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O Noticioso

HISTORIA
4

PACHECO PEREIRA
“FAÇO PARTE
DE UMA ESPÉCIE
EM VIAS
DE EXTINÇÃO”

1975
UM PAÍS
DO AVESSO
HÁ 40 ANOS
6 ARTIGO DE RAMALHO EANES
6 FOTOS INÉDITAS DE ALFREDO CUNHA

CEUTA-1415 A VÃ GLÓRIA DA CONQUISTA Jornal de Notícias


N.º 01 / NOVEMBRO / 2015
TRIMESTRAL / 3,50 EUROS

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O Noticioso

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O Noticioso
A ABRIR

Estatuto Editorial
“Jornal de Notícias História” é uma revista
destinada ao grande público e consagrada
à divulgação de temas ligados à História,
à historiografia e ao património histórico,
material ou imaterial.

“Jornal de Notícias História” é um produto


jornalístico, que busca as pontes entre o passado
e o futuro que o presente constrói. Não obstante
não ser uma publicação científica, pauta-se pelo
rigor, pela diversificação dos pontos de vista
e pela atenção às tendências mais recentes da
produção historiográfica.

“Jornal de Notícias História” tem como metas


aprofundar temas da História de Portugal e
universal, incrementar o esforço de preservação 03
e valorização do património e noticiar atividades
relacionadas com o estudo e a divulgação destas
temáticas.

“Jornal de Notícias História” sendo uma


publicação com autonomia editorial, transporta
a matriz centenária do “Jornal de Notícias”,
cumprindo o desígnio de tocar todos os públicos,
leigos ou eruditos, na recusa tanto
do pretensiosismo como do sensacionalismo.

“Jornal de Notícias História” é independente


de poderes externos, políticos ou económicos,
regendo a sua atuação pelas normas éticas
e legais do jornalismo.

Diretor: Afonso Camões; Diretor-executivo: Domingos de Andrade; Subdiretores: David Pontes e Inês Cardoso; Diretor de Arte: Pedro Pimentel Coordenador Editorial: Pedro Olavo Simões
Design: Joana Koch Ferreira, Pedro Pimentel e Pedro Tomé (imagem) Tratamento de imagem: CEI - Centro de Edição de Imagem: Nuno Espada e Pedro Nunes Proprietário e editor: Global Notí-
cias, Publicações, SA. Registada na Conservatória do Registo Comercial do Porto. Capital social: € 6 334 285. NIPC: 500 096 791. Sede da redação na Rua de Gonçalo Cristóvão, 195-219, 4049-
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tóvão, N.º 195 4049-011 Porto Depósito Legal: 400733/15 Periodicidade: trimestral

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O Noticioso
A ABRIR

Editorial ÍNDICE

Garimpar memória 12
TEMA DE CAPA
O PREC
e o 25 de Novembro

24
TESTEMUNHO
Artigo de António
Ramalho Eanes

Somos um povo antigo, uma nação 30


DESCOLONIZAÇÃO
a caminho dos 900 anos de história, Os retornados
que nos orgulha.
Mas somos também de um tempo em que a avalan-
62
DESTAQUE
che de informação e a crescente abundância de meios A conquista
para a obter e difundir nos esmorece e subtrai a memó- de Ceuta
ria, individual e coletiva.
A revista História, cuja publicação hoje iniciamos, é 46
04 um desafio e um exercício de memória, viva e documen- ENTREVISTA
tal, contra o esquecimento. José Pacheco
Pereira
É um desafio, porque, não sendo obra de academia, a
revista História nasce na redação do Jornal de Notícias 80
e ganha vida própria, autónoma e em banca. Mas car- MUSEU DO TRIMESTRE
rega orgulhosamente consigo os genes da exigência, da Museu Nacional
procura do rigor e da credibilidade que são a matriz des- Machado de
Castro
te jornal centenário, nos 128 anos que leva de compro-
misso com os leitores.
É um exercício de memória, porque é nela que encon-
86
ENSAIO FOTOGRÁFICO
tramos as vistas mais largas para um passado que es- Torre
clarece o presente e ilumina algum futuro. E é por ela que, de Belém
de forma crítica e interpretativa, aprendemos a reco-
nhecer e valorizar as nossas raízes e identidade.
Queremos fazer jornalismo da História. E, neste ca-
minho, contamos com o ombro e a orientação de um
prestigiado núcleo de historiadores que integram desde
já o nosso Conselho Editorial, a quem penhorada e publi-
camente ficamos gratos: Fernanda Rolo, Irene Pimentel,
Germano Silva, Joel Cleto e Luis Miguel Duarte.
“O efeito da memória, dizia o padre António Vieira,
num dos seus Sermões, é levar-nos aos ausentes, para
Capa: Aeroporto
que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que de Luanda, 1975.
estejam connosco”. Assim seja. Fotografia de Alfredo Cunha

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O Noticioso

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O TNSJ É MEMBRO DA

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O Noticioso
A ABRIR

Acontece
Bragança Ensino
de temas
Basílica de Outeiro fraturantes
requalificada em debate
A igreja da aldeia de Outeiro, no con- A EUROCLIO, Asso-
celho de Bragança, elevada à condi- ciação Europeia de
ção de basílica menor no ano passado Educadores de His-
e Monumento Nacional desde 1927, foi tória, prepara, pa-
alvo de uma intervenção de conserva- ra março de 2016,
ção e restauro no seu interior. A inter- a 23.ª conferência
venção na basílica do Santo Cristo, rea- anual. Belfast, na Ir-
lizada no âmbito de uma candidatura landa do Norte, lem-
ao Programa ON.2 designada “Patri- bra o seu passado
Porto mónio Religioso do Leste Transmon- violento para lançar a
Guerreiros tano”, custou perto de 120 mil euros e questão central: “Co-
de terracota incidiu em altares, púlpitos e revesti- mo podemos ensinar
na Alfândega mentos em talha que apresentavam História controversa
problemas diversos, ao nível da estru- de uma maneira res-
Até 11 de janeiro, a tura, do suporte e dos revestimentos ponsável?”.
Alfândega Nova, no cromáticos.
Porto, acolhe uma
exposição em que
se mostram 150 ré-
06 plicas, em tamanho
Paço real Revisitado real, de guerreiros do

na dimensão exército de terraco-


ta descoberto, em
perdida 1974, no mausoléu
do imperador chinês
Cinco séculos volvidos, o parcialmen- Qin Shi Huang, que a
te desaparecido paço real de D. Ma- UNESCO classificou
nuel I em Évora ganhou uma segunda como património sa
vida. Reconstruído de forma virtual, Humanidade. No lo-
com recurso a fotografia, produtos cal da descoberta,
multimédia, reprodução de documen- ainda não totalmente
tos ou vestígios arqueológicos, numa explorado, há cerca
exposição que está patente até ao últi- de 200 fossos, con- Côa mostra-se na Coreia
mo dia de 2015, o edifício revela-se no- tendo milhares de
vamente, retratando ainda o impacto soldados, cavalos e Até 20 de dezembro, a arte rupestre do Vale do Côa mostra-
que tinha a presença da corte na cida- outros elementos em -se em Ulsan, cidade da Coreia do Sul próxima do sítio ar-
de do Alto Alentejo. A mostra, promo- terracota. queológico de Bangu-Dae, onde existem gravuras feitas en-
vida pelo município, com o apoio de tre 6000 e 1000 a.C.. É a primeira exposição além-fronteiras
várias entidades, da Direção Regional promovida pela Fundação Côa Parque. Formada essencial-
de Cultura do Alentejo à Universidade mente por grandes ampliações fotográficas, acompanhadas
de Évora, é gratuitamente visitável no de desenhos representativos dos vários períodos artísticos
local onde está o remanescente do pa- presentes no Côa, a mostra está dividida em dois módulos.
lácio, o Jardim Público da cidade. O primeiro evoca o processo de salvação do património ar-
queológico, marcado pelo cancelamento da construção de
uma barragem, em 1995. O segundo retrata o conhecimento
atual acerca dos ciclos rupestres do Côa, centrados no tem-
po longo paleolítico.

