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O Noticioso

HISTORIA
4
ENTREVISTA

JOSÉ
MATTOSO
O MEDIEVALISTA
QUE GOSTAVA
DE SER EREMITA

A EPOPEIA
DA PESCA DO
BACALHAU
6 A EVOLUÇÃO DA FROTA PORTUGUESA
6 VIVER E MORRER A BORDO

BERLIM-1936: A MENTIRA OLÍMPICA DE HITLER CONTADA AOS PORTUGUESES Jornal de Notícias


N.º 03 / MAIO / 2016
TRIMESTRAL / 3,50 EUROS

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O Noticioso

02

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O Noticioso
A ABRIR

Pórtico ÍNDICE

Uma ajuda para


compreender o mundo
TEMA DE CAPA
A pesca
do bacalhau

TESTEMUNHO
Portugal visto
Pedro Olavo Simões
da Terra Nova
Coordenador editorial

Da longa conversa que a “JN História” manteve com José Mat- CAMINHOS DO PATRIMÓNIO
toso, podemos retirar muitos ensinamentos. Importa reter este: A Rota
das Catedrais
“A História não é uma coisa pragmática”, mas “um modo de com-
preensão do mundo”.
A humildade e a lucidez da asserção são relevantes, atenden- ENTREVISTA
do a formas comuns de encarar a História: a dos que querem à vi- José Mattoso
va força estar a vivê-la, dizendo que este ou aquele acontecimen-
to presente é “histórico”, e a dos que a invocam como um saber
dogmático de que são portadores, o que faz com que toda a gen- DESTAQUE 03
te “perceba” de História (como de política ou futebol) e defenda en- Jogos Olímpicos
carniçadamente verdades absolutas irreais, como a de que a Ida- de 1936
de Média foi um enorme interregno de obscurantismo no curso da
Humanidade. “Dez mil anos de trevas são trevas a mais”, brincava,
MUSEU DO TRIMESTRE
nas suas aulas, o catedrático Armando Luís de Carvalho Homem. Museu Nacional
Ora, tal como na vida corrente é a quantidade de informação Grão Vasco
que conseguimos assimilar, captada em fontes diversas, que nos
ajuda a tomar melhores decisões, também na História é desejável
termos presente que a nossa visão é construída com base na di-
versidade de modos de compreensão do mundo, propostos pelos
historiadores, a que temos acesso. Assim se enquadra, pois, o nos-
so papel. Ao publicarmos um extenso trabalho sobre a pesca do
bacalhau, com forte incidência no papel que a esta foi reservado
pelo Estado Novo, ou ao enquadrarmos os Jogos Olímpicos de 1936
como propaganda branqueadora de um regime sanguinário pres-
tes a revelar-se, não cumprimos um objetivo pragmático. O senti- Capa: José Mattoso com
do prático cabe a cada leitor e à forma como se posiciona, na vida, um compêndio escrito pelo seu pai,
António Gonçalves Mattoso.
iluminando os seus juízos com o que leu e compreendeu. Foto: Leonardo Negrão/
Global Imagens

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O Noticioso
A ABRIR

Acontece
Academia
Vários prémios de História
Corre até 31 de outubro o prazo de entrega de trabalhos
concorrentes a prémios atribuídos por intermédio da
Academia Portuguesa da História. Para os interessa-
dos em geral, há os prémios da Fundação Calouste Gul-
benkian (História Moderna e Contemporânea de Por-
tugal; História da Presença de Portugal no Mundo; His-
tória da Europa) e o Prémio Lusitânia-História (História
de Portugal). Os restantes são apenas para académicos:
o prémio da Fundação Eng. António de Almeida, em
honra de Joaquim Veríssimo Serrão (História, em ge-
ral); o Prémio Augusto Botelho da Costa Veiga (História
Classificação Medieval); o Prémio Prof. Doutor Pedro da Cunha Ser-
ra (Onomástica e Antroponímia); o Prémio de História
Falperra monumento nacional Prof. Doutor Francisco da Gama Caeiro (âmbito geral).

Está a chegar ao fim o período de discussão pública relati- Forais


vo à classificação como monumento nacional do Santuário Raízes do
de Santa Maria Madalena da Falperra, colocada na fronteira
entre os concelhos de Braga e Guimarães, findo o qual, não
Algarve
havendo observações a registar, o templo terá, por decre- “A identida-
04 to, a mais alta classificação patrimonial portuguesa. Exem- de do Algar-
plo notável do barroco final português, a igreja foi construí- ve: forais, alva-
da entre 1753 e 1755, por ordem de D. Rodrigo Moura Teles, rás e cartas ré-
arcebispo de Braga, e com projeto arquitetónico de André gias” é o título da
Soares da Silva. exposição itine-
rante que, até 9
de junho, dá a co-
Bienal Conservação nhecer a evolu-
Arqueologia Sé de Santarém ção da identida-
em Alter de administrati-
foi distinguida va no distrito de
Entre 1 e 3 de julho, Faro, do século
o primeiro colóquio Santarém, a mais jovem dioce- XIII até à implan-
internacional RoGe- se de Portugal (instaurada em 1975 tação da Repú-
MoPorTur (o acróni- pelo Papa Paulo VI) viu a sua ca- blica. A mostra
mo encontrado pa- tedral e museu diocesano, insta- assinala os 750
União Europeia ra designar mosai- lados no antigo colégio da Imacu- anos do foral de
cos geométricos lada Conceição, da Companhia Faro, outorga-
Ano do património romanos de Portu- de Jesus, receber o prémio Euro- do por D. Afonso
A Comissão Europeia propôs fazer de gal e da Turquia) é o pa Nostra, na categoria de conser- III em 1266, sen-
2018 o Ano Europeu do Património Cul- ponto alto da 1.ª Bie- vação. Europa Nostra é uma fede- do organizada
tural. A preparação e implementação do nal de Arqueologia e ração europeia de organizações pela Rede de Ar-
projeto estará a cargo de Tibor Navrac- História de Alter do não-governamentais e outros or- quivos do Algar-
sics, comissário europeu da Educação, Chão, apresentando ganismos ligados ao património ve, em parceria
Cultura, Juventude e Desporto, não ha- um vasto programa cultural. com a AMAL, Co-
vendo ainda indicações sobre o modo co- de visitas em confe- munidade Inter-
mo se desenrolará. rências. municipal do Al-
garve.

milhões de euros de investimento previstos por cento dos visitantes dos museus
NÚMEROS 13 pela direção regional de cultura do norte até 2018 37 esperam pelos dias de entrada gratuita

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O Noticioso

Concurso
Fotografar
património
Até dia 12 de junho, é
possível participar no
passatempo de foto-
grafia “Num Instante...
o Património”, promo-
vido pela Direção-Ge-
ral do Património Cultu-
ral (DGPC) e destinado a
jovens entre os 14 e os 21
anos. O concurso, desti-
Decisão unânime nado a despertar os mais
novos para a riqueza pa-
Panteão na Batalha e nos Jerónimos trimonial do país, não
implica requisitos técni-
Por unanimidade, a Assembleia da República atribuiu, a 6 de maio, o estatuto de Panteão Na- cos, e o regulamento po-
cional aos mosteiros de Santa Maria da Vitória (Batalha) e dos Jerónimos. Na Batalha foi cria- de ser consultado no si-
do, aliás, por D. João I, o primeiro panteão régio português (ciclo interrompido por D. Manuel te da DGPC. Um curso
I, com a construção dos Jerónimos), e foi também aí que o Governo da República, em 1921, de- de fotografia e um smar-
cidiu depositar os corpos de dois soldados caídos na Flandres, passando a sala do capítulo a tphone esperam os dois
funcionar como o túmolo do soldado desconhecido em Portugal. Já nos Jerónimos estão tú- primeiros classificados. 05
mulos de reis (D. Manuel, D. João III ou o sarcófago vazio de D. Sebastião), bem como as mais Os melhores trabalhos
marcantes sepulturas da lusitanidade (os túmulos de Camões e de Vasco da Gama, feitos no serão expostos, em se-
século XIX e também, provavelmente, vazios), além de vultos da literatura, como Alexandre tembro, nas Jornadas Eu-
Herculano ou Fernando Pessoa (cujos restos mortais foram para ali trasladados em 1985). ropeias do Património.

Senhor de Matosinhos
A ciência de mãos dadas com a lenda
“O Rosto Verdadeiro do Senhor de Matosinhos”, livro
que o Município edita no âmbito das festas da cidade, re- Portalegre
sulta da tese de mestrado de Alexandre Maniés, respon-
sável pela consolidação e restauro da imagem do Bom
Mostra de ex-votos
Jesus de Matosinhos, associada a uma lenda que atribui Até 26 de junho, o Museu
a autoria da escultura a Nicodemus, testemunha dos úl- Municipal de Portalegre aco-
timos momentos de Cristo na Terra. O trabalho de Ma- lhe uma mostra de ex-votos,
niés, apresentado à Universidade Católica, apoia-se em originários de igrejas e cape-
meios de diagnóstico como radiografias, TAC, espec- las da Diocese de Portalegre-
trometria de fluorescência de raios X ou análise histo- -Castelo Branco. As peças,
lógica. Entretanto, a Câmara decidiu apoiar o restauro, geralmente óleos sobre ma-
também a cargo de Maniés, das imagens que ladeiam o deira de autores desconheci-
Senhor de Matosinhos (Nicodemus, José de Arimateia, dos, extremamente simples,
Virgem Maria e S. João Evangelista), garantindo 50 mil são testemunhos inestimá-
euros, que servirão, ainda, para pintar a fachada e criar veis da religiosidade popular
acessos para pessoas com mobilidade reduzida. entre os séculos XVIII e XX.

visitantes em cada dez não têm instituições de todo o país integram


2 problemas em ir sozinhos aos museus 146 a Rede Portuguesa de Museus

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O Noticioso
A ABRIR

Referendo

06

“Brexit”:
No dia 23 de Junho, o Reino Unido decidirá,
em referendo, se permanece na União Eu-
ropeia. Dada a gravidade da escolha, cujas

quando os consequências ninguém de bom senso con-


segue prever, o debate tem sido invulgar-
mente duro e dramático. Os historiadores

historiadores não podiam ficar de fora: dividiram-se en-


tre o “sim” e o “não”.
Um artigo da revita francesa “L’Obs” dá

vão à luta conta disso. A favor da saída, os Historians


for Britain, liderados por Andrew Roberts,
especialista do período napoleónico e da II
Guerra Mundial e professor convidado do
King’s College. Do outro lado da barrica-
da, os Historians for History, tendo à fren-
te Edward Madigan, estudioso da I Gran-
de Guerra e professor na Universidade de
Londres. A ‘batalha’ decorre há um ano
em todos os cenários disponíveis: jornais,
BBC, Twitter. E como em todos os debates
realmente decisivos, a violência verbal de-
pressa substituiu a troca de argumentos in-
telectual. Porque o referendo – nisso con-
cordam as duas partes – obrigou os britâ-
nicos a pensarem a sua identidade, aquilo

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O Noticioso

07

Britânicos
decidem se ficam ou
não na União Europeia

que verdadeiramente foram e são. Só que lebre título do “Daily Mirror” dos anos 30:
cada grupo analisa diferentemente a His- “Fog in Channel! Continent cut off!”, ou se-
tória do país, uma prova mais, se precisa ja, Nevoeiro na Mancha! Continente isola-
fosse, de que os historiadores apenas pro- do!). Segundo estes, os colegas ‘secessio-
curam alcançar um horizonte de verdades nistas’ teriam uma visão enviesada, passa-
possíveis, não “A Verdade”. dista, simplista e realmente nacionalista
As hostilidades foram abertas pelos pró- do passado (e, acusação mais grave, esta-
-saída, com uma carta aberta intitula- vam assumidamente ligados ao lóbi econó-
da: “Britain, apart from or a part of Euro- mico favorável à saída). Ora, o passado das
pe?” (Grã-Bretanha, uma parte da Europa ilhas nunca foi nem tão exaltante nem tão
ou à parte da Europa?). Segundo eles, a his- especial: no século XVII, a Escócia, a Irlan-
tória do país seria mesmo especial, com a da e a Inglaterra foram dilaceradas por re-
sua commonlaw, a soberania parlamen- voluções sangrentas; a política, a economia
tar, as suas vetustas universidades e mo- e a cultura britânicas sempre estiveram es-
narquia, em suma “uma continuidade ini- treitamente ligadas às da restante Euro-
gualável na Europa continental”, isto desde pa. A prestigiada monarquia tem algumas
a Idade Média. Um país de “brandos costu- das suas raízes mais profundas na dinastia
mes” (sim, os ingleses), nunca mais invadi- Plantageneta, ou seja, na Casa de Anjou. E o
dos depois dos Normandos, em 1066, sou- que foi a “Guerra dos Cem Anos”? A discus-
be poupar-se aos nacionalismos, ao anti- são, aqui mal resumida, transferiu-se ra-
-semitismo, ao fascismo ou ao comunismo. pidamente para os 60 anos de União Euro-
A resposta foi fulminante: poucos dias de- peia, inúteis, segundo os primeiros, valio-
pois, é publicado um manifesto de 280 his- síssimos, de acordo com os segundos. Mais
toriadores com o título: “Fog in Channel! um ponto de acordo: o debate não foi cons-
Historians isolated!” (parodiando um cé- trutivo. Poderia? LUIS MIGUEL DUARTE

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O Noticioso
A ABRIR

Jubilação

Última lição
de Fernando Rosas
Para Fernando Rosas, a jubilação não representa aposentação, pois Rosas
continuará a lecionar e a investigar na Universidade Nova de Lisboa. continuará
Porém, o calendário determinou que, ao chegar aos 70 anos, aquele a ensinar
que é, sem contestação, a maior referência nacional da historiografia e a investigar
sobre o Estado Novo deu a “última lição”, perante uma sala cheia, cen-
trando-se em questões como a “desmemória”, decorrente do novo pa-
radigma comunicacional que criará a ilusão de um “presente contí-
nuo” e promoverá o “apagamento de acontecimentos, de processos
históricos e de valores que transportem do passado um potencial sub-
versor da nova ordem que se pretende estabelecer” (apud Leonete Bo-
telho, “Público”, 28 de abril de 2016), e, ainda, aquilo que diz ser uma
corrente de “revisionismo histórico em curso”. Aí, Rosas apontou, por
exemplo, baterias a Vasco Pulido Valente e Rui Ramos, autores que,
08 considera, adotaram discursos de demonização da I República, não
pelo interesse em retratarem essa época, mas sim de deixar do Estado
Novo a sensação de “aurora redentora” que pôs fim ao caos.

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O Noticioso
CLÁSSICOS REVISITADOS

“Os Filhos de D. João I”,


de Oliveira Martins

E
ditada em dois volumes, em 1891, é uma obra E HOJE, O QUE FICOU DO LIVRO? O AUTOR
de maturidade como pensador e como histo-
riador. Como explica Fernando Catroga [Histó- Joaquim Pedro
ria da História em Portugal], ele dividia a His- de Oliveira Martins
tória do país em quatro períodos: o primeiro nasceu em Lisboa a
era o da formação e consolidação do reino, em 30 de abril de 1845 e
que os protagonistas eram os reis; antes do ter- lá morreu em 24 de
ceiro, o da decadência com a colonização do Oriente, vinha agosto de 1894. Ce-
o mais vibrante e heróico: o da dinastia de Avis, no qual algu- do órfão de pai, não
mas figuras transcendentes encarnavam o melhor da alma e completou o liceu.
do destino de um povo. O. Martins escreve a biografia de Nu- Trabalhou em ca-
no Álvares Pereira, dos Filhos de D. João I, de Camões, e dei- sas comerciais, nas
xa incompleta a que mais queria fazer: a do “Príncipe Perfei- administrações de
to”. Analisando os infantes sob um prisma exclusivamente uma mina andalu-
psicológico (de uma psicologia que não podia ser social, por- za e na construção
que ainda não existia, e que ele pretendia histórica, mas não da linha férrea Por-
era), com fortíssimos juízos de valor a priori, o autor apresen- to – Póvoa / Fama-
ta-nos um Henrique visionário e destinado, como o reino, a licão. Intelectual de
grandes feitos; um Duarte murcho, palavroso, ilustrado, bom Literariamente, tudo. Para um his- primeira água, foi
homem mas trágico erro de casting como rei; um Fernando toriador, nada. Como demonstrou Or- romancista, ativista 09
nascido para mártir, e um Pedro pragmático, inteligente, de- lando Ribeiro, O. Martins não percebeu a político, antropólo-
cidido, a abrir caminho para o maior rei da História de Portu- geografia do país. E conhecia muitíssi- go, historiador. Sér-
gal. Último parágrafo do livro: “Assim que subiu ao trono, D. mo mal as principais fontes da sua His- gio Campos e Matos
João II cerrou violentamente o parêntesis aberto na história tória. Consumindo-se até ao último nota-lhe três mar-
nacional. Com o cutelo e com o punhal vingou a memória do sopro de vida no ativismo cívico e po- cas: a curiosidade
avô, esmagando as resistências anárquicas da nobreza. Com lítico, alguns dos Filhos de D. João I pa- sem limites, a voca-
o saber e com a audácia prosseguiu as navegações, que nos recem suspeitosamente personalida- ção interdisciplinar
deram afinal a descoberta do caminho da Índia, completan- des do fim do século XIX. Atores meno- e o autodidatismo.
do a obra iniciada por D. Henrique. E esse rei, a quem em Cas- res ou maiores de um drama poderoso, Fundou dois jornais,
tela chamavam por antonomásia o Homem, era o que, per- que resume o destino de Portugal, es- foi eleito deputado
sonalizando a ideia pura do principado monárquico, tomava tes homens aparecem-nos desliga- por Viana do Castelo
para si, como empresa, o pelicano amamentando os filhos, e dos do ambiente económico e social, e pelo Porto, Ministro
como moto as palavras: “Pela Lei e pela Grei”, pelo povo e pe- do resto da Europa, de quase tudo. Mas da Fazenda por qua-
la Justiça.” para quem gosta de ler boa prosa, es- tro meses, integrou a
te livro – e os outros dele, desde logo o chamada “Geração
“Portugal Contemporâneo” – são fon- de 70” e os “Vencidos
tes de puro prazer. Por causa dele e de da Vida” (com Eça,
outros como ele, afirmou Oliveira Mar- Ramalho e Guerra
Luís Miguel Duarte ques (sem razão, penso eu) que o sécu- Junqueiro; a suges-
Historiador
lo XIX foi aquele em que melhor se es- tão do nome terá si-
creveu em Portugal. “Lívido, o cadáver do dele). Escritor e
de D. João I jazia sobre o seu leito mor- pensador de exce-
tuário. Em volta, os filhos de pé, num si- ção, historiador me-
lêncio de estátuas, guardavam o de- díocre, impressiona
funto.” Atire-se ao livro, caríssimo lei- a obra escrita e a ri-
tor. Não se arrependerá. E se da leitura queza das ideias que
resultar a vontade de saber mais sobre deixou, sem ter che-
a “Ínclita Geração”, cá estaremos para gado aos 50 anos.
lhe sugerir outra literatura, certamente Muito rendia o tem-
menos inspirada mas historiografica- po a esta gente!
mente rigorosa.

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

DA “EPOPEIA
REALIDADES

HUMILDES”
MITOS E

DOS

010

Texto de Álvaro Garrido


Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Consultor do Museu Marítimo de Ílhavo.
Fotografias Alan Villiers / Museu Marítimo de Ílhavo

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O Noticioso

011

DA AVENTURA QUINHENTISTA
À NARRATIVA HEROICA CRIADA PELO
ESTADO NOVO, A PESCA LONGÍNQUA
DO BACALHAU AJUDOU A ENFORMAR
O IMAGINÁRIO PORTUGUÊS
DE GRANDEZA

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

As primeiras viagens ao bacalhau co. Algo que se enquadra no proces- Desde que o comércio de bacalhau
e a dependência das importações so mais vasto de substituição da he- atingira expressão internacional e se
Portugal foi dos primeiros estados gemonia peninsular pela britânica no organizara em grandes redes de negó-
europeus a armar navios para a gran- domínio dos mares, de que existem cio, boa parte dos capitalistas ingleses
de pesca. Mas é seguro que os portu- sinais evidentes desde a última déca- envolvidos na pesca eram comercian-
gueses jamais dominaram a pesca- da de Quinhentos. Restaurada a inde- tes. Financiavam o apresto dos navios
ria. A dependência portuguesa das pendência, em 1640, não ressurgiram em cada campanha, tratavam do re-
importações de bacalhau salgado se- as grandes pescarias do bacalhau. Si- crutamento da mão-de-obra, seguiam
co exprime um modo de inserção no nal de que a união das coroas ibéricas a pesca e a secagem nas paragens frias
mercado internacional do produto, não tinha sido o fator determinante do da Terra Nova e aí acompanhavam a
praticamente invariável entre finais seu declínio. Em 1624, Aveiro e Viana, preparação dos embarques para os
do século XVI e a década de trinta do os principais portos de armamento, já mercados de Portugal, Espanha e Itá-
século XX. Nos séculos XVI e XVII o não dispõem de qualquer embarcação lia. Investimentos avultados, de capi-
Estado português já se interessava para a pesca do bacalhau. A hegemo- tal a longo prazo e de reembolso tardio,
pelo comércio de bacalhau. A Coroa nia partilhada por franceses e ingle- explicam que o bacalhau não tivesse
estabelecia direitos alfandegários e ses no povoamento e colonização dos procura certa. Lisboa, Porto, Viana, Fi-
regulamentava o negócio. Desde en- territórios costeiros orientais e insu- gueira, Aveiro e Caminha importavam
tão, o produto mereceu uma aperta- lares norte-americanos mais próxi- “bacalhau inglês”. A demanda dos bons
da regulamentação estatal do abas- mos dos pesqueiros indicia que a rota mercados e do melhor preço era asse-
tecimento. Tendência que, séculos do bacalhau mudara de mãos. O Tra- gurada por uma rede de agentes com
depois, o Estado Novo reforçará por tado de Utrecht, datado de 1713, pelo posições dominantes no comércio de
velhas e novas razões. qual a França cede à Inglaterra a ilha bacalhau das praças de Lisboa e Porto.
Nas primeiras décadas de Quinhen- da Terra Nova e territórios insulares
tos, reuniram-se esforços e capitais na adjacentes, reforça a hegemonia bri- A “questão do bacalhau”
organização de frotas destinadas à pes- tânica nos circuitos mercantis. Portu- na época contemporânea
ca do bacalhau em Aveiro, Viana da Foz gal e Espanha consolidam a condição A crescente elaboração económica do
do Lima e Porto. Sem prejuízo das via- de grandes importadores. “problema do bacalhau” e o seu peso
gens patrocinadas por D. Manuel aos ir- na balança de comércio pouco desper-
mãos Corte-Real, a João Fernandes La- taram o pensamento de economistas
012 vrador e ao vianense João Álvares Fa- e homens de letras até ao começo da I
gundes, de início a Coroa manifestou Guerra Mundial.
pouco interesse na manutenção de uma O escrito de Oliveira Martins “Por-
rota permanente com a Terra Nova dos tugal nos Mares”, editado pela primei-
bacalhaus. Os custos e os riscos da em- ra vez em 1889, é dos mais fecundos em
presa, como é bom de ver pelo destino reflexões sobre o significado da “deca-
trágico dos Corte-Reais, seriam exces- dência das pescarias”. De 1882 a 1885, já
sivos. Ainda assim, por volta de 1520, o autor propusera um programa de re-
gente dos Açores, de Viana e de Aveiro valorização da “riqueza nacional” as-
embarcou para povoar e colonizar as sente no fomento das pescarias e das
costas geladas da ilha da Terra Nova. “indústrias de preparação de peixe”, da
Em 1578 ainda se podiam contar construção naval e da marinha mer-
mais veleiros portugueses pescan- cante. Em “Portugal nos Mares”, Olivei-
do nos “bancos” da Terra Nova do que ra Martins ironiza com o mito do baca-
barcas espanholas, inglesas e france- lhau. Discute o estranho fenómeno de
sas. Poucos anos depois, porém, regis- “nacionalização” do produto e denun-
ta-se uma acentuada redução da fro- cia os desastrosos efeitos económicos
ta portuguesa. Os danos provocados daí decorrentes. Até ao começo do Esta-
por corsários ingleses e magrebinos, o do Novo, as elites mais e menos interes-
apoio das armadas francesa e inglesa à sadas no negócio limitar-se-ão a insistir
dissuasão da faina por barcos ibéricos, numa vaga proposta de proteção oficial
o assoreamento das barras de Aveiro como forma de atrair capitais.
e Viana e uma certa incúria do Estado A pesca ao bacalhau fora relançada
português, cada vez mais interessado em 1835, por iniciativa da Associação
no trato das Índias e no açúcar do Bra- Mercantil Lisbonense, que, recorren-
sil, consolidam a posição de Portugal do a embarcações e tripulações ingle-
como país importador de bacalhau. sas, criou a Companhia de Pescarias
Estes e outros fatores conduziram à Lisbonense. O renovado interesse dos
suspensão da pesca por navios portu- capitais estaria associado a legisla-
gueses até à primeira metade do sécu- ção fiscal favorável, desde que o baca-
lo XIX. A longa interrupção da pesca lhau ficara isento de dízima e deixara
na Terra Nova foi um fenómeno ibéri- de ser tributado em função das quan-

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O Noticioso

tidades desembarcadas. Pescadores de importação e a satisfação de inte-


Só a partir de 1866, então com maior em manobras de mari- resses industriais pouco expressivos
regularidade, Portugal voltou a enviar nharia a bordo do lugre e demasiado expostos à inserção no
navios à Terra Nova, segundo a técnica “Argus”, no qual o aus- mercado externo.
norte-americana da pesca com dóris traliano Alan Villiers Entre as vozes que mais denuncia-
(pequenos botes) e linhas de mão. Em viajou, em 1950 ram o contributo do bacalhau para o
1872, a Bensaúde & C.ª envia da ilha do desequilíbrio da balança de comér-
Faial dois veleiros aos grandes bancos: cio, destaca-se a do jovem professor de
a escuna “Creoula” e o patacho “Gasel- As fotografias Economia Política e Finanças Públicas
le”. Poucos anos depois, em 1884, é re- de Villiers, publicadas da Faculdade de Direito da Universida-
tomada a pesca no continente. Em 1891 em “The Quest of de de Coimbra, Oliveira Salazar. As fi-
a Bensaúde & C.ª já armava oito navios. The Schooner Argus”, nanças públicas e os abastecimentos
Converte-se então em parceria marí- tornaram-se icónicas figuram no pensamento de Salazar co-
tima e toma a designação de Parceria mo elementos decisivos de expressão
Geral de Pescarias, uma das empresas do poder do Estado. A “questão do ba-
mais dinâmicas e mais bem dimensio- calhau” participa desta maneira de ver.
nadas ao longo do século XX. “Alguns Aspectos da Crise das Subsis-
Em 1885, o Governo decidiu que, tências”, o primeiro texto económico
apesar de capturado por embarca- que o jovem militante católico publi-
ções e mão-de-obra nacionais, o ba- ca na qualidade de docente, é uma crí-
calhau ficaria sujeito a direitos de im- tica à ineficácia das instituições repu-
portação. Os avanços e recuos do re- blicanas criadas para regular o abaste-
gime pautal do bacalhau refletiam-se cimento alimentar.
muito na iniciativa das companhias
armadoras e na atividade da frota. O O Estado Novo e a “Campanha
Estado hesitava entre arrecadar as re- do Bacalhau”
ceitas geradas na cobrança de direitos A “Campanha do Bacalhau” traduz um

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

014 programa de autarcia relativa, uma Henrique Tenreiro; o declínio do úl- dos na América do Sul e Caraíbas (Bra-
ideia moderada de nacionalismo eco- timo quartel do século, associado ao sil, Cuba e Antilhas) davam a Portugal
nómico: no entender do Governo, a desmantelamento da oligarquia das a possibilidade de impor à oferta as re-
margem de auto-aprovisionamento pescas, em 1974, e a profundas mu- gras da procura. Aproveitando a lu-
não deveria exceder os 60% do consu- danças no Direito do Mar. ta dos agentes exportadores e a que-
mo total, valor que em 1935 significa- Apesar das medidas protecionistas da dos preços no mercado internacio-
va produzir cerca de 600 mil quintais de 1925, 1927, 1929 e 1931 – na sua maio- nal, Portugal aproveita para organizar
de bacalhau salgado seco por campa- ria definidas para regular a concessão a “indústria nacional do bacalhau” em
nha. A reorganização do setor impli- de créditos de campanha e disciplinar termos protecionistas, segundo o mo-
cou condicionar a velha relação de de- o recrutamento de mão-de-obra –, a delo dos cartéis de Estado. Quando o
pendência do mercado nacional face pesca do bacalhau continuava a atrair Estado Novo cria a Comissão Regula-
ao negócio importador. Em 1943, Por- poucos capitais. Os investimentos dora do Comércio de Bacalhau e o Gré-
tugal já produzia 63% das necessida- não rompiam o círculo das fortunas mio dos Importadores Armazenistas
des do consumo. De então por diante, e tradições de família, especialmen- de Mercearias – centrais de compras
à exceção de 1947 e 1948, o grau de au- te fortes na Figueira da Foz e em Ílha- incumbidas de fazer importações em
to-aprovisionamento transpõe sem- vo. O reembolso das despesas corren- regime de monopólio –, o mercado in-
pre esse limite. O ano de 1954 regista o tes e a amortização do investimento ternacional de bacalhau ficou em so-
ponto mais alto da “Campanha do Ba- eram muito incertos. Mas o principal bressalto. A Noruega e a Terra Nova ti-
calhau”: 88% do peixe consumido nes- fator de atrofia da indústria nacional veram de reagir ao poder negocial de
se ano foi de produção nacional. de pesca e secagem de bacalhau era Lisboa, criando cartéis de exportado-
Em Portugal, as indústrias do ba- a concorrência do peixe estrangeiro, res. Alguns ainda hoje existem.
calhau evidenciam três fases distin- em regra mais barato. Problema a que
tas durante o século XX: a reorgani- se juntava a falta de mecanismos de A frota nacional bacalhoeira
zação estatal do abastecimento e da reserva do mercado português para a De 1934 a 1967 o número de navios que
produção, imposta pelo Estado Novo pesca nacional. saíram de portos portugueses para a
a partir de 1934, segundo um modelo Embora pouco sentida em Portu- pesca do bacalhau quase duplicou. A
decalcado do fascismo italiano para o gal, a crise de 1929 deu ao Governo de campanha de 1958 foi aquela que con-
trigo e o arroz; o apogeu dos anos cin- Salazar um bom pretexto para intervir tou com maior número de unidades: 77.
quenta e sessenta, assente no crédi- com êxito num problema de séculos: A média do período é de 60 navios, a di-
to estatal e noutros expedientes pro- altas produções entre o grupo restri- mensão mais regular da grande arma-
tecionistas geridos pela organização to dos exportadores (Noruega, Islân- da portuguesa que, ano a ano, ou duas
das pescas, onde imperava a figura de dia e Terra Nova) e mercados contraí- vezes por ano, no caso dos arrastões,

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O Noticioso

Nos anos 50,


quando Villiers re-
tratou todos os as-
petos da vida a bor-
do, o sistema de
pesca à linha come-
çava a ser visto co-
mo coisa de outros
tempos

A bordo dos peque- 015


nos dóris, os pesca-
dores afastavam-se
do navio mãe (pági-
na anterior), só re-
gressando com o
bote cheio de peixe

Os cozinheiros
do “Argus”. A seguir
a alguns oficiais, es-
te era o cargo mais
importante

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TEMA DE CAPA

Lugre
com motor
“Argus”
Fonte Alan Villiers
“A campanha do Argus” (1951)

Principais dimensões
Comp. na linha de flutuação
52,90 m
Boca
9,90 m
Pontal
5,04 m
Calado
4,80 m

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3 6 8
2 5

4 7 9

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O Noticioso

Legendas
1 Alojamentos dos oficiais
2 Tanque lastro
3 Casa da máquina
4 Tanque de óleo de lubrificação,
cerca de 3 t
5 Combustível
6 Câmara frigorífica
7 Poço
8 Porão, com capacidade para 950 t
9 Duplo fundo, cerca de 75 t de água
10 Paiol de carvão, cerca de 20 t
11 Tanque de água doce, 15 t
12 Rancho
13 Paiol de amarra
14 Paióis de mantimentos

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14
13
12

8 11
10

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

se dirigia aos mares do Atlântico No- fosse pelas exigências de um merca- portuguesa, 69 dos quais em estalei-
roeste para pescar o famoso bacalhau do caprichoso que, preferencialmente, ros nacionais. Em 1952, considerando
do Atlântico. absorvia peixe de tamanhos superio- objetivos de estabilização social e po-
Os números demonstram bem a per- res que o arrasto pouco dava. Desde que lítica nos anos decisivos do pós-guer-
sistência da pesca à linha, arte que todos construídos em madeira, fossem eles ra e dado que a normalização do co-
os grandes produtores de bacalhau de lugres com motor auxiliar ou os grandes mércio internacional já permitia obter
pesca longínqua abandonaram após o e feios navios-motor, os navios de artes os bens de equipamento necessários à
termo da II Guerra Mundial e que a frota de anzol exigiam um investimento bas- construção em maior escala, o Gover-
portuguesa acabou por manter até 1974. tante menor. Podiam ser construídos no estipulou que todos os navios da fro-
A proporção de arrastões no conjunto com materiais e mão-de-obra nacio- ta bacalhoeira (em madeira ou em fer-
da frota portuguesa foi sempre modes- nais, proporcionando emprego a maior ro) fossem exclusivamente construí-
ta. Fosse por carência de capitais, por número de homens. dos em estaleiros portugueses.
disponibilidade de mão-de-obra para Entre 1934 e 1967 foram construí- Durante o mesmo período, coinci-
a pesca intensiva dos “navios de linha”, dos 83 navios para a frota bacalhoeira dente com a “Campanha do Bacalhau”,

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O Noticioso

70% das construções dos principais es- e entregando ao tenente Tenreiro a sua nalista. Acumulando responsabilida-
taleiros de pequena e média dimensão marcha, Salazar e Teotónio Pereira des, viria a ser delegado do Governo
(Estaleiros Navais de Viana do Castelo, pretenderiam prevenir parte do “pro- junto de todos os grémios das pescas:
Estaleiros Navais do Mondego, Figueira blema alimentar” do país, enquadrar Sardinha (1938), Arrasto (1939), Baleia
da Foz, e Estaleiros de S. Jacinto, em Avei- os pescadores no regime e colocar os (1945) e Atum (1960). Mas foi no mais
ro) resultam da execução dos planos es- armadores das pescas industriais a poderoso e vigiado destes organis-
tatais de renovação das frotas de pesca. A colaborar nos programas de fomento mos, no Grémio dos Armadores de Na-
“Campanha do Bacalhau” exprime uma da produção de pescado. vios da Pesca de Bacalhau, que a Orga-
articulação de objetivos à escala nacio- Numa longevidade aproximada à nização das Pescas se formou. Desig-
nal, regional e local muito típica da polí- do regime, de julho de 1936 a abril de nação opaca, incluía uma vasta rede
tica económica do Estado Novo. 1974, Henrique Tenreiro será o “pa- de organismos corporativos, socieda-
trão das pescas”. Nesse amplo sector des mútuas de seguros, cooperativas,
A organização corporativa das pescas da “economia nacional” exerceu uma secções empresariais de grémios, ins-
Lançando a “campanha do bacalhau” liderança forte, carismática e pater- tituições que governaram as pescas
marítimas portuguesas de 1935 a 1974.
Os pescadores, as pescas e a sua buro-
cracia autoritária eram apresentadas
como a “grande família do mar”, cuja
propaganda se estendeu do “Jornal do
Pescador” ao “Diário da Manhã” e ao
cinema de “atualidades”.

