O seu pai via os seus jogos? -se bem, quase sempre melhor do que as Perdemos 2-0. Fui então para o Espinho, se retirou por razões familiares. minutos com uma invasão de campo. Mar-
Sempre. do Sul. onde apanhei o Manuel José como jogador- cámos cedo, de penálti. O primeiro penálti
Qual era o curso? -treinador. Na primeira fase do Vítor Oliveira no é defendido pelo Damas e o árbitro manda
Eletrotecnia, na Faculdade de Engenha- E a sua mãe? Aí está, Vítor Oliveira novamente na Gil, apanhou o Drulovic. repetir. O nosso treinador António Teixeira
ria do Porto. Já tinha o quarto ano quase As mulheres não eram vistas num campo 1.ª divisão. Espinho? Que jogador, o melhor que apanhei manda trocar o marcador e é golo, à segun-
completo e só me faltava o quinto, só que União de Leiria Académica Paços de Ferreira de futebol e a minha mãe levava uma vida Por uma época, apenas. Descemos de Jogávamos no Campo da Avenida, um como treinador. A meio da época, saiu da tentativa. Uns minutos depois, há uma jo-
virei-me completamente para o futebol. 1998 1997 1991 dura, como peixeira, a acordar todos os divisão na última jornada. E comecei aí a pelado muuuuito difícil para toda a gen- para o Porto sem nós sabermos. gada nossa em que é pontapé de baliza para
dias às quatro da manhã. Aos domingos, carreira de treinador. te, inclusive Benfica, Sporting e Porto. O o Sporting e o árbitro dá canto. Aquilo foi
Arrepende-se? era para descansar. primeiro ano foi bom, o segundo foi mau, Como? muito complicado. Muito mesmo. Vi coisas
Nada. A engenharia ficou pelo caminho Então não foi em Portimão? porque tive uma lesão no menisco. Saiu para o Porto e nós não sabíamos. inenarráveis e o árbitro foi selvaticamente
porque o futebol deu-me tudo o que tenho. Volto ao seu pai. Aí foi a tempo inteiro, em Famalicão foi Fomos de férias de Natal, para aí a 22 ou agredido. Vi um gajo bater no árbitro com
O meu pai era o meu maior crítico. Se só um jogo. Em 1981, assina pelo Braga de Quinito. 23 de dezembro, e voltámos a 27. Achámos um capacete de mota. Lembro-me mesmo
Lembra-se da estreia profissional? ganhasse por dois, deveria ter sido por O Braga de Quinito em 1981-82, depois estranho a sua ausência e perguntámo-nos bem desta imagem. Fomos todos para os
Um Benfica-Leixões, não foi? quatro. Se perdesse por um, era uma por- Como assim? o Braga de Juca em 1982-83. se o Drulov teria ido para a Sérvia. No dia balneários e, já reposta a ordem, a polícia
● Estes são os 10 clubes que Vítor Oliveira, ao longo caria. Nunca estávamos em sintonia, uma Na penúltima jornada, empatámos 2-2 seguinte, fomos informados de que tinha ido queria reatar o jogo. Só que nós tínhamos
Isso mesmo. visão diametralmente oposta à minha. Ele com o Braga. Eu até marco um golo, bem Com o Quinito, o Braga vai ao Jamor. para o Porto. Quatro dias depois, apareceu- um treinador experimentado, matreiro e
Empatámos na Luz. da sua carreira, fez subir à primeira divisão. era um descontente por natureza, um pes- fora da área. Na baliza deles, o Conhé. Essa final da Taça de Portugal é muito -me ele lá em casa, com um dirigente do não voltámos ao campo. Tivemos de arranjar
simista. Só em relação ao futebol, atenção. Nessa noite, a direção do Famalicão despe- provavelmente o momento mais fantástico Porto, a justificar a saída. Havia uma cláusula uns três ou quatro gajos muito feridos.
Hein? de vez em quando, ainda fazíamos uma 6-0 do Leixões na Luz? De resto, era uma pessoa animada, com diu o treinador, um senhor elegantíssimo da minha carreira de jogador. no seu contrato que lhe permitia sair assim.
Empatámos 6-0, eheheheheh. gracinha. Na Luz, era terrível. O túnel da Não. quem se podia falar. chamado Mário Imbelloni. Como?
Luz era enorme. Primeiro que chegássemos Eliminaram quem na meia-final? Como é que o Drulovic aterra em Bar- O nosso massagista teve de meter ade-
Um cabaz. ao campo, era assustador. Depois, aquela Um com o Atlético, em Matosinhos? Ia à pesca com ele? O grande Imbelloni? O Benfica, em Braga. Das poucas vezes celos? sivos em três ou quatro jogadores nossos
Lembro-me de comentarmos que fui massa humana. Não dava. Aquele em que marquei um golo. Nunca fui, nunca tive essa tendência Esse mesmo, um dos jogadores da me- que o 1.º de Maio encheu por completo. Mas O Drulovic estava na Suécia, onde vivia para evitar o reatamento do jogo, senão
certamente dos jogadores que mais vezes para a pesca. Quando era miúdo, íamos lhor equipa do mundo dos anos 40: o San completo mesmo, a transbordar. Ganhá- o irmão de um dirigente do Gil, agora da estava o caldo entornado. O ambiente lá
toquei na bola. E as viagens para Lisboa? Esse mesmo. pescar ao longo do paredão na praia de Lorenzo Almagro. Que veio cá a Portugal mos 2-0 e o Humberto Coelho jogou como Federação Portuguesa de Futebol, chamado fora era mau, muito mau. Não podíamos
Saíamos de Matosinhos às 8h30/9 da ma- Foi o meu primeiro golo de sénior. E de Matosinhos. Íamos pescar, íamos. Metia-me e deu um festival de bola àqueles que lhe avançado nos últimos 20 minutos. Era uma Carlos Coutada. Ora bem, ele avisou-nos voltar ao jogo e não voltámos. A federação
Então? nhã. Almoçávamos em Leiria antes de ar- cabeça. lá a dormir, a apanhar sol, e só acordava apareceram pela frente: Porto, Benfica, tática comum do treinador inglês do Ben- que o irmão tinha três jogadores sérvios deu-nos uma vitória por 3-0.
Era golo deles, a bola ia ao centro, o Ho- rancarmos para Lisboa, onde chegávamos quando a malta nos chamava para ir à praia Sporting, Belenenses. O Imbelloni jogou fica, o John Mortimore. Quando estava muito bons: um extremo-direito, um ponta
rácio tocava para mim e eu dava para trás. às 17h30/18h00. Não havia autoestradas e Era costume marcar e, ainda por cima, porque a maré já estava baixa e dava para ainda no Real Madrid e, depois, cá em empatado ou a perder, metia o Humberto de lança e o Drulovic, que era o mais miúdo Como eram os árbitros de então?
era quase um dia perdido. Por isso, não se de cabeça? jogar futebol no areal. Portugal. lá à frente e o Humberto era um portento. de todos, com uns 21 anos, acho. Ao fim Sempre a favor dos grandes, desequili-
Eheheheheheh. treinava na véspera do jogo. Nas camadas jovens, sim. Marcava muitos Marcava golos a torto e a direito. Às vezes, de dez minutos do primeiro treino, saí do bravam ainda mais a balança. Nem tínha-
Aquilo era muito difícil, dificílimo. Havia golos, até porque comecei a ponta de lança. Deu-se bem no Paredes? Bom homem? até marcava dois por jogo. Um fenómeno. campo e disse ao presidente “você não deixe mos qualquer hipótese.
uma desigualdade gigantesca, a todos os E do Norte para o Algarve? Só depois é que passei a médio e jogava Recomecei a marcar golos e fui o segun- Homem fantástico, que acabou na mi- sair este miúdo”. Era o melhor, de longe.
níveis. Ahhhhh, às vezes até saíamos à sexta- a 8, como se diz agora. Os goleadores de do melhor marcador de toda a 2.ª divisão. séria. Um genro deu-lhe cabo de todo o Na final, o Sporting de Allison foi mais O melhor que já tive. E os jogadores fora de série?
-feira. Depois do jogo, dormíamos nor- serviço eram o Horácio e o Estêvão, ambos Só que o Paredes não subiu. Aliás, fugimos dinheiro, com uma procuração. Só para forte. O Eusébio a marcar golos sem ângulo, o
Como? malmente na estalagem da Barrosinha, muito bons. Há uma história engraçada à 3.ª divisão no último minuto da última ver: quem lhe pagou o bilhete da viagem Sem dúvida, o 4-0 espelha isso mesmo. De volta ao Vítor Oliveira jogador. Yazalde era uma máquina, impressionou-
Profissionalismo, condições de trabalho em Alcácer. Acho que já está desativada. sobre os golos. jornada da liguilha, com o Vilanovense. Um para a Argentina fui eu e o Manuel José. Saí exausto, a 20 minutos do fim. O Fer- A seguir ao Braga, segue-se o quê? -me bastante. E o Cubillas. Nos jogos com
e qualidade dos jogadores. Benfica, Porto No dia seguinte, almoçávamos uns frangos penálti marcado por mim, 3-2 para nós. Dividimos a conta. Uns meses depois, nando Vaz, grande referência do futebol Portimão. Um clube, em ascensão, que o Porto, já eu era jogador, só queria que
e Sporting estavam mesmo muito à frente. a meio caminho e chegávamos a meio da Conte aí. soubemos que ele tinha morrido. Uma português, fez-me um elogio rasgadíssimo pagava muito bem. Chegámos à Europa lhe passassem a bola para o ver jogar. Uma
Entretanto, essa diferença estreitou-se. tarde de segunda-feira. Como lhe disse, fazia muitos golos nos Saiu do Paredes? tristeza. Tal como o Imbelloni, também na crónica de um jornal desportivo, por- com uma equipa boa. Na baliza, Damas. vez, num Porto-Leixões, ele pegou na bola
E agora parece-me outra vez evidente. distritais. E recebia dinheiro por cada um Continuei na 2.ª divisão e assinei pelo o Famalicão demitiu o adjunto Frederico que realmente fiz uma bela exibição. No no meio-campo e driblou uns quatro ou
Os grandes estão mais à frente. Antes, os Uiiiiii, isso dói. deles. Famalicão. Passos. Foram-se embora os dois. Então, fim, só me lembro do Allison com uma Que personagem. cinco até entrar com ela pela baliza dentro.
melhores jogadores de uma equipa média- Os autocarros não eram famosos e as os dirigentes apareceram em casa da mi- garrafa de champanhe numa mão e um Damas foi o melhor guarda-redes que Genial, o Cubillas.
-pequena iam sempre para os grandes, no estradas eram más (havia só um boca- Maravilha. Que tal? nha namorada, agora minha mulher, e charuto na outra a passear-se ali na zona conheci e foi um desgosto enorme quando
final da época. As outras equipas estavam dinho de autoestrada, ali do Carregado Por cada golo, o meu pai dava-me 25 Fomos campeões da zona Norte e depois disseram-me que contavam comigo para dos balneários. Que figura. soube da sua morte. Perdi um amigo nessa Rui Miguel Tovar é colaborador do
sempre sempre sempre em formação. O até Lisboa e dos Carvalhos ao Porto; de tostões, corresponde agora a um euro e ganhámos o título da 2.ª divisão, numa o último jogo. Eu e o adjunto Melo, aquele hora. Era para ser meu adjunto do Porti- Observador, onde assina regularmente a
Benfica, por exemplo, jogava muito na Taça resto, EN1). qualquer coisa. Ao fim de seis ou sete jor- poule com o campeão das zonas Centro baixinho, guarda-redes do Benfica, co- E o que dizer do Quinito de smoking? monense, quando o Manuel José o levou rubrica de entrevistas “Questões do Forno
dos Campeões e ganhava um ritmo impos- nadas, ele desistiu da aposta. e Sul. No jogo do título, demos cinco ou nhecido pelos quatro golos do Lourenço Não foi bem de smoking. Foi mais de pa- para o Sporting, já a caminho dos 40 anos. Interno”. É também autor de vários livros sobre
sível de alcançar para o Leixões. Em casa, Sabe qual foi o jogo seguinte àquele seis-zero ao Barreirense. num Benfica-Sporting. pillon, com um casaco branco. Aquilo foi Era incansável. futebol. O último chama-se “Bola ao Ar”.
90 VÍTOR OLIVEIRA VÍTOR OLIVEIRA 91

às meias do campeonato nacional, depois Em 1975, o Vítor sai do Leixões, na 1.ª Como é que o Vítor passa de jogador
de quase um ano a jogar no campeonato divisão, e assina pelo Paredes, da 2.ª. a treinador do Portimonense assim
distrital. Um pouco como agora, aliás. Porquê? de repente?
O Paredes estava a começar a aparecer. Acabou por acontecer sem ter feito nada
E o Leixões era forte? A cidade cresceu muito com a indústria do por isso. O Manuel José foi contratado pelo
Deixava a sua marca no futebol, sempre mobiliário, havia algum dinheiro e tinha Sporting e eu fui nomeado. Havia um nome
tivemos boas equipas. A prova disso é que acabado de subir da 3.ª para a 2.ª. Fez-se ou outro em carteira, como Álvaro Caro-
cheguei à seleção. um investimento grande e, de uma assenta- lino e Raúl Águas, só que o Portimonense
Portimonense da, o Paredes levou quatro/cinco jogadores acertou comigo. Naquela altura, não podia
A sério? 2017 de Matosinhos. Ainda hoje me recordo da ser treinador porque não tinha as habilita-
A sério. Fui convocado umas três/qua- assinatura do contrato com o Paredes. Es- ções necessárias. Ia para o banco como di-
tro vezes pela seleção júnior e joguei duas, távamos numa salinha da sede, que ainda retor, eu que nunca assinei um cheque nem
ambas com a Suíça, na qualificação para hoje existe, e, de repente, soa a sirene. nada parecido. Fui então tirar os cursos e
o Europeu-72. Estreei-me na Tapadinha, Havia um incêndio nas proximidades, os rapidamente consegui chegar ao quarto
campo do Atlético. Era uma equipa jeitosa, diretores do Paredes eram bombeiros e a nível. A meio da terceira época, saí daqui
com Pietra, Bastos Lopes, Alexandre Alhi- assinatura foi adiada por um dia. e fui para o Norte. Voltei agora, 30 anos
nho, Norton de Matos, Pedroto, um lateral- depois. Um acontecimento inacreditável.
-direito chamado Ramalho, Rodolfo, Ibraim, E assinou?
Francisco Vital. O guarda-redes era o Quim. Sim, sim. No dia seguinte, tudo assinado. Como treinador de 1.ª divisão, ganhou
Cheguei a casa, já noite alta, e apanhei o algumas vezes no campo dos três gran-
Lembra-se do resultado desse Portu- Chaves União da Madeira Moreirense meu pai a sair para o mar. Perguntou-me des?
gal-Suíça. 2016 2015 2014 que tal tinha sido o dia. Os meus pais, honra Já falámos do 3-0 do Gil em Alvalade.
Acho que ganhámos 1-0, golo do Pedroto. lhes seja feita, nunca se meteram na minha Nunca ganhei nas Antas ou Dragão, só
Ou será do Rodolfo? Não me lembro. [NA: vida profissional. Deram-me sempre uma como jogador, numa Taça de Honra da
Foi do Rodolfo, aos 78 minutos.] liberdade enorme. Bom, perguntou-me AF Porto e até marquei um golo no 2-1.
como tinha corrido o dia. Disse-lhe que Na Luz, ganhei duas vezes, uma pelo Gil,
E lembra-se se estava nervoso? tinha assinado pelo Paredes e ele ques- golo de Mangonga, outra pelo Belenen-
Nãããã, nunca fui um jogador muito ner- tionou essa opção com aquela pergunta ses, um 3-2 com golo de Rui Gregório.
voso ou de tremer com adversários mais sacramental do “vais ganhar quanto?”. 14 Curiosamente, a vez que fiz mais mossa
fortes. Encarava o jogo com tranquilidade.
Até porque se o futebol não desse certo,
contos. Era um contrato muuuuito bom,
muito mais do que ganhava no Leixões
● Vítor Oliveira no Portimonense de 1983/1984. O segundo em pé, à esquerda, foi um empate, pelo Vitória. Marcámos o
1-1 em cima dos 90’, por Ricardo Lopes,
ia para engenharia. Estudava ao mesmo
Arouca Leixões Belenenses
na 1.ª divisão. O meu pai começou então a é Rui Águas. O primeiro em pé, à direita, é o guarda-redes Vítor Damas. se não me engano, e o Artur Jorge saiu
tempo que jogava e só abdiquei do curso fazer-me perguntas sobre onde é que era do Benfica no dia seguinte.
2013 2007 1999
quando decidi enveredar pelo futebol a Paredes? Ali ao pé de Penafiel, a uns 40 Assim, sem mais nem menos? Qual era a missão? muito giro. Apareceu-nos assim de surpresa,
sério. km do Porto, disse-lhe. E ele, já de saída: Havia um grande desnivelamento. No Ganhar no Restelo para evitar a des- no hall do hotel. Ninguém estava à espera. Obr...
“Jogar, não jogas grande coisa, mas és fino Sul, jogava-se bem em termos técnicos. promoção. Como sempre, aliás. O Quinito era dos que Espere aí, que lembrei-me de outra vitória
E isso aconteceu quando? para fazer contratos.” No Norte, havia mais força e intensidade. mais surpreendia as gentes do futebol. Por em Alvalade, como jogador. Um Sporting-
Quando vim jogar para Portimão, aos Regra geral, as equipas do Norte saíam- E? isso é que sentimos a sua falta, desde que -Leixões em 1972-73 que acaba aos seis, sete
27/28 anos. Aí, sim, larguei a faculdade. O seu pai via os seus jogos? -se bem, quase sempre melhor do que as Perdemos 2-0. Fui então para o Espinho, se retirou por razões familiares. minutos com uma invasão de campo. Mar-
Sempre. do Sul. onde apanhei o Manuel José como jogador- cámos cedo, de penálti. O primeiro penálti
Qual era o curso? -treinador. Na primeira fase do Vítor Oliveira no é defendido pelo Damas e o árbitro manda
Eletrotecnia, na Faculdade de Engenha- E a sua mãe? Aí está, Vítor Oliveira novamente na Gil, apanhou o Drulovic. repetir. O nosso treinador António Teixeira
ria do Porto. Já tinha o quarto ano quase As mulheres não eram vistas num campo 1.ª divisão. Espinho? Que jogador, o melhor que apanhei manda trocar o marcador e é golo, à segun-
completo e só me faltava o quinto, só que União de Leiria Académica Paços de Ferreira de futebol e a minha mãe levava uma vida Por uma época, apenas. Descemos de Jogávamos no Campo da Avenida, um como treinador. A meio da época, saiu da tentativa. Uns minutos depois, há uma jo-
virei-me completamente para o futebol. 1998 1997 1991 dura, como peixeira, a acordar todos os divisão na última jornada. E comecei aí a pelado muuuuito difícil para toda a gen- para o Porto sem nós sabermos. gada nossa em que é pontapé de baliza para
dias às quatro da manhã. Aos domingos, carreira de treinador. te, inclusive Benfica, Sporting e Porto. O o Sporting e o árbitro dá canto. Aquilo foi
Arrepende-se? era para descansar. primeiro ano foi bom, o segundo foi mau, Como? muito complicado. Muito mesmo. Vi coisas
Nada. A engenharia ficou pelo caminho Então não foi em Portimão? porque tive uma lesão no menisco. Saiu para o Porto e nós não sabíamos. inenarráveis e o árbitro foi selvaticamente
porque o futebol deu-me tudo o que tenho. Volto ao seu pai. Aí foi a tempo inteiro, em Famalicão foi Fomos de férias de Natal, para aí a 22 ou agredido. Vi um gajo bater no árbitro com
O meu pai era o meu maior crítico. Se só um jogo. Em 1981, assina pelo Braga de Quinito. 23 de dezembro, e voltámos a 27. Achámos um capacete de mota. Lembro-me mesmo
Lembra-se da estreia profissional? ganhasse por dois, deveria ter sido por O Braga de Quinito em 1981-82, depois estranho a sua ausência e perguntámo-nos bem desta imagem. Fomos todos para os
Um Benfica-Leixões, não foi? quatro. Se perdesse por um, era uma por- Como assim? o Braga de Juca em 1982-83. se o Drulov teria ido para a Sérvia. No dia balneários e, já reposta a ordem, a polícia
● Estes são os 10 clubes que Vítor Oliveira, ao longo caria. Nunca estávamos em sintonia, uma Na penúltima jornada, empatámos 2-2 seguinte, fomos informados de que tinha ido queria reatar o jogo. Só que nós tínhamos
Isso mesmo. visão diametralmente oposta à minha. Ele com o Braga. Eu até marco um golo, bem Com o Quinito, o Braga vai ao Jamor. para o Porto. Quatro dias depois, apareceu- um treinador experimentado, matreiro e
Empatámos na Luz. da sua carreira, fez subir à primeira divisão. era um descontente por natureza, um pes- fora da área. Na baliza deles, o Conhé. Essa final da Taça de Portugal é muito -me ele lá em casa, com um dirigente do não voltámos ao campo. Tivemos de arranjar
simista. Só em relação ao futebol, atenção. Nessa noite, a direção do Famalicão despe- provavelmente o momento mais fantástico Porto, a justificar a saída. Havia uma cláusula uns três ou quatro gajos muito feridos.
Hein? de vez em quando, ainda fazíamos uma 6-0 do Leixões na Luz? De resto, era uma pessoa animada, com diu o treinador, um senhor elegantíssimo da minha carreira de jogador. no seu contrato que lhe permitia sair assim.
Empatámos 6-0, eheheheheh. gracinha. Na Luz, era terrível. O túnel da Não. quem se podia falar. chamado Mário Imbelloni. Como?
Luz era enorme. Primeiro que chegássemos Eliminaram quem na meia-final? Como é que o Drulovic aterra em Bar- O nosso massagista teve de meter ade-
Um cabaz. ao campo, era assustador. Depois, aquela Um com o Atlético, em Matosinhos? Ia à pesca com ele? O grande Imbelloni? O Benfica, em Braga. Das poucas vezes celos? sivos em três ou quatro jogadores nossos
Lembro-me de comentarmos que fui massa humana. Não dava. Aquele em que marquei um golo. Nunca fui, nunca tive essa tendência Esse mesmo, um dos jogadores da me- que o 1.º de Maio encheu por completo. Mas O Drulovic estava na Suécia, onde vivia para evitar o reatamento do jogo, senão
certamente dos jogadores que mais vezes para a pesca. Quando era miúdo, íamos lhor equipa do mundo dos anos 40: o San completo mesmo, a transbordar. Ganhá- o irmão de um dirigente do Gil, agora da estava o caldo entornado. O ambiente lá
toquei na bola. E as viagens para Lisboa? Esse mesmo. pescar ao longo do paredão na praia de Lorenzo Almagro. Que veio cá a Portugal mos 2-0 e o Humberto Coelho jogou como Federação Portuguesa de Futebol, chamado fora era mau, muito mau. Não podíamos
Saíamos de Matosinhos às 8h30/9 da ma- Foi o meu primeiro golo de sénior. E de Matosinhos. Íamos pescar, íamos. Metia-me e deu um festival de bola àqueles que lhe avançado nos últimos 20 minutos. Era uma Carlos Coutada. Ora bem, ele avisou-nos voltar ao jogo e não voltámos. A federação
Então? nhã. Almoçávamos em Leiria antes de ar- cabeça. lá a dormir, a apanhar sol, e só acordava apareceram pela frente: Porto, Benfica, tática comum do treinador inglês do Ben- que o irmão tinha três jogadores sérvios deu-nos uma vitória por 3-0.
Era golo deles, a bola ia ao centro, o Ho- rancarmos para Lisboa, onde chegávamos quando a malta nos chamava para ir à praia Sporting, Belenenses. O Imbelloni jogou fica, o John Mortimore. Quando estava muito bons: um extremo-direito, um ponta
rácio tocava para mim e eu dava para trás. às 17h30/18h00. Não havia autoestradas e Era costume marcar e, ainda por cima, porque a maré já estava baixa e dava para ainda no Real Madrid e, depois, cá em empatado ou a perder, metia o Humberto de lança e o Drulovic, que era o mais miúdo Como eram os árbitros de então?
era quase um dia perdido. Por isso, não se de cabeça? jogar futebol no areal. Portugal. lá à frente e o Humberto era um portento. de todos, com uns 21 anos, acho. Ao fim Sempre a favor dos grandes, desequili-
Eheheheheheh. treinava na véspera do jogo. Nas camadas jovens, sim. Marcava muitos Marcava golos a torto e a direito. Às vezes, de dez minutos do primeiro treino, saí do bravam ainda mais a balança. Nem tínha-
Aquilo era muito difícil, dificílimo. Havia golos, até porque comecei a ponta de lança. Deu-se bem no Paredes? Bom homem? até marcava dois por jogo. Um fenómeno. campo e disse ao presidente “você não deixe mos qualquer hipótese.
uma desigualdade gigantesca, a todos os E do Norte para o Algarve? Só depois é que passei a médio e jogava Recomecei a marcar golos e fui o segun- Homem fantástico, que acabou na mi- sair este miúdo”. Era o melhor, de longe.
níveis. Ahhhhh, às vezes até saíamos à sexta- a 8, como se diz agora. Os goleadores de do melhor marcador de toda a 2.ª divisão. séria. Um genro deu-lhe cabo de todo o Na final, o Sporting de Allison foi mais O melhor que já tive. E os jogadores fora de série?
-feira. Depois do jogo, dormíamos nor- serviço eram o Horácio e o Estêvão, ambos Só que o Paredes não subiu. Aliás, fugimos dinheiro, com uma procuração. Só para forte. O Eusébio a marcar golos sem ângulo, o
Como? malmente na estalagem da Barrosinha, muito bons. Há uma história engraçada à 3.ª divisão no último minuto da última ver: quem lhe pagou o bilhete da viagem Sem dúvida, o 4-0 espelha isso mesmo. De volta ao Vítor Oliveira jogador. Yazalde era uma máquina, impressionou-
Profissionalismo, condições de trabalho em Alcácer. Acho que já está desativada. sobre os golos. jornada da liguilha, com o Vilanovense. Um para a Argentina fui eu e o Manuel José. Saí exausto, a 20 minutos do fim. O Fer- A seguir ao Braga, segue-se o quê? -me bastante. E o Cubillas. Nos jogos com
e qualidade dos jogadores. Benfica, Porto No dia seguinte, almoçávamos uns frangos penálti marcado por mim, 3-2 para nós. Dividimos a conta. Uns meses depois, nando Vaz, grande referência do futebol Portimão. Um clube, em ascensão, que o Porto, já eu era jogador, só queria que
e Sporting estavam mesmo muito à frente. a meio caminho e chegávamos a meio da Conte aí. soubemos que ele tinha morrido. Uma português, fez-me um elogio rasgadíssimo pagava muito bem. Chegámos à Europa lhe passassem a bola para o ver jogar. Uma
Entretanto, essa diferença estreitou-se. tarde de segunda-feira. Como lhe disse, fazia muitos golos nos Saiu do Paredes? tristeza. Tal como o Imbelloni, também na crónica de um jornal desportivo, por- com uma equipa boa. Na baliza, Damas. vez, num Porto-Leixões, ele pegou na bola
E agora parece-me outra vez evidente. distritais. E recebia dinheiro por cada um Continuei na 2.ª divisão e assinei pelo o Famalicão demitiu o adjunto Frederico que realmente fiz uma bela exibição. No no meio-campo e driblou uns quatro ou
Os grandes estão mais à frente. Antes, os Uiiiiii, isso dói. deles. Famalicão. Passos. Foram-se embora os dois. Então, fim, só me lembro do Allison com uma Que personagem. cinco até entrar com ela pela baliza dentro.
melhores jogadores de uma equipa média- Os autocarros não eram famosos e as os dirigentes apareceram em casa da mi- garrafa de champanhe numa mão e um Damas foi o melhor guarda-redes que Genial, o Cubillas.
-pequena iam sempre para os grandes, no estradas eram más (havia só um boca- Maravilha. Que tal? nha namorada, agora minha mulher, e charuto na outra a passear-se ali na zona conheci e foi um desgosto enorme quando
final da época. As outras equipas estavam dinho de autoestrada, ali do Carregado Por cada golo, o meu pai dava-me 25 Fomos campeões da zona Norte e depois disseram-me que contavam comigo para dos balneários. Que figura. soube da sua morte. Perdi um amigo nessa Rui Miguel Tovar é colaborador do
sempre sempre sempre em formação. O até Lisboa e dos Carvalhos ao Porto; de tostões, corresponde agora a um euro e ganhámos o título da 2.ª divisão, numa o último jogo. Eu e o adjunto Melo, aquele hora. Era para ser meu adjunto do Porti- Observador, onde assina regularmente a
Benfica, por exemplo, jogava muito na Taça resto, EN1). qualquer coisa. Ao fim de seis ou sete jor- poule com o campeão das zonas Centro baixinho, guarda-redes do Benfica, co- E o que dizer do Quinito de smoking? monense, quando o Manuel José o levou rubrica de entrevistas “Questões do Forno
dos Campeões e ganhava um ritmo impos- nadas, ele desistiu da aposta. e Sul. No jogo do título, demos cinco ou nhecido pelos quatro golos do Lourenço Não foi bem de smoking. Foi mais de pa- para o Sporting, já a caminho dos 40 anos. Interno”. É também autor de vários livros sobre
sível de alcançar para o Leixões. Em casa, Sabe qual foi o jogo seguinte àquele seis-zero ao Barreirense. num Benfica-Sporting. pillon, com um casaco branco. Aquilo foi Era incansável. futebol. O último chama-se “Bola ao Ar”.
92 A NOITE EM QUE FEHÉR CAIU 93

A noite em ele caiu desamparado. Mas, ao se assistiu depois. Lá de cima, da “Ele saiu de ambulância para o

que Fehér caiu


fim de alguns segundos, percebi bancada de imprensa, ouvia-se hospital e aquele final de jogo foi
logo que ele não estava bem e que perfeitamente o que se dizia no muito complicado. Parecia que
não era somente uma lesão. Fez- relvado: o choro dos jogadores, os nunca mais terminava. Todos os
-se tudo o que era possível para o médicos a dizerem para fazer isto, jogadores, até os do Vitória, foram
ajudar. Mas não chegou. Naquele aquilo, para se dar um choque. pedir ao árbitro [Olegário Ben-
Ricardo

(contada por
momento o futebol não interessa Ouvia-se como se se estivesse a querença] para terminar o jogo
nada. O resultado e o jogo não um metro.” Rocha rapidamente. Quando ele apitou,
interessam nada. Foi um colega Ex-jogador fomos a correr para o balneário,
de profissão que morreu à nos- do Benfica tomar banho à pressa, e seguimos
sa frente. Lembro-me de sair do “Nós estávamos, como sempre, de para o hospital. Não sabíamos se

quem lá esteve)
banco e ir a correr para lá. Toda serviço, entre os dois bancos de ele tinha morrido ou não. Toda a
a gente foi a correr até ele. Come- suplentes. De repente, olhei e vi gente chorava muito, mas ainda
cei a perguntar aos jogadores do os jogadores à volta do Fehér, aos havia uma certa esperança. Eu
Benfica se ele se tinha sentido mal gritos, de mãos na cabeça. Corre- pensei que ele se ia safar, por-
durante o dia ou no balneário. Eles mos para lá e ele estava estendido que houve um momento, ainda
diziam-me que não, que estava Júlio no chão, de lado e sem reação. Os no relvado, em que ele reagiu.
tudo bem com ele antes do jogo. Fernandes médicos estavam a tentar fazer a Infelizmente, não. E soubemos

Jogadores, bombeiros, jornalistas e adeptos relatam na primeira pessoa E quando o jogo acabou – houve
consenso por parte do Vitória e do
Bombeiros
Voluntários de
reanimação logo ali. O que fiz pri-
meiro foi afastar os jogadores que
da notícia no hospital. Claro que
ficámos preocupados com a morte
Benfica ao pedir ao árbitro para estavam à volta dele. Era preciso do Miki. Primeiro, com a família
o que viram e sentiram no momento em que Miki Fehér caiu no relvado,
Guimarães
acabar – fui a correr para o hos- espaço para fazer as manobras de dele. Depois connosco, porque
pital, para saber como é que ele reanimação. Naquele momento, aquilo que lhe aconteceu também
numa noite chuvosa de janeiro de 2004. estava. Nós não sabíamos se tinha
morrido ou não.”
como bombeiro, não podia fazer
muito mais. O médico estava a
nos poderia acontecer. Foi difícil
voltar a treinar e a jogar. Antes,
tomar conta do caso e não podia ainda tivemos o velório no estádio
fazer mais. Para além dos médicos [da Luz] e o funeral na Hungria –

Tiago Palma “O meu pai também morreu as-


sim, tal como o Fehér, à minha
frente. A morte do jogador foi
delicada porque me fez reviver
e dos massagistas dos dois clubes,
também vieram para o relvado
médicos que estavam nas banca-
das. Vinham ajudar.”
queríamos muito ir homenagear
o Miki uma última vez. No final
da época, vencemos a Taça de
Portugal. O grupo agarrou-se à
o drama pessoal. Estava na tri- memória dele, ao que ele repre-
Miki foi suplente. Entrou durante a segun- hospital ter com ele. O jogo já não que fizeram, porque chovia muito buna de imprensa, a narrar o sentava para nós, e vencemos. Ele
da parte, aos 59 minutos, quando a hora era de aperto importava nada. A vitória e o meu e, segundo me disseram, não se Fernando jogo, e percebi logo pelo gestos “Não estava a olhar para o Fehér. esteve sempre presente. Sempre.
para o Benfica. Assim havia sido durante quase toda a golo não importavam nada. Feliz- podia usar o desfibrilhador com Eurico veementes dos jogadores o que Mas rapidamente, depois de ele Eu acredito que ele, onde quer
época até àquela noite de 25 de janeiro de 2004, fez esta mente o árbitro foi sensível aos ele molhado. No entanto, como o Jornalista tinha acontecido. O Miki Fehér foi cair, vi os jogadores a correr para que estivesse, lá no céu, deu um
semana 13 anos: o avançado era o “pronto-socorro” do nossos apelos e terminou o jogo hospital é mesmo ao lado do está- da Antena 1 suplente e ainda me recordo de o lá. Os jogadores do Benfica e do empurrão para essa vitória. Para
treinador espanhol José Antonio Camacho. pouco depois. O pior é que nós não dio, acreditei que ele sobrevivesse.” ver entrar, a sorrir, tranquilo – ele Vitória. E, mesmo da bancada, per- essa, e para o título nacional do
Mas aquela não foi uma noite como tantas outras. A sabíamos se ele tinha morrido ou aparentava sempre tranquilidade. cebi pelo gestos deles que pediam ano a seguir.”
noite em Guimarães e no Vitória-Benfica foi chuvosa, não. Ninguém nos dizia. No balne- Quanto à queda, vi-a pelo canto Ricardo para os médicos entrarem depres-
de enregelar. O jogo fora difícil para o Benfica (como ário toda a gente tinha esperança “Fui o primeiro a ver o Fehér es- do olho esquerdo, porque estava Gonçalves sa, que se passava algo grave. Mas
sempre são os jogos em Guimarães) e o golo da vitória que o Miki se ia safar. Estávamos a tendido no chão. Antes de ele cair, a seguir a trajetória da bola, mas Adepto estava longe de imaginar que seria “Ninguém pode imaginar o que
foi arrancado a ferros, mesmo sobre o final. Depois chorar, mas ninguém dizia nada. disputou a bola comigo. Depois, apercebi-me de que alguém tinha do Benfica um problema cardíaco. A primeira foi para os jogadores ver um co-
disso, logo depois, aos 93 minutos, Miki Fehér correu Não era preciso dizer nada. Depois, fui fazer o lançamento, o Fehér caído. Era o Miki Fehér. Profis- coisa que pensei foi que o Fehér lega assim. Estávamos todos em
pela direita atrás de uma bola que foi despejada desde quando chegámos ao hospital, é meteu-se à frente e o árbitro mos- sionalmente, foi-me difícil gerir – que tinha disputado a bola uns choque. Eu tinha muitos colegas
a defesa e lá para a frente. Um adversário chegou pri- que os médicos nos disseram o que trou-lhe o cartão amarelo. Quando o que estava a acontecer, o que minutos antes –, tinha caído mal de seleção a jogar no Benfica. Vi-
meiro, Miki esbarraria com ele, a bola saiu e ia fazer-se ninguém queria ouvir.” Rogério voltei a fazer o lançamento, ele estava a ver. A situação era grave. e sofrido uma lesão grave. Depois, -os a chorar e eu próprio não me
o lançamento. O benfiquista não permitiu, colocou-se Matias afastou-se, recuou uns passos, sor- E o jornalista sente dificuldades recordo-me do silêncio no estádio. Rogério contive. E fui abraçar-me a al-
à frente, estendeu os braços no ar e com eles tocou a Ex-jogador ridente, e caiu. A minha primeira para a descrever. Quase que me No estádio todo. Na bancada, fi- Matias guns. Os adeptos do Vitória come-
bola, vendo o cartão amarelo. Depois, recuou. A sorrir. “Quando o Miki caiu, não estava do Guimarães reação foi pensar: ‘Mas porque é tentava convencer de que a si- cámos a olhar uns para os outros, Ex-jogador çaram a cantar o nome do Fehér
Curvou-se, de mãos pousadas sobre os joelhos, tombou a olhar para ele. Estava na defesa, que ele foi para o chão agora?! tuação não era tão grave quanto sem perceber o que se passava. Os do Guimarães no estádio. Foi impressionante.
de costas, desamparado e perdeu os sentidos. longe dele, e mais concentrado Está a queimar tempo!’ – na altura realmente foi. O drama maior é jogadores estavam abraçados, a Entretanto, entrou a ambulân-
Os colegas acorreram a ele, depois os adversários, por num jogador do Guimarães que o Benfica estava a ganhar 1-0 e o o de não saber, à distância, o que chorar, de mãos na cabeça. Foi aí cia, o Fehér saiu do estádio e o
fim os médicos e os bombeiros. Chorou-se em Guimarães. tinha de marcar. Só o vi caído no jogo estava a acabar. Mas ao fim realmente se estava a passar. Nem que começámos a cantar o nome do Olegário [Benquerença] retomou
E viram-se abraços, gritos e jogadores ajoelhados sobre chão mais tarde e, confesso, pensei de uns segundos, quando o Sokota eu, nem o comentador ao meu Fehér. A ambulância entrou, levou- o jogo. Eu estava sempre a pedir-
o relvado, rezando. Fehér saiu em direção ao hospital. O logo que estivesse a fingir uma se aproximou dele e gritou para lado, nem o repórter de pista. Nin- -o, e os adeptos do Vitória cantaram -lhe para apitar, para acabar com
jogo terminaria logo a seguir. Venceu o Benfica, mas o Ricardo lesão para ‘queimar’ tempo. E até o banco, percebi que era muito guém sabia. Eu olhava para eles, connosco, enquanto aplaudíamos a o jogo.
resultado, a vitória ou a derrota, nada importava mais: Rocha achei bem: estávamos a vencer 1-0, mais grave. Aproximei-me, vi-o o público para nós, e ninguém saída do jogador do estádio.” Quando acabou, corremos
Fehér morrera aos 24 anos. Ex-jogador o jogo estava quase a terminar, jo- inanimado e comecei a saltar, a sabia. Primeiro, tentei transmitir para o balneário, para que nos
Quem lá esteve recorda agora ao Observador — na do Benfica gar com o Vitória é sempre difícil, gritar para o banco também. Vie- uma mensagem de esperança. De- dissessem o que se passava com
primeira pessoa — a noite, o jogo, a morte, os dias que e sempre dava para recuperarmos ram logo os médicos, os do Benfica pois, quando se soube da morte As horas o Fehér. Ninguém sabia. Só quan-
se lhe seguiram, mas sobretudo o homem que os deixou o fôlego. Só quando vi o Sokota e os do Vitória. Estava a chover do Fehér, aí tive de dar a notícia do chegámos ao hospital é que a
a fazer o que melhor fazia, jogar futebol, da única forma a aproximar-se dele e, depois, a muito. Os médicos queriam usar o como ela é.” e os dias seguintes notícia nos foi dada. Aquilo foi
que o sabia fazer, sorrindo. gritar por ajuda, é que percebi desfibrilhador, mas tinham medo muito traumatizante. Nos treinos
que a situação do Miki seria muito de o electrocutar. Ninguém pode “No relvado não foi possível fa- seguintes, ninguém falou sobre o
mais grave. E, infelizmente, foi.” imaginar o pânico que se vivia no “Eu tinha-me iniciado na profis- zer mais nada. Estava a chover assunto. O silêncio era tanto que
O momento relvado. O que me faz mais con- são há pouco tempo. Aquilo foi muito e levámos o jogador para o até escutavas o som dos mosquitos
da queda fusão até hoje é que eu disputei a para mim uma espécie de prova hospital o mais depressa possível. no ar. Não foi fácil esquecer a mor-
“O Miki caiu longe de mim. Eu esta- bola com ele, senti que estava a de fogo. Infelizmente teve de ser Segui com ele na ambulância e os te dele e voltar a jogar. Sobretudo
“Nós estávamos a vencer. Fui eu va no outro lado do relvado. E nem bater num muro, porque ele era uma prova de fogo. Lembro-me médicos continuavam a tentar a durante aquela primeira semana.
que marquei o golo. Vi-o cair prati- o vi a cair. Só quando me aproximei muito alto e forte, e depois caiu, de estar na bancada de imprensa. Júlio reanimação. Não foi possível sal- Perguntava-me: ‘Será que me vai
camente à minha frente. E percebi e vi os jogadores do Benfica aflitos sozinho, como se tivesse caído com Frederico O jogo estava na parte final e o Fernandes var o Fehér. Infelizmente não foi. acontecer o mesmo?’”
logo que se passava algo de grave. é que percebi que seria algo de gra- um sopro.” Mendes Benfica estava a vencer por 1-0. Bombeiros Aquilo abalou-me porque, mais
Fui a correr para lá mal vi o Sokota ve. Ao início até julguei que o Miki Quando vi o Fehér cair, pensei que do que um jogador, uma figura
a gritar para o banco, a chamar o tivesse uma lesão ligeira, muscular,
Oliveira era ‘teatro’ – algo que é habitual
Voluntários de
Guimarães pública, morreu um jovem. Ver “Confesso: tive receio que me
Fernando nosso médico. O Sokota virou o Romeu porque o jogo estava quase a termi- “Lembro-me de estar sentado no Jornalista em alturas como aquela. Ao fim de os jogadores a chorar, sabendo acontecesse também. Todos tí-
Aguiar Miki de lado até o médico chegar. Ex-jogador nar e chovia muito, o relvado estava banco. E, como a bola estava do
da TVI
alguns segundos, e ao presenciar eu que era uma situação crítica, nhamos esse receio. Se aquilo
Ex-jogador Mas o Miki não reagia a nada. Ele do Guimarães ‘pesado’. Cheguei e vi-o inanimado. outro lado do relvado, ninguém o pânico no rosto dos jogadores é algo que custa. Mas fiz o meu aconteceu a um rapaz da minha
do Benfica esteve a ser assistido durante mui- Fiquei ali, à espera de que ele re- no banco se apercebeu da que- – quer do Vitória quer do Benfica trabalho. Tive de conter as lá- idade, um rapaz que sempre co-
tos minutos. E comecei a pensar cuperasse, mas ele não recuperava. da do Fehér. Só mais tarde é que –, a gesticular para o banco, de- grimas e fazer o meu trabalho. É nheci como sendo saudável, tam-
que, mesmo que se safasse, poderia Tudo aquilo foi assustador para percebi que ele não caiu como sesperados, aí percebi que seria difícil. Dormir, nos dias a seguir, Manuel bém me podia acontecer. O pior
ficar com mazelas para a vida. Ele mim. Sentia-me impotente: estava Manuel habitualmente se cai quando há, grave. Em Guimarães, os adeptos é difícil. Sobretudo porque ten- José é que naquelas semanas a seguir
saiu na ambulância e nós voltámos ao pé dele e não podia fazer nada José por exemplo, uma lesão muscular. são fervorosos. E o estádio estava tamos esquecer o que se passou, Ex-jogador à morte do Fehér começaram a
a jogar. Mas o que queríamos era para o salvar. Os próprios médicos Ex-jogador Quando caímos, usamos as mãos completamente cheio. O que mais ligamos a televisão e voltamos a do Guimarães sair muitas notícias de jogadores
sair rapidamente dali e ir para o não podiam fazer muito mais do do Guimarães para suportar a queda. Ele não, me marcou foi o silêncio a que reviver tudo.” que também tinham morrido a
92 A NOITE EM QUE FEHÉR CAIU 93