NÚMEROS 55 mil visitantes no Museu Alberto


Sampaio (Guimarães) de janeiro a setembro 100 Centenário do Museu Grão Vasco,
em Viseu, assinalado ao longo de 2015

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O Noticioso

Sagres e Mértola
tentam classificação
de nível europeu
Reabre Museu do Teatro Romano
O promontório de Sagres e a vila de
Renovado e enriquecido, o Museu do Teatro Romano, em Lisboa, reabriu ao pú- Mértola são os candidatos portugue-
blico após dois anos de encerramento para obras de conservação e reabilitação. ses à Marca de Património Europeu,
Novas estruturas, postas a descoberto pelas intervenções arqueológicas dos úl- iniciativa da Comissão Europeia que
timos anos, podem agora ser visitadas por mais gente, graças à concretização de visa incrementar a perceção de patri-
um projeto que teve especial enfoque na melhoria das acessibilidades para pes- mónio que seja relevante para a Histó-
soas com mobilidade reduzida, ou outras intervenções promotoras da integração, ria, cultura e desenvolvimento da Eu-
como a colocação de legendas em braille. Construído no primeiro século da nossa ropa. A decisão, a anunciar antes do
era, o teatro – o que resta dele, naturalmente – foi redescoberto em 1798, no decur- fim do ano, cabe a um painel de peri-
so dos trabalhos de reconstrução da capital após o grande terramoto de 1755. No- tos independentes, sob a égide da Co- 07
vamente coberto pelo edificado urbano, voltou a ser recuperado a partir da déca- missão, que se pronunciarão sobre 18
da de 1960. Hoje, é um dos cinco núcleos que formam o Museu de Lisboa. propostas. Cada estado-membro pode
apresentar até duas propostas, tendo
Portugal feito como na edição anterior,
Europa Abade de Baçal em que propôs, com êxito, a Bibliote-
reflete sobre
estratégias Erudito trasmontano ca Geral da Universidade de Coimbra
e a carta de abolição da pena de mor-
culturais nasceu há 150 anos te, à guarda do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo. O património que ob-
No Fórum Cultu- Um congresso sobre o abade de Baçal (13 tiver esta classificação será celebra-
ral Europeu, reunião e 14 de novembro, Bragança), lança as co- do ao longo de 2016. Sagres enquadra-
bienal que se realiza memorações do s 150 anos do arqueólo- -se, ainda, numa candidatura algar-
em Bruxelas, a 26 e go e historiador trasmontano. Toda a vida via à integração na lista indicativa da
27 de novembro, es- sacerdotal de Francisco Manuel Alves foi UNESCO de “Lugares de primeira glo-
tarão em debate es- passada na aldeia onde nasceu, mas o que balização”. A candidatura enquadra-
tratégias culturais está em causa é a faceta erudita, visível nas da pelo critério de “Paisagem cultu-
que possibilitem a memórias arqueológicas-históricas do ral” e apresentada conjuntamente pe-
afirmação da Europa distrito de Bragança (11 volumes). Três ex- la Região de Turismo do Algarve, pela
num contexto global, posições serão inauguradas: “Visitas es- Direção Regional de Cultura do Algar-
ou ainda o papel que a petaculares – Pintores e Arquitetos nos ve e por oito municípios, foi decidida a
cultura pode desem- palcos portugueses “ (parceria com o Mu- 27 de setembro, no âmbito das Jorna-
penhar na gestão da seu da Presidência da República e o Museu das Europeias do Património e do Dia
crescente diversi- Nacional do Teatro e da Dança); “Flor na Mundial do Turismo.
dade, no contexto de Pele” (parceria com A Oficina, Centro de
uma Europa multi- Artes e Mesteres Tradicionais de Guima-
cultural . rães); “Vocacionados à Santidade” (parce-
ria com a Diocese de Bragança-Miranda).

25 Mosteiro de Alcobaça é património


da Humanidade há um quarto de século 13 Cadeira 13 da Academia Portuguesa
da História ocupada por Luís Miguel Duarte

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O Noticioso
A ABRIR

Cabeceiras
tenta
reclassificação
do mosteiro
Encontra-se em curso o
processo de reclassificação
e ampliação da área classi-
Egas Moniz ficada do mosteiro de Re-
inspira fóios, em Cabeceiras de
museu Basto, que virá a ser deno-
minado Mosteiro de São
e prémio
científico Menorá descoberta na Rua Direita Miguel de Refojos. A clas-
sificação vigente é de Im-
Egas Moniz, o mé-
é o mais antigo vestígio judaico nóvel de Interesse Públi-
dico português que na cidade de Viseu co e abarca, apenas, a igreja
em 1949 foi distin- e sacristia bem como o teto
guido com o Pré- O acaso decorrente da obra de recuperação de um imóvel para arren- de uma sala do antigo mos-
mio Nobel da Medici- damento, no âmbito de um programa da Viseu Novo - Sociedade de teiro beneditino, que hoje
na, pelo desenvolvi- Reabilitação Urbana, permitiu, recentemente, descobrir aquele que funciona como sala de au-
mento da leucotomia será o mais antigo vestígio da presença judaica na cidade. Os arqueó- diências do tribunal da co-
pré-frontal, tinha si- logos identificam a gravação encontrada como sendo uma menorá, marca. A proposta enviada
do, quatro anos an- o candelabro de sete braços cujo desenho foi, segundo as Escrituras, pela Câmara de Cabecei-
08 tes, honrado com o transmitido por Deus a Moisés e que permanecia aceso no templo de ras de Basto à Direção-Ge-
Prémio de Oslo, pe- Jerusalém, tendo-se tornado um dos mais difundidos e reconhecidos ral do Património Cultural
la angiografia, pre- símbolos do judaísmo. Pedro Sobral, arqueólogo municipal, nota que passa por estender a área
cursora do que hoje a casa onde se deu o achado (o n.º 275 da Rua Direita) estaria nos limi- classificada a todo o edifí-
é a neurorradiologia. tes da judiaria viseense, admitindo que a inscrição possa ter sido feita cio do mosteiro, hoje usa-
Em Avanca, terra na- entre os séculos XIV e XV, época em que evidências documentais indi- do para finalidades diver-
tal do cientista, cuja ciam que o bairro judaico chegaria ali. sas e já abrangido pela zona
casa museu pode ser geral de proteção associa-
visitada desde 1968, da à igreja, subindo o nível
planeia-se agora a Palestra evoca Braga honra legado de classificação para Mo-
instalação de um po- foral da Guarda do comendador numento Nacional. Apesar
lo do Museu da Saú-
de 1199 de haver referências à pos-
de. Também um pré- Nogueira da Silva sibilidade de, no ano 670 da
mio bienal de neuror- O foral da Guarda, outorgado por Era Cristã, já haver naque-
radiologia foi agora D. Sancho I, em 1199, será evo- Há 40 anos, António Nogueira da Sil- le local uma capela e abrigo
instituído, fazendo cado, na cidade beirã, numa con- va - homem que fez fortuna com a cria- de ermitas, a fundação do
a ponte entre a his- ferência proferida por Maria Luí- ção da Casa da Sorte, em 1933 - deixou à mosteiro está fixada no sé-
tória da medicina e o sa Alves Ferreira de Almeida, pro- Universidade do Minho, em testamen- culo XII.
progresso da ciência fessora aposentada do núcleo to, a sua residência e respetivo acervo,
médica nesta área de Viseu da Universidade Católi- com a missão de criar um museu e ins-
específica. ca. A palestra está agendada para tituir o Centro de Estudos Lusíadas. O
as 18h00 do dia 25 de novembro, facto é evocado pelo Museu Nogueira
dois dias antes do aniversário do da Silva (Avenida Central, em Braga),
documento firmado pelo segun- onde, até ao final do ano, uma exposi-
do rei de Portugal. A comunicação ção honra o benemérito e o seu legado.
versará aspetos linguísticos refe- A coleção do museu comporta pintu-
rentes ao manuscrito. ra, mobiliário, ourivesaria, porcelana,
faiança, vidros e escultura.