Ir ao bacalhau
Entre as décadas de trinta e de seten-
ta do século XX, as campanhas baca-
lhoeiras ao largo da Terra Nova e na
costa Oeste da Gronelândia eram via-
Estivesse o mar gens de todos os anos. Desde o mo-
tranquilo ou altero- mento da largada, em abril ou maio,
so, a campanha do no palco cénico de Belém, onde a bên- 019
bacalhau proporcio- ção dos lugres se fez a partir de 1936,
nava imagens de di- ou nos próprios portos de origem, mi-
mensão mítica lhares de tripulantes de veleiros e ar-
rastões cumpriam essas viagens na
ânsia do regresso.
A organização da vida a bordo, a
disciplina e a coragem, o ritmo das ta-
refas e a duração das jornadas eram
elementos decisivos para o êxito do
empreendimento: carregar o navio,
dar lucro ao armador, abastecer a Na-
ção. A pesca do bacalhau, feita com li-
nhas de mão a bordo de pequenos bo-
tes nas águas frias do grande banco
da Terra Nova, compõe uma saga hu-
mana de sugestões épicas; uma sa-
ga cruel, na realidade. Como escre-
veu o etnógrafo poveiro Santos Gra-
ça, a pesca do bacalhau era “áspera,
dura, tremenda, quase heróica”, uma
verdadeira “epopeia dos humildes”.
Ainda assim, os homens disputavam
uma inscrição no Grémio dos Arma-
dores e procuravam um lugar nas tri-
pulações dos lugres e navios-motor,
porque a pesca da Terra Nova lhes po-
dia garantir sustento e algum aforro
para a vida.
As viagens dos pescadores de dó-
ri eram relativamente curtas, mas pe-
rigosas. Os pescadores-marinheiros

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afastavam-se do “navio-mãe” cente- Navios da Frota A indústria que o Estado Novo tan-
nas de metros, às vezes duas milhas, e Branca, da portuense to protegera tinha os dias contados. A
voltavam largas horas depois, quando Companhia de Pesca pesca à linha de mão com dóris com-
carregados de bacalhau. O nevoeiro e Transatlântica, punha um belo bilhete-postal, mas
os icebergues eram os principais obs- fundeados no rio era uma arte obsoleta, apenas possí-
, táculos a vencer. A destreza apurada Douro vel enquanto houvesse capacidade de
nas artes de pesca locais e costeiras e recrutar homens, de fornecer aos ar-
a transmissão do ofício de pescador de madores crédito barato e de conter ar-
EM bacalhau de pais para filhos também tificialmente os preços do bacalhau
explicam por que tantos homens se fi- importado, de modo a permitir que o
OJE zeram à “pesca da Terra Nova”. A mobi- nacional se vendesse. Por razões ex-
lização obrigatória, o sistema intensi- ternas e internas, o modelo protecio-
vo de organização do trabalho e de re- nista achado e imposto pelo Estado
muneração das tripulações explicam Novo para reanimar a pesca do baca-
a estabilidade do recrutamento até ao lhau via-se ameaçado de implosão.
começo dos anos sessenta. A emigra- Em plena Guerra Fria, sobretudo
ção e as guerras coloniais mudaram a partir da década de sessenta, dava-
o cenário. Ir ao bacalhau para livrar à -se o primeiro confronto da gigantes-
“guerra de África” tornou-se uma de- ca organização de Estado com o ciclo
cisão corrente, estimulada pelo Esta- vicioso da pesca excessiva (a “sobre-
do em condições especialmente duras pesca”) e o fim da liberdade dos mares.
para qualquer uma das opções de vida A Ciência e o Direito juntaram-se à po-
que se tomasse. A partir de 1964, esti- lítica e à diplomacia. Pescadores e ar-
mamos que um terço dos homens te- madores deixam de poder pescar on-
nha embarcado nos bacalhoeiros por de queriam e quanto queriam.
essa razão. A Revolução de Abril de 1974 e a
Ao mesmo tempo que a ideologia criação das Zonas Económicas Ex-
do Estado Novo exaltava estes ho- clusivas no âmbito da III Conferência
mens, tornando-os símbolos de uma das Nações Unidas de Direito do Mar,
020 nação marítima que se dizia outra em 1977, contribuíram para o colap-
vez pujante, a organização corpora- so das pescas longínquas. A necessi-
tiva integrava e reprimia os pesca- dade de limitar as pescas aos recursos
dores; exigia-lhes disciplina e esfor- da imensa ZEE portuguesa, as restri-
ço patriótico para abastecer a Nação ções da Política Comum de Pescas da
e para “trazer à pátria o pão dos ma- Comunidade Económica Europeia, a
res”. Na propaganda salazarista, mais que Portugal aderiu em 1986, e o fecho
preocupada com a eficácia da coorde- dos grandes bancos, em 1992, por ini-
nação económica exercida pelo Esta- ciativa do Governo canadiano, afas-
do do que com a dimensão humana taram os pescadores portugueses da
do trabalho no mar, os bacalhoeiros Terra Nova e impeliram os poucos na-
eram tratados como meros figurantes vios que sobraram a demandarem as
de uma epopeia encenada pelo pró- águas geladas do Árctico.
prio Estado. Quase tudo caiu entre 1974 e 1977,
embora a rendição política do regi-
A lenda e o declínio da pesca me de Salazar às novas realidades
Nos anos cinquenta do século XX, de- da pesca do bacalhau tenha ocorri-
vido ao desaparecimento das frotas do em 1967, momento em que o co-
artesanais de navios de pesca à linha mércio de bacalhau salgado foi libe-
consumado pela II Guerra Mundial, a ralizado por incapacidade do Estado
pesca do bacalhau por homens e na- para continuar a subsidiar os preços.
vios portugueses começou a desper- O fim da pesca à linha, em 1974, e a
tar uma intensa curiosidade interna- sua coincidência com a queda do re-
cional. gime ditatorial assemelhou-se a um
Terminada a Guerra, a “liberdade regresso das caravelas. Tudo se pa-
dos mares” começou a ser tão incer- receu ao fim da nação marítima que
ta quanto a abundância de peixe nos sempre se associara ao império que,
bancos do Atlântico Noroeste. De par também ele, acabava de cair. Mu-
com as ameaças do Direito e da natu- dança estratégica mas também cul-
reza, a “Campanha do Bacalhau” tor- tural. Uma mudança total, que até
nou-se um projeto anacrónico cele- hoje marca um certo imaginário de
brado por narrativas mitificadoras. grandeza perdida.

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Recordações e saudades
persistem na Terra Nova
Autor canadiano escreve para a “JN História” sobre a
evolução da frota bacalhoeira portuguesa e o modo
como era e é encarada do lado de lá do Atlântico
Textos de Jean Pierre Andrieux
Investigador / St. John’s – Terra Nova

britânicos e franceses, para satisfa-


zer a necessidade de bacalhau salga-
do. Nesse tempo, já os ingleses tinham
estabelecido secas na Terra Nova, pa-
ra preparar o peixe que era captura-
do, perto da costa, pelos povoadores
do território, o que despertou o inte-
resse de uma grande firma do Oes-
te de Inglaterra (conhecida, ao lon-
go dos anos, por vários nomes, como
Hunt and Roope ou Newman’s), que
exportavam bacalhau salgado seco
para Portugal, de onde importavam
sal. Essa mesma firma levava aos ha- 021
bitantes locais os bens de que neces-
sitavam, originários de Inglaterra e da
Irlanda, que os pescadores pagavam
num sistema de crédito em que a ga-
rantia eram as capturas de bacalhau
ao longo da campanha de pesca.

P
Vinho do Porto em St. John’s
ouco tempo depois da des- gueses pescavam a par de outros – es- A Newman’s envolveu-se, também,
coberta do Novo Mundo, panhóis, ingleses, bretões, normandos no negócio do vinho do Porto, sendo
nos primórdios da centú- ou bascos –, naquilo que era considera- proprietária da Quinta da Eira Velha,
ria de quinhentos, os por- do uma zona internacional. Até que os no Douro, junto ao Pinhão. E um aca-
tugueses começaram a pes- ingleses acabaram por reclamar a pos- so meteu a Terra Nova nesse negócio.
car nos grandes bancos da Terra Nova. se da Terra Nova, num tempo em que a Fugindo a corsários franceses, um na-
Foi logo depois da visita de Gaspar Cor- união das coroas ibéricas (1580-1640) vio carregado de vinho que se dirigia
te-Real a uma parte do continente hoje colocou as atividades pesqueiras lu- a Inglaterra escapou e acabou por pas-
conhecida como Labrador. Foram en- sas praticamente num impasse. Inimi- sar o inverno nas instalações da firma
tão criadas companhias para enviar gos de Espanha, os ingleses puseram em St. Johns’s (São João da Terra No-
navios à pesca do bacalhau nessas ri- cobro a toda a atividade pesqueira que va). Ora, quando, na primavera, o na-
cas águas, embora se especule que persistia, e em 1620, num violento re- vio regressou a solo britânico, verifi-
açorianos já lá pescassem antes, fazen- contro ao largo da península de Bona- cou-se que o vinho havia adquirido
do disso segredo. vista, na Terra Nova, os navegadores propriedades excecionais, podendo,
Nevoeiro, ventanias e baixíssimas ibéricos foram expulsos da zona. por tal, ser vendido a um preço mui-
temperaturas cobravam a sua fatura Com a restauração da independên- to superior. Havia aí negócio, e a firma
ano após ano, mas tais perigos não de- cia, Portugal viu em Inglaterra um dos começou a enviar regularmente car-
moveram os portugueses de prosse- primeiros países a reconhecerem o regamentos de vinho para estagiar na
guir as campanhas do bacalhau, peixe novo estado das coisas, desde logo Terra Nova, prática que se manteve ao
que rapidamente começou a significar surgindo ligações comerciais entre longo de 250 anos.
uma porta de saída da fome. No início, as nações. Como a frota pesqueira era Com um punhado de navios de pes-
ninguém reclamou soberania sobre praticamente inexistente, os portu- ca à linha, Portugal retomou a pesca do
os novos territórios, e os navios portu- gueses tornaram-se dependentes de bacalhau em 1894, partilhando os ban-

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cos com a grande Frota Metropolita- rasto para a região, e também a famí- o que representou um aumento con-
na francesa ou com as 200 escunas de lia açoriana Bensaúde mandou um na- siderável do número de navios portu-
pesca baseadas nas ilhas francesas de vio desse tipo, o “Elite”, mas sem gran- gueses deste lado do Atlântico e, con-
022 Saint Pierre e Miquelon, a sul da Ter- de êxito. Certo é que as consequências sequentemente, um grande número de
ra Nova, as únicas possessões manti- foram devastadoras, tanto para a espé- pescadores.
das pelos franceses depois de perde- cie (o arrasto apanhava tudo, mas só os Daí que o Governo da República te-
rem a Nova França para os ingleses, em maiores bacalhaus eram aproveitados, nha decidido, em 1923, enviar para jun-
consequência da Guerra dos Sete Anos sendo os restantes lançados borda fo- to da frota um navio-hospital, o “Car-
(1756-1763). Essas ilhas, a par de alguns ra) como para a frota de pesca à linha da valho Araújo”, que logo na viagem
territórios na grande ilha da Terra No- Terra Nova, dizimada em poucos anos. inaugural encalhou na costa sul da Ter-
va, onde secavam o peixe, permitiam Para mais, no âmbito da Entente Cor- ra Nova, mas conseguiu libertar-se,
aos franceses desenvolver uma eleva- diale (1904), os franceses tiveram de pelos próprios meios, no dia seguin-
da capacidade de produção de baca- devolver os territórios no Sul da Terra te. A missão foi um êxito, mas só três
lhau salgado, que, no fim da linha, aca- Nova, ficando a pesca centrada apenas anos depois foi decidido enviar o pri-
bava vendido em Portugal. Também na em Saint Pierre. meiro navio-hospital “Gil Eannes” em
década de 1890, os habitantes da Terra Monstros dos mares. Assim se refe- permanência para junto da frota pes-
Nova, de tanto verem os navios de pes- riam os pescadores da Terra Nova aos queira. A bordo iam médicos, enfer-
ca estrangeiros a operar por ali, come- ameaçadores arrastões, que poriam meiros, pessoal auxiliar e, ainda, um
çaram a armar escunas na costa me- termo às reservas e à atividade pes- padre. O ano de 1926 era também aque-
ridional do território, de forma a po- queira. Ao tempo, a regulação não po- le em que um novo concorrente apare-
derem também pescar nos grandes dia ir além de proibir estes navios a va- cia na região: a Espanha, com arrastões
bancos, já que até aí só o faziam relati- por de operarem a menos de três mi- novos, fabricados em Inglaterra e ope-
vamente perto da costa. lhas da costa, uma vez que, dessa linha rados pela companhia PYSBE (Pesque-
Nesse final do século XIX sucede- para a frente, tudo eram águas inter- rías y Secaderos de Bacalao de España),
ria, porém, algo que afetaria irreme- nacionais, onde qualquer nação podia criada por iniciativa do rei Afonso XIII,
diavelmente todos os que estavam en- pescar o que quisesse e como quises- numa parceria com uma companhia
volvidos na pesca do bacalhau: os in- se. Daí que os anos seguintes tenham francesa. A PYSBE cresceu muito ra-
gleses inventaram o sistema de arrasto significado um forte aumento do nú- pidamente, mas a sua atividade parou
lateral. Era uma revolução, pois, con- mero de arrastões na pesca do baca- com o deflagrar da Guerra Civil de Es-
trariamente à pesca à linha, feita sa- lhau, coabitando estes com os navios panha, em 1936.
zonalmente e durante o dia, com os de pesca à linha, pois o peixe era ain-
pescadores sozinhos nos seus dóris, da relativamente abundante nos gran- A frota torna-se branca
os novos arrastões operavam durante des bancos. Também por essa altura, o À margem dessas questões, a frota por-
todo ao ano, a qualquer hora. Em 1907, Governo português levantou algumas tuguesa foi reformulando a sua ação.
os franceses levaram a técnica do ar- restrições à pesca nos grandes bancos, Com o peixe a escassear nos bancos

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Mulheres
de St. John’s, traba-
lhando na secagem
do bacalhau, em fi-
nais do século XIX

St. John’s,
num postal de 1899
publicado pela firma
britânica Newman’s,
que pôs a Terra No-
va no mapa do vinho
do Porto

da Terra Nova, a região da Gronelândia da mítica Frota Branca (“White Fleet”), conflito, os bacalhoeiros portugueses
(onde alguns franceses já haviam ido, que assim se manteve depois do confli- viajaram sempre em comboio até aos
com bons resultados) passou a integrar to e, também, no imaginário coletivo. bancos de pesca.
a rota das campanhas. O “Brites”, os na- Quanto aos arrastões franceses, conti- 023
vios gémeos em aço “Creoula” e “San- nuaram a operar até à invasão de Fran- A invasão soviética
ta Maria Manuela”, construídos em ça pelos alemães, recolhendo então às Durante os anos da guerra, a pressão
Lisboa, e o “Argus”, saído de estaleiros ilhas de Saint Pierre e Miquelon, que fi- da pesca nos grandes bancos diminuiu
holandeses, engrossavam a frota por- caram sob controlo de Vichy. Tal cau- consideravelmente, daí que as popu-
tuguesa. A partir daí, os navios deixa- sava preocupações aos ingleses, re- lações de peixe tenham aumentado de
vam Portugal em março e dirigiam-se ceosos de que a carga de peixe salga- forma muito significativa. Para mais, a
aos bancos da Terra Nova, onde pes- do caísse nas mãos dos alemães. Para concorrência era pouca. A frota fran-
cavam até as condições de navegação mais, os navios eram apetecíveis pa- cesa estava desmantelada e demora-
permitirem a ida à Gronelândia, onde ra os britânicos, para os usarem como ria a ser reconstruída, os espanhóis
completavam a safra. Se esta fosse in- navios de patrulhamento durante o es- não constituíam ainda um perigo real,
suficiente, voltavam à Terra Nova an- forço de guerra. O que sucedeu foi que e a frota portuguesa estava fortemente
tes de encetarem a viagem de regresso. a maioria dos capitães aderiu à Fran- reforçada nos primeiros anos do pós-
Também em 1936 chegou aos bancos ça Livre do general de Gaulle, exilado -guerra. A ameaça, porém, chegaria de
o primeiro arrastão lateral português, em Londres, partindo ao abrigo da noi- portos do Norte de Espanha, como Vi-
o “Santa Joana”. Entretanto, um outro te para o Norte de África e para a Euro- go, Corunha, San Sebastian ou Gijon:
ator dava entrada na região – os italia- pa. A frota acabou por ser praticamen- arrastões a operar em pares.
nos, com arrastões de construção ale- te dizimada durante a guerra. O peixe era abundante e parecia
mã –, mas apenas até ao momento em Ao longo da guerra, Portugal foi re- dar para todos. Porém, a chegada des-
que eclodiu a II Guerra Mundial. forçando a sua frota, com navios-mo- tes navios, operando em conjunto com
Com a neutralidade decidida por tor (“Santa Maria Madalena”, “Bissaya uma rede entre eles, constituía uma
Oliveira Salazar, Portugal continuou Barreto”, “Comandante Tenreiro” e verdadeira ameaça. Sendo de meno-
a pescar nos grandes bancos e na Gro- “Cova da Iria”), mas também com mais res dimensões, podiam varrer zonas
nelândia, e teve de negociar com a Ale- um grande veleiro, o lugre “Maria Fre- onde os grandes arrastões não podiam
manha formas de identificação dos na- derico”. Não obstante a protestada neu- navegar, justamente aquelas de menor
vios, de forma a que não fossem tor- tralidade portuguesa e toda a sinaléti- profundidade onde os portugueses da-
pedeados pelos submarinos nazis. O ca usada para preservar os navios da vam cartas na pesca à linha. Com o úl-
acordo [documentado noutro local frota bacalhoeira, três navios perde- timo navio francês de pesca à linha, o
desta edição] acabou por resultar em ram-se ma guerra, afundados pelos fa- “René Guillon”, a sair de cena, só os
que, a partir de 1941, todos os navios migerados “U-Boot” (submarinos) ger- portugueses permaneciam fiéis a esse
da frota bacalhoeira fossem pintados mânicos (ver peça à parte). A partir de sistema caído em desuso. E o Governo
de branco, facto que esteve na origem determinado momento, e até ao fim do de Lisboa, em vez de reconverter a fro-

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ta para o arrasto, decidiu manter ativos se exportar cereais para a União Sovié- fas de aguardente ou de brandy. Num
os dois sistemas. tica, foi firmado pelo então ministro dia de verão, um pescador foi visto, cal-
Assim, ao longo da segunda metade canadiano das Pescas, James Sinclair çando largas galochas, dirigindo-se
da década de 1940 e no início dos anos (avô do atual primeiro-ministro, Jus- da zona sul da cidade para o centro, e
50, Portugal renovava a frota tanto com tin Trudeau), criando portos de exce- as pessoas faziam comentários sobre
arrastões laterais como com navios ção onde os navios soviéticos podiam a sua pobreza, já que nem para um par
preparados para a pesca à linha. En- entrar: Montréal, Vancouver, Halifax e de sapatos tinha. Puro engano: as botas
quanto isso, também as baixas de na- St. John’s. eram usadas para transportar um par
vios iam ocorrendo, como sempre su- de garrafas que ele, à socapa, tinha re-
cedeu. Mas o mundo não parava, e 1954 Portugal nos corações canadianos tirado do navio e planeava vender.
marcou mais um avanço tecnológi- Em 1954, o velho navio-hospital “Gil Alguns cidadãos privilegiados, que
co assinalável, com a chegada do “Fai- Eannes” fez a última campanha, sendo tinham a sorte de ter amigos a bordo,
try” e dois outros navios propriedade substituído, no ano seguinte, por um na- aguardavam ansiosamente a chegada
da Christian Salvesen, um consórcio vio-hospital que recebeu o mesmo no- do “Gil Eannes” ao porto. Havia sempre
escocês-norueguês. Estes navios ti- me, construído para o efeito em Viana cuidadas receções e jantares a bordo
nham, à popa, uma verdadeira fábrica do Castelo. Na viagem inaugural, trans- do navio, o que constituía o ponto alto
transformadora, que permitia, em al- portou até St. John’s diversos dignitá- da vida social dessas pessoas. Em sen-
to mar, capturar, processar, congelar e rios, entre os quais o almirante Henri- tido inverso, muitos oficiais e pesca-
armazenar filetes de bacalhau. Era fá- que Tenreiro, o representante do Go- dores eram convidados para refeições
cil perceber que a utilização em massa verno português para as questões das em residências locais. Contrariamen-
destes navios dizimaria as populações pescas, e Alan Villiers, o afamado au- te a pescadores de outras nacionalida-
de bacalhau dos grandes bancos. A tec- tor australiano que escreveu “A campa- des, que podiam ser muito barulhentos
nologia, decididamente, era mais rápi- nha do Argus”, o mais vívido retrato co- e desencadear zaragatas, os portugue-
da do que a produção de leis destinadas nhecido das campanhas do bacalhau. A ses eram visitantes pacíficos, sempre
a proteger os recursos piscícolas. bordo ia, também, uma réplica da ima- muito bem recebidos na cidade.
No mesmo ano chegavam os sovié- gem da Senhora de Fátima, um presen- Muitos pescadores eram clientes do
ticos, com o “Odessa” e o “Sebastopol”, te dos pescadores portugueses à popu- comércio local, então muito concen-
navios que causaram furor entre os pes- lação de St. John’s, como retribuição da trado na Water Street e zona circun-
cadores de todas as nações – uma clas- hospitalidade recebida ao longo de tan- dante. Na maior parte das vezes, não
024 se dominada por homens – pois tinham tos anos. Por ordem de Tenreiro, toda a sabiam uma palavra de inglês e expri-
mulheres a trabalhar a bordo. Os sovié- Frota Branca estava na cidade, ou seja, miam-se por gestos, ou iam munidos
ticos estavam particularmente interes- perto de cinco mil homens. de um catálogo de compras por cor-
sados nesses navios-fábricas e, nitida- Do cais até à igreja de S. João Batista, respondência, no qual apontavam o
mente, dava-se aí o início da invasão à guarda da qual a imagem ficou, for- artigo que pretendiam. Uma loja mui-
russa dos grandes bancos. Ainda por mou-se um longo cortejo, entoando to frequentada era a Woolworth, on-
cima, em clima de arranque da Guerra cânticos. Ainda hoje, quando questio- de existia uma máquina de fotografias
Fria, os navios pesqueiros tinham, co- namos os mais velhos de St. John’s so- instantâneas. Vestidos com o melhor
mo quaisquer outros navios soviéticos, bre a presença da Frota Branca ao lon- traje domingueiro, os pescadores ti-
um papel dúplice: suspeitava-se de que go do tempo, esse momento é quase ravam conjuntos de quatro fotografias
levassem sempre agentes do KGB a bor- sempre recordado. Outra memória re- que, depois, enviavam para familiares
do e, além disso, tinham antenas e equi- corrente é a dos jogos de futebol entre e amigos em Portugal, mostrando que
pamentos que os navios da restantes na- homens e rapazes da cidade e os pes- tudo estava bem ao cabo de vários me-
ções não ostentavam, por serem desne- cadores portugueses, alegremente ses de campanha no mar.
cessários à pesca do bacalhau. disputados nas proximidades do porto
Nestes novos navios-fábricas, ao ou nos campos de futebol locais. A decadência e o fim
contrário do que sucedia com os de Não faltam, entre os de St. John’s, me- Com o passar dos anos, há sempre notí-
pesca à linha e com os arrastões late- mórias dos pescadores portugueses. cias de novos navios a engrossar a fro-
rais, que descartavam os bacalhaus Por exemplo, é lembrado como, logo de- ta portuguesa, mas percebe-se, tam-
menores e as restantes espécies, tudo pois de chegarem, iam com as suas rou- bém, como a pesca à linha ia tendo os
o que vinha à rede era peixe: os exem- pas rumo a algum regato, para as lava- dias contados, apesar de ser a técnica
plares antes dispensados eram, agora, rem, procurando depois uma cerca on- preferida dos pescadores lusos. A pes-
transformados em farinha de peixe na de pudessem pô-las a secar, o que dava ca intensiva estava a alterar tudo. Em
fábrica existente a bordo. E muitos ou- um colorido especial à frente marítima maio de 1960 havia 160 arrastões so-
tros países, que não tinham qualquer de St. John’s. Depois, tudo mudou, com a viéticos nos grandes bancos. Em agos-
tradição de pescar naquelas águas, criação do Centro dos Pescadores Por- to desse ano, essa frota oscilava entre
passaram a fazê-lo com recurso a esse tugueses, onde chuveiros e máquinas os grandes bancos e a costa do Labra-
tipo de tecnologia. No início da Guer- de lavar e de secar passaram a estar à dor, onde a população local se inquieta-
ra Fria, os navios soviéticos acabaram disposição destes homens. va, pois o senso comum mostrava que
por ser proibidos de acostar nos portos São também recordados os pesca- os bancos locais não suportavam uma
da América do Norte, mas um acordo, dores que, para ganharem um punha- pressão tão grande. O peixe tornava-
necessário para que o Canadá pudes- do de dólares, vendiam em terra garra- -se cada vez mais escasso, e os portu-

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025

Todos os anos, durante a campanha do ba-


calhau, St. John’s enchia-se de portugueses,
muito bem vistos pela população local

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gueses tinham de pescar em águas ca-


da vez mais profundas, necessitando
de adaptar a frota à nova realidade. Em
setembro de 1965, de visita a St. John’s
para inaugurar uma estátua do nave-
gador Gaspar Corte-Real, o embaixa-
dor português no Canadá fez saber que
o derradeiro capítulo da lendária Fro-
ta Branca estava prestes a ser escrito,
pois os lugres de três e quatro mastros
seriam gradualmente substituídos por
arrastões modernos.
Em meados da década, a chegada
massiva de arrastões, após a II Guerra
Mundial, e o desenvolvimento dos ar-
rastões-fábricas, haviam criado o con-
texto para que o grito de revolta da po-
pulação canadiana se ouvisse bem
alto. As capturas dos pescadores cana-
dianos haviam baixado drasticamen-
te, e estes exigiam medidas de prote-
ção contra as frotas invasoras de pes-
ca não tradicional, que pescavam de
forma absolutamente descontrolada:
além da União Soviética, incluíam-se a
Bulgária, Roménia, Polónia, República
Democrática da Alemanha, República
Federal da Alemanha, Japão ou Cuba,
entre outros países.
026 Também Portugal teve os seus pri-
meiros navios-fábricas. Os navios de
pesca à linha estavam drasticamente
reduzidos ou eram reconvertidos pa-
ra uma nova técnica – a “Gillnetting”
–, que representava uma redução bru-
tal das companhas, mas dava aos pes-
cadores melhores condições durante a Navios-motor portugue-
viagem. Assim sucedeu com o “São Ga- ses fotografados em St.
briel”, o “São Ruy”, o “São Rafael”, o “Se- John’s, nos últimos tempos
nhora da Boa Viagem”, o “Soto Mayor, o da epopeia bacalhoeira
“Vimieiro”, o “Neptuno”, o “Sernache”,
Os bancos de pesca
o “Conceição Vilarinho”, o “Nossa Se- Labrador Belle Isle
nhora da Vitória”, o “Santa Maria Ma- da Terra Nova
nuela” e o “António Cação”. Quebeque e Nova Escócia
Reconvertidos, afundados, perdi-
dos em incêndios, foram desaparecen- Estreito
de Belle
do do mapa os navios da gloriosa Fro- Isle
ta Branca. No início de 1974, sobravam Rio de
St. Lawrence Terra Nova
apenas três navios da pesca à linha e, a
Golfo de S. João da Terra Nova
23 de abril desse ano, essas três relíquias St. Lawrence
– o “Novos Mares”, o “Ilhavense” e o “São Canadá
Cape Cape Race
Jorge” – largaram de Aveiro rumo aos Breton
Island
grandes bancos. Dois dias depois, deu-
St. Pierre
-se o 25 de Abril, festejado pelas tripu- North Sydney
Bank
BANCO
DA TERRA
lações desses e dos restantes navios da Nova Escócia NOVA
frota bacalhoeira. Logo houve vontade
de fazer uma greve, e a viagem foi bem
atribulada. Já nas imediações da Terra
Banquereau
Nova, o “Ilhavense” incendiou-se, sen-
do a tripulação resgatada pelos dois ou-
tros navios, que rumaram a St. John’s.