A noite em ele caiu desamparado. Mas, ao se assistiu depois. Lá de cima, da “Ele saiu de ambulância para o

que Fehér caiu


fim de alguns segundos, percebi bancada de imprensa, ouvia-se hospital e aquele final de jogo foi
logo que ele não estava bem e que perfeitamente o que se dizia no muito complicado. Parecia que
não era somente uma lesão. Fez- relvado: o choro dos jogadores, os nunca mais terminava. Todos os
-se tudo o que era possível para o médicos a dizerem para fazer isto, jogadores, até os do Vitória, foram
ajudar. Mas não chegou. Naquele aquilo, para se dar um choque. pedir ao árbitro [Olegário Ben-
Ricardo

(contada por
momento o futebol não interessa Ouvia-se como se se estivesse a querença] para terminar o jogo
nada. O resultado e o jogo não um metro.” Rocha rapidamente. Quando ele apitou,
interessam nada. Foi um colega Ex-jogador fomos a correr para o balneário,
de profissão que morreu à nos- do Benfica tomar banho à pressa, e seguimos
sa frente. Lembro-me de sair do “Nós estávamos, como sempre, de para o hospital. Não sabíamos se

quem lá esteve)
banco e ir a correr para lá. Toda serviço, entre os dois bancos de ele tinha morrido ou não. Toda a
a gente foi a correr até ele. Come- suplentes. De repente, olhei e vi gente chorava muito, mas ainda
cei a perguntar aos jogadores do os jogadores à volta do Fehér, aos havia uma certa esperança. Eu
Benfica se ele se tinha sentido mal gritos, de mãos na cabeça. Corre- pensei que ele se ia safar, por-
durante o dia ou no balneário. Eles mos para lá e ele estava estendido que houve um momento, ainda
diziam-me que não, que estava Júlio no chão, de lado e sem reação. Os no relvado, em que ele reagiu.
tudo bem com ele antes do jogo. Fernandes médicos estavam a tentar fazer a Infelizmente, não. E soubemos

Jogadores, bombeiros, jornalistas e adeptos relatam na primeira pessoa E quando o jogo acabou – houve
consenso por parte do Vitória e do
Bombeiros
Voluntários de
reanimação logo ali. O que fiz pri-
meiro foi afastar os jogadores que
da notícia no hospital. Claro que
ficámos preocupados com a morte
Benfica ao pedir ao árbitro para estavam à volta dele. Era preciso do Miki. Primeiro, com a família
o que viram e sentiram no momento em que Miki Fehér caiu no relvado,
Guimarães
acabar – fui a correr para o hos- espaço para fazer as manobras de dele. Depois connosco, porque
pital, para saber como é que ele reanimação. Naquele momento, aquilo que lhe aconteceu também
numa noite chuvosa de janeiro de 2004. estava. Nós não sabíamos se tinha
morrido ou não.”
como bombeiro, não podia fazer
muito mais. O médico estava a
nos poderia acontecer. Foi difícil
voltar a treinar e a jogar. Antes,
tomar conta do caso e não podia ainda tivemos o velório no estádio
fazer mais. Para além dos médicos [da Luz] e o funeral na Hungria –

Tiago Palma “O meu pai também morreu as-


sim, tal como o Fehér, à minha
frente. A morte do jogador foi
delicada porque me fez reviver
e dos massagistas dos dois clubes,
também vieram para o relvado
médicos que estavam nas banca-
das. Vinham ajudar.”
queríamos muito ir homenagear
o Miki uma última vez. No final
da época, vencemos a Taça de
Portugal. O grupo agarrou-se à
o drama pessoal. Estava na tri- memória dele, ao que ele repre-
Miki foi suplente. Entrou durante a segun- hospital ter com ele. O jogo já não que fizeram, porque chovia muito buna de imprensa, a narrar o sentava para nós, e vencemos. Ele
da parte, aos 59 minutos, quando a hora era de aperto importava nada. A vitória e o meu e, segundo me disseram, não se Fernando jogo, e percebi logo pelo gestos “Não estava a olhar para o Fehér. esteve sempre presente. Sempre.
para o Benfica. Assim havia sido durante quase toda a golo não importavam nada. Feliz- podia usar o desfibrilhador com Eurico veementes dos jogadores o que Mas rapidamente, depois de ele Eu acredito que ele, onde quer
época até àquela noite de 25 de janeiro de 2004, fez esta mente o árbitro foi sensível aos ele molhado. No entanto, como o Jornalista tinha acontecido. O Miki Fehér foi cair, vi os jogadores a correr para que estivesse, lá no céu, deu um
semana 13 anos: o avançado era o “pronto-socorro” do nossos apelos e terminou o jogo hospital é mesmo ao lado do está- da Antena 1 suplente e ainda me recordo de o lá. Os jogadores do Benfica e do empurrão para essa vitória. Para
treinador espanhol José Antonio Camacho. pouco depois. O pior é que nós não dio, acreditei que ele sobrevivesse.” ver entrar, a sorrir, tranquilo – ele Vitória. E, mesmo da bancada, per- essa, e para o título nacional do
Mas aquela não foi uma noite como tantas outras. A sabíamos se ele tinha morrido ou aparentava sempre tranquilidade. cebi pelo gestos deles que pediam ano a seguir.”
noite em Guimarães e no Vitória-Benfica foi chuvosa, não. Ninguém nos dizia. No balne- Quanto à queda, vi-a pelo canto Ricardo para os médicos entrarem depres-
de enregelar. O jogo fora difícil para o Benfica (como ário toda a gente tinha esperança “Fui o primeiro a ver o Fehér es- do olho esquerdo, porque estava Gonçalves sa, que se passava algo grave. Mas
sempre são os jogos em Guimarães) e o golo da vitória que o Miki se ia safar. Estávamos a tendido no chão. Antes de ele cair, a seguir a trajetória da bola, mas Adepto estava longe de imaginar que seria “Ninguém pode imaginar o que
foi arrancado a ferros, mesmo sobre o final. Depois chorar, mas ninguém dizia nada. disputou a bola comigo. Depois, apercebi-me de que alguém tinha do Benfica um problema cardíaco. A primeira foi para os jogadores ver um co-
disso, logo depois, aos 93 minutos, Miki Fehér correu Não era preciso dizer nada. Depois, fui fazer o lançamento, o Fehér caído. Era o Miki Fehér. Profis- coisa que pensei foi que o Fehér lega assim. Estávamos todos em
pela direita atrás de uma bola que foi despejada desde quando chegámos ao hospital, é meteu-se à frente e o árbitro mos- sionalmente, foi-me difícil gerir – que tinha disputado a bola uns choque. Eu tinha muitos colegas
a defesa e lá para a frente. Um adversário chegou pri- que os médicos nos disseram o que trou-lhe o cartão amarelo. Quando o que estava a acontecer, o que minutos antes –, tinha caído mal de seleção a jogar no Benfica. Vi-
meiro, Miki esbarraria com ele, a bola saiu e ia fazer-se ninguém queria ouvir.” Rogério voltei a fazer o lançamento, ele estava a ver. A situação era grave. e sofrido uma lesão grave. Depois, -os a chorar e eu próprio não me
o lançamento. O benfiquista não permitiu, colocou-se Matias afastou-se, recuou uns passos, sor- E o jornalista sente dificuldades recordo-me do silêncio no estádio. Rogério contive. E fui abraçar-me a al-
à frente, estendeu os braços no ar e com eles tocou a Ex-jogador ridente, e caiu. A minha primeira para a descrever. Quase que me No estádio todo. Na bancada, fi- Matias guns. Os adeptos do Vitória come-
bola, vendo o cartão amarelo. Depois, recuou. A sorrir. “Quando o Miki caiu, não estava do Guimarães reação foi pensar: ‘Mas porque é tentava convencer de que a si- cámos a olhar uns para os outros, Ex-jogador çaram a cantar o nome do Fehér
Curvou-se, de mãos pousadas sobre os joelhos, tombou a olhar para ele. Estava na defesa, que ele foi para o chão agora?! tuação não era tão grave quanto sem perceber o que se passava. Os do Guimarães no estádio. Foi impressionante.
de costas, desamparado e perdeu os sentidos. longe dele, e mais concentrado Está a queimar tempo!’ – na altura realmente foi. O drama maior é jogadores estavam abraçados, a Entretanto, entrou a ambulân-
Os colegas acorreram a ele, depois os adversários, por num jogador do Guimarães que o Benfica estava a ganhar 1-0 e o o de não saber, à distância, o que chorar, de mãos na cabeça. Foi aí cia, o Fehér saiu do estádio e o
fim os médicos e os bombeiros. Chorou-se em Guimarães. tinha de marcar. Só o vi caído no jogo estava a acabar. Mas ao fim realmente se estava a passar. Nem que começámos a cantar o nome do Olegário [Benquerença] retomou
E viram-se abraços, gritos e jogadores ajoelhados sobre chão mais tarde e, confesso, pensei de uns segundos, quando o Sokota eu, nem o comentador ao meu Fehér. A ambulância entrou, levou- o jogo. Eu estava sempre a pedir-
o relvado, rezando. Fehér saiu em direção ao hospital. O logo que estivesse a fingir uma se aproximou dele e gritou para lado, nem o repórter de pista. Nin- -o, e os adeptos do Vitória cantaram -lhe para apitar, para acabar com
jogo terminaria logo a seguir. Venceu o Benfica, mas o Ricardo lesão para ‘queimar’ tempo. E até o banco, percebi que era muito guém sabia. Eu olhava para eles, connosco, enquanto aplaudíamos a o jogo.
resultado, a vitória ou a derrota, nada importava mais: Rocha achei bem: estávamos a vencer 1-0, mais grave. Aproximei-me, vi-o o público para nós, e ninguém saída do jogador do estádio.” Quando acabou, corremos
Fehér morrera aos 24 anos. Ex-jogador o jogo estava quase a terminar, jo- inanimado e comecei a saltar, a sabia. Primeiro, tentei transmitir para o balneário, para que nos
Quem lá esteve recorda agora ao Observador — na do Benfica gar com o Vitória é sempre difícil, gritar para o banco também. Vie- uma mensagem de esperança. De- dissessem o que se passava com
primeira pessoa — a noite, o jogo, a morte, os dias que e sempre dava para recuperarmos ram logo os médicos, os do Benfica pois, quando se soube da morte As horas o Fehér. Ninguém sabia. Só quan-
se lhe seguiram, mas sobretudo o homem que os deixou o fôlego. Só quando vi o Sokota e os do Vitória. Estava a chover do Fehér, aí tive de dar a notícia do chegámos ao hospital é que a
a fazer o que melhor fazia, jogar futebol, da única forma a aproximar-se dele e, depois, a muito. Os médicos queriam usar o como ela é.” e os dias seguintes notícia nos foi dada. Aquilo foi
que o sabia fazer, sorrindo. gritar por ajuda, é que percebi desfibrilhador, mas tinham medo muito traumatizante. Nos treinos
que a situação do Miki seria muito de o electrocutar. Ninguém pode “No relvado não foi possível fa- seguintes, ninguém falou sobre o
mais grave. E, infelizmente, foi.” imaginar o pânico que se vivia no “Eu tinha-me iniciado na profis- zer mais nada. Estava a chover assunto. O silêncio era tanto que
O momento relvado. O que me faz mais con- são há pouco tempo. Aquilo foi muito e levámos o jogador para o até escutavas o som dos mosquitos
da queda fusão até hoje é que eu disputei a para mim uma espécie de prova hospital o mais depressa possível. no ar. Não foi fácil esquecer a mor-
“O Miki caiu longe de mim. Eu esta- bola com ele, senti que estava a de fogo. Infelizmente teve de ser Segui com ele na ambulância e os te dele e voltar a jogar. Sobretudo
“Nós estávamos a vencer. Fui eu va no outro lado do relvado. E nem bater num muro, porque ele era uma prova de fogo. Lembro-me médicos continuavam a tentar a durante aquela primeira semana.
que marquei o golo. Vi-o cair prati- o vi a cair. Só quando me aproximei muito alto e forte, e depois caiu, de estar na bancada de imprensa. Júlio reanimação. Não foi possível sal- Perguntava-me: ‘Será que me vai
camente à minha frente. E percebi e vi os jogadores do Benfica aflitos sozinho, como se tivesse caído com Frederico O jogo estava na parte final e o Fernandes var o Fehér. Infelizmente não foi. acontecer o mesmo?’”
logo que se passava algo de grave. é que percebi que seria algo de gra- um sopro.” Mendes Benfica estava a vencer por 1-0. Bombeiros Aquilo abalou-me porque, mais
Fui a correr para lá mal vi o Sokota ve. Ao início até julguei que o Miki Quando vi o Fehér cair, pensei que do que um jogador, uma figura
a gritar para o banco, a chamar o tivesse uma lesão ligeira, muscular,
Oliveira era ‘teatro’ – algo que é habitual
Voluntários de
Guimarães pública, morreu um jovem. Ver “Confesso: tive receio que me
Fernando nosso médico. O Sokota virou o Romeu porque o jogo estava quase a termi- “Lembro-me de estar sentado no Jornalista em alturas como aquela. Ao fim de os jogadores a chorar, sabendo acontecesse também. Todos tí-
Aguiar Miki de lado até o médico chegar. Ex-jogador nar e chovia muito, o relvado estava banco. E, como a bola estava do
da TVI
alguns segundos, e ao presenciar eu que era uma situação crítica, nhamos esse receio. Se aquilo
Ex-jogador Mas o Miki não reagia a nada. Ele do Guimarães ‘pesado’. Cheguei e vi-o inanimado. outro lado do relvado, ninguém o pânico no rosto dos jogadores é algo que custa. Mas fiz o meu aconteceu a um rapaz da minha
do Benfica esteve a ser assistido durante mui- Fiquei ali, à espera de que ele re- no banco se apercebeu da que- – quer do Vitória quer do Benfica trabalho. Tive de conter as lá- idade, um rapaz que sempre co-
tos minutos. E comecei a pensar cuperasse, mas ele não recuperava. da do Fehér. Só mais tarde é que –, a gesticular para o banco, de- grimas e fazer o meu trabalho. É nheci como sendo saudável, tam-
que, mesmo que se safasse, poderia Tudo aquilo foi assustador para percebi que ele não caiu como sesperados, aí percebi que seria difícil. Dormir, nos dias a seguir, Manuel bém me podia acontecer. O pior
ficar com mazelas para a vida. Ele mim. Sentia-me impotente: estava Manuel habitualmente se cai quando há, grave. Em Guimarães, os adeptos é difícil. Sobretudo porque ten- José é que naquelas semanas a seguir
saiu na ambulância e nós voltámos ao pé dele e não podia fazer nada José por exemplo, uma lesão muscular. são fervorosos. E o estádio estava tamos esquecer o que se passou, Ex-jogador à morte do Fehér começaram a
a jogar. Mas o que queríamos era para o salvar. Os próprios médicos Ex-jogador Quando caímos, usamos as mãos completamente cheio. O que mais ligamos a televisão e voltamos a do Guimarães sair muitas notícias de jogadores
sair rapidamente dali e ir para o não podiam fazer muito mais do do Guimarães para suportar a queda. Ele não, me marcou foi o silêncio a que reviver tudo.” que também tinham morrido a
94 A NOITE EM QUE FEHÉR CAIU CRÓNICA 95

jogar. Houve colegas que logo “Nunca me vou esquecer daquele ceu – sobretudo a um rapaz tão

Pai
nos primeiros treinos depois da dia. Foi chocante para todos nós. novo – foi inacreditável. Nós não
morte dele foram novamente fazer As semanas a seguir custaram-nos nos podemos esquecer nunca que
exames. A morte do Miki fez-nos muito. Mas o grupo uniu-se muito. o futebol é só um jogo. E o que é
repensar tudo.” Mais ainda. Quando o Miki morreu, um jogo comparativamente a uma
estávamos em janeiro e fizemos um vida que se perdeu? Nada.”
Fernando final de época muito bom. Ganhá-
“Depois da narração do jogo fui Aguiar mos a Taça de Portugal por ele. O
em reportagem para a porta do Ex-jogador que aconteceu ao Miki assustou-me. “Eu conhecia-o fora do futebol.
hospital e tive de informar. É algo do Benfica Claro que assustou. Nos treinos, por Quando eu estudava jornalismo
que nunca tinha vivido como pro- exemplo, coloquei muitas vezes os no Porto, ele jogava lá e começou
fissional e espero não voltar a vi- dedos no pulso para tentar perce- a namorar com uma colega minha.
ver. Os dias seguintes não foram ber se estava tudo bem. Nos jogos Lembro-me de ele ir buscá-la à fa-
Fernando fáceis de digerir. Passei a noite não o fazia tanto, porque nos jogos
Frederico
culdade. Como ele jogava no Por-
toda no hospital. E continuei na nem tempo há para pensar nisso. E to, podia ser um tipo distante. Não
Eurico manhã seguinte. Fiquei lá à por- recordo-me de um episódio que até Mendes era. Era muito, muito educado.
Jornalista ta até fisicamente não aguentar me aconteceu fora do treino, pou- E tímido.”
da Antena 1 mais. Sentia quase uma obriga- co depois de o Miki morrer. Estava
Oliveira
ção moral de estar ali, de não me no carro, a conduzir, senti-me mal, Jornalista
da TVI
desligar de uma situação que vivi com falta de ar, com palpitações, e “Eu conhecia bem o Miki. Jogá-
de perto.” tive de encostar à berma e sair. O mos os dois no Porto. Na altura
que lhe aconteceu afetou-me muito ele só arranhava no português,
psicologicamente.” tinha acabado de chegar da Hun-
“Ao descer da bancada para gria, mas não se isolava por cau-
aquela zona onde os jogadores sa disso. Ele convivia connosco. E
passam ao sair dos balneários, O sorriso de Miki almoçávamos muitas vezes. Como
vi-os a correr para o autocarro, jogador, era muito trabalhador,
num choro compulsivo, alguns a com muita garra. Ele era assim
dizerem ‘ele morreu, ele morreu’, “Eu conhecia o Miki desde os tem- porque vinha de um contexto de
Frederico

Laurinda Alves
outros incrédulos, ‘o que vai ser pos em que jogávamos no Braga. vida na Hungria que foi difícil. O
Mendes da nossa vida?’. Não interessa- Eu, o Tiago e ele fizemos uma épo- Romeu Miki queria muito triunfar. Tinha
va mais nada: se o Benfica tinha ca muito boa lá e, depois, reencon- aquela oportunidade de jogar no
Oliveira vencido – e estávamos em janeiro trei-o no Benfica. Éramos os três
Ex-jogador
do Guimarães Porto e queria aproveitar. Como
Jornalista e era importante para o Benfica praticamente da mesma idade. homem, era muito humilde. Sem-
da TVI Ricardo
Escrevo para que outros filhos e outros pais não se
vencer –, se tinha sido o Vitória E sempre fomos muito amigos. pre a sorrir. Eu acredito que se o
a levar os três pontos. Morreu Rocha Quando percebi o que lhe acon- Miki tivesse de escolher um fim,
um futebolista, um ser humano, Ex-jogador teceu, não queria acreditar: não escolheria aquele: caiu a sorrir, a
à nossa frente.” perdi só um colega de balneário, fazer o que mais gostava de fazer,

esqueçam de que tudo passa, menos o amor. No coração


do Benfica
um colega de profissão; perdi um que era jogar futebol. Mas, cla-
amigo. Quando alguém tão próxi- ro, ninguém queria que isto lhe
“Mal o jogo terminou, os jogado- mo de nós morre assim, naquelas acontecesse.”
res saíram a correr do relvado,
nós deixámos as bancadas e se-
guimos para o hospital. O resul-
condições, é muito complicado de
suportar. O Miki era espetacular.
Era simplesmente espetacular. A união que
de um pai ficam para sempre gravados todos os gestos
de amor. No coração dos filhos também.
tado, o jogo e a classificação não Muito simples, divertido, alguém
importavam nada. Queríamos era que queria muito triunfar no Ben- passou rápido
Ricardo sair dali e perceber como estava fica. Ele tinha vivido um período
Gonçalves o jogador. À porta do hospital, e complicado quando estava no “Sim, sentiu-se muita união após
Adepto durante muito tempo, ninguém Porto e queria triunfar.” a morte do Miki. Nós, jogadores, Nem todos temos a expe- forma diferente, justamente por serem bemos que não estávamos preparados. Por Mas não é verdade. Os pais morrem e nós
do Benfica sabia nada. Era uma altura em sentimos. Mas, infelizmente, durou riência de sermos pais, mas todos temos todos iguais no seu coração. A igualdade mais velho que seja, parece que nunca é nunca saberemos o dia. Essa é a nossa única
que ninguém tinha Internet no pouco. Se durou umas semanas foi a experiência de sermos filhos. Mesmo nas famílias, como fora delas, mede-se suficientemente velho para partir. Egoisti- certeza. Tarde ou cedo, quando acontece
telemóvel. Mas lá havia alguém “Eu conheci o Fehér em vários clu- muito. Rapidamente se esqueceu a aqueles que perderam os pais demasiado pela forma diferenciada como cada um é camente apetece que fique connosco muito sentimos que o mundo se torna um lugar
que recebia uma chamada de bes, naquele convívio diário que união. O que interessa no futebol cedo ou nunca chegaram a conhecê-los, e tratado. À medida de cada um. Nem mais, mais tempo, até para podermos ainda repa- estranho. Ao perdermos o pai, perdemos
quem estava em casa e nos in- acontece entre nós, jornalistas, e Fernando em Portugal é falar mal só por até aqueles que foram abandonados ou mal nem menos. rar alguma coisa que, porventura, precise protecção. Mesmo quando o pai não era de
formava do que tinha acontecido os jogadores. Há um episódio que Aguiar falar. Nem somos nós, jogadores; amados sabem a importância dum pai. Na Não ter pai ou não guardar a memória de de ser reparada ou feita de novo. Ser pai e proteger os seus filhos ou, pelo contrário,
no relvado. vivi com ele e do qual nunca me Ex-jogador são pessoas que nunca jogaram na ausência ou em presença, pai é pai. A sua um pai é um drama. Uma ferida que nunca ser filho implica perdoar e ser perdoado. os enchia de preocupações, a sensação é
Vi os jogadores a entrar, cabis- esquecerei. Foi no verão, durante do Benfica vida e criticam-nos, criticam os marca é indelével e a sua influência (ou a sara e pode ficar aberta para sempre. Atra- Exige aceitação e perdão, pois nenhum sempre de perda irreparável. Se era um bom
baixos, a chorar, mas ninguém di- Fernando as férias. É uma altura em que há treinadores… É o país que temos.” sua carência) estende-se pela vida fora. vessar uma vida inteira sem a sua presença, pai é perfeito e nenhum filho é sem man- pai, perdemos o nosso escudo protector, a
zia nada, como se adivinhassem o Eurico pouca informação. Liguei-lhe para Um verdadeiro pai ajuda a crescer, ou perdê-lo demasiado cedo, é uma grande cha. E o tempo é, como dizia Yourcenar, nossa grande referência, o nosso maior e
que ia acontecer a seguir. Aquilo Jornalista o telemóvel, ele atendeu e estava educa, estrutura o carácter, ensina coi- tristeza. Um pai faz uma falta terrível. Para um grande escultor. O tempo serve para mais forte abraço. Se o pai não era como
não foi fácil de digerir. Não inte- da Antena 1 de férias na Hungria. Podia ter- “O futebol não é o mais impor- sas banais e especiais, tem paciência para tudo. Para dar colo, para ensinar a andar nos afastarmos e voltarmos a aproximar, gostávamos que fosse, também perdemos
ressava quem tinha morrido. -me despachado rapidamente – tante e todos temos de perceber ouvir, enche de confiança, mostra mundos e até a nadar, mas também para orientar porque há realmente um tempo para tudo. a ilusão de um dia podermos chegar a um
O Miki não era o melhor jogador afinal, as férias para os jogadores isso. Há valores mais importantes. novos, consola na tristeza, alegra-se com e dar exemplo. Para que os filhos possam E é esse tempo que apetece aproveitar, ponto de equilíbrio ou até de reconciliação
do Benfica – era um tipo esforça- são quase sagradas. Mas não. Ele A vida de alguém é mais impor- as alegrias, leva pela mão, protege, sabe aprender com ele a lidar com as conquistas, mas nem sempre nos é dado. Ou não é dado (nem que fosse uma reconciliação com o
do, os adeptos reconheciam isso, foi o Fehér de sempre: tranquilo, tante. A morte dele uniu toda a sempre como espantar os medos e con- mas também a viver a dor e os sofrimentos. a todos na mesma medida. pai real, deixando para trás o pai ideal ou
mas não era o melhor. Ali, o que de uma simpatia extrema. Aquilo gente: jogadores, treinadores, vocar a coragem, conta histórias antigas, A mãe e outras pessoas igualmente queridas Uma das grandes marcas que ficam para idealizado).
interessava é que tinha morrido, reconfortou-me. E é a imagem que Rogério dirigentes, comentadores. Toda fala dos avós e de outros tempos, diz coisas podem estar presentes nos momentos mar- a vida são as memórias das conversas e dos Porque os pais morrem e nunca sabere-
com a camisola do clube vestida, quero guardar dele. À parte de Matias a gente. Uniu-nos. Mas é o que já que mais ninguém diz e faz coisas que mais cantes ou inaugurais dos primeiros passos, abraços de pai, seja quando os pais são de mos o dia, nem a hora, importa ter muito
um jogador, qualquer que seja, ser um belíssimo avançado, é essa Ex-jogador sabemos: passado um tempo, volta ninguém faz. Um bom pai faz perguntas das primeiras braçadas ou das primeiras abraçar com naturalidade, seja quando presente esta verdade. Faz diferença vi-
melhor ou pior. Daquele dia em imagem que guardo.” do Guimarães tudo ao que era. Faz parte.” directas, não evita as conversas difíceis, diz pedaladas numa bicicleta sem rodinhas, nem sequer têm facilidade para o fazer. Se vermos com esta certeza, para não nos
diante, até ao final da época, nota- o que tem a dizer mesmo quando isso lhe mas não é a mesma coisa. O orgulho de o abraço demora ou custa a chegar, sabe acontecer deixar alguma coisa por fazer ou
va-se claramente que os jogadores custa e, tal como os bons mestres, espera um pai, quando sente no filho a confiança ainda melhor. Mas tão vital como receber por dizer. O meu pai morreu quando ab-
queriam vencer alguma coisa pelo “Eu conhecia o Fehér dos tempos “Foram dias difíceis, mas que vie- que os filhos percebam mais à frente aquilo para caminhar, para nadar ou para desatar abraços é (re)aprender a dá-los. Na idade solutamente ninguém esperava. Morámos
Fehér. E os adeptos também. Ga- do Porto. Somos praticamente da ram provar que depois dos no- que nem sempre conseguem compreender a andar sozinho de bicicleta é inigualável. adulta a vida torna-se tão acelerada e tão juntos nos últimos anos e vivemos todos na
nhámos a Taça de Portugal. Acho mesma idade e jogámos os dois na venta minutos mais nada importa. ou aceitar de imediato. Todos os filhos pequenos mereciam ter exigente, que demasiadas vezes esses abra- mesma casa durante o tempo suficiente
que foi uma bonita homenagem equipa B. E éramos quase vizinhos, O drama do Miki Fehér uniu o fu- Quem teve a sorte de ser filho de um um pai para estes e outros momentos de ços ficam por dar. E muitas palavras ficam para que nada de essencial ficasse por dizer
ao jogador. em Gaia. O Miki era exatamente tebol, os clubes, os dirigentes, os bom pai sabe que é um homem capaz de viragem, mas muito mais importante do por dizer, também. Quando pais e filhos ou fazer, mas mesmo assim a perda é irre-
Hoje em dia, sempre que o Ben- aquilo que vimos quando ele caiu: jogadores. As guerrilhas, a discus- tudo isto e muito mais. Capaz de ralhar que tê-lo para as coisas inaugurais, é contar deixam de morar juntos, tudo se complica. mediável. Por isso escrevo para que outros
fica regressa a Guimarães, canta- Manuel um homem feliz, sempre a sorrir. Fernando são, a obsessão pelo poder, pela e perder a cabeça, também, mas com a com ele para as gargalhadas e as lágrimas, As visitas nem sempre são regulares, a filhos e outros pais não se esqueçam de que
-se sempre o nome do Fehér. Ainda José Ele tinha o futuro pela frente e foi Eurico vitória, nada tinha razão de ser. mesma verdade com que abraça e pega ao sabendo-o próximo todos os dias, durante distância parece que aumenta (e em certos tudo passa, menos o amor. No coração de
neste último jogo cantámos. Nin- Ex-jogador isso que mais me custou. O Miki Jornalista Bastou uma tragédia e as pessoas colo. Um homem aprende a ser pai com o longos anos. casos aumenta mesmo, de forma radical) um pai ficam para sempre gravados todos
guém se vai esquecer dele.” do Guimarães deixou saudades. O que aconte- da Antena 1 baixaram a guarda.” seu primeiro filho, mas não se relaciona Infelizmente nenhum pai dura para sem- e tudo é feito numa vertigem. os gestos de amor, mesmo os mais ínfimos.
do mesmo modo com todos. Pode ter os pre. Nunca saberemos quando será o seu Acontece que os pais não são eternos. Não No coração dos filhos também.
mesmos critérios e tentar ser igualmente último dia, mas esse dia chega muitas vezes duram para sempre, embora nos custe acre-
justo, mas se for realmente um pai bom, quando menos esperamos. Acordamos com ditar nessa realidade. Se tivemos a sorte de Laurinda Alves é jornalista e autora
sabe que tem de ser único e especial para pai e adormecemos órfãos. Assim mesmo. ter uma vida longa com pais presentes e pró- de vários livros. O último chama-se
Tiago Palma é jornalista do Observador, onde nuns dias escreve sobre Desporto e noutros dias escreve sobre tudo. cada filho. E procura tratar cada um de E no momento em que o perdemos, perce- ximos, eles chegam a parecer-nos eternos. “Quero Acreditar” e foi lançado em 2016.
94 A NOITE EM QUE FEHÉR CAIU CRÓNICA 95

jogar. Houve colegas que logo “Nunca me vou esquecer daquele ceu – sobretudo a um rapaz tão

Pai
nos primeiros treinos depois da dia. Foi chocante para todos nós. novo – foi inacreditável. Nós não
morte dele foram novamente fazer As semanas a seguir custaram-nos nos podemos esquecer nunca que
exames. A morte do Miki fez-nos muito. Mas o grupo uniu-se muito. o futebol é só um jogo. E o que é
repensar tudo.” Mais ainda. Quando o Miki morreu, um jogo comparativamente a uma
estávamos em janeiro e fizemos um vida que se perdeu? Nada.”
Fernando final de época muito bom. Ganhá-
“Depois da narração do jogo fui Aguiar mos a Taça de Portugal por ele. O
em reportagem para a porta do Ex-jogador que aconteceu ao Miki assustou-me. “Eu conhecia-o fora do futebol.
hospital e tive de informar. É algo do Benfica Claro que assustou. Nos treinos, por Quando eu estudava jornalismo
que nunca tinha vivido como pro- exemplo, coloquei muitas vezes os no Porto, ele jogava lá e começou
fissional e espero não voltar a vi- dedos no pulso para tentar perce- a namorar com uma colega minha.
ver. Os dias seguintes não foram ber se estava tudo bem. Nos jogos Lembro-me de ele ir buscá-la à fa-
Fernando fáceis de digerir. Passei a noite não o fazia tanto, porque nos jogos
Frederico
culdade. Como ele jogava no Por-
toda no hospital. E continuei na nem tempo há para pensar nisso. E to, podia ser um tipo distante. Não
Eurico manhã seguinte. Fiquei lá à por- recordo-me de um episódio que até Mendes era. Era muito, muito educado.
Jornalista ta até fisicamente não aguentar me aconteceu fora do treino, pou- E tímido.”
da Antena 1 mais. Sentia quase uma obriga- co depois de o Miki morrer. Estava
Oliveira
ção moral de estar ali, de não me no carro, a conduzir, senti-me mal, Jornalista
da TVI
desligar de uma situação que vivi com falta de ar, com palpitações, e “Eu conhecia bem o Miki. Jogá-
de perto.” tive de encostar à berma e sair. O mos os dois no Porto. Na altura
que lhe aconteceu afetou-me muito ele só arranhava no português,
psicologicamente.” tinha acabado de chegar da Hun-
“Ao descer da bancada para gria, mas não se isolava por cau-
aquela zona onde os jogadores sa disso. Ele convivia connosco. E
passam ao sair dos balneários, O sorriso de Miki almoçávamos muitas vezes. Como
vi-os a correr para o autocarro, jogador, era muito trabalhador,
num choro compulsivo, alguns a com muita garra. Ele era assim
dizerem ‘ele morreu, ele morreu’, “Eu conhecia o Miki desde os tem- porque vinha de um contexto de
Frederico