NÚMEROS 200 anos do Congresso de Viena assinalados


na U. Lisboa no fim de novembro 26 Arqueologia em Lisboa debatida, de
26 a 28 de novembro, no Teatro Aberto

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O Noticioso

Monumentos em risco

WMF
atua em
todo o
mundo há
50 anos
Fundada em 1965,
a World Monuments
Fund tem uma fi-
lial em Portugal des-
de 1993. A ação des-
ta organização não-
-governamental
estende-se por todo
o mundo, podendo
ser destacados pro-
jetos como a anga-
riação de fundos pa-
ra edifícios afetados
Património de Lisboa e Évora por cheias em Vene-
za (1966), o lança-
09

vigiado por ONG internacional mento de um progra-


ma de preservação
de murais danifi-
O aqueduto da Água de Prata, em Évora,e a igreja de São Cristóvão, em Igreja da Mouraria cados por um sis-
Lisboa, estão inscritos na lista de 50 monumentos, em 36 países, sob ob- é notável, no seu interior, mo na Cidade do Mé-
servação do World Monuments Fund (WMF), uma organização não- pela talha dourada e por xico (1985), a mis-
-governamental sediada em Nova Iorque e dedicada à monitorização e 44 telas de Bento Coelho são junto do templo
apoio à preservação de monumentos considerados em risco, por ação da Silveira, que as infil- de Angkor Vat, no
da natureza ou pelo impacto de mudanças sociais, políticas e econó- trações e as térmitas co- Cambodja (1989), o
micas. A lista é refeita de dois em dois anos, pelo que os dois monumen- locam em risco restauro de monu-
tos em causa estarão sob observação ao longo de 2016 e 2017. A propó- mentos danificados
sito da igreja de São Cristóvão, localizada na lisboeta Mouraria, o WMF pelo conflito na Ju-
destaca o facto de o edifício seiscentista ter sobrevivido ao terramoto de goslávia (1991) ou
1755 e evidencia a fachada maneirista e o interior barroco, chamando a atividades ligadas à
atenção para a degradação acentuada por fatores como as infiltrações reconstrução de pa-
de água ou as térmitas e propondo-se a cooperar com o esforço de rea- trimónio histórico no
bilitação que está a ser promovido pela paróquia. Já no que respeita ao Iraque (2003), en-
aqueduto eborense, que integra a zona classificada como Património da tre muitas outras ini-
Humanidade pela UNESCO, a inscrição feita pela Câmara local foi aceite ciativas. A ativida-
tendo em conta não apenas o valor patrimonial da estrutura (resultan- de desta organização
te da reconstrução de um velho aqueduto romano, no século XVI, e ce- pode ser acompa-
lebrada por Camões n’“Os Lusíadas”), mas também a complexidade que nhada no sítio oficial
envolve a sua manutenção. Tendo servido o abastecimento da cidade na Internet, em www.
ao longo de mais de 400 anos (só perdeu essa função em 1979), continua wmf.org.
funcional, para rega de parques e jardins, mas apresenta, em determi-
nados troços, necessidade premente de reforço estrutural. O envolvi-
mento do WMF constitui não apenas um impulso importante à obtenção
de financiamentos, como, também, proporciona uma garantia de apoio
técnico altamente qualificado.

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O Noticioso
A ABRIR

Crimes de guerra Templo de Bel,


em Palmira, foi
arrasado em agosto

010

Extremistas reduzem a pó
a memória da Humanidade
“Crime de guerra” foi como a UNESCO, Orga- tã. Por que o mataram? Recusou-se a revelar o
nização das Nações Unidas para a Educação, paradeiro de tesouros arqueológicos ali reco-
Ciência e Cultura, qualificou a destruição, pelos lhidos: sendo certa a faceta iconoclasta do EI, é
extremistas do autodenominado Estado Islâ- também sabido que os extremistas recorrem a
mico do Iraque e do Levante (EI) dos templos de redes de tráfico de arte para se financiarem.
Baal-Shamin e de Bel, em Palmira (Síria). Estas Mas o rasto de destruição deixado pelo fanatis-
ações são qualificadas por especialistas como mo é bem mais extenso, tendo começado pelo
um misto de propaganda pelo terror (a exemplo Iraque (a delapidação de património nesse país
das imagens de execuções) e de convicção reli- já se verificava desde a invasão liderada pelos
giosa: “Eles entendem que estão a recapitular a Estados Unidos), onde o EI arrasou vestígios de
história do Islão”, comentou o historiador ame- Nínive, a capital assíria que terá sido a maior ci-
ricano Christopher Jones, que acompanha num dade do mundo, localizada onde hoje está Mos-
blogue pessoal a destruição de património da sul, cujo museu foi alvo de fúria destruidora. Tal
Humanidade naquela zona do globo. como Hatra, Nimrud ou Khorsabad. Ou ainda o
A devastação em Palmira ficará para sempre li- mosteiro cristão de S. Behnam (cujo túmulo foi
gada ao brutal assassínio, pelos extremistas, do dinamitado) ou, até, ainda em Mossul, a mes-
arqueólogo sírio Khaled al-Asaad, de 82 anos, quita do profeta Yunus (o bíblico Jonas, conside-
em agosto último. Este homem, que dirigira du- rado profeta por muçulmanos, mas não na visão
rante 40 anos o sítio arqueológico, era, sem dú- integrista do EI).
vida, uma referência incontornável em qual- Somam-se, voltando à Síria, a destruição do
quer estudo que envolvesse aquela cidade er- mosteiro de Santo Elian de Homs, o saque da an-
guida junto a um oásis, em plena Rota da Seda, tiga cidade romana de Apamea, a destruição de
que fez parte do Império Romano e pelos roma- Dura-Europos, comprovada por imagens de sa-
nos foi arrasada no terceiro século da Era Cris- télite, ou o saque sistemático de Mari.

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O Noticioso

011

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

O parto
doloroso
de uma
democracia
Texto de Pedro Olavo Simões
Fotografias de Alfredo Cunha

012

Reconquistada a Liberdade, Portugal


viveu, em 1975, mergulhado numa
tensão permanente que desaguou nos
acontecimentos do dia 25 de novembro

A
reias movediças, que e do 25 de Novembro esbarra, evidente-
40 anos não chegam mente, nessa proximidade, e nenhuma
para firmar. O ano abordagem, por mais inócua que seja,
de 1975 ferve ainda escapa a ser contestada.
em paixões de todas Conceptualmente, porém, há algo
as cores, carne viva que deverá ser claro. Revolução é mais
na memória de mui- do que uma ou outra data. A revolução
ta gente. Os que têm a nostalgia de algo não foi consumada no dia 25 de abril de
com que então sonharam, os que lem- 1974. Nem foi aniquilada no dia 25 de no-
bram terrores que então viveram, os vembro de 1975, como alguns entendem
que interpretam acontecimentos sem e outros negam, vendo aí a efetiva chega-
o distanciamento que lhes é devido, to- da da liberdade. Revolução é, evidente-
dos. Fazer a evocação histórica do Pro- mente, coisa mais ampla, que entre nós
cesso Revolucionário em Curso (PREC) representou a transição entre duas rea-

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O Noticioso

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Grupo dos Nove


foi determinante na
viragem política em 1975.
Em primeiro plano, da
esquerda para a direita:
Sousa e Castro, Franco
Charais, Melo Antunes,
Vítor Crespo e Vítor Alves