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Aí, voltaram a entrar em greve. Que- la do que toda a frota estrangeira). Ape- a navios portugueses e espanhóis, ex-
riam ter salários equiparados aos dos sar dessa limitação, Portugal, devido às ceto em caso de emergência. E as vicis- 027
pescadores dos navios reconvertidos, raízes históricas da sua atividade pes- situdes deste género foram sucedendo
que, após a revolução, haviam já dupli- queira na zona, obteve privilégios es- ao longo dos anos. Hoje em dia, há um
cado. Não houve acordo, e os dois navios peciais para um número reduzido de número limitado de navios portugue-
zarparam de regresso a Portugal e, lo- arrastões. Por outro lado, como havia ses a operar na zona internacional fo-
go depois de partir, o “São Jorge” foi des- partes dos grandes bancos fora do limi- ra das 200 milhas, sob estrita vigilân-
truído também por um incêndio. te das 200 milhas, os portugueses e pes- cia da NAFO e da União Europeia, devi-
O “Novos Mares” tornou-se, assim, cadores de outros países mudaram-se do ao cumprimento de quotas.
no último navio da Frota Branca. Saiu para zonas conhecidas como a cauda e Jamais os pescadores portugueses
definitivamente de St. John’s a 24 de ju- o nariz dos grandes bancos e, ainda, pa- serão esquecidos. Em 2012, o coman-
lho, com os seus dóris orgulhosamente ra o Flemish Cap, imediatamente a nor- dante de um navio de guerra portu-
empilhados no convés. Foi um dia mui- deste, também fora do controlo cana- guês indagou da possibilidade de loca-
to triste. Sem a Frota Branca, a razão pa- diano. Também por essa altura Portugal lizar, em St. John’s, a campa de algum
ra a presença do “Gil Eannes” também deixou de pescar na Gronelândia, devi- pescador da Frota Branca, junto à qual
se perdeu, infelizmente, nesse ano. do à escassez de peixe e ao constrangi- pudesse ser honrada a memória de to-
A pesca intensiva crónica no Noroes- mento dos limites territoriais. dos os que, ao longo dos tempos, perde-
te do Atlântico, perpetrada por navios Com a adesão de Portugal e Espanha ram a vida naquelas águas gélidas. Há
das mais variadas nações, levou o Cana- à então CEE, em 1986, os privilégios alguns anos, perderam-se todos os re-
dá à ação. Depois do conceito inicial das de pesca com base em razões históri- gistos paroquiais, num incêndio, e, se
três milhas de águas territoriais, alarga- cas deixaram de ter razão de existir, e não houvesse nomes gravados nas se-
do, em 1964, para mais nove milhas de os países ibéricos tiveram de conten- pulturas, não seria possível localizá-
uma zona de pesca exclusiva, surgiu a tar-se com pequenas parcelas da quo- -las. Por sorte, o National Film Board do
ideia de criar uma zona de 200 milhas, ta atribuída à comunidade europeia. Canadá filmou o funeral de um jovem
que o Canadá declarou, a 1 de janeiro de Tal era inaceitável para os dois países, pescador de Vila Praia de âncora, Dio-
1977. A ideia passava por preservar os que começaram a pescar mais inten- nísio Esteves, morto durante a cam-
“stocks” de peixe para os pescadores da samente nas tais zona do nariz e cau- panha de 1966, e a observação do fil-
Terra Nova e para outros que dependes- da dos grandes bancos, bem como no me permitiu localizar a última morada
sem dessa atividade para a sobrevivên- Flemish Cap, parcelas do oceano sob desse pescador. Desde outubro do ano
cia (faltou dizer, na altura, que a popula- alçada da NAFO (Northwest Atlantic passado que se encontra aí em honra
ção descontrolada de focas, com os seus Fisheries Organization). Tal gerou al- dele e de todos os outros que perderam
hábitos alimentares e excrementos, es- guma animosidade com o Canadá e le- a vida na pesca do bacalhau. Que a me-
tava a causar mais dano à fauna piscíco- vou à interdição dos portos canadianos mória deles viva longamente.

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Três navios afundados


marck” navegava ali perto, tendo vários
submarinos a escoltá-lo. Ora, ao avistar
um destes, o comandante do navio por-

e um espião português
tuguês cometeu o erro fatal de comuni-
car ao resto da frota, via rádio, que o tinha
visto. Face à comunicação, o submarino
emergiu e rapidamente afundou o lugre,
Sinais que mostravam a neutralidade dos navios, com disparos de artilharia. A ação foi rá-
pida e trágica: só 11 homens conseguiram
negociados com a Alemanha, nem sempre resultaram escapar, fazendo-se ao mar em pequenos
dóris. Foram, mais tarde, avistados por
um avião e recolhidos por um navio ame-
ricano, que os levou para os EUA, de onde
partiram depois para Portugal.
O terceiro e último navio português a
ser afundado foi o lugre-motor “Delães”.
Neste caso, o submarino “U-96”, que es-
coltava navios alemães, avistou-o, e o ca-
pitão Hellrigel convenceu-se de que o na-
vio de pesca à linha estava a emitir sinais
ASDIC (sonar), afundando-o também a
tiros de artilharia. Felizmente, não houve
baixas humanas, mas ficou sempre por
esclarecer se a causa era suficiente para
afundar um navio de um país neutro.
Um incidente de outra natureza en-
volveu o navio-hospital “Gil Eannes” (o
primeiro, que havia sido um dos navios
alemães apresados por Portugal, em 1916,
028 no âmbito da I Guerra Mundial). Gastão
de Freitas Ferraz, um antigo operador da
Marconi, havia sido recrutado pelos ale-
mães, em Lisboa, e, colocado a bordo do
“Gil Eannes”, informava a Marinha de Hi-
tler das movimentações de navios que
podia observar no Atlântico Norte. Sus-

A
peitando de mensagens que haviam in-
neutralidade não pôs Por- Desenho tercetado, os serviços secretos britânicos
tugal à margem da II Guerra de Imprensa, revistaram o navio-hospital português,
Mundial. Nenhum país dei- reconstituindo o durante uma escala deste em St. John’s.
xou de ser afetado. E tam- afundamento do Todavia, a operação não deu em nada, e o
bém a Frota Branca (além de lugre “Delães”. navio acabou por partir, ainda com o es-
ser branca, justamente, devido ao acor- Todos os tripulantes pião a bordo.
do negociado com a Alemanha – publi- escaparam, a bordo Navegando de regresso a Portugal, o
camos adiante o texto de um documento dos pequenos dóris “Gil Eannes” seguia na cauda de um com-
de trabalho, que consta do arquivo de Oli- boio naval que, aparentemente, ruma-
veira Salazar e está na Torre do Tombo) va à Escandinávia, mas que, na verdade,
sentiu diretamente o conflito: três navios transportava as forças aliadas que iriam
foram afundados pelos famigerados “U- invadir o Norte de África. Com permissão
-Boot” (submarinos) germânicos. das autoridades portuguesas, os ingleses
O primeiro foi o pequeno cargueiro intercetaram o navio-hospital, captura-
“Catalina”, do Porto. Foi torpedeado em ram Gastão Ferraz, levaram-no para Gi-
1942, tendo o comandante alemão justifi- braltar e daí para Londres, onde acabou
cado a ação com o facto de não ter identifi- por confessar tudo. Não chegou a ter tem-
cado os sinais distintivos a 200 metros de po, nem a perceção, de avisar os alemães
distância. Afundou-se com toda a tripu- de que o comboio tinha África como des-
lação a bordo. tino. Se o tivesse feito, poderia, even-
A segunda baixa foi o lugre de três tualmente, ter mudado o rumo da guer-
mastros “Maria da Glória”, que viajava da ra. Quanto ao espião, foi libertado muito
Terra Nova para a Gronelândia, onde fa- perto do fim do conflito e deportado pa-
ria a pescaria de verão. O couraçado “Bis- ra Portugal.

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Documento
Negociação entre Portugal e a Alemanha

ggg
Em aditamento à minha Nota de…... do corrente, c) Zona ou bancos de pesca donde regressam.
tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Exª. que, 5 – As autoridades marítimas portuguesas comuni-
tornando-se essencial para a vida económica da Na- carão diàriamente à Legação da Alemanha em Lisboa
ção enviar navios portugueses pescar bacalhau aos a posição observada ou estimada de qualquer dos gru-
bancos da Terra Nova e Goenlândia, e, no intuito de re- pos, durante a sua travessia do Atlântico.
duzir na medida do possível os riscos a que os mesmos 6 – Para a fécil identificação, por parte das forças
estão sujeitos em virtude do desenvolvimento das hos- das potência beligerantes, dos navios que constituem
tilidades no Atlântico, resolveram as autoridades por- a frota bacalhoeira, foram adoptadas as seguintes me-
tuguesas competentes sujeitar aquela frota pesqueira didas:
às disposições seguintes: Iº grupo – Costado pintado a preto com as cores da
1 – Os navios portugueses que se destinam à pes- bandeira nacional em cada uma das amuras. Em letras
ca do bacalhau serão divididos, de acôrdo com as suas pintadas a branco figurará também no castado o nome
possibilidades de andamento, em quatro grupos a se- do navio e a palavra «Portugal».
guir descriminados: Superestruturas, ponte e mastros serão pintados de
Iº grupo – Constituído por 4 arrastões a motor com amarelo torrado (ocre).
velocidade média de 7 nós e equipados, cada um, com A chaminé apresentará também as côres da ban-
um posto de T.S.F. e respectivo telegrafista; deira nacional.
IIº grupo – Constituído por navios de vela, providas IIº IIIº e IVº grupos – Costado branco com as cores da
de motores auxiliares, que podem manter uma veloci- bandeira nacional nas amuras. Em letras a preto figu-
dade média de 7 nós, quando navegando a motor em rará também no costado o nome do navio e a palavra
condições normais de tempo e equipados com um pe- «Portugal».
queno posto de telefonia que é manejado pelo capitão; Os mastros serão pintados a amarelo (ocre ou côr de
IIIº grupo – Constituído por navios de vela sem mo- madeira com os galopes em branco. 029
tor auxiliar. Os sinais de identificação referidos para todos os
2 – Os navios do 1º. Grupo dispondo de facilidades de grupos bem como as côres da bandeira nacional apre-
comunicações radiotelegráficas poderão fazer a tra- sentadas ainda nas superestruturas, quer horizontal,
vessia do Atlântico, não em conjunto, a-fim de evitar quer verticalmente, serão bem iluminados durante a
possíveis confusões, mas conservando entre eles um noite.
intervalo de algumas milhas. 7 – Os navios serão abastecidos de combustível e
Os navios dos outros grupos, dispondo de rudimen- mantimentos necessários para a viagem redonda, de
tares meios de transmissão, serão acompanhados du- forma a evitar comunicações com terra estranha.
rante a travessia por unidades da marinha mercante 8 – A partida de qualquer navio nacional, do comér-
nacional (...) que disponham dos meios necessários pa- cio ou de pesca, para a Terra Nova ou Groenlândia, a-
ra o estabelecimento das comunicações (...). -fim de carregar e transportar o bacalhau ali adquiri-
3 – A partida de qualquer dos grupos dos portos do do por compra para o Continente português, será ob-
Continente português para a campanha de pesca na jecto de notificação especial à Legação da Alemanha
Groenlândia e Terra Nova será comunicada à Legação e ao mesmo serão aplicadas as disposições que regu-
da Alemanha em Lisboa com a antecedência mínima lam as viagens dos navios do comércio para os portos
de três dias, (...) com as seguintes indicações: da América do Norte.
a) Nomes dos navios que constituem o grupo e do 9 – Para a pesca efectuada pelos barcos de arrasto
navio de acompanhamento; na região de Cabo Branco mantêm-se as disposições já
b) Data da partida; tomadas, isto é, os navios seguem todos a mesma der-
c) Zônas ou bancos de pesca para onde se dirigem. rota, utilizam apenas o seu posto de telefonia para a co-
4 – A partida de qualquer dos grupos das regiões de municação de qualquer mensagem urgente e trans-
pesca da Terra Nova ou Groenlândia, na viagem de re- portam o combustível necessário para a viagem de ida
gresso a Portugal, será comunicada à Legação da Ale- e volta.
manha em Lisboa com a antecedência possível e não Os sinais de identificação adoptados para êstes na-
inferior a três dias, (...) com as seguintes indicações; vios são iguais aos dos arrastões que constituem o pri-
a) Nomes doa navios que constituem o grupo e do meiro grupo da pesca do bacalhau; porém, no costado,
navio de acompanhamento; além do nome do navio e da palavra «Portugal» figura
b) Data da partida; também a indicação «barco de pesca».

ARQUIVO DE OLIVEIRA SALAZAR / TORRE DO TOMBO

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“Fui para a pesca


do bacalhau para me casar”
Vitorino Ramalheira, capitão de navios bacalhoeiros,
andou na Faina Maior de 1951 a 1969 e foi imortalizado em
documentário canadiano
Texto de Pedro Olavo Simões

Q
uando o cavalheiro de 86 destino, mas Vitorino Ramalheira não se Terra Nova. Um curto-circuito nos ge-
anos, porte altivo e pas- arrepende de ter andado pela Gronelân- radores terá sido a causa. “Estávamos a
030 sada ligeira, se aproxima, dia e pela Terra Nova entre 1951 e 1969: pescar de noite e havia gambiarras ace-
tentamos logo descobrir “Tenho muito orgulho nisso”. sas ao longo do costado”, lembra, admi-
nele os traços do capitão A primeira circunstância que o levou tindo que terá sido a sobrecarga a causar
Vitorino Ramalheira que para o bacalhau foi o facto de o pai, João o acidente. Vitorino Ramalheira como-
se tornou conhecido em 1966, quando Pereira Ramalheira, ser comandante do ve-se ao contar essa história, não apenas
o documentário canadiano “The whi- navio-hospital “Gil Eannes” no momen- por se tratar do primeiro navio que co-
te ship” foi filmado a bordo do lugre que to em que deixou a Escola Náutica, o que mandou, mas porque a perda do mesmo
então comandava, o “Santa Maria Ma- lhe facilitou a entrada nesse navio co- significou o desmantelamento de “uma
nuela”, usando boina basca e fumando, mo terceiro piloto. Depois, ainda esteve tripulação fantástica”: “Capitão, navio e
de olhos postos no horizonte e ouvidos dois anos na marinha mercante, a bordo companha formavam uma boa equipa”.
no rádio. Os traços estão lá, sim, redese- do “Horta”, um navio novinho em folha Mas, como se disse, são mais as boas
nhados por meio século. Também o na- adquirido no âmbito do “Despacho 100” histórias, começando pela primeira via-
vio foi redesenhado pelo tempo, mas em (Plano de Renovação da Marinha de Co- gem do capitão Ramalheira como co-
sentido inverso: depois de se tornar uma mércio, 1945), mas uma segunda cir- mandante. Saiu do Porto para Lisboa,
ruína ferrugenta, o “Santa Maria Manue- cunstância haveria de o levar de novo à onde se abasteceu, e, daí, rumou ao gran-
la” foi restaurado, renasceu e navega ho- pesca longínqua: “Resolvi ir para a pes- de banco da Terra Nova. “Estavam lá os
je pelos sete mares, servindo propósitos ca do bacalhau para me casar”. navios todos”, recorda, e, ao que parece,
turísticos (com participação ativa dos Pragmatismo, portanto. “Conseguia a pescaria estava fraca. Pelo rádio, quei-
passageiros na vida a bordo), mas evo- ganhar, em seis meses, 40 contos, o que xavam-se os capitães dos restantes na-
cando sempre a Faina Maior. era bom”, diz, admitindo que talvez não vios de não estarem a conseguir pescar
Irmão gémeo do “Creoula”, desde contasse com o que viria a seguir: “En- mais de 30 quintais por dia (um quintal
1987 Navio de Treino de Mar operado pe- feiticei-me com a pesca do bacalhau”. corresponde a 60 quilos). Daí que Rama-
la Marinha de guerra portuguesa – fo- Mas o verdadeiro feitiço surgiria quan- lheira tenha prosseguido o rumo para
ram construídos nos estaleiros navais do Vitorino Ramalheira ficou ao serviço outra zona, e a companha apanhou, logo
da CUF, em 1937 –, o “Santa Maria Ma- da Companhia de Pesca Transatlântica, no primeiro dia, 180 quintais. No seio da
nuela” marcou o fim da experiência ba- um armador do Porto, na qual, em 1960, frota bacalhoeira, os capitães falavam
calhoeira deste capitão de Ílhavo, que só passou de imediato do “Condestável” a uns com os outros, muitas vezes inven-
então cumpriu o sonho de comandar na- capitão do “Aviz”, lugre com motor que tando códigos (ou formas discretas) pa-
vios da marinha mercante e viajar pelo lhe deu as maiores alegrias, mas, tam- ra comunicar que a pescaria estava boa
mundo. A pesca do bacalhau, que lhe es- bém, a mais dolorosa viagem de que tem em determinada localização. Assim fez
tava nos genes (o avô e o pai andaram por memória, quando o perdeu, para um in- então com um cunhado, que estava num
lá), foi algo que se impôs quase como um cêndio, nas Virgin Rocks, ao largo da outro navio, chamando-o, mas evitan-

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nados a barra, vindo depois a ser resga-


tados no mar. Ora, o “Aviz” foi a exceção:
as amarras que o prendiam a terra, no
cais de Massarelos, rebentaram, mas a
âncora, lançada a meio do rio, manteve-
-se firme, e o comprimento do cabo era
o suficiente para que o “Aviz” fosse ba-
lançando de um lado para o outro, sem
chegar a bater nas margens. “Lembro-
-me de ter ido com o armador, de Pors-
che, para a zona dos pilotos, na Canta-
reira, para que fôssemos dos primei-
ros a ser levados para recuperar o navio,
mas ele não aparecia: foi o único que se
aguentou ali.”
Vitorino Ramalheira fala com ternu-
ra da emoção que era “andar num navio
à procura do peixe” e recorda-se apenas
de “uma viagem muito má”, justamente
aquela em que perdeu o “Aviz”. Mau foi,
também, o único momento em que per-
deu um homem, mas essa é uma memó-
ria de mais difícil acesso. Foi um aciden-
te, manobrando velas à proa, que cau-
sou a morte de Dionísio Esteves, de Vila
Praia de Âncora. A situação tornou-se
ainda mais marcante por ter ficado re-
gistada no documentário atrás referi-
do, filmado por Hector J. Lemieux. Su-
põe-se que a morte se deveu a lesões in- 031
ternas, cujo diagnóstico não foi possível
a bordo, e pela consequente falta de as-
sistência. No início, o pescador queixa-
va-se de dores e ninguém percebeu a
gravidade da situação (“não íamos vol-
tar atrás com um homem dorido”, desa-
bafa Ramalheira). O navio seguiu o seu
rumo em direção à Terra Nova, e Rama-
lheira sustenta que a decisão foi tomada
após avaliação feita em conjunto com o
enfermeiro do navio. Dionísio jaz num
cemitério de St. John’s, e a sua história
está na origem do documentário “Spe-
cial – a Um Mar de Distância”, que se en-
contra em fase de produção (ver artigo
mais adiante).
Em 1969, Vitorino Ramalheira foi pe-
la última vez ao bacalhau. Seguiu-se a
LEONEL DE CASTRO / GLOBAL IMAGENS
carreira com que inicialmente sonhara,
na marinha mercante, mas não por de-
do que o resto da frota se apercebesse e ser contada aconteceu com o navio em masiado tempo. Em 1983, a marinharia
para ali rumasse, estragando-lhe a pes- casa. Em janeiro de 1962, os navios da deixou de fazer sentido – “os meus filhos
caria. E as coisas continuaram a correr Companhia de Pesca Transatlântica es- estavam casados e a minha mulher es-
bem, tanto ali como, depois, nos mares tavam atracados na cidade do Porto. E foi tava sozinha em casa” – e reformou-se.
da Gronelândia. Ao cabo de cinco meses por essa altura que se deu uma das mais Voltou à região natal e passou a entreter-
e meio no mar, o “Aviz” regressou a Por- fortes cheias do Douro de que há memó- -se com a agricultura, mas nunca o co-
tugal com os porões cheios, carregando ria, não só pelo nível a que subiram as ração deixou de bater mais forte quando
dez mil quintais de bacalhau (600 tone- águas, mas, também, pela violência da se lembra da pesca do bacalhau. Não há
ladas): “Entrei com o pé direito na pesca correnteza. O resultado foi que muitos semana em que não vá ao Museu Maríti-
do bacalhau”. barcos se afundaram, encalharam nas mo de Ílhavo, onde é guardada a memó-
A outra história do “Aviz” que merece margens ou, ainda, passaram desgover- ria desses tempos gloriosos.

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

A doença
terminal
do navio-
-hospital
António Trabulo foi médico
no “Gil Eannes”, em 1970
e 1971, testemunhando o
período de definhamento
da Frota Branca
Texto de Pedro Olavo Simões

032

N
À distância ão é extraordinário di- los “mares do fim do mundo”, assim
de 45 anos, António zer que o “Gil Eannes” fo- lhes chamou Bernardo Santareno, al-
Trabulo recorda com ram dois, comuns são os ter-ego literário de António Martinho
boa disposição uma casos de novos navios re- do Rosário, também ele médico a bor-
experiência que nele batizados com o nome do do “Gil Eannes”.
deixou a paixão pe- de outros entretanto perdidos. Mas é António Trabulo, neurocirurgião
lo mar curioso lembrar que o primeiro a re- hoje reformado, também se aventu-
ceber esse nome, comum aos dois na- ra nas lides literárias e brinca com a
vios-hospitais que deram assistên- coincidência: “Falta fazerem um tra-
cia à frota bacalhoeira, era uma das balho sobre os médicos escritores que
embarcações alemãs apresadas por andaram no ‘Gil Eannes’, ou seja, o
Portugal em 1916, daí resultando ofi- Bernardo Santareno e eu”. Diz isso rin-
cialmente a nossa entrada na Grande do, ciente de que o seu afã de contista
Guerra. Mas é do segundo, construí- ainda não o coloca ao nível do grande
do nos estaleiros de Viana do Castelo dramaturgo, mas não deixa de ser ver-
e posto a funcionar em 1955, que aqui dade. Tal como certo é o facto de, en-
vamos falar. Dele e de um dos últimos quanto Santareno navegou num navio
médicos que ali prestaram serviço pe- plenamente equipado e funcional, em

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O Noticioso

033

ORLANDO ALMEIDA / GLOBAL IMAGENS

1959, Trabulo já viajou, em 1970 e 1971, lha norma pela qual seis anos na pesca nasceu: é hoje um museu flutuante, em
num organismo moribundo: o Grémio do bacalhau significavam isenção do Viana do Castelo, e chegou a albergar a
dos Armadores de Navios de Pesca do serviço militar. pousada de juventude local.
Bacalhau já não tinha os meios de ou- A tantos anos de distância, Antó- “Foi ali que, pela primeira vez, fiz
tros tempos, e “o Tenreiro foi buscar os nio Trabulo admite que meteu uma medicina não tutelada”, conta, admi-
dois médicos mais baratos que havia”, “cunha” para ir para o “Gil Eannes”, mas tindo que havia muito pouco para fa-
isto é, médicos recém-formados, in- não foi isso que lhe valeu: “As cunhas zer. “Aquilo era gente saudável”, recor-
corporados no Exército e daí requisi- eram tantas, que eles foram à lista e es- da, para logo salientar que a vida dos
tados para a Marinha. colheram-me, por ser o primeiro clas- homens, nos navios de pesca à linha,
“Fui fazer a retaguarda do Impé- sificado. Meti uma cunha para um lu- “era uma escravatura”.
rio”, diz Trabulo, que cumpriu o servi- gar que era meu por direito!”. E assim No “Gil Eannes”, a vida era tranqui-
ço militar sem vestir farda, num tem- partiu para duas campanhas, a bordo la, com pouco que fazer, exceto quan-
po em que o comum era desaguar no do navio-hospital que, depois de de- do o navio aportava a St. John’s, pois
inferno da Guerra Colonial. Também sativado, esteve praticamente perdi- juntavam-se ali mais navios da fro-
os pescadores, maioritariamente “jo- do, sendo salvo após o estímulo que foi ta e apareciam mais doentes. Tam-
vens e saudáveis”, andavam ali, na- um alerta lançado pelo divulgador de bém sucedia que, quando a frota se
quele tempo, para fugir à carnificina História José Hermano Saraiva e ga- partia, um dos médicos (e o “Gil Ean-
de África: continuava em vigor a ve- nhando residência fixa no local onde nes” apenas tinha dois, nesse tempo)

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

embarcava num dos navios de pesca


à linha. Aconteceu a António Trabulo
quando esteve dois meses embarcado
no “Neptuno”. “Uma seca”, sintetiza:
“Só se podia falar com os oficiais. Os
pescadores estavam quase sempre no
mar, e não havia assuntos em comum.
Mas havia outro problema: os oficiais
eram todos de Ílhavo, tinham todos
mais dez anos do que eu e só falavam
de recordações da infância...”.
Para António Trabulo, o mar é “um
deserto líquido”, o mundo parado, a es-
pera da vida reencontrada num porto.
Porém, o mar meteu-se-lhe pelas en-
tranhas. Logo no início, teve de ir a ou-
tro navio ver um doente e, quando se-
guia num bote, apercebeu-se do que
era o mar lato: “De um lado, uma pa-
rede gigantesca, do outro, um buraco;
de repente, onde estava a parede apa-
recia o buraco”. Mas habituou-se. “Fiz-
-me marinheiro”, ri. “Desde então, tive
sempre barcos”.
Em casa, são mais os motivos afri-
canos do que os objetos ligados à ma-
rinharia. Uma outra faceta da vida
deste médico, um dos que viveram
o quase fim do “Gil Eannes”, dos que
034 testemunharam o desmantelamento
da frota. Na primeira campanha que
fez, a frota à linha tinha 31 navios. No
ano seguinte, já eram apenas 16. Tam-
bém o navio-hospital era uma sombra
de si mesmo. Nos tempos áureos, “ti-
nha as valências todas”, mas as cam-
panhas de António Trabulo eram de
serviço mínimo: das cerca de 70 pes-
soas que tripulavam o “Gil Eannes”, só
15 estavam afetas aos serviços de saú-
de: dois médicos, outros tantos enfer-
meiros e 11 auxiliares. Porém, “cada
navio da frota tinha enfermeiro e uma
farmácia minimamente provida”, o
que chegava para a generalidade das
encomendas. Depois, havia também
o contacto, via rádio, entre os médicos
do “Gil Eannes” e esses enfermeiros, o Médico cumpria era muito grande, dada a vocação do
que resultava numa espécie de exer- o serviço militar, navio. Mas assim fizeram, aportan-
cício de telemedicina, por muito que o mas nunca andou do em Grimsby, a sul de Hull, onde se
conceito fosse desadequado ao tempo. fardado depararam com uma greve de estiva-
Nesses anos em que Trabulo an- dores, que prolongou a estadia, e on-
dou embarcado, “o Grémio não tinha de quase houve um motim: “Era sabi-
dinheiro”. Já o percebemos, pelo que do que nos navios ingleses, quando o
o médico foi contando, mas uma últi- gin acabava, havia problemas. Nós,
ma história atesta isso melhor do que no ‘Gil Eannes’, tínhamos um carras-
qualquer outra. Numa das viagens cão, que se foi gastando. Quando já era
de regresso, o “Gil Eannes” foi usado pouco, o cozinheiro juntava-lhe água,
para levar um carregamento de cou- para evitar o problema, mas ali aca-
ves do Canadá para Inglaterra, apro- bou mesmo, e as coisas estiveram pa-
veitando o porão frigorífico, que não ra correr mal”.

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O Noticioso

Evocando Da experiência de Bernardo Santareno (pseudónimo literário de António Marti-


nho do Rosário) como médico na frota bacalhoeira, primeiro no arrastão “David
Melgueiro”, depois no navio-motor de pesca à linha “Senhora do Mar”, final-

Bernardo mente no navio-hospital “Gil Eannes”, surgiu a matéria-prima do que são, ain-
da hoje, as mais significativas abordagens literárias à pesca do bacalhau. Tan-
to mais pela circunstância de serem publicadas em pleno fulgor do Estado Novo

Santareno (Santareno andou embarcado entre 1957 e 1959) e de contrastarem vivamen-


te, pela descida à profundeza humana das personagens-tipo que encontrou na
frota, com o superficial e apologético discurso da propaganda, que desenha-
va uma ficção épica e nacionalista de continuadores dos descobrimentos, não
obstante haver muito de epopeia, de facto, nas vidas daquela gente.
A peça de teatro “O lugre” (Santareno foi, sobretudo, dramaturgo) e “Nos
mares do fim do mundo”, ambos publicados originalmente em 1959, são o
produto literário mais evidente dessa experiência do autor. E é o segundo
destes exemplos, um livro de crónicas escritas (ou inicialmente esboçadas)
a bordo, que agora volta a estar disponível, após longos anos em que perma-
neceu esgotado, como resultado de uma parceria entre a editora E-Primatur
e o Museu Marítimo de Ílhavo (que resulta na curiosidade de a obra resultar
em dois livros/objetos diferentes, o da editora, que se encontra no mercado,
e o do museu, cuja capa aqui reproduzimos.)
Dois textos inéditos, recuperados dos blocos de Bernardo Santareno e au-
sentes de todas as edições precedentes, não se sabe se por censura ou se
por autocensura, bem como fotos até agora desconhecidas do autor, capta-
das a bordo dos navios onde andou embarcado, são atrativos suplementa-
res desta reedição, cujo prefácio crítico, pelo historiador Álvaro Garrido, que
a considera “uma bela notícia para a cultura portuguesa”, constitui o enqua-
dramento perfeito da obra no contexto de todo o material apologético que ao
tempo era produzido, mas conduzindo-nos a uma desconcertante conclu-
são: também “Nos mares do fim do mundo” acaba por se integrar na gesta
dos bacalhoeiros, apenas com uma nova perspetiva, a daquele que distingue 035
os heróis pelas marcas únicas da intimidade e da psicologia.
A par da publicação do livro, o Museu Marítimo de Ílhavo desenvolveu um
projeto de teatro comunitário, em torno da peça “O Lugre”, e acolhe, até 24
de julho, a exposição “Bernardo Santareno, um médico na frota bacalhoei-
ra”, montada com a colaboração do Museu Nacional do Teatro e da Dança, do
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, da Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra, da Fundação Mário Soares e da editora E-Primatur.

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

Filme resgata memória


dos que se perderam longe
Cineasta e jornalista inspirados pelas próprias histórias familiares
Texto de Pedro Olavo Simões

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O Noticioso

Abel Coentrão
(esquerda) e Pedro
Magano, fotogra-
fados em St. John’s,
junto ao famoso pai-
nel em que é evoca-
da a presença dos
bacalhoeiros portu-
gueses

O
s acasos juntaram qua-
tro vontades e construí-
ram uma história. Pedro
Magano, cineasta natu-
ral de Ílhavo, terra dos
capitães, começou a preparar um fil-
me sobre os homens que haviam per-
dido a vida na pesca do bacalhau, fi-
cando sepultados lá longe. Abel Coen-
trão, jornalista natural das Caxinas
(Vila do Conde), terra de pescadores,
andava a investigar o mesmo tema.
Jean Pierre Andrieux, um erudito lo-
cal de St. John’s, na Terra Nova, estava
a promover uma homenagem a esses
homens. Celestino Ribeiro, pescador
de Vila Praia de Âncora, amigo de Dio-
nísio Esteves, a vítima mortal em torno 037
da qual a narrativa se desenvolveu, en-
trou também na equação e tornou-se a
personagem principal do documentá-
rio “Special – a Um Mar de Distância”,
que está ainda em produção e consti-
tuirá um novo marco essencial na me-
mória da Faina Maior.
Pedro e Abel, em diferentes cir-
cunstâncias, cresceram com as his-
tórias do bacalhau e tiveram familia-
res embarcados nessas longas campa-
nhas. Daí que, cada um à sua maneira,
tenham desenvolvido a necessida-
de de contribuir para a memória. “Es-
ta vontade existia, mas eu tinha de en-
contrar um tema transversal, e foi o
Nuno Miguel Costa [investigador do
CIEMar – Ílhavo], um amigo de infân-
cia, que me sugeriu este tema. Entre-
tanto, a história do Dionísio impôs-se
por haver a filmagem”, explica o rea-
lizador, que foi alertado pelo mesmo
amigo para um artigo que o jornalista
(agora co-autor do guião) havia escrito
para o “Público”, onde trabalha.
A filmagem a que Magano se refe-
re, e que surge referenciada noutras
passagens desta edição da “JN Histó-
ria”, é o documentário feito pelo cana-
diano Hector Lemieux a bordo do lu-
gre “Santa Maria Manuela”, em 1966,
HELENA FLORES / PIX BEE

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

lho desse pescador embarcou no mes-


mo navio, mas uma doença pulmonar
fez com que fosse transferido para o
“Gil Eannes”. Ora, estando o navio-
-hospital perto de Holsteinsborg, um
grupo de tripulantes desembarcou
com “uma missão muito bonita”: mu-
nidos de pincéis e tinta, foram ao cemi-
tério preservar as sepulturas dos por-
tugueses, o que permitiu ao filho de
Zé da Ferrucha ser fotografado junto à
campa do pai, regressando a Portugal
com essa trasladação simbólica mate-
rializada na imagem.
Não há uma ideia fiel de quan-
tos pescadores portugueses morre-
ram na Faina Maior. Um em cada mil,
um em cada campanha, um em cada
ano... Saber isso é um trabalho de ga-
rimpo que se vai desenvolvendo junto
na viagem em que um acidente aca- Na II Guerra Mundial, das comunidades. “Os pescadores na
bou por causar a morte de Dionísio Es- os navios tinham de pesca do bacalhau foram sempre en-
teves. O mesmo Dionísio cuja sepul- usar a identificação co- tendidos como peças de uma engre-
tura, com recurso às ditas filmagens, mo aqui se mostra, nagem muito mais importante: o in-
havia sido localizada, em St. John’s, e mas foi em três afun- teresse nacional”, diz Abel Coentrão.
junto à qual iria ser prestada home- damentos perpetra- “Saíam daqui como uma espécie de
nagem, com inauguração de um me- dos pelos alemães que extensão dos Descobrimentos, mas,
morial, a todos os pescadores da Frota mais portugueses se assim que morressem lá, a pátria não
Branca desaparecidos no Noroeste do perderam para sempre os trazia: era o fado, o destino”, com-
038 Atlântico, missão essa a cargo de Jean pleta Pedro Magano.
Pierre Andrieux, estudioso da pes- O apoio da RTP, que transmitirá es-
ca do bacalhau e amigo de Portugal. O ta produção da Pixbee (ainda sem da-
puzzle seria completado com a partici- ta prevista para a estreia), foi essencial
pação de Celestino, hoje um bom con- para a viabilizar, assim como o envol-
tador de histórias que, em 1966, era o vimento dos três municípios relevan-
“verde” (pescador na sua viagem inau- tes para a história que ali se conta: Ca-
gural) que estava a cargo do “maduro” minha, Ílhavo e Vila do Conde.
Dionísio, tornando-se agora na perso- Neste momento, ainda se está lon-
nagem central deste documentário: ge de uma versão definitiva de “Spe-
foi com a equipa de filmagens à Terra cial – a Um Mar de Distância”. O final,
Nova testemunhar a tal homenagem e por exemplo, poderá ser uma narrati-
rezar junto à campa do amigo cuja me- va aberta. Como aberta será sempre
mória, 50 anos depois, ainda o lava em esta investigação. Até no que res-
lágrimas. Também Fernando Esteves, peita a Dionísio, que tinha 26 anos
irmão de Dionísio, deu o seu contribu- quando morreu, casara recentemen-
to, mas faleceu antes de poder ir, como te e deixara a mulher grávida em Vi-
desejava, a St. John’s. la Praia de Âncora. Ora, a mulher aca-
“Estes pescadores eram anónimos, bou por emigrar, refazer a vida longe
e o meu papel é dar-lhes um nome, José Francisco Marques, ou Zé da e dar uma outra família à criança que
um rosto”, nota Abel Coentrão, que to- Ferrucha, era um caxineiro rotinado ia nascer. Uma menina – vieram a sa-
da a vida, como caxineiro que é, con- na pesca à linha. “Um grande pesca- ber por um fortuito comentário no Fa-
viveu com “essa sensação do luto e da dor, habituado a encher o bote”, que, cebook, ao qual não conseguiram dar
morte no mar” e percebe bem o ras- num dia de 1962, traído por uma vaga, seguimento – que é agora uma mulher
gão emocional vivido por todos aque- morreu e só não foi ao fundo porque na casa dos 50 anos e poderá, pelo fil-
les a quem faltou um corpo para velar, teve tempo de amarrar o cabo do ba- me, saber algo sobre o pai que nun-
uma sepultura onde depositar uma lão ao pulso, daí que o corpo tenha si- ca conheceu, que nunca a conheceu.
flor. Daí que encare o filme como uma do resgatado e enterrado na Gronelân- Num filme diferente de tudo o que foi
forma de trasladação da memória pa- dia, em Holsteinsborg, hoje Sisimiut. feito até agora, rodado mais ao nível
ra Portugal, algo que verificou ser pos- “Não fez isso para sobreviver, mas pa- dos homens, pensado mais em função
sível com uma outra história, passada ra ser sepultado”, diz Abel. Só que a his- da psicologia dos pescadores do que
na Gronelândia. tória não acaba aí. Um ano depois, o fi- da glória das pescarias.