Laurinda Alves
outros incrédulos, ‘o que vai ser pos em que jogávamos no Braga. vida na Hungria que foi difícil. O
Mendes da nossa vida?’. Não interessa- Eu, o Tiago e ele fizemos uma épo- Romeu Miki queria muito triunfar. Tinha
va mais nada: se o Benfica tinha ca muito boa lá e, depois, reencon- aquela oportunidade de jogar no
Oliveira vencido – e estávamos em janeiro trei-o no Benfica. Éramos os três
Ex-jogador
do Guimarães Porto e queria aproveitar. Como
Jornalista e era importante para o Benfica praticamente da mesma idade. homem, era muito humilde. Sem-
da TVI Ricardo
Escrevo para que outros filhos e outros pais não se
vencer –, se tinha sido o Vitória E sempre fomos muito amigos. pre a sorrir. Eu acredito que se o
a levar os três pontos. Morreu Rocha Quando percebi o que lhe acon- Miki tivesse de escolher um fim,
um futebolista, um ser humano, Ex-jogador teceu, não queria acreditar: não escolheria aquele: caiu a sorrir, a
à nossa frente.” perdi só um colega de balneário, fazer o que mais gostava de fazer,

esqueçam de que tudo passa, menos o amor. No coração


do Benfica
um colega de profissão; perdi um que era jogar futebol. Mas, cla-
amigo. Quando alguém tão próxi- ro, ninguém queria que isto lhe
“Mal o jogo terminou, os jogado- mo de nós morre assim, naquelas acontecesse.”
res saíram a correr do relvado,
nós deixámos as bancadas e se-
guimos para o hospital. O resul-
condições, é muito complicado de
suportar. O Miki era espetacular.
Era simplesmente espetacular. A união que
de um pai ficam para sempre gravados todos os gestos
de amor. No coração dos filhos também.
tado, o jogo e a classificação não Muito simples, divertido, alguém
importavam nada. Queríamos era que queria muito triunfar no Ben- passou rápido
Ricardo sair dali e perceber como estava fica. Ele tinha vivido um período
Gonçalves o jogador. À porta do hospital, e complicado quando estava no “Sim, sentiu-se muita união após
Adepto durante muito tempo, ninguém Porto e queria triunfar.” a morte do Miki. Nós, jogadores, Nem todos temos a expe- forma diferente, justamente por serem bemos que não estávamos preparados. Por Mas não é verdade. Os pais morrem e nós
do Benfica sabia nada. Era uma altura em sentimos. Mas, infelizmente, durou riência de sermos pais, mas todos temos todos iguais no seu coração. A igualdade mais velho que seja, parece que nunca é nunca saberemos o dia. Essa é a nossa única
que ninguém tinha Internet no pouco. Se durou umas semanas foi a experiência de sermos filhos. Mesmo nas famílias, como fora delas, mede-se suficientemente velho para partir. Egoisti- certeza. Tarde ou cedo, quando acontece
telemóvel. Mas lá havia alguém “Eu conheci o Fehér em vários clu- muito. Rapidamente se esqueceu a aqueles que perderam os pais demasiado pela forma diferenciada como cada um é camente apetece que fique connosco muito sentimos que o mundo se torna um lugar
que recebia uma chamada de bes, naquele convívio diário que união. O que interessa no futebol cedo ou nunca chegaram a conhecê-los, e tratado. À medida de cada um. Nem mais, mais tempo, até para podermos ainda repa- estranho. Ao perdermos o pai, perdemos
quem estava em casa e nos in- acontece entre nós, jornalistas, e Fernando em Portugal é falar mal só por até aqueles que foram abandonados ou mal nem menos. rar alguma coisa que, porventura, precise protecção. Mesmo quando o pai não era de
formava do que tinha acontecido os jogadores. Há um episódio que Aguiar falar. Nem somos nós, jogadores; amados sabem a importância dum pai. Na Não ter pai ou não guardar a memória de de ser reparada ou feita de novo. Ser pai e proteger os seus filhos ou, pelo contrário,
no relvado. vivi com ele e do qual nunca me Ex-jogador são pessoas que nunca jogaram na ausência ou em presença, pai é pai. A sua um pai é um drama. Uma ferida que nunca ser filho implica perdoar e ser perdoado. os enchia de preocupações, a sensação é
Vi os jogadores a entrar, cabis- esquecerei. Foi no verão, durante do Benfica vida e criticam-nos, criticam os marca é indelével e a sua influência (ou a sara e pode ficar aberta para sempre. Atra- Exige aceitação e perdão, pois nenhum sempre de perda irreparável. Se era um bom
baixos, a chorar, mas ninguém di- Fernando as férias. É uma altura em que há treinadores… É o país que temos.” sua carência) estende-se pela vida fora. vessar uma vida inteira sem a sua presença, pai é perfeito e nenhum filho é sem man- pai, perdemos o nosso escudo protector, a
zia nada, como se adivinhassem o Eurico pouca informação. Liguei-lhe para Um verdadeiro pai ajuda a crescer, ou perdê-lo demasiado cedo, é uma grande cha. E o tempo é, como dizia Yourcenar, nossa grande referência, o nosso maior e
que ia acontecer a seguir. Aquilo Jornalista o telemóvel, ele atendeu e estava educa, estrutura o carácter, ensina coi- tristeza. Um pai faz uma falta terrível. Para um grande escultor. O tempo serve para mais forte abraço. Se o pai não era como
não foi fácil de digerir. Não inte- da Antena 1 de férias na Hungria. Podia ter- “O futebol não é o mais impor- sas banais e especiais, tem paciência para tudo. Para dar colo, para ensinar a andar nos afastarmos e voltarmos a aproximar, gostávamos que fosse, também perdemos
ressava quem tinha morrido. -me despachado rapidamente – tante e todos temos de perceber ouvir, enche de confiança, mostra mundos e até a nadar, mas também para orientar porque há realmente um tempo para tudo. a ilusão de um dia podermos chegar a um
O Miki não era o melhor jogador afinal, as férias para os jogadores isso. Há valores mais importantes. novos, consola na tristeza, alegra-se com e dar exemplo. Para que os filhos possam E é esse tempo que apetece aproveitar, ponto de equilíbrio ou até de reconciliação
do Benfica – era um tipo esforça- são quase sagradas. Mas não. Ele A vida de alguém é mais impor- as alegrias, leva pela mão, protege, sabe aprender com ele a lidar com as conquistas, mas nem sempre nos é dado. Ou não é dado (nem que fosse uma reconciliação com o
do, os adeptos reconheciam isso, foi o Fehér de sempre: tranquilo, tante. A morte dele uniu toda a sempre como espantar os medos e con- mas também a viver a dor e os sofrimentos. a todos na mesma medida. pai real, deixando para trás o pai ideal ou
mas não era o melhor. Ali, o que de uma simpatia extrema. Aquilo gente: jogadores, treinadores, vocar a coragem, conta histórias antigas, A mãe e outras pessoas igualmente queridas Uma das grandes marcas que ficam para idealizado).
interessava é que tinha morrido, reconfortou-me. E é a imagem que Rogério dirigentes, comentadores. Toda fala dos avós e de outros tempos, diz coisas podem estar presentes nos momentos mar- a vida são as memórias das conversas e dos Porque os pais morrem e nunca sabere-
com a camisola do clube vestida, quero guardar dele. À parte de Matias a gente. Uniu-nos. Mas é o que já que mais ninguém diz e faz coisas que mais cantes ou inaugurais dos primeiros passos, abraços de pai, seja quando os pais são de mos o dia, nem a hora, importa ter muito
um jogador, qualquer que seja, ser um belíssimo avançado, é essa Ex-jogador sabemos: passado um tempo, volta ninguém faz. Um bom pai faz perguntas das primeiras braçadas ou das primeiras abraçar com naturalidade, seja quando presente esta verdade. Faz diferença vi-
melhor ou pior. Daquele dia em imagem que guardo.” do Guimarães tudo ao que era. Faz parte.” directas, não evita as conversas difíceis, diz pedaladas numa bicicleta sem rodinhas, nem sequer têm facilidade para o fazer. Se vermos com esta certeza, para não nos
diante, até ao final da época, nota- o que tem a dizer mesmo quando isso lhe mas não é a mesma coisa. O orgulho de o abraço demora ou custa a chegar, sabe acontecer deixar alguma coisa por fazer ou
va-se claramente que os jogadores custa e, tal como os bons mestres, espera um pai, quando sente no filho a confiança ainda melhor. Mas tão vital como receber por dizer. O meu pai morreu quando ab-
queriam vencer alguma coisa pelo “Eu conhecia o Fehér dos tempos “Foram dias difíceis, mas que vie- que os filhos percebam mais à frente aquilo para caminhar, para nadar ou para desatar abraços é (re)aprender a dá-los. Na idade solutamente ninguém esperava. Morámos
Fehér. E os adeptos também. Ga- do Porto. Somos praticamente da ram provar que depois dos no- que nem sempre conseguem compreender a andar sozinho de bicicleta é inigualável. adulta a vida torna-se tão acelerada e tão juntos nos últimos anos e vivemos todos na
nhámos a Taça de Portugal. Acho mesma idade e jogámos os dois na venta minutos mais nada importa. ou aceitar de imediato. Todos os filhos pequenos mereciam ter exigente, que demasiadas vezes esses abra- mesma casa durante o tempo suficiente
que foi uma bonita homenagem equipa B. E éramos quase vizinhos, O drama do Miki Fehér uniu o fu- Quem teve a sorte de ser filho de um um pai para estes e outros momentos de ços ficam por dar. E muitas palavras ficam para que nada de essencial ficasse por dizer
ao jogador. em Gaia. O Miki era exatamente tebol, os clubes, os dirigentes, os bom pai sabe que é um homem capaz de viragem, mas muito mais importante do por dizer, também. Quando pais e filhos ou fazer, mas mesmo assim a perda é irre-
Hoje em dia, sempre que o Ben- aquilo que vimos quando ele caiu: jogadores. As guerrilhas, a discus- tudo isto e muito mais. Capaz de ralhar que tê-lo para as coisas inaugurais, é contar deixam de morar juntos, tudo se complica. mediável. Por isso escrevo para que outros
fica regressa a Guimarães, canta- Manuel um homem feliz, sempre a sorrir. Fernando são, a obsessão pelo poder, pela e perder a cabeça, também, mas com a com ele para as gargalhadas e as lágrimas, As visitas nem sempre são regulares, a filhos e outros pais não se esqueçam de que
-se sempre o nome do Fehér. Ainda José Ele tinha o futuro pela frente e foi Eurico vitória, nada tinha razão de ser. mesma verdade com que abraça e pega ao sabendo-o próximo todos os dias, durante distância parece que aumenta (e em certos tudo passa, menos o amor. No coração de
neste último jogo cantámos. Nin- Ex-jogador isso que mais me custou. O Miki Jornalista Bastou uma tragédia e as pessoas colo. Um homem aprende a ser pai com o longos anos. casos aumenta mesmo, de forma radical) um pai ficam para sempre gravados todos
guém se vai esquecer dele.” do Guimarães deixou saudades. O que aconte- da Antena 1 baixaram a guarda.” seu primeiro filho, mas não se relaciona Infelizmente nenhum pai dura para sem- e tudo é feito numa vertigem. os gestos de amor, mesmo os mais ínfimos.
do mesmo modo com todos. Pode ter os pre. Nunca saberemos quando será o seu Acontece que os pais não são eternos. Não No coração dos filhos também.
mesmos critérios e tentar ser igualmente último dia, mas esse dia chega muitas vezes duram para sempre, embora nos custe acre-
justo, mas se for realmente um pai bom, quando menos esperamos. Acordamos com ditar nessa realidade. Se tivemos a sorte de Laurinda Alves é jornalista e autora
sabe que tem de ser único e especial para pai e adormecemos órfãos. Assim mesmo. ter uma vida longa com pais presentes e pró- de vários livros. O último chama-se
Tiago Palma é jornalista do Observador, onde nuns dias escreve sobre Desporto e noutros dias escreve sobre tudo. cada filho. E procura tratar cada um de E no momento em que o perdemos, perce- ximos, eles chegam a parecer-nos eternos. “Quero Acreditar” e foi lançado em 2016.
96 JORGE BACELAR 97

Jorge
Bacelar,
o veterinário
da Murtosa
apaixonado
pela fotografia
Fotografia Jorge Bacelar Texto Marta Leite Ferreira
96 JORGE BACELAR 97

Jorge
Bacelar,
o veterinário
da Murtosa
apaixonado
pela fotografia
Fotografia Jorge Bacelar Texto Marta Leite Ferreira
98 JORGE BACELAR JORGE BACELAR 99

Como é o dia de Não há timidez?


um veterinário Tenho uma relação
de grande proximidade
numa terra com os agricultores e esta
como Murtosa? cumplicidade sente-se,
A Murtosa é um concelho certamente, nas minhas
rural. Grande parte dos seus fotografias. Colaboram comigo
moradores vive essencialmente e quando estou a fotografar
do setor primário e dedica-se à passo várias horas com eles a
agricultura, principalmente à falar e a fotografar. Desabafam
criação de gado para produção comigo as suas amarguras e isso
de leite, e à pesca, na ria de faz-me sentir ainda mais seu
Aveiro e no mar. E eu, como amigo.
médico veterinário, faço clínica
de espécies pecuárias e sanidade Como reagem
animal há mais de vinte anos.
Trabalho diariamente com quando as veem?
os agricultores da região de Reagem muito bem quando
Aveiro, a “região marinhoa”, lhes mostro ou ofereço as
essencialmente nos concelhos fotos. Dizem-me que são muito
da Murtosa e Estarreja. bonitas e que parecem pinturas.
É para mim uma grande
alegria receber os seus elogios
Esta paixão e saber que gostaram de ser
pela fotografia fotografados por mim.
é antiga?
É muito recente. Comecei a Alguma destas
fotografar há cerca de quatro fotografias tem
anos.
uma história mais
O que aconteceu especial para si?
Todas elas têm uma história.
há quatro anos Quando as vejo, recordo-me
para se dedicar dos momentos e do que senti
à fotografia? ao fotografá-las. Por isso é que
Decidi fotografar porque considero a fotografia como um
sinto que não é dada a devida diário da minha vida. O poder de
importância aos agricultores. registar e perpetuar momentos
Se hoje tivemos direito a uma torna a fotografia mágica. Mas
refeição é porque existem normalmente, quando publico
agricultores. São pessoas que as fotos, não identifico as
dedicam toda a sua vida à pessoas, nem descrevo os
agricultura, a um trabalho duro. momentos, porque penso que
Mas são pouco reconhecidos, uma boa fotografia deve ela
pessoas esquecidas. própria contar uma história.

E porquê a Que cuidados


fotografia para técnicos tem
mudar essa e que tipo de
realidade? edição levam
Porque sinto um grande as imagens?
carinho e admiração por eles Quando vou fotografar,
e, desta forma, tento eternizar normalmente não tenho nada
estes momentos com os meus idealizado. Observo o local
agricultores e tento, também, e procuro registar o que vou
homenageá-los. São pessoas vendo. Fotografo sempre
que me recebem como um dentro de currais ou em
membro da família e que me cozinhas antigas, com pouca
deram o privilégio de poder luz, e só utilizo a luz natural
fazer este trabalho fotográfico. que entra nestes locais.
São pequenos agricultores, a
maioria com poucos recursos
económicos, que ainda utilizam
Mas sabe o
as cozinhas tradicionais e que quer no
cozinham com panelas antigas, resultado final...
na lenha. Ao entrarmos dentro Vejo a fotografia como
das suas casas é como se uma pintura. Assim como um
recuássemos no tempo. pintor procura a melhor pose
e enquadramento nas suas
E as pessoas pinturas, tento fazer o mesmo
estão todas com a fotografia. Procuro
as melhores composições e
dispostas a serem a melhor incidência de luz.
fotografadas? Considero-me um retratista.
A maior parte das pessoas Tento mostrar um mundo rural,
não se importa de ser que muitos desconhecem, de
fotografada. Peço sempre forma genuína. Uma fotografia
autorização e agendo com de afetos. Da relação dos
elas a melhor altura para agricultores com o seu mundo
poder fotografar à vontade. e com os seus animais.
Normalmente, agendo para um
fim de semana e, assim, consigo Marta Leite Ferreira
concentrar-me só mesmo na é jornalista do Observador, onde
fotografia. iniciou a sua carreira em 2015.
98 JORGE BACELAR JORGE BACELAR 99

Como é o dia de Não há timidez?


um veterinário Tenho uma relação
de grande proximidade
numa terra com os agricultores e esta
como Murtosa? cumplicidade sente-se,
A Murtosa é um concelho certamente, nas minhas
rural. Grande parte dos seus fotografias. Colaboram comigo
moradores vive essencialmente e quando estou a fotografar
do setor primário e dedica-se à passo várias horas com eles a
agricultura, principalmente à falar e a fotografar. Desabafam
criação de gado para produção comigo as suas amarguras e isso
de leite, e à pesca, na ria de faz-me sentir ainda mais seu
Aveiro e no mar. E eu, como amigo.
médico veterinário, faço clínica
de espécies pecuárias e sanidade Como reagem
animal há mais de vinte anos.
Trabalho diariamente com quando as veem?
os agricultores da região de Reagem muito bem quando
Aveiro, a “região marinhoa”, lhes mostro ou ofereço as
essencialmente nos concelhos fotos. Dizem-me que são muito
da Murtosa e Estarreja. bonitas e que parecem pinturas.
É para mim uma grande
alegria receber os seus elogios
Esta paixão e saber que gostaram de ser
pela fotografia fotografados por mim.
é antiga?
É muito recente. Comecei a Alguma destas
fotografar há cerca de quatro fotografias tem
anos.
uma história mais
O que aconteceu especial para si?
Todas elas têm uma história.
há quatro anos Quando as vejo, recordo-me
para se dedicar dos momentos e do que senti
à fotografia? ao fotografá-las. Por isso é que
Decidi fotografar porque considero a fotografia como um
sinto que não é dada a devida diário da minha vida. O poder de
importância aos agricultores. registar e perpetuar momentos
Se hoje tivemos direito a uma torna a fotografia mágica. Mas
refeição é porque existem normalmente, quando publico
agricultores. São pessoas que as fotos, não identifico as
dedicam toda a sua vida à pessoas, nem descrevo os
agricultura, a um trabalho duro. momentos, porque penso que
Mas são pouco reconhecidos, uma boa fotografia deve ela
pessoas esquecidas. própria contar uma história.

E porquê a Que cuidados


fotografia para técnicos tem
mudar essa e que tipo de
realidade? edição levam
Porque sinto um grande as imagens?
carinho e admiração por eles Quando vou fotografar,
e, desta forma, tento eternizar normalmente não tenho nada
estes momentos com os meus idealizado. Observo o local
agricultores e tento, também, e procuro registar o que vou
homenageá-los. São pessoas vendo. Fotografo sempre
que me recebem como um dentro de currais ou em
membro da família e que me cozinhas antigas, com pouca
deram o privilégio de poder luz, e só utilizo a luz natural
fazer este trabalho fotográfico. que entra nestes locais.
São pequenos agricultores, a
maioria com poucos recursos
económicos, que ainda utilizam
Mas sabe o
as cozinhas tradicionais e que quer no
cozinham com panelas antigas, resultado final...
na lenha. Ao entrarmos dentro Vejo a fotografia como
das suas casas é como se uma pintura. Assim como um
recuássemos no tempo. pintor procura a melhor pose
e enquadramento nas suas
E as pessoas pinturas, tento fazer o mesmo
estão todas com a fotografia. Procuro
as melhores composições e
dispostas a serem a melhor incidência de luz.
fotografadas? Considero-me um retratista.
A maior parte das pessoas Tento mostrar um mundo rural,
não se importa de ser que muitos desconhecem, de
fotografada. Peço sempre forma genuína. Uma fotografia
autorização e agendo com de afetos. Da relação dos
elas a melhor altura para agricultores com o seu mundo
poder fotografar à vontade. e com os seus animais.
Normalmente, agendo para um
fim de semana e, assim, consigo Marta Leite Ferreira
concentrar-me só mesmo na é jornalista do Observador, onde
fotografia. iniciou a sua carreira em 2015.
100 O EVANGELHO DE SARAMAGO 101

O veto ao
Em 1992, o subsecretário de Estado da Cultura afastou
José Saramago de um prémio literário. Magoado, o

Evangelho
escritor deixou Portugal e anos depois viria a ganhar o
Nobel. Sousa Lara diz ter rezado por ele. Esta é a história
do veto a O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

de Saramago,
25 anos depois
Texto Joana Stichini Vilela
Ilustração Nuno Saraiva

– “Quer que lhe conte o que se pas- representa Portugal”, justifica Sousa Lara A 14 de abril, avançará o jornal O Inde- com ele”, conta. “E eu lembro-me de ter
sou? Normalmente, é publicado errado.” ao jornalista do Público. “Não me pedi- pendente, Sousa Lara recebe do Instituto respondido por telefone, ‘Olha, Manuel,
– “Quando quiser. Está a gravar.” ram um julgamento sobre a obra inteira Português do Livro e da Leitura (IPLL) não te agradeço. Já estou...’ E depois disse
António Sousa Lara, 65 anos, senta-se na de Saramago, mas sobre este livro. Ora, um ofício com a sugestão de três nomes um palavrão que equivale a ‘lixado’ mas
primeira fila do pequeno auditório da Aca- há questões pessoais que me modelam, para candidatos ao PLE: Saramago, Pedro começa por ‘f’. Sic.” A administração in-
demia de Letras e Artes, no Monte Estoril, às quais não me oponho por questões de Tamen e Fiama Hasse Pais Brandão. A lista terna, explica, “tinha tudo a ver” com o
instituição a que preside e que funciona consciência pessoal.” fora elaborada depois de consultados a seu perfil. “A minha tese de doutoramento
“por caturreira” há 30 anos. Porte aristo- Saramago escusa-se a comentar. Só sabe Associação Portuguesa de Escritores, o Pen é sobre subversão do Estado.” Quanto à
crático, chapéu de feltro na cabeça, anel da notícia pelo próprio jornalista. “O Tor- Club e o Centro Português de Escritores cultura, ainda mais a “dos vivos”, olhava
com brasão no mindinho, prepara-se para cato [Sepúlveda] ligou-nos para casa e o Literários. Artur Anselmo, então presiden- para ela “como um lúdico”.
recuar a 1992. O ano é o da morte da sua José ao princípio disse: ‘Palavra? Nah, não te do IPLL, informa Lara de que também
carreira política e o de uma viragem radical é possível’. Estava quase divertido”, conta obtiveram o apoio dos Escritores Literários “Parece que há
na vida e obra do Nobel José Saramago. a viúva, Pilar del Río, 67 anos. “[Quando os nomes de Hélia Correia, com A Casa
Provocador experiente, o ex-subsecretário se confirmou] Ficou tão dececionado e tão Eterna, e de Sophia de Mello Breyner, por um problema
de Estado da Cultura levanta o queixo, magoado... Não por causa do prémio. Mas Obra Poética – Volume II. Dois dias depois, com o Saramago”
semicerra os olhos, contempla o horizonte porque o Governo do seu país tinha feito Lara assina um primeiro despacho com a De perfil harmonioso, barba branca bem
e arranca: “Vamos lá ver. Estamos num uma coisa de que ele tinha vergonha. Dizer: sua escolha: Fiama, Tamen e Sophia. A 20 aparada e bigode de pontas arrebitadas,
Governo de Cavaco Silva...” ‘este livro não, porque ofende’.” de abril, Artur Anselmo responde, “pro- Sousa Lara mantém o rosto a que Sarama-
A vida pública desta história começa O Evangelho Segundo Jesus Cristo “era ponho, a título pessoal, o Vale Abraão, de go chamou “suave” numa entrevista de 10
de forma tímida, numa altura em que um romance de grande ousadia”, lembra Agustina Bessa-Luís”. Lara junta o nome de de maio de 1992 ao Público (para depois
ninguém intui nem o impacto nem a lon- o editor de Saramago na Caminho, Ze- Agustina ao despacho. Nem Pedro Santana acrescentar que, quer em Portugal quer
gevidade e muito menos as repercussões ferino Coelho. “O ateísmo militante de Lopes, secretário de Estado da Cultura, em Espanha, “os retratos dos inquisido-
que terá. Nas palavras de Lara, “três meses Saramago já era conhecido. Agora, pegar nem Maria José Nogueira Pinto, secretária res apresentam semelhanças [com Lara],
de charivari”. em Deus, em Cristo, e transformá-los em de Estado Adjunta, estariam a par destas numa espécie de ar de família”). Professor
personagens de romance, ainda por cima movimentações. universitário, o ex-subsecretário de Estado
“Este livro não, um romance negativo, isso foi uma grande Sousa Lara recorda este capítulo de tem jeito para as palavras. Verbo certeiro,
ousadia.” Na sua opinião, Saramago tinha forma um pouco diferente: na sua versão ágil, informal. As narrativas surgem com
porque ofende” noção do efeito que o livro causaria e terá a história começa ainda antes, com a sua frequência em discurso direto, pontuadas
A 25 de abril de 1992, fez há pouco 25 anos, sido essa uma das razões por que o escre- nomeação para subsecretário de Estado por termos coloridos. E também por uma
uma notícia remetida para o terço inferior veu. O autor gostava de provocar o debate. da Cultura. ideia recorrente: a alegada omissão delibe-
de uma das páginas da secção de Cultura Só não contava com a censura. O convite original para secretário de rada por parte dos media de determinados
do jornal Público avança: “Sousa Lara corta No Monte Estoril, Sousa Lara afirma não Estado da Administração Interna fora do aspetos deste episódio.
nome de Saramago”. Antetítulo: “Prémio gostar de polémica. “Mas não fujo”, asse- amigo Dias Loureiro. E Lara aceitara. Só Como quando Artur Anselmo lhe apre-
Literário Europeu” (PLE). Em causa está gura. “E não cedo.” Há 25 anos, declarava: que pouco depois viu o seu passe transferi- sentou a lista e lhe transmitiu que teria de
O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o sexto “A tutela cultural não deve assinar de cruz do para outro Ministério. Melhor dizendo, ser a tutela a indicar os candidatos. “Eu dis-
romance do autor depois de, em 1980, com as sugestões dos seus serviços.” Referia-se secretaria de Estado. “Domingo à noite, se: ‘acho muito mal. Posso estar aqui como
Levantado do Chão, ter saltado das notas com isto ao processo de seleção das obras, liga-me o Dias Loureiro a dizer que o San- gestor e não perceber nada de literatura’. Sic.
de rodapé para um papel de destaque na ou seja à parte inicial desta história, os tana dizia que ficava ofendido, porque eu Este facto é sempre omitido.” Lara continua:
história da literatura portuguesa. “Não bastidores. tinha criado o Instituto de Estudos Políticos “E, depois, quem é que fabricou a shortlist?
100 O EVANGELHO DE SARAMAGO 101

O veto ao
Em 1992, o subsecretário de Estado da Cultura afastou
José Saramago de um prémio literário. Magoado, o

Evangelho
escritor deixou Portugal e anos depois viria a ganhar o
Nobel. Sousa Lara diz ter rezado por ele. Esta é a história
do veto a O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

de Saramago,
25 anos depois
Texto Joana Stichini Vilela
Ilustração Nuno Saraiva

– “Quer que lhe conte o que se pas- representa Portugal”, justifica Sousa Lara A 14 de abril, avançará o jornal O Inde- com ele”, conta. “E eu lembro-me de ter
sou? Normalmente, é publicado errado.” ao jornalista do Público. “Não me pedi- pendente, Sousa Lara recebe do Instituto respondido por telefone, ‘Olha, Manuel,
– “Quando quiser. Está a gravar.” ram um julgamento sobre a obra inteira Português do Livro e da Leitura (IPLL) não te agradeço. Já estou...’ E depois disse
António Sousa Lara, 65 anos, senta-se na de Saramago, mas sobre este livro. Ora, um ofício com a sugestão de três nomes um palavrão que equivale a ‘lixado’ mas
primeira fila do pequeno auditório da Aca- há questões pessoais que me modelam, para candidatos ao PLE: Saramago, Pedro começa por ‘f’. Sic.” A administração in-
demia de Letras e Artes, no Monte Estoril, às quais não me oponho por questões de Tamen e Fiama Hasse Pais Brandão. A lista terna, explica, “tinha tudo a ver” com o
instituição a que preside e que funciona consciência pessoal.” fora elaborada depois de consultados a seu perfil. “A minha tese de doutoramento
“por caturreira” há 30 anos. Porte aristo- Saramago escusa-se a comentar. Só sabe Associação Portuguesa de Escritores, o Pen é sobre subversão do Estado.” Quanto à
crático, chapéu de feltro na cabeça, anel da notícia pelo próprio jornalista. “O Tor- Club e o Centro Português de Escritores cultura, ainda mais a “dos vivos”, olhava
com brasão no mindinho, prepara-se para cato [Sepúlveda] ligou-nos para casa e o Literários. Artur Anselmo, então presiden- para ela “como um lúdico”.
recuar a 1992. O ano é o da morte da sua José ao princípio disse: ‘Palavra? Nah, não te do IPLL, informa Lara de que também
carreira política e o de uma viragem radical é possível’. Estava quase divertido”, conta obtiveram o apoio dos Escritores Literários “Parece que há
na vida e obra do Nobel José Saramago. a viúva, Pilar del Río, 67 anos. “[Quando os nomes de Hélia Correia, com A Casa
Provocador experiente, o ex-subsecretário se confirmou] Ficou tão dececionado e tão Eterna, e de Sophia de Mello Breyner, por um problema
de Estado da Cultura levanta o queixo, magoado... Não por causa do prémio. Mas Obra Poética – Volume II. Dois dias depois, com o Saramago”
semicerra os olhos, contempla o horizonte porque o Governo do seu país tinha feito Lara assina um primeiro despacho com a De perfil harmonioso, barba branca bem
e arranca: “Vamos lá ver. Estamos num uma coisa de que ele tinha vergonha. Dizer: sua escolha: Fiama, Tamen e Sophia. A 20 aparada e bigode de pontas arrebitadas,
Governo de Cavaco Silva...” ‘este livro não, porque ofende’.” de abril, Artur Anselmo responde, “pro- Sousa Lara mantém o rosto a que Sarama-
A vida pública desta história começa O Evangelho Segundo Jesus Cristo “era ponho, a título pessoal, o Vale Abraão, de go chamou “suave” numa entrevista de 10
de forma tímida, numa altura em que um romance de grande ousadia”, lembra Agustina Bessa-Luís”. Lara junta o nome de de maio de 1992 ao Público (para depois
ninguém intui nem o impacto nem a lon- o editor de Saramago na Caminho, Ze- Agustina ao despacho. Nem Pedro Santana acrescentar que, quer em Portugal quer
gevidade e muito menos as repercussões ferino Coelho. “O ateísmo militante de Lopes, secretário de Estado da Cultura, em Espanha, “os retratos dos inquisido-
que terá. Nas palavras de Lara, “três meses Saramago já era conhecido. Agora, pegar nem Maria José Nogueira Pinto, secretária res apresentam semelhanças [com Lara],
de charivari”. em Deus, em Cristo, e transformá-los em de Estado Adjunta, estariam a par destas numa espécie de ar de família”). Professor
personagens de romance, ainda por cima movimentações. universitário, o ex-subsecretário de Estado
“Este livro não, um romance negativo, isso foi uma grande Sousa Lara recorda este capítulo de tem jeito para as palavras. Verbo certeiro,
ousadia.” Na sua opinião, Saramago tinha forma um pouco diferente: na sua versão ágil, informal. As narrativas surgem com
porque ofende” noção do efeito que o livro causaria e terá a história começa ainda antes, com a sua frequência em discurso direto, pontuadas
A 25 de abril de 1992, fez há pouco 25 anos, sido essa uma das razões por que o escre- nomeação para subsecretário de Estado por termos coloridos. E também por uma
uma notícia remetida para o terço inferior veu. O autor gostava de provocar o debate. da Cultura. ideia recorrente: a alegada omissão delibe-
de uma das páginas da secção de Cultura Só não contava com a censura. O convite original para secretário de rada por parte dos media de determinados
do jornal Público avança: “Sousa Lara corta No Monte Estoril, Sousa Lara afirma não Estado da Administração Interna fora do aspetos deste episódio.
nome de Saramago”. Antetítulo: “Prémio gostar de polémica. “Mas não fujo”, asse- amigo Dias Loureiro. E Lara aceitara. Só Como quando Artur Anselmo lhe apre-
Literário Europeu” (PLE). Em causa está gura. “E não cedo.” Há 25 anos, declarava: que pouco depois viu o seu passe transferi- sentou a lista e lhe transmitiu que teria de
O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o sexto “A tutela cultural não deve assinar de cruz do para outro Ministério. Melhor dizendo, ser a tutela a indicar os candidatos. “Eu dis-
romance do autor depois de, em 1980, com as sugestões dos seus serviços.” Referia-se secretaria de Estado. “Domingo à noite, se: ‘acho muito mal. Posso estar aqui como
Levantado do Chão, ter saltado das notas com isto ao processo de seleção das obras, liga-me o Dias Loureiro a dizer que o San- gestor e não perceber nada de literatura’. Sic.
de rodapé para um papel de destaque na ou seja à parte inicial desta história, os tana dizia que ficava ofendido, porque eu Este facto é sempre omitido.” Lara continua:
história da literatura portuguesa. “Não bastidores. tinha criado o Instituto de Estudos Políticos “E, depois, quem é que fabricou a shortlist?
102 O EVANGELHO DE SARAMAGO O EVANGELHO DE SARAMAGO 103