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

014

lidades políticas antagónicas – do Esta- Porque há quem entenda que começou volução, ou todos os processos de nacio-
do Novo para o Regime Democrático –, a 25 de abril de 1974, quem veja o arran- nalizações, com a banca à cabeça.
mas também uma profunda reformula- que dessa intensificação revolucioná- Certo é que o PREC terminou a 25 de
ção do país económico e social. Houve ria a 28 de setembro de 1974, com o fa- novembro de 1975. E outras certezas não
uma revolução estrutural (ou revolução lhanço do golpe spinolista que nasceria há, mas parece nítido que, quando forem
não teria havido) e isso não é coisa de dias de uma anunciada (e depois impedi- feitas sínteses desses tempos, as mudan-
ou de meses. Daí que seja por muitos en- da) manifestação da “maioria silencio- ças terão de ser encaradas em perspeti-
tendido que o processo revolucionário sa”, em Lisboa, ou quem entenda que só vas largas. Revolução será a mudança
(não o PREC, enquanto expressão limita- começou a 11 de março de 1975, data em num tempo mais longo, não a revolução
dora de um período mais curto e mal de- que novo fiasco, ao tentar desencadear avidamente desejada por um ou outro
finido) é o tempo que medeia entre abril um golpe de Estado, levou António de grupo, cada qual do seu lado das barri-
de 1974 e a aprovação da Constituição de Spínola a fugir para Espanha e, depois, cadas simbólicas daquele tempo. Até lá,
1976, a 2 de abril desse ano. Mas o baliza- a exilar-se no Brasil. Esta última data até até ao distanciamento, insistamos nes-
mento cronológico pode ir ainda mais poderá ser mais adequada para dar ao ta ideia, mesmo que contenha uma cer-
longe, levando-nos, por exemplo, ao pro- PREC o tipo de sentido que normalmen- ta dose de polémica: o tempo histórico da
cesso de integração europeia, a que não te lhe é atribuído, na medida em que foi revolução dificilmente corresponderá
faltam datas: acordo de pré-adesão à en- em resposta ao 11 de março que a revolu- ao tempo afetivo dos revolucionários ou
tão Comunidade Económica Europeia, ção (como a entendiam os protagonistas dos protagonistas em geral.
em 1980; tratado de adesão, em 1985; ade- que então tiveram maior poder) ganhou O episódio de 25 de novembro (golpe
são consumada a 1 de janeiro de 1986 (cla- fôlego, com medidas como a institucio- e contra-golpe ou apenas golpe contra-
ro que os eurocéticos não aceitarão isto). nalização do Movimento das Forças Ar- -revolucionário, cada setor desenvolve
E o PREC está mal definido porquê? madas, que faz surgir o Conselho da Re- as suas teses...) pode ser apontado como

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O Noticioso

o fim da revolução, mas essa abordagem mais ainda após os resultados da eleição
é superficial, embora comum às fações da Assembleia Constituinte, a 25 de abril,
que estavam em confronto: uns vêem um ano após a “Revolução dos Cravos”,
aí o triunfo da reação, outros celebram que tudo se agudiza e que as diferentes
a data como a implementação da demo- fileiras ganham definição. Correspon-
cracia. Mas, se entendermos revolução dendo esse momento à mais participa-
no sentido atrás explicitado, será mais da votação de sempre em toda a Histó-
correto dizer-se que houve um realinha- ria de Portugal, ficou mais claro do que
mento do processo. E importa ainda no- nunca (tal como no 25 de Abril, quando
tar que, atendendo à profunda clivagem multidões encheram as ruas para legi-
que existia, o conflito entre portugueses timar um golpe militar) que o povo era
acabou por ser evitado com relativa faci- mesmo quem mais ordenava. E todas as
lidade, como se todos tivessem percebi- clivagens, que desaguaram nos acon-
do em simultâneo que esse seria um ca- tecimentos de 25 de novembro, nasce-
minho sem retorno que a ninguém apro- ram das diferentes conceções de “povo”:
veitava. E não será ilícito questionar se a minoria que preconizava e levava a ca-
a iminência da guerra civil não poderia bo um determinado tipo de revolução ou
ser uma mistificação alimentada então a maioria da população.
pelas várias partes, na medida em que, Se o rumo era o do socialismo será o
apesar de haver armas um pouco por to- menos relevante, pois nesse tempo pra-
do o lado e um extremar de posições in- ticamente todos (exclua-se o CDS, no
contornável, os militares demonstraram campo dos que elegeram constituintes,
várias vezes que não estavam realmen- e tudo o que estivesse mais à direita) ad-
te dispostos a lutar uns contra os outros. vogavam de uma forma ou de outra o ca-
minho do socialismo.
Legitimidades em confronto O confronto entre essas duas vias –
Recordar os acontecimentos de 25 de parlamentarista representativa e revo-
novembro de 1975 não pode resumir-se lucionária – começara já a desenhar-se
a isso mesmo, tanto mais que não esta- muito antes das eleições, com cada fação 015
mos a falar de uma grande operação mi- militar a ter a sua correspondência num
litar, antes de movimentações sem ex- extraordinariamente dinâmico e super-
traordinária complexidade estratégi- povoado espetro partidário. Porém, e se
ca. Lembrar os eventos desse dia é um atentarmos no período de maior inten-
exercício inútil se, com ele, não retratar- sificação da via revolucionária do MFA,
mos o – esse sim – complexo processo na sequência do 11 de Março, vemos que
de democratização de Portugal, cujo ar- partidos davam apoio a medidas revo-
ranque foi o 25 de Abril e cujo fecho po- lucionárias que noutras circunstâncias
deremos, até, num mero exercício espe- não aprovariam, com o intuito de não pôr
Eram frequentes culativo, considerar que nunca será ple- em risco a marcação de eleições para a
as manifestações de apoio namente consumado. A democratização Assembleia Constituinte (o pacto MFA-
ao VI Governo Provisório, li- estende-se muito para trás e para a frente -Partidos, firmado no início de abril de
derado por Pinheiro de Aze- desse dia, ou dias, em que o estado de sí- 1975, condicionava a ação das forças po-
vedo, como esta, no Terreiro tio foi decretado na Região Militar de Lis- líticas, mas foi por estas aceite, pois era
do Paço, em Lisboa boa e o golpe ensaiado pelos setores mais forçoso para que fossem realizadas elei-
à esquerda do Movimento das Forças Ar- ções). Veja-se um exemplo de como o
madas (MFA) foi travado pela ala mode- comboio revolucionário não podia ser
rada, fazendo emergir na vida nacional o perdido. Numa entrevista à revista espa-
comandante operacional das fação vito- nhola “Cambio 16”, no final de março de
riosa, António Ramalho Eanes, então te- 1975, o então secretário-geral do PS, Má-
nente-coronel, que veio a ser o primeiro rio Soares, declarou, a propósito de uma
presidente da República escolhido por das mais marcantes medidas desse tem-
sufrágio universal. po: “A nacionalização da banca consta do
A esses acontecimentos iremos nosso programa, ao contrário do progra-
adiante. Centremo-nos agora naquilo a ma do PCP, onde não consta”.
que António Reis chama “o confronto en- E era clara, após o 11 de Março, a inten-
tre o modelo democrático da legitimida- sificação dessa “febre” revolucionária.
de eleitoral e o modelo coletivista da le- Logo após a tentativa de golpe spinolis-
gitimidade revolucionária”. Aí reside to- ta (ver texto na página 21), foi marcante a
da a essência do “verão quente” de 1975, criação de um Conselho da Revolução de
e é claramente a partir do 11 de Março, e 25 membros, a par da extinção da Junta