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O Noticioso

Cruz negra A campanha de 1954 foi a última do “Gil Eannes” original, um antigo cargueiro
transformado em navio-hospital. Havia prestado à frota portuguesa, ao longo

assinala
de 28 anos, um precioso serviço, sendo originalmente operado pela Marinha,
mas transitando, depois, para o Grémio dos Armadores dos Navios de Pesca
de Bacalhau. Normalmente, na viagem de ida, levava um carregamento de sal.
um nome Finda a campanha, deslocava-se a Harbour Buffet (uma comunidade entretan-
to deslocalizada), na baía de Placentia, ou a outros portos pequenos, onde re-

esquecido colhia cargas de bacalhau salgado. Numa dessas visitas, o “Gil Eannes” leva-
va a bordo o corpo de um pescador português morto durante a campanha. O ho-
mem foi enterrado junto à igreja católica de Port Royal, e uma cruz negra foi
colocada a marcar o local da sepultura. Depois disso, todos os anos, tripulan-
tes do “Gil Eannes” iam lá pintá-la. No início dos anos 60, todos os habitantes
abandonaram esta ilha isolada na baía de Placentia, mas assumiram entre eles
o compromisso de reabilitar o pequeno cemitério. A cruz negra mantém-se lá,
em pé. Jerome Hann, hoje pároco numa freguesia de St. John’s e natural de Port
Royal, lembra que o pároco servia de forma itinerante aquela e outras comuni-
dades isoladas, pelo que não há qualquer registo que permita saber a identida-
de do português sepultado junto à negra cruz. JPA

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

Homens que
E
xiste uma casa habitada pela
memória da pesca do baca-
lhau, o que torna impossível

foram ao bacalhau
abordar o tema com serie-
dade sem passar pelo Museu
Marítimo de Ílhavo, mas também é ver-
dade que essa casa entra, cada vez mais,

visíveis em pelas casas de todos nós, via Internet: o


portal “Homens e Navios do Bacalhau”,
que estará a funcionar em pleno a partir

todo o mundo de agosto, torna o mais completo repo-


sitório do que foi a Faina Maior, ao lon-
go do século XX, consultável a partir dos
quatro cantos do mundo.
Museu Marítimo de Ílhavo prepara Faz sentido que assim seja. Se há por-
tugueses um pouco por todo o lado, por
portal dinâmico, que funcionará como todo o lado há, também, gente com algu-
uma “rede social da memória” ma ligação, sobretudo familiar, a uma
atividade que, por via das políticas de-
senvolvidas pelo Estado Novo, empre-
gou muitos milhares de pessoas. São
cerca de 21 mil os registos de inscrição
marítima na posse do Museu Marítimo
de Ílhavo, que em 1994 incorporou nos
seus fundos dois preciosíssimos arqui-

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O Noticioso

vos, o da Comissão Reguladora do Co- os investigadores, por exemplo) possa As fichas disponíveis podem ser ad-
mércio do Bacalhau e o do Grémio dos facilmente aceder à informação. O que quiridas, em formato digital, com va-
Armadores dos Navios de Pesca do Ba- há de novo é a transição deste site pa- riantes em termos de tamanho e de re-
calhau. Materialmente, isso representa ra um portal dinâmico, alimentado pe- solução (a digitalização mais simples
fichas de todos os homens e navios que los investigadores do CIEMar, mas tam- custa dois euros, sendo possível adqui-
andaram na Faina Maior, de 1937 a 1974. bém pelos familiares dos pescadores e rir, por 15, um formato com qualidade
Nuno Miguel Costa, técnico do CIE- marinheiros e pelas comunidades. para impressão fotográfica), e as fichas
Mar Ílhavo, subunidade do Museu Marí- “Não podemos ter a ambição de ser- têm siguido para muitos países, com
timo dedicada à investigação nas áreas mos só nós a trabalhar esta informa- destaque para Canadá, França e Brasil.
de História Marítima, Antropologia Ma- ção”, nota Nuno Miguel Costa, expli- Estes ficheiros estiveram na base
rítima, Geografia Marítima e investiga- cando que o futuro está na criação de de uma exposição itinerante promovi-
ção pluridisciplinar sobre conteúdos e uma espécie de “rede social da memó- da pelo Museu Marítimo (“Portugal no
patrimónios materiais e imateriais re- ria”, em que, por exemplo, as pessoas Mar - Homens que foram ao bacalhau”)
presentados no museu, fala no “cariz possam submeter informação que não e coordenada pelo historiador Álvaro
memorial muito forte” destes arquivos, faz parte das fichas (a que está contida Garrido, em que grandes painéis mos-
e no esforço que se tem feito para os dis- nas cédulas marítimas, por exemplo) travam rostos disponíveis nas fichas. A
ponibilizar desde 2003, quando come- ou, ainda, promover hiperligações en- forma como a mostra foi recebida nas
çaram a surgir “alguns projetos de par- tre fichas, tornando visíveis os laços fa- comunidades, com tantos a identifica-
tilha patrimonial desses documentos”. miliares entre gerações de pescadores, rem os seus, foi um forte estímulo à re-
A página de Internet tem dois eixos oficiais e outros. Além dos dados, tam- cuperação de uma memória cujo trata-
essenciais: homens e navios. Numa pri- bém poderão ser enviadas fotos ou fil- mento é urgente, pela lei da vida: tratan-
meira fase, tem passado pela digitaliza- mes, que passarão a estar disponíveis do-se a pesca à linha de uma atividade
ção e restauro de fichas, bem como pe- desde que considerados relevantes e que parou em 1974, importa não perder
lo tratamento da informação, de modo depois de o museu assegurar os direitos tempo na recolha do património teste-
a que qualquer pessoa (os familiares ou de cedência. munhal de quantos nela participaram.

041

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

042

Imagens Do encontro entre o canadiano Jean Pierre Andrieux e Abel


Coentrão, que preside à Bind’ó Peixe - Associação Cul-
Diapositivos
feitos por Paul

inéditas de
tural, cuja ação está centrada em Caxinas e Poça da Bar- Anna Soik podem
ca (Vila do Conde), nasceu o desenvolvimento de uma ex- ser apreciados até
posição recentemente inaugurada no Museu Marítimo de outubro no Museu

portugueses Ílhavo, onde permanecerá até 23 de outubro. Sob o títu-


lo “St. John’s, porto de abrigo – a frota branca de Paul A.
Soik”, a mostra é baseada em diapositivos da autoria de
Marítimo de Ílhavo

na Terra Paul Anna Soik, americano que se fixou na Terra Nova e


que, a par da atividade comercial enquanto desenhador e

Nova
fotógrafo, desenvolveu uma paixão pela Frota Branca, re-
gistando a presença de navios e homens. Dada a natureza
do suporte original, destinado a ser projetado, as reprodu-
ções agora expostas em Ílhavo estão montadas em caixas
de luz e constituem, também, a ponte para reproduções de
óleos pintados pelo autor, a partir do seu trabalho fotográ-
fico. Numa sala à parte, o trabalho de Soik está em proje-
ção permanente, com comentários de um dos pescadores
que ele fotografou, em finais da década de 1960.

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O Noticioso

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O Noticioso
SABOR DA HISTÓRIA

Identidade
portuguesa
Hélio Loureiro
Chefe de cozinha
não prescinde
do “fiel amigo”

M
Da revolução alimentar undialmente apreciado e,
por variadíssimas razões,
044 dos navegantes tão português, o bacalhau
à presença obrigatória é servido, em mais de mil
e uma maneiras, à mesa de
nas mesas natalícias, uma história milenar. Há
registos da existência de fá-
o bacalhau salgado bricas para processamento deste peixe (o Ga-
e seco encontrou dus morhua, se falamos da espécie atlântica), na
Islândia e na Noruega, que remontam ao sécu-
uma pátria gastronómica lo IX. Terão sido os vikings, navegantes dos ma-
bem longe dos sítios res do Norte, onde ele abundava, os pioneiros no
consumo e tratamento deste peixe: não tinham
onde é pescado sal, mas secavam-no ao ar livre, até que perdes-
se um quinto do seu peso, ficando duro como
uma tábua de madeira e assim sendo consumi-
do, aos pedaços, nas longas viagens.
Ainda hoje os noruegueses o preparam as-
sim, embora prefiram consumi-lo fresco. E
mais: fazem do fígado um pitéu, contrariando a
imagem que dessa víscera há entre nós, por via
do óleo dela extraído, que nos fazia agonizar, em
colheradas servidas para compensar a má ali-
mentação e combater o raquitismo. Mas o que
interessa é o bacalhau seco e salgado, que terá
chegado até nós por obra dos bascos, que, no Ano
Mil, já o comercializariam. Tal produto consti-
tuiu uma verdadeira revolução alimentar: não
só o método de salgar e secar garante uma per-
feita conservação, como, também, potencia o sa-
Um terço da produção bor do peixe e confere uma nova textura, as las-
da Noruega tem como cas suculentas que se formam com a demolha.
destino, hoje em dia, as Nesta edição estão bem retratadas as vicis-
mesas dos portugueses situdes da relação de Portugal com o bacalhau,

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O Noticioso

BACALHAU
À BRÁS
400 G DE BACALHAU;
3 COLHERES DE SOPA
DE AZEITE;
400 G DE BATATA PALHA;
8 OVOS;
3 CEBOLAS EM MEIAS LUAS
MUITO FINAS;
1 DENTE DE ALHO PICADO;
2 COLHERES DE SOPA
DE SALSA PICADA;
PIMENTA PRETA;
24 AZEITONAS PRETAS
SEM CAROÇO.
Desfie o bacalhau e
demolhe-o em vá-
rias águas, até ficar
sem sal. Leve ao lu-
me uma frigideira
com o azeite , alho
picado e a cebola em
meias luas. Deixe
alourar ligeiramen-
te, junte o baca-
LEONEL DE CASTRO / GLOBAL IMAGENS
lhau desfiado e me-
xa. Deixe cozinhar
ao longo dos tempos, até chegarmos à situação to a sério por quem está no ramo. Tive oportu- por quatro minu-
atual, a de ser Portugal um país que importa a nidade, por exemplo, de visitar uma fábrica on- tos, envolva as ba-
maior parte do bacalhau salgado e seco que con- de o bacalhau era preparado em fresco. Chega- tatas e, por fim, os 045
some. E o nosso país, no que à vertente gastronó- va já esviscerado e era aberto, sendo retirada a ovos batidos. Dei-
mica do “fiel amigo” respeita, é uma referência espinha do meio, salgado com sal marinho e, de- xe cozinhar dois mi-
incontornável. Já em 1903 o famoso chefe de co- pois, seco em estufas de tecnologia portugue- nutos e retire do lu-
zinha francês Auguste Escoffier fazia notar isso sa. Esse toque luso permite, assim, a obtenção de me, para que fique
mesmo: “Devemos aos portugueses o reconhe- um peixe salgado de alta qualidade, segundo os bem cremoso.Tem-
cimento por terem sido os primeiros a introdu- nossos padrões, que faz a delicia dos mais aten- pere com pimenta
zir, na alimentação, este peixe precioso, univer- tos gourmets. preta, acrescente as
salmente conhecido e apreciado”. Ao longo do tempo, o bacalhau tornou-se azeitonas e a salsa
Foi ainda no século XV que o bacalhau se tor- apreciado pela generalidade dos portugueses, picada, coloque nu-
nou “português”, ao que ajudaram a necessida- mas nunca deixou de ter o rótulo de peixe pa- ma travessa e sirva
de de um produto não perecível, para as gran- ra os pobres. O tal “fiel amigo” que, longe de ser bem quente.
des viagens, e a forma como este peixe das águas um produto de luxo, era até usado para o cum-
frias mostrou ser o produto ideal, após muitas primento penitencial do jejum. E é daí que nas-
tentativas de conservação, por tais métodos, de ce, justamente, a tão arreigada tradição do baca-
espécies da nossa costa. Com os Corte-Real co- lhau de Natal, reminiscência de um calendário
meçou a ser traçado o caminho dos bancos da de dias de jejum e abstinência que, em determi-
Terra Nova, e em 1508 já o bacalhau representa- nadas épocas, ultrapassava em muito o período
va 10% do pescado comercializado em Portugal. quaresmal.
Ninguém come tanto bacalhau sec o salga- Ora, o que tínhamos era, portanto, um ali-
do como nós, e absorvemos um terço da produ- mento barato, sempre presente nas mesas das
ção da Noruega, o maior produtor mundial des- camadas populares, servido à sexta-feira, qua-
te produto, uma marca identitária de Portugal. se obrigatoriamente, e em dias de festa. Um ali-
Veja-se o que escreveu Eça de Queirós, em carta mento bem português que, todavia, nunca era
enviada a Oliveira Martins: “Os meus romances, usado em jantares oficiais, a avaliar pela ausên-
no fundo, são franceses, como eu sou, em quase cia de menções a este peixe nos menus de ban-
tudo, um francês – exceto num certo fundo sin- quetes, em ocasiões como as visitas de Estado.
cero de tristeza lírica que é uma característica Vá lá saber-se porquê. Um dia, recebi o ex-
portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, -presidente francês Giscard d’Estaing, que en-
e no justo amor do bacalhau de cebolada!”. carregou a secretária de me telefonar, dizendo
Como pude perceber, numa visita à Noruega, que só ficaria no meu hotel se lhe fizesse baca-
a importância do nosso mercado é levada mui- lhau à Brás … Assim foi. Ficou e comeu.

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O Noticioso
ENTREVISTA

“OS POLÍTICOS
NUNCA
CONSEGUIRAM
046
OU NÃO 047

QUISERAM
UNIR O PAÍS” José Mattoso
Aos 83 anos, voluntariamente alheado da vida pública, o mais
notório historiador português da atualidade abriu as portas de
casa à “JN História”. Falou da arte, dele próprio, dos que
o rodearam, de Portugal. Uma conversa em tom de entrega.
Textos de Pedro Olavo Simões e Luís Miguel Duarte
Fotografias de Leonardo Negrão / Global Imagens

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O Noticioso

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O Noticioso
ENTREVISTA

“SE A HISTÓRIA É PROPAGANDÍSTICA,


NEM CHEGA A SER HISTÓRIA.
É, PORTANTO, UMA MENTIRA”

048

S
e pedirmos à população mais doce e amável das pessoas, que os Não, eu não acredito em nada dessas
portuguesa para nomear acasos da vida e da sua demanda inte- coisas: a raça, o destino, a missão, a he-
um historiador, é mais rior transformaram numa espécie de roicidade, a gesta… É capaz de ser um
do que provável que Jo- herói acidental. país muito sofrido, onde as pessoas fa-
sé Mattoso surja entre as zem tudo para poder sobreviver, pa-
primeiras escolhas. Não Se lhe pedirmos, hoje, a identificação ra conseguirem sobreviver apesar de
porque todos partilhem deste país, qual é a ideia que primeiro tudo. Tentam responder ao que a vida
da erudição deste brilhante medieva- lhe ocorre? lhes pede. As respostas que o destino
lista, não porque ele próprio procure Um país à procura do seu destino. Não lhes deu nunca foram definitivas. É tu-
tal visibilidade. Pelo contrário, quem há meio de o encontrar. A Identifica- do uma cadeia…
nos recebe, no espartano apartamen- ção de um país, o livro que escrevi
to onde agora reside, perto de Lisboa, com esse nome, tenta apenas descre- Um país sofrido por via das circuns-
é o monge que nunca deixou de o ser, ver e compreender a primeira fase de tâncias ou por algo mais profundo?
é o eremita que nunca chegou a sê-lo. uma construção que vai por aí fora, Diria algo de mais profundo. Mas é tu-
Numa longa entrevista, cuja condução durante muitos séculos. Há coisas que do muito complexo. Entre os fatores
foi partilhada com outro medievalista, se perdem, outras que se ganham. A mais constantes apontaria para o fos-
Luís Miguel Duarte, Mattoso expõe as identificação nunca é definitiva. Por- so muito grande que sempre existiu
suas lúcidas reflexões sobre Portugal, tugal vai sendo... entre a base e os dirigentes, os que têm
a História, a historiografia, sobre ele o poder político e económico. Próximo
próprio e alguns daqueles com quem É a um destino coletivo que se refere? deste fator é, aparentemente, o de se
se cruzou. E revela-se, aos 83 anos, a A algo que nos falta? tratar de um país com poucos recursos

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O Noticioso

e, por isso, não poder corresponder às “O constante desfasamento lhadora”, à qual não dão condições su-
necessidades que atingem tanto o po- ficientes para ser tão produtiva como
der como o povo. Daí a sua permanen- entre o que esta [a seria necessário num mundo cada vez
te insatisfação. “massa trabalhadora”] mais tecnológico. O constante desfa-
samento entre o que esta consegue fa-
Somos ainda uma nação agarrada aos consegue fazer e o que zer e o que seria necessário torna-se
mitos do passado grandioso ou à ex- seria necessário torna- um círculo vicioso. Preenche-se o fos-
pectativa de uma redenção providen- so com o “desenrascanço” e não com
cial? Um povo congenitamente passi- se um círculo vicioso. a competência. Às vezes, com a frau-
vo? de. Vão aparecendo sempre os de boa
Houve setores da população que parti-
Preenche-se o fosso com o vontade, mas o seu número e a sua in-
ciparam de maneira diferente na His- “desenrascanço” e não com fluência não bastam para alterar o pa-
tória. Não acredito na crença unânime norama. Veja, por exemplo, a imensa
nos mitos atribuídos ao país em geral.
a competência.” discussão em torno do Ensino Secun-
Considero-os produto da propagan- dário, que continua ainda e não está
da. Mesmo aqueles que parecem mais perto de se resolver. Há uma imensa
permanentes são efémeros, fictícios. incapacidade para criar métodos pe-
Repito que não acredito em nada dis- dagógicos eficazes e os aplicar devi-
so: gesta nacional, missão, nada. As damente. Isto a propósito do fosso so-
circunstâncias é que levaram a reagir ciológico, que é apenas uma parte da
de uma certa maneira. Os portugue- fragmentação. O país não se fragmen-
ses tiveram de seguir aquilo que cada ta. Ele não consegue é unir-se. Não é só
ocasião, cada conjuntura, lhes propu- o poder central que não tem um pro-
nha. Ao dizer que sempre foi um po- jeto eficaz, lógico e fundamentado de
vo “sofrido“ queria dizer também que unificação, ou que não teve, na altura
lá se foi “safando” através de muito so- em que isso era preciso.
frimento.
De onde vem essa fragmentação?
A técnica do “desenrasca”… Acho que é um fenómeno estrutural. O
Sim, vão para o exílio, vão para Fran- país nasce da associação dos três blo- 049
ça, para África… Suportam tudo e so- cos identificados por Orlando Ribei-
brevivem. ro: o Portugal mediterrânico, o Portu-
gal atlântico e o Portugal continental.
Esses mitos que repudia, como a ges- Creio que os nossos reis perceberam
ta nacional, ainda se vendem muito sempre que era preciso unificar. Entre
bem pela propaganda… eles D. Afonso III, com projetos admi-
Das duas uma: ou acreditam neles, por nistrativos uniformizadores por todo
ingenuidade, ou sustentam-nos, para o país, depois continuados pelos reis
provocar a alienação do povo. seguintes. É o que se deduz por exem-
plo da tese de doutoramento de Luísa
Num artigo seu, republicado em “Por- Trindade, que estuda a planta das cida-
tugal – O sabor da terra”, fala num des na época de Afonso III.
“país feito de bocados que nada con-
segue unir” e numa “maioria que, Pegando na sua “Identificação de
mesmo com diplomas, não consegue um país”, não estará, no fundo, a di-
sustentar uma produção tecnologi- zer que se o primeiro volume, “Oposi-
camente competitiva e rentável”. Se a ção”, se nota, o segundo, “Composi-
batalha da qualificação, em Portugal, ção”, ainda está por fazer até ao fim?
tarda em ser ganha, o que poderá unir Exatamente. Mas haveria muito para
os tais bocados de que somos feitos? dizer ainda. Não há só a realeza com os
Os políticos, em Portugal, nunca con- seus projetos. Há também, por exem-
seguiram, ou não quiseram verdadei- plo, as ordens monásticas e conven-
ramente, unir o país. Isso tem que ver tuais. Os beneditinos mantêm-se no
com o que dizíamos há pouco acerca seu território, o Portugal atlântico; os
do fosso entre ricos e pobres. A classe cistercienses no território de charnei-
dominante (ou melhor, a minoria do- ra entre o Norte e o Sul. Mas quem cir-
minante) utilizou, muitas vezes, o pro- cula são os mendicantes, os francisca-
cesso do “dividir para reinar”, ou se- nos e os dominicanos. Todos eles con-
ja, para atingir os seus desígnios ou tribuem à sua maneira, não tanto para
as suas necessidades. Por um lado, há unificar, mas para complementar e
aquilo a que chamam a “massa traba- articular. Mas a “composição” nunca

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O Noticioso
ENTREVISTA

chegou ao seu destino. Isso vê-se, por “A História não é cional e comover com a “alma céltica”.
exemplo, no Sul, entregue às ordens Só por volta de 1920-1930 começam a
militares. As ordens militares admi- uma coisa pragmática. aparecer historiadores que sabem o
nistram os seus extensos territórios É um modo que é a crítica histórica.
como se fossem colónias. Não os de-
senvolvem, exploram-nos. Nada dis- de compreensão Portanto, os problemas começam aí?
to está, parece-me, devidamente es- do mundo. Há como que Sim, esses cronistas que referi não têm
tudado. Mas aqui não queria ser tão ca- noção da autenticidade, e isso é a ba-
tegórico. Conheço mal a investigação uma iluminação se da historiografia. Será que a Histó-
da época moderna e contemporânea, ria é credível?
por isso queria temperar as minhas in-
do historiador e do leitor.”
tuições. De qualquer maneira, pare- De que forma é que essas falhas con-
ce-me que tudo isto tem muito que ver dicionam o trabalho dos investigado-
com as dificuldades que o poder cen- res atuais?
tral tem tido nas sucessivas reformas O que eles têm, em primeiro lugar, é
dos municípios que tem tentado fazer. de cumprir a sua profissão, ou seja, se-
As reformas dos municípios surgem guir as regras profissionais, que os en-
quase sempre em tempo de ditadura... sinam a tirar partido dos documentos.
Isso não é uma particularidade portu- Li, recentemente, um artigo de um jo-
guesa. Os municípios nunca querem vem italiano que está a trabalhar so-
substituir os seus interesses pelos in- bre o mosteiro de Lorvão. Com grande
teresses do país. Há atitudes extrema- perspicácia, consegue, a partir de pe-
mente reacionárias dentro de países quenos indícios, tirar conclusões se-
progressistas, porque o que os parti- guras e resolver um problema difícil.
dos políticos que conseguiram ganhar A reação tipicamente portuguesa se-
as eleições na legislatura anterior que- ria formular uma hipótese verosímil
rem é manter-se no poder. e passar a considerá-la verdade. Mas a
História não é assim. É preciso situar
Nos anos 80, escrevia sobre o maior os dados documentais no tempo e no
050 fascínio pela História em “épocas de espaço, e facultar ao leitor, ipsis verbis,
uma certa dissolução dos sistemas de as palavras que considera indício do
valores”. Os 30 anos entretanto pas- facto histórico que analisa.
sados parecem ter aprofundado esse
vazio de valores. Concorda? Escreveu também que a totalidade do
Sim e não. O vazio pode endurecer as real só pode ser apreendida e trans-
exigências e inflacionar a repressão uma noção precisa das contradições mitida por processos como a elabo-
de doutrinas consideradas perver- sociais. Os cronistas seguintes, Zura- ração poética. Uma História estrita-
sas. Tenta-se preenchê-lo recorrendo ra, João de Barros, etc. não atingem o mente científica acaba por ser lacu-
à violência. mesmo nível, mas mantêm um domí- nar?
nio seguro da matéria histórica e sa- Não. Quero dizer que não é por pro-
Não sei se isso que está a dizer tam- bem transformá-la em texto. Por essa cessos racionais, pela lógica, nem pela
bém se sente por alguma adesão aos mesma época Frei Bernardo de Brito quantificação que se faz essa constru-
valores militares, que avulta em mo- faz da Monarquia Lusitana uma mis- ção. Em primeiro lugar colecionam-se
mentos em que se pensa que os valo- tura desconcertante de informações documentos, dados, materiais. Depois
res dominantes são o oportunismo, o objetivas acerca do passado clássico, faz-se a História, a partir deles, e com
egoísmo... de inflação retórica de acontecimen- rigoroso respeito pelo seu conteúdo.
Por isso, os fascismos defenderam tos cronísticos, e de patranhas piedo- Assim, escrita, a História é uma repre-
sempre valores de tipo militar. sas. Com mais ou menos condimen- sentação, não é a realidade. Costumo
tos, os cronistas das ordens religiosas dizer que não há História de Portugal.
Quando fala na “inferioridade histo- inventam milagres e multiplicam os Há a História do Mattoso, ou a História
riográfica portuguesa”, tal pode en- santos, mas esquecem ou secundari- do Oliveira Marques, ou a História do
quadrar-se no mesmo cenário da zam os acontecimentos. Perdem a no- Oliveira Martins... A um certo nível, a
manta de retalhos ou de um progres- ção da realidade. Ora, isto acontece representação não é a representação
so que não é linear? E o que é essa in- no mesmo momento em que Mabillon do real, mas do imaginário do autor.
ferioridade historiográfica? enuncia os fundamentos da crítica Parece um bocado contraditório com o
Simplificando, diria que a inferiorida- histórica. Passados duzentos anos, em que dizia há pouco. Mas uma coisa são
de historiográfica portuguesa corres- Portugal, o milagre de Ourique conti- os materiais, outra o edifício. É aqui, no
ponde ao barroco. No século XV, Fer- nua a crescer, a ganhar pormenores, a edifício, que entra o sentido poético.
não Lopes traça uma narrativa fasci- anunciar novos D. Sebastiões. No fim
nante, descreve as ações individuais do século XIX, Oliveira Martins ain- Ou seja, deve o historiador ter uma
e coletivas com um talento genial, tem da se deixa fascinar pela epopeia na- certa capacidade de assombramento

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O Noticioso

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para ter sucesso na busca da “espan- cações de uma ou muitas atitudes pa- suadir os outros com o seu discurso?
tosa realidade das coisas”? ra com a realidade. Mesmo de coisas
Sim, claro! A esse nível, é preciso re- simples, como, por exemplo, aquela É também por isso que mostra algum
correr à linguagem simbólica. Não sei lenda do arquiteto da Batalha, Afonso ceticismo em relação ao trabalho de
como se faz. É preciso frequentar os Domingues, que diz, já moribundo, “a divulgação?
poetas, os artistas, os contadores de abóbada não caiu... a abóbada não cai- Não sou nada cético. A História, se não
histórias, os contemplativos, os filó- rá”. A maneira como Herculano con- tem alguma coisa de comunicação, de
sofos, os pensadores…Sem metáforas, ta a lenda é muito mais eficaz do que divulgação, pode tornar-se numa es-
sem símbolos, não se consegue dar uma descrição qualquer. Há uma car- pécie de bizarria, como uma coleção
conta das contradições do real. ga emotiva naquilo: a generosidade de de selos. A verdadeira História é uma
um homem que se sacrifica. Há um ho- compreensão. As coisas tornam-se ló-
Volto a citá-lo: “Só me interessa o mem que acredita naquilo que fez, e is- gicas, tornam-se úteis, tornam-se sal-
presente e a maneira de me movimen- so é mais importante para o público do víficas, tornam-se amáveis... Mesmo
tar no espaço e no tempo em que vivo”. que uma informação acerca do nome quando a História nos horroriza com o
É essa a resposta à sempiterna ques- e da data. que o homem é capaz de fazer. A Histó-
tão “para que serve a História?”: criar ria é para ser comunicada.
uma chave de leitura do presente? A História sempre teve, e terá, uma
É, mas não diretamente. A História não vertente instrumental, ou propagan- Acaba, então, por ser um pouco como
é uma coisa pragmática. É um modo dística, que é mais facilmente assi- a literatura, que só se consuma quan-
de compreensão do mundo. Há como milável pelo público. É, por isso, uma do chega a um leitor, é lida e de algum
que uma iluminação (isto é tudo mui- ciência perversa? modo entendida?
to metafórico) do historiador e do lei- Se é propagandística, nem chega a ser Perfeitamente. Como a literatura.
tor, ou seja, do público, a quem ele co- História. É, portanto, uma mentira.
munica essa visão do mundo, e aí des- “Desporto” ou “aventura explorató-
cobre afinidades e duplos sentidos, Mas é vendida como tal... ria” são expressões que associou à
interpretações e significados, justifi- É evidente. Quem é que não quer per- tarefa do historiador. Há uma verten-