elas incluem-se D. Duarte Pio de Bragan- Saramago diz precisar de tranquilidade. Indignado com a situação, foi falar com
ça, que não presta declarações mas que Já há bastante tempo que o casal procura- o diretor, Jacinto Ferreira. “Eu tinha 18,
horas antes tinha dito à TSF que o livro va uma casa para comprar nos arredores 19 anos”, conta. “Disseram-me: ‘És muito
de Saramago era “uma grande merda” de Lisboa. Mafra, por exemplo, lembra miúdo. Não sabes que há verdades que não
e o presidente da Câmara de Cascais, Zeferino Coelho. Por coincidência, a 1 de se podem dizer?’ Fez-se clique. Olhei para o
Georges Dargent, que fala num “combate maio, uma semana apenas depois de estalar gajo e disse assim: ‘Mas comigo é que não’.”
às forças do mal”. Enviam mensagens de a polémica, vão visitar a irmã de Pilar a Não deixa de ser curioso que o homem
apoio Cavaco Silva, os ministros Couto Lanzarote, em Espanha. “Descobrimos o que aponta um episódio de censura como
dos Santos, João de Deus Pinheiro e Mar- princípio do mundo”, lembra Pilar. “E aí um dos mais transformadores da sua
ques Mendes, bem como os diretores dos fui eu que disse: ‘por que não nos mudamos vida se tenha tornado infame por causa
jornais O Diabo (Vera Lagoa), O Título e para Lanzarote?’ Todos os criadores dizem de uma acusação de censura. Hoje, Sousa
A Zona. A dada altura, um dos membros a dada altura: ‘iria viver para uma ilha de- Lara diz-se “proscrito”: “Escovaram-me
da organização lança o repto: “Tony, que serta’. Pois alguns dizem-no e o fazem-no.” da política.” Ainda assim, voltaria a vetar
Deus te guie”. A notícia cai com estrondo em Portugal: a candidatura. “Não faz sentido nenhum
Mesmo com Sousa Lara fora do caminho, Saramago abandonaria o país na sequência [dizer que censurei o Saramago]”, afirma.
não há maneira de Santana conseguir nova do veto de Sousa Lara. Em entrevista ao “O homem ficou rico à minha custa. E ga-
lista de candidatos. Parte dos jurados vai-se Público, o escritor tenta clarificar: “Há uma nhou o prémio Nobel à minha custa. Eu
revelando indisponível até que o presidente coincidência que eu não busquei.” Pilar co- sou acusado é de ter promovido o senhor
do IPLL, que anunciara a formação do meça por admitir que foi em parte por causa Saramago a prémio Nobel. Tenho qualquer
júri, decide acabar com ele. “A polémi- desta questão que resolveram mudar-se – quota-parte nessa causa.”
ca tinha atingido tal grau de insanidade “foi muito duro para um escritor a polémica Quando, em 2016, Cavaco Silva conde-
e envenenamento que o dr. Óscar Lopes que se montou, ter de responder ao mundo” corou Sousa Lara com a Ordem do Infante
[presidente do júri] diz que não há condi- –, para depois desvalorizar: “Coincidiu.” D. Henrique, destinada a “quem houver
ções políticas, ecológicas, ambientais para prestado serviços relevantes a Portugal,
o júri se reunir”, lembra Artur Anselmo, no país e no estrangeiro”, o colunista João
hoje presidente da Academia das Ciências.
“Ingrato e repugnante” Pereira Coutinho aproveitou para atiçar o
“E a coisa ficou por aí.” Na Fundação Saramago, em Lisboa, a lume: “Se a esquerda fosse verdadeiramente
Na opinião de Artur Anselmo, tudo não “presidenta” – como insiste em formular grata, já teria erguido uma estátua ao ho-
passou de uma “lamentável intromissão da a palavra – limpa distraída um retrato a mem por serviços prestados à causa.” Para
esfera política na esfera cultural. E não teve óleo do escritor com um lenço de papel. provocador, provocador e meio. O gesto
só a ver com Portugal. Teve a ver com todos As obras do Terminal de Cruzeiros, mesmo de Lara foi “pacóvio”, escreveu no Correio
os países que faziam parte da então CEE.” em frente à Casa dos Bicos, enchem tudo ● As vendas do livro da Manhã, e “ridículo” avançou ao Obser-
Este é capaz de ser o único ponto em que de pó. Conversa rodeada de artefactos da vador por email, mas “sem Sousa Lara,
há acordo entre todos os intervenientes: vida e obra do Nobel, incluindo um top dispararam com a polé- jamais Saramago teria optado pelo ‘exí-
ao contrário do previsto no regulamento 10 da Bertrand da década de 1990 em que lio’ em Lanzarote; sem esse ‘exílio’, jamais
do prémio, a decisão não devia ser política apenas dois livros não são dele: Vai Onde mica. Em semanas, ven- Saramago teria sido o escritor ‘maldito’
– embora os dois anteriores governantes te Leva o Coração, em 7º, e Aparição, em (ou ‘perseguido’) que ele passou a usar na
por quem passaram listas da mesma natu- 10º. Há alguma acidez no discurso, mas deu 135 mil exemplares. lapela; e sem o ‘exílio’ e a ‘perseguição’, não
reza, em 1990 e 1991, se tivessem limitado
a dar o seu aval às sugestões das entidades
sobretudo amargura: “Este episódio é in-
grato e repugnante”; “Não significou nada
Contudo, 25 anos depois, haveria Prémio Nobel para ninguém.” Mais:
“a repercussão internacional foi imensa – e é
HENRIQUE CASINHAS consultadas. Quanto a 1992, com o fim do
júri, volta tudo ao início: Tamen, Fiama...
para Saramago”; “’Desilusão’? Não. Para
nos desiludirmos temos de ter estado iludi-
o principal bestseller de justo extrapolar que aumentou a visibilidade
de Saramago.” Como Lara gosta de dizer,
e Saramago. dos”; “Saramago está a anos-de-luz de toda Saramago continua a ser “os argumentos são subjetivos”.
● Em 1992, Sousa Lara não tinha lido O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Hoje, graças aos amigos, tem vários Ao longo destas semanas, José Saramago
desdobra-se em entrevistas e declarações.
esta situação e de toda esta gente. Pensam
que Saramago estava preso a uma decisão Memorial do Convento.
O editor de Saramago acredita que hoje
o Evangelho voltaria a causar alvoroço.
exemplares: “O homem ficou rico à minha custa. E ganhou o prémio Nobel à minha custa. Eu sou acusado A sua casa, um pequeno T1+1 na Rua dos de um Governo que já não existia, que “Para mim, o direito à blasfémia é a me-
Ferreiros à Estrela, em Lisboa, converte- tinha membros presos? Por amor de Deus. um mundo contemporâneo ao serviço do dida da liberdade do pensamento. Mas a
é de ter promovido o senhor Saramago a prémio Nobel. Tenho qualquer quota-parte nessa causa.” -se em central telefónica. “Um inferno”, Saramago tinha seguido navegando pelo lucro e do mercado. Na opinião do autor de opinião dominante lida mal com isto.” Um
resume Pilar del Río. “Não só por causa mundo e os outros continuavam por aí.” Biografia – José Saramago (Guerra & Paz), exemplo recente é o da Bíblia de Frederico
Aquilo era uma lista ‘esquerdosa’.” E ainda: Quatro dias depois, o caso vai parar à ro-ministro devia “ter pedido desculpas Se Sousa Lara começou por agir sem deste caso mas também porque Saramago Seja qual for a interpretação, a verdade é João Marques Lopes, “os efeitos da polémica Lourenço (Quetzal). Traduzida do grego,
“Eu digo ao Anselmo: ‘Com esta porcaria, Assembleia da República durante o debate públicas” ao escritor e que é Cavaco Silva informar ninguém, agora é ele próprio era a pessoa mais conhecida de Portugal, que o Evangelho Segundo Jesus Cristo, que e do veto poderão ter contribuído para o faz opções semânticas que põem em causa
o Saramago não vai, nem por cima do meu parlamentar sobre a Cultura. A intervenção “quem deve ser responsabilizado pelo quem se queixa de ter sido mantido na tirando os futebolistas.” coincide com a mudança para Lanzarote, aprofundamento do pessimismo”, afirma dogmas da Igreja. Lourenço, Prémio Pessoa
cadáver’.” Solução: “‘Nem li o livro da So- de Lara ficará para a história. Se por boas estado novo a que chegou o grotesco e ignorância. A quem? Ao primeiro-ministro. Nos jornais, há sobretudo declarações assinala um ponto de viragem na obra do por email, “mas creio que são secundários 2016, chegou a ser acusado de ignorante.
phia, mas não me interessa – vai esse. Tudo ou más razões, depende da perspetiva. tenebroso processo das candidaturas “O Cavaco apoiou-me sempre”, diz. “Ele é de solidariedade, mas também se desen- escritor. “Ele dizia que até ao Evangelho face às mudanças geopolíticas e ideológi- Mas não por Sousa Lara, ressalve-se. O ex-
o que ela faz é bom’.” O subsecretário de Estado começa por portuguesas”. Já Francisco Sousa Tava- uma pessoa hierática.” Como prova disso, terram acusações de censura. Recorda-se escrevia sobre a estátua”, explica Zeferino cas do ‘mal-chamado’ socialismo real em -subsecretário de Estado da Cultura é fã.
Parêntesis: Se está a perguntar-se se Lara argumentar que o caso não devia ter sido res pede a demissão do subsecretário de depois do veto, Cavaco tê-lo-á convidado o Verão Quente de 1975, altura em que Coelho. “A partir do Evangelho passou a 1989-1991.” Quanto a Lanzarote? “Há quem “Tenho cinco versões da Bíblia na minha
tinha lido o Evangelho Segundo Jesus Cris- tornado público. Depois, alega que “a obra Estado, alegando que este está “agarra- para ir à estreia de “qualquer coisa do o militante comunista esteve à frente do escrever sobre a pedra.” A primeira é a relacione a ‘secagem’ do estilo barroco com mesa de cabeceira. Desde que saiu, que só
to, a resposta é “não”. Ou melhor, “uma ataca o património religioso dos portugue- do à cadeira do poder” e alerta para a La Féria” [Maldita Cocaína]. Lara conta Diário de Notícias: “Pessoalmente, que- superfície; a segunda o seu interior. “Já não a orografia desprovida de vegetação e de leio essa”, conta. “É mais consentânea com
parte”. Porquê? “Porque houve alguém ses. Longe de os unir, divide-os.” repercussão internacional: “Lançou de que recusou dizendo que a sua presença ro servir a construção do socialismo. E o é o homem em determinada circunstância. arvoredo. Acho que pode estar correto.” o que terá sido. O gajo é um erudito. Aquilo
que leu e disse: ‘este gajo é um pulha, já No Público, Torcato Sepúlveda comenta: novo sobre nós os estigmas tradicionais monopolizaria as atenções e neutralizaria DN vai ser um instrumento nas mãos do O que lhe importa é a alma humana no que Pilar concorda: “Talvez a austeridade de dá gosto. Só que tem perigos, rasteiras.”
viste o que ele diz de Deus?’ E fui ler aquele “tal raciocínio evoca, com efeito, o Tribu- da intolerância religiosa e do repúdio da a imagem que o primeiro-ministro queria povo português para a construção dessa ela tem de universal.” Lanzarote [tenha sido uma influência].” Lara diz viver em oração permanente.
bocado. E era ofensivo.” Parêntesis dentro nal do Santo Ofício”. Sucedem-se as acusa- abertura espiritual.” O escritor João de dar, que era a de pessoa atenta à cultura. linha já adotada pelo Conselho Superior Saramago explica esta evolução em 1998, Adaptado ao cinema em 2008 pelo bra- Tem uma fé inabalável, permanente, im-
do parêntesis: hoje, não só já leu como tem ções de censura. A palavra “inquisição” nas Melo sintetiza: “Saramago neste momento “E então não fui. Porque não preciso. Por- de Revolução...” O diretor do Expresso, na Universidade de Turim, numa palestra sileiro Fernando Meirelles, Ensaio Sobre a positiva: “Preenche o oxigénio dos meus
várias edições. Tornou-se uma piada entre suas várias declinações, enunciada pelas somos todos nós.” que se o Cavaco estivesse contra, eu diria José António Saraiva, cria um cenário em mais tarde publicada em livro e intitulada Cegueira é porventura o livro mais impor- dias.” Pela primeira vez, parece ter algum
os amigos que, volta e meia, lhe oferecem mais variadas personalidades literárias e Entretanto, uma sondagem do jornal a mesma coisa. Aqui não há negociação que o PCP subiu ao Governo e Saramago Da Estátua à Pedra (em que afirma ainda tante no percurso internacional de Sara- receio de ser mal interpretado. “Dizer isto
um exemplar. da cultura, propaga-se pelas páginas dos Público indica que 63,3 por cento dos possível. É risco no chão. Ninguém perce- é secretário de Estado da Cultura para e de forma taxativa que o Evangelho Se- mago. A edição americana sai em 1998 e é parece mal.” Da mesma forma, garante não
Lara defende que a lista estava “cozinha- jornais. Promovida a escândalo, a polémica habitantes de Lisboa e Porto acham que beu. Não há negociação possível!” provocar: “Na hipótese de um livro, mesmo gundo Jesus Cristo é não só o seu romance recebida com entusiasmo pela imprensa. guardar rancores. Nem um ao longo da vida.
da” para Saramago fazer parte dela. Insiste internacionaliza-se. Surgem relatos e rea- o Evangelho devia fazer parte da lista de Na sequência da decisão de Santana, notável – mas crítico em relação ao comu- que “gerou mais polémica” mas também “Lembro-me de uma recensão publicada – E quando disse: ‘vou rezar pelo Sara-
que a cultura “é um ninho de vespas da ções nos jornais espanhóis ABC, El País e candidatos ao PLE. O Expresso também o subsecretário de Estado acabaria por nismo –, ser indigitado para um prémio, “a causa de ter mudado a minha residência no Los Angeles Times que o classificava mago’, rezei. Não acho que valha a pena
esquerda”. E que houve “má-fé”. Acabaria El Mundo, nos franceses Libération e Le consulta o cidadão comum e divulga re- pedir a demissão ao primeiro-ministro. Saramago dar-lhe-ia ou não o seu apoio? de Lisboa para Lanzarote”). como um romance sinfónico”, conta Ze- porque ele deve estar no Inferno.
por tomar uma decisão pessoal em nome do Monde, no italiano La Stampa e na Folha sultados que apontam para um equilí- Sem sucesso. Conta que Cavaco lhe res- Muito provavelmente não.” O primeiro romance desta nova fase ferino Coelho. “Isto em agosto, setembro. – Acredita no Inferno, portanto?
Estado. “É a minha maneira de fazer políti- de São Paulo. Até o ministro da Cultura brio maior na sociedade portuguesa: 57 pondeu: “‘Isso não pode ser. Seria uma Ao mesmo tempo, as vendas do roman- chama-se Ensaio Sobre a Cegueira. “Que Em outubro dão-lhe o Prémio Nobel. Pode – Ah, claro. E acredito que está cheio.
ca”, assume sem hesitar. “A minha conceção francês se manifesta. Para Jack Lang, a por cento dos inquiridos está contra a atitude de fraqueza’”. Conclusão: “Estive ce disparam. A 21 de maio, já vai nos 135 eu acho”, prossegue Zeferino Coelho, “e até ter empurrado um bocadinho.” O romance Não se ria.
de democracia – e agora entra outra parte censura de que o “Evangelho” foi alvo é exclusão. lá a ‘abobrar’. Só saí em novembro, quando mil exemplares, só em Portugal. Pouco lho disse várias vezes – ele não concordava aparece em destaque no texto de atribui- – E quando chegar a sua vez?
que ninguém publica – é que a democracia “inaceitável”. o Deus Pinheiro foi à vida. Perguntaram: depois, torna-se um dos mais procurados – que é o melhor romance dele”. ção: “Um dos romances destes últimos anos – Espero passar no exame.
não é o consenso nem a bissetriz. É a direita Entretanto, o eurodeputado socialista “Tony, que Deus ‘Quer ir agora?’ ‘Quero, quero’. Ala!” De na Feira do Livro de Madrid e entra para Entre um e outro livro passam quatro aumenta consideravelmente a estatura lite- Contactados pelo Observador, nem Aní-
contra a esquerda e a esquerda contra a di- João Cravinho tenta levar o caso ao Par- facto, Lara só abandona o Governo a 13 de o top 10 espanhol. Pilar del Río diz des- anos. O interregno é atípico, mas a vida do rária de Saramago. É publicado em 1995 e bal Cavaco Silva nem Pedro Santana Lopes
reita. Tenho uma lógica de luta, de combate, lamento Europeu. A 9 de Maio, o Expresso te guie” novembro de 1992, altura em que o então conhecer quantos livros se venderam ao escritor está cada vez mais cheia. Além de tem como título Ensaio Sobre a Cegueira.” se mostraram disponíveis para comentar
de cruzada, de porrada.” noticia: “O presidente do Parlamento Euro- Por esta altura já Santana Lopes chamou a ministro dos Negócios Estrangeiros tam- todo. Remete para a Caminho, que por que a matéria ficcional que agora o ocupa é este caso. Em 1992, ganharia o Prémio
Santana Lopes só sabe do veto na vés- peu, Egon Klepsch, envia carta a Jacques si o caso, revogou a decisão de Sousa Lara e bém sai, apesar de, entretanto, ter havido sua vez passa a bola para a Porto Editora, de uma dureza inusitada. “A certa altura che- “O Inferno está cheio. Literário Europeu, e os correspondentes
pera da notícia do Público. Sousa Lara Delors [presidente da Comissão Europeia] afastou o subsecretário de Estado. Santana duas outras remodelações, uma em junho que detém atualmente os direitos da obra guei a dizer: ‘não sei se consigo sobreviver 20 mil ecus, o espanhol Manuel Vázquez
argumentaria que se tratava de uma “com- pedindo explicações sobre o afastamento anuncia a criação de novo júri para esco- e outra em agosto. do Nobel, mas declara não poder avançar a este livro.”, contaria ao Expresso em 1995. Não se ria” Montalbán.
petência delegada”. De acordo com O Inde- de Saramago à candidatura ao PLE.” lher nova lista de candidatos. Saramago Novo parêntesis. Em junho, um jantar essa informação. Adianta, porém, que o “Foi como se tivesse dentro de mim uma Uma das histórias que Sousa Lara gosta
pendente, na estreia do filme Aqui D’El Rei, Por cá, Tamen e Fiama recusam a avisa logo que não estará disponível e pede de “homenagem ao prof. doutor Antó- Evangelho continua a vender-se “todas coisa feia, horrível, e tivesse de sacá-la. Mas de contar tem a ver com um momento de Joana Stichini Vilela é jornalista
Maria José Nogueira Pinto terá comentado candidatura ao PLE. Já o poeta David para não ser considerado sequer. Santana nio de Sousa Lara (...) pela coerência e as semanas”, longe, porém, dos números não saiu, está no livro e está dentro de mim.” epifania na sua vida. Antes do 25 de Abril, freelancer e autora de uma trilogia de livros
com o secretário de Estado: “Parece que há Mourão-Ferreira é dos mais vocais. Numa ignora o repto, alegando que essa decisão verticalidade” reunirá 250 pessoas no do principal bestseller de Saramago, Me- Saramago era um pessimista. Para ele, um artigo seu sobre o LSD publicado num sobre a vida em Lisboa no passado: “LX60”,
um problema com o Saramago.” mensagem escrita defende que o primei- cabe ao júri internacional. restaurante Muchaxo, no Guincho. Entre morial do Convento. a irracionalidade estava a tomar conta de jornal monárquico foi censurado pela PIDE. “LX70” e “LX80”.
102 O EVANGELHO DE SARAMAGO O EVANGELHO DE SARAMAGO 103

elas incluem-se D. Duarte Pio de Bragan- Saramago diz precisar de tranquilidade. Indignado com a situação, foi falar com
ça, que não presta declarações mas que Já há bastante tempo que o casal procura- o diretor, Jacinto Ferreira. “Eu tinha 18,
horas antes tinha dito à TSF que o livro va uma casa para comprar nos arredores 19 anos”, conta. “Disseram-me: ‘És muito
de Saramago era “uma grande merda” de Lisboa. Mafra, por exemplo, lembra miúdo. Não sabes que há verdades que não
e o presidente da Câmara de Cascais, Zeferino Coelho. Por coincidência, a 1 de se podem dizer?’ Fez-se clique. Olhei para o
Georges Dargent, que fala num “combate maio, uma semana apenas depois de estalar gajo e disse assim: ‘Mas comigo é que não’.”
às forças do mal”. Enviam mensagens de a polémica, vão visitar a irmã de Pilar a Não deixa de ser curioso que o homem
apoio Cavaco Silva, os ministros Couto Lanzarote, em Espanha. “Descobrimos o que aponta um episódio de censura como
dos Santos, João de Deus Pinheiro e Mar- princípio do mundo”, lembra Pilar. “E aí um dos mais transformadores da sua
ques Mendes, bem como os diretores dos fui eu que disse: ‘por que não nos mudamos vida se tenha tornado infame por causa
jornais O Diabo (Vera Lagoa), O Título e para Lanzarote?’ Todos os criadores dizem de uma acusação de censura. Hoje, Sousa
A Zona. A dada altura, um dos membros a dada altura: ‘iria viver para uma ilha de- Lara diz-se “proscrito”: “Escovaram-me
da organização lança o repto: “Tony, que serta’. Pois alguns dizem-no e o fazem-no.” da política.” Ainda assim, voltaria a vetar
Deus te guie”. A notícia cai com estrondo em Portugal: a candidatura. “Não faz sentido nenhum
Mesmo com Sousa Lara fora do caminho, Saramago abandonaria o país na sequência [dizer que censurei o Saramago]”, afirma.
não há maneira de Santana conseguir nova do veto de Sousa Lara. Em entrevista ao “O homem ficou rico à minha custa. E ga-
lista de candidatos. Parte dos jurados vai-se Público, o escritor tenta clarificar: “Há uma nhou o prémio Nobel à minha custa. Eu
revelando indisponível até que o presidente coincidência que eu não busquei.” Pilar co- sou acusado é de ter promovido o senhor
do IPLL, que anunciara a formação do meça por admitir que foi em parte por causa Saramago a prémio Nobel. Tenho qualquer
júri, decide acabar com ele. “A polémi- desta questão que resolveram mudar-se – quota-parte nessa causa.”
ca tinha atingido tal grau de insanidade “foi muito duro para um escritor a polémica Quando, em 2016, Cavaco Silva conde-
e envenenamento que o dr. Óscar Lopes que se montou, ter de responder ao mundo” corou Sousa Lara com a Ordem do Infante
[presidente do júri] diz que não há condi- –, para depois desvalorizar: “Coincidiu.” D. Henrique, destinada a “quem houver
ções políticas, ecológicas, ambientais para prestado serviços relevantes a Portugal,
o júri se reunir”, lembra Artur Anselmo, no país e no estrangeiro”, o colunista João
hoje presidente da Academia das Ciências.
“Ingrato e repugnante” Pereira Coutinho aproveitou para atiçar o
“E a coisa ficou por aí.” Na Fundação Saramago, em Lisboa, a lume: “Se a esquerda fosse verdadeiramente
Na opinião de Artur Anselmo, tudo não “presidenta” – como insiste em formular grata, já teria erguido uma estátua ao ho-
passou de uma “lamentável intromissão da a palavra – limpa distraída um retrato a mem por serviços prestados à causa.” Para
esfera política na esfera cultural. E não teve óleo do escritor com um lenço de papel. provocador, provocador e meio. O gesto
só a ver com Portugal. Teve a ver com todos As obras do Terminal de Cruzeiros, mesmo de Lara foi “pacóvio”, escreveu no Correio
os países que faziam parte da então CEE.” em frente à Casa dos Bicos, enchem tudo ● As vendas do livro da Manhã, e “ridículo” avançou ao Obser-
Este é capaz de ser o único ponto em que de pó. Conversa rodeada de artefactos da vador por email, mas “sem Sousa Lara,
há acordo entre todos os intervenientes: vida e obra do Nobel, incluindo um top dispararam com a polé- jamais Saramago teria optado pelo ‘exí-
ao contrário do previsto no regulamento 10 da Bertrand da década de 1990 em que lio’ em Lanzarote; sem esse ‘exílio’, jamais
do prémio, a decisão não devia ser política apenas dois livros não são dele: Vai Onde mica. Em semanas, ven- Saramago teria sido o escritor ‘maldito’
– embora os dois anteriores governantes te Leva o Coração, em 7º, e Aparição, em (ou ‘perseguido’) que ele passou a usar na
por quem passaram listas da mesma natu- 10º. Há alguma acidez no discurso, mas deu 135 mil exemplares. lapela; e sem o ‘exílio’ e a ‘perseguição’, não
reza, em 1990 e 1991, se tivessem limitado
a dar o seu aval às sugestões das entidades
sobretudo amargura: “Este episódio é in-
grato e repugnante”; “Não significou nada
Contudo, 25 anos depois, haveria Prémio Nobel para ninguém.” Mais:
“a repercussão internacional foi imensa – e é
HENRIQUE CASINHAS consultadas. Quanto a 1992, com o fim do
júri, volta tudo ao início: Tamen, Fiama...
para Saramago”; “’Desilusão’? Não. Para
nos desiludirmos temos de ter estado iludi-
o principal bestseller de justo extrapolar que aumentou a visibilidade
de Saramago.” Como Lara gosta de dizer,
e Saramago. dos”; “Saramago está a anos-de-luz de toda Saramago continua a ser “os argumentos são subjetivos”.
● Em 1992, Sousa Lara não tinha lido O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Hoje, graças aos amigos, tem vários Ao longo destas semanas, José Saramago
desdobra-se em entrevistas e declarações.
esta situação e de toda esta gente. Pensam
que Saramago estava preso a uma decisão Memorial do Convento.
O editor de Saramago acredita que hoje
o Evangelho voltaria a causar alvoroço.
exemplares: “O homem ficou rico à minha custa. E ganhou o prémio Nobel à minha custa. Eu sou acusado A sua casa, um pequeno T1+1 na Rua dos de um Governo que já não existia, que “Para mim, o direito à blasfémia é a me-
Ferreiros à Estrela, em Lisboa, converte- tinha membros presos? Por amor de Deus. um mundo contemporâneo ao serviço do dida da liberdade do pensamento. Mas a
é de ter promovido o senhor Saramago a prémio Nobel. Tenho qualquer quota-parte nessa causa.” -se em central telefónica. “Um inferno”, Saramago tinha seguido navegando pelo lucro e do mercado. Na opinião do autor de opinião dominante lida mal com isto.” Um
resume Pilar del Río. “Não só por causa mundo e os outros continuavam por aí.” Biografia – José Saramago (Guerra & Paz), exemplo recente é o da Bíblia de Frederico
Aquilo era uma lista ‘esquerdosa’.” E ainda: Quatro dias depois, o caso vai parar à ro-ministro devia “ter pedido desculpas Se Sousa Lara começou por agir sem deste caso mas também porque Saramago Seja qual for a interpretação, a verdade é João Marques Lopes, “os efeitos da polémica Lourenço (Quetzal). Traduzida do grego,
“Eu digo ao Anselmo: ‘Com esta porcaria, Assembleia da República durante o debate públicas” ao escritor e que é Cavaco Silva informar ninguém, agora é ele próprio era a pessoa mais conhecida de Portugal, que o Evangelho Segundo Jesus Cristo, que e do veto poderão ter contribuído para o faz opções semânticas que põem em causa
o Saramago não vai, nem por cima do meu parlamentar sobre a Cultura. A intervenção “quem deve ser responsabilizado pelo quem se queixa de ter sido mantido na tirando os futebolistas.” coincide com a mudança para Lanzarote, aprofundamento do pessimismo”, afirma dogmas da Igreja. Lourenço, Prémio Pessoa
cadáver’.” Solução: “‘Nem li o livro da So- de Lara ficará para a história. Se por boas estado novo a que chegou o grotesco e ignorância. A quem? Ao primeiro-ministro. Nos jornais, há sobretudo declarações assinala um ponto de viragem na obra do por email, “mas creio que são secundários 2016, chegou a ser acusado de ignorante.
phia, mas não me interessa – vai esse. Tudo ou más razões, depende da perspetiva. tenebroso processo das candidaturas “O Cavaco apoiou-me sempre”, diz. “Ele é de solidariedade, mas também se desen- escritor. “Ele dizia que até ao Evangelho face às mudanças geopolíticas e ideológi- Mas não por Sousa Lara, ressalve-se. O ex-
o que ela faz é bom’.” O subsecretário de Estado começa por portuguesas”. Já Francisco Sousa Tava- uma pessoa hierática.” Como prova disso, terram acusações de censura. Recorda-se escrevia sobre a estátua”, explica Zeferino cas do ‘mal-chamado’ socialismo real em -subsecretário de Estado da Cultura é fã.
Parêntesis: Se está a perguntar-se se Lara argumentar que o caso não devia ter sido res pede a demissão do subsecretário de depois do veto, Cavaco tê-lo-á convidado o Verão Quente de 1975, altura em que Coelho. “A partir do Evangelho passou a 1989-1991.” Quanto a Lanzarote? “Há quem “Tenho cinco versões da Bíblia na minha
tinha lido o Evangelho Segundo Jesus Cris- tornado público. Depois, alega que “a obra Estado, alegando que este está “agarra- para ir à estreia de “qualquer coisa do o militante comunista esteve à frente do escrever sobre a pedra.” A primeira é a relacione a ‘secagem’ do estilo barroco com mesa de cabeceira. Desde que saiu, que só
to, a resposta é “não”. Ou melhor, “uma ataca o património religioso dos portugue- do à cadeira do poder” e alerta para a La Féria” [Maldita Cocaína]. Lara conta Diário de Notícias: “Pessoalmente, que- superfície; a segunda o seu interior. “Já não a orografia desprovida de vegetação e de leio essa”, conta. “É mais consentânea com
parte”. Porquê? “Porque houve alguém ses. Longe de os unir, divide-os.” repercussão internacional: “Lançou de que recusou dizendo que a sua presença ro servir a construção do socialismo. E o é o homem em determinada circunstância. arvoredo. Acho que pode estar correto.” o que terá sido. O gajo é um erudito. Aquilo
que leu e disse: ‘este gajo é um pulha, já No Público, Torcato Sepúlveda comenta: novo sobre nós os estigmas tradicionais monopolizaria as atenções e neutralizaria DN vai ser um instrumento nas mãos do O que lhe importa é a alma humana no que Pilar concorda: “Talvez a austeridade de dá gosto. Só que tem perigos, rasteiras.”
viste o que ele diz de Deus?’ E fui ler aquele “tal raciocínio evoca, com efeito, o Tribu- da intolerância religiosa e do repúdio da a imagem que o primeiro-ministro queria povo português para a construção dessa ela tem de universal.” Lanzarote [tenha sido uma influência].” Lara diz viver em oração permanente.
bocado. E era ofensivo.” Parêntesis dentro nal do Santo Ofício”. Sucedem-se as acusa- abertura espiritual.” O escritor João de dar, que era a de pessoa atenta à cultura. linha já adotada pelo Conselho Superior Saramago explica esta evolução em 1998, Adaptado ao cinema em 2008 pelo bra- Tem uma fé inabalável, permanente, im-
do parêntesis: hoje, não só já leu como tem ções de censura. A palavra “inquisição” nas Melo sintetiza: “Saramago neste momento “E então não fui. Porque não preciso. Por- de Revolução...” O diretor do Expresso, na Universidade de Turim, numa palestra sileiro Fernando Meirelles, Ensaio Sobre a positiva: “Preenche o oxigénio dos meus
várias edições. Tornou-se uma piada entre suas várias declinações, enunciada pelas somos todos nós.” que se o Cavaco estivesse contra, eu diria José António Saraiva, cria um cenário em mais tarde publicada em livro e intitulada Cegueira é porventura o livro mais impor- dias.” Pela primeira vez, parece ter algum
os amigos que, volta e meia, lhe oferecem mais variadas personalidades literárias e Entretanto, uma sondagem do jornal a mesma coisa. Aqui não há negociação que o PCP subiu ao Governo e Saramago Da Estátua à Pedra (em que afirma ainda tante no percurso internacional de Sara- receio de ser mal interpretado. “Dizer isto
um exemplar. da cultura, propaga-se pelas páginas dos Público indica que 63,3 por cento dos possível. É risco no chão. Ninguém perce- é secretário de Estado da Cultura para e de forma taxativa que o Evangelho Se- mago. A edição americana sai em 1998 e é parece mal.” Da mesma forma, garante não
Lara defende que a lista estava “cozinha- jornais. Promovida a escândalo, a polémica habitantes de Lisboa e Porto acham que beu. Não há negociação possível!” provocar: “Na hipótese de um livro, mesmo gundo Jesus Cristo é não só o seu romance recebida com entusiasmo pela imprensa. guardar rancores. Nem um ao longo da vida.
da” para Saramago fazer parte dela. Insiste internacionaliza-se. Surgem relatos e rea- o Evangelho devia fazer parte da lista de Na sequência da decisão de Santana, notável – mas crítico em relação ao comu- que “gerou mais polémica” mas também “Lembro-me de uma recensão publicada – E quando disse: ‘vou rezar pelo Sara-
que a cultura “é um ninho de vespas da ções nos jornais espanhóis ABC, El País e candidatos ao PLE. O Expresso também o subsecretário de Estado acabaria por nismo –, ser indigitado para um prémio, “a causa de ter mudado a minha residência no Los Angeles Times que o classificava mago’, rezei. Não acho que valha a pena
esquerda”. E que houve “má-fé”. Acabaria El Mundo, nos franceses Libération e Le consulta o cidadão comum e divulga re- pedir a demissão ao primeiro-ministro. Saramago dar-lhe-ia ou não o seu apoio? de Lisboa para Lanzarote”). como um romance sinfónico”, conta Ze- porque ele deve estar no Inferno.
por tomar uma decisão pessoal em nome do Monde, no italiano La Stampa e na Folha sultados que apontam para um equilí- Sem sucesso. Conta que Cavaco lhe res- Muito provavelmente não.” O primeiro romance desta nova fase ferino Coelho. “Isto em agosto, setembro. – Acredita no Inferno, portanto?
Estado. “É a minha maneira de fazer políti- de São Paulo. Até o ministro da Cultura brio maior na sociedade portuguesa: 57 pondeu: “‘Isso não pode ser. Seria uma Ao mesmo tempo, as vendas do roman- chama-se Ensaio Sobre a Cegueira. “Que Em outubro dão-lhe o Prémio Nobel. Pode – Ah, claro. E acredito que está cheio.
ca”, assume sem hesitar. “A minha conceção francês se manifesta. Para Jack Lang, a por cento dos inquiridos está contra a atitude de fraqueza’”. Conclusão: “Estive ce disparam. A 21 de maio, já vai nos 135 eu acho”, prossegue Zeferino Coelho, “e até ter empurrado um bocadinho.” O romance Não se ria.
de democracia – e agora entra outra parte censura de que o “Evangelho” foi alvo é exclusão. lá a ‘abobrar’. Só saí em novembro, quando mil exemplares, só em Portugal. Pouco lho disse várias vezes – ele não concordava aparece em destaque no texto de atribui- – E quando chegar a sua vez?
que ninguém publica – é que a democracia “inaceitável”. o Deus Pinheiro foi à vida. Perguntaram: depois, torna-se um dos mais procurados – que é o melhor romance dele”. ção: “Um dos romances destes últimos anos – Espero passar no exame.
não é o consenso nem a bissetriz. É a direita Entretanto, o eurodeputado socialista “Tony, que Deus ‘Quer ir agora?’ ‘Quero, quero’. Ala!” De na Feira do Livro de Madrid e entra para Entre um e outro livro passam quatro aumenta consideravelmente a estatura lite- Contactados pelo Observador, nem Aní-
contra a esquerda e a esquerda contra a di- João Cravinho tenta levar o caso ao Par- facto, Lara só abandona o Governo a 13 de o top 10 espanhol. Pilar del Río diz des- anos. O interregno é atípico, mas a vida do rária de Saramago. É publicado em 1995 e bal Cavaco Silva nem Pedro Santana Lopes
reita. Tenho uma lógica de luta, de combate, lamento Europeu. A 9 de Maio, o Expresso te guie” novembro de 1992, altura em que o então conhecer quantos livros se venderam ao escritor está cada vez mais cheia. Além de tem como título Ensaio Sobre a Cegueira.” se mostraram disponíveis para comentar
de cruzada, de porrada.” noticia: “O presidente do Parlamento Euro- Por esta altura já Santana Lopes chamou a ministro dos Negócios Estrangeiros tam- todo. Remete para a Caminho, que por que a matéria ficcional que agora o ocupa é este caso. Em 1992, ganharia o Prémio
Santana Lopes só sabe do veto na vés- peu, Egon Klepsch, envia carta a Jacques si o caso, revogou a decisão de Sousa Lara e bém sai, apesar de, entretanto, ter havido sua vez passa a bola para a Porto Editora, de uma dureza inusitada. “A certa altura che- “O Inferno está cheio. Literário Europeu, e os correspondentes
pera da notícia do Público. Sousa Lara Delors [presidente da Comissão Europeia] afastou o subsecretário de Estado. Santana duas outras remodelações, uma em junho que detém atualmente os direitos da obra guei a dizer: ‘não sei se consigo sobreviver 20 mil ecus, o espanhol Manuel Vázquez
argumentaria que se tratava de uma “com- pedindo explicações sobre o afastamento anuncia a criação de novo júri para esco- e outra em agosto. do Nobel, mas declara não poder avançar a este livro.”, contaria ao Expresso em 1995. Não se ria” Montalbán.
petência delegada”. De acordo com O Inde- de Saramago à candidatura ao PLE.” lher nova lista de candidatos. Saramago Novo parêntesis. Em junho, um jantar essa informação. Adianta, porém, que o “Foi como se tivesse dentro de mim uma Uma das histórias que Sousa Lara gosta
pendente, na estreia do filme Aqui D’El Rei, Por cá, Tamen e Fiama recusam a avisa logo que não estará disponível e pede de “homenagem ao prof. doutor Antó- Evangelho continua a vender-se “todas coisa feia, horrível, e tivesse de sacá-la. Mas de contar tem a ver com um momento de Joana Stichini Vilela é jornalista
Maria José Nogueira Pinto terá comentado candidatura ao PLE. Já o poeta David para não ser considerado sequer. Santana nio de Sousa Lara (...) pela coerência e as semanas”, longe, porém, dos números não saiu, está no livro e está dentro de mim.” epifania na sua vida. Antes do 25 de Abril, freelancer e autora de uma trilogia de livros
com o secretário de Estado: “Parece que há Mourão-Ferreira é dos mais vocais. Numa ignora o repto, alegando que essa decisão verticalidade” reunirá 250 pessoas no do principal bestseller de Saramago, Me- Saramago era um pessimista. Para ele, um artigo seu sobre o LSD publicado num sobre a vida em Lisboa no passado: “LX60”,
um problema com o Saramago.” mensagem escrita defende que o primei- cabe ao júri internacional. restaurante Muchaxo, no Guincho. Entre morial do Convento. a irracionalidade estava a tomar conta de jornal monárquico foi censurado pela PIDE. “LX70” e “LX80”.
“Nunca cantei
104 FEATURE QUIM BARREIROS 105

Mulherengo, acelerado, sem papas


uma asneira na na língua. Numa entrevista de vida,
Quim Barreiros, 69 anos (curioso
minha vida” número), diz não saber lidar
com tristezas, explica porque começou
a fazer trocadilhos e conta que
os padres estão sempre a ligar-lhe
para ir animar festas religiosas.
Sara Otto Coelho
É um dos principais artistas nacio- Quem foi o seu primeiro amor? É assediado pelas fãs? Força Aérea. Como era mecânico ia trabalhar
nais. Ainda assim, ao ligar para o número O meu primeiro namoro foi a Ana, uma Ui, por muitas, minha querida. Tam- com os radares e depois daí é que transitei
que aparece na página de Quim Barreiros mocinha aqui de Viana do Castelo. Teria bém não sou assim tão feio! Uma pessoa para lá. Depois lá descobri a Banda da Força
e nos próprios CD, é ele quem atende. Não os meus 18 anos, talvez. está em cima do palco e eu acho que é Aérea, entrei e nunca fui mobilizado.
há cá editoras nem assistentes pessoais normal depois uma fã telefonar-me e
pelo meio. Com Joaquim de Magalhães O jovem Quim foi muito namoradeiro? assim. E, quando vale a pena, levam com Pode dizer-se que, no seu caso, a músi-
Fernandes Barreiros é sempre a aviar. Opá, eu era namoradeiro, mas as moças o sarrafo. ca se calhar lhe salvou a vida.
Quando fomos a Vila Praia de Âncora, em não se davam muito bem comigo, manda- Salvou-me a vida... É. Desde os 9 anos
Viana do Castelo, onde nasceu e ainda vive, vam-me embora. Começou a trabalhar aos 9 anos, logo que a música me salva a vida. Há profissões
queria começar a entrevista ali mesmo, depois da quarta classe. Era preciso melhores, mas eu não trocava.
na esplanada. Porquê? esse ordenado para ajudar em casa?
A entrevista acabou por ser feita na Não sei... Eu andava sempre a mexer, Qual ordenado. Eu primeiro fui aprender Onde é que estava no 25 de Abril de
albergaria que possui em frente à praia. não estava quieto [risos]. a fazer fazenda, os meus pais queriam que 1974?
Também já lá teve um restaurante, mas eu aprendesse uma arte e o dono da loja Estava em Lisboa. Acordei com as rádios e
acabou por fechá-lo. “Um restaurante exi- Não era por olhar para outras rapa- lá pagava alguma coisa a uma criança de a televisão, sereno. Sereno porque como eu
ge dedicação e eu não tenho vida. Se uma rigas? 9 anos que estava a aprender. E depois fui andava lá no meio da barulhada, ainda era
pessoa não está, os empregados comem- Não, não. Nessa altura, não. As moças trabalhar para a garagem de bicicletas do militar, correu tudo normal. Eu nunca ligo
-nos.” É por isso que põe o número de com 17, 18, 19 ou 20 anos querem domi- meu pai. Acha que os pais dão ordenados muito a estas coisas, francamente. Eu já na
telemóvel nas contracapas dos discos. Já nar o homem, querem enclausurá-lo. E aos filhos? Dão é chapadas no focinho! altura trabalhava em quatro ou cinco casas
no final da entrevista, recebe uma chama- sabes que enclausurar o Quim Barreiros de fados em Lisboa, todas as noites, mais as
da com um convite para um espetáculo. é como prender uma porção de vento Com os seus três irmãos também foi gravações. Passam-me ao lado essas coisas.
É ele quem decide o preço no momento numa gaiola. assim? Mas vi a Alameda D. Afonso Henriques e
e combina tudo. Com as duas irmãs mais velhas, a Rosa tal, depois achava um disparate andar em
Também não lhe sobra muito tempo E hoje, é mulherengo? e a Manuela, sim. O meu irmão Cláudio Lisboa de carro e aparecem-me patrulhas
para os três netos e os dois filhos, Pedro, Sou. já aparece mais tarde, porque o meu pai populares a revistarem os carros sem auto-
com 40 anos, e Emanuel, com 24. A di- enviuvou muito novo. E depois também rização nenhuma de ninguém. Alguns até
ferença de idades deve-se ao facto de o Mas é casado. andou aí a namoriscar, então apareceu, meus conhecidos, mas eu achava aquilo uma
filho mais novo ser fruto de uma relação Sim, há 42 anos, talvez. graças a Deus, o Cláudio. coisa muito arbitrária, muito feia.
extraconjugal. “É as tais brincadeiras que a
gente…”, explica-nos Quim, sem vergonha A sua esposa não se importa que se Teve uma infância feliz? Tinha 20 anos quando foi para Lisboa
de assumir que, apesar de casado há mais assuma como mulherengo? Tive, tive. Pobre, mas feliz. cumprir o serviço militar. E foi nessa
de quatro décadas, ainda hoje não vira as Não. Porque é que há de ficar chateada? altura que começou a tocar acordeão
costas a uma aventura. Como forma de [Uma ex-colega do rancho de Santa nas casas de fado, à noite. Só aí é que
celebrar os seus 69 anos gravou um disco Então a letra da música “Casado Tam- Marta de Portuzelo entra na albergaria percebeu que podia viver da música?
chamado Eu Faço 69. bém Namora” é verdadeira. e interrompe a conversa para cumprimen- E que podia ir longe, sim. Antes não
Não tenhas dúvidas nenhumas. A maior tar Quim, que não a conhece à primeira e pensava nisso porque não havia hipótese
Conte-me uma coisa que nem os seus parte dos divórcios que se dão aí é exata- pergunta: “também namoraste comigo?”. para uma pessoa que estava na aldeia. Ain-
maiores fãs saibam sobre si. mente por as mulheres não admitirem que Não é o caso.] da por cima naquele tempo! Podia tocar
Ui. O que eu podia contar eram roman- o seu marido vá ali ao lado. muito bem, ser um grande artista, cantar
ces com mulheres. Mas os mais velhos aqui Mais tarde quis acabar o antigo 5.º ano muito bem, mas não era fácil.
da terra sempre me disseram que o maior Também admite que a sua mulher “vá para entrar na Força Aérea. Porquê
segredo do mundo é aquilo que existe entre ali ao lado”? esta decisão em plena Guerra Colonial? Levou a música folclórica para o Solar
um homem e uma mulher. Como tal, não Que vá à vontade dela! É a mulher mais Fui para a Força Aérea porque realmente do Minho, para o Timpanas, Adega Ma-
dá para contar nem aos meus fãs. Aliás, é livre do mundo. sou um grande herói: exatamente para não ir chado, Caverna e até para o Solar da
um conselho que lhes deixo! para os tiros, para o mato, é que quis ir para a Hermínia, que era da Hermínia Silva.