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de Salvação Nacional. Falhou, no entan- votos seriam a arma a usar para se opo- nhavam forma e espaço de ação. Ao Mo-
to, a intenção de excluir membros da ala rem ao radicalismo que tomava conta vimento Democrático de Libertação
dita moderada do MFA. dessa mesma via. de Portugal (MDLP), nascido em 1974 à
No terreno, a revolução teria na Refor- sombra do general Spínola (e por ele for-
Frenesim revolucionário ma Agrária uma faceta mais organizada, malmente encabeçado quando se cons-
O Pacto MFA-Partidos é determinan- mas traduzia-se também noutras for- tituiu oficialmente como força políti-
te para se perceber o jogo político de en- mas assim descritas por António Reis (in ca) somou-se, em 1975, o Exército de Li-
tão e a forma como cada fação construía “O Dia da Liberdade”, coord. Pedro Lau- bertação de Portugal (ELP), ou ainda,
a sua legitimidade. Isto, na medida em ret, Verso da História, 2015): “Uma via a no Norte do país, o Movimento Maria da
que, sujeitando-se à legitimidade revo- que os primeiros aforamentos do cha- Fonte, de que era figura cimeira Walde-
lucionária que era, passe a expressão, mado ‘poder popular’, traduzido no con- mar Paradela de Abreu (havia sido o edi-
propriedade do Conselho da Revolução trolo por autogestão de centenas de pe- tor de “Portugal e o Futuro”, o livro com
ou da reforçada Assembleia do MFA, par- quenas fábricas e na ocupação de casas que Spínola abanara o regime, no início
tidos como o PS, o PPD ou o CDS ficavam devolutas por grupos de populares com de 1974, e deixou o seu testemunho des-
na expetativa da legitimidade eleitoral o apoio do COPCON [Comando Opera- te tempo em “Do 25 de Abril ao 25 de No-
que lhes viria a ser conferida na esco- cional do Continente, liderado por Otelo vembro: Memória do tempo perdido” –
lha da Assembleia Constituinte. Ou se- Saraiva de Carvalho] e de partidos da ex- Intervenção, 1983), tendo apoios no seio
ja, embora condicionados à partida a tri- trema-esquerda, emprestarão um colo- da Igreja Católica, em particular na pes-
lhar, na preparação do texto fundamen- rido especial”. soa do cónego Melo, de Braga. Não eram
tal da República, a “via original para um Estes eram, também, os tempos em organizações unidas, embora tivessem
socialismo português”, sabiam que os que forças contra-revolucionárias ga- apoios comuns, e as ações que desenvol-

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viam confundiam-se, de assaltos a se- No 25 de Novembro, A mãe de todas as eleições


des de partidos de esquerda a outro tipo paraquedistas assumiram O rumo do socialismo era, ao tempo, de-
de atentados, que prosseguiram mesmo o controlo de bases aéreas nominador comum entre a generalidade
depois do 25 de Novembro (ações da cha- como a de Tancos (fotos me- das forças políticas. Esse caminho esta-
mada rede bombista e assassínio do pa- nores); em Lisboa, depois de va definido no programa do MFA, e a ru-
dre Max, candidato da UDP por Vila Real, Costa Gomes reter Otelo em tura com ele não era cenário que se colo-
em abril de 1976). Belém, os comandos saíram casse. Mesmo o PS, irmanado com as so-
A intrincada teia de tendências e à rua (foto maior) ciais-democracias europeias, rejeitava
eventos daquele tempo obriga-nos a ir o rótulo de social-democrata, advogan-
bem além do tempo em que a narrativa do o socialismo “tout court”, embora ra-
deveria desaguar, o dia 25 de novem- pidamente se tenha demarcado das vias
bro de 1975. Do quase unanimismo li- advogadas pelo PCP ou pela extrema-
bertário de 1974 veio a resultar, como -esquerda. Um sinal disso foi, em janei-
bem retratam Adelino Gomes e José ro de 1975, a questão da unicidade sindi-
Pedro Castanheira, em “Os Dias Lou- cal, sendo “Unicidade sindical” o título
cos do PREC”, um país dividido e radi- dado por Salgado Zenha a artigos que pu-
calizado. Vejamos, então, como a cli- blicou no “Diário de Notícias”, contestan-
vagem política ganhou os contornos do o objetivo comunista de concentrar o
mais nítidos entre as duas fações es- sindicalismo sob o teto de uma central
senciais: o confronto entre as legitimi- única, a Intersindical, que controlava.
dades eleitoral e revolucionária. Mas o momento determinante é, cla-