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O Noticioso
ENTREVISTA

te lúdica que escapa à perceção que viveu a época muito conturbada que se
o público tem dos intelectuais. É as-
“O pensador tem uma seguiu. Contava-se na família que um
sim? doutrina, uma tese, e quer irmão do bispo, também padre e su-
Eu já não acredito no papel do intelec- cessivamente pároco de várias paró-
tual, como no tempo do Sartre. Pri-
que toda a gente a tenha. quias, tinha sido alvejado a tiro por um
meiro, porque as ideias do intelectual Ninguém é capaz de republicano. Não sei o que se passou. O
são sempre discutíveis. Segundo, por- que eu sei é que esse tio de meu pai era
que quando se tenta pôr em prática as cumprir esse papel até às a pessoa mais bondosa e liberal que se
ideias do intelectual sai tudo errado. últimas consequências, pode imaginar. Conheci-o muito bem,
Mas hoje já não há intelectuais, neste já reformado e sempre a conversar
sentido. Temos ainda, digamos, uma senão teríamos de pensar com a gente da aldeia na sua casa de fa-
relíquia: o Eduardo Lourenço. Mas ele em Jesus Cristo ou numa mília, onde costumávamos passar as
é mais pensador do que intelectual. férias do verão. Com estes anteceden-
personalidade desse tes, não admira que meu pai fosse mo-
...a expressão francesa do “maître a género.” nárquico e que defendesse as ideias do
penser”: já não há espaço para eles? Estado Novo. Detestava a desordem e
Sim e não... Na medida em que o pen- a falta de educação. Mas foi ele que me
sador tem uma doutrina, uma tese, ensinou a tolerância. Foi ele que me
e quer que toda a gente a tenha. Nin- ensinou que todas as pessoas têm o di-
guém é capaz de cumprir esse papel reito a pensar e a ter as suas opiniões,
até às suas últimas consequências, se- políticas e outras, e que temos de as
não teríamos de pensar em Jesus Cris- respeitar e conviver com toda a gente.
to ou numa personalidade desse gé- Por isso tinha muitos amigos, alguns
nero. Mas isso não quer dizer que não deles de ideias opostas às suas. Entre
sejam necessários pensadores, a um eles, um colega que esteve preso pela
nível menos profundo. São eles que PIDE e, depois do 25 de Abril, foi gover-
descobrem o fundamento escondido nador civil de Leiria. Era muito amigo
das coisas, o sentido, na História e nas dele. O meu pai dizia-me que tinha ti-
coisas, sentido que não é proposto co- do conhecimento de que a PIDE ia a ca-
052 mo uma doutrina, um programa, mas sa desse amigo, ver se encontrava algo
que é oferecido como uma chave. Nes- para o acusar. Mas ele telefonou-lhe e
se aspeto, Oliveira Martins é extre- disse-lhe: “Esconde essas coisas”.
mamente desigual, às vezes com vi-
sões profundas do mundo, outras co- Este livro deu dinheiro ao seu pai?
mo numa espécie de descarrilamento Os livros únicos deram-lhe, de fac-
mental. Deixa ver se encontro um his- respeito. Estudar não só os aconteci- to, alguma coisa, o que lhe permitiu
toriador que me encha as medidas... mentos, mas também as estruturas: sustentar a família. Nós éramos oito
Fernão Lopes! economia, sociedade, etc. O resulta- irmãos, e a minha mãe nunca traba-
do dessa conjugação é uma visão com- lhou. Mas quem lucrou com os com-
Ele não era historiador. Um cronista é pleta da realidade. Isso foi um avanço pêndios não foi ele mas o Estado (não
historiador? E um Henri Pirenne, não muito grande. Depois, puseram-se em sei se o Ministério da Educação ou ou-
lhe enche as medidas? dúvida algumas dessas associações e, tro organismo). O meu pai queixou-
Georges Duby, sim, Fernand Braudel atualmente, não se vai nada por aí. -se sempre disso. Recebia uma per-
também. Ou García de Cortázar. De Ja- centagem muito pequena. Por outro
cques Le Goff já não diria tanto, mas Temos aqui um dos compêndios de lado, era uma época difícil, sobretu-
ele é muito necessário, é uma espécie História de Portugal do seu pai, Antó- do no fim da II Guerra Mundial. Lem-
de enciclopédia. Mas Duby sabe inte- nio Gonçalves Mattoso, que tocaram bro-me que tínhamos de mandar vir
grar tudo em textos magníficos. várias gerações de portugueses. Era, umas coisas lá da Beira, batatas, azei-
também, um instrumento de exalta- te… Foi uma época dura.
Ele começou com a tese com que co- ção do Estado Novo, mas suponho que
meçou, não é?, os campos... constitua, para si, um legado impor- Foi o trabalho do seu pai que lançou
Sim, as regiões naturais. Pode-se dis- tante. Que relação tem com este livro? a semente do que viria a ser o histo-
cutir o sentido – e o Orlando Ribei- Tenho grande admiração e respeito riador José Mattoso, e que só despon-
ro até faz isso... Atualmente, põem-se pela memória de meu pai. Acho que tou após um largo período de germi-
muito em causa, como se elas fossem era profundamente honesto e teorica- nação?
determinantes de alguma coisa. Na- mente bastante bem informado, mas Creio que sim, mas o período de ger-
quela altura era um ponto de partida. um pouco ingénuo. Era sobrinho do minação não foi assim tão largo... Eu
Acho que foi muito bom para a histo- bispo da Guarda José Alves Mattoso, gostava muito do meu pai. Era de uma
riografia: recortar um espaço geográ- que esteve exilado pelo governo repu- bondade quase inimaginável. Quando
fico e fazer um levantamento sistemá- blicano por causa da pastoral dos bis- entrei para o liceu, tive uma nota ne-
tico dos documentos que lhe dizem pos contra a lei da separação. Depois, gativa a matemática. Voltei para ca-

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O Noticioso

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ENTREVISTA

sa muito chateado – nunca tinha tido fazer apostolado de espécie nenhu-


um chumbo –, e vi o meu pai, que vi- ma. Depois da sua morte, formaram- José Mattoso,
nha em sentido contrário. Quando ele -se as fraternidades seculares inspira- mostrando a sua
me viu a mim disse-me: “Porque é que das no seu exemplo, cuja forma de vi- biografia de D. An-
vens tão triste?”. Lá contei porquê, e ele da consistia em ir viver para um sítio fonso Henriques,
disse-me logo, para me animar, como pobre (por exemplo, um bairro de lata). que vê como um
se fosse realmente uma coisa sem im- O propósito era viver juntamente com retrato ainda
portância nenhuma: “Deixa lá, da pró- os pobres e os trabalhadores, simples- inacabado
xima vez recuperas”. Ele falava comi- mente, e dar um testemunho de vida,
go, quando eu tinha sete ou oito anos, sem mais nada, sem querer influen-
como com um interlocutor do mesmo ciar ninguém. Portanto, encontrei as
nível dele. Queria saber o que eu pen- irmãzinhas de Jesus, na Curraleira, e
sava das coisas. Depois explicava-me, estivemos, eu e a minha mulher, muito
fazia os seus comentários, contava-me ligados a elas. Esse projeto de vida mo-
episódios e recordações. nástica copiava, de certo modo, esse
exemplo. Eu e os meus colegas quería-
Vinte anos de vida monástica surgem mos fundar uma comunidade, perto
a meio do percurso que levou o jovem de Lisboa, que estivesse junto das pes-
José Mattoso ao José Mattoso histo- soas que tinham um ideal cristão pró-
riador. Olhando para trás, vê esse lon- ximo do Vaticano II.
go período como um interregno ou co-
mo um processo de construção? Alguém me dizia que “monge a sério,
Nitidamente, um processo de constru- autêntico, é o beneditino”. Percebe-
ção. Quando fui para o mosteiro, tinha -se que isso era, um pouco, uma bou-
um ideal e tentei viver esse ideal a sé- tade, mas faz algum sentido para si?
rio, na minha vida monástica. Acabei Faz, porque as ordens mendicantes
por me incompatibilizar com os su- são fundamentalmente ativas. O seu
periores, pois o que eles procuravam ideal implica o apostolado, ou seja, o
não era aquilo que eu procurava. Hou- proselitismo. Isso faz parte da vocação
054 ve depois um outro projeto, com ou- mendicante, mas não da vocação be-
tros colegas envolvidos, que não se neditina. Também não coincide com
realizou, e eu então mudei de rumo: o ideal monástico, que é contemplati-
tentei viver uma vida cristã, segundo vo e místico. O ideal monástico tradi-
aquilo em que acreditava, mas vivê- cional é louvar a Deus, é a oração con-
-la no casamento. Foi a altura do Con- tínua, a meditação, a contemplação...
cílio Vaticano II. Havia, digamos, um
ideal e o sentimento de que se podia fa- Quando fala na atitude contemplativa
zer alguma coisa para lhe dar realida- que o historiador deve ter,
de. Não era uma utopia. Acho que tra- está, claro, a referir-
balhei muito nesse sentido. Depois, a -se a algo diferente da
Virgínia Rau convidou-me para ir para busca interior vivida pe-
a Faculdade de Letras e continuei a mi- lo monge. Mas essa expe-
nha vida por aí. Mas ainda foi ligado ao riência ajudou às experiên-
mesmo ideal que fui para Timor e esti- cias subsequentes?
ve lá cinco anos. Acho que sim. Quando eu falo
no sentido poético da constru-
Esse projeto com colegas, que não se ção histórica, estou também a
concretizou, era um projeto monásti- referir-me a uma visão global da reali-
co, uma espécie de pequena reforma dade, na qual Deus está presente, que
vossa? Jesus Cristo nos propõe como imita-
Exatamente. Os mosteiros benedi- ção do Pai.
tinos, sobretudo os da Bélgica, a que
eu pertencia, e os franceses (Soles- Tornou-se medievalista por várias
mes, por exemplo), eram um rescal- circunstâncias: o ser a época preferi-
do da vida monástica do século XIX, da do seu pai, o querer estudar a ida-
com uma liturgia muito solene, o can- de de ouro da sua ordem monástica e a
to gregoriano, uma grande pompa, inspiração recebida de um professor
etc. Parecia-me um ideal defensá- de História medieval. Enquanto pro-
vel, mas sentia-me mais seduzido pe- fessor, tentou, também, ser uma ins-
la vida de Charles de Foucauld, que vi- piração para os seus alunos?
via sozinho no deserto e nunca quis Não, nunca quis influenciar ninguém.

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O Noticioso

Achei sempre que o que é preciso é ser ratura patrística, sobretudo dos ser-
coerente consigo próprio. Nunca es-
“Não compete a mim mões de Santo Agostinho. Por sinal, foi
condi a minha predileção pela Idade explicá-la nem sei o que foi D. Cyril Lambot que me ajudou a corri-
Média. Não para imitar ou ressusci- gir o francês da minha tese de doutora-
tar uma época, mas para compreen-
a minha vida para as outras mento. Foram eles que me ajudaram a
der um imaginário: digamos que para pessoas. Eu tento ser fiel a conciliar a exigência intelectual com a
compreender os fundamentos de uma profissão monástica.
representação do mundo. mim próprio, e penso que é
bom, para todas as pessoas, O tema levou-o de cá ou foi negociado
A seguir à Idade Média, que outra épo- com Genicot?
ca o fascina? serem fiéis a si próprias.” O tema exacto, a história do mosteiro
[Longa pausa] Eu diria que não é uma de Pendorada até ao fim do século XII,
questão de época, mas de tema, de vi- foi escolhido por mim e aprovado por
são, de perspetiva… [outra pausa] ele. Quando eu lhe expus o material
que tinha, ele disse: “Sim senhor, isso
O seu silêncio é significativo. é um bom tema”. Depois, houve uma
Tenho um grande fascínio pelo eremi- progressão pedagógica muito sim-
tismo. Este [mostra a fotografia de um ples. De um só mosteiro passei a estu-
monge] é o padre Manuel, de Singever- dar todos os mosteiros beneditinos da
ga, que morreu há poucos anos, que se diocese do Porto. Foi o tema da tese de
fez eremita em Montserrat, que este- doutoramento. Faz-me lembrar o que
ve no Japão e de quem eu era muito ami- dizia ainda há bocado do Duby.
go. Éramos do mesmo ano. Foi eremi-
ta, mesmo, anos e anos. Eu nunca tive Na licenciatura em História da Fac. de
essa coragem. Pensei que não seria ca- Letras do Porto, damos um seminário
paz, que era demasiado duro... Foi por is- em História medieval, em que apre-
so que estudei os eremitas no século XII sentamos alguns percursos, e apre-
e é por isso que agora me sinto tão fas- sentámos o seu. E sublinhámos mui-
cinado pelos Eremitas da Serra de Os- to isso, o facto de haver uma coerên-
sa. Pelo que já estudei, dá-me a impres- cia e uma progressão sempre lógica... 055
são que estes eremitas têm alguma coisa Sim, há uma razão de ser das coisas: é
a ver com a Peste Negra e a imensa crise preciso encontrar essa razão de ser.
que ela provocou na sociedade de então.
Muita gente não tinha outro remédio se- Quais foram os grandes professores
não ir para a floresta. Favoreceu o despo- cot como dos outros professores e dos da sua vida?
jamento completo, o contacto com a na- alunos. Tínhamos um clube de Histó- Genicot, inevitavelmente. Depois,
tureza, a simplicidade, o dia-a-dia, a ora- ria, e vinham, de vez em quando, pro- Duby, mas só pelos livros. Não fui aluno
ção simples e direta… Essa simplificação fessores de fora, que depois janta- dele. Em Lovaina tive outros professo-
total foi um bom antídoto contra a crise vam connosco, e conversávamos. Ge- res excelentes, como Michaud, da épo-
que a Europa teve então de superar. nicot fomentava isso, apesar de ser ca clássica. Falava com grande entu-
uma pessoa rígida e nem sempre mui- siasmo das coligações das cidades gre-
Já disse, noutra ocasião, que foi um to simpática, mas que se percebia ser gas, comparando-as com as coligações
aluno sofrível, na juventude, que uma pessoa muito exigente. A univer- políticas atuais. Comparava sempre as
nunca quis ser um génio e que quis sidade de Lovaina tornou-se para mim realizações contemporâneas com os
ser uma figura anónima. Como expli- o modelo de uma atitude intelectual modelos clássicos. E fazia isso com um
ca que a sua vida seja a contradição de exigente, conciliada com uma vida re- entusiasmo e uma convicção que se
tudo isso? ligiosa profunda, e atenta aos proble- comunicavam aos alunos. Outro pro-
Não compete a mim explicá-la, nem mas da atualidade. fessor para mim muito importante foi
sei o que é que foi a minha vida para as Roger Aubert, que tem uma excelen-
outras pessoas. Eu tento ser fiel a mim Está a dizer que a sua passagem por te história do pontificado de Pio IX que
próprio, e penso que é bom, para todas Lovaina teve uma dimensão científi- é um dos volumes da História da Igre-
as pessoas, serem fiéis a si próprias. ca, mas, também, uma dimensão reli- ja dirigida por Augustin Fliche e Victor
giosa e pessoal? Martin. Aubert, além de dar a história
Vamos então aos tempos de Lovaina. Absolutamente. Eu estava no Mos- das instituições da Época Moderna, da-
Como era o ambiente quando lá che- teiro de Mont César, com os benedi- va também, com grande pormenor, as
gou? Como foi encontrar Léopold Ge- tinos, que tiveram um papel impor- origens do liberalismo católico, sobre-
nicot? Como era ele? tante na minha vida. Conheci aí, por tudo as personalidades de Lamennais
Em primeiro lugar, gostei muito de ter exemplo, D. Bernard Capelle, especia- e de Montalembert.
contacto com aqueles universitários. lista da história litúrgica, e em Mare-
Era um contacto muito próximo, mui- dsous, também mosteiro beneditino, Não há aí nomes portugueses de
to dialogante, tanto da parte do Geni- D. Cyril Lambot, especialista da lite- grandes professores?

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Deixe-me ver...

Uma vez falou-me em Jorge Borges de


Macedo...
Ah, mas eu não fui aluno do Borges de
Macedo. Era um bom professor, mui-
to exigente. Era opositor da Virgínia
Rau, a minha patrona, digamos as-
sim, e havia aqueles conflitos internos
muito desagradáveis, em que ele tam-
bém participou. Participei nos exames
ad hoc a que ele presidiu e fiquei com
a imagem de uma pessoa duríssima.
Mas aprendi com ele. Depois, quan-
do saiu o meu livro “Ricos-homens,
infanções e cavaleiros”, encontrei-o
num sítio qualquer, e ele disse-me que
tinha gostado muito do livro. Fiquei
realmente muito orgulhoso… Mas não
tivemos ocasião de desenvolver essa
relação. Depois, sucedi-lhe como di-
retor da Torre do Tombo, onde assumi
uma conceção arquivística completa-
mente diferente da dele.

Virgínia Rau foi sua professora?


Não. Eu não tinha curso da universida-
de portuguesa...

Mestres portugueses, portanto, não 057


há...
Só leituras. Como leituras... eu gostava
muito da atitude que o meu pai tinha
para com a História. Não falo na ideo-
logia, falo no prazer de descobrir. Ha-
bituei-me desde muito cedo a separar
uma coisa da outra. Acho que ele tinha
uma capacidade de síntese realmente
muito boa e sabia o que era importante
e o que era secundário. Esta distinção
entre o importante e o secundário foi
sempre, para mim, um princípio mui-
to importante.

Mas então, mestres de ler... Jaime


Cortesão, não?
Não.

Nem António Sérgio, claro.


Sérgio não.

Pierre David?
Pierre David sim. Também convi-
vi com, e fui sinceramente amigo de-
le, Torquato Soares, apesar de não po-
der aceitar as ideias dele acerca das
origens de Portugal. Divergimos pu-
blicamente, sem que isso afetasse a
nossa amizade. Outro dia, contaram-
-me uma coisa que eu não sabia. Numa
sessão qualquer, em que ele estava, al-

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O Noticioso
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guém referiu que “o José Mattoso diz em quando, vinha com eles cá para fo- to a “História da Sociedade Medieval
isto assim e assim”, e ele respondeu: ra, e eles desenhavam a paisagem. E Portuguesa”.
“Destas coisas ele é que sabe”. É preci- sempre admirei muito o talento do Ar-
so muita humildade para dizer isto em mindo. A “História da Sociedade Medieval
público. Portuguesa” não é uma história so-
Indo para a Faculdade de Letras de cial, é história do quotidiano...
Esteve para dar aulas em Coimbra? Lisboa, indo para a Universidade No- Do quotidiano, exatamente. Digo es-
Estive, e cheguei a dar história ecle- va... Gostou de ser professor? Esta- tas coisas com modéstia, mas acho que
siástica com o então padre José Antu- va mais à vontade numa sala grande, são verdade.
nes. Havia, naquela altura, o instituto com muita gente, ou numa sala pe-
de história religiosa, para leigos, e fui quena, com um pequeno seminário? Sempre andou muito em volta da his-
eu que dei a Idade Média, uma vez por Eu sempre fui muito tímido e tinha di- tória religiosa, história da Igreja, em
semana... ficuldade em encontrar a palavra cer- várias dimensões. Tem acompanhado
ta. Não sou nada um orador, tenho de e tem uma opinião sobre a história re-
Mas na Faculdade de Letras? pensar antes das coisas que digo. Por ligiosa que se está a fazer, neste mo-
Sim, estava praticamente combina- isso, costumava dizer que só sabia es- mento, em Portugal?
do com o Silva Dias, que nessa altu- crever, não sabia falar. Esse quase hor- A partir de uma certa altura o meu pai
ra ficou com o poder nas mãos, que eu ror de falar às pessoas acompanhou- teve o sonho de escrever essa histó-
daria creio uma cadeira de que já não -me desde que fui para Singeverga, na ria para ser uma espécie de atualiza-
me lembro, da Idade Média. Mas, an- minha vida, até hoje, até agora, que es- ção da História da Igreja do Fortuna-
tes disso, morreu a Virgínia Rau, desa- tou aqui a falar convosco! Sentir-me to de Almeida. Tinha-o conhecido em
pareceu a minha defensora, o poder fi- num palco e ter de falar para aquela Coimbra, foi, até, relativamente íntimo
cou nas mãos do Borges de Macedo, e gente toda, por vezes sem encontrar a da família dele, e admirava-o muito.
um dia ele chamou-me ao gabinete e expressão, foi realmente uma dificul- Achava que era precisa uma nova his-
disse: “O senhor anda por aí a defen- dade que eu tive sempre e continuo a tória religiosa de Portugal. A do padre
der umas teses marxistas de interpre- ter. Mas também gostei sempre muito Miguel de Oliveira era apenas um re-
tação da história...”. Na mesma altura, de dialogar com os meus alunos. Por- sumo demasiado elementar. Ora, o su-
a Prof..ª Lourdes Belchior também me tanto, o ambiente de seminário era cesso da “História de Portugal” levou o
chamou ao gabinete e disse: “Nós va- aquele em que eu me sentia mais à Círculo de Leitores a convidar-me para
058 mos rescindir o contrato. Procure ou- vontade. fazer uma História da Igreja em moldes
tra coisa”. Nessa altura, estava em or- semelhantes. Não quis. Achava que ti-
ganização a Universidade do Minho, e Tentou alguma vez criar escola? O que nha de ser uma história produzida pe-
o Prof. Lloyd Braga, que era o respon- sente quando várias pessoas se re- las instâncias oficiais da Igreja.
sável disso, foi várias vezes a Braga co- clamam seus discípulos?
migo, e eu estava comprometido com Fazer escola, propriamente, não. Pen- Disse isso? Por que é que achava isso?
ele... Entretanto, veio o 25 de Abril e as sei sempre que o próprio é que sabe Porque a Igreja tem de se conhecer a
condições alteraram-se. melhor aquilo que gosta de fazer, como si própria e tornar-se responsável pe-
gosta de fazer, e o que é preciso é criar la maneira como cumpriu, ou não, o
A sua primeira experiência como pro- condições para ele realizar ao máximo mandato de Jesus Cristo. A Igreja sou-
fessor foi no Seminário Maior do Por- as suas capacidades. Sempre subordi- be criar uma Universidade e criar um
to? nei a escolha dos temas que eles estu- Centro de Estudos de História Religio-
Não, não... davam, no doutoramento, a partir das sa. Este Centro é um centro de inves-
propostas deles. Acontece que tive a tigação. A Universidade deve integrar
Deu ou não aulas ao futuro historia- sorte de ter um pequeno grupo inicial os seus resultados numa História ve-
dor Armindo de Sousa, de pintura ou de doutorandos que estudaram aspe- rídica, não pode misturar as crenças
de desenho? tos complementares da história da no- e milagres com o que realmente foi ou
Ah! Isso foi em Singeverga, ainda. Ele breza: a Leontina Ventura, depois o com uma história apologética contra
era miúdo, tinha 12 ou 13 anos. António Resende de Oliveira, o Luís os ataques anti-clericais, que em Por-
Krus, o Bernardo de Vasconcelos e tugal vêm de muito longe.
Mas o Prof. Mattoso pintava bem, ou Sousa, o José Augusto Pizarro. Tudo is-
desenhava? to formou um conjunto com uma cer- Um dicionário de História da Igre-
Sim, eu desenhava algumas coisas, ta coerência. O que fizemos foi a his- ja que não inclui personalidades, por
numas revistas lá de Singeverga... tória da classe social dominante. Sem exemplo...
falsa modéstia, creio poder dizer que É uma espécie de desenvolvimento do
Mas parou? antes de mim não existia em Portugal Miguel de Oliveira, não é?
Sim, praticamente parei. nenhuma história social. Vitorino Ma-
galhães Godinho tem aquele verbe- Mas, então, ao dizer que devia ser a
Por nada? te no Dicionário de História de Portu- Igreja a fazer, está a pôr-se menos na
Em Singeverga, fiz alguma coisa, mas gal, mas não se pode considerar aquilo posição do historiador e mais do cren-
depois acabei por parar. Eu dava aulas uma verdadeira história social. Nem o te que diz “a Igreja não pode fugir a
de desenho aos seminaristas e, de vez Oliveira Marques, apesar de ter escri- isto e tem de ser ela a fazer; e tem de

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O Noticioso

aprender, se não sabe fazer bem”... É “Tenho uma gratidão E que não era muito conhecido...
um pouco isso? muito grande pela bondade Não... Mas foi ele que aguentou a guer-
É exatamente isso. rilha, na fase final, quando aquilo já es-
do meu pai. Quando penso tava tudo em pantanas.
Por exemplo, o general Themudo Ba-
rata dizia que, para a História militar
que Deus é pai, é porque Por que entendeu ter uma intervenção
se tornar científica e credível, tinha de Deus imita o meu pai.” cívica ativa, política, que balanço faz
sair dos quartéis e passar para as uni- dela e o que é que, nesse percurso to-
versidades. Está a dizer que no caso do, significou o encontro com Maria de
da Igreja não é assim? Lourdes Pintasilgo?
Mas não com o discurso único, não Bom, a Maria de Lourdes Pintasilgo foi
com uma versão “oficial”. Ou seja, a assim uma espécie de clarão lumino-
versão “oficial” também tem de ser so de esperança, que logo se viu desfa-
historiograficamente rigorosa, pa- sado da realidade. Como se em si mes-
ra ser credível. Foi esse um dos tristes mo estivesse certo e simples, mas sem
aspetos da controvérsia entre a Igreja ninguém, ou quase ninguém, para o
e o liberalismo anticlerical. À violên- realizar. Tinha uma inteligência su-
cia racionalista dos liberais e republi- perior, uma coragem enorme, pessoas
canos a Igreja só soube responder com muito dedicadas, mas estava quase so-
retórica e anátemas. zinha, sem os auxiliares necessários
para dar realidade aos seus princípios.
Qual é, neste momento, a sua relação Colaborei com o Graal, embora apenas
institucional com a Igreja? em tarefas secundárias. A tarefa de-
Leiam as crónicas do Frei Bento Do- la estava a um nível muito superior ao
mingues. É o meu modelo. É a encarna- meu, o de um cristão como outro qual-
ção da liberdade interior, de uma con- quer. Também nunca me senti com ca-
vicção absoluta, ou seja, de fé, de uma pacidade para criar grupos, para lide-
inteira independência em relação às ranças. É isso que envolve essa atitude
instituições, de bom humor, de ale- cívica. A minha participação foi sem-
gria. Ainda por cima, com uma erudi- pre muito modesta, nunca fui chefe de 059
ção teológica muito segura, com uma coisa nenhuma.
inteira assimilação da teologia de S.
Tomás de Aquino, que não posso dei- Duas personalidades da historiogra-
xar de admirar. fia que o marcaram e já não estão en-
tre nós: Luís Krus e Armindo de Sou-
E José Tolentino Mendonça? sa. Que é que podia dizer sobre eles?
Também, mas não tem a liberdade to- O Luís Krus era uma personalidade
tal. realmente única. À primeira vista era
muito simples, quase como uma crian-
Uma vez, apresentou em Leiria uma ça alegre e que gostava de brincar. Ti-
comunicação sobre as cortes de Coim- nha um grande sentido de humor. Co-
bra e disse que estava a abrir uma ex- mo gostava das narrativas medievais,
ceção, pois estava a sair do seu perío- gostava também de cinema e de músi-
do e não gostava nada disso. Vai para ca, descobria textos inesperados, te-
Timor e escreve a biografia de Konis mas originais, eu sei lá… Lembro-me
Santana: grande exceção! Porquê? da surpresa com que li a tese dele, por-
Há uma razão muito objetiva: o facto que nunca tinha pensado que o lugar
de o Xanana Gusmão me ter encarre- em que se vive pode ter um significa-
gado de classificar, e ordenar os papéis do social e simbólico. A demonstração
de Konis Santana encontrados em Er- consistia em começar por apresentar
mera. Verifiquei que havia ali os dados um mapa com os lugares citados em
necessários para fazer uma pequena cada um dos livros de linhagens e rela-
biografia. Mas isso, que eu pensava, no cioná-lo com a posição social e ideoló-
início, ser um artigo de revista ou qual- gica dessa mesma linhagem. Verifica-
quer coisa assim, foi-se transforman- -se, então, que o lugar tem um signifi-
do numa biografia. Só depois é que cado próprio e se reflete nos episódios
percebi a importância dele numa das contados, na relação com o rei ou com
fases mais dramáticas da guerrilha. O a guerra da Reconquista, etc. O Luís te-
livro é o meu testemunho de admira- ve a paciência de verificar tudo isso ao
ção não só pelo Konis mas também por pormenor. Algumas vezes, a sua expo-
todos os guerrilheiros. sição parece ter ficado inacabada, co-

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O Noticioso
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mo acontece, por exemplo, no artigo Luís Krus, mais me espanto com a per- pagam para fazermos esta função, pa-
sobre os Trastâmaras. Por outro lado, o sonalidade dele. ra sermos professores de História, é
Luís Krus era um colega estupendo, de muito pouco para a responsabilida-
uma enorme simplicidade, generoso, Ele deu-lhe a descobrir coisas no de e o trabalho que dá comunicarmos
pacificador, persistente, discreto, eu campo do cinema, da música... o nosso gosto pela História. São preci-
sei lá. Como era muito discreto, acon- Sim, sim... Foi ele que me deu os creio sas grande persistência, grande força
tece que na ocasião nem dávamos por que onze discos da versão original dos de vontade e grande convicção para se
060 isso. Algumas coisas vêm à memória Carmina Burana, muito diferente da trabalhar nesta área.
hoje, anos depois de ter morrido. versão moderna de Carl Orff, e foi tam-
bém ele que me deu a ouvir os cânticos Mas diria isso ao jovem? “Se gostas,
Também era extremamente tímido. latinos de Santa Hildegarda. vai”?
Sim, mas muito corajoso. A tarefa que Se gostas… É esse o problema. Gostar
ele assumiu de construir o Instituto de E o Armindo de Sousa? tanto da História que nada possa pagar
Estudos Medievais implicou numero- O Armindo é mais complexo. Tinha esse gosto. Ensinar História por dever
sos contactos e conversas com cole- uma escrita que eu nem sempre acha- ou por penitência é pior do que não fa-
gas nossos e de outros departamentos, va muito simpática. Preferia uma es- zer nada, porque o que então se apren-
sempre com muita persistência. Devo crita sem comentários à margem, me- de desaparece no dia seguinte. Por isso
dizer que nessa altura eu era vice-rei- nos coloquial, etc. Mas ficava espanta- não se deve persuadir ninguém a se-
tor e depois diretor da Torre do Tombo, do com a quantidade de pormenores guir o curso de História. Mais vale ga-
e por isso não tive nenhum papel ativo. que ele ia descobrir e com a sua enor- nhar a vida de outra maneira. Só gos-
Dei o meu apoio, mas interferi o menos me capacidade de trabalho. Por detrás tando se pode ter convicção, jeito, ta-
possível, para manter a iniciativa dos daquele artigo sobre o abade de San- lento, originalidade… Também é um
meus colegas. A seguir, também assis- to Tirso há uma pesquisa incansável. pouco assim para as outras profissões.
ti de longe, de Timor, a todas essas mo- É o que acontece também no traba- Mas acho que na História e na literatu-
vimentações. Depois da morte dele, a lho verdadeiramente detetivesco so- ra essa conjugação é maior ainda.
Amélia Aguiar Andrade tomou con- bre a morte de D. João I. E estou muito Há um ano ou dois, Adriano Morei-
ta do Instituto, e fê-lo, e está a fazê-lo grato ao Armindo por ele ter aceitado ra, ao perguntarem-lhe que imagem
muito bem. Ela é excelente para con- escrever a segunda parte do segundo gostaria que dele ficasse, respon-
seguir resolver problemas burocráti- volume da História de Portugal, sobre deu: “Gostava que os meus filhos ti-
cos, mesmo que deem muito trabalho. os séculos XIV e XV, que ele conhecia vessem de mim a imagem que eu te-
Nas universidades, estas coisas não bem, depois de ter escrito a sua tese de nho dos meus pais”. Assina esta res-
são simples. Formam-se clãs, grupos, doutoramento sobre as cortes régias posta?
cumplicidades... Mas o Luís superou desse período. Totalmente, totalmente. Tenho uma
tudo isso com um sorriso, com uma gratidão muito grande pela bondade
bondade espantosa. Se um jovem, hoje, terminado o se- do meu pai. Quando penso que Deus
cundário, chegasse à sua beira e dis- é pai, é porque Deus imita o meu pai.
Foi um discípulo seu que o mudou, a si? sesse: “Eu gostava de ir para Histó- E a minha mãe também, de outra ma-
A expressão não me parece clara, mas ria”. O que é que lhe dizia? neira, com uma grande presença, com
acho que sim. Quanto mais recordo o Aguenta-te no balanço! Aquilo que nos uma grande dignidade.