NICK BOOTHMAN
“Nunca cantei
104 FEATURE QUIM BARREIROS 105

Mulherengo, acelerado, sem papas


uma asneira na na língua. Numa entrevista de vida,
Quim Barreiros, 69 anos (curioso
minha vida” número), diz não saber lidar
com tristezas, explica porque começou
a fazer trocadilhos e conta que
os padres estão sempre a ligar-lhe
para ir animar festas religiosas.
Sara Otto Coelho
É um dos principais artistas nacio- Quem foi o seu primeiro amor? É assediado pelas fãs? Força Aérea. Como era mecânico ia trabalhar
nais. Ainda assim, ao ligar para o número O meu primeiro namoro foi a Ana, uma Ui, por muitas, minha querida. Tam- com os radares e depois daí é que transitei
que aparece na página de Quim Barreiros mocinha aqui de Viana do Castelo. Teria bém não sou assim tão feio! Uma pessoa para lá. Depois lá descobri a Banda da Força
e nos próprios CD, é ele quem atende. Não os meus 18 anos, talvez. está em cima do palco e eu acho que é Aérea, entrei e nunca fui mobilizado.
há cá editoras nem assistentes pessoais normal depois uma fã telefonar-me e
pelo meio. Com Joaquim de Magalhães O jovem Quim foi muito namoradeiro? assim. E, quando vale a pena, levam com Pode dizer-se que, no seu caso, a músi-
Fernandes Barreiros é sempre a aviar. Opá, eu era namoradeiro, mas as moças o sarrafo. ca se calhar lhe salvou a vida.
Quando fomos a Vila Praia de Âncora, em não se davam muito bem comigo, manda- Salvou-me a vida... É. Desde os 9 anos
Viana do Castelo, onde nasceu e ainda vive, vam-me embora. Começou a trabalhar aos 9 anos, logo que a música me salva a vida. Há profissões
queria começar a entrevista ali mesmo, depois da quarta classe. Era preciso melhores, mas eu não trocava.
na esplanada. Porquê? esse ordenado para ajudar em casa?
A entrevista acabou por ser feita na Não sei... Eu andava sempre a mexer, Qual ordenado. Eu primeiro fui aprender Onde é que estava no 25 de Abril de
albergaria que possui em frente à praia. não estava quieto [risos]. a fazer fazenda, os meus pais queriam que 1974?
Também já lá teve um restaurante, mas eu aprendesse uma arte e o dono da loja Estava em Lisboa. Acordei com as rádios e
acabou por fechá-lo. “Um restaurante exi- Não era por olhar para outras rapa- lá pagava alguma coisa a uma criança de a televisão, sereno. Sereno porque como eu
ge dedicação e eu não tenho vida. Se uma rigas? 9 anos que estava a aprender. E depois fui andava lá no meio da barulhada, ainda era
pessoa não está, os empregados comem- Não, não. Nessa altura, não. As moças trabalhar para a garagem de bicicletas do militar, correu tudo normal. Eu nunca ligo
-nos.” É por isso que põe o número de com 17, 18, 19 ou 20 anos querem domi- meu pai. Acha que os pais dão ordenados muito a estas coisas, francamente. Eu já na
telemóvel nas contracapas dos discos. Já nar o homem, querem enclausurá-lo. E aos filhos? Dão é chapadas no focinho! altura trabalhava em quatro ou cinco casas
no final da entrevista, recebe uma chama- sabes que enclausurar o Quim Barreiros de fados em Lisboa, todas as noites, mais as
da com um convite para um espetáculo. é como prender uma porção de vento Com os seus três irmãos também foi gravações. Passam-me ao lado essas coisas.
É ele quem decide o preço no momento numa gaiola. assim? Mas vi a Alameda D. Afonso Henriques e
e combina tudo. Com as duas irmãs mais velhas, a Rosa tal, depois achava um disparate andar em
Também não lhe sobra muito tempo E hoje, é mulherengo? e a Manuela, sim. O meu irmão Cláudio Lisboa de carro e aparecem-me patrulhas
para os três netos e os dois filhos, Pedro, Sou. já aparece mais tarde, porque o meu pai populares a revistarem os carros sem auto-
com 40 anos, e Emanuel, com 24. A di- enviuvou muito novo. E depois também rização nenhuma de ninguém. Alguns até
ferença de idades deve-se ao facto de o Mas é casado. andou aí a namoriscar, então apareceu, meus conhecidos, mas eu achava aquilo uma
filho mais novo ser fruto de uma relação Sim, há 42 anos, talvez. graças a Deus, o Cláudio. coisa muito arbitrária, muito feia.
extraconjugal. “É as tais brincadeiras que a
gente…”, explica-nos Quim, sem vergonha A sua esposa não se importa que se Teve uma infância feliz? Tinha 20 anos quando foi para Lisboa
de assumir que, apesar de casado há mais assuma como mulherengo? Tive, tive. Pobre, mas feliz. cumprir o serviço militar. E foi nessa
de quatro décadas, ainda hoje não vira as Não. Porque é que há de ficar chateada? altura que começou a tocar acordeão
costas a uma aventura. Como forma de [Uma ex-colega do rancho de Santa nas casas de fado, à noite. Só aí é que
celebrar os seus 69 anos gravou um disco Então a letra da música “Casado Tam- Marta de Portuzelo entra na albergaria percebeu que podia viver da música?
chamado Eu Faço 69. bém Namora” é verdadeira. e interrompe a conversa para cumprimen- E que podia ir longe, sim. Antes não
Não tenhas dúvidas nenhumas. A maior tar Quim, que não a conhece à primeira e pensava nisso porque não havia hipótese
Conte-me uma coisa que nem os seus parte dos divórcios que se dão aí é exata- pergunta: “também namoraste comigo?”. para uma pessoa que estava na aldeia. Ain-
maiores fãs saibam sobre si. mente por as mulheres não admitirem que Não é o caso.] da por cima naquele tempo! Podia tocar
Ui. O que eu podia contar eram roman- o seu marido vá ali ao lado. muito bem, ser um grande artista, cantar
ces com mulheres. Mas os mais velhos aqui Mais tarde quis acabar o antigo 5.º ano muito bem, mas não era fácil.
da terra sempre me disseram que o maior Também admite que a sua mulher “vá para entrar na Força Aérea. Porquê
segredo do mundo é aquilo que existe entre ali ao lado”? esta decisão em plena Guerra Colonial? Levou a música folclórica para o Solar
um homem e uma mulher. Como tal, não Que vá à vontade dela! É a mulher mais Fui para a Força Aérea porque realmente do Minho, para o Timpanas, Adega Ma-
dá para contar nem aos meus fãs. Aliás, é livre do mundo. sou um grande herói: exatamente para não ir chado, Caverna e até para o Solar da
um conselho que lhes deixo! para os tiros, para o mato, é que quis ir para a Hermínia, que era da Hermínia Silva.

NICK BOOTHMAN
106 QUIM BARREIROS CRÓNICA 107

Não era olhado de lado pelos fadistas? Em 2017 vai fazer 70 anos. Quando é

Optimismos
Ah pois. Naquele tempo havia casas que se imagina a largar a estrada e o
de fado que eram exatamente catedrais acordeão?
do fado. Entrar um acordeonista numa Quando me sentir a mais em cima de um
casa daquelas era um sacrilégio para os palco, podes ter a certeza de que arrumo

antigos e novos
fadistas mais velhos, não é? O tio Alfredo as botas. Agora sinto que ainda sou capaz
Marceneiro era contra a minha presença de fazer um bom espetáculo, com a minha
lá. Dizia-me: “Acordeonista aqui nas casas banda. Vi gente famosa que se andou a
de fados... Eu não gosto muito, mas pronto, arrastar em palco e não quero que isso me
és bom rapaz, toda a gente gosta de ti.” aconteça. Vou saber parar. Acho que nem
a minha família me admite isso.
E ao longo da carreira, foi sentindo
olhares superiores? Quem pensa em Quim Barreiros pensa
Não, não. Participei em muitas caravanas inevitavelmente em festa e alegria...
de artistas portugueses populares, que É que eu não admito tristezas. Na minha
naquele tempo iam ter com as comuni- vida tenho amigos e amigas que a primeira
dades portuguesas para todo o mundo. coisa que me dizem é: “Olha, sabes? Morreu
Acompanhei o Francisco José, Tony de fulano e beltrano, tenho aqui uma dor...” Eu
Matos, Duo Ouro Negro, Trio Odemira, travo logo. Sou uma pessoa positiva. Muitas
Paco Bandeira, eu sei lá. Fazia a minha vezes convidam-se para ir a hospitais, lares
parte e eles faziam a deles. Sempre senti de idosos, para estar um bocadinho com as
RICARDO CASTELO

amizade por parte de todos. O meu tipo de pessoas, e francamente não me sinto bem.
música não tinha nada a ver com o deles, Dou sempre uma desculpa. Agora se me
eu era um acordeonista, um tocador de disseres para irmos a uma maternidade,

Paulo Tunhas
sanfona, um brejeiro. Sempre me dei e dou é o contrário. Gosto dos bebés, da vida!
bem com toda a malta da minha profissão. Gosto de ouvir um bebé a chorar. Quando
● Quim Barreiros é um homem do Norte. Nasceu vou num avião há pessoas que se sentem
O primeiro disco que lançou, em 1971, incomodadas com o choro de um bebé e
era de instrumentais da música tra- em Vila Praia de Âncora e é aí que ainda hoje vive e eu não, isso faz-me feliz. Vivi em Lisboa
faz negócio: tem uma albergaria em frente à praia.
Alguém que se sente fisicamente bem, tende naturalmente
dicional portuguesa. Quando é que num apartamento onde o bebé do andar
entrou no mundo dos trocadilhos de cima chorava toda a noite. Acordava e
brejeiros? brejeirada. Isto é nosso e por isso é que E em relação a outros músicos portu- sentia-me bem, para mim o choro de um

para o optimismo; alguém que se sente fisicamente mal,


Exatamente quando, passados dois ou tem piada. Comecei a cantar novo e já o gueses que lhe copiaram o estilo, que bebé soa-me a música.
três anos de andar nas comunidades com Pedro Homem de Melo me dizia: “Quim, andam de acordeão na mão e fazem
esses artistas, percebi que podia fazer tu canta tudo de maneira a que as crianças trocadilhos. Sente-se bem com isso? Quantas horas dorme por noite?
espetáculos sozinho mas, para isso, preci- não entendam!” “Pronto, sotôr, eu vou Acho que nem copiaram. Se copiassem Olha, sem comprimidos durmo quatro.
sava de cantar. Porque só tocar acordeão
não dava. Comecei a olhar para o lado e
via grandes acordeonistas portugueses
fazer isso.” E é o que faço. De maneira que
as crianças gostam das minhas cantigas,
mas não as entendem. Bonito é eles mais
eu até me sentia feliz. Há aí uma rapazia-
da... Olha, governam-se e fazem eles muito
bem. O mercado é tão grande que dá para
Quando tomo Xanax, ou Lorenin, ou uma
porcaria qualquer, durmo seis ou sete. para o pessimismo. Quem pensa, procurando abstrair-
que ficavam parados. O Carlos Areias, o
Isidro Baptista, a própria Eugénia Lima.
Comecei a fazer aquilo e o sucesso foi
tarde descobrirem: “Ah, ele quis dizer
aquilo!”. Olha, a frase do “entra a gosto”
[da música “Qual é o Melhor Dia Para
todos, e alguns deles até me telefonam: “Ó
sr. Quim, olhe, como é que eu devo fazer,
faço assim?”. Estou farto de os aturar, mas
Gosta de sair?
Gostava de ir a uma discoteca beber um
copo, mas o meu maior problema é que
-se do estado, feliz ou infeliz, das suas vísceras, não é
optimista nem pessimista.
tão grande que a partir daí nunca mais Casar”] foi-me dada por um reitor da até os ajudo. toda a gente quer tirar selfies comigo, não
deixei de gravar. Universidade de Vila Real! Ele disse-me me deixam estar descansado. Gostava de
qualquer coisa de entrar a gosto, para Então se, por exemplo, a Rosinha lhe ser um cidadão qualquer e de poder entrar,
Podia ter começado a cantar sobre o me dar o toque, mas eu não atingi logo ligar, não desliga o telefone. sentar-me e estar ali um bocadinho sem
amor, ou sobre outra coisa qualquer. também. Ele ficou calado e então é que eu Sou muito amigo da Rosinha e fico satis- chatices, mas não dá. Qual foi a maior contribuição bilidade do mundo e motivo de conflito agora: como a primeira edição surgiu sem o particularmente enaltecido, e o pessimis-
Porquê os trocadilhos sobre sexo? percebi: “Eh pá! Ó professor Mascarenhas, feito que ela leve no pacote [risos]. de Portugal para o pensamento moderno? entre os dois tipos de explicação possíveis, nome de Leibniz nela aparecer, aprendi no mo extremamente mal visto. Marcelo é um
Ó minha querida, isto é muito simples. isso vai dar uma canção”, disse-lhe logo. Aqui em Vila Praia se calhar consegue Não é talvez bom para a auto-estima, como a religiosa e a científica. Kant sugeria uma outro dia, houve quem julgasse que “teo- caso exemplar. Vê-se a si próprio como um
Cada um tem de saber para o que nas- Gosta do reconhecimento que tem? com mais facilidade. agora se diz, mas foi indisputavelmente o explicação científica, enquanto jansenistas diceia” fosse um pseudónimo do autor. “optimista racional”, um conceito difícil de
ce. Eu comecei a tocar aos oito anos no Sai tudo da sua cabeça? Gosto, mas sou contra o elogio. Não gosto Não tenho tempo. Um homem que faz terramoto de Lisboa de 1755. É verdade e jesuítas ofereciam versões religiosas em A doutrina de Leibniz não esperou pelo aprofundar, porque junta dois termos que
Conjunto Alegria, com o meu pai, tenho Eu escrevo, mas há várias letras que me que me elogiem, que digam que sou bom. duzentas e tal festas por ano, que tem que a responsabilidade dessa nossa no- que mutuamente se acusavam: os jansenis- terramoto de Lisboa para ser criticada. não comunicam entre si, e vê em António
essa escola toda de conjuntos musicais, de são enviadas por artistas de forró do nor- Eu não sou nada bom, sou igual ao teu discos e cantigas para fazer, mais a vida toriedade não nos pode ser atribuída, co- tas sustentavam que, sendo Portugal um Em particular, um jesuíta francês, o padre Costa um “optimista crónico e ligeiramente
grupos folclóricos, portanto eu sei do que deste do Brasil. Lá há muitos Quim Barrei- pai, o teu pai é igual a mim, somos os dois familiar, a albergaria, não dá. E também lectiva ou individualmente. Os dois únicos viveiro de jesuítas, Deus quisera esmagar Louis-Bertrand Castel, em 1737, criticou-a, irritante”. No fundo, a acreditar na sinceri-
o povo gosta. Quem são os emigrantes? ros. “A Garagem da Vizinha”, assim como a iguaizinhos. E homenagens, então, fujo nunca fui homem de beber copos. Tenho candidatos, Deus e a natureza, não consta a Inquisição (prova: o número de igrejas e, nessa crítica, inventou uma palavra com dade dos propósitos, seriam duas variações
São pessoas que saíram da aldeia. Eu sei “A Cabritinha” é de origem brasileira, não é disso! Quantas vezes me telefonam a dizer 69 anos e não sei o que é apanhar uma que sejam portugueses. Mas nada como o destruídas e o facto de uma rua inteira indiscutível futuro, para designar a dou- do Dr. Pangloss, uma fraca e outra forte.
o que é que eles querem, que é aquilo que minha. Nem letra nem música. O “Bacalhau que me querem homenagear, até aqui de bebedeira na vida. terramoto de Lisboa pôs tanto as cabeças com bordéis ter sido deixada intacta); os trina combatida: “optimismo”. A palavra Estas elocubrações não teriam em si mal
eu lhes dou. E, ao mesmo tempo, sei as à Portuguesa” e o “Chupa Teresa” também Espanha. Não quero nada disso. pensantes da Europa, de Voltaire a Kant, a jesuítas, pelo seu lado, ripostaram que o ficou, e já o título completo do Cândido de algum se não tendessem a lançar uma cor-
minhas possibilidades. Tu já imaginaste o são deles. Nunca?! falar de Portugal. Voltaire publicou em 1756 castigo divino resultaria do relaxamento Voltaire (1759) é Cândido, ou o optimismo. tina de fumo sobre os nossos problemas
Quim Barreiros a cantar o fado? Não dá, [Aparece a polícia e para junto ao carro Nunca ninguém me viu bêbado. Nunca. um Poema sobre o desastre de Lisboa, e, na das práticas inquisitoriais, algo remediável No mesmo movimento, criou-se uma cor- reais, que se estão nas tintas para opti-
eu não tenho voz para isso. Já viste o que Não me diga que o “Mestre de Culiná- de Quim Barreiros, mal estacionado. Ele Sei o que é uma má-disposição, uma ou mesma linha de resposta aos que acredi- com penitências e autos-de-fé. De qualquer rente adversa, o “contra-optimismo”, e há mismos e pessimismos e restantes subjec-
era o Quim Barreiros a cantar uma música ria” afinal é brasileiro. vai lá, mas nada feito. É preciso estacionar duas vezes na minha vida, porque bebi tavam que o nosso mundo é o melhor dos maneira, como Kant explicou depois, o quem defenda que o pessimismo de Scho- tividades viscerais. Não nos arriscamos,
do Marco Paulo? Também não dá! E eu Essa é minha, tenho muitas minhas. Ali- a viatura noutro local.] um uísque, depois um champanhe e tal, mundos, fez, no Cândido, o Dr. Pangloss terramoto pôs decisivamente em cheque penhauer, já no século xix, corresponde felizmente, a ser de novo objecto da mais
também não estou a ver o Marco Paulo a ás, se pegares nos discos podes ver de quem mas não fico bêbado, não fico é bem. Eu passar pela nossa terra para mais uma vez todas as tentativas de teodiceia, isto é, de ao estado último do desenvolvimento dessa profunda curiosidade intelectual da Euro-
cantar o “Quero Cheirar Teu Bacalhau”, são as letras e as músicas, está lá tudo. Ser o Quim Barreiros não dá direito a às vezes até gostava de estar numa festa e ser maltratado. Kant escreveu três ensaios compreender os males do mundo como um última corrente. pa pelas desagradáveis razões de 1775. Mas
nem o Carlos do Carmo a cantar “A Gara- uns privilégios junto das autoridades beber, beber, beber e ficar assim meio... a partir do terramoto (também em 1756) efeito necessário, se bem que marginal, da A verdade é que nem optimismo nem uma curiosidade menor e burocrática é
gem da Vizinha”. A primeira música que Recentemente foi notícia por ter sido locais? Mas chega ali um momento e entope, não e lembrou-se deles quando, muitos anos sabedoria divina. pessimismo são conceitos com grande in- sempre possível, por razões afins às de 2011
eu gravei destas foi “Recebi um Convite plagiado por um conjunto holandês, Não, não. Eu respeito. Eu ando muito na consigo beber mais. depois, em 1791, publicou o seu escrito O filósofo visado por Voltaire e Kant era teresse filosófico e que nunca atravessaram (ou de 1977, ou de 1983). E, a ouvir tanto
(À Casa da Jóquina)”, uma canção popu- precisamente com “A Garagem da Vi- estrada e não me lembro de apanhar uma Sobre o insucesso de todas as tentativas o maravilhoso Leibniz, que criara um sis- o espírito de Leibniz, embora tivessem falar de optimismo, com o desvio em re-
lar. Depois comecei a gravar já por minha zinha”. multa, nem aqui nem em Lisboa. Muitas Nunca teve um padre que se tenha filosóficas em matéria de teodiceia. E Kant tema filosófico de uma admirável riqueza ocupado, na sua juventude, o de Kant, algo lação à realidade que a coisa implica, uma
conta e o meu primeiro grande sucesso foi Isso não foi plágio. Sabes que há coisas vezes mandam-me parar em operações oposto à sua presença numa festa em e Voltaire foram apenas dois entre muitos. e complexidade que resultava na doutrina do qual este futuramente se arrependeu. É pessoa apanha-se a pensar que é racional
o “Franguito da Maria”, em 1975. que me interessa entrar na onda porque stop, reconhecem-me e mandam-me em- honra do santo local? Como notou uma filósofa, Susan Neiman, segundo a qual Deus, criando o Universo, até legítimo, em grande medida, supor que julgar vir algo assim e ter medo. Nem as
quanto mais se fala do bicho, melhor. En- bora. Posso soprar ao balão que nunca Já houve um padre ou dois que não qui- o acontecimento não poderia ter provoca- escolhera fazer passar à existência todos os estados de espírito ao qual se referem igrejas nem os bordéis sofreriam muito: os
Vem de uma família conservadora. tão, plágio abaixo, plágio acima, vêm cá as tenho nada. Aliás, eu ando com um balão seram que fosse cantar. Um ou outro mais do a reacção intelectual que provocou se os possíveis que, conjuntamente reunidos, têm a sua origem em condições fisiológi- nossos bolsos sim. E duma tal catástrofe
Quando o seu pai ouviu as letras não televisões e tal, mas isto é assim: eu lancei no carro igual aos deles, porque às vezes conservador. Às vezes até são as beatas, que tivesse ocorrido em outras épocas. Num constituiriam o melhor dos mundos. O mal cas. Alguém que se sente fisicamente bem, seremos mesmo responsáveis. Em especial
ficou chateado? agora o Eu Faço 69, não é? O disco sai para bebo uma cervejinha ou duas e gosto de dizem que eu sou malcriado. Nunca cantei mundo pré-moderno, o terramoto teria (metafísico, físico e moral) aparecia como tende naturalmente para o optimismo; alguns. Nem Deus nem a natureza estão
Não. Repara: se tu fores à nossa litera- a rua e amanhã tu podes pegar numa mú- saber. Mas nunca acuso nada. uma asneira na minha vida. De resto, a apenas sido prova de um justo castigo de consequência de um cálculo divino na es- alguém que se sente fisicamente mal, para já compreensivelmente disponíveis para
tura dos séculos XVI, XVII, XVIII, às can- sica dali, gravas, mas depois pagas direitos minha vida até é ser chamado por padres Deus e teria tido como efeito o reforço da colha dos possíveis que passariam a existir, o pessimismo. Quem pensa, procurando aparecerem na história como culpados.
tigas de escárnio e maldizer, estas letras e tens de pôr “música do brasileiro X” e Ainda não se cansou de percorrer tan- para participar nas festas religiosas. Ainda crença religiosa. No nosso mundo con- visando a maior beleza e harmonia do todo. abstrair-se do estado, feliz ou infeliz, das Nem sequer, como quer a nova teologia da
brejeiras estão lá todas! Há antologias de letra com autorização do brasileiro para tos quilómetros? na semana passada fui contratado pela temporâneo, a explicação recorreria ao O mal só poderia ser visto como um ingre- suas vísceras, não é optimista nem pessi- esquerda, disfarçados de Europa.
autores portugueses, do Guerra Junqueiro fazer a adaptação para holandês. Há que Quem corre por gosto não cansa. En- paróquia de Pero Pinheiro, pelo sr. padre encontro de placas tectónicas e as pessoas diente de que Deus, por razões de lógica, mista. Busca, se possível, alguma raciona-
até, que já tinham esta malandrice lá toda. pedir autorização à Associação Brasileira quanto tiver saúde... Gosto da estrada, Avelino. indignar-se-iam com a incúria do Estado não tinha maneira de se privar. A explicação lidade nos seus pensamentos. Paulo Tunhas é professor de Filosofia
Isto não é meu, isto é nosso, eu não vim de Autores, que por sua vez pede ao autor. gosto de andar de um lado para o outro. e dos seus funcionários, que poderiam ter dessa doutrina encontrava-se, na sua forma O que não impede, é claro, que os con- na Faculdade de Letras da Universidade
descobrir nada. Tu ainda hoje se fores Isto não tem nada a ver com contrafação, Não gosto é de estar parado. Parar é morrer Sara Otto Coelho é jornalista do tomado precauções que não tomaram para mais conhecida, num livro publicado em ceitos sejam usados a torto e a direito como do Porto. É autor de vários livros, entre os
a uma festa popular em Portugal ouves qualquer pessoa em todo o mundo pode e, como já viste, eu sou um gajo elétrico. Observador. Escreve a partir do Porto e, tal minorar as consequências do desastre. 1710, Ensaios de teodiceia. A palavra “teodi- se tivessem algum valor substantivo. Em quais “As Questões que Se Repetem –
os homens e as mulheres a cantarem ao gravar as minhas músicas, tem é de pôr lá Gosto que mexam comigo e gosto de mexer como Quim Barreiros, é proprietária de um Naquela altura precisa, não. O terramoto ceia”, por ele forjada, significa, a partir dos Portugal, por exemplo, são muito acari- Uma Breve História da Filosofia”,
desafio e no meio daquilo tudo lá vem uma a quem pertence. com as pessoas. acordeão. foi sentido como uma perda de inteligi- seus elementos gregos, “justiça de Deus”. Já nhados. O optimismo, nomeadamente, é em colaboração com Alexandra Abranches.
106 QUIM BARREIROS CRÓNICA 107

Não era olhado de lado pelos fadistas? Em 2017 vai fazer 70 anos. Quando é

Optimismos
Ah pois. Naquele tempo havia casas que se imagina a largar a estrada e o
de fado que eram exatamente catedrais acordeão?
do fado. Entrar um acordeonista numa Quando me sentir a mais em cima de um
casa daquelas era um sacrilégio para os palco, podes ter a certeza de que arrumo

antigos e novos
fadistas mais velhos, não é? O tio Alfredo as botas. Agora sinto que ainda sou capaz
Marceneiro era contra a minha presença de fazer um bom espetáculo, com a minha
lá. Dizia-me: “Acordeonista aqui nas casas banda. Vi gente famosa que se andou a
de fados... Eu não gosto muito, mas pronto, arrastar em palco e não quero que isso me
és bom rapaz, toda a gente gosta de ti.” aconteça. Vou saber parar. Acho que nem
a minha família me admite isso.
E ao longo da carreira, foi sentindo
olhares superiores? Quem pensa em Quim Barreiros pensa
Não, não. Participei em muitas caravanas inevitavelmente em festa e alegria...
de artistas portugueses populares, que É que eu não admito tristezas. Na minha
naquele tempo iam ter com as comuni- vida tenho amigos e amigas que a primeira
dades portuguesas para todo o mundo. coisa que me dizem é: “Olha, sabes? Morreu
Acompanhei o Francisco José, Tony de fulano e beltrano, tenho aqui uma dor...” Eu
Matos, Duo Ouro Negro, Trio Odemira, travo logo. Sou uma pessoa positiva. Muitas
Paco Bandeira, eu sei lá. Fazia a minha vezes convidam-se para ir a hospitais, lares
parte e eles faziam a deles. Sempre senti de idosos, para estar um bocadinho com as
RICARDO CASTELO

amizade por parte de todos. O meu tipo de pessoas, e francamente não me sinto bem.
música não tinha nada a ver com o deles, Dou sempre uma desculpa. Agora se me
eu era um acordeonista, um tocador de disseres para irmos a uma maternidade,

Paulo Tunhas
sanfona, um brejeiro. Sempre me dei e dou é o contrário. Gosto dos bebés, da vida!
bem com toda a malta da minha profissão. Gosto de ouvir um bebé a chorar. Quando
● Quim Barreiros é um homem do Norte. Nasceu vou num avião há pessoas que se sentem
O primeiro disco que lançou, em 1971, incomodadas com o choro de um bebé e
era de instrumentais da música tra- em Vila Praia de Âncora e é aí que ainda hoje vive e eu não, isso faz-me feliz. Vivi em Lisboa
faz negócio: tem uma albergaria em frente à praia.
Alguém que se sente fisicamente bem, tende naturalmente
dicional portuguesa. Quando é que num apartamento onde o bebé do andar
entrou no mundo dos trocadilhos de cima chorava toda a noite. Acordava e
brejeiros? brejeirada. Isto é nosso e por isso é que E em relação a outros músicos portu- sentia-me bem, para mim o choro de um

para o optimismo; alguém que se sente fisicamente mal,


Exatamente quando, passados dois ou tem piada. Comecei a cantar novo e já o gueses que lhe copiaram o estilo, que bebé soa-me a música.
três anos de andar nas comunidades com Pedro Homem de Melo me dizia: “Quim, andam de acordeão na mão e fazem
esses artistas, percebi que podia fazer tu canta tudo de maneira a que as crianças trocadilhos. Sente-se bem com isso? Quantas horas dorme por noite?
espetáculos sozinho mas, para isso, preci- não entendam!” “Pronto, sotôr, eu vou Acho que nem copiaram. Se copiassem Olha, sem comprimidos durmo quatro.
sava de cantar. Porque só tocar acordeão
não dava. Comecei a olhar para o lado e
via grandes acordeonistas portugueses
fazer isso.” E é o que faço. De maneira que
as crianças gostam das minhas cantigas,
mas não as entendem. Bonito é eles mais
eu até me sentia feliz. Há aí uma rapazia-
da... Olha, governam-se e fazem eles muito
bem. O mercado é tão grande que dá para
Quando tomo Xanax, ou Lorenin, ou uma
porcaria qualquer, durmo seis ou sete. para o pessimismo. Quem pensa, procurando abstrair-
que ficavam parados. O Carlos Areias, o
Isidro Baptista, a própria Eugénia Lima.
Comecei a fazer aquilo e o sucesso foi
tarde descobrirem: “Ah, ele quis dizer
aquilo!”. Olha, a frase do “entra a gosto”
[da música “Qual é o Melhor Dia Para
todos, e alguns deles até me telefonam: “Ó
sr. Quim, olhe, como é que eu devo fazer,
faço assim?”. Estou farto de os aturar, mas
Gosta de sair?
Gostava de ir a uma discoteca beber um
copo, mas o meu maior problema é que
-se do estado, feliz ou infeliz, das suas vísceras, não é
optimista nem pessimista.
tão grande que a partir daí nunca mais Casar”] foi-me dada por um reitor da até os ajudo. toda a gente quer tirar selfies comigo, não
deixei de gravar. Universidade de Vila Real! Ele disse-me me deixam estar descansado. Gostava de
qualquer coisa de entrar a gosto, para Então se, por exemplo, a Rosinha lhe ser um cidadão qualquer e de poder entrar,
Podia ter começado a cantar sobre o me dar o toque, mas eu não atingi logo ligar, não desliga o telefone. sentar-me e estar ali um bocadinho sem
amor, ou sobre outra coisa qualquer. também. Ele ficou calado e então é que eu Sou muito amigo da Rosinha e fico satis- chatices, mas não dá. Qual foi a maior contribuição bilidade do mundo e motivo de conflito agora: como a primeira edição surgiu sem o particularmente enaltecido, e o pessimis-
Porquê os trocadilhos sobre sexo? percebi: “Eh pá! Ó professor Mascarenhas, feito que ela leve no pacote [risos]. de Portugal para o pensamento moderno? entre os dois tipos de explicação possíveis, nome de Leibniz nela aparecer, aprendi no mo extremamente mal visto. Marcelo é um
Ó minha querida, isto é muito simples. isso vai dar uma canção”, disse-lhe logo. Aqui em Vila Praia se calhar consegue Não é talvez bom para a auto-estima, como a religiosa e a científica. Kant sugeria uma outro dia, houve quem julgasse que “teo- caso exemplar. Vê-se a si próprio como um
Cada um tem de saber para o que nas- Gosta do reconhecimento que tem? com mais facilidade. agora se diz, mas foi indisputavelmente o explicação científica, enquanto jansenistas diceia” fosse um pseudónimo do autor. “optimista racional”, um conceito difícil de
ce. Eu comecei a tocar aos oito anos no Sai tudo da sua cabeça? Gosto, mas sou contra o elogio. Não gosto Não tenho tempo. Um homem que faz terramoto de Lisboa de 1755. É verdade e jesuítas ofereciam versões religiosas em A doutrina de Leibniz não esperou pelo aprofundar, porque junta dois termos que
Conjunto Alegria, com o meu pai, tenho Eu escrevo, mas há várias letras que me que me elogiem, que digam que sou bom. duzentas e tal festas por ano, que tem que a responsabilidade dessa nossa no- que mutuamente se acusavam: os jansenis- terramoto de Lisboa para ser criticada. não comunicam entre si, e vê em António
essa escola toda de conjuntos musicais, de são enviadas por artistas de forró do nor- Eu não sou nada bom, sou igual ao teu discos e cantigas para fazer, mais a vida toriedade não nos pode ser atribuída, co- tas sustentavam que, sendo Portugal um Em particular, um jesuíta francês, o padre Costa um “optimista crónico e ligeiramente
grupos folclóricos, portanto eu sei do que deste do Brasil. Lá há muitos Quim Barrei- pai, o teu pai é igual a mim, somos os dois familiar, a albergaria, não dá. E também lectiva ou individualmente. Os dois únicos viveiro de jesuítas, Deus quisera esmagar Louis-Bertrand Castel, em 1737, criticou-a, irritante”. No fundo, a acreditar na sinceri-
o povo gosta. Quem são os emigrantes? ros. “A Garagem da Vizinha”, assim como a iguaizinhos. E homenagens, então, fujo nunca fui homem de beber copos. Tenho candidatos, Deus e a natureza, não consta a Inquisição (prova: o número de igrejas e, nessa crítica, inventou uma palavra com dade dos propósitos, seriam duas variações
São pessoas que saíram da aldeia. Eu sei “A Cabritinha” é de origem brasileira, não é disso! Quantas vezes me telefonam a dizer 69 anos e não sei o que é apanhar uma que sejam portugueses. Mas nada como o destruídas e o facto de uma rua inteira indiscutível futuro, para designar a dou- do Dr. Pangloss, uma fraca e outra forte.
o que é que eles querem, que é aquilo que minha. Nem letra nem música. O “Bacalhau que me querem homenagear, até aqui de bebedeira na vida. terramoto de Lisboa pôs tanto as cabeças com bordéis ter sido deixada intacta); os trina combatida: “optimismo”. A palavra Estas elocubrações não teriam em si mal
eu lhes dou. E, ao mesmo tempo, sei as à Portuguesa” e o “Chupa Teresa” também Espanha. Não quero nada disso. pensantes da Europa, de Voltaire a Kant, a jesuítas, pelo seu lado, ripostaram que o ficou, e já o título completo do Cândido de algum se não tendessem a lançar uma cor-
minhas possibilidades. Tu já imaginaste o são deles. Nunca?! falar de Portugal. Voltaire publicou em 1756 castigo divino resultaria do relaxamento Voltaire (1759) é Cândido, ou o optimismo. tina de fumo sobre os nossos problemas
Quim Barreiros a cantar o fado? Não dá, [Aparece a polícia e para junto ao carro Nunca ninguém me viu bêbado. Nunca. um Poema sobre o desastre de Lisboa, e, na das práticas inquisitoriais, algo remediável No mesmo movimento, criou-se uma cor- reais, que se estão nas tintas para opti-
eu não tenho voz para isso. Já viste o que Não me diga que o “Mestre de Culiná- de Quim Barreiros, mal estacionado. Ele Sei o que é uma má-disposição, uma ou mesma linha de resposta aos que acredi- com penitências e autos-de-fé. De qualquer rente adversa, o “contra-optimismo”, e há mismos e pessimismos e restantes subjec-
era o Quim Barreiros a cantar uma música ria” afinal é brasileiro. vai lá, mas nada feito. É preciso estacionar duas vezes na minha vida, porque bebi tavam que o nosso mundo é o melhor dos maneira, como Kant explicou depois, o quem defenda que o pessimismo de Scho- tividades viscerais. Não nos arriscamos,
do Marco Paulo? Também não dá! E eu Essa é minha, tenho muitas minhas. Ali- a viatura noutro local.] um uísque, depois um champanhe e tal, mundos, fez, no Cândido, o Dr. Pangloss terramoto pôs decisivamente em cheque penhauer, já no século xix, corresponde felizmente, a ser de novo objecto da mais
também não estou a ver o Marco Paulo a ás, se pegares nos discos podes ver de quem mas não fico bêbado, não fico é bem. Eu passar pela nossa terra para mais uma vez todas as tentativas de teodiceia, isto é, de ao estado último do desenvolvimento dessa profunda curiosidade intelectual da Euro-
cantar o “Quero Cheirar Teu Bacalhau”, são as letras e as músicas, está lá tudo. Ser o Quim Barreiros não dá direito a às vezes até gostava de estar numa festa e ser maltratado. Kant escreveu três ensaios compreender os males do mundo como um última corrente. pa pelas desagradáveis razões de 1775. Mas
nem o Carlos do Carmo a cantar “A Gara- uns privilégios junto das autoridades beber, beber, beber e ficar assim meio... a partir do terramoto (também em 1756) efeito necessário, se bem que marginal, da A verdade é que nem optimismo nem uma curiosidade menor e burocrática é
gem da Vizinha”. A primeira música que Recentemente foi notícia por ter sido locais? Mas chega ali um momento e entope, não e lembrou-se deles quando, muitos anos sabedoria divina. pessimismo são conceitos com grande in- sempre possível, por razões afins às de 2011
eu gravei destas foi “Recebi um Convite plagiado por um conjunto holandês, Não, não. Eu respeito. Eu ando muito na consigo beber mais. depois, em 1791, publicou o seu escrito O filósofo visado por Voltaire e Kant era teresse filosófico e que nunca atravessaram (ou de 1977, ou de 1983). E, a ouvir tanto
(À Casa da Jóquina)”, uma canção popu- precisamente com “A Garagem da Vi- estrada e não me lembro de apanhar uma Sobre o insucesso de todas as tentativas o maravilhoso Leibniz, que criara um sis- o espírito de Leibniz, embora tivessem falar de optimismo, com o desvio em re-
lar. Depois comecei a gravar já por minha zinha”. multa, nem aqui nem em Lisboa. Muitas Nunca teve um padre que se tenha filosóficas em matéria de teodiceia. E Kant tema filosófico de uma admirável riqueza ocupado, na sua juventude, o de Kant, algo lação à realidade que a coisa implica, uma
conta e o meu primeiro grande sucesso foi Isso não foi plágio. Sabes que há coisas vezes mandam-me parar em operações oposto à sua presença numa festa em e Voltaire foram apenas dois entre muitos. e complexidade que resultava na doutrina do qual este futuramente se arrependeu. É pessoa apanha-se a pensar que é racional
o “Franguito da Maria”, em 1975. que me interessa entrar na onda porque stop, reconhecem-me e mandam-me em- honra do santo local? Como notou uma filósofa, Susan Neiman, segundo a qual Deus, criando o Universo, até legítimo, em grande medida, supor que julgar vir algo assim e ter medo. Nem as
quanto mais se fala do bicho, melhor. En- bora. Posso soprar ao balão que nunca Já houve um padre ou dois que não qui- o acontecimento não poderia ter provoca- escolhera fazer passar à existência todos os estados de espírito ao qual se referem igrejas nem os bordéis sofreriam muito: os
Vem de uma família conservadora. tão, plágio abaixo, plágio acima, vêm cá as tenho nada. Aliás, eu ando com um balão seram que fosse cantar. Um ou outro mais do a reacção intelectual que provocou se os possíveis que, conjuntamente reunidos, têm a sua origem em condições fisiológi- nossos bolsos sim. E duma tal catástrofe
Quando o seu pai ouviu as letras não televisões e tal, mas isto é assim: eu lancei no carro igual aos deles, porque às vezes conservador. Às vezes até são as beatas, que tivesse ocorrido em outras épocas. Num constituiriam o melhor dos mundos. O mal cas. Alguém que se sente fisicamente bem, seremos mesmo responsáveis. Em especial
ficou chateado? agora o Eu Faço 69, não é? O disco sai para bebo uma cervejinha ou duas e gosto de dizem que eu sou malcriado. Nunca cantei mundo pré-moderno, o terramoto teria (metafísico, físico e moral) aparecia como tende naturalmente para o optimismo; alguns. Nem Deus nem a natureza estão
Não. Repara: se tu fores à nossa litera- a rua e amanhã tu podes pegar numa mú- saber. Mas nunca acuso nada. uma asneira na minha vida. De resto, a apenas sido prova de um justo castigo de consequência de um cálculo divino na es- alguém que se sente fisicamente mal, para já compreensivelmente disponíveis para
tura dos séculos XVI, XVII, XVIII, às can- sica dali, gravas, mas depois pagas direitos minha vida até é ser chamado por padres Deus e teria tido como efeito o reforço da colha dos possíveis que passariam a existir, o pessimismo. Quem pensa, procurando aparecerem na história como culpados.
tigas de escárnio e maldizer, estas letras e tens de pôr “música do brasileiro X” e Ainda não se cansou de percorrer tan- para participar nas festas religiosas. Ainda crença religiosa. No nosso mundo con- visando a maior beleza e harmonia do todo. abstrair-se do estado, feliz ou infeliz, das Nem sequer, como quer a nova teologia da
brejeiras estão lá todas! Há antologias de letra com autorização do brasileiro para tos quilómetros? na semana passada fui contratado pela temporâneo, a explicação recorreria ao O mal só poderia ser visto como um ingre- suas vísceras, não é optimista nem pessi- esquerda, disfarçados de Europa.
autores portugueses, do Guerra Junqueiro fazer a adaptação para holandês. Há que Quem corre por gosto não cansa. En- paróquia de Pero Pinheiro, pelo sr. padre encontro de placas tectónicas e as pessoas diente de que Deus, por razões de lógica, mista. Busca, se possível, alguma raciona-
até, que já tinham esta malandrice lá toda. pedir autorização à Associação Brasileira quanto tiver saúde... Gosto da estrada, Avelino. indignar-se-iam com a incúria do Estado não tinha maneira de se privar. A explicação lidade nos seus pensamentos. Paulo Tunhas é professor de Filosofia
Isto não é meu, isto é nosso, eu não vim de Autores, que por sua vez pede ao autor. gosto de andar de um lado para o outro. e dos seus funcionários, que poderiam ter dessa doutrina encontrava-se, na sua forma O que não impede, é claro, que os con- na Faculdade de Letras da Universidade
descobrir nada. Tu ainda hoje se fores Isto não tem nada a ver com contrafação, Não gosto é de estar parado. Parar é morrer Sara Otto Coelho é jornalista do tomado precauções que não tomaram para mais conhecida, num livro publicado em ceitos sejam usados a torto e a direito como do Porto. É autor de vários livros, entre os
a uma festa popular em Portugal ouves qualquer pessoa em todo o mundo pode e, como já viste, eu sou um gajo elétrico. Observador. Escreve a partir do Porto e, tal minorar as consequências do desastre. 1710, Ensaios de teodiceia. A palavra “teodi- se tivessem algum valor substantivo. Em quais “As Questões que Se Repetem –
os homens e as mulheres a cantarem ao gravar as minhas músicas, tem é de pôr lá Gosto que mexam comigo e gosto de mexer como Quim Barreiros, é proprietária de um Naquela altura precisa, não. O terramoto ceia”, por ele forjada, significa, a partir dos Portugal, por exemplo, são muito acari- Uma Breve História da Filosofia”,
desafio e no meio daquilo tudo lá vem uma a quem pertence. com as pessoas. acordeão. foi sentido como uma perda de inteligi- seus elementos gregos, “justiça de Deus”. Já nhados. O optimismo, nomeadamente, é em colaboração com Alexandra Abranches.
108 GUIA DE CONVERSAÇÃO PORTUGUEZ-INGLEZ 109