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ro, a eleição da Assembleia Constituin- haviam sido obtidas pelas forças mais à do o mais notório momento o enorme co-
te, a 25 de abril de 1975, pela forma como esquerda, a verdade era já então outra. E mício do PS na Fonte Luminosa, em Lis-
a vontade popular foi nitidamente con- o PS acabou por assumir papel de lide- boa, a 19 de julho, mas também por se-
trária aos setores mais radicais do MFA. rança em todo o processo que veio a de- tores militares importantes, com Vasco
Amais concorrida eleição de sempre em saguar nos acontecimentos do dia 25 de Lourenço a fazer aprovar uma moção, pe-
Portugal (votaram 91,66% dos eleitores novembro de 1975. Outro tipo de enqua- la Assembleia do Exército, favorável ao
inscritos), era, de facto, pouco consentâ- dramento levar-nos-ia a desenvolver, afastamento do primeiro-ministro. Vas-
nea com a generalidade das ações revo- também, a forma como a revolução por- co Gonçalves, porém, contra-atacaria, le-
lucionárias no terreno. Vejam-se os re- tuguesa se enquadrava numa conflitua- vando o MFA a aprovar um diretório em
sultados dos partidos que elegeram de- lidade típica da Guerra Fria, com as duas que, além dele próprio, entravam Costa
putados: Partido Socialista (37,87% dos superpotências (Estados Unidos e União Gomes e Otelo. Foi isto que levou à célebre
votos - 166 lugares); Partido Popular De- Soviética) a jogarem por cá as suas car- capa de agosto da revista norte-ameri-
mocrático (26,39% - 81); Partido Comu- tadas. O exemplo mais notório é o facto cana “Time”, em que a “Troika de Lisboa”
nista Português (12,46% - 30); Centro De- de os Estados Unidos terem colocado co- surgia tendo a foice e o martelo como pa-
mocrático Social (7,61% - 16) Movimen- mo embaixador em Lisboa Frank Car- no de fundo. O título não deixava dúvidas:
to Democrático Português (4,14% - 5); lucci, um homem forte da CIA, que é sa- “Ameaça vermelha em Portugal”.
União Democrática Popular (0,79% - 1); bido ter dado apoio àquilo que eram, no Se de algum momento pode dizer-
Associação para a Defesa dos Interesses entendimento dos americanos, as forças -se que alterou radicalmente o curso
de Macau (0,03% - 1). democráticas em Portugal (ver “Carluc- dos acontecimentos, teremos de nos re-
Como pode facilmente perceber-se, ci vs. Kissinger, de Bernardino Gomes e ferir ao chamado “Documento dos No-
tais resultados representavam, a seu Tiago Moreira de Sá – D. Quixote, 2008). ve”, apresentado a 6 de agosto de 1975 ao
modo, uma negação do rumo revolucio- presidente da República, Costa Gomes, e
nário gizado e posto em prática pela es- O “Documento dos Nove” subscrito por nove membros do Conse-
querda, dominante no MFA e, também, O que se viveu em 1975 foi, numa primei- lho da Revolução – Vasco Lourenço, Can-
nos sucessivos governos liderados por ra fase, marcada pelo ascendente do se- to e Castro, Vítor Crespo, Costa Neves,
Vasco Gonçalves. Em particular, o re- tor mais esquerdista do MFA – e do PCP, Melo Antunes, Vítor Alves, Franco Cha-
sultado do PPD, esmagador se compara- aliado à ala gonçalvista –, intensificado rais, Pezarat Correia e Sousa e Castro – e
do com o dos comunistas, constituía um pelo alucinante rescaldo do 11 de Março assinado ainda por outros nomes sonan-
018 aviso que não deixava lugar a grandes (ver peça à parte). Depois, com a eleição tes das Forças Armadas, como Ramalho
dúvidas. Convém clarificar, porém, que da Constituinte, começaram a ser mais Eanes, Garcia dos Santos, Costa Brás, Sal-
não podemos olhar os partidos à luz da- claras as diferentes tendências no seio gueiro Maia ou Rocha Vieira. Publicado
quilo que hoje são. Se Álvaro Cunhal e o do movimento e a radicalização da opo- primeiramente pelo “Jornal Novo”, foi
PCP interpretavam esse resultado como sição entre partidos (designadamente depois replicado pela generalidade da
efeito da ação de caciques de direita (fas- entre PS e PCP, com episódios como o do comunicação social portuguesa.
cistas ou reacionários, como facilmente 1.º de Maio, em que Mário Soares foi im- O texto, redigido por Ernesto Melo
se dizia à época), há também que ter em pedido de subir à tribuna da Intersindi- Antunes, manifestava oposição tanto ao
conta que uma das grandes preocupa- cal – de onde Cunhal anunciaria os can- modelo socialista do Leste europeu (“di-
ções de Francisco Sá Carneiro, líder do didatos comunistas à Constituinte –, ou o rigismo burocrático típico de regimes to-
PPD, era impedir que o seu partido fosse “caso República”, materializado no con- talitários”) como às sociais-democracias
conotado com a direita. O PPD assumia- trolo que os tipógrafos assumiram de da Europa Ocidental (“esquemas clássi-
-se como um partido de centro-esquer- um jornal dirigido pelo histórico socia- cos do capitalismo avançado”), preconi-
da, social-democrata. De tal modo que lista Raul Rego). zando um modelo socialista assente “em
um dos grandes objetivos de Sá Carneiro O crescendo das clivagens manifes- pluralismo político” e “inseparável, ain-
era a adesão do PPD à Internacional So- tava-se diariamente, e o aperto do cerco a da, das liberdades, direitos e garantias
cialista, organização em que já estava o Vasco Gonçalves assumia várias formas: fundamentais”. Esta atitude, que à época
PS. Para esse efeito, houve contactos com levado a cabo por partidos políticos, sen- resultava numa aproximação crescen-
os grandes partidos sociais-democratas te entre esta ala moderada e o PS, opu-
europeus, que estão documentados no nha-se à extrema-esquerda dominante.
arquivo pessoal do fundador do agora ASSEMBLEIA Os Nove eram afastados do Conselho da
PSD, hoje incorporado no arquivo de Jo- Revolução, e Vasco Gonçalves ficava en-
sé Pacheco Pereira. CONSTITUINTE talado entre eles e a ala mais esquerdis-
A relação de forças na Assembleia SURGIU COMO ta (a que ficou associado, após algumas
Constituinte evidenciava, claro, a tal le- hesitações, Otelo Saraiva de Carvalho).
gitimidade eleitoral esperada por várias ESTANDARTE DA O gonçalvismo tinha os dias contados.
das forças que haviam aceitado o Pacto LEGITIMIDADE Mesmo sendo factual que o V Gover-
MFA-Partidos, mesmo não concordan- no Provisório (o último do “companhei-
do com ele. Não obstante o Conselho da ELEITORAL, FACE ro Vasco”) assumiu funções dois dias
Revolução ver nos resultados a aprova- após a divulgação do documento, é tam-
ção popular da via socializante em cur-
À LEGITIMIDADE bém certo que se tratava de um Execu-
so, alinhando a votação no PS com as que REVOLUCIONÁRIA tivo de poderes reduzidos e transitório,

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como Costa Gomes deixou claro ao dar- Frank Carlucci, porém, a pacificação. Otelo, que durante
-lhe posse: “O V Governo, na sua eficácia embaixador dos EUA em algum tempo estivera próximo do grupo
gestora, haverá de ser a pausa para medi- Portugal e homem forte da dos Nove, deslocara-se novamente para
tar e o tempo para construir com o Povo- CIA, corporizou a influência o setor mais esquerdista, cumprido que
-MFA e todas as forças políticas interes- americana para inverter o ru- estava o objetivo comum de enfraquecer
sadas, o plano viável para o socialismo mo da revolução, numa típica a influência do PCP no seio do MFA.
português, plano pragmático e inexorá- lógica de Guerra Fria Ora, não só a capacidade de mobili-
vel mas moderado para ser seguro e po- zação do PCP, entre as classes trabalha-
der resistir às reações internas e exter- dores, não fora beliscada, como também
nas que a velocidade gera”. Otelo e o COPCON (Comando Opera-
cional do Continente) sentiam chegado
Divisões insanáveis o momento de impor o poder popular
Se todos os ingredientes para o que veio armado. Ou seja, de armas nas mãos de
a ser o 25 de Novembro estavam já reu- partidos radicais à criação de núcleos
nidos, o “Documento dos Nove” ajudou clandestinos nos quartéis, passando por
a uma precipitação de acontecimentos um clima de ainda maior efervescência
que resultaram na inevitabilidade que social e política, tudo parecia ainda mais
seria o fim do PREC. Cada vez mais iso- quente do que no verão que se despe-
lado, o V Governo caiu, e um VI Governo dia. Os comunistas estavam no Gover-
Provisório foi formado sob a liderança no, mas o que queriam era paralisar es-
do almirante Pinheiro de Azevedo. Poli- se mesmo Governo, pois não admitiam o
ticamente, a viragem parecia feita, com convívio, ali, com forças que considera-
pastas ministeriais a serem entregues a vam reacionárias e defensoras dos inte-
elementos do PS e do PPD até então fo- resses contra os quais a revolução havia
ra do barco, e com os ditos moderados sido feita. Desses tempos sobram ima-
do MFA a assumirem lugares-chaves e gens que clarificavam ral postura, co-
a tornarem-se maioritários no Conse- mo quando constituintes comunistas
lho da Revolução. Tal não representava, e sequestradores se saudaram e aplau-

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diram mutuamente, no final do cerco