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O Noticioso

“HISTÓRIA DE PORTUGAL
de as suas dimensões serem reduzidas,
os portugueses têm uma grande con-
fiança na História. Houve um inquérito

FOI VENDIDA COMO QUEM


feito no ICS, pelo Augusto Sobral e o Jor-
ge Vala, que mostrou a importância que
os portugueses atribuem à História. É,

VENDE LATAS DE SARDINHAS”


se não me engano, a mais alta da Europa.
061
Está a falar em confiança na História ou
na historiografia?
Estou a falar da História de Portugal,
do passado do povo português. Há um
A “História de Portugal” que dirigiu, há toriográfico. Creio que renovaram de desejo de conhecer o passado, de sa-
20 anos, é um dos maiores sucessos facto a historiografia portuguesa des- ber como é que foi. A “História de Por-
editoriais de sempre na área da histo- ses períodos. É verdade que a obra tem tugal” foi vendida um pouco como
riografia. Isso surpreendeu-o, na altu- também as suas fraquezas. Deixo aos quem vende latas de sardinhas, pe-
ra? Que pensa dela hoje? leitores o cuidado de julgar por si pró- los delegados do Círculo de Leitores.
Eu procurei explicar isso no prefácio prios o valor que atribuem a cada um Apesar do preço, era comprada por
que escrevi para a edição mais recen- dos volumes. Seja como for, creio que a toda a gente. Lembro-me do dono de
te. Em primeiro lugar, não estava prepa- obra contribuiu, de facto, para a renova- uma mercearia da Penha de França,
rado para ser eu o responsável, o centro ção da historiografia portuguesa con- que se gabava da quantidade de vo-
das atenções. Mas pensei assim: é indis- temporânea. lumes que já tinha vendido. Vinham
pensável haver uma História de Portu- muitas pessoas pedir autógrafos.
gal decente; eu sou capaz de fazer a Ida- As obras coletivas são sempre desi- Quando eu perguntava se já tinham li-
de Média, mas o resto, não. Se não tiver guais... do alguma coisa, diziam que não, mas
alguém que eu admire e com quem con- Se uma pessoa não ceder, nessas oca- era para os filhos lerem. Creio que fi-
corde, para fazer, pelo menos, um dos siões, nunca faz nada. Não sou nenhum cavam na prateleira da estante. Toda
outros volumes, não posso aceitar es- demiurgo, não faço a História ideal, fiz a gente gostava de os ter ali, na sala de
sa responsabilidade. Por isso, exigi co- aquela que consegui fazer com pessoas visitas. Acho que lhes dava uma gran-
mo condição ao Círculo de Leitores que em que acreditava e que admiro. O pro- de confiança.
o Prof. Romero de Magalhães fosse o au- cesso que utilizei é muito simples: um A própria coleção, enquanto objeto, ga-
tor do volume da Época Moderna. De- autor para cada época, e ele que esco- nhou um valor simbólico...
pois tive a sorte de poder contar com lha os seus colaboradores. Não garan- E depois também as gravuras, o volu-
o Prof. Hespanha para o século XVII e te a coerência daquilo tudo, mas garan- me... tudo isso contribuiu para o suces-
com o Rui Ramos, que acabava de ter- te a qualidade. O sucesso da História de- so. Na altura, o Círculo de Leitores ti-
minar a licenciatura, para o fim do sé- ve-se, também, à conjuntura em que foi nha financiamento alemão, do grupo
culo XIX e o princípio do século XX. São, publicada. Em Portugal, apesar de as Bertelsmann: eles ficaram espantados
esses, pelo menos, os autores que consi- ideologias serem tão enganadoras e te- por a obra atingir aqueles números e até
dero mais sólidos do ponto de vista his- rem programas tão discutíveis, e apesar pensaram em traduzi-la para alemão.

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O Noticioso

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O Noticioso

“É IMPORTANTE donça, leio fielmente o Frei Bento, to-


das as semanas...
ao leitor o que eu próprio sinto. Na bio-
grafia de Afonso Henriques, por exem-

ESCREVER DE FORMA
plo, não podia fazer aquilo a que se cha-
Lê poesia? ma um retrato. Pareceu-me, então, que
Assim sistematicamente, não. Releio o a melhor maneira era mostrar como se

CLARA, DIRETA” Ruy Belo muitas vezes. Sophia de Mello


Breyner Andresen, também… Fernan-
do Pessoa já não leio. Na altura em que
articulavam as várias peças de que foi
feito, ou seja, aquilo a que chamei “os
três rostos”. Na verdade não são apenas
o li, fiquei muito apaixonado, mas de- três. Também nenhum deles está com-
O que leu recentemente, o que está a pois achei que havia qualquer coisa de pleto… Aproveito para dizer que o re-
ler, o que tem em espera? Gosta mais frio na fonte da sua poesia. trato final não está acabado. Há facetas
de prosa ou de poesia? Há “os livros da enganadoras, informações incorretas,
sua vida”? Qual é a sua relação com o ato de es- lacunas, etc. O retrato precisava de uns
Li recentemente a “História Religiosa crever? Tem um estilo, tentou traba- retoques.
do Ocidente Medieval”, do Garcia de lhá-lo, sente que ele evoluiu?
Cortazar, que é um livro notável, ab- Um estilo pessoal, não. Não sei o que é O título “Identificação de um País” foi-
solutamente notável. Li também um isso. Mas cuidado na escrita, busca do -lhe sugerido pelo filme de Antonioni
conjunto de artigos sobre Diego Gel- rigor, da precisão, da coerência e da ca- “Identificazione di una donna”. Esco-
mírez, o arcebispo de Compostela, que dência do discurso, isso sim. Para mim, lheu-o por ter sido tocado pelo filme?
mostram a sua espantosa personalida- é muito importante escrever de uma É evidente que me tocou. Percebi que
de, sobretudo o artigo notável de Fer- forma clara, simples, direta, quase no isto de identificar uma pessoa nunca é
nando López Alsina com uma inter- grau zero de estilo. Simplificação má- totalmente possível . Nós vamos cons-
pretação genial das iluminuras do Li- xima, mas com rigor. truindo, com bocados que se vão co-
ber Sancti Iacobi e do Codex Calixtinus nhecendo e começam a mostrar uma
na sua conjugação com as obras da ca- E como é que conjuga isso com os sím- personalidade diferente daquela que
tedral. Li outras obras e artigos que me bolos e as metáforas? se viu inicialmente. Assim é, também,
interessaram, mas a minha memória Isso é a coisa mais simples que há. A com um país, metaforicamente falan-
está cada vez pior, e não consigo recor- força simbólica brota por si mesma, do. A compreensão do outro é feita com
dar nada em especial. da própria escrita, como um todo, não base em determinadas observações,
peça a peça. Não sei, mesmo, se posso que se vão conjugando, para tentar 063
Só lê história medieval? chamar a isso símbolos e metáforas. construir na minha mente a persona-
Não, não. Li o José Luís Peixoto, li algu- Procuro sobretudo a unidade, a coe- lidade desse outro. Sem esquecer que
ma coisa do Gonçalo M. Tavares, li bas- rência. Claro que não sei se chego a en- o outro também evolui, também se vai
tantes coisas do José Tolentino Men- contrá-la, mas o que tento é transmitir transformando.

“DESEMPREGO tes. Uma é que o mestrado tem um pe-


ríodo demasiado curto, com um tipo de
o domínio sufocante das leis das di-
tas ciências exatas, por um lado, e das
práticas anglo-saxónicas: quase obri-
DE CIENTISTAS
exigências que obrigam o aluno a redu-
zir a investigação. Daí que a maior par- gatoriedade de escrever em inglês e de
te das teses de mestrado tenham obje- publicar em revistas inglesas, boas ou

É HUMILHANTE” tivos muito limitados.

E os atuais doutoramentos?
más, a arbitragem cega, a urgência de
publicar muito e muito depressa, os
índices das revistas, o número de cita-
Custa-me encontrar uma linha co- ções, os rankings... Acha que estou a
Há hoje uma geração muito numerosa mum, uma tendência exata. Entre ou- ver bem? Sentir-se-ia bem a trabalhar
e muito bem preparada de jovens mes- tros efeitos perversos fazem com que num ambiente destes?
trandos, doutorandos, doutorados ou muitos dos investigadores, depois do Claro que não. Isso retrata bem as dis-
pós-docs, que andam a lutar por bol- doutoramento, se tornem verdadeiros torções da produção científica uni-
sas e projetos aos 30, aos 40 anos... E cientistas, mas, terminada a bolsa, se versitária, no atual regime das bolsas.
as universidades não estão a arranjar vejam no desemprego. Assim quebra- Uma tese de doutoramento nas ciên-
lugares para eles. Não há aqui o peri- -se o progresso da investigação cientí- cias humanas requer condições e mé-
go de se criar um hiato em que a nossa fica em Portugal. A situação dos cien- todos muito diferentes das ciências
geração desaparece e não houve uma tistas sem emprego é particularmente exatas, a começar pelos critérios de
preparação natural para uma substi- humilhante. classificação dos projetos. Todavia a
tuição? Fundação para a Ciência e a Tecnolo-
Estou perfeitamente de acordo. Tão Outra das tendências atuais nas ciên- gia persiste em manter os mesmos cri-
simples como isso. Mas há algumas co- cias sociais e humanas, em particu- térios para todos, sejam de ciências, se-
notações que me parecem preocupan- lar na História e muito em Portugal, é jam de humanidades.

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O Noticioso
ENTREVISTA

O eremita na ribalta
Perfil

M
attoso é um apelido destinado a marcar gerações da melhor for-
ma que tal pode ser feito, sem que os protagonistas se ponham
em bicos de pés. Tal seria completamente contrário ao ideal de
vida de José João da Conceição Gonçalves Mattoso, nascido em
Leiria há 83 anos, o mais reconhecido historiador português
contemporâneo. Filho de António Gonçalves Mattoso, autor dos
densos compêndios de História pelos quais estudaram, ao lon-
go da vigência do Estado Novo, os estudantes liceais, José Mattoso recebeu no berço a
semente do historiador, mas só em idade adulta a fez germinar. A vocação primeira foi
a vida monástica. Ingressou aos 17 anos na comunidade beneditina de Singeverga, e aí
viveu dois decénios como Frei José de Santa Escolástica. Não é coisa pouca; foi um pe-
ríodo bem consentâneo com a personalidade do grande medievalista, que sempre quis
uma vida de contemplação e busca interior, acabando por ser empurrado, pelas cir-
cunstâncias do trabalho posterior, para uma visibilidade que nunca desejou e na qual
jamais se sentiu à vontade. O paradoxo estará no facto de ter deixado o mosteiro por ali
não encontrar o modelo ascético que idealizava e de, ao tentar aprofundá-lo, tanto ao
estudar as origens da sua ordem como, depois, ao regressar à vida laica, se ver mergu-
lhado na vertigem mundana da notoriedade, dos prémios, das honrarias, dos cargos.
Tal é, todavia, mera aparência: o contacto pessoal mostra facilmente que, no seu ínti-
mo, nunca desapareceu o eremita que não teve coragem de ser. Terá sido a ida para a
vetusta universidade católica de Lovaina (Leuven, em neerlandês, Louvain, em fran-
cês), onde se doutorou, em 1966, com uma tese intitulada “Le Monachisme ibérique et
064 Cluny: les monastères du diocèse de Porto de l’an mille à 1200” (O monaquismo ibérico
e Cluny: os mosteiros da diocese do Porto do Ano Mil a 1200), que o levou a uma viragem
radical. O conhecimento das raízes do monaquismo, associado a uma longa reflexão,
fê-lo aperceber-se de que não vivia no ideal monástico que preconizava, o que o fez re-
nunciar aos votos e dar novo rumo à vivência cristã. Mas outro golpe do acaso conduzi-
-lo-ia ainda mais para a vida que lhe conhecemos: o convite feito por Virgínia Rau pa-
ra dar aulas de História medieval na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. E
outro acontecimento imprevisto, o 25 de Abril, numa altura de impasse profissional,
criou as condições para que lhe fossem abertas as portas da Universidade Nova de Lis-
boa (fundada em 1973), onde cumpriu o essencial da carreira docente. Aí ascendeu à
cátedra, tendo chegado a ser vice-reitor da instituição. Autor de vasta bibliografia, his-
toriográfica e ensaística, em que avultam títulos como “A nobreza medieval portu-
guesa”, “Poderes invisíveis”, “Naquele tempo”, “Ricos-homens, infanções e cavaleiros”
“Fragmentos de uma composição medieval” ou “Identificação de um país” (Prémio de
História Medieval Alfredo Pimenta, em 1985, e prémio de ensaio do P.E.N. Clube Portu-
guês), foi talvez por dirigir uma monumental “História de Portugal”, para o Círculo de
Leitores, que adquiriu maior notoriedade. A obra, um avanço notável em termos histo-
riográficos, foi favorecida por múltiplas circunstâncias, com destaque para o sistema
de difusão em clube do livro, que a tornaram no projeto coletivo português mais ven-
dido de sempre na área. Mattoso, que dirigiu outras obras coletivas e redigiu a biogra-
fia de referência de D. Afonso Henriques, foi, em 1987, o primeiro galardoado com o Pré-
mio Pessoa. Entre os cargos que ocupou, avultam o de presidente do Instituto Portu-
guês de Arquivos (de 1988 a 1990) e o de diretor da Torre do Tombo (de 1996 a 1998). Num
outro momento de desconcertante rutura, viveu cinco anos em Timor-Leste, coroan-
do essa experiência com a publicação da biografia de um dos menos conhecidos líde-
res da resistência: “A Dignidade: Konis Santana e a resistência timorense”. Atualmen-
te , a um outro ritmo, sempre o seu, José Mattoso continua a trabalhar, a estudar. A vasta
biblioteca que acumulou, ao longo de anos, ficou lá para trás, doada ao Campo Arqueo-
lógico de Mértola. Vive hoje num pequeno apartamento cheio de sol, rodeado apenas
do essencial. Bastar-lhe-ia uma cela monástica, bastar-lhe-ia o eremitério que o fas-
cina. Tivesse ele dado esse passo e, provavelmente, não estaria nestas páginas. Basta-
-lhe a paz interior, mas da janela da sala vê a imensidão do oceano. Isso também ajuda.

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O Noticioso

065

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O Noticioso
CAMINHOS DO PATRIMÓNIO

Catedrais:
marcas
e marcos
na História
Joel Cleto
arqueólogo

portuguesa
066
O paulatino alicerçar do cristianismo como religião dominante na
Hispânia, a sua posterior resistência ao domínio muçulmano na
Península, a afirmação independentista do condado Portucalense
e a expansão territorial e demográfica do novo reino, as inovações
técnicas construtivas, mas, também, renovadas estratégias na
abordagem à espiritualidade dos templos… de tudo isto, e muito mais,
as catedrais foram testemunhas privilegiadas e, não raras vezes,
participativas e protagonistas.

H
ouve um tempo, um longo tem- Apelidadas também em português de “sé” – de-
po, não tão distante quanto isso, nominação derivada de “sede”, por isso a Santa Sé
em que… não havia bancos nem significa a Santa Sede – as catedrais, para lá da sua
cadeiras no interior das igrejas. relevante função religiosa, constituíram-se igual-
Ou, se os havia, eram muito ra- mente, ao longo dos séculos, como importantes
ros. Houve um tempo em que os símbolos de apropriação e afirmação de um terri-
fiéis permaneciam em pé no in- tório. Fosse numa perspetiva nacional ou regional.
terior do templo, assistindo desse modo, ou de joe- E, desse ponto de vista, desde cedo se converteram
lhos, às cerimónias religiosas. As escassas cadei- também em marcas incontornáveis de memória e
ras pertenciam aos prelados. E, entre elas, desta- de identidade para as suas comunidades. Por outro
cava-se a que era destinada ao bispo. Assumida lado, e decorrente do estatuto religioso, a sua mo-
como um trono, a cadeira episcopal apresenta- numentalidade igualmente as converteu em ele-
va um alto espaldar e era designada por cátedra. A mentos patrimoniais quase sempre de exceção.
igreja do bispo, o templo sede de uma diocese ga- No território português, perto de três dezenas
nhava, assim, a designação de ecclesia cathedra- de imóveis, que são ou já foram catedrais, cons-
lis: catedral. tituem um conjunto notável e que, desde épocas

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O Noticioso

067
bem anteriores à origem da nacionalidade e até inscrição epigráfica existente na cabeceira da ca- Arquidiocese
ao início do nosso século XXI, nos permitem uma tedral) que nasceria a sé medieval de Braga. A “pri- de Braga está se-
longa viagem no tempo e um roteiro privilegia- maz”. A primeira das Espanhas. Com um longo diada na mais antiga
do pelas diferentes correntes estéticas e artísticas braço de ferro, na disputa desse título, com Sara- catedral portugue-
dos últimos mil anos. goça. E outra acérrima disputa, de afirmação re- sa que mantém esse
O enigmático templo da atual Idanha-a-Ve- gional e de grande centro da cristandade peninsu- estatuto
lha, de interpretação difícil e que ainda hoje di- lar, com Santiago de Compostela.
vide a opinião de arqueólogos e historiadores de Para lá da tradição, que remonta a origem do
arte, tal a sobreposição que nele se regista de di- templo bracarense ao século IV ou V, ou mesmo
ferentes estilos (e funções?), está, no entanto, in- antes, quando admite ter sido fundado pelo após-
dissociavelmente ligado ao espaço onde suevos e tolo Santiago e pelo seu primeiro bispo S. Pedro de
visigodos desenvolveram e sediaram uma ampla Rates, as marcas patrimoniais ainda nos revelam
diocese – a de Egitânia. Este será, por isso, o edifí- alguns vestígios do primitivo templo pré-români-
cio mais antigo que em Portugal já assumiu as fun- co ali edificado por volta de 1070. Muitas outras in-
ções de catedral. Egitânia fora, igualmente, uma tervenções se multiplicariam nos séculos seguin-
importante cidade romana e, na edificação do tes nesta catedral que, entre tantos outros motivos
templo, foram reutilizados múltiplos e monumen- de interesse, guarda os túmulos dos condes por-
tais elementos arquitetónicos de anteriores cons- tucalenses Dona Teresa e D. Henrique. Ora, a este
truções romanas. Teria sido este, já nesse tempo, nobre franco se deve, em grande parte, a introdu-
um lugar sagrado? ção no nosso território do românico. Um estilo que
Ora aí está uma interrogação para a qual, nou- Roma, com a crescente centralização do poder em
tros lugares, temos uma resposta afirmativa. E um torno do Papa, impunha agora ao mundo católico,
exemplo paradigmático é o da mais antiga cate- como instrumento de uma política unificadora,
dral em funções: a de Braga. E não é por acaso que garante de um discurso único, face à diversidade
a expressão “mais antigo que a Sé de Braga” nos re- de rituais que se tinham multiplicado entre a cris-
mete para algo significativamente velho. Capi- tandade e que originara também diferentes mo-
tal de uma vasta região administrativa do Impé- dos de arquitetar os templos.
rio, Bracara Augusta foi uma relevante cidade ro- O empenhamento do filho de D. Henrique –
mana, repleta de templos dedicados a diversas Afonso Henriques – na reconstrução (Braga, Por-
divindades, mesmo egípcias. E terá sido junto de to, Coimbra…) ou construção (de que a sé de Lisboa
um espaço consagrado a Ísis (tendo em conta uma é exemplo relevante) de grandes catedrais româ-

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O Noticioso
CAMINHOS DO PATRIMÓNIO

nicas deve, por isso, ser entendida também co-


mo um importante instrumento da política inde-
pendentista do nosso primeiro monarca. Não po-
dendo isolar o homem do seu tempo, e do fervor
religioso que certamente possuiria, não é menos
verdade que para Afonso Henriques a edificação
destas grandes catedrais visava também agradar
a Roma, consciente de que ao Papa caberia a úl-
tima palavra (que será dada com a bula Manifes-
tis Probatum. em 1179) sobre a independência do
reino de Portugal. Um reino que se ia alargando e
afirmando. Também através de catedrais (Lame-
go, Viseu…).
Mas já outros tempos, outras estéticas e revolu-
cionárias formas de construir se anunciavam. Pre-
nhes de uma nova espiritualidade. Ora, se Deus é
o criador do mundo, se é a Luz e o princípio de tu-
do, não fazia muito sentido que a sua Casa, nomea-
damente as catedrais, se caracterizasse por uma
significativa ausência de luz, decorrente do esti-
lo fortificado, fechado e robusto do românico. No-
vas técnicas construtivas, inovações de arquitetu-
ra e de engenharia, permitiam agora um novo esti-
lo, no qual a luz jorrava através de grandes janelas,
rosáceas e vitrais para o interior dos templos. A ar-
quitetura da luz: o gótico. Que se fará manifestar
em muitas catedrais. Com intervenções nalgumas
já existentes, ou na sua construção de raiz (de que
é um belo exemplo a da Guarda ou, embora clara-
068 mente de transição de um estilo para o outro, a de
Évora). Ou então na edificação de templos que só
séculos depois se converterão na sede de novas
dioceses (Vila Real, Viana do Castelo, Faro…).
O Renascimento ficará associado a um impor-
tante surto de criação de dioceses e de magnífi-
cas catedrais. Templos-salão, como os de Miran-
da, Leiria ou Portalegre, juntam-se então às sés já Presume-se Mas é também um período de afirmação do po-
existentes, muitas das quais não deixarão igual- que o templo de Ida- der absoluto do monarca. Com reflexos políticos
mente de registar importantes intervenções nes- nha-a-Velha (fo- nas catedrais. Que o diga a magnífica Sé Velha de
ta época. Algumas, com destaque para a de Viseu, to maior) seja a mais Coimbra que, a pretexto de falta de espaço, é subs-
serão mesmo pioneiras na introdução entre nós antiga catedral erigi- tituída por um templo localizado nas suas proxi-
dessas novas opções estéticas e arquitetónicas, da em território ho- midades e até aí pertencente ao colégio dos jesuí-
inspiradas nos antigos modelos clássicos, vindas je português; Sé da tas. Mas mais não terá sido do que uma manobra
de Itália. E, no seu interior, relevantes retábulos, Guarda (foto menor) do todo-poderoso primeiro ministro de D. José,
pinturas, esculturas e peças de ourivesaria vão representa já a plena Marquês do Pombal, que, pretendendo assegurar
caracterizando também novos ambientes. Mani- implantação do esti- todo o controlo da Universidade e do ensino, e ape-
festações artísticas e objetos que em muitos ca- lo gótico sar de ter expulso do reino aquela ordem religiosa,
sos, hoje, nos é possível observar nos sempre sur- desejava assegurar que, mesmo que um dia os je-
preendentes espaços museológicos do “Tesouro suítas pudessem regressar, jamais o poderiam fa-
da Sé” que muitas das catedrais possuem. zer para aquele templo. E foi isso que aconteceu.
Mas se há um período e um estilo presente em Ao longo dos séculos XIX e XX as catedrais con-
praticamente todos os templos, esse é o barro- tinuaram a suscitar relevantes intervenções. Es-
co dos séculos XVII e XVIII. A arte cénica, exube- poletando, por vezes, alguma estranheza, como
rante, dinâmica, opulenta, ao serviço da contra- foi o caso das pinturas revivalistas neo-góticas
-reforma, e beneficiando de um contexto finan- nos tetos e paredes da catedral de Viana do Caste-
ceiro excecional (devido a diversos fatores, mas lo. Mas sublinhando também a dinâmica demo-
com grande destaque para a chegada ao reino gráfica do país, nomeadamente o seu paulatino e
do ouro e outras preciosidades do Brasil), faz-se crescente fenómeno de “litoralização”, com a cria-
sentir por todo o lado, e de um modo particular- ção de novas dioceses (e catedrais) e a extinção
mente notório no interior das igrejas. Mais ainda de outras. E, como no passado, esta é uma história
nas catedrais. que se continua a fazer no presente.

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O Noticioso

Afonso Henriques Dinâmica eclesiástica


usou catedrais como faz com que a história
forma de influenciar das catedrais prossiga
aceitação pelo Papa no presente

069

Bragança Roteiro de visita


São muitas, e todas elas merecedoras de atenção, as catedrais
Braga existentes em Portugal. Mais de trinta. Isto se às 20 atuais cate-
drais, de outras tantas dioceses, acrescentarmos também as con-
Porto catedrais (as catedrais de dioceses que entretanto se fundiram,
Lamego
nomeadamente Castelo Branco/Portalegre e Miranda/Bragan-
OCEANO ça), as antigas sés de dioceses entretanto extintas (casos de Elvas,
ATLÂNTICO
Viseu Pinhel e Penafiel), as catedrais que mudaram de localização (ca-
Guarda sos de Idanha-a-Velha e Silves), e as de antigas catedrais que, nas
mesmas cidades, foram entretanto substituídas por outros tem-
plos (de que são exemplo Aveiro, Beja, Coimbra e Bragança, esta
Coimbra última já do século XXI – a mais recente de todas).
Idanha-a-Velha Não é por isso difícil fazer um roteiro, ao longo do país, no conti-
nente e ilhas, em busca das nossas catedrais. Poderá sempre so-
correr-se do site rotadascatedrais.com, resultado de um proje-
to que vem sendo desenvolvido pelo Ministério da Cultura e pe-
la Igreja através, entre outros, das Direções Regionais de Cultura,
Institutos dos Museus e de Gestão do Património Arquitetónico e
Arqueológico, Conferência Episcopal Portuguesa e Secretariado
Lisboa
Nacional para os Bens da Igreja. Mas elas, as catedrais, estão por
aí. Merecedoras da nossa visita. Nas principais cidades do territó-
Évora
rio nacional. E não só… Testemunhos e testemunhas de uma longa
História. Marcas e marcos da nossa memória e identidade.

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O Noticioso
DESTAQUE

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O Noticioso

Berlim – 1936

O baile de
máscaras
que deu
ao mundo 071

a “Nova
Alemanha” Textos de Filipe Paiva Cardoso

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O Noticioso
DESTAQUE

Há 80 anos, os Jogos Olímpicos, a cargo do regime


nacional-socialista, realizaram-se num clima
de tensão internacional crescente, mas Hitler
mostrava a Alemanha como uma nação pacifista,
que se rearmava para assegurar a paz na Europa.

A
organização dos Jo- coração da Nação inteira, brota da pró- Ambiente e iconogra-
gos Olímpicos (JO) pria terra germânica, como o esplendor fia nazis na visita de
de 1936, há 80 anos, de uma paisagem banhada pelo sol”. operários alemães (a
foi para Adolf Hitler Este é o lado da “Nova Alemanha” que “Força da Alegria”) aos
a disponibilização de deve ser mostrado aos turistas durante Açores e à Madeira
um dos maiores pal- os 15 dias dos JO, suplantando a envol-
cos do mundo, não vente internacional e as crescentes crí-
apenas para mostrar a beleza da “No- ticas a um regime de pretensões expan-
va Alemanha” aos milhares de visitan- sionistas e totalitário. É que, apesar do
tes que estiveram no país, pela ocasião espírito de paz e fraternidade das Olim-
072 do evento, mas também para apresen- píadas, a sucessão de eventos no pal-
tar a visão nacional-socialista da Histó- co internacional, nos dias, meses e anos
ria europeia dos anos anteriores. Entre anteriores a agosto de 1936, já evidencia-
as várias formas a que Hitler recorreu va que o pacifismo tinha voltado a ser-
para propagandear os méritos e razões vir de desculpa para rearmamentos em
de ser da sua ideologia, conta-se a edição massa – especialmente da Alemanha – e
de um livro promocional dos jogos, edi- que o jogo dos impérios e dos territórios
tado em várias línguas, incluindo portu- estava novamente na ordem do dia. No
guês, para ser distribuído pelos turistas interior da Alemanha, também já o na-
que se deslocaram a Berlim para assis- zismo vinha impondo a ordem, supri-
tir ao evento. mindo liberdades públicas e privadas,
A ideia era mostrar ao mundo um país e o plano de Hitler para a reconstrução
renascido das cinzas, depois de anos de social, moral e racial do país avançava já
martírio e miséria vividos entre o final a passos largos para uma distopia de re-
da Grande Guerra (1914-18) e a ascensão pressão, violência e genocídio.
de Hitler, e os resultados já obtidos por Entre a subida de Hitler ao poder e os
este nos primeiros anos de poder. O li- Jogos de 1936, e só a título de exemplo, o
vro realça um país pacífico, organizado, novo poder na Alemanha já tinha pro-
metódico e caloroso face ao estrangeiro mulgado as primeiras leis para o aperfei-
que o visita. É essa a faceta da Alemanha çoamento do “novo Alemão” por meios
que se promove em 1936 para turistas e biológicos, a grande maioria das asso-
comitivas estrangeiras. “O fogo olím- ciações culturais e sindicatos indepen-
pico resplandece num país que recupe- dentes tinham sido liquidados e mais de
rou a sua alegria e a satisfação e a felici- mil jornais encerrados (outros 350 ha-
dade de confiar no seu futuro”, assegu- viam fechado voluntariamente). Tam-
ra-nos, no arranque, o livro editado pela bém a perseguição aos judeus já era vi-
Volk und Reich Verlag. “Este brilho, que sível: em julho de 1936, a um mês do iní-
no Ano Olímpico fulgura na Alemanha, cio dos JO, Stefan Lex, jornalista israelita
não é o brilho de um momento enverni- naturalizado checoeslovaco, tenta sui-
zado de cortesia, que emurcheça como cidar-se em plena reunião da Socieda-
flores colhidas (...). Não, este brilho não de das Nações, para chamar a atenção
é uma pintura artificial, mas provém do para a questão judaica, então “ignorada”

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O Noticioso

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DIREITOS RESERVADOS

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O Noticioso
DESTAQUE

por uma diplomacia paralisada perante


a guerra e o recrudescimento de tensões
internacionais.