Para Mark
Pedro Carolino, autor fugidio Ele é da parte Este benfazejo e anónimo W. T. M. escre-
do século XIX, legou uma única obra à veu, sob o título “An Educational Book”,
posteridade – um Guia de Conversação da Saxónia uma pequena carta para explicar que
Portuguez-Inglez, dado à estampa em 1855. quando passara por Macau dera conta
Bastou-lhe essa obra solitária para obter He is of the de um livrito que era usado na educação
uma fama internacional que dura até hoje, das crianças para aprenderem inglês. Era
e para ter o que nenhum outro escritor saxony side o Guia de Conversação de Carolino, em

Twain, não há
português conseguiu: um prefácio assinado que o autor da carta, transcrevendo al-
por Mark Twain, onde é enaltecido o seu Diálogo 26 gumas passagens, confiava para fazer rir
talento como extraordinário humorista, os leitores do jornal. Tanta razão tinha
ainda que involuntário. Este lago parece-me que, logo nesse ano, saiu a primeira edi-
Guia de Conversação Portuguez-Inglez ção intencionalmente cómica do livro,
não era, sequer, uma obra completamente bem piscoso ao mesmo tempo que, em Portugal, es-
original, mas sim a adaptação de um outra gotavam as edições existentes, expedidas
guia – de português-francês – escrito por That pound it seems misteriosamente para Inglaterra e para os
José da Fonseca. Ora, da mesma manei- Estados Unidos.

inglês como
ra que se diz que Cendrars melhorou a many multiplied Pouco depois, sai a edição americana,
obra de Ferreira de Castro na tradução,
também Pedro Carolino transformou um
of fishes com o famoso prefácio de Mark Twain. É
este que lhe dá o nome por que ficou co-
banal guia de conversação num clássico nhecido – English as she is spoke –, apenas
da literatura humorística. Nada, na capa Qual surrealismo, qual arte Dada, qual uma pálida imitação dos erros verdadeiros,
ou contracapa, faz prever as gargalhadas a ironia pós-moderna! Antes de todos eles, e que lhe tece os mais encomiásticos elo-
que o interior obriga. É que Pedro Carolino com o simples recurso a um dicionário, gios. “Este celebrado livrinho não morrerá
tinha a particularidade de não saber uma Pedro Carolino explorou todo o potencial enquanto a língua inglesa durar”, diz, antes

o de Pedro
palavra de inglês. dos duplos sentidos das palavras, da tra- de o considerar “inalcançável, como as
O livro provocou pérolas como estas: dução literal de expressões idiomáticas, ou perfeições de Shakespeare” e “perfeito”,
● Em 2016, as Edições
das diferentes estruturas de cada língua. de “imortalidade certa”.
Exemplos disso: Desde aí, sucedem-se as edições e os
Serrote lançaram uma estudos – Paul Collins, o bibliófilo, reedi-
Diálogo 16 Diálogo 30 versão fac-similada deste tou o livro há pouco, e no ano passado as
Edições Serrote lançaram em Portugal uma
Para ver a cidade Francisco, que fazes aí? grande clássico do humor versão fac-similada – de uma obra capaz de
levar a língua inglesa às mais inimagináveis
For to see the town What you make hither, involuntário.

Carolino
paragens, como nestes casos:

Francis? partilhar a glória com outros, privados da Diálogo 36


António, acompanha mesma arte de pegar num dicionário e tra-

estes senhores duzir literalmente um guia de conversação. Doem-me os dentes


Rego este canteiro Na primeira edição o guia é, realmente,
e mostra-lhes atribuído não só a Pedro Carolino como I have the teeth-ache
e flores também a José da Fonseca. Quando o êxito
a cidade I water this flowers começou a captar a atenção de académi-
cos, estes quiseram aferir que parcela de Então arranque-o
Anthony, go to responsabilidade caberia a cada um dos

Em meados do século XIX,


parterre autores. Foi então descoberto o logro: José In such case, draw it
accompany they da Fonseca era apenas um solerte e compe-
Diálogo 40 tente tradutor, que fizera um banalmente
gentilsmen, do they correcto guia português-francês e outro Limpar-lhe-ei
Pedro Carolino escreveu o see the town Vamos nadar francês-inglês, com todos os termos no
lugar próprio. também a boca.
Go to row Carolino copia o livro de Fonseca, de tal Cuidará em conservá-
maneira que não traduz apenas o portu-
Desejamos ver
“Guia de Conversação Portuguez-Inglez”. Gosto mais de ver guês. Expressões como “deitar pérolas a -la bem limpa
o que ela contém porcos”, que Fonseca traduz vulgarmente
I shall you neat also
de curioso os nadadores do que por uma expressão idiomática semelhante
– “faire de la bouillie pour les chats” –, é
de nadar, o senhor your mouth, and you
Problema: o autor desconhecia
transcrita por Carolino como “to make
We won’t to paps for the cats” e não “give pearls to the
could care entertain
nada bem? pigs”, como seria de esperar.
see all that is it A abnegação e honestidade de Pedro
it clean
I like better to see Carolino, como explica o académico Ale-

em absoluto a língua inglesa.


remarquable here xander MacBride, levou-o a acrescentar à
the swimmers what capa do livro o nome do autor de quem Diálogo 33
copiou o guia. Munido do livro de José da
Diálogo 17 to row myself. Fonseca para criar a sua obra-prima, quis
Eis o carteiro:

Daí nasceu um clássico do humor,


Quem é aquele Sir, do you row well? oferecer-lhe também a glória que retirou vou dar-lhe
do livro dele. A História, no entanto, im-
sujeito que lhe placável, descobriu os lugares de cada um: a minha carta
falava há pouco? O escrúpulo do autor leva-o a tomar tão José da Fonseca, o mero conhecedor, Pedro
There is the postman
elogiado pelo próprio Mark Twain.
à letra o dicionário que é capaz de traduzir Carolino, o imortal cómico.
How is that gentilman “bom dia” por “good the day”. O resultado
I go to put it him again
é tão hilariante que alguns académicos A descoberta de um
who you did speak especializados desconfiaram das intenções
grande livro de humor

Não é piada, ou, como diria Carolino,


do autor. Mark Twain, porém, refuta essa Num homem destes, até a biografia
by and by? hipótese na primeira edição americana da Ora, como um livro destes, com uma sub- condiz com a obra. É que mesmo o que
obra de Carolino: “Há frases no livro que tileza cómica pouco imediata, não atrai se sabe da sua vida – data de nascimento
poderiam ter sido manufacturadas por atenção imediata, igual mérito merece e morte – são apenas plasmados do seu
É um alemão um Homem sensato e com inteligentes e quem, primeiro, descobriu o seu poten- autor-sombra, José da Fonseca. Este, sim,

“is not joke”.


deliberadas intenções de parecer inocen- cial jocoso. Infelizmente, este Colombo viveu de 1788 a 1866, pelo que pudemos
Is a german temente ignorante; mas há outras frases e não deixou mais do que uma iniciais – celebrar os 150 anos da sua morte. De
parágrafos que nenhuma pretensa igno- W.T.M. – no jornal Notes and Queries, de Pedro Carolino não podemos celebrar
rância poderia alcançar – nem mesmo a 16 de Janeiro de 1869. O Notes and Que- nada. Apenas lamentar que em Portugal
Parecia-me inglês mais genuína e compreensiva ignorância, ries tinha uma grande secção de corres- o seu génio continue a ser ignorado.

Carlos Maria Bobone


sem o suporte da inspiração”. pondência de leitores, que se entretinham
I did think him Pedro Carolino é um génio, sim, mas um a relatar situações insólitas, problemas de Carlos Maria Bobone é licenciado
génio involuntário; um descarado, sim, tradução em livros e bizarrias de todos em Filosofia, alfarrabista e colaborador do
englishman mas um descarado generoso, que procurou os géneros. Observador, onde escreve sobre livros.
108 GUIA DE CONVERSAÇÃO PORTUGUEZ-INGLEZ 109

Para Mark
Pedro Carolino, autor fugidio Ele é da parte Este benfazejo e anónimo W. T. M. escre-
do século XIX, legou uma única obra à veu, sob o título “An Educational Book”,
posteridade – um Guia de Conversação da Saxónia uma pequena carta para explicar que
Portuguez-Inglez, dado à estampa em 1855. quando passara por Macau dera conta
Bastou-lhe essa obra solitária para obter He is of the de um livrito que era usado na educação
uma fama internacional que dura até hoje, das crianças para aprenderem inglês. Era
e para ter o que nenhum outro escritor saxony side o Guia de Conversação de Carolino, em

Twain, não há
português conseguiu: um prefácio assinado que o autor da carta, transcrevendo al-
por Mark Twain, onde é enaltecido o seu Diálogo 26 gumas passagens, confiava para fazer rir
talento como extraordinário humorista, os leitores do jornal. Tanta razão tinha
ainda que involuntário. Este lago parece-me que, logo nesse ano, saiu a primeira edi-
Guia de Conversação Portuguez-Inglez ção intencionalmente cómica do livro,
não era, sequer, uma obra completamente bem piscoso ao mesmo tempo que, em Portugal, es-
original, mas sim a adaptação de um outra gotavam as edições existentes, expedidas
guia – de português-francês – escrito por That pound it seems misteriosamente para Inglaterra e para os
José da Fonseca. Ora, da mesma manei- Estados Unidos.

inglês como
ra que se diz que Cendrars melhorou a many multiplied Pouco depois, sai a edição americana,
obra de Ferreira de Castro na tradução,
também Pedro Carolino transformou um
of fishes com o famoso prefácio de Mark Twain. É
este que lhe dá o nome por que ficou co-
banal guia de conversação num clássico nhecido – English as she is spoke –, apenas
da literatura humorística. Nada, na capa Qual surrealismo, qual arte Dada, qual uma pálida imitação dos erros verdadeiros,
ou contracapa, faz prever as gargalhadas a ironia pós-moderna! Antes de todos eles, e que lhe tece os mais encomiásticos elo-
que o interior obriga. É que Pedro Carolino com o simples recurso a um dicionário, gios. “Este celebrado livrinho não morrerá
tinha a particularidade de não saber uma Pedro Carolino explorou todo o potencial enquanto a língua inglesa durar”, diz, antes

o de Pedro
palavra de inglês. dos duplos sentidos das palavras, da tra- de o considerar “inalcançável, como as
O livro provocou pérolas como estas: dução literal de expressões idiomáticas, ou perfeições de Shakespeare” e “perfeito”,
● Em 2016, as Edições
das diferentes estruturas de cada língua. de “imortalidade certa”.
Exemplos disso: Desde aí, sucedem-se as edições e os
Serrote lançaram uma estudos – Paul Collins, o bibliófilo, reedi-
Diálogo 16 Diálogo 30 versão fac-similada deste tou o livro há pouco, e no ano passado as
Edições Serrote lançaram em Portugal uma
Para ver a cidade Francisco, que fazes aí? grande clássico do humor versão fac-similada – de uma obra capaz de
levar a língua inglesa às mais inimagináveis
For to see the town What you make hither, involuntário.

Carolino
paragens, como nestes casos:

Francis? partilhar a glória com outros, privados da Diálogo 36


António, acompanha mesma arte de pegar num dicionário e tra-

estes senhores duzir literalmente um guia de conversação. Doem-me os dentes


Rego este canteiro Na primeira edição o guia é, realmente,
e mostra-lhes atribuído não só a Pedro Carolino como I have the teeth-ache
e flores também a José da Fonseca. Quando o êxito
a cidade I water this flowers começou a captar a atenção de académi-
cos, estes quiseram aferir que parcela de Então arranque-o
Anthony, go to responsabilidade caberia a cada um dos

Em meados do século XIX,


parterre autores. Foi então descoberto o logro: José In such case, draw it
accompany they da Fonseca era apenas um solerte e compe-
Diálogo 40 tente tradutor, que fizera um banalmente
gentilsmen, do they correcto guia português-francês e outro Limpar-lhe-ei
Pedro Carolino escreveu o see the town Vamos nadar francês-inglês, com todos os termos no
lugar próprio. também a boca.
Go to row Carolino copia o livro de Fonseca, de tal Cuidará em conservá-
maneira que não traduz apenas o portu-
Desejamos ver
“Guia de Conversação Portuguez-Inglez”. Gosto mais de ver guês. Expressões como “deitar pérolas a -la bem limpa
o que ela contém porcos”, que Fonseca traduz vulgarmente
I shall you neat also
de curioso os nadadores do que por uma expressão idiomática semelhante
– “faire de la bouillie pour les chats” –, é
de nadar, o senhor your mouth, and you
Problema: o autor desconhecia
transcrita por Carolino como “to make
We won’t to paps for the cats” e não “give pearls to the
could care entertain
nada bem? pigs”, como seria de esperar.
see all that is it A abnegação e honestidade de Pedro
it clean
I like better to see Carolino, como explica o académico Ale-

em absoluto a língua inglesa.


remarquable here xander MacBride, levou-o a acrescentar à
the swimmers what capa do livro o nome do autor de quem Diálogo 33
copiou o guia. Munido do livro de José da
Diálogo 17 to row myself. Fonseca para criar a sua obra-prima, quis
Eis o carteiro:

Daí nasceu um clássico do humor,


Quem é aquele Sir, do you row well? oferecer-lhe também a glória que retirou vou dar-lhe
do livro dele. A História, no entanto, im-
sujeito que lhe placável, descobriu os lugares de cada um: a minha carta
falava há pouco? O escrúpulo do autor leva-o a tomar tão José da Fonseca, o mero conhecedor, Pedro
There is the postman
elogiado pelo próprio Mark Twain.
à letra o dicionário que é capaz de traduzir Carolino, o imortal cómico.
How is that gentilman “bom dia” por “good the day”. O resultado
I go to put it him again
é tão hilariante que alguns académicos A descoberta de um
who you did speak especializados desconfiaram das intenções
grande livro de humor

Não é piada, ou, como diria Carolino,


do autor. Mark Twain, porém, refuta essa Num homem destes, até a biografia
by and by? hipótese na primeira edição americana da Ora, como um livro destes, com uma sub- condiz com a obra. É que mesmo o que
obra de Carolino: “Há frases no livro que tileza cómica pouco imediata, não atrai se sabe da sua vida – data de nascimento
poderiam ter sido manufacturadas por atenção imediata, igual mérito merece e morte – são apenas plasmados do seu
É um alemão um Homem sensato e com inteligentes e quem, primeiro, descobriu o seu poten- autor-sombra, José da Fonseca. Este, sim,

“is not joke”.


deliberadas intenções de parecer inocen- cial jocoso. Infelizmente, este Colombo viveu de 1788 a 1866, pelo que pudemos
Is a german temente ignorante; mas há outras frases e não deixou mais do que uma iniciais – celebrar os 150 anos da sua morte. De
parágrafos que nenhuma pretensa igno- W.T.M. – no jornal Notes and Queries, de Pedro Carolino não podemos celebrar
rância poderia alcançar – nem mesmo a 16 de Janeiro de 1869. O Notes and Que- nada. Apenas lamentar que em Portugal
Parecia-me inglês mais genuína e compreensiva ignorância, ries tinha uma grande secção de corres- o seu génio continue a ser ignorado.

Carlos Maria Bobone


sem o suporte da inspiração”. pondência de leitores, que se entretinham
I did think him Pedro Carolino é um génio, sim, mas um a relatar situações insólitas, problemas de Carlos Maria Bobone é licenciado
génio involuntário; um descarado, sim, tradução em livros e bizarrias de todos em Filosofia, alfarrabista e colaborador do
englishman mas um descarado generoso, que procurou os géneros. Observador, onde escreve sobre livros.
Uuups! Deixei cair a tarte de limão MELHOR RESTAURANTE DO MUNDO 111

03
PAOLO TERZI

A refeição
Entradas. O primeiro prato não é um
prato, são miniaturas de coisas grandes
e brutas transformadas em pequenos
aparatos de chiqueza. É uma espécie de
boas-vindas, um “preparem-se para algo
completamente diferente”. Fish and chips,
é esta a expressão que o nosso amigo em-
pregado usa para apresentar o que está à
nossa frente. Mas, ao mesmo tempo que
diz isto, ri-se, e revela que há por ali no
meio uma colher de gelado de alcaparra
– nunca tinha visto nenhum, mas fui de
cético a “quem me dera ter uma caixa
disto em casa” em menos de nada. Na
companhia deste regalo foram servidos
uns macarons com coelho e bacalhau e
uma bolacha de parmesão que, no cam-
peonato das bolachas, é do melhor que
já conheci.

Tributo à Normandia. O que se vê não


é o que se come. É uma frase bonita mas,
muito mais do que isso, é uma enorme e
elegante verdade. Não só para este pri-
meiro prato a sério mas para muito do
que se passa na Osteria Francescana. O
chef Massimo Bottura é o que todos gos-
taríamos de ser: um adulto criançola, um
garoto com mais de 50 anos, que ganha a
vida a alimentar esse síndrome de Peter
Pan e a dar de comer aos outros com essa
graça. Brinca na cozinha como quem tra-
balha no escritório e depois junta as duas
Porquê ir à Osteria Francescana, um tratei de coisas e voltei para um refresh são redondas como as de um casamento; realidades e faz coisas destas: tártaro de
restaurante italiano que fica à distância de, confiante. E ali estavam os calendários, música, se havia, não me lembro. A minha borrego e granita de maçã. Não parece
pelo menos, um voo de três horas (mais 60 dias à minha frente, bastava escolher mulher, que sabe muito mais disto, que eu, grande coisa, mas isto vem à mesa numa
coisa menos coisa) e um comboio? Fácil: – mas só de entre as datas disponíveis. explicou-me que “a ideia é a atenção estar concha de ostra, com a água da dita. Duas
porque só se vive uma vez e este é o melhor Ora bem, jantares nem vê-los, almoços toda na comida”. Compreendo, mas o que conclusões óbvias. A primeira: quem não
restaurante do mundo, eleito em 2016 pelo alguns. O meu plano era ir com mais três eu andei para aqui chegar e o que trabalhei gosta de ostras não vai gostar deste pra-
júri patrocinado pela San Pellegrino, depois pessoas. Não perguntei nada a ninguém e para o que vou ter de pagar mereciam um to; a segunda: quem não gosta de ostras
de ter sido o protagonista da primeira tem- escolhi o dia com o melhor dos critérios, pouco mais de boniteza. devia. Aprendam, mas é.
porada da série documental Chef’s Table. o clássico “porque sim”. Convenhamos, A primeira coisa a aparecer na mesa é
“Então mas e isso não é caro?” Claro que quando temos reservas feitas para o me- o menu, daqueles só com duas páginas, Lentilhas são melhores do que caviar.
é: o menu de degustação custa 250 euros. lhor restaurante do mundo é fácil juntar uma em italiano e outra em inglês. As Ora vamos lá a ver, lentilhas não são me-
Sim, por pessoa. E não, não inclui bebidas. interessados. hipóteses são simples: pode escolher-se lhores do que caviar. E mesmo depois da
Mas essa não é a questão. A verdadeira Entre o dia da reserva e a própria da re- ao prato ou então dois menus de degus- Osteria continuam a não ser. Vêm servi-
questão é descobrir se vale a pena o investi- feição recebi vários emails. Um de agrade- tação, um com sete e outro com 11 pratos das numa latinha bonita, com ar de coisa
mento. Meus amigos, para responder a isso cimento e outros dois a confirmar e recon- diferentes (com algumas surpresas pelo rara, como se fossem uma iguaria que se
há que começar pelo princípio. firmar a presença na Osteria naquele dia, meio). Agora imaginem isto comigo: es- encontra apenas a partir dos 4 mil metros
àquela hora. Pelo meio de toda esta simpatia tão sentados no melhor restaurante do de altitude, no lado poente do Evereste.

01
no ciberespaço, é preciso enviar os dados de mundo, coisa que provavelmente não Mas depois são apenas lentilhas (apesar
um cartão de crédito. Porque quem marca e vai voltar a acontecer. A sério que não do resto que as envolve). E eu fico meio
não aparece leva o devido safanão na conta escolhiam a hipótese mais faustosa, re- desgostoso, porque ainda agora esta lou-
bancária, sem degustar nada. quintada e – obviamente – cara? Pensá- cura começou e já estamos com dúvidas.

A reserva mos cerca de poucos segundos sobre o Será apenas o chef a querer baixar-nos

02
assunto, estávamos há muito decididos, as expectativas de propósito? Diabos te
ainda que, quando a reserva foi feita, a levem, Bottura.
Marcar uma mesa é importante, sobretudo carta fosse outra e os preços também,
quando o restaurante fica uns quantos algumas dezenas de euros abaixo. “Riso levante”. Não é risotto mas é qua-

O restaurante
países ao lado. E é também importan- O problema surgiu com a bebida. Es- se. E só é quase porque não tem queijo,
PAOLO TERZI te para o próprio restaurante, porque a távamos certos de que vinho era a opção ainda que o veludo italiano esteja lá todo.
lista de espera para conseguir um lugar certa, mas a carta parece uma lista telefó- Estou meio confuso e isso é fantástico. Se

Fui ao melhor restaurante do é gigante e desperdiçar cadeiras é má


política. Daí que a Osteria Francescana
siga o seguinte método: de dois em dois
O almoço está marcado para as 12h30. Não
fui eu que escolhi a hora nem nenhum dos
outros 3 que comigo foram a Bolonha e
nica, com propostas para todos os gostos
e muito poucas carteiras (vinhos a nove
mil euros? Claro que sim). Optámos por
já recuperei totalmente da história das
lentilhas? Não. Mas, contas feitas, este é
o prato ácido mais confortável ao palato

mundo e não gostei das lentilhas meses, o site abre o sistema de reservas
para daí a três meses, disponibilizando
marcações para os 60 dias seguintes. Ou
seja, a 1 de dezembro próximo será pos-
depois apanharam um comboio para Mo-
dena – já agora, a distância entre as duas
cidades é de meia hora, talvez menos, e os
comboios funcionam tão bem como todos
uma garrafa, porque o wine pairing – ou
seja, um vinho diferente para cada prato
– acrescentaria mais 17o euros à fatura
de cada um. Entre o tinto e o branco, o
que alguma vez comi, mergulhado em
citrinos danados para nos fazer fechar
um dos olhos num agradável momento
de agonia – mais aquele ceviche de perca
Chama-se Osteria Francescana e fica em Modena, Itália. Em 2016 foi sível reservar lugar (ou vários lugares)
para março e abril. Parece perfeito, mas
os transportes daquela zona de Itália: uma
maravilha, uma verdadeira maravilha.
consenso estava difícil. Vai daí, o simpá-
tico sommellier da Osteria Francescana
pelo meio, rapaziada... Além disso, não
é normal apreciar tanto uma coisa tão
eleito o melhor restaurante do mundo. Tiago Pereira resolveu investir o é horrível e doloroso.
As reservas estão disponíveis a partir
Número 22 da Via Stella, estamos à porta,
tocamos à campainha.
chegou-se à frente e explicou-nos que o
melhor seria optar por um lambrusco
completamente amarela como esta, que é
servida com uma borrifadela de essência

subsídio de férias e marcar mesa. O chef Massimo Bottura não chegou das 09h00, mas se por acaso não conse-
guir aceder ao site durante uns bons 20
Há quase uma dezena de empregados
lado a lado, todos de fato e gravata. Um
da região (Emilia-Romagna). Todas as
razões eram boas: o vinho tinha a quali-
dos tais citrinos que cozinharam aquele
arroz. Que coisa bonita.
minutos é porque está tudo normal e as deles dirige-se a nós: “Tiago Pereira?”. Sim, dade necessária para o caso, ia bem com
a aparecer, mas o tempo (e o dinheiro) não foi dado por mal gasto. marcações estão a acontecer. Provavel-
mente não estão é a acontecer para si. Foi
sou eu, vamos lá. E uma vez lá dentro, é
preciso notar: o restaurante não tem nada
todos os pratos da casa e era acessível,
dentro do género: 30 euros a garrafa. Não
Solha do Mediterrâneo. Depois daquele
fantástico Tributo à Normandia, este é o

Tiago Pereira
exatamente isso que pensei: “Isto não está que mereça destaque nestas linhas. Não é se falou mais no assunto. “Está bom?” segundo grande momento da mesa. Na
a acontecer para mim.” Fui à minha vida, necessariamente bonito nem feio; as mesas Estava ótimo. essência, é solha, aquele peixe achatado
Uuups! Deixei cair a tarte de limão MELHOR RESTAURANTE DO MUNDO 111

03
PAOLO TERZI

A refeição
Entradas. O primeiro prato não é um
prato, são miniaturas de coisas grandes
e brutas transformadas em pequenos
aparatos de chiqueza. É uma espécie de
boas-vindas, um “preparem-se para algo
completamente diferente”. Fish and chips,
é esta a expressão que o nosso amigo em-
pregado usa para apresentar o que está à
nossa frente. Mas, ao mesmo tempo que
diz isto, ri-se, e revela que há por ali no
meio uma colher de gelado de alcaparra
– nunca tinha visto nenhum, mas fui de
cético a “quem me dera ter uma caixa
disto em casa” em menos de nada. Na
companhia deste regalo foram servidos
uns macarons com coelho e bacalhau e
uma bolacha de parmesão que, no cam-
peonato das bolachas, é do melhor que
já conheci.

Tributo à Normandia. O que se vê não


é o que se come. É uma frase bonita mas,
muito mais do que isso, é uma enorme e
elegante verdade. Não só para este pri-
meiro prato a sério mas para muito do
que se passa na Osteria Francescana. O
chef Massimo Bottura é o que todos gos-
taríamos de ser: um adulto criançola, um
garoto com mais de 50 anos, que ganha a
vida a alimentar esse síndrome de Peter
Pan e a dar de comer aos outros com essa
graça. Brinca na cozinha como quem tra-
balha no escritório e depois junta as duas
Porquê ir à Osteria Francescana, um tratei de coisas e voltei para um refresh são redondas como as de um casamento; realidades e faz coisas destas: tártaro de
restaurante italiano que fica à distância de, confiante. E ali estavam os calendários, música, se havia, não me lembro. A minha borrego e granita de maçã. Não parece
pelo menos, um voo de três horas (mais 60 dias à minha frente, bastava escolher mulher, que sabe muito mais disto, que eu, grande coisa, mas isto vem à mesa numa
coisa menos coisa) e um comboio? Fácil: – mas só de entre as datas disponíveis. explicou-me que “a ideia é a atenção estar concha de ostra, com a água da dita. Duas
porque só se vive uma vez e este é o melhor Ora bem, jantares nem vê-los, almoços toda na comida”. Compreendo, mas o que conclusões óbvias. A primeira: quem não
restaurante do mundo, eleito em 2016 pelo alguns. O meu plano era ir com mais três eu andei para aqui chegar e o que trabalhei gosta de ostras não vai gostar deste pra-
júri patrocinado pela San Pellegrino, depois pessoas. Não perguntei nada a ninguém e para o que vou ter de pagar mereciam um to; a segunda: quem não gosta de ostras
de ter sido o protagonista da primeira tem- escolhi o dia com o melhor dos critérios, pouco mais de boniteza. devia. Aprendam, mas é.
porada da série documental Chef’s Table. o clássico “porque sim”. Convenhamos, A primeira coisa a aparecer na mesa é
“Então mas e isso não é caro?” Claro que quando temos reservas feitas para o me- o menu, daqueles só com duas páginas, Lentilhas são melhores do que caviar.
é: o menu de degustação custa 250 euros. lhor restaurante do mundo é fácil juntar uma em italiano e outra em inglês. As Ora vamos lá a ver, lentilhas não são me-
Sim, por pessoa. E não, não inclui bebidas. interessados. hipóteses são simples: pode escolher-se lhores do que caviar. E mesmo depois da
Mas essa não é a questão. A verdadeira Entre o dia da reserva e a própria da re- ao prato ou então dois menus de degus- Osteria continuam a não ser. Vêm servi-
questão é descobrir se vale a pena o investi- feição recebi vários emails. Um de agrade- tação, um com sete e outro com 11 pratos das numa latinha bonita, com ar de coisa
mento. Meus amigos, para responder a isso cimento e outros dois a confirmar e recon- diferentes (com algumas surpresas pelo rara, como se fossem uma iguaria que se
há que começar pelo princípio. firmar a presença na Osteria naquele dia, meio). Agora imaginem isto comigo: es- encontra apenas a partir dos 4 mil metros
àquela hora. Pelo meio de toda esta simpatia tão sentados no melhor restaurante do de altitude, no lado poente do Evereste.

01
no ciberespaço, é preciso enviar os dados de mundo, coisa que provavelmente não Mas depois são apenas lentilhas (apesar
um cartão de crédito. Porque quem marca e vai voltar a acontecer. A sério que não do resto que as envolve). E eu fico meio
não aparece leva o devido safanão na conta escolhiam a hipótese mais faustosa, re- desgostoso, porque ainda agora esta lou-
bancária, sem degustar nada. quintada e – obviamente – cara? Pensá- cura começou e já estamos com dúvidas.