montado à Assembleia Constituinte por
trabalhadores da construção civil, que
ali mantiveram fechados, durante qua-
se 24 horas, os deputados, o primeiro-
-ministro e vários membros do Gover-
no. Dois dias antes, a 9 de novembro, o PS
havia feito uma manifestação no Terrei-
ro do Paço, em Lisboa, de apoio ao Gover-
no, e cinco dias antes o país assistiria ao
mais famoso debate de sempre, em que
a oposição entre Mário Soares e Álvaro
Cunhal ficara definitivamente clarifi-
cada (ver peça ao lado). Cinco dias após o
cerco da Constituinte, uma enorme ma-
nifestação, protagonizada pelo proleta-
riado da chamada Cintura Industrial de
Lisboa e por trabalhadores rurais alente-
ARQUIVO
janos, com o apoio explícito de Otelo, in-
vadia a capital.
Bem entrado em novembro, o país
vivia uma situação mais crítica do que
nunca. O VI Governo decidiu suspender
O debate que nada mudou
funções. Exigia a Costa Gomes – o ho-
mem que veio a ser depois percebido co- Novembro de 1975, dia 6. Uma quinta-feira, à noite, um país colado à te-
mo real garante de algum equilíbrio em levisão, que é como quem diz a RTP, nenhuma outra havia. Não para ver
tempos tão desequilibrados – apoio mili- um jogo de futebol ou uma novela, mas três horas e três quartos de deba-
tar à governação, mas sem sucesso. Res- te político entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, secretários-geais do PS e
020 pondeu melhor a esse apelo o Conselho do PCP, respetivamente. Ao fim, saiu reforçada a clivagem entre os dois
da Revolução, destituindo Otelo do co- partidos. Não um fosso entre esquerda e direita, mas a impossibilidade
mando da Região Militar de Lisboa e co- de convergência à esquerda, que seria, para muitos, um possível objetivo
locando nesse posto Vasco Lourenço, do frente-a-frente. A ausência de consenso ficou clara logo nos primeiros
que garantia pôr cobro a todo o tipo de momentos, quando Soares apelou à necessidade de “alargar o bloco so-
insubordinação nas unidades militares. cial de apoio à revolução”, vincando a necessidade de os três maiores par-
Por outras palavras, toda a pólvora esta- Panfleto do PPD , tidos (PS, PPD e PCP, pela ordem de votação nas eleições para a Assem-
va pronta a explodir. que se intitulava de bleia Constituinte, meses antes) estarem “ligados através de um projeto
centro-esquerda, comum que vise a instauração da democracia em Portugal, democracia a
Um dia, em novembro aplaude as naciona- caminho do socialismo”, ao que Cunhal replicou dizendo que “uma revo-
É tudo isto que atrás vem sendo referido lizações. Cunhal e o lução faz-se por alguém e, naturalmente, contra alguém”, fazendo a apo-
que desenha os acontecimentos de 25 de PCP, porém, queriam logia das classes trabalhadoras, e que, “naturalmente, não se pode fazer
novembro de 1975 (as operações milita- esta força política, também uma revolução se os órgãos de poder têm representantes des-
res estão clarificadas na cronologia da que tivera 26% dos se alguém contra quem é feita a revolução”. Em causa estava, para os co-
página 23). Tudo começou com uma ação votos para a Consti- munistas, a presença do PPD (que viria a resultar no PSD) no VI Governo
rápida dos paraquedistas (não pode di- tuinte, afastada da provisório, liderado por Pinheiro de Azevedo, facto que levou Soares a per-
zer-se inesperada, pois eram esperados governação (arqui- guntar a Cunhal se achava possível excluir da revolução um partido que
golpes de todos os lados), que tomaram vo de José Pacheco obtivera a preferência de 26% do eleitorado. E logo ali, numa divergência
de assalto quase todas as bases aéreas Pereira) de conceitos (a revolução contra alguém em contraponto com a revolução
do país e o comando aéreo em Monsan- legitimada pelo voto), estava espelhado o conflito aberto no seio do que
to (Lisboa). Era o arranque de um golpe seria considerado a esquerda e, paralelamente, a grande clivagem em to-
das forças esquerdistas, já esperado pe- da a sociedade portuguesa. “Olhe que não, olhe que não!”, remoque feito
lo setor ligado aos Nove, que montava co- por um Cunhal sorridente quando Soares acusou o PCP de querer “trans-
mando operacional no Regimento de Co- formar este país numa ditadura”, ficou como marca de água do debate,
mandos da Amadora, às ordens de Antó- que não terá servido para esclarecer muita gente, pois toda a gente esta-
nio Ramalho Eanes. va a seu modo esclarecida (era um tempo de grande mobilização política,
O contragolpe, porém, não podia ser da esquerda à direita). Mas que não serviu para cumprir o que seria um dos
desencadeado de imediato. Era preci- verdadeiros objetivos, promover a conciliação entre os dois nomes maio-
so perceber que tipo de mobilização a res da esquerda.
esquerda conseguiria (o RALIS – Regi-
mento de Artilharia de Lisboa – tam-
bém saíra e assumira posições). Duas
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Do 28 de Setembro ao 11 de Março
Tentativas de golpe tuteladas por Spínola estimularam o processo revolucionário

Março de 1975, dia 11. Tudo muda. Aí nasce a intensificação do Passemos a 11 de março do ano seguinte, quando, pelas
Processo Revolucionário em Curso (PREC) e o afastamento 11h45, aviões da Base Aérea n.º 3 atacaram o Regimento de Ar-
definitivo do general Spínola. É o início de um “verão quen- tilharia n.º 1, em Lisboa, cercado ainda por tropas paraquedis-
te” que só arrefeceu passadas 37 semanas, a 25 de novembro. tas. Todos originários de Tancos, onde Spínola se instalara pa-
Para chegar ao frustrado golpe spinolista, que resultou no ra inverter o curso da revolução. E de onde nascia a ideia? Um
exílio do autor de “Portugal e o Futuro”, há que recuar a 28 de se- boato dava conta de que estaria em preparação uma “matan-
tembro de 1974 e à “maioria silenciosa”. As clivagens entre Spí- ça da Páscoa”, que visava 500 militares e mil civis partidários
nola e o MFA eram um mal de raiz, em especial em matéria de de Spínola, e terá sido isso a precipitar um golpe que, afinal,
descolonização. Ora, a alusão do general à “maioria silencio- era anunciado regularmente. Em “Os dias loucos do PREC”,
sa”, feita na posse ao II Governo Provisório (o primeiro de Vas- de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira, o militar de Abril
co Gonçalves) estimulou setores conservadores, descontentes Vasco Lourenço faz uma leitura que envolve americanos e so-
com a revolução: “Ou a maioria silenciosa deste país acorda e viéticos: “Penso que essa lista nem existiu. A CIA e o KGB eram
toma a defesa da sua liberdade, ou o 25 de Abril terá perdido pe- os únicos que tinham capacidade e interesse em difundir um
rante o Mundo, a História e nós mesmos o sentido da gesta he- rumor desses. À distância de 30 anos [39 agora], julgo que o
róica de um povo que se encontrou a si próprio”. Voltou à carga mais provável é que tenha sido o KGB que o terá feito chegar a
quando Portugal reconheceu a independência da Guiné-Bis- Spínola através das embaixadas da Alemanha, da Espanha e
sau: “A maioria silenciosa do povo português terá pois de des- da França. Enganado, ele embarcou – e tentou o golpe”.
pertar e de se defender ativamente dos totalitarismos extre- Ora, o golpe falhou completamente. Sanada a situação no
mistas que se digladiam na sombra”. RAL 1 e vendo-se incapaz de mobilizar apoios, Spínola, fami-
A convocação da “maioria silenciosa” para uma manifesta- liares e oficiais próximos fugiram de helicóptero para a base
ção em Lisboa, a 28 de setembro, foi o princípio do fim políti- espanhola de Talavera La Real (Badajoz). O destino final seria,
co de Spínola. Mobilizada e com apoio de militares, a esquer- depois, o exílio no Brasil. 021
da ergueu barricadas nos acessos a Lisboa, a manifestação foi Entretanto, Costa Gomes declarara o estado de sítio na Re-
proibida e dezenas de pessoas foram detidas. Derrotado, Spí- gião Militar de Lisboa, as fronteiras com Espanha foram encer-
nola teve ainda de demitir os membros conservadores da Jun- radas e a ala mais esquerdista do MFA iniciava, em sessão que
ta de Salvação Nacional. Dois dias depois, renunciou à presi- ficou conhecida como “Assembleia selvagem”, a radicalização
dência da República, dando lugar a Francisco Costa Gomes. ou aprofundamento (risque o que não interessa) da revolução.