O palco internacional
Os Jogos de 1936 coincidiram com o
eclodir da Guerra Civil Espanhola (1936-
1939), a ponta do icebergue do que então
se vivia. Também a soberania sobre a re-
gião de Danzig – hoje Gdansk, na Poló-
074 nia – aquecia a cada vez mais questio-
nada Sociedade das Nações, tal como
os boatos sobre uma aliança militar en-
tre Roma e Berlim e os voos de dirigíveis
alemães nos céus de Inglaterra, que tra-
ziam à memória os bombardeamentos
que os Zepellin fizeram chegar às ilhas
durante a Grande Guerra – pouco efica-
zes, note-se.
Como efeito e causa deste recrudes-
cimento de tensões esteve, também, a
decisão alemã de rasgar cláusulas do
Tratado de Versalhes, com os nazis a
decretarem, em março de 1935, o res-
tabelecimento do serviço militar obri-
gatório por um ano, duração duplicada
pouco depois. A justificação? O cresci-
mento da União Soviética, a manuten-
ção da paz e a defesa da Europa face à
ameaça bolchevique. “A história julgará
o bem fundado desta medida e espera-
mos que se manterá a paz. Se vier a guer-
ra, o julgamento da história será a nos-
so favor. O gesto do Reich nada tem que
ver com o militarismo. Foi a necessida-
de que o ditou. É um elemento de vida,
pois aumenta a segurança da Alemanha
e da Europa”, justifica então o “Voelkis-
che Beobachter”, órgão oficial dos na-
cionais-socialistas. O reativar e recons-
truir das capacidades bélicas alemãs,
tal como a recusa em continuar a pagar

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O Noticioso

Encenação
propagandística
que surge com a se-
guinte legenda: “Em
marcha para o tra-
balho”

indemnizações de guerra impostas por pico deviam esconder os receios e a psi-


Versalhes, foram pilares essenciais da cose de guerra em que a Europa estava
recuperação económica encetada por novamente envolvida. “Berlim trans-
Hitler, que, apesar de assente em enor- formar-se-á no centro do desporto do
mes créditos externos pagos à custa de mundo. O espírito da juventude alemã é
territórios conquistados, no desman- inspirado pela camaradagem. Não pen-
telamento de sindicatos ou no congela- sa na guerra. Pelo contrário, deseja en-
mentos dos salários ao s níveis da Gran- tender-se com o mundo inteiro e cola-
de Depressão, permitiram baixar o de- borar na organização de uma Europa
semprego no país, reforçando o apoio pacífica, onde cada povo tenha o seu lu-
popular granjeado pelos nazis. gar ao sol”, dirá Armand Massard, presi- 075
O livro entregue aos turistas para pro- dente do Comité Francês dos JO, a dias
mover a pacífica Alemanha dos JO não das Olimpíadas.
passa ao lado disto, elogiando a recupe-
ração económica em curso desde 1933 e O desporto e a educação nazi
reiterando a ideia de que o rearmamen- A recuperação económica e o rearma-
to visava unicamente a manutenção da mento do Exército eram apenas duas ra-
paz, promovendo a lógica que se preten- mificações do plano posto em prática
dia fazer singrar. “A obra reconstrutora por Hitler para a criação da “Nova Ale-
da Alemanha não pode ser realizada na manha”, plano em que também o des-
guerra mas somente na paz. Por isso, sal- porto e a cultura física tinham um lugar
vaguardam no interior do Reich os solda- destacadíssimo no novo modelo educa-
dos políticos a paz do Povo e nas frontei- tivo do jovem alemão, daí a importância
ras os soldados do exército, a paz da Na- que o regime atribuía à organização mas
ção. E assim a Alemanha perserva-se a também aos resultados nos JO – seriam
si e à Europa dos ataques da revolução a confirmação de uma superioridade fí-
mundial bolchevista”, explica-se aos tu- sica. Apesar dos dissabores servidos por
ristas. Se havia mais militares e mais ar- Jesse Owens (ver texto secundário) e pe-
mas, tal era apenas para assegurar que la seleção alemã de futebol ao Führer –
havia mais paz e menos bolchevismo na perdeu nos quartos-de-final com a No-
Europa. Afinal, e em 1936, a Alemanha ruega, por 2-0, na primeira vez que Hi-
olímpica irradiava pacifismo. tler viu um jogo de futebol –, a Alemanha
“Já não há envenenado ódio e guerra acabou por ser o país que mais meda-
civil a esfalecer este povo, as suas fábri- lhas conseguiu, com 101, ainda que te-
cas deixaram de estar paradas, os habi- nha sido também o país com mais atle-
tantes já não se consomem em atribula- tas em competição.
ções e misérias. Paz, fé e confiança cria- “A educação deve ter em mira, em
ram uma Alemanha contente que agora, primeiro lugar, o aperfeiçoamento do
alegre e vestida de gala, recebe os seus físico, pois, em regra, é nos indivíduos
hóspedes cordialmente”, diz o livro pro- sadios e fortes que se encontra a maior
mocional aos turistas sobre o país que capacidade intelectual”, escreveu Hi-
vão encontrar. A ideia e o espírito olím- tler em 1926, no “Mein Kampf”, sobre

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O Noticioso
DESTAQUE

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o sistema educativo que desejava pa- sa que o valha, mas um verdadeiro ale- ignora. Aí, informavam-se os turistas de
ra a Alemanha. “Não tem qualquer in- mão, na mais ampla aceção da palavra”. que, mais do que recuperar o país, “é pre-
teresse que se sobrecarregue o cérebro Moldar desde cedo as personalida- ciso manter e fortificar sempre de novo
das crianças com excesso de conheci- des era também um dos objetivos da re- a comunidade popular e a coesão nacio-
mentos que, a prática demonstra, só são forma nazi do sistema educativo, para a nal readquiridas”, justificando-se assim
conservados numa proporção insigni- qual o ciclo de ensino só terminava de- o trajeto da juventude alemã: “Está tra-
ficante”. O Führer via na forma como a pois do serviço militar obrigatório, sen- çado o caminho a seguir pelo jovem ale-
Alemanha educava os jovens a razão de do este o corolário de anos de um ensino mão. Depois de ter vivido as conceções
parte dos problemas do país, incluindo a já com grande componente hierárquica, fundamentais do Nacional Socialismo
derrota de 1914-18, defendendo por isso física e ao estilo militar. Só com esta pre- no Jungvolk (Vanguardistas Alemães),
“a redução dos programas e das horas de paração prévia seria possível fazer do e na Hitlerjugend (Juventude Hitleria-
estudo” de História e de línguas estran- serviço militar não uma etapa inicial da na), serve a Nação com a pá no Serviço de
geiras, cujo tempo passaria a ser usado instrução de um jovem, mas a sua etapa Trabalho e com a arma no Exército”. Exi-
em prol “da cultura física, do caráter, da final, podendo assim o Exército “trans- gia-se aos líderes do futuro uma “forma-
vontade, do poder de decisão”. Às duas formar jovens já perfeitos do ponto de ção particularmente esmerada”, que do-
horas por semana previstas nas esco- vista físico em verdadeiros soldados”. E tasse “a nova geração de chefes da con-
las alemãs para o exercício físico, Hitler obedecer e calar eram também dois pi- veniente educação física, de caráter,
contrapôs duas horas diárias. lares que deviam ser aprendidos com psíquica, espiritual e científica”.
Para o ditador, o desporto desempe- o serviço militar. A “mais alta escola da
nhava uma parte essencial na formação educação nacional” devia ensinar o jo- O legado nazi que sobreviveu
do “novo alemão”, não só pelo desenvol- vem a “aprender a calar-se, não só quan- “Às 16h em ponto, conforme o progra-
vimento do físico dos jovens, mas tam- do é censurado com razão” mas “tam- ma, Hitler dá entrada no Estádio. Ova-
bém para “prepará-los para suportarem bém aprender a suportar a injustiça em ções frenéticas. O hino nacional é can-
todos os reveses”. Entre os desportos, silêncio”, idealizou Hitler. tado de pé pela enorme multidão que
Hitler destaca o boxe. “Não há desporto Para garantir que o jovem alemão se peja o anfiteatro. Coral monstro de qua-
que estimule tanto o espírito de ataque”, mantinha no caminho decretado pelo se cem mil pessoas, reforçado ainda por
escreve. Para o Führer, a educação devia regime, surgiram numerosas organiza- poderosos alto-falantes. São içadas as
“ser orientada de tal maneira que um jo- ções juvenis nazis, não só para a promo- bandeiras das cinquenta nações que to-
vem, ao deixar a escola, não seja um se- ção do físico mas também da doutrina, mam parte nos Jogos e que tremulam ao
mipacifista, um semidemocrata ou coi- algo que o livro promocional dos JO não vento a par do pavilhão nazi e da ban-

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O Noticioso

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PARA SE FURTAREM À deira olímpica”. As olimpíadas de 1936 saudar Adolf Hitler. Isto à exceção dos
arrancaram a 1 de agosto, com os 427 re- ingleses, que para contornar o proble-
SAUDAÇÃO NAZI, presentantes alemães a assegurarem ao ma levaram chapéu de palha, levan-
OS ATLETAS INGLESES país a maior comitiva, seguidos pelos tando-o como saudação. Já os france-
357 norte-americanos. Portugal conta- ses, cuja participação nos JO esteve em
LEVARAM CHAPÉUS va com 19 atletas. dúvida dado o novo escalar de tensões
DE PALHA, QUE Da cerimónia de abertura, e além das entre os países, acabaram por saudar o
passagens do Zeppelin “Hindenburgo” Führer de braço estendido, sendo ova-
LEVANTAVAM AO pelo Estádio Olímpico, ficou a ideia do cionados depois de um gesto que até Hi-
PASSAR POR HITLER “triunfo do método” e de um espetácu- tler terá estranhado. “Não devemos ter a
lo até então sem paralelo. “Pessoas que mínima dúvida de que o inimigo mor-
assistiram aos Jogos anteriores confes- tal, inexorável do povo alemão é e será
sam que a festa inaugural de Berlim foi sempre a França. É indiferente que se-
de facto a mais imponente e a mais emo- ja governada por Bourbons ou jacobi-
cionante”, escreve o enviado especial nos, bonapartistas ou democratas bur-
do “Diário de Lisboa”, Ribeiro dos Reis, gueses, republicanos clericais ou bol-
a 9 de agosto. As boas relações entre Lis- chevistas vermelhos: o objetivo da sua
boa e Berlim ficam patentes com a sau- atividade política será sempre (...) que a
dação a Hitler dedicada pelos atletas Alemanha fique desunida e fragmenta-
portugueses, de braço estendido, numa da”, diz Adolf Hitler sobre os franceses
fase da cerimónia que deu azo a emba- no “Mein Kampf”.
raços. “A saudação em frente à tribuna A cerimónia de abertura dos JO de
de Honra, onde se encontrava o Führer, 1936 ficou, no entanto, na memória por
presta-se a comentários”, relata Ribeiro mais do que o embaraço da saudação a
dos Reis. “Houve muita gente que con- Hitler, deixando para as gerações futu-
fundiu a saudação olímpica com a sau- ras aquele que é hoje um dos momentos
dação hitleriana”. mais icónicos e aguardados nas abertu-
A saudação nazi não foi apenas uti- ras de quaisquer olimpíadas, ainda que
lizada por países amigos, já que muitos hoje seja uma recordação distante que
dos atletas presentes não sabiam como é de origem nacional-socialista a ideia

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O Noticioso
DESTAQUE

de trazer a tocha olímpica (o facho olím-


pico) numa corrida de estafetas desde a
Grécia.
Hitler adorava os clássicos. Gre-
gos e romanos seriam, provavelmente,
os únicos que colocava no mesmo pa-
tamar dos alemães. “Se nunca tivesse
existido o mundo clássico, se os alemães
tivessem descido para os países do Sul,
de clima mais favorável, e ali tivessem
078 contado com os primeiros auxílios da
técnica, empregando ao seu serviço ra-
ças que lhes eram inferiores, então a ca-
pacidade criadora latente teria produzi-
do uma civilização tão brilhante como
a dos helenos”, defende no “Mein Kam-
pf”. A importância dos clássicos para o
Führer era de tal ordem que até os dei-
xava existir no novo programa educa-
cional alemão: “Não se deve afastar o
estudo da história antiga, pois a história
romana, bem apreciada nas suas linhas
gerais, é e será sempre a melhor mestra
não só para o presente como para o futu-
ro. O ideal da cultura helénica, na sua tí- No livro distribuído aos turistas é notório o recurso
pica beleza, deve ser aproveitado (...). A
luta que hoje se agita tem o grande obje- a um dos mecanismos mais eficazes da propaganda,
tivo de, ligando a sua existência ao pas- com a estrutura da publicação a assentar na justa-
sado milenar, unificar o mundo greco-
-romano com o germânico”. posição entre o passado decadente, imoral e miserá-
E se os JO na Alemanha já se apresen-
tavam como uma forma de “unificar o
vel vivido pela Alemanha até à ascensão do Führer,
mundo greco-romano com o germâni- e o futuro dourado que só este podia trazer.
co”, a organização procurou reforçar es-
ta união de forma ainda mais singular,
decidindo ligar os dois países através
de uma inédita corrida de estafetas des-
de a praia de Maratona – de onde partiu
a corrida original em 490 aC – e Berlim,
numa homenagem que visou reforçar a
associação entre os povos clássicos e os
alemães. Foi desta forma que nasceu a

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O Noticioso

HITLER FOI CHEFE


DE PROPAGANDA
DO PARTIDO NAZI
ANTES DE CHEGAR
À LIDERANÇA, EM 1921,
E TIROU PARTIDO
DESSA EXPERIÊNCIA

tradição da viagem da tocha de Olímpia tler, de 1918 a 1933, sob o revelador títu- potentes aos povos que, numa tal emer-
até à cidade onde se realizam os Jogos. lo de “Anos da Miséria”. Este é o capítulo gência, não encontram uma solução he-
A 21 de julho de 1936 foi aceso um fo- que lança as bases do guião que se pre- róica. A força vital de um povo, o seu di-
gacho que, passado de mão em mão tende mostrar aos leitores: Hitler é o úni- reito à vida, manifestam-se do modo
por três mil estafetas, ligou a Grécia à co capaz de fazer renascer a Alemanha. mais impressionante, no momento em
Alemanha pela Bulgária, ex-Jugoslá- Sobre a vida alemã entre a Grande que esse povo recebe a graça de um ho-
via, Hungria, Áustria e ex-Checoslová- Guerra e a eleição do líder do partido na- mem que o destino reservou para a rea-
quia. “A maior corrida de estafetas que o zi, o livro promocional explica aos turis- lização das suas aspirações, isto é, para a
Mundo jamais viu”, “ligando com espiri- tas que o país organizador dos JO, apesar libertação de um grande cativeiro, para
tual laço de fogo o santuário grego fun- de jovial e belo em 1936, “ainda há pou- a supressão de amargas dificuldades.”
dado há quase 4000 anos por emigran- cos anos (...) era um país cheio de atri- Estas palavras foram escritas por Hitler 079
tes vindos do Norte e a nossa pátria ale- bulações e de miséria, dilacerado e in- em 1926 e eram confirmadas pela sua
mã”, apontou na altura Theodor Lewald, digente, banhado em rios de sangue da própria propaganda dez anos depois.
presidente do Comité Olímpico Alemão, fratricida guerra civil, dilacerado pelo “Só um homem se levanta com fanáti-
reforçando a ligação fictícia entre ale- flagelo do desemprego, da luta de clas- co ardor contra este andar das coisas:
mães e clássicos. A viagem da tocha foi ses e do desespero geral”. A longa descri- Adolf Hitler”, sentencia o livro promo-
um golpe de propaganda que superou o ção do pós-1918 prossegue reforçando cional no capítulo seguinte à descrição
criador e ainda hoje sobrevive. que “a imoralidade espalhava-se indó- dos anos da miséria na Alemanha, inti-
mita por toda a parte”, onde a “corrup- tulado “Alemanha de Adolf Hitler”.
O uso da propaganda ção, o crime e a depravação geral faziam A exaltação de Hitler como o “Esco-
Hitler vai explorar até aos limites a pro- a sua entrada triunfal” e “o bolchevismo lhido” para salvar o povo alemão foi um
paganda, aproveitando da melhor for- erguia a sua sanguinolenta cabeça”. dos pilares da propaganda e da ideologia
ma a experiência e as ideias que acu- Nesta Alemanha, explicava-se aos nazi que serviu para elevar o líder à cate-
mulou enquanto chefe de propaganda turistas, “os homens vagueavam, empo- goria de culto, com pequenos altares es-
do Partido Nacional Socialista, antes de brecidos, sem esperança, todos ameaça- palhados por locais públicos e residên-
chegar à liderança do mesmo, em 1921. dos pelo espetro do desemprego e da fo- cias privadas alemãs, num movimen-
Dessa fase, percebeu e reteve o poten- me, e continuamente alarmados pelos to que contava com uma liturgia e datas
cial da informação, construindo uma sangrentos combates nas ruas, com que comemorativas próprias, como o Dia de
teorização sobre o tema que mais tarde o bolchevismo procurava ir alcançan- Hitler, a 20 de abril, o Dia da Mãe Alemã,
colocaria em prática, tal como ocorreu do seu alvo, que era escravizar definiti- no aniversário da mãe de Hitler, o 30 de
com os JO. vamente a Alemanha e aniquilá-la co- janeiro para celebrar a chegada ao po-
No livro distribuído aos turistas é no- mo Nação culta europeia”. O caos estava der em 1933, etc. A elevação do Führer ao
tório o recurso a um dos mecanismos a um passo: “As estradas deterioram-se, patamar dos Deuses era já um facto em
mais eficazes da propaganda, com a es- a viação férrea não pode renovar o mate- 1936. “Exprimimos ao Chanceler a nossa
trutura da publicação a assentar na jus- rial, e só empréstimos contraídos no es- preocupação ao ver que o honram duma
taposição entre o passado decadente, trangeiro e agrilhoando um povo inteiro forma que pertence somente a Deus”,
imoral e miserável vivido pela Alema- à escravidão de juros conseguem dificil- criticam os chefes da Igreja protestante,
nha até à ascensão do Führer, e o futuro mente retardar um pouco o descalabro num texto contra a descristianização do
dourado que só este podia trazer. Ao ca- geral.” Os dias passavam “tristes e som- III Reich, pouco antes dos JO.
pítulo inicial sobre a Alemanha jovial e brios”, numa Alemanha que “perdeu to- “Os seus princípios doutrinários
bela que recebia os turistas, sucede-se da a esperança”. Isto até chegar 1933. eram simples e singelos. Podiam ser
um capítulo dedicado aos anos pré-Hi- “Deve-se dar o qualificativo de im- compreendidos por todos e ele repetia-

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O Noticioso
DESTAQUE

-os constantemente até eles constituí- sistem ainda à apropriação de todo o seu
rem para todos uma segunda nature- conhecimento, inovação e tecnologia,
za”, confidencia aos turistas o livro so- com Versalhes a impor a perda de todas
bre o “salvador” nazi, evidenciando a as patentes registadas pelo país. Segue-
própria teoria de Hitler sobre a propa- -se a desmobilização, a proibição de re-
ganda. “A capacidade de compreensão novar quadros nas Forças Armadas, o
do povo é muito limitada, mas, em com- corte nos efetivos da Polícia, a proibi-
pensação, a capacidade de esquecer é ção de ter armamento pesado, a entrega
enorme. Sendo assim, a propaganda de- da Marinha de guerra e de parte da mer-
ve-se restringir a poucos pontos (...). Ela cante, entre outras punições. O trata-
tem de se contentar com pouco; porém, do aumenta as dívidas do país, ao mes-
esse pouco terá de ser repetido constan- mo tempo que lhe retira a capacidade de
temente. A persistência (...) é a primeira e pagar essas mesmas dívidas. Muitas das
mais importante condição para o êxito” punições são impostas pelos franceses,
(Hitler no “Mein Kampf”). que viam em Versalhes uma oportuni-
O sucesso da propaganda exigia dade única de tomar o lugar alemão co-
igualmente uma boa matéria-prima mo potência continental.
que apelasse diretamente aos senti- Os termos do tratado acabam por re-
mentos, mágoas e recordações alemãs. forçar a condenação da Alemanha ao
A lenha para incendiar os ânimos. E Hi- Os “Vanguardis- caos nos anos que se seguem a 1918, po-
tler sabia precisamente onde estava es- tas Alemães – tenciando a dimensão da crise do país e
sa matéria-prima, fazendo dela uma das “Deutsches Jun- abrindo espaço para a miséria e desor-
bandeiras que mais apoio lhe deram na gvolk” – eram, a par dem, o que acaba por facilitar a ascen-
Alemanha, já que diretamente ligada ao de outras organi- são e a propaganda de Hitler. O líder na-
orgulho de um povo que se sentiu ex- zações, como a Ju- zi antecipou logo o potencial que Versa-
cessivamente castigado. O tópico eleito ventude Hitleriana lhes oferecia: “Quando, no ano de 1919, o
surge também repetidamente no livro (“Hitlerjugend”), um tratado de paz foi imposto ao povo ale-
promocional dos JO. mecanismo essen- mão, podia-se ter o direito de esperar
cial para a formata- que, justamente, esse instrumento du-
080 O ditado de Versalhes ção mental da “Nova ma opressão sem limites fizesse des-
O tratado de paz imposto aos alemães no Alemanha”. pertar no nosso povo um violento dese-
final da Grande Guerra foi bastante pu- jo de liberdade”, diz no “Mein Kampf”. E
nitivo, alimentando a miséria, mas tam- vaticina: “Como seria fácil para um go-
bém o ódio e o ressentimento entre ale- verno enérgico fazer desse instrumen-
mães já destruídos por anos de guerra, to de extorsão um meio para exaltar ao
tal como os restantes países envolvidos. máximo as paixões nacionais! Como se-
Mas o tratado individualizou, penalizou ria fácil, mediante uma inteligente di-
e culpou a Alemanha como única res- vulgação das crueldades e do sadismo
ponsável pela guerra de 1914-1918, que dos conquistadores, transformar a in-
eclodiu em circunstâncias totalmen- diferença de todo um povo em indigna-
te diferentes da que Hitler levaria a ca- ção, e levar esta indignação até ao furor”.
bo em 1939-1945. O excesso do Tratado É isso que Hitler fará.
de Versalhes não era visível apenas pa- O futuro líder do III Reich perspetiva,
ra os alemães, mas também para ingle- já em 1926, que o melhor caminho para o
ses e norte-americanos. John Maynard coração dos alemães está em Versalhes:
Keynes foi uma das vozes que alertaram “Cada artigo do tratado devia ter sido im-
desde logo para o facto de o documento presso no cérebro e no coração do povo,
garantir o oposto de uma base sustentá- até que finalmente a vergonha e o ódio
vel para a paz. de 60 milhões de homens e mulheres se
O tratado de 1919 é extenso e respon- transformassem numa torrente de cha-
sabiliza a Alemanha não só pelo paga- mas de onde se levantaria uma vontade
mento de indemnizações de guerra co- férrea a clamar: Nós queremos voltar às
mo pelos créditos a que os vencedores armas!” E conclui: “A opressão desmedi-
recorreram – junto da banca norte- da que ele fazia pesar sobre nós e a impu-
-americana – para financiar o conflito. dência das suas exigências ofereciam a
Os alemães perdem territórios, veem melhor arma de propaganda para a res-
amputados a sua capacidade industrial surreição dos sentimentos adormecidos
e o acesso a recursos naturais, perdem da Nação”. Não é assim de estranhar que
o controlo das vias fluviais e das pau- o “Ditado de Versalhes” acabe por figu-
tas alfandegárias, que passam a ser ge- rar com enorme destaque no livro pro-
ridas pelos vencedores. Os alemães as- mocional dos JO, onde é apresentado aos

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O Noticioso

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O Noticioso

turistas como a razão dos “Anos da Misé- vial e bela” dos JO de 1936 e pelos anos muito específica que Hitler tinha sobre
ria” por que passaram os alemães. da miséria pré-1933, o livro editado pa- o pacifismo. Paz sim, mas só depois de
“Enquanto o Ditado de Versalhes de- ra os turistas vem polvilhado de foto- os alemães tomarem conta do Mundo.
sarmava a Alemanha, não lhe deixan- grafias em que as obras de reconstrução “A paz no mundo não se mantém com
do aviões, nem canhões, nem tanques, e momentos de trabalho e lazer de ope- as lágrimas de carpideiras pacifistas,
nem armas defensivas, e até lhe proi- rários e famílias alemãs surgem ao lado mas pela espada vitoriosa de um povo
bia todos os meios de proteção contra de imagens dos congressos do partido dominador que põe o Mundo ao serviço
um ataque militar (...) e deixava assim em Nuremberga – a “profissão-de-fé da de uma alta cultura”, escreve no “Mein
os alemães indefesos e desprotegidos Alemanha no seu chefe” – e de demons- Kampf”, explicando que “quem, por
no seu torrão natal, desencadeavam- trações do novo poderio militar alemão, exemplo, quisesse realmente, do cora-
-se no seu interior, em violenta fúria, tudo conquistas só possíveis com os na- ção, desejar a vitória do pensamento pa-
por todo o tão mortificado país, o assas- cionais-socialistas. “À frente de tudo, o cifista, teria de se empenhar, por todos
sínio e a destruição, o terror e a subleva- Führer!”, sentencia a legenda da última os meios, para que os alemães tomas-
ção bolchevista”. Não bastasse a derrota página, ao lado de uma foto de página in- sem posse do mundo”.
na Grande Guerra, também as imposi- teira do rosto de Adolf Hitler. Poucos dias após o fim dos JO de 1936,
ções excessivas de Versalhes deixaram As promessas de paz e pacifismo que no final de agosto, Hitler colocaria num
o país demasiado fragilizado e vulnerá- se encontram um pouco por todo o livro memorando de seis páginas o caminho
vel para se proteger de outros males, ex- promocional contrastam com as pas- que a Alemanha deveria trilhar para as-
plica o livro aos visitantes de Berlim. sagens da mesma publicação em que a segurar o seu futuro, tal como idealiza-
amargura e o atribuir de culpas pelos do pelo líder nazi. Além do rearmamen-
O fim da “trégua ilusória” anos de miséria vividos saltam igual- to, Hitler decreta então que toda a eco-
Além da viagem pela Alemanha “jo- mente à vista, dando forma à perspetiva nomia deve ser colocada ao serviço da

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O Estádio Olímpico em constru- criação de uma máquina de guerra im- presidente do Comité Olímpico Interna-
ção (à esquerda). Na legenda da parável, através de um plano quadrie- cional, na cerimónia de encerramento
foto à direita, escreveram os na- nal que tomou força de lei em outubro dos JO, três anos antes do avanço nazi so-
zis: “A obra reconstrutora da Ale- do mesmo ano, com a atribuição a Her- bre a Polónia. O fogo olímpico, porém, só
manha não pode ser realizada na mann Göring de poderes absolutos pa- voltaria a arder 12 anos depois, num hia-
guerra, mas somente na paz”. ra levar a bom porto este plano. Em 1937, to que para atletas alemães e japoneses
perante a falta de matéria-prima para chegou a 16 anos, já que a sua participa-
alimentar o gigantesco complexo mili- ção foi recusada em Londres 1948.
tar-industrial alemão, o regime nazi de- Apesar dos desejos de Baillet-Latour,
senhou a tomada de territórios vizinhos muitos já estavam conscientes de que o
para “obter mais espaço vital”, leia-se futuro próximo era, no mínimo, incerto.
terras aráveis e matérias-primas. Em Ou, recorrendo novamente às palavras
1938, avança a anexação da Áustria e a de Ribeiro dos Reis na crónica sobre o
tomada dos Sudetas checos, e em 1939 encerramento dos JO: “À saída da Aldeia
segue-se a ocupação da Boémia e da Olímpica pensámos durante algum
Morávia, até que, a 1 de setembro, os na- tempo no ideal de paz e de paternidade
zis avançam sobre a Polónia. universal que o ideal olímpico preten-
“Que o facho olímpico possa prosse- de cimentar (...). Infelizmente, as nuvens
guir a sua carreira através dos tempos acastelam-se no horizonte e receamos
para o bem duma humanidade sempre muito que esta ‘paz olímpica’ seja ape-
mais ardente, mais corajosa e mais pura”, nas uma trégua ilusória, incapaz de de-
pede o Conde Henri de Baillet-Latour, ter o turbilhão que se avizinha”.

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O Noticioso
DESTAQUE

Resultados e peripécias
do “país amigo” de Berlim
A comitiva portuguesa assegurou uma medalha de bronze
no último dia de uma competição em que a falta de vinho
foi notada e o bacalhau foi levado de Portugal

“Como não há bela sem senão, os por- que as teorias racistas que não só na param-se em quatro anos e não em
tugueses só lamentam a falta de vi- Alemanha, mas também nos Estados quatro meses”, explicaria mais tarde
nho. Às refeições só servem água ou Unidos ou em Portugal, continua- o capitão Maia Loureiro, dirigente do
leite. Hão de convir, que não é das coi- vam bastante presentes. “Os ameri- Comité Olímpico e da Federação Por-
sas mais agradáveis, acompanhar a canos que não os consideram lá em tuguesa de Futebol sobre a prestação
carne guisada ou o bife com um copo casa, é à custa deles que vão marcan- portuguesa. “O Manuel Dias não sou-
de leite.” A “bela” era a Aldeia Olímpi- do os pontos para a classificação ge- be dosear o esforço e a ‘história dos sa-
ca de Berlim, um “verdadeiro triun- ral”, diz-nos Ribeiro dos Reis numa patos’ ainda será preciso que ele ma
fo”, nas palavras do enviado especial das crónicas sobre os Jogos, rotulan- conte mais uma dúzia de vezes para
do “Diário de Lisboa”, que deu igual- do de “desolador para a raça branca” a compreender”, acrescentaria. Mas
084 mente conta dos lamentos portugue- o resultado das provas de atletismo. qual história dos sapatos?
ses pela falta de vinho às refeições. “Simplesmente maravilhoso”, sinte- É que além dos resultados, também
“Não lhes deixam beber vinho, mas tiza sobre Owens. as peripécias vividas pela comitiva
deixam-nos admirar bailarinas qua- A delegação portuguesa acabou portuguesa ao longo dos JO de 1936,
se nuas”, acrescenta sobre a oferta de por conquistar uma medalha de bron- além dos lamentos sobre a falta de vi-
variedades disponível na aldeia olím- ze já no último dia dos Jogos, na pro- nho e do “bacalhau e uma garrafa de
pica. Não havia vinho, mas bacalhau va de hipismo por equipas. “Pela pri- azeite”, são dignas de registo. Como
não faltou, ainda que levado de Portu- meira vez na nossa vida assistimos à na maratona, prova em que Manuel
gal por Manuel Dias, maratonista e um consagração do desporto português Dias decidiu arrancar forte logo no
dos 19 atletas, entre os 22 e os 50 anos, em terra estranha, e foi com desva- início, segurando ainda a quarta posi-
que formaram a comitiva portuguesa. necimento que ouvimos os aplausos ção aos 25 quilómetros. Mas “daí por
João Sasseti, esgrimista então com 44 da multidão quando a bandeira por- diante começa porém a sua odisseia”.
anos, foi o porta-bandeira na cerimó- tuguesa começou a subir lentamen- “O piso da estrada e os sapatos come-
nia de abertura. te num dos três mastros de honra”, çam a dificultar-lhe a corrida. Chegou
No total estiveram em competição, confidencia Ribeiro dos Reis. A proe- ao fim da prova com os pés feridos e
entre 1 e 16 de agosto, quase 4500 atle- za deveu-se aos tenentes Mena e Sil- cheios de bolhas”, relata o enviado do
tas de 49 países. Realizaram-se 150 va, Domingos Coutinho (Marquês de “Diário de Lisboa”, apontando um de-
eventos, de 24 modalidades, e o país Funchal) e José Beltrão, que entre 54 do acusador: “Deve ter tido um pouco
mais representado e medalhado foi a cavaleiros de 18 países conseguiram de culpa no facto, porque contrarian-
Alemanha, com 101 medalhas, segui- o terceiro lugar – muito graças à des- do as indicações (...) não tratou de se
da pelos EUA (57) e Itália (27). Também classificação de italianos e belgas na habituar convenientemente aos sapa-
os atletas mais premiados foram ale- última ronda. tos com que foi correr”. Dias antes, já
mães: Konrad Frey, com 6 medalhas, Além do hipismo, Portugal conse- o mesmo enviado tinha criticado Ma-
três das quais de ouro, e Alfred Sch- guiu um 17.º lugar na Maratona, por nuel Dias por andar às compras por
warzmann, com 5, três de ouro. Manuel Dias, e um 6.º lugar na pro- Berlim, a três dias da prova.
Apesar destes marcos para o des- va individual de esgrima, através de Uma outra peripécia verificou-se
porto alemão, o nome que ficou para Henrique da Silveira, terceirense que logo na abertura dos Jogos. Alguns
a História foi o de Jesse Owens, atle- em 1928, nos Jogos de Amesterdão, fi- atletas da comitiva receberam do côn-
ta norte-americano, negro, que con- zera parte da equipa que garantiu o sul português em Berlim camisas com
quistou quatro medalhas de ouro, bronze em conjunto com João Sassetti. características específicas para uma
dando um dos maiores dissabores a “Sofreu de um modo geral, do mal cerimónia que normalmente obriga
Hitler, além de ter colocado em xe- da improvisação. Os ‘Olímpicos’ pre- os atletas a largas horas de espera. “As

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O Noticioso

Jesse Owens no to-


po do pódio do sal-
to em comprimen-
to, relegando para
segundo lugar o ale-
mão Lutz Long e pa-
ra terceiro o japonês
Naoto Tajima

camisas tinham também cuecas pe-


gadas, com um dispositivo especial
para determinadas necessidades”,
conta o correspondente. Mas alguém
esqueceu-se de explicar aos despor-
tistas este pormenor. Assim, sem co-
nhecerem o artigo os atletas “não en-
fiaram nas pernas a parte da camisa
que servia de cueca e, como é natural,
vestiram umas ceroulas suas. Resul-
tado: durante todo o desfile viram-se e 085
desejaram-se com o excedente da ca-
misa, que fazia um volume enorme e
não se acomodava. Percalços que a to-
dos podem suceder”.

As relações com Portugal


Outra ideia que se realça na imprensa
da época, e também no livro promo-
cional feito pelos alemães para os vi-
sitantes, é o facto de Portugal ser visto
desde a Alemanha como um país ami-
go e próximo do regime nacional-so-
cialista. O “folheto” promocional pre-
Os Jogos Olímpicos de Berlim serviriam, também, como parado pelos alemães para os turistas
dedica duas imagens de página intei-
demonstração da superioridade do atlético “novo ale- ra às viagens promovidas pela “For-
mão”. E a maior parte das medalhas ficou em casa, quan- ça da Alegria” (“Kraft durch Freude”)
à Madeira e aos Açores, em março e
to mais não seja porque a Alemanha era o país com maior abril de 1936, quando oito mil operá-
representação. Porém, a grande figura dos jogos – e o pior rios alemães visitaram o país em pas-
seio, sendo recebidos por bandeiras
pesadelo de Hitler – foi Jesse Owens, um afro-americano nazis e de braço estendido pela co-
munidade alemã radicada em Portu-
que arrecadou quatro medalhas de ouro. gal – viagens retratadas num docu-
mentário de Artur Costa de Macedo,
produzido pelo Secretariado da Pro-
paganda Nacional e hoje disponível
na Cinemateca Digital.
Também a nível diplomático se
confirmavam as boas relações entre
os países ao longo do ano das Olim-

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O Noticioso

Delegação
da Mocidade Portu-
guesa aos Jogos en-
saiando a saudação
fascista na Escola
Militar, em Lisboa

píadas. Karl Emil Schabinger, o barão


von Schowingen, delegado do Minis-
tério Público em Karslruhe e mem-
bro das SS, forças paramilitares do
Partido Nazi, escreveu no início do
verão uma série de artigos para jor-
nais alemães, depois de uma estadia
de um mês a Portugal. Nestas repor-
tagens, feitas para o “Karlsruher Ta-
gblatt”, em julho de 1936, Schabinger
086 escreve sobre o país de Salazar real-
çando que, “apesar de algumas dife-
renças fundamentais”, o regime por-
tuguês “corresponde em muito ao da
nova Alemanha”, sem duvidar de que
lado se coloca Portugal na luta contra
o bolchevismo.
“São três os países que atualmen-
te encaram corajosamente o bolche-
vismo: a Alemanha, a Itália e Portu-
gal. Com esta frase os meus amigos
portugueses costumam caracterizar
o que há de comum na política des-
tas três nações e que ao mesmo tem-
po constitui um dos aspetos mais im-
portantes do Estado Novo”, escreveu
o magistrado. Que também deu con-
ta da história portuguesa recente aos
leitores alemães: “Até 1926, Portugal
era conhecido entre nós como país
das eternas revoluções. A revolução
nacional de 28 de maio de 1926, leva-
da a efeito pelo Exército e pela Mari-
nha, pôs termo a um tal estado de coi-
sas. O general Carmona (...) foi eleito
Presidente da República. A sua ação
que mais importantes consequên-
cias produziu foi a nomeação do dr.
Oliveira Salazar para ministro das
Finanças e presidente do Conselho.
Salazar é hoje o verdadeiro ditador
de Portugal”.