A reserva mos cerca de poucos segundos sobre o Será apenas o chef a querer baixar-nos

02
assunto, estávamos há muito decididos, as expectativas de propósito? Diabos te
ainda que, quando a reserva foi feita, a levem, Bottura.
Marcar uma mesa é importante, sobretudo carta fosse outra e os preços também,
quando o restaurante fica uns quantos algumas dezenas de euros abaixo. “Riso levante”. Não é risotto mas é qua-

O restaurante
países ao lado. E é também importan- O problema surgiu com a bebida. Es- se. E só é quase porque não tem queijo,
PAOLO TERZI te para o próprio restaurante, porque a távamos certos de que vinho era a opção ainda que o veludo italiano esteja lá todo.
lista de espera para conseguir um lugar certa, mas a carta parece uma lista telefó- Estou meio confuso e isso é fantástico. Se

Fui ao melhor restaurante do é gigante e desperdiçar cadeiras é má


política. Daí que a Osteria Francescana
siga o seguinte método: de dois em dois
O almoço está marcado para as 12h30. Não
fui eu que escolhi a hora nem nenhum dos
outros 3 que comigo foram a Bolonha e
nica, com propostas para todos os gostos
e muito poucas carteiras (vinhos a nove
mil euros? Claro que sim). Optámos por
já recuperei totalmente da história das
lentilhas? Não. Mas, contas feitas, este é
o prato ácido mais confortável ao palato

mundo e não gostei das lentilhas meses, o site abre o sistema de reservas
para daí a três meses, disponibilizando
marcações para os 60 dias seguintes. Ou
seja, a 1 de dezembro próximo será pos-
depois apanharam um comboio para Mo-
dena – já agora, a distância entre as duas
cidades é de meia hora, talvez menos, e os
comboios funcionam tão bem como todos
uma garrafa, porque o wine pairing – ou
seja, um vinho diferente para cada prato
– acrescentaria mais 17o euros à fatura
de cada um. Entre o tinto e o branco, o
que alguma vez comi, mergulhado em
citrinos danados para nos fazer fechar
um dos olhos num agradável momento
de agonia – mais aquele ceviche de perca
Chama-se Osteria Francescana e fica em Modena, Itália. Em 2016 foi sível reservar lugar (ou vários lugares)
para março e abril. Parece perfeito, mas
os transportes daquela zona de Itália: uma
maravilha, uma verdadeira maravilha.
consenso estava difícil. Vai daí, o simpá-
tico sommellier da Osteria Francescana
pelo meio, rapaziada... Além disso, não
é normal apreciar tanto uma coisa tão
eleito o melhor restaurante do mundo. Tiago Pereira resolveu investir o é horrível e doloroso.
As reservas estão disponíveis a partir
Número 22 da Via Stella, estamos à porta,
tocamos à campainha.
chegou-se à frente e explicou-nos que o
melhor seria optar por um lambrusco
completamente amarela como esta, que é
servida com uma borrifadela de essência

subsídio de férias e marcar mesa. O chef Massimo Bottura não chegou das 09h00, mas se por acaso não conse-
guir aceder ao site durante uns bons 20
Há quase uma dezena de empregados
lado a lado, todos de fato e gravata. Um
da região (Emilia-Romagna). Todas as
razões eram boas: o vinho tinha a quali-
dos tais citrinos que cozinharam aquele
arroz. Que coisa bonita.
minutos é porque está tudo normal e as deles dirige-se a nós: “Tiago Pereira?”. Sim, dade necessária para o caso, ia bem com
a aparecer, mas o tempo (e o dinheiro) não foi dado por mal gasto. marcações estão a acontecer. Provavel-
mente não estão é a acontecer para si. Foi
sou eu, vamos lá. E uma vez lá dentro, é
preciso notar: o restaurante não tem nada
todos os pratos da casa e era acessível,
dentro do género: 30 euros a garrafa. Não
Solha do Mediterrâneo. Depois daquele
fantástico Tributo à Normandia, este é o

Tiago Pereira
exatamente isso que pensei: “Isto não está que mereça destaque nestas linhas. Não é se falou mais no assunto. “Está bom?” segundo grande momento da mesa. Na
a acontecer para mim.” Fui à minha vida, necessariamente bonito nem feio; as mesas Estava ótimo. essência, é solha, aquele peixe achatado
112 MELHOR RESTAURANTE DO MUNDO

TRÊS ANOS DE JORNALISMO INDEPENDENTE

A crescer
desde maio
GETTY IMAGES / GIUSEPPE CACACE
de 2014 9 524 169 JAN-ABR 2017

04
que nem sempre é tido em boa conta. fazemos aquilo tudo, aqueles pedaços de é uma mistura disso tudo mas com o
Mas é solha feita de três maneiras dife- massa estaladiça, que depois juntamos ao melhor sabor a sobremesa que já se viu.
rentes: no forno, na grelha e enrolada em molho ragù tipicamente bolonhês. Sim- É uma fantástica festa de aniversário a 8 255 429
papel. Como é que se transforma tudo ples mas bom, muito bom. Refazer um acontecer-nos no estômago, um réveillon 2016
isto em algo inesquecível? Assim: junta-se
uma folha de água do mar desidratada e
clássico com as partes que interessam. E
alimentar ainda mais o meu desdém pela
que cabe num prato, como é possível
que estes italianos ainda não se tenham A despedida
braseada. Até porque se já fomos à lua, pobre lasanha. lembrado de vender isto à caixa, de ex-
podemos transformar o sabor de uma portar para todo o mundo, de conquistar Acabou. Não se faz. Passaram quase qua-
grelha de churrasco numa espécie de pa- No jantar de Trimalchione: faisão à o planeta, enfim. Além de tudo isto, é uma tro horas e ninguém deu por nada. Os
pel queimado feito de água salgada que
adoramos comer, certo? Claro que sim.
maneira antiga de Roma. Apesar da
mania de dar a volta aos clássicos, Mas-
simo Bottura também é capaz de não an-
tirada genial da criatividade deste chef
que dificilmente vai conseguir algum dia
sacar esta sobremesa da carta. Funciona
intervalos entre os pratos são precio-
sos, com o tempo ideal para saborear o
anterior e estar pronto para o seguinte.
7:24
Um ceviche de outono em Modena. Lá dar muito para chegar aonde quer, que como a assinatura final da refeição... só Sempre com aquele tipo de serviço que
vêm eles, os nossos amigos empregados de é surpreender. Faisão mas feito segundo até percebermos que ainda não acabou. nos faz sentir os gulosos mais importan- 6 461 663
mesa, sempre aos pares. Desta vez trazem as regras do método sous-vide e com foie Santa mãe. tes do mundo. 2015
umas taças que ameaçam com sopa (a gras pelo meio, endívia cozinhada com E o requinte vem acompanhado de sim-
sério, sopa?), mas afinal não. Castanhas, açúcar e vinagre e uma espécie de batata Segunda sobremesa. Claro que há outro patia. No final da festa fomos à cozinha,
cogumelos porcini e trufas. Tudo corta- frita que de tão fina era quase transparen- doce, um com chocolate, frutos vermelhos conhecemos o sous-chef Kondo Takahiko,
do milimetricamente, tudo em camadas, te. A melhor coisa que comi na Osteria? e peta zetas. Este tipo não se leva a sério o principal responsável pela sobremesa
tudo a fazer sentido. E com uma daque- Nada disso. Melhor do que quase tudo o e nós é que ganhamos com isso. Cacau da tarte que caiu ao chão. Está visivel-
las espumas que os chefs de bom nome que já tinha provado antes de ali chegar? daquele que interessa, amargo como é mente cansado, a preparar um “jantar 5:03
gostam de fazer, porque fica bonito e não Mais do que certo. suposto, mais amoras e outras coisas pe- de grupo para 40 pessoas, o número má-
4:49 4:51 4:54
só, nada acontece por acaso neste restau- quenas da mesma escola, saídas da região ximo que o restaurante recebe”. Gosta
rante. Nada, percebem? Croccantino de foie gras. Era uma vez – que dizem ser terreno fértil para aquele de trabalhar na Osteria e de fazer par
um gelado de amêndoa que na verdade é tipo de produto. Tudo junto aos saltos na criativo como Massimo Bottura: “Ele mo-
Cinco idades de parmiggiano. Se gosto feito de foie gras e que na boca explode língua, pá. Massimo, chega-te aqui ao pé tiva todos, quer que participemos, quer Visitas 4:03
de parmesão? Gosto, pois. Só não sabia numa festa rija de vinagre balsâmico. Mi- de nós, toma lá um abraço. as nossas ideias, por mais estranhas que
o que era parmesão até terem colocado nha gente, foi mesmo isto que aconteceu possam parecer.” Reúne a equipa e faz médias
esta maravilha à minha frente. Cinco e foi um espanto. Melhor: a minha mulher Café (e não só). Um parágrafo só para um sorriso para a fotografia. Fizemos mensais
queijos de anos diferentes e em forma- não gosta de foie gras. Dois destes, só o café? Sim, porque é bom. Imaginemos amigos, é o que parece, e temos ainda fonte: Google
tos distintos, uns mais cremosos, outros para mim. que esta refeição acabava com um café menos vontade de ir embora. Analytics
menos, todos intensos no sabor. Mas in- manhoso ou queimado? Não ia dar. Da Ganhei um enorme desvio no orçamento
tensos de tal forma que – juro – ainda Salada César a florescer. Uma alface é mesma maneira que não ia dar se me mas nunca mais as minhas refeições serão 2:23
tenho o sabor de dois deles mesmo aqui. uma alface, menos esta que parece uma apresentassem a bica sozinha, sem nada iguais, o que tem tanto de bom como de
E porquê fazer um prato só com parme- coisa vinda da terra dos elfos, recheada a acrescentar. O amigo Bottura sabe que mau. Vou continuar a ser pouco exigen- 2 566 738
são? Porque Massimo sabe o que é bom, com flores e ervas aromáticas e um molho isso não se faz e, vai daí, chega-se à fren- te, óbvio que vou, só que agora sei que MAI-DEZ 2014
Massimo pode. especial que vem ao mundo quando corta- te com uma pequena travessa com três o mundo tem muito mais para oferecer Tempo médio
mos a obra de arte ao meio. E neste caso, docinhos em miniatura que devem ser do que o prato do dia ou o panado do dia
Parte crocante da lasanha. Não sou custa muito usar faca, dá mais vontade comidos numa determinada ordem, logo anterior (adoro panados). O melhor mesmo de visita 1:07
fã de lasanha, que é só uma espécie de de perguntar aos senhores se podemos seguidos do café. Não me lembro exata- é encarar a dura realidade de frente: será dos jornais

JORNAL DE NOTÍCIAS
DIÁRIO DE NOTÍCIAS
empadão mas em pior. É um prato pregui- levar a alface para casa. mente dos primeiros dois; lembro-me sempre muito difícil voltar a ver felicidade

CORREIO DA MANHÃ
çoso, “vamos lá juntar massa e carne mas muito bem do terceiro porque parecia como aquela que encontrei no número 22 generalistas
agora às camadas, vai ser divertido”. Não Uuups! Deixei cair a tarte de limão. É uma uva mas era uma pequena bomba da Via Stella, em Modena. em minutos,
média de 3 meses

OBSERVADOR
é. A boa notícia é que isto de lasanha só fácil explicar o que aconteceu com esta de cereja, que se desfaz assim que fe-
tem o nome. O prato é servido ao mesmo sobremesa: aconteceu que é o melhor chamos a boca e envia de imediato uma Tiago Pereira, quando não está a comer FEV/MAR/ABR 2017

EXPRESSO
JORNAL I

PÚBLICO
tempo que ouvimos a mensagem “partam doce do mundo. Limpinho limpinho. Não mensagem ao cérebro que diz “miúdo, em restaurantes de luxo italianos, é editor fonte: Similarweb
a massa com as mãos”. E partimos. Des- é bem uma tarte, não é bem uma mousse, que bom é estar vivo”. da secção de Cultura do Observador.

SOL
112 MELHOR RESTAURANTE DO MUNDO

TRÊS ANOS DE JORNALISMO INDEPENDENTE

A crescer
desde maio
GETTY IMAGES / GIUSEPPE CACACE
de 2014 9 524 169 JAN-ABR 2017

04
que nem sempre é tido em boa conta. fazemos aquilo tudo, aqueles pedaços de é uma mistura disso tudo mas com o
Mas é solha feita de três maneiras dife- massa estaladiça, que depois juntamos ao melhor sabor a sobremesa que já se viu.
rentes: no forno, na grelha e enrolada em molho ragù tipicamente bolonhês. Sim- É uma fantástica festa de aniversário a 8 255 429
papel. Como é que se transforma tudo ples mas bom, muito bom. Refazer um acontecer-nos no estômago, um réveillon 2016
isto em algo inesquecível? Assim: junta-se
uma folha de água do mar desidratada e
clássico com as partes que interessam. E
alimentar ainda mais o meu desdém pela
que cabe num prato, como é possível
que estes italianos ainda não se tenham A despedida
braseada. Até porque se já fomos à lua, pobre lasanha. lembrado de vender isto à caixa, de ex-
podemos transformar o sabor de uma portar para todo o mundo, de conquistar Acabou. Não se faz. Passaram quase qua-
grelha de churrasco numa espécie de pa- No jantar de Trimalchione: faisão à o planeta, enfim. Além de tudo isto, é uma tro horas e ninguém deu por nada. Os
pel queimado feito de água salgada que
adoramos comer, certo? Claro que sim.
maneira antiga de Roma. Apesar da
mania de dar a volta aos clássicos, Mas-
simo Bottura também é capaz de não an-
tirada genial da criatividade deste chef
que dificilmente vai conseguir algum dia
sacar esta sobremesa da carta. Funciona
intervalos entre os pratos são precio-
sos, com o tempo ideal para saborear o
anterior e estar pronto para o seguinte.
7:24
Um ceviche de outono em Modena. Lá dar muito para chegar aonde quer, que como a assinatura final da refeição... só Sempre com aquele tipo de serviço que
vêm eles, os nossos amigos empregados de é surpreender. Faisão mas feito segundo até percebermos que ainda não acabou. nos faz sentir os gulosos mais importan- 6 461 663
mesa, sempre aos pares. Desta vez trazem as regras do método sous-vide e com foie Santa mãe. tes do mundo. 2015
umas taças que ameaçam com sopa (a gras pelo meio, endívia cozinhada com E o requinte vem acompanhado de sim-
sério, sopa?), mas afinal não. Castanhas, açúcar e vinagre e uma espécie de batata Segunda sobremesa. Claro que há outro patia. No final da festa fomos à cozinha,
cogumelos porcini e trufas. Tudo corta- frita que de tão fina era quase transparen- doce, um com chocolate, frutos vermelhos conhecemos o sous-chef Kondo Takahiko,
do milimetricamente, tudo em camadas, te. A melhor coisa que comi na Osteria? e peta zetas. Este tipo não se leva a sério o principal responsável pela sobremesa
tudo a fazer sentido. E com uma daque- Nada disso. Melhor do que quase tudo o e nós é que ganhamos com isso. Cacau da tarte que caiu ao chão. Está visivel-
las espumas que os chefs de bom nome que já tinha provado antes de ali chegar? daquele que interessa, amargo como é mente cansado, a preparar um “jantar 5:03
gostam de fazer, porque fica bonito e não Mais do que certo. suposto, mais amoras e outras coisas pe- de grupo para 40 pessoas, o número má-
4:49 4:51 4:54
só, nada acontece por acaso neste restau- quenas da mesma escola, saídas da região ximo que o restaurante recebe”. Gosta
rante. Nada, percebem? Croccantino de foie gras. Era uma vez – que dizem ser terreno fértil para aquele de trabalhar na Osteria e de fazer par
um gelado de amêndoa que na verdade é tipo de produto. Tudo junto aos saltos na criativo como Massimo Bottura: “Ele mo-
Cinco idades de parmiggiano. Se gosto feito de foie gras e que na boca explode língua, pá. Massimo, chega-te aqui ao pé tiva todos, quer que participemos, quer Visitas 4:03
de parmesão? Gosto, pois. Só não sabia numa festa rija de vinagre balsâmico. Mi- de nós, toma lá um abraço. as nossas ideias, por mais estranhas que
o que era parmesão até terem colocado nha gente, foi mesmo isto que aconteceu possam parecer.” Reúne a equipa e faz médias
esta maravilha à minha frente. Cinco e foi um espanto. Melhor: a minha mulher Café (e não só). Um parágrafo só para um sorriso para a fotografia. Fizemos mensais
queijos de anos diferentes e em forma- não gosta de foie gras. Dois destes, só o café? Sim, porque é bom. Imaginemos amigos, é o que parece, e temos ainda fonte: Google
tos distintos, uns mais cremosos, outros para mim. que esta refeição acabava com um café menos vontade de ir embora. Analytics
menos, todos intensos no sabor. Mas in- manhoso ou queimado? Não ia dar. Da Ganhei um enorme desvio no orçamento
tensos de tal forma que – juro – ainda Salada César a florescer. Uma alface é mesma maneira que não ia dar se me mas nunca mais as minhas refeições serão 2:23
tenho o sabor de dois deles mesmo aqui. uma alface, menos esta que parece uma apresentassem a bica sozinha, sem nada iguais, o que tem tanto de bom como de
E porquê fazer um prato só com parme- coisa vinda da terra dos elfos, recheada a acrescentar. O amigo Bottura sabe que mau. Vou continuar a ser pouco exigen- 2 566 738
são? Porque Massimo sabe o que é bom, com flores e ervas aromáticas e um molho isso não se faz e, vai daí, chega-se à fren- te, óbvio que vou, só que agora sei que MAI-DEZ 2014
Massimo pode. especial que vem ao mundo quando corta- te com uma pequena travessa com três o mundo tem muito mais para oferecer Tempo médio
mos a obra de arte ao meio. E neste caso, docinhos em miniatura que devem ser do que o prato do dia ou o panado do dia
Parte crocante da lasanha. Não sou custa muito usar faca, dá mais vontade comidos numa determinada ordem, logo anterior (adoro panados). O melhor mesmo de visita 1:07
fã de lasanha, que é só uma espécie de de perguntar aos senhores se podemos seguidos do café. Não me lembro exata- é encarar a dura realidade de frente: será dos jornais

JORNAL DE NOTÍCIAS
DIÁRIO DE NOTÍCIAS
empadão mas em pior. É um prato pregui- levar a alface para casa. mente dos primeiros dois; lembro-me sempre muito difícil voltar a ver felicidade

CORREIO DA MANHÃ
çoso, “vamos lá juntar massa e carne mas muito bem do terceiro porque parecia como aquela que encontrei no número 22 generalistas
agora às camadas, vai ser divertido”. Não Uuups! Deixei cair a tarte de limão. É uma uva mas era uma pequena bomba da Via Stella, em Modena. em minutos,
média de 3 meses

OBSERVADOR
é. A boa notícia é que isto de lasanha só fácil explicar o que aconteceu com esta de cereja, que se desfaz assim que fe-
tem o nome. O prato é servido ao mesmo sobremesa: aconteceu que é o melhor chamos a boca e envia de imediato uma Tiago Pereira, quando não está a comer FEV/MAR/ABR 2017

EXPRESSO
JORNAL I

PÚBLICO
tempo que ouvimos a mensagem “partam doce do mundo. Limpinho limpinho. Não mensagem ao cérebro que diz “miúdo, em restaurantes de luxo italianos, é editor fonte: Similarweb
a massa com as mãos”. E partimos. Des- é bem uma tarte, não é bem uma mousse, que bom é estar vivo”. da secção de Cultura do Observador.

SOL
114 10 NOVOS RESTAURANTES 115

10 novos No último ano abriu em todo o país


04 05
No verão do ano passado, e depois Quando se pretende elogiar o in-
de uma série de anos em cozinhas terior algarvio, por oposição ao
de gabarito, António Loureiro litoral, nada como começar pela
uma quantidade muito apreciável de bons
restaurantes restaurantes. Nós escolhemos dez que A Cozinha
voltou à cidade-berço – que o é
duplamente, no seu caso – para
abrir e chefiar a sua cozinha. E Mon-Chic
gastronomia. Porque se junto ao
mar é facílimo cair em armadi-
lhas para turistas, de Marmelete

onde tem de tem mesmo de conhecer e experimentar,  Guimarães


não lhe chamou outra coisa que
não isso: A Cozinha por António
Loureiro. Nela, o Chefe Cozinheiro
 Algarve
a Alcoutim essa hipótese diminui
drasticamente. Ora, o Mon-Chic
veio reforçar esses argumentos

meter o garfo
 40€  50€
do Ano de 2014 faz bem o que
se quiser fazer boa figura entre os seus amigos.  Jul 2016

Largo do Serralho, 4,
muitos tentam noutras paragens
com menos talento e sucesso: uma
 Jul 2016

Macdonald Monchique
no último verão. Louis Anjos, o
chefe executivo, regressou a uma
região que conhece como poucos
Tiago Pais Guimarães
253 534 022
abordagem moderna ao receituá-
rio nacional, com especial foco no
Resort & Spa. Lugar
do Montinho, Monchique
para assinar a carta deste que é o
principal restaurante do Macdo-
Terça a sábado das 12h30 que é típico do Minho e arredores. 282 240 130 nald Monchique Resort & Spa. E
às 15h30 e das 19h30 às 23h. As propostas vão mudando con- Terça-feira a sábado, fê-lo focando-se no melhor que o
Segunda das 19h30 às 23h. forme as estações e os produtos das 19h às 22h. Algarve tem, tanto de origem oce-
disponíveis. E alguns deles não ânica como serrana: do marisco
podiam ser mais locais: vêm da pe- ao javali, das papas de milho ao

01
quena horta plantada no terraço. peixe fresco.
Ainda antes de abrir o seu pri-
meiro restaurante em Lisboa – o
Talho, em 2013 –, Kiko Martins fez
uma viagem pelo mundo inteiro
durante 14 meses seguidos. Muito
O Asiático do que viu e provou na Ásia nessa
ocasião serviu-lhe de inspiração
 Onde fica ao que dá a ver e provar neste O
Lisboa Asiático. A ementa do restauran-
te é, como o próprio gosta de a
HUMBERTO SANTOS DR
 Preço médio
35€ definir, uma viagem do Nepal ao
 Quando abriu Japão pelos seus olhos. Ou seja,
Out 2016 se cada prato traz produtos e sa-
bores típicos daquelas paragens,
Rua da Rosa, 317 também traz twists criativos de
(Príncipe Real), Lisboa sua autoria, como no caso do
211 319 369 tártaro de novilho coreano com
Todos os dias das 12h30 espuma de ostras ou de uma so-
às 17h e das 19h30 às 00h. bremesa de caril que já ganhou
fama (merecida) na cidade. FRANCISCO RIVOTTI

02 03 JOÃO GIGANTE DR

06 07
Beco Cabaret Euskalduna
Gourmet Studio
Restaurante Origens
 Lisboa  Porto
 150€  100€
 Mar 2017  Dez 2016
Pedro Limão  Évora
Rua Nova da Trindade, 18 Rua de Santo Ildefonso, 404  25€
(Chiado), Lisboa (Santo Ildefonso), Porto  Porto  Jun 2016
210 939 234 935 335 301  30€
Quinta, domingo e segunda: Quarta a sábado,  Abr 2017 Rua dos Burgos, 10, Évora
restaurante das 20h30 às 22h45; das 19h às 23h. 964 220 790
Rua Morgado de Mateus, 49 Terça a sábado, das 12h30
bar das 23h à 01h.
(São Lázaro), Porto às 15h e das 19h30 às 22h30.
Sexta e sábado: restaurante
966 454 599
das 19h30 às 21h45 e das
Segunda-feira das 11h às 18h.
22h à 00h; bar das 00h às 02h.
Terça a sexta das 11h às 23h;
sábado das 18h às 23h.

No último ano, a palavra-fetiche JOÃO PÁDUA

dos chefes de cozinha deixou de Não será despropositado escrever A ocasião pode fazer o ladrão mas Em Évora, há destinos que se man-
ser “produto” e passou a ser “ex- que não há outro restaurante as- também o restaurante. E depressa, têm incontornáveis, casos do Fia-
periência”. Mas se a maioria tenta sim em Portugal. Não há no Porto, como o prova a nova casa, homó- lho, da Tasquinha do Oliveira ou da
provocar essa experiência pela re- não há em Lisboa, não há em lado nima, de Pedro Limão. A saída de Taberna Típica Quarta-Feira. Tal-
feição, José Avillez foi mais longe nenhum. Vasco, que trocando os um projeto no Algarve fê-lo voltar vez daqui a uns anos se possa juntar
e decidiu abrir um cabaré gastro- vês pelos bês, é Basco, e que no ao Porto, a sua cidade adotiva – é o Origens a esta lista. O pequeno
nómico dentro do seu Bairro – ou- País Basco – onde viveu e traba- natural de Viana do Castelo – e em restaurante do chefe Gonçalo
tra das novidades de 2016. O chefe lhou três anos – é Euskalduna, é apenas quatro meses montar um Queiroz, que fez parte da carreira
do Belcanto tem tradição familiar um chefe talentoso. Mas pôs esse restaurante de raiz. Montar, neste na cidade alentejana antes de se
na matéria: o trisavô, José Ereira, talento, primeiro, ao serviço do caso, não é figura de estilo, antes lançar a solo, é um bom exemplo de
foi proprietário do mítico clube frango, num projeto, o Baixópito, consequência da filosofia faça você como não é preciso complicar para
Maxim’s no Palácio Foz. Aqui, há que lhe permitiu ir desenvolvendo mesmo presente das mesas aos ser bem-sucedido. Basta deixar que
atrações musicais no palco e al- o conceito do Euskalduna nalguns quadros, alguns pintados por Cá- os bons produtos, muitos deles lo-
guns dos bestsellers de Avillez jantares privados. Quando final- tia Morais, a mulher do chefe, que cais, falem por si, respeitando-os.
sobre a mesa, com reinvenções à mente avançou para o seu estúdio também assegura as operações da E Gonçalo respeita-os, numa cozi-
mistura, caso da galinha dos ovos de alta cozinha fê-lo em grande: é sala. O trabalho criativo estende-se nha à vista dos clientes, recriando
de prata ou do carabineiro com um espaço desenhado a preceito a um menu onde já se serviram umas receitas e recuperando ou-
cinzas de alecrim, com apoio de onde 16 felizardos podem experi- coisas tão inusitadas como açorda tras, do polvo ao borrego, promo-
um bar competentíssimo, com mentar as suas criações em menus de cogumelos shitake ou gema vendo, pelo caminho, harmonia
cocktails de assinatura. BRUNO CALADO DR
de degustação cheios de rasgo. curada com presunto triturado. SARA OTTO COELHO
constante com os vinhos da região. DR
114 10 NOVOS RESTAURANTES 115

10 novos No último ano abriu em todo o país


04 05
No verão do ano passado, e depois Quando se pretende elogiar o in-
de uma série de anos em cozinhas terior algarvio, por oposição ao
de gabarito, António Loureiro litoral, nada como começar pela
uma quantidade muito apreciável de bons
restaurantes restaurantes. Nós escolhemos dez que A Cozinha
voltou à cidade-berço – que o é
duplamente, no seu caso – para
abrir e chefiar a sua cozinha. E Mon-Chic
gastronomia. Porque se junto ao
mar é facílimo cair em armadi-
lhas para turistas, de Marmelete

onde tem de tem mesmo de conhecer e experimentar,  Guimarães


não lhe chamou outra coisa que
não isso: A Cozinha por António
Loureiro. Nela, o Chefe Cozinheiro
 Algarve
a Alcoutim essa hipótese diminui
drasticamente. Ora, o Mon-Chic
veio reforçar esses argumentos

meter o garfo
 40€  50€
do Ano de 2014 faz bem o que
se quiser fazer boa figura entre os seus amigos.  Jul 2016

Largo do Serralho, 4,
muitos tentam noutras paragens
com menos talento e sucesso: uma
 Jul 2016

Macdonald Monchique
no último verão. Louis Anjos, o
chefe executivo, regressou a uma
região que conhece como poucos
Tiago Pais Guimarães
253 534 022
abordagem moderna ao receituá-
rio nacional, com especial foco no
Resort & Spa. Lugar
do Montinho, Monchique
para assinar a carta deste que é o
principal restaurante do Macdo-
Terça a sábado das 12h30 que é típico do Minho e arredores. 282 240 130 nald Monchique Resort & Spa. E
às 15h30 e das 19h30 às 23h. As propostas vão mudando con- Terça-feira a sábado, fê-lo focando-se no melhor que o
Segunda das 19h30 às 23h. forme as estações e os produtos das 19h às 22h. Algarve tem, tanto de origem oce-
disponíveis. E alguns deles não ânica como serrana: do marisco
podiam ser mais locais: vêm da pe- ao javali, das papas de milho ao

01
quena horta plantada no terraço. peixe fresco.
Ainda antes de abrir o seu pri-
meiro restaurante em Lisboa – o
Talho, em 2013 –, Kiko Martins fez
uma viagem pelo mundo inteiro
durante 14 meses seguidos. Muito
O Asiático do que viu e provou na Ásia nessa
ocasião serviu-lhe de inspiração
 Onde fica ao que dá a ver e provar neste O
Lisboa Asiático. A ementa do restauran-
te é, como o próprio gosta de a
HUMBERTO SANTOS DR
 Preço médio
35€ definir, uma viagem do Nepal ao
 Quando abriu Japão pelos seus olhos. Ou seja,
Out 2016 se cada prato traz produtos e sa-
bores típicos daquelas paragens,
Rua da Rosa, 317 também traz twists criativos de
(Príncipe Real), Lisboa sua autoria, como no caso do
211 319 369 tártaro de novilho coreano com
Todos os dias das 12h30 espuma de ostras ou de uma so-
às 17h e das 19h30 às 00h. bremesa de caril que já ganhou
fama (merecida) na cidade. FRANCISCO RIVOTTI

02 03 JOÃO GIGANTE DR

06 07
Beco Cabaret Euskalduna
Gourmet Studio
Restaurante Origens
 Lisboa  Porto
 150€  100€
 Mar 2017  Dez 2016
Pedro Limão  Évora
Rua Nova da Trindade, 18 Rua de Santo Ildefonso, 404  25€
(Chiado), Lisboa (Santo Ildefonso), Porto  Porto  Jun 2016
210 939 234 935 335 301  30€
Quinta, domingo e segunda: Quarta a sábado,  Abr 2017 Rua dos Burgos, 10, Évora
restaurante das 20h30 às 22h45; das 19h às 23h. 964 220 790
Rua Morgado de Mateus, 49 Terça a sábado, das 12h30
bar das 23h à 01h.
(São Lázaro), Porto às 15h e das 19h30 às 22h30.
Sexta e sábado: restaurante
966 454 599
das 19h30 às 21h45 e das
Segunda-feira das 11h às 18h.
22h à 00h; bar das 00h às 02h.
Terça a sexta das 11h às 23h;
sábado das 18h às 23h.

No último ano, a palavra-fetiche JOÃO PÁDUA

dos chefes de cozinha deixou de Não será despropositado escrever A ocasião pode fazer o ladrão mas Em Évora, há destinos que se man-
ser “produto” e passou a ser “ex- que não há outro restaurante as- também o restaurante. E depressa, têm incontornáveis, casos do Fia-
periência”. Mas se a maioria tenta sim em Portugal. Não há no Porto, como o prova a nova casa, homó- lho, da Tasquinha do Oliveira ou da
provocar essa experiência pela re- não há em Lisboa, não há em lado nima, de Pedro Limão. A saída de Taberna Típica Quarta-Feira. Tal-
feição, José Avillez foi mais longe nenhum. Vasco, que trocando os um projeto no Algarve fê-lo voltar vez daqui a uns anos se possa juntar
e decidiu abrir um cabaré gastro- vês pelos bês, é Basco, e que no ao Porto, a sua cidade adotiva – é o Origens a esta lista. O pequeno
nómico dentro do seu Bairro – ou- País Basco – onde viveu e traba- natural de Viana do Castelo – e em restaurante do chefe Gonçalo
tra das novidades de 2016. O chefe lhou três anos – é Euskalduna, é apenas quatro meses montar um Queiroz, que fez parte da carreira
do Belcanto tem tradição familiar um chefe talentoso. Mas pôs esse restaurante de raiz. Montar, neste na cidade alentejana antes de se
na matéria: o trisavô, José Ereira, talento, primeiro, ao serviço do caso, não é figura de estilo, antes lançar a solo, é um bom exemplo de
foi proprietário do mítico clube frango, num projeto, o Baixópito, consequência da filosofia faça você como não é preciso complicar para
Maxim’s no Palácio Foz. Aqui, há que lhe permitiu ir desenvolvendo mesmo presente das mesas aos ser bem-sucedido. Basta deixar que
atrações musicais no palco e al- o conceito do Euskalduna nalguns quadros, alguns pintados por Cá- os bons produtos, muitos deles lo-
guns dos bestsellers de Avillez jantares privados. Quando final- tia Morais, a mulher do chefe, que cais, falem por si, respeitando-os.
sobre a mesa, com reinvenções à mente avançou para o seu estúdio também assegura as operações da E Gonçalo respeita-os, numa cozi-
mistura, caso da galinha dos ovos de alta cozinha fê-lo em grande: é sala. O trabalho criativo estende-se nha à vista dos clientes, recriando
de prata ou do carabineiro com um espaço desenhado a preceito a um menu onde já se serviram umas receitas e recuperando ou-
cinzas de alecrim, com apoio de onde 16 felizardos podem experi- coisas tão inusitadas como açorda tras, do polvo ao borrego, promo-
um bar competentíssimo, com mentar as suas criações em menus de cogumelos shitake ou gema vendo, pelo caminho, harmonia
cocktails de assinatura. BRUNO CALADO DR
de degustação cheios de rasgo. curada com presunto triturado. SARA OTTO COELHO
constante com os vinhos da região. DR
116 10 NOVOS RESTAURANTES 117

08 100% português
Henrique Sá Pessoa e o sócio Rui
Sanches decidiram, no mais re-
cente espaço do chefe, casar tapas
e petiscos pondo em causa a ve-
lha máxima que assegura que do À pergunta “que tal está a criatividade nacional?” não se pode responder com
Tapisco lado de lá da fronteira nem bons
ventos, nem bons casamentos. “É
cozinha ibérica. Metade da carta é
a nacional expressão “vai-se andando”. A rubrica “100% português” nasceu
 Lisboa
 25€
 Fev 2017
portuguesa, metade é espanhola”,
assume Sá Pessoa, que conta com
para provar isso mesmo e aqui estão seis marcas que mostram essa saúde toda
Rua Dom Pedro V, 81
uma subchefe experimentada na
matéria: Joana Duarte, que em
com malas, almofadas, calças de ganga, sapatos, fatos de banho e bancos.
Ana Dias Ferreira
(Príncipe Real), Lisboa Barcelona passou pelo Moo, dos
213 420 681 irmãos Roca, e pelo Tapas 24, de
Todos os dias, das 12h às 00h. Carles Abellan. Assim, o bacalhau
tanto é à Brás como em esqueixa-
da, uma salada catalã e o choco
tanto é frito como a sua tinta dá
cor à paella. Para matar a sede,
há vermutes. À espanhola.

09
Oficina
 Porto
 40€
 Set 2016

Rua Miguel Bombarda,


273-282 (Cedofeita), Porto
220 710 766 / 936 712 384
Segunda-feira das 19h às 23h,
terça a sábado das 12h30
às 15h e das 19h às 23h TIAGO PAIS

(sexta e sábado até às 00h).

10
O Leopold é um restaurante novo
sem ser, propriamente, um novo
restaurante. Nascido em 2014,
numa antiga padaria pelas mãos
de Tiago Feio e Ana Cachaço – ma-
Leopold rido e mulher, chefe e chefe de sala
– fechou em maio do ano passado.
 Lisboa E porquê? Porque a mudança para
 50€ um novo espaço, junto ao Palácio
 Abr 2017 Belmonte, estava marcada para o
outono. Problema: demorou quase
Pátio de Dom Fradique, 12 um ano a concretizar-se. Mas valeu
(Castelo), Lisboa a espera. A nova casa, minima-
218 861 697 lista, com a cozinha à vista, tem
Quarta a domingo, personalidade. Tal como o menu
das 19h às 23h. de degustação que sai da cozinha
de Tiago Feio, com propostas
criativas, entre elas uma incrível
emulsão de túberas e azeite com
crocante de especiarias.

Freakloset
Reinventar os clássicos, um sapato de cada vez
Para chegar aos primeiros sapatos foi pre- zados”, diz a empreendedora. “Sempre “O que eu sentia nos clássicos é que não era daqui a cinco anos”, diz Joana Lemos.
ciso andar muito. Mais de um ano com pro- me fascinou poder escolher coisas que suposto serem confortáveis”, diz Joana Lemos. “Por isso é que o design é tão clean, para
tótipos e modelos-teste calçados. A equipa se adequem ao que eu já tenho e com a “Um sapato clássico é um sapato imponente, se poder adaptar durante muito tempo a
usou os sapatos-experiência, a família foi personalização é possível criar um produ- duro, consistente, e isso fazia com que muitos muitas pessoas, e por isso é que insistimos
DR
chamada a servir de cobaia. Pés largos ou to inédito e verdadeiramente adaptado a me aleijassem.” Aí entrou a ideia de acolchoar na qualidade: se eu digo que o sapato vai
O espaço que o galerista Fernan- transmontano Marco Gomes, do com o peito muito alto, houve de tudo. diferentes estilos.” as línguas com látex e de fazer o calcanhar estar na moda daqui a cinco anos, ele tem
do Santos converteu, no início do antigo Foz Velha. A carta é renova- E depois de serem alargados, subidos e O processo é simples e feito diretamente num material diferente – neoprene –, “por ser de aguentar cinco anos.
anos.””
século, de oficina automóvel em da trimestralmente, sempre com acolchoados, os sapatos da Freakloset es- no site da marca. Depois de escolher o o mais confortável e o mais versátil”.
galeria de arte, tornou-se tam- muitas influências da região-natal tão preparados para tudo. Até para serem modelo – derby, monk, ankle boot, chelsea Da sola colorida aos atacadores, todos Freakloset
bém, em setembro passado, um do chefe: a última carta, lançada feitos à medida. boot ou loafer –, o cliente pode persona- os sapatos são feitos à mão na capital do  Pontos de venda

restaurante. E o também não está em fevereiro, trouxe, entre ou- Joana Lemos, de 26 anos, começou a lizar quatro áreas: a cor da pele, a sola, calçado, São João da Madeira. No caso dos Loja online (www.freakloset.com),
aqui por acaso. É que neste Oficina tras criações, a típica alheira com desenvolver a ideia na tese de mestrado. os atacadores e a parte do calcanhar.” Na que são personalizados, não é exagero dizer showroom Freakloset (Lisboa),
as criações artísticas partilham grelos, sim, mas também com ovo “Pegando no conceito dos básicos que toda pele há oito opções de cores, nas restantes que são fabricados um a um. Tempo de scar.id (Porto) e Minty
o espaço com as gastronómicas, de codorniz e creme de pimentos a gente devia ter no armário, neste caso mais de 10 para cada. Fazendo as contas, entrega desde a encomenda: três semanas.  Preços
que chegam pela mão do chefe assados. É ou não é arte? TIAGO PAIS aplicado aos sapatos, quis fazer uma mar- com cinco gestos é possível criar mais de Preço: a partir de 240€. A partir de 240€
ca com os modelos clássicos obrigatórios 50 mil sapatos diferentes. Todos clássicos “Queremos criar um produto intempo-  Lançamento

Tiago Pais é jornalista do Observador, onde desempenha a penosa tarefa de escrever sobre comida e restaurantes. É autor do livro “As 50 Melhores Tascas de Lisboa”. e dar-lhes a hipótese de serem customi- mas menos sérios. E todos amigos dos pés. ral, que tanto está hoje na moda como 2016
116 10 NOVOS RESTAURANTES 117

08 100% português
Henrique Sá Pessoa e o sócio Rui
Sanches decidiram, no mais re-
cente espaço do chefe, casar tapas
e petiscos pondo em causa a ve-
lha máxima que assegura que do À pergunta “que tal está a criatividade nacional?” não se pode responder com
Tapisco lado de lá da fronteira nem bons
ventos, nem bons casamentos. “É
cozinha ibérica. Metade da carta é
a nacional expressão “vai-se andando”. A rubrica “100% português” nasceu
 Lisboa
 25€
 Fev 2017
portuguesa, metade é espanhola”,
assume Sá Pessoa, que conta com
para provar isso mesmo e aqui estão seis marcas que mostram essa saúde toda
Rua Dom Pedro V, 81
uma subchefe experimentada na
matéria: Joana Duarte, que em
com malas, almofadas, calças de ganga, sapatos, fatos de banho e bancos.
Ana Dias Ferreira
(Príncipe Real), Lisboa Barcelona passou pelo Moo, dos
213 420 681 irmãos Roca, e pelo Tapas 24, de
Todos os dias, das 12h às 00h. Carles Abellan. Assim, o bacalhau
tanto é à Brás como em esqueixa-
da, uma salada catalã e o choco
tanto é frito como a sua tinta dá
cor à paella. Para matar a sede,
há vermutes. À espanhola.

09
Oficina
 Porto
 40€
 Set 2016

Rua Miguel Bombarda,


273-282 (Cedofeita), Porto
220 710 766 / 936 712 384
Segunda-feira das 19h às 23h,
terça a sábado das 12h30
às 15h e das 19h às 23h TIAGO PAIS

(sexta e sábado até às 00h).

10
O Leopold é um restaurante novo
sem ser, propriamente, um novo
restaurante. Nascido em 2014,
numa antiga padaria pelas mãos
de Tiago Feio e Ana Cachaço – ma-
Leopold rido e mulher, chefe e chefe de sala
– fechou em maio do ano passado.
 Lisboa E porquê? Porque a mudança para
 50€ um novo espaço, junto ao Palácio
 Abr 2017 Belmonte, estava marcada para o
outono. Problema: demorou quase
Pátio de Dom Fradique, 12 um ano a concretizar-se. Mas valeu
(Castelo), Lisboa a espera. A nova casa, minima-
218 861 697 lista, com a cozinha à vista, tem
Quarta a domingo, personalidade. Tal como o menu
das 19h às 23h. de degustação que sai da cozinha
de Tiago Feio, com propostas
criativas, entre elas uma incrível
emulsão de túberas e azeite com
crocante de especiarias.