Otelo, Vasco Gonçalves e Costa Gomes partilharam o poder após o 11 de Março

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condições ajudaram a que essa mobili- O que ficou? Torna-se nítido que, na hora da verda-
zação não fosse grande. Primeiro, Costa O que foi, afinal, o 25 de Novembro? Gol- de, tudo se conjugou para que o confron-
Gomes terá conseguido acalmar os se- pe de esquerda e contragolpe, como é to sangrento fosse evitado. Mas a paci-
tores gonçalvistas e travar ações de mo- consensual dizer-se, ou golpe contra-re- ficação não foi fácil. Por exemplo, havia
bilização popular do PCP. Depois, é es- volucionário de direita, como nunca dei- setores que, no rescaldo do 25 de Novem-
sencial ter em conta o papel do homem xará de ser referido pelas fações derro- bro, queriam aproveitar a oportunidade
que poderia congregar todos os setores tadas? Começou-se este texto a falar em para excluir e ilegalizar o PCP. Todavia,
esquerdistas, Otelo Saraiva de Carva- areias movediças e em carne viva na me- Melo Antunes foi firme, ao afirmar na te-
lho, que terá percebido o perigo catas- mória de muita gente. Mesmo ao cabo de levisão que a participação dos comunis-
trófico de uma confrontação generali- 40 anos. E assim é. tas era indispensável para a construção
zada e permaneceu incontactável até Para os comunistas, por exemplo, do socialismo, pelo que jamais seriam
ao início da tarde, sendo depois chama- prevalece a análise que Álvaro Cunhal marginalizados no processo institucio-
do por Costa Gomes a Belém (confira-se fez em “A verdade e a mentira na Re- nal que se seguiria .
em “Otelo, o revolucionário”, de Paulo volução de Abril: A contra-revolução O rumo preconizado era o mesmo de
Moura – D. Quixote, 2012). Só depois de confessa-se” (Edições Avante!, 1999), todos os meses precedentes. Nesse ano
Otelo estar na sua presença é que o pre- na qual se tenta demonstrar não ape- fervilhante, em que o PPD chegou a pon-
sidente da República decretou o estado nas que o que aconteceu foi um gol- derar a passagem à clandestinidade, em
de sítio na Região Militar de Lisboa, e só pe contra-revolucionário, havia mui- que o PS planeava transferir para o Por-
então a operação de contragolpe foi de- to em preparação, como se desmente to a sua estrutura e a própria Assembleia
sencadeada a partir da Amadora. qualquer tipo de envolvimento do PCP Constituinte, ante o risco que então di-
Pouco importarão aqui mais detalhes nos acontecimentos, contrariamente ziam existir de se formar a “comuna de
além do caricato episódio então prota- ao que alguns testemunhos dão a en- Lisboa”, quase todos diziam rumar, de
gonizado por Duran Clemente, um ofi- tender. E é verdade que Costa Gomes uma maneira ou de outra, ao socialismo.
cial barbudo que chegou a estar na tele- assegurou junto de Cunhal que não O destino que alcançaram é o que ho-
visão proclamando o vitorioso golpe de haveria envolvimento dos comunis- je vivemos.
esquerda e enaltecendo o poder popular, tas (designadamente no que respeita
mas viu a intervenção ser cortada. Em ca- à mobilização de ações de rua que pu-
sa dos portugueses, de um momento pa- dessem condicionar as operações mi-
022 ra outro, o canal único passara a dar um litares), sendo que Cunhal disse ter si-
filme cómico, protagonizado por Danny do dele próprio a iniciativa do contacto
Kaye e transmitido a partir do Porto. para dar essa garantia.

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O Noticioso

O 25 de Novembro
15 de novembro Manhã 25 novembro dos pelos partidos po- Noite 25 novembro 27 de novembro
Juramento de bandei- Na sequência de uma líticos moderados PS O presidente da Re- Os generais Carlos Fa-
ra no RALIS - os sol- decisão do general e PPD, depois de o pre- pública decreta o Es- bião e Otelo Saraiva de
dados quebram as Morais da Silva, CE- sidente da República, tado de Sítio na Re- Carvalho são destituí-
normas militares que MFA, que dias antes ti- general Francisco da gião de Lisboa. Milita- dos, respectivamente,
regulamentam os ju- nha mandado passar Costa Gomes, ter ob- res afetos ao Governo, dos cargos de Chefe de
ramentos de bandeira à disponibilidade cerca tido por parte do PCP da linha do Grupo dos Estado Maior do Exér-
e fazem-no de punho de mil camaradas de a confirmação de que Nove, controlam a si- cito e de Comandante
fechado. armas de Tancos, pa- não convocaria os seus tuação. do COPCON.
raquedistas da Base militantes e apoiantes Prisão dos militares O General António Ra-
20 de novembro Escola de Tancos ocu- para qualquer ação de revoltosos que tinham malho Eanes é o novo
O Conselho da Revo- pam o Comando da rua, decidem então in- ocupado a Base de Chefe do Estado Maior
lução decide substituir Região Aérea de Mon- tervir militarmente pa- Monsanto. do Exército.
Otelo Saraiva de Car- santo e seis bases aé- ra controlar inequivo-
valho por Vasco Lou- reas. Detêm o general camente o destino po- 26 de novembro 28 de novembro
renço no comando da Pinho Freire e exigem a lítico do país. Assim: Comandos da Ama- O VI Governo Provisó-
Região Militar de Lis- demissão de Morais da dora atacam o Regi- rio retoma funções. O
boa. Silva. Este ato é con- Tarde 25 novembro mento da Polícia Mili- Conselho de Ministros
O Governo anuncia a siderado pelos milita- Elementos do Regi- tar, unidade militar ti- promete o direito de
suspensão das suas res ligados ao Grupo mento de Comandos da como próxima das reserva aos donos de
atividades, alegan- dos Nove como o indí- da Amadora cercam forças políticas de es- terras expropriadas.
do “falta de condi- cio de que poderia es- o Comando da Região querda revolucionária.
ções de segurança pa- tar em preparação um Aérea de Monsanto. Após a rendição da PM,
ra exercício do governo golpe de estado vindo há vítimas mortais de
do país”. de sectores mais radi- ambos os lados.
cais, da esquerda. Es- Prisões dos militares
ses militares apoia- revoltosos.. 023

* Centro de Documentação 25 de Abril – Universidade de Coimbra

Chamites dos dois


lados da barricada, no
25 de Novembro. À es-
querda (e à esquer-
da, no espectro políti-
co), militares do RALIS,
vendo-se ao centro,
em primeiro plano, o
major Dinis de Almei-
da. À direita, já de noi-
te, os comandos as-
sumem o controlo do
comando aéreo de
Monsanto e são vito-
riados por populares

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O Noticioso

Testemunho
Falta cumprir Portugal

António Ramalho Eanes


Presidente da República (1976-1986)

024

H
á 40 anos, Portugal mergulhara no tur- mocraticamente o seu verdadeiro bem-estar.
bilhão revolucionário. E, divididos, es- O 25 de Abril e o 25 de Novembro limitaram-se, pois,
tivemos a um passo da guerra civil. a devolver a liberdade ao Povo, o senhorio soberano do
Olhando para trás, mesmo à dis- seu destino. Foi para que a Nação assumisse a plenitude
tância de décadas, é impossível não ter da sua responsabilidade histórica e política que o MFA se
bem presente, ainda, o intenso drama- rebelou contra o poder instituído. Assim, respeitar a pro-
tismo que marcou os meses que se se- messa feita pelo MFA à Nação era indeclinável impera-
guiram ao 25 de abril e precederam o 25 de novembro. A tivo de honra e virtude do MFA, da reabilitada Institui-
superação de ódios, paixões e contradições extremadas, ção Militar.
a clarificação entre revolucionários e defensores do re- Após o 25 de Abril, muitas são as revoluções pretendi-
gime constitucional pluralista não se fez sem dor nem das. Todos entendem ter legitimidade para privilegiar a
violência, deixando em muitos portugueses marcas que sua. E quase todos procuram impor ao Povo, revolucio-
até hoje perduram. nariamente, um modelo de felicidade. É neste quadro,
No plano das convicções, foi política e militarmen- insustentável, que o Grupo dos Nove, com moderada
te igual o que me determinou no 25 de Novembro e no prudência, decide intervir.
25 de Abril: tudo fazer e tudo arriscar para restituir Cito Ernesto Melo Antunes para dizer que a nossa
verdadeira dignidade nacional às Forças Armadas e, prioridade foi “retomar o controlo das Forças Armadas”,
concomitantemente, devolver ao Povo o que só a ele, na convicção de que “para construir a