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O Noticioso

087

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O Noticioso
MUSEU DO TRIMESTRE

Museu Nacional Grão Vasco

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Uma arca
centenária
repleta
de tesouros
nacionais
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O Noticioso

Coleção do natu-
ralismo português
constitui um acer- 089
vo importantíssi-
mo; destaque tam-
bém para o retrato
de menina, de Rai-
mundo de Madrazo
(1841-1920), uma
das obras mais que-
ridas do público.
FOTOS: RUI OLIVEIRA/GLOBAL IMAGENS

Proximidade Basta ter olhos na cara e usá-los para reparar. mais. Ao entrar no roteiro da Rede Portuguesa
da Sé de Viseu leva Quando, depois de apreciarmos a pintura de Vas- de Museus, a própria cidade ganhou, e o refor-
muitos visitantes co Fernandes, passamos às salas seguintes para ço consolidado do número de visitantes – 86 371
ao museu encontrar o que fizeram os discípulos dele e ou- em 2015, o quinto mais visitado da rede – é pro-
tros que se seguiram, mergulhamos numa in- va também disso. Ao interesse pelas coleções
congruência, pois obras mais recentes parecem somam-se, como impulsionadores da visita,
mais antigas, mais toscas, menos interpelantes. a presença nessa lista, mas também o interes-
Agostinho Ribeiro, diretor do espaço, dá a res- se pela remodelação do edifício ou, até, a vanta-
posta simples e lógica: “Por algum motivo uns gem de o museu estar paredes-meias com a Sé
são mestres e outros não”. Daí que o espaço seja o de Viseu, o monumento mais visitado da cidade.
Museu Nacional de Grão Vasco e não outra coisa Como tantos outros, este é um museu da Repú-
qualquer. Há cem anos, no coração de Viseu. blica, que começou a ser planeado em 1913 mas
O museu é Nacional desde o ano passado, e tal só teve eficácia legal em 1916. A linha programá-
designação, no seguimento da profunda remo- tica passava por dotar todas as capitais de distri-
delação levada a cabo de 2001 a 2004, com assi- to de uma estrutura destas, mas Viseu teve, nes-
natura, em termos arquitetónicos, de Eduardo se particular, um tratamento único, decorrente
Souto de Moura, está a constituir o impulso de- do facto de a circunscrição administrativa al-
cisivo de que necessitava a instituição, guardiã bergar duas sedes diocesanas (Viseu e Lamego):
de um dos notáveis acervos de pintura renas- os homens bons de Lamego não foram em can-
centista portuguesa, mas também de uma ex- tigas e conseguiram impedir que os seus tesou-
celente coleção de naturalistas e muito, muito ros de pintura fossem levados para Viseu, sendo

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O Noticioso
MUSEU DO TRIMESTRE

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INFORMAÇÃO ÚTIL criado o museu local onde podemos desfrutar tos em locais inesperados do museu (por vezes,
Largo Santo do que resta do retábulo elaborado pelo mes- em diálogo não intrusivo com as coleções), es-
MUSEU
António mo Vasco Fernandes para a Sé lamecense (so- tá ainda na via pública, em quatro locais (Rossio,
bram apenas cinco tábuas). Rua Formosa, Praça D. Duarte e Adro da Sé).
Rua Direita N2 Não é isso que obsta, porém, a que o Museu Na- Ser a quarta cidade, após Lisboa, Porto e Coim-
cional de Grão Vasco, que alberga 22 tesouros bra, a albergar um museu nacional pôs Viseu
nacionais, seja detentor da mais representati- nos circuitos internacionais. E o centenário es-
ADRO DA SÉ va coleção do mestre quinhentista e, de um mo- tá a ser pretexto para uma estratégia de reforço
3500-195- VISEU do geral, de pintura representativa do Renasci- dos públicos, através de um programa diver-
232422049 mento e pré-Renascimento portugueses. Mas, sificado e multifacetado, assente no potencia-
Encerrado às segun- se o património artístico originário da Sé de Vi- mento de muitas parcerias com outras entida-
da-feiras e nas ma- seu, particularmente as obras de Grão Vasco, des, designadamente locais, mas não só. Es-
nhãs de terça, o Mu- constitui o núcleo fundacional do museu, es- se envolvimento das forças viseenses faz parte
seu Nacional Grão te foi construindo, ao longo dos anos, um acer- de um esforço que tem sido feito, nos últimos
Vasco funciona, vo bem mais eclético, começando pelo já refe- tempos, no sentido de levar a comunidade lo-
normalmente, das rido núcleo do naturalismo português – em que cal a identificar-se com o seu museu, essencial
10h00 às 17h30. sobressaem obras de Columbano, José Malhoa para dar sustentabilidade ao processo de cres-
O bilhete custa 4 €, e Silva Porto, entre muitos outros – e passando cimento e de afirmação.
mas a entrada é gra- por pintura neoclássica, escultura religiosa (sé- Até 26 de junho pode ainda visitar-se uma ex-
tuita ao domingo de culos XVI a XVIII), arte dos Descobrimentos, ar- posição multimédia que traça o percurso cen-
manhã, bem como tes decorativas... As mostras temporárias tam- tenário do museu, mas a grande mostra do
para desemprega- bém desempenham um papel fundamental, centenário virá a seguir (de 2 de julho a 25 de
dos da UE e menores sendo que à data em que esta edição é publicada setembro): sob o título “Depois de Grão Vasco,
de 14 anos. (e até 26 de junho), vale a pena apreciar a exposi- Pintura entre o Mondego e o Douro, do Renas-
ção “Diálogos intemporais” (escultura de Rogé- cimento à Contra-Reforma”, resultante de uma
rio Timóteo), que, além dos 12 trabalhos expos- parceria com o Museu Nacional de Arte Antiga.

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O Noticioso

S. Pedro
Perfeição
do mestre
no tesouro
maior
O S. Pedro, pin-
tado na década de
1530, já foi aponta-
do como a obra in-
superável de Vasco
Fernandes. É ho-
je o mais emblemá-
tico dos tesouros à
guarda do museu
que ostenta o nome
do mestre. Um bom
exercício para en-
tender a elevação
técnica e estética
a que ele ascende-
ra é algo que, por via
da reprodução fo-
tográfica, está no
volume 5 da His-
tória da Arte Por-
tuguesa que Paulo
Pereira dirigiu pa-
ra o Círculo de Lei- 091
tores: cotejar es-
te S. Pedro com um
outro, de compo-
sição idêntica, pin-
tado por um discí-
pulo de Grão Vasco,
Gaspar Vaz, que se
encontra na igreja
do mosteiro de São
João de Tarouca. A
“cópia” está lon-
ge da perfeição do
original, em que os
elementos ligados
ao humanismo in-
diciam a influência Santa Ana Píxide em Marfim A intrusão
de D. Miguel da Sil- e a Virgem (detalhe), do século XVI, oriun- do índio na adoração
va, grande bispo do
Renascimento, no
escultura executada
em 1723 por Claude
da da Serra Leoa, é
um dos tesouros na-
dos reis magos
trabalho do artis- Joseph Laprade cionais existentes Exposto em frente ao S. Pedro, destacado na
ta. Mas o mais mar- no museu página anterior, o políptico que pertenceu ao
cante, entre tantos altar-mor da Sé de Viseu tem uma particula-
detalhes perfeitos, ridade que, embora muito conhecida, conti-
como os sombrea- nua a ter o seu quê de surpreendente. Num dos
dos e a ondulação 14 painéis é retratada a adoração dos reis ma-
das vestes, é a for- gos, sendo que a figura do rei negro, Baltazar, é
ma como o auste- a reprodução de um índio sul-americano. Pin-
ro rosto do santo tado dois anos após a chegada dos portugue-
nos interpela dire- ses ao Brasil, este óleo sobre madeira de car-
tamente, a partir do valho constitui aquela que se crê ser a primeira
trono pontifício. representação dos índios na arte ocidental.

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O Noticioso
HISTÓRIAS CÓSMICAS

Da Terra plana
à planura
Miguel Gonçalves
Coordenador Nacional
da Sociedade Planetária
das mentalidades
Sociedade da comunicação propaga assustadoramente
visões mais do que negadas pela ciência

T
erão sido muitos os que, nunca Uma Terra plana era graficamente bem re-
tendo pegado num livro de Um- presentada pelas antigas civilizações da Babiló-
berto Eco, partilharam nas redes nia e do Egito. Geralmente, era um disco rodeado
092 sociais um dos seus últimos pen- de encostas montanhosas, flutuando num imen-
samentos, pouco abonatório das so mar. Essa perceção da forma do planeta não
ditas. No ano passado, ao receber deixa de ser curiosa, tratando-se de civilizações
o grau de doutor honoris causa da com conhecimentos de Astronomia que podiam
Universidade de Turim, o pensador italiano afir- rasgar tais ideias. E apesar da total elucidação
mou que “as redes sociais dão o direito à palavra teórica e prática dos sucessores gregos, a Terra
a uma legião de imbecis” e que “o drama da In- plana foi acolhida por personalidades tão fasci-
ternet é que ela promoveu o idiota da aldeia a de- nantes como Santo Agostinho (séculos IV-V) ou
tentor da verdade”. E Eco não chegou a conhecer Martinho Lutero (séculos XV-XVI). Para ambos, a
a profunda inteligência de B. o. B., rapper ame- Terra teria de ser plana, pois isso permitia enviar
ricanoque usou as redes sociais para propagar para a parte inferior do disco todos os pecadores
um surto de inexplicável parvoíce. No início des- e, assim, impedi-los de testemunhar o triunfante
te ano, o artista, que tem mais de dois milhões de regresso de Jesus Cristo.
seguidores no Twitter, garantiu que a Terra não é A eventual sensualidade de uma Terra plana
redonda, mas plana. E mostrou, como “provas”, continuou a mobilizar seguidores. Em meados
fotografias com horizontes longínquos e planos: do século XIX, um inventor e escritor inglês, Sa-
se o horizonte é plano, a Terra plana é. muel Birley Rowbotham, ligou a forma plana da
Vamos esquecer por um momento que mais Terra a elementos da Astronomia e passagens da
de seis décadas de exploração espacial revela- Bíblia. Todo o mantra desta delirante filosofia es-
ram a forma da Terra; vamos esquecer que já os tá num livro que publicou em 1881 – “Zetetic As-
antigos gregos (v.g. Aristóteles) desconfiavam tronomy: Earth Not a Globe” –, um êxito que che-
que só podia ser redonda, pois, nos eclipses da gou a abalar o pensamento de alguns homens de
Lua, a sombra (da Terra) na superfície lunar é re- ciência coevos. Poderíamos, talvez, pensar que
donda. Vamos esquecer tantos outros indícios, o sucesso destas teses ficou restrito a um tem-
do navio que se aproxima, no horizonte, às cons- po e sucumbiu aos primeiros passos astronáu-
telações diferentes que se avistam nos hemisfé- ticos dados no século XX. Mas não! Em outubro
rios Norte e Sul. Ou ainda como Erastótenes, há de 1946, uma câmara fotográfica, acoplada a um
mais de 2100 anos, descobriu que dois paus co- míssil V2, elevou-se até perto dos 105 quilóme-
locados em locais diferentes produzem sombras tros de altitude e registou a primeira imagem da
diferentes. Enfim, vamos esquecer que já sabe- Terra vista do Espaço. A curvatura está lá, em to-
mos há milénios que B.o.B. está “ligeiramente” do o seu esplendor. Porém, uma década depois,
fora da mais elementar sabedoria científica. um desenhador de cartazes publicitários, Sa-

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O Noticioso

Citações bíblicas
apoiam esta repre-
sentação oitocentis-
ta da Terra plana

muel Shenton, fundou a International Flat Earth que não deve ser dada projeção. Eis o que me
Research Society (IFERS). Em 1957, aquando do preocupa em tudo isto e faz eco em... Eco: nu-
lançamento do satélite soviético Sputnik, Shen- ma época em que o avanço científico e tecnoló-
ton tinha a resposta na ponta da língua: o satéli- gico é vertiginoso e dificilmente acompanha- 093
te fazia uma órbita circular à volta da Terra... pla- do por manuais escolares e professores, um tem-
na. Depois, quando foram divulgadas as primei- po em que, inconscientemente (mas, por vezes,
ras fotos com cada vez melhor resolução da Terra propositadamente), muitos creem que o que al-
vista do espaço, a reação dos responsáveis dessa guns afirmam em redes sociais ou na comunica-
sociedade foi desconcertante: “É muito fácil de ção social são verdades insofismáveis, o podero-
comprovar como uma imagem pode enganar tão so megafone usado para promover a mensagem
bem um olho que não esteja treinado!”. totalmente errada de B.o.B. é muito perigoso. Não
Talvez o mais carismático presidente da está em causa a liberdade de expressão, mas al-
IFERS tenha sido o americano Charles K. John- go igualmente poderoso: a maturidade da nos-
son, que não foi além do ensino secundário, mas sa cultura científica. Em 2014, a americana Na-
criou publicações regulares sobre o tema. Em ca- tional Science Foundation divulgou um estudo
sa, guardava a biblioteca oficial da IFERS, perdi- curioso. De 2004 a 2012 fez uma pergunta a pes-
da num incêndio, em 1995. Johnson faleceu em soas de vários países: “A Terra gira à volta do Sol
2001. Ou seja, não faltavam fotos da Terra, entre ou é o Sol que gira à volta da Terra?”. Nos EUA,
elas as que astronautas haviam feito a partir da 26% dos inquiridos pensam que a Terra continua
superfície da Lua, e, em 2001, para alguns, a Terra a ser a rainha no centro do do Sistema Solar. Na
era plana. Mas a história não parou aí. A Flat Ear- Europa, 34% pensam da mesma maneira. Na Co-
th Society renasceu, em 2004, e começou a acei- reia do Sul, ainda há 14% de respostas erradas.
tar novos membros. A ideia basilar mantém-se: Ou seja, apesar do investimento feito em ciên-
a Terra não é redonda e achatada nos pólos. Tudo cia, tecnologia, educação e comunicação, após
faz parte de uma gigantesca conspiração. décadas de viagens da Humanidade pelo Cos-
Regressemos ao rapper B.o.B.. A sua deman- mos, continuamos a encontrar números assusta-
da prosseguiu durante alguns meses, conseguiu dores para a nossa mais básica ignorância.
envolver-se numa disputa “twittiana” com o fa- Espero que desse lado esteja alguém que saiba
moso astrofísico (e apresentador da nova série a resposta à pergunta do estudo. Caso contrário,
“Cosmos”) Neil deGrasse Tyson e acabou mesmo tente falar com o B.o.B.. Ele é capaz de ter algu-
por produzir um novo álbum dedicado à sua ado- mas teorias interessantes sobre o assunto! Mas,
rada e completamente errada teoria. por favor, não partilhe nas redes sociais tão pro-
Há quem diga que tudo foi uma jogada de ma- fundos pensamentos, pois, sempre que tal acon-
rketing (B.o.B. nunca o reconheceu), há quem tecer, garanto-lhe que um gatinho morre! Está
pense que tudo não passou de um fait divers a cientificamente comprovado. Eventualmente.

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O Noticioso
ROSTOS DA HISTÓRIA

Fernand Braudel
1902-1985

P
rimeiro o espaço, logo o tempo desse espaço, Recentremo-nos no homem. Como chegou Fernand Brau-
imenso, a “longue durée”. Fernand Paul Achi- del ao Mediterrâneo? Já professor de História, esteve colo-
lle Braudel, nascido a 24 de agosto de 1902, na cado na Argélia, de 1923 a 1932, e foi aí que esse mar, outrora
região do Mosa, e morto a 27 de novembro de centro do mundo, lhe entrou pelos olhos como que uma im-
1985, na Alta Sabóia, historiador francês que posição, “um Mediterrâneo da outra margem, como que ao
revolucionou a historiografia e criou escola, contrário”, explicou. Tal levou-o a mergulhar longamente
tornando-se o símbolo maior da segunda ge- em arquivos (Paris, Simancas, Madrid, Génova, Veneza, Ro-
ração da revista “Annales” e abrindo a porta a nomes como ma, Dubrovnik), mas o rumo final da grande tese, que veio a
Georges Duby, Roland Barthes ou Emmanuel Le Roy Ladurie. resultar de muitas alterações e acasos, estava ainda por deci-
Foi da geração precedente, particularmente de Lucien dir. Colocado pelo Governo francês a trabalhar em São Paulo,
Fèbvre, que recebeu o impulso para rasgar um caminho ino- no Brasil, de 1934 a 1937 não se desligou do Mediterrâneo, mas
vador. Fèbvre havia sido, na realidade, autor do primeiro es- adquiriu a perspetiva sul-americana das extensões atlânti-
tudo em que se esboçava a ligação entre a História e a Geogra- cas do mundo mediterrânico e pôde reflectir melhor sobre a
fia (“La terre et la évolution humaine” – A terra e a evolução orientação a dar à tese. Tanto mais que foi numa viagem de re-
humana), e, já enquanto mestre e amigo de Braudel, incenti- gresso a França que conheceu pessoalmente Lucien Fèbvre,
vou-o a mudar o que seria a sua tese de doutoramen- este a voltar a casa depois de uma série de conferências
to de uma perspetiva clássica, um estudo sobre “A na Argentina.
094 política mediterrânica de Filipe II”, para uma Tudo mudaria aí, definitivamente, mas não
abordagem radicalmente diferente e pratica- foi essa a última peripécia na preparação des-
mente inaudita, que veio a traduzir-se no co- te trabalho. Já colocado como professor na
lossal trabalho “O Mediterrâneo e o mundo “École Pratique de Hautes Études”, Brau-
mediterrânico na época de Filipe II”. del viu eclodir a II Guerra Mundial, foi mo-
Dividido em três partes, o trabalho ar- bilizado e acabou prisioneiro de guer-
ranca com aquela que se reporta à longa ra dos nazis, assim permanecendo de
duração, intitulada “La part du milieu” 1940 a 1945, sobretudo no campo de Lu-
(o papel do meio), em que o espaço geo- beque. Foi aí que, sem documentos, sem
gráfico se assume como protagonista de notas e valendo-se apenas da prodigiosa
“uma história quase imóvel, a do homem memória, levou a cabo o primeiro esbo-
nas suas relações com o que o rodeia”. Se- ço da sua monumental tese, que, depois
gue-se o volume respeitante à média du- de libertado, concluiu em casa de Fèbvre
ração – “Destins collectifs et mouvements e entregou em 1946 (foi publicada três anos
d’ensemble” (destinos coletivos e movimen- depois, e o autor deu à estampa uma segun-
tos de conjunto) –, que se reporta a grupos e da edição, revista e aumentada, mas fiel à pri-
agrupamentos, ou seja, a mais próxima de uma meira, no essencial, em 1966).
história social no sentido desenvolvido pelos “An- A partir da consagração recebida após “O Me-
nales”. A terminar, um tomo dedicado à curta dura- diterrâneo...”, Braudel protagonizou uma notável car-
ção, a duração dos indivíduos, a história personalizada (“Les reira académica, dirigindo a revista “Annales”, presidindo
événements, la politique et les hommes” – Os acontecimentos, à sexta secção da Escola Prática de Altos Estudos, ocupando
a política e os homens), algo que o próprio autor definiu como uma cátedra no Collège de France, e publicando sempre arti-
“uma agitação de superfície”, isto é, “uma história à dimensão gos e ensaios de enorme importância. E publicou ainda uma se-
não do homem mas do indivíduo”. Ou seja, uma história mais gunda obra monumental – “Civilização Material, Economia e
tradicional ou, por outras palavras, a forma como a tese, embo- Capitalismo do século XV ao século XVII”, ainda hoje uma es-
ra sendo de rutura com a “história historizante”, não o é total- pécie de “bíblia” para a história económica da Época Moderna.
mente (não obstante Braudel aborde os acontecimentos mais Braudel foi, claramente, o mais notório filho (e pai tam-
pelo que deles resultou do que pelas incidências propriamen- bém) da escola dos “Annales”, que abriu ao historiador os
te ditas). Ou seja, mantendo algum respeito pela escola metódi- horizontes do antropólogo, do economista, do geógrafo, do
ca, nega-a no estabelecimento de prioridades: o político, antes demógrafo... Mas, com uma lacuna que alguns apontam: o
posto em primeiro lugar, é aqui remetido para uma dimensão desinteresse total por questões ligadas à religião ou às menta-
secundária, mais consequência do que causa. lidades. No fundo, também aí todo um programa.

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O Noticioso

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O Noticioso
LIVROS

DE OLHOS
NA AMÉRICA,
NO PASSADO
COMO HOJE
KISSINGER HISTÓRIA DAS RELAÇÕES
Historiografia vai progredindo 1923-1968: O IDEALISTA PORTUGAL-EUA
pela inovação, mas não NIALL FERGUSON TIAGO MOREIRA DE SÁ
necessariamente pela rutura Temas e Debates | 970 páginas | 29,90 € D. Quixote | 648 páginas | 24,90 €
Esta biografia de uma das mais No primeiro estudo sistemático
marcantes personalidades po- das relações entre Portugal e os
líticas do século XX, apoiada em EUA, de 1776 à atualidade, Tiago
vasto rol de fontes , é autorizada Moreira de Sá tenta perceber, so-
mas não apologética. Este tomo bretudo, de que modo o posicio-
Num tempo em que, para muitos, o futuro dos mostra como o jovem judeu ale- namento português, ao longo do
Estados Unidos da América pode ser visto com mão Heinz se tornou Henry, nos tempo, esteve ou não em sinto-
apreensão — a nomeção de Donald Trump como EUA, como se fez professor, em nia com a relação entre a Europa
candidato do “Grand Old Party” tem na sua es- Harvard, e, depois, conselheiro e a América. Tudo desagua, ago-
sência algo de retrocesso civilizacional —, abri- influente de líderes americanos, ra, na perda de importância es-
mos a nossa lista de sugestões bibliográficas com de Kennedy a Nixon. tratégica de Portugal.
dois trabalhos em que esse país é desenhado com
096 diferentes matizes do passado: a vida de Henry
Kissinger, uma das mais fascinantes e controver-
sas personalidades políticas do século XX, e o es-
tudo das relações entre Portugal e a grande po-
tência do mundo ocidental, de 1776 até ao tempo
presente, em que a perda de interesse estratégico
da base das Lajes enforma o essencial do que ho-
je é o nosso ponto de vista, nessa relação bilate-
ral. De Kissinger temos tido, até agora, as referên-
cias autobiográficas que relevam da profusa obra
do antigo secretário de Estado de Richard Nixon,
mas esta nova biografia (género de elevada re-
levância no panorama americano, embora aqui
concretizado por um historiador britânico, Niall
Ferguson) vem colmatar um vazio que persis-
tia, na medida em que a total disponibilidade do
biografado para a cedência de materiais é cruza- PEREGRINAÇÃO OS FILHOS
da com a total liberdade do biógrafo para a com- VERMELHA DA CLANDESTINIDADE
plementar com documentação de múltiplas ori-
gens. É este apenas um, entre os vários exemplos ANTÓNIO CAEIRO ADELINO CUNHA
que aqui temos, de como a historiografia progri- D. Quixote | 200 páginas | 15,90 € Esfera dos Livros | 368 páginas | 19,80 €
de pela inovação (não necessariamente pela ru- Um livro de jornalismo e uma im- “A história da desagregação das
tura). Tal premissa aplica-se também, por exem- portante aproximação à histó- famílias comunistas no exílio” é a
plo, ao que o historiador Álvaro Garrido faz em ria da atração portuguesa pe- segunda incursão do historiador
relação ao estudo da economia social (uma pers- lo maoismo e aos contactos que e jornalista Adelino Cunha pe-
petiva que faltava), ou, num campo muito apete- sempre houve entre Lisboa e Pe- lo passado do PCP, depois do “re-
cível para o grande público, na abordagem inova- quim, não obstante as relações trato pessoal e íntimo” de Álvaro
dora que Miguel Gomes Martins faz aos castelos diplomáticas entre Portugal e a Cunhal (2010). É abordada a rea-
de Portugal, enquadrando-os numa perspetiva República Popular da China só te- lidade dos filhos de funcionários
inédita, misto de análise, de guia e de guião pa- rem sido oficializadas em 1979, do partido enviados para a URSS,
ra uma aventura por um dos períodos mais fasci- 30 anos depois da tomada do po- mas também o exílio de funcio-
nantes do nosso passado. der pelos comunistas chineses. nários e dirigentes.

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O Noticioso

ARDENAS 1944 – A ÚLTIMA SILÊNCIO QUEM FAZ UMA HISTÓRIA DA


JOGADA DE HITLER E VIRTUDE A HISTÓRIA ECONOMIA SOCIAL

ANTONY BEEVOR ANTÓNIO VENTURA JOSÉ NEVES (ORG.) ÁLVARO GARRIDO


Bertrand | 520 páginas | 22,20 € Temas e Debates | 384 páginas | 18,80 € Tinta da China | 278 páginas | 14,90 € Tinta da China | 320 páginas | 13 €
Dezembro de 1944. A marcha Depois da História da Maçona- “Quem faz a História” acaba por É no campo das ideias que Álvaro
dos Aliados sobre a Alemanha ria em Portugal (2013), Antó- ter um duplo sentido. O preten- Garrido aloja a primeira síntese
depara-se com o que foi, em to- nio Ventura completa o tema, de- dido pelo organizador, centrado histórica da economia social (vi-
da a II Guerra Mundial, a maior bruçando-se sobre a ainda me- nos sujeitos da História, e um ou- rá depois a abordagem centra-
batalha na Europa ocidental. An- nos conhecida presença feminina tro, decorrente da leitura, que é da nas instituições). Este ensaio
tony Beevor, conhecido divul- na Maçoniaria, ou, melhor, sobre o de perceber quem são alguns põe ordem num objeto de estu-
gador de história militar, mergu- a relação entre as Obediências e dos novos protagonistas da his- do que, embora enformado por
lha com profundidade e fluência as mulheres, nem sempre pacífi- toriografia (do “fazer História”) uma doutrina própria, tem si-
narrativa na última grande ofen- ca, e as dificuldades sentidas para e algumas das tendências da in- do analisado a reboque da histó-
siva nazi, que acabou por ser o a implementação de lojas femini- vestigação atual, no que ao Por- ria social, da história das institui-
canto do cisne da Wehrmacht. nas em Portugal. tugal contemporâneo respeita. ções ou da história do Direito.

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GUERREIROS VENI, VIDI, VICI MOÇAMBIQUE NA OS SEGREDOS


DE PEDRA I GUERRA MUNDIAL DA CENSURA
MIGUEL GOMES MARTINS PETER JONES TERESA ARAÚJO (ORG.) CÉSAR PRÍNCIPE
Esfera dos Livros | 400 páginas | 23 € Texto | 408 páginas | 19,90 € Húmus | 154 páginas | 12,70 € Afrontamento | 140 páginas| 12 €
“Dar a palavra a estes velhos “Tudo o que sempre quis saber Médico de V. N. Famalicão, Joa- Lançado em 1979 e há muito es-
guerreiros de pedra” – não ha- sobre os romanos mas teve me- quim Alves Correia de Araújo gotado, o trabalho de César Prín-
veria forma mais poética pa- do de perguntar”, o chavão es- foi incorporado no Exército em cipe, um clássico no que respeita
ra o medievalista Miguel Gomes crito na capa, não honra este be- 1917 e levado para Moçambi- à censura no fim do Estado Novo,
Martins introduzir este estudo lo exemplo de divulgação histó- que. Aí alimentou um diário, que ganha nova vida e um prefácio
sobre a arquitetura militar por- rica para o grande público. Cada recupera vida pelas mãos da so- do jornalista e escritor Francis-
tuguesa na Idade Média, cuja no- capítulo, cobrindo determinado brinha-neta (e arquivista) Tere- co Duarte Mangas. Hoje, algumas
vidade assenta no agrupamento período, é formado por muitos sa Araújo. É a voz de alguém que ordens dadas pelos coronéis ao
das fortificações em função de verbetes curtos, que compõem o testemunha a guerra com a mes- JN podem ser risíveis, mas o au-
tendências, modelos arquitetó- essencial sobre a história e a cul- ma franqueza com que dá teste- tor deixa o alerta: “Está a ler uma
nicos e técnicas de construção. tura romanas. munho de si próprio. cartilha de criminosos”.

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O Noticioso
PONTES NO TEMPO

O eterno retorno
da “alma russa”
José Pedro No passado como hoje, a
sovietes – é um fenómeno culturalmente enraiza-
Teixeira Fernandes
Professor
emergência da “alma russa”, do, observável em vários momentos da sua história,
sempre reinventada, continua a ainda que sob diferentes formas.

3
confundir os ocidentais A força e continuidade do messianismo rus-
so pode ser explicada pelo papel identitário do
Cristianismo Ortodoxo e pela sua geopolíti-
ca. Esta última gera o sentimento permanen-
te de ameaça a ocidente (potências europeias/oci-
dentais), a sul (tártaros/Islão) e a leste (China). Quan-
to ao impulso messiânico, num primeiro momento

1
Num célebre discurso, proferido em 1939, Wins- histórico derivou da queda de Constantinopla, em
ton Churchill afirmava que a Rússia é uma cha- 1453: Moscovo, capital da emergente Moscóvia, sur-
rada embrulhada num mistério dentro de um gia como Terceira Roma. Num segundo momento,
enigma / “It is a riddle wrapped in a mystery in- já no século XIX, foi o eslavofilismo, com a rejeição
side an enigma”. A frase espelha a dificuldade de os do Ocidente e uma reafirmação da cultura tradicio-
ocidentais perceberem a Rússia nas suas múltiplas nal – a “alma russa”. Num terceiro momento, a revo-
facetas e metamorfoses. Na altura era a Rússia so- lução bolchevique de Outubro de 1917 metamorfo-
viética, guiada pelo partido comunista e Estaline, seou o sentimento messiânico. A Rússia surgia na
098 que deixava os ocidentais confusos e desconfiados vanguarda da história, como Estado revolucionário
quanto às intenções políticas. No início do século XXI e progressista, o primeiro no mundo a ser governa-
é a Rússia pós-soviética, liderada por Vladimir Pu- do por trabalhadores. Nesta versão, a Internacional
tin, em reafirmação como potência global, que gera Comunista (1919-1943) ou Comintern, fundada por
similares sentimentos. Churchill admitia que talvez Lenine em 1919 – e dissolvida por Estaline em 1943 –,
existisse uma chave para desvendar o enigma rus- ambicionava reunir os partidos comunistas, sob li-
so. Na altura, a questão era saber como iriam reagir derança russa. O zelo messiânico repetia-se, agora
a URSS e Estaline à expansão da Alemanha nazi pa- secularizado e imbuído de uma carga ideológica.
ra leste. A chave seria o seu interesse nacional. Pro-

4
vavelmente, também hoje, a questão do interesse na- A desintegração da União Soviética, en-
cional russo é essencial para se compreenderem os tre 1989 e 1991, desencadeou nova simbio-
focos de tensão com a Europa/Ocidente, devido à se entre interesse nacional e messianismo.
anexação da Crimeia, ao conflito no Leste da Ucrânia Emergiu de uma paradoxal aproximação en-
desencadeado em 2014, bem como a intervenção mi- tre os nostálgicos do Estado soviético e os conser-
litar na Síria, iniciada em finais de 2015. vadores ortodoxos. Putin é o seu rosto. Para refor-
çar a sua legitimidade, recuperou a Rússia dos cza-

2
Além do interesse nacional, para compreen- res e a “alma russa”. As instituições fundamentais
der a Rússia há uma outra faceta incontorná- do Estado anteriores à era soviética (1917-1991) ree-
vel: o persistente messianismo que impregna mergiram (a Igreja Ortodoxa é um caso óbvio). Em
a “alma russa”. O messianismo é a crença que termos de interesse nacional, a prioridade é afir-
um determinado grupo religioso e/ou nacional tem mar o poder russo no “estrangeiro próximo” (o es-
de ter sido escolhido para realizar uma missão trans- paço ex-soviético). Provavelmente, ambiciona lide-
cendental. Estreitamente ligada a essa finalidade es- rar uma“Internacional Conservadora”. A atual me-
tá a ideia de que o sofrimento suportado pelo grupo tamorfose da Rússia faz lembrar a política do czar
levará à sua própria redenção. Em culturas/religiões Alexandre I, quando impulsionou a Santa Aliança
de vocação universalista, gera, ainda, a convicção da no Congresso de Viena (1814-1815). Então, o inimi-
redenção de toda a humanidade. A vocação messiâ- go eram as ideias liberais-constitucionalistas, espa-
nica não é um exclusivo da “alma russa”. É fácil cons- lhadas pela Revolução Francesa. Hoje são os valo-
tatar a existência de messianismo noutros povos, co- res pós-modernos ocidentais (o ideal multicultural,
mo judeus ou norte-americanos. No caso da Rússia – a igualdade de género, a sexualidade e o materialis-
e tal como se verificou com a permanência dos traços mo-consumista) que colocam a Rússia na vanguar-
fundamentais do interesse nacional, dos czares aos da da confrontação.

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O Noticioso

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