Freakloset
Reinventar os clássicos, um sapato de cada vez
Para chegar aos primeiros sapatos foi pre- zados”, diz a empreendedora. “Sempre “O que eu sentia nos clássicos é que não era daqui a cinco anos”, diz Joana Lemos.
ciso andar muito. Mais de um ano com pro- me fascinou poder escolher coisas que suposto serem confortáveis”, diz Joana Lemos. “Por isso é que o design é tão clean, para
tótipos e modelos-teste calçados. A equipa se adequem ao que eu já tenho e com a “Um sapato clássico é um sapato imponente, se poder adaptar durante muito tempo a
usou os sapatos-experiência, a família foi personalização é possível criar um produ- duro, consistente, e isso fazia com que muitos muitas pessoas, e por isso é que insistimos
DR
chamada a servir de cobaia. Pés largos ou to inédito e verdadeiramente adaptado a me aleijassem.” Aí entrou a ideia de acolchoar na qualidade: se eu digo que o sapato vai
O espaço que o galerista Fernan- transmontano Marco Gomes, do com o peito muito alto, houve de tudo. diferentes estilos.” as línguas com látex e de fazer o calcanhar estar na moda daqui a cinco anos, ele tem
do Santos converteu, no início do antigo Foz Velha. A carta é renova- E depois de serem alargados, subidos e O processo é simples e feito diretamente num material diferente – neoprene –, “por ser de aguentar cinco anos.
anos.””
século, de oficina automóvel em da trimestralmente, sempre com acolchoados, os sapatos da Freakloset es- no site da marca. Depois de escolher o o mais confortável e o mais versátil”.
galeria de arte, tornou-se tam- muitas influências da região-natal tão preparados para tudo. Até para serem modelo – derby, monk, ankle boot, chelsea Da sola colorida aos atacadores, todos Freakloset
bém, em setembro passado, um do chefe: a última carta, lançada feitos à medida. boot ou loafer –, o cliente pode persona- os sapatos são feitos à mão na capital do  Pontos de venda

restaurante. E o também não está em fevereiro, trouxe, entre ou- Joana Lemos, de 26 anos, começou a lizar quatro áreas: a cor da pele, a sola, calçado, São João da Madeira. No caso dos Loja online (www.freakloset.com),
aqui por acaso. É que neste Oficina tras criações, a típica alheira com desenvolver a ideia na tese de mestrado. os atacadores e a parte do calcanhar.” Na que são personalizados, não é exagero dizer showroom Freakloset (Lisboa),
as criações artísticas partilham grelos, sim, mas também com ovo “Pegando no conceito dos básicos que toda pele há oito opções de cores, nas restantes que são fabricados um a um. Tempo de scar.id (Porto) e Minty
o espaço com as gastronómicas, de codorniz e creme de pimentos a gente devia ter no armário, neste caso mais de 10 para cada. Fazendo as contas, entrega desde a encomenda: três semanas.  Preços
que chegam pela mão do chefe assados. É ou não é arte? TIAGO PAIS aplicado aos sapatos, quis fazer uma mar- com cinco gestos é possível criar mais de Preço: a partir de 240€. A partir de 240€
ca com os modelos clássicos obrigatórios 50 mil sapatos diferentes. Todos clássicos “Queremos criar um produto intempo-  Lançamento

Tiago Pais é jornalista do Observador, onde desempenha a penosa tarefa de escrever sobre comida e restaurantes. É autor do livro “As 50 Melhores Tascas de Lisboa”. e dar-lhes a hipótese de serem customi- mas menos sérios. E todos amigos dos pés. ral, que tanto está hoje na moda como 2016
118 100% PORTUGUÊS

Houndsditch
A loucura aplicada
aos fatos de banho
Andrew Young estava no escritório, em dade é que Andrew aterrou no Porto sem
Londres, quando decidiu que queria cons- saber muito bem o que ia fazer. Passou
truir alguma coisa. À frente tinha um com- seis meses em reuniões com fábricas do
putador com relatórios financeiros, mas de Norte, umas boas, outras nem tanto, até
repente não conseguia pensar noutra coisa que conheceu o seu atual fabricante e se
que não fossem fatos de banho. Foi em 2014. mudou para Lisboa. A primeira coleção
Entretanto despediu-se da profissão de da Houndsditch nasceu no verão de 2016,
analista, saiu da capital inglesa e mudou-se inteiramente feita em Carnaxide. A segunda
para Portugal, só para fazer roupa de praia. já está à venda e continua a apostar em
Dos tempos londrinos ficou o nome da padrões divertidos que tanto têm flamingos
marca, batizada segundo um bairro da ci- como tigres e que pintam fatos de banho
dade sem vestígios de mar ou areia, Houn- de mulher e calções masculinos. 80% dos
dsditch. Uma bizarria que o empresário de desenhos são do próprio Andrew — o resto
32 anos adora. “Pareceu-me um nome forte é feito através de parcerias com designers
e ao mesmo tempo improvável porque não — e na loja online é possível personalizar
tem nada a ver com a maioria das marcas a altura da perna, mais ou menos subida.
desta área. Eu gosto desse lado meio louco.” A composição do tecido é que nunca
Loucura é, de facto, algo que não falta. muda: 20% elastano, 80% poliéster recicla-
Primeiro, porque tudo o que Andrew Young do. “Mais uma vez parece meio louco, mas a
começou por aprender sobre desenho e base molecular das fibras de poliéster, que
Kite modelagem, aprendeu no YouTube. Se- são usadas em todos os fatos de banho, são
Candeeiro gundo, porque quando pôs na cabeça que as mesmas que são usadas em garrafas de
suspenso queria mesmo fazer uma marca de calções, plástico”, explica o também surfista. “Sete
foi falar com a única pessoa que conhecia garrafas de litro e meio recicladas dão para
ligada à moda e deu por si num desfile em fazer um exemplar. Provavelmente seriam
Hal Paris, onde lhe prometeram que iria ficar garrafas que acabariam no mar e é uma
Cabide a saber tudo o que precisava. ideia romântica pensar que se pode usar
“Fui ao desfile mas ninguém sabia res- um fato de banho para ajudar a manter os
ponder às minhas perguntas. As únicas oceanos limpos.”
pessoas que acabaram por me ajudar eram
fornecedores de forros que trabalhavam Houndsditch
em Portugal e percebi que tinha de vir  Loja online (www.houndsditch.com)
para aqui se queria que este negócio fun- e Rosawild (Lisboa)
cionasse.”  Fatos de banho a partir de 58,99€,
A fama da indústria têxtil nacional aju- calções a 76,99€
dou na decisão de largar tudo, mas a ver-  2016
Oyster
Bancos

Util
Esta marca não é só bonita,
é útil e gosta de receber
Quando se recebem convidados em casa, a ao mesmo tempo internacionais, uma vez
dança é quase sempre a mesma. Primeiro que para pôr a marca de pé, Manuel Ama-
pedem-se os casacos, depois oferece-se algo ral Netto olhou ao mesmo tempo cá para
para beber. Manuel Amaral Netto é um dos dentro e lá para fora.
muitos portugueses que gosta de abrir as “Quis convidar alguns designers euro-
portas aos amigos. É também designer de peus que fui conhecendo para desenhar as
produto e fã assumido de objetos, por isso peças, e ao mesmo tempo desafiar parceiros
teve a ideia de casar tudo e criar uma marca específicos para as produzir em Portugal”,
em torno do conceito de hospitalidade. conta o fundador da marca. “Em Portugal
A UTIL nasceu no início do ano e reú- temos alguma capacidade industrial, por
ne mobiliário e acessórios de decoração, isso a primeira fase da UTIL foi mesmo reco-
“objetos que povoam a nossa casa e que lher a indústria presente no país – foi um ano
ganham outro sentido quando os usamos praticamente só a perceber o que existia.”
com os amigos”, diz Manuel Amaral Netto. O minibar e o bengaleiro foram feitos
Designer de cinco das peças iniciais – para numa serralharia em Rio de Mouro, por
já são oito – quis construir a primeira cole- exemplo, a fruteira em Alcobaça (ou não
ção como quem abre a porta de casa e vai fosse a cidade conhecida pela cerâmica),
entrando. Por isso há um bengaleiro que os copos em vidro soprado da Marinha Flamingos Lemons
tem também uma prateleira a meia altura Grande. “São tudo peças facilmente feitas
onde se podem largar as chaves e o cor- uma a uma mas também rapidamente in-
reio, um conjunto de um jarro e dois copos dustrializadas”, diz Manuel Amaral Netto.
para oferecer algo para beber ou ainda um “Isso era importante para o lançamento
banco de madeira que tão depressa está da marca.”
encostado à parede, porque tem um lado Apresentada em janeiro na Maison et
do tampo cortado, como pode ser puxado Objet de Paris, uma das mais importantes
para acomodar um convidado extra ou até feiras de design e decoração do mundo, a
servir de mesa de apoio. UTIL já tem uma loja online a funcionar – é
Da entrada da casa para a mesa, da pri- só entrar e sentir-se em casa.
meira coleção fazem também parte uma
fruteira, um candeeiro suspenso, um centro UTIL
de mesa e um minibar que anda sobre rodas  Loja online (www.thisisutil.com)
e por isso pode ser trazido para o centro  75€ a 340€
da conversa. Objetos sociais, nacionais e  2017 Flamingo flock Puffer fish
118 100% PORTUGUÊS

Houndsditch
A loucura aplicada
aos fatos de banho
Andrew Young estava no escritório, em dade é que Andrew aterrou no Porto sem
Londres, quando decidiu que queria cons- saber muito bem o que ia fazer. Passou
truir alguma coisa. À frente tinha um com- seis meses em reuniões com fábricas do
putador com relatórios financeiros, mas de Norte, umas boas, outras nem tanto, até
repente não conseguia pensar noutra coisa que conheceu o seu atual fabricante e se
que não fossem fatos de banho. Foi em 2014. mudou para Lisboa. A primeira coleção
Entretanto despediu-se da profissão de da Houndsditch nasceu no verão de 2016,
analista, saiu da capital inglesa e mudou-se inteiramente feita em Carnaxide. A segunda
para Portugal, só para fazer roupa de praia. já está à venda e continua a apostar em
Dos tempos londrinos ficou o nome da padrões divertidos que tanto têm flamingos
marca, batizada segundo um bairro da ci- como tigres e que pintam fatos de banho
dade sem vestígios de mar ou areia, Houn- de mulher e calções masculinos. 80% dos
dsditch. Uma bizarria que o empresário de desenhos são do próprio Andrew — o resto
32 anos adora. “Pareceu-me um nome forte é feito através de parcerias com designers
e ao mesmo tempo improvável porque não — e na loja online é possível personalizar
tem nada a ver com a maioria das marcas a altura da perna, mais ou menos subida.
desta área. Eu gosto desse lado meio louco.” A composição do tecido é que nunca
Loucura é, de facto, algo que não falta. muda: 20% elastano, 80% poliéster recicla-
Primeiro, porque tudo o que Andrew Young do. “Mais uma vez parece meio louco, mas a
começou por aprender sobre desenho e base molecular das fibras de poliéster, que
Kite modelagem, aprendeu no YouTube. Se- são usadas em todos os fatos de banho, são
Candeeiro gundo, porque quando pôs na cabeça que as mesmas que são usadas em garrafas de
suspenso queria mesmo fazer uma marca de calções, plástico”, explica o também surfista. “Sete
foi falar com a única pessoa que conhecia garrafas de litro e meio recicladas dão para
ligada à moda e deu por si num desfile em fazer um exemplar. Provavelmente seriam
Hal Paris, onde lhe prometeram que iria ficar garrafas que acabariam no mar e é uma
Cabide a saber tudo o que precisava. ideia romântica pensar que se pode usar
“Fui ao desfile mas ninguém sabia res- um fato de banho para ajudar a manter os
ponder às minhas perguntas. As únicas oceanos limpos.”
pessoas que acabaram por me ajudar eram
fornecedores de forros que trabalhavam Houndsditch
em Portugal e percebi que tinha de vir  Loja online (www.houndsditch.com)
para aqui se queria que este negócio fun- e Rosawild (Lisboa)
cionasse.”  Fatos de banho a partir de 58,99€,
A fama da indústria têxtil nacional aju- calções a 76,99€
dou na decisão de largar tudo, mas a ver-  2016
Oyster
Bancos

Util
Esta marca não é só bonita,
é útil e gosta de receber
Quando se recebem convidados em casa, a ao mesmo tempo internacionais, uma vez
dança é quase sempre a mesma. Primeiro que para pôr a marca de pé, Manuel Ama-
pedem-se os casacos, depois oferece-se algo ral Netto olhou ao mesmo tempo cá para
para beber. Manuel Amaral Netto é um dos dentro e lá para fora.
muitos portugueses que gosta de abrir as “Quis convidar alguns designers euro-
portas aos amigos. É também designer de peus que fui conhecendo para desenhar as
produto e fã assumido de objetos, por isso peças, e ao mesmo tempo desafiar parceiros
teve a ideia de casar tudo e criar uma marca específicos para as produzir em Portugal”,
em torno do conceito de hospitalidade. conta o fundador da marca. “Em Portugal
A UTIL nasceu no início do ano e reú- temos alguma capacidade industrial, por
ne mobiliário e acessórios de decoração, isso a primeira fase da UTIL foi mesmo reco-
“objetos que povoam a nossa casa e que lher a indústria presente no país – foi um ano
ganham outro sentido quando os usamos praticamente só a perceber o que existia.”
com os amigos”, diz Manuel Amaral Netto. O minibar e o bengaleiro foram feitos
Designer de cinco das peças iniciais – para numa serralharia em Rio de Mouro, por
já são oito – quis construir a primeira cole- exemplo, a fruteira em Alcobaça (ou não
ção como quem abre a porta de casa e vai fosse a cidade conhecida pela cerâmica),
entrando. Por isso há um bengaleiro que os copos em vidro soprado da Marinha Flamingos Lemons
tem também uma prateleira a meia altura Grande. “São tudo peças facilmente feitas
onde se podem largar as chaves e o cor- uma a uma mas também rapidamente in-
reio, um conjunto de um jarro e dois copos dustrializadas”, diz Manuel Amaral Netto.
para oferecer algo para beber ou ainda um “Isso era importante para o lançamento
banco de madeira que tão depressa está da marca.”
encostado à parede, porque tem um lado Apresentada em janeiro na Maison et
do tampo cortado, como pode ser puxado Objet de Paris, uma das mais importantes
para acomodar um convidado extra ou até feiras de design e decoração do mundo, a
servir de mesa de apoio. UTIL já tem uma loja online a funcionar – é
Da entrada da casa para a mesa, da pri- só entrar e sentir-se em casa.
meira coleção fazem também parte uma
fruteira, um candeeiro suspenso, um centro UTIL
de mesa e um minibar que anda sobre rodas  Loja online (www.thisisutil.com)
e por isso pode ser trazido para o centro  75€ a 340€
da conversa. Objetos sociais, nacionais e  2017 Flamingo flock Puffer fish
120 100% PORTUGUÊS 100% PORTUGUÊS 121

Oliver Girl My Friend Paco Tomaz


Estas almofadas Pode tratar esta
são boas amigas marca pelo apelido
Ao desenhar uma mala, Eliana Tomaz não engenharia, teve o seu próprio ateliê de
pensa apenas como será o padrão, qual o interiores, tirou um curso de Design de
tamanho da alça ou de que cor vai querer Espaço e esteve três anos numa empresa de
as costuras. Pensa antes de mais em que mobiliário, até o desemprego a atirar defi-
sítio vai guardar as chaves, como é que nitivamente para a criação de uma marca.
pode ter o cabo do telemóvel sempre à Estávamos no verão de 2015. Eliana
mão e até qual a melhor forma de prender transformou o closet num “ateliê/escri-
o guarda-chuva. Por isso prefere dizer que tório/tudo” e começou a desenhar malas.
desenha objetos, mais do que acessórios de A primeira coleção saiu às riscas pretas e
moda. E por isso a marca que lançou em brancas, a segunda em burel, a terceira em
nome próprio – neste caso, com o apelido azul-cobalto e pele de cabra, atualmente
Há quem faça listas do que procura numa
– pretende “distinguir-se por ser bonita esgotada. Quando chegou a hora de brin-
cara-metade, Maria Figueiredo preferiu
mas também altamente funcional”. dar, nasceu o Cheers, um saco de vinho
fazer uma lista do que procura numa marca.
“Gosto de produtos versáteis e que te- que permite transportar uma garrafa e
Sentou-se com uma folha à frente e fez a
nham organização”, diz a designer. “Uma dois copos através de um engenhoso – e
pergunta fatal: “Se a minha marca fosse
Lana mala é uma mala, eu não vou reinventar ao mesmo tempo simples – mecanismo de
uma pessoa, que características teria?” Na
Clutch e nada. Tento é que estejam lá os pormenores presilhas amovíveis em pele natural. Aquilo
folha foram aparecendo vários adjetivos.
mala de mão que a tornem uma peça essencial.” que parece uma etiqueta com a gravação
“Criativa”, “exuberante”, “amiga”, “diver-
As malas da Tomaz dão para prender as “handcrafted Portugal” é também um bol-
tida”, “um bocadinho excêntrica”. Tudo
chaves, os óculos e o cabo do telemóvel, so para guardar o saca-rolhas.
somado deu um nome, nascido em Portugal
Cheers Francis mas nem por isso se assemelham a cintos Como ostenta o saco do vinho, todas as pe-
mas cheio de salero: My Friend Paco.
Saco para Tote bag de ferramentas com toda a funcionalidade ças são feitas à mão por Eliana, com a ajuda
Como os bons amigos, o Paco não precisou
garrafas e nenhum sentido estético. O que as torna de uma costureira, e todas são numeradas.
de muito tempo para se sentir em casa.
especiais é fazerem tudo o que fazem apa- “Quando fiz a mala em burel lembrei-me
Chegou em julho de 2016, sob a forma
rentando o mínimo esforço – isto é, por do sobretudo que vamos buscar ao armário
de almofadas. É Maria Figueiredo quem
fora parecem malas e sacos normais, por ano após ano”, conclui Eliana. “Eu quero
as desenha, e para já há 27 diferentes –
dentro têm compartimentos semissecretos que a marca seja como esse sobretudo: que
umas bordadas à mão em Viseu, outras
ou presilhas que permitem prender aces- vá ficando e passe de geração em geração.”
estampadas em Lisboa. “O que eu gosto
sórios com uma pequena mola.
mesmo de fazer é de criar ilustrações e
“Existe um termo em arquitetura que é o Tomaz
desenhos gráficos”, conta a designer de
minimal cosy, de que eu gosto muito”, diz  Loja online (www.tomazdesign.com),
comunicação de 28 anos, que se decidiu
Eliana Tomaz. A referência não é atirada Icon Shop (Lisboa) e Arquivo (Leiria)
lançar em nome próprio depois de passar
ao acaso. Designer de formação, a lisboeta  38€ a 220€
pela Mambo Unlimited Ideas e pelo Roof
de 40 anos trabalhou em arquitetura e  2015
Design Studio, onde a paixão pela decora-
ção de interiores se acentuou.
“Achei que as almofadas eram um exce-
lente suporte para desenhar, até porque
têm uma utilidade. Não são simplesmente
Badass
Mize
Crazy
Gal Aly John
uma ilustração para pôr na parede, são
quase como amigos com quem partilhamos
Ganga de luxo feita
momentos e conversas.”
Embora no futuro, e se tudo correr bem, a
em Portugal
Hills
ideia seja ampliar a marca e fazer outros ob-
jetos de decoração, para já são as almofadas Quando Manuel Lamosa vestiu as suas intemporalidade. “O denim só por si é um
que chamam a atenção, e não é pouco. Umas primeiras calças de ganga, em meados material duradouro, mas existem peças
têm avestruzes estampadas, outras cobras, de 1974, ainda havia poucas à venda em que sobrevivem melhor à mudança e se
outras ainda uma grande mão com flores Portugal. “As que existiam eram básicas, tornam ícones”, diz Manuel Lamosa. “É
e pompons nos dedos que parece acenar a sempre com o mesmo corte, e eu queria isso que tentamos fazer. Apostamos em
quem entra numa sala, e que está também mais.” Nessa altura Portugal abria-se à cortes clássicos e lavagens pouco forçadas
desenhada no logótipo. Todas demoram o democracia, com o 25 de Abril, e o em- e escolhemos trabalhar com selvedge de-
seu tempo a fazer, e esse é outro adjetivo que presário abria-se ao fantástico mundo do nim, por se tratar de um material ainda
podia estar na lista de qualidades da marca denim. “Pedi a dois tios alfaiates que me mais resistente e especial.”
de Maria Figueiredo: “cuidada”. ajudassem a costurar um par de jeans e “Ganga em estado puro”, como os res-
“Gosto do que é handmade e de dar uma nesse dia apaixonei-me pela arte de fazer ponsáveis da marca gostam de lhe chamar,
certa personalidade e vida aos produtos”, calças de ganga.” o selvedge denim é desenvolvido em teares
diz a designer. No caso das almofadas, cada À boca de sino, dois tamanhos acima ou de lançadeira e é uma espécie de denim
uma batizada com um nome próprio e com com rasgões – as eternas calças azuis po- cru que só melhora com a idade. “Ao en-
Valentina
direito a uma pequena descrição no site da dem ter mudado muito desde os anos 70, velhecerem, os selvedge jeans acabam
marca, nada é feito de forma massiva mas mas o que é certo é que nunca deixaram por ganhar as formas e curvas do corpo
“com cuidado, trabalho e tempo”. de fazer parte da vida de Manuel Lamosa da mulher que os veste”, diz o fundador.
As almofadas bordadas à mão são natu- (nem da humanidade em geral). Ligado à Feitas em Guimarães, todas as peças
ralmente as mais caras – entre 56€ e 85€ indústria há mais de 30 anos, com ateliê da Aly John têm uma frase bordada no
–, e há ainda as que são estampadas em montado em Guimarães, em meados de forro que pode chegar a ser personalizada
Lisboa e confecionadas no norte, a 52€. 2016 o CEO resolveu acrescentar mais uma pela cliente. Ao lado dos jeans – cerca
Para já são vendidas sem enchimento e já costura a esta história e fundou a Aly John. de 15 variedades, lisos, rasgados ou até
chegaram a vários pontos da Europa, de O nome da marca vem de uma alcunha perfurados – há ainda blusões de ganga
Londres a Barcelona. Afinal, o Paco é “cria- de juventude (relacionada com o pugilista e peças de edição limitada.
tivo”, “exuberante”, “amigo”, “divertido” e Muhammad Ali) e do filho mais novo, João A juntar a tudo isto, em breve a marca
“um bocadinho excêntrico”, mas também Lamosa, responsável pela parte criativa. prepara-se para lançar as suas primeiras
internacional. E por detrás da Aly John esconde-se um peças masculinas. Porque a ganga também
único tecido — a ganga — trabalhado tem isso: é para elas e para eles, universal.
My Friend Paco em vários cortes e peças femininas, num
Loja online (myfriendpaco.com), segmento que os responsáveis classificam Aly John

Roof Design Studio (Lisboa), como “premium”.  Loja online (www.alyjohn.com)
Luisa Via Roma (Itália), Das mom jeans às skinny, todas as cal- e Un Croquis de Mode (Lisboa)
Monologue London (Londres) ças custam mais de 140€ (nalguns ca-  144€ a 625€
e Casa le Swing (Barcelona) sos chegam quase aos 400) e aspiram à  2016
 52€ a 82€
 2016 Ana Dias Ferreira é a muito invejada editora da secção de Lifestyle do Observador e autora da respetiva newsletter.
120 100% PORTUGUÊS 100% PORTUGUÊS 121

Oliver Girl My Friend Paco Tomaz


Estas almofadas Pode tratar esta
são boas amigas marca pelo apelido
Ao desenhar uma mala, Eliana Tomaz não engenharia, teve o seu próprio ateliê de
pensa apenas como será o padrão, qual o interiores, tirou um curso de Design de
tamanho da alça ou de que cor vai querer Espaço e esteve três anos numa empresa de
as costuras. Pensa antes de mais em que mobiliário, até o desemprego a atirar defi-
sítio vai guardar as chaves, como é que nitivamente para a criação de uma marca.
pode ter o cabo do telemóvel sempre à Estávamos no verão de 2015. Eliana
mão e até qual a melhor forma de prender transformou o closet num “ateliê/escri-
o guarda-chuva. Por isso prefere dizer que tório/tudo” e começou a desenhar malas.
desenha objetos, mais do que acessórios de A primeira coleção saiu às riscas pretas e
moda. E por isso a marca que lançou em brancas, a segunda em burel, a terceira em
nome próprio – neste caso, com o apelido azul-cobalto e pele de cabra, atualmente
Há quem faça listas do que procura numa
– pretende “distinguir-se por ser bonita esgotada. Quando chegou a hora de brin-
cara-metade, Maria Figueiredo preferiu
mas também altamente funcional”. dar, nasceu o Cheers, um saco de vinho
fazer uma lista do que procura numa marca.
“Gosto de produtos versáteis e que te- que permite transportar uma garrafa e
Sentou-se com uma folha à frente e fez a
nham organização”, diz a designer. “Uma dois copos através de um engenhoso – e
pergunta fatal: “Se a minha marca fosse
Lana mala é uma mala, eu não vou reinventar ao mesmo tempo simples – mecanismo de
uma pessoa, que características teria?” Na
Clutch e nada. Tento é que estejam lá os pormenores presilhas amovíveis em pele natural. Aquilo
folha foram aparecendo vários adjetivos.
mala de mão que a tornem uma peça essencial.” que parece uma etiqueta com a gravação
“Criativa”, “exuberante”, “amiga”, “diver-
As malas da Tomaz dão para prender as “handcrafted Portugal” é também um bol-
tida”, “um bocadinho excêntrica”. Tudo
chaves, os óculos e o cabo do telemóvel, so para guardar o saca-rolhas.
somado deu um nome, nascido em Portugal
Cheers Francis mas nem por isso se assemelham a cintos Como ostenta o saco do vinho, todas as pe-
mas cheio de salero: My Friend Paco.
Saco para Tote bag de ferramentas com toda a funcionalidade ças são feitas à mão por Eliana, com a ajuda
Como os bons amigos, o Paco não precisou
garrafas e nenhum sentido estético. O que as torna de uma costureira, e todas são numeradas.
de muito tempo para se sentir em casa.
especiais é fazerem tudo o que fazem apa- “Quando fiz a mala em burel lembrei-me
Chegou em julho de 2016, sob a forma
rentando o mínimo esforço – isto é, por do sobretudo que vamos buscar ao armário
de almofadas. É Maria Figueiredo quem
fora parecem malas e sacos normais, por ano após ano”, conclui Eliana. “Eu quero
as desenha, e para já há 27 diferentes –
dentro têm compartimentos semissecretos que a marca seja como esse sobretudo: que
umas bordadas à mão em Viseu, outras
ou presilhas que permitem prender aces- vá ficando e passe de geração em geração.”
estampadas em Lisboa. “O que eu gosto
sórios com uma pequena mola.
mesmo de fazer é de criar ilustrações e
“Existe um termo em arquitetura que é o Tomaz
desenhos gráficos”, conta a designer de
minimal cosy, de que eu gosto muito”, diz  Loja online (www.tomazdesign.com),
comunicação de 28 anos, que se decidiu
Eliana Tomaz. A referência não é atirada Icon Shop (Lisboa) e Arquivo (Leiria)
lançar em nome próprio depois de passar
ao acaso. Designer de formação, a lisboeta  38€ a 220€
pela Mambo Unlimited Ideas e pelo Roof
de 40 anos trabalhou em arquitetura e  2015
Design Studio, onde a paixão pela decora-
ção de interiores se acentuou.
“Achei que as almofadas eram um exce-
lente suporte para desenhar, até porque
têm uma utilidade. Não são simplesmente
Badass
Mize
Crazy
Gal Aly John
uma ilustração para pôr na parede, são
quase como amigos com quem partilhamos
Ganga de luxo feita
momentos e conversas.”
Embora no futuro, e se tudo correr bem, a
em Portugal
Hills
ideia seja ampliar a marca e fazer outros ob-
jetos de decoração, para já são as almofadas Quando Manuel Lamosa vestiu as suas intemporalidade. “O denim só por si é um
que chamam a atenção, e não é pouco. Umas primeiras calças de ganga, em meados material duradouro, mas existem peças
têm avestruzes estampadas, outras cobras, de 1974, ainda havia poucas à venda em que sobrevivem melhor à mudança e se
outras ainda uma grande mão com flores Portugal. “As que existiam eram básicas, tornam ícones”, diz Manuel Lamosa. “É
e pompons nos dedos que parece acenar a sempre com o mesmo corte, e eu queria isso que tentamos fazer. Apostamos em
quem entra numa sala, e que está também mais.” Nessa altura Portugal abria-se à cortes clássicos e lavagens pouco forçadas
desenhada no logótipo. Todas demoram o democracia, com o 25 de Abril, e o em- e escolhemos trabalhar com selvedge de-
seu tempo a fazer, e esse é outro adjetivo que presário abria-se ao fantástico mundo do nim, por se tratar de um material ainda
podia estar na lista de qualidades da marca denim. “Pedi a dois tios alfaiates que me mais resistente e especial.”
de Maria Figueiredo: “cuidada”. ajudassem a costurar um par de jeans e “Ganga em estado puro”, como os res-
“Gosto do que é handmade e de dar uma nesse dia apaixonei-me pela arte de fazer ponsáveis da marca gostam de lhe chamar,
certa personalidade e vida aos produtos”, calças de ganga.” o selvedge denim é desenvolvido em teares
diz a designer. No caso das almofadas, cada À boca de sino, dois tamanhos acima ou de lançadeira e é uma espécie de denim
uma batizada com um nome próprio e com com rasgões – as eternas calças azuis po- cru que só melhora com a idade. “Ao en-
Valentina
direito a uma pequena descrição no site da dem ter mudado muito desde os anos 70, velhecerem, os selvedge jeans acabam
marca, nada é feito de forma massiva mas mas o que é certo é que nunca deixaram por ganhar as formas e curvas do corpo
“com cuidado, trabalho e tempo”. de fazer parte da vida de Manuel Lamosa da mulher que os veste”, diz o fundador.
As almofadas bordadas à mão são natu- (nem da humanidade em geral). Ligado à Feitas em Guimarães, todas as peças
ralmente as mais caras – entre 56€ e 85€ indústria há mais de 30 anos, com ateliê da Aly John têm uma frase bordada no
–, e há ainda as que são estampadas em montado em Guimarães, em meados de forro que pode chegar a ser personalizada
Lisboa e confecionadas no norte, a 52€. 2016 o CEO resolveu acrescentar mais uma pela cliente. Ao lado dos jeans – cerca
Para já são vendidas sem enchimento e já costura a esta história e fundou a Aly John. de 15 variedades, lisos, rasgados ou até
chegaram a vários pontos da Europa, de O nome da marca vem de uma alcunha perfurados – há ainda blusões de ganga
Londres a Barcelona. Afinal, o Paco é “cria- de juventude (relacionada com o pugilista e peças de edição limitada.
tivo”, “exuberante”, “amigo”, “divertido” e Muhammad Ali) e do filho mais novo, João A juntar a tudo isto, em breve a marca
“um bocadinho excêntrico”, mas também Lamosa, responsável pela parte criativa. prepara-se para lançar as suas primeiras
internacional. E por detrás da Aly John esconde-se um peças masculinas. Porque a ganga também
único tecido — a ganga — trabalhado tem isso: é para elas e para eles, universal.
My Friend Paco em vários cortes e peças femininas, num
Loja online (myfriendpaco.com), segmento que os responsáveis classificam Aly John

Roof Design Studio (Lisboa), como “premium”.  Loja online (www.alyjohn.com)
Luisa Via Roma (Itália), Das mom jeans às skinny, todas as cal- e Un Croquis de Mode (Lisboa)
Monologue London (Londres) ças custam mais de 140€ (nalguns ca-  144€ a 625€
e Casa le Swing (Barcelona) sos chegam quase aos 400) e aspiram à  2016
 52€ a 82€
 2016 Ana Dias Ferreira é a muito invejada editora da secção de Lifestyle do Observador e autora da respetiva newsletter.
122 CRÓNICA

Espírito de Escada

Miguel Tamen
O encanto daquilo que poderíamos ter
dito, feito ou escrito é enorme. “Espírito
de escada” descreve a consciência das
coisas extraordinárias que poderíamos
ter dito se nos tivessem ocorrido a tempo.
É opinião quase geral que muitas vezes no que dizemos: também não ter dito se nos tivessem ocorrido a tem- a veracidade das nossas posições”. O que é
a melhor parte das nossas obras completas pensamos muitas vezes no que fazemos po; são as coisas de que nos lembramos característico desta fantasia é que as nossas
será tudo o que não dissemos, tudo o que ou no que escrevemos. É porque já vimos ao descer a escada para sair do sítio em posições só nos ocorram ao descer a esca-
não fizemos, e tudo o que não escrevemos. equipados de fábrica com modos simples que as teríamos dito com propriedade. da. Só podem ser asseguradas quando já
A opinião tem a sua razão de ser. No que de dizer coisas. Pelo contrário, fazer exige Ao descer a escada imaginamos a glória ninguém está por perto. Acabamos assim
dissemos há coisas demais: coisas que não normalmente deslocações e movimentos, que não tivemos; ou a que teríamos tido por ser as únicas testemunhas das nossas
quisemos dizer, ou que pelo menos não qui- e que se passe de um estado de repouso a se por acaso as nossas melhores ideias maiores vitórias, e do nosso grande espí-
semos dizer daquele modo; no que fizemos um estado de actividade, e depois se volte nos aparecessem sempre que deviam. São rito. As outras pessoas nunca perceberão
há erros, exageros, maldades e disparates; ao estado de repouso. E escrever exige muitas vezes observações espirituosas, ou o que perderam por não nos terem acom-
e do que escrevemos é melhor nem falar. tudo o que fazer exige, e ainda instrumen- analogias que se não fosse lembrarmo-nos panhado a descer a escada. “Que grande
Pelo contrário, o encanto daquilo que po- tos, e que se tenha previamente aprendido delas tarde demais seriam espontâneas; ser humano morreu connosco”, dizemos na
deríamos ter dito, feito ou escrito é enor- a escrever. Os requisitos logísticos para mas são também verdades que ao serem hora da morte; referimo-nos sobretudo a
me. Temos caracteristicamente esperanças dizer coisas são muito menos complexos; aplicadas na altura certa reduziriam os tudo o que nunca nos aconteceu.
naquilo que não aconteceu: que ainda não quando os outros não nos percebem po- outros ao silêncio e à admiração.
aconteceu, ou que mais simplesmente nun- demos sempre alegar o estilo oral ou um Há um certo desespero em lamentar o Miguel Tamen é professor de Literatura
ca aconteceu. defeito na fala. facto de não termos podido brilhar pela na Universidade de Lisboa. Tem vários livros
Do ponto de vista logístico dizer qual- A expressão “espírito de escada” des- nossa veracidade e pelo nosso espírito. publicados, o últimos dos quais – “Erro
quer coisa é mais simples que escrever ou creve no entanto a consciência que temos Como observou um pensador contempo- Extremo” – é uma reunião das suas crónicas
fazer; não é apenas porque não pensamos das coisas extraordinárias que poderíamos râneo, “a nossa preocupação é assegurar semanais no Observador.
122 CRÓNICA

Espírito de Escada

Miguel Tamen
O encanto daquilo que poderíamos ter
dito, feito ou escrito é enorme. “Espírito
de escada” descreve a consciência das
coisas extraordinárias que poderíamos
ter dito se nos tivessem ocorrido a tempo.
É opinião quase geral que muitas vezes no que dizemos: também não ter dito se nos tivessem ocorrido a tem- a veracidade das nossas posições”. O que é
a melhor parte das nossas obras completas pensamos muitas vezes no que fazemos po; são as coisas de que nos lembramos característico desta fantasia é que as nossas
será tudo o que não dissemos, tudo o que ou no que escrevemos. É porque já vimos ao descer a escada para sair do sítio em posições só nos ocorram ao descer a esca-
não fizemos, e tudo o que não escrevemos. equipados de fábrica com modos simples que as teríamos dito com propriedade. da. Só podem ser asseguradas quando já
A opinião tem a sua razão de ser. No que de dizer coisas. Pelo contrário, fazer exige Ao descer a escada imaginamos a glória ninguém está por perto. Acabamos assim
dissemos há coisas demais: coisas que não normalmente deslocações e movimentos, que não tivemos; ou a que teríamos tido por ser as únicas testemunhas das nossas
quisemos dizer, ou que pelo menos não qui- e que se passe de um estado de repouso a se por acaso as nossas melhores ideias maiores vitórias, e do nosso grande espí-
semos dizer daquele modo; no que fizemos um estado de actividade, e depois se volte nos aparecessem sempre que deviam. São rito. As outras pessoas nunca perceberão
há erros, exageros, maldades e disparates; ao estado de repouso. E escrever exige muitas vezes observações espirituosas, ou o que perderam por não nos terem acom-
e do que escrevemos é melhor nem falar. tudo o que fazer exige, e ainda instrumen- analogias que se não fosse lembrarmo-nos panhado a descer a escada. “Que grande
Pelo contrário, o encanto daquilo que po- tos, e que se tenha previamente aprendido delas tarde demais seriam espontâneas; ser humano morreu connosco”, dizemos na
deríamos ter dito, feito ou escrito é enor- a escrever. Os requisitos logísticos para mas são também verdades que ao serem hora da morte; referimo-nos sobretudo a
me. Temos caracteristicamente esperanças dizer coisas são muito menos complexos; aplicadas na altura certa reduziriam os tudo o que nunca nos aconteceu.
naquilo que não aconteceu: que ainda não quando os outros não nos percebem po- outros ao silêncio e à admiração.
aconteceu, ou que mais simplesmente nun- demos sempre alegar o estilo oral ou um Há um certo desespero em lamentar o Miguel Tamen é professor de Literatura
ca aconteceu. defeito na fala. facto de não termos podido brilhar pela na Universidade de Lisboa. Tem vários livros
Do ponto de vista logístico dizer qual- A expressão “espírito de escada” des- nossa veracidade e pelo nosso espírito. publicados, o últimos dos quais – “Erro
quer coisa é mais simples que escrever ou creve no entanto a consciência que temos Como observou um pensador contempo- Extremo” – é uma reunião das suas crónicas
fazer; não é apenas porque não pensamos das coisas extraordinárias que poderíamos râneo, “a nossa preocupação é assegurar semanais no Observador.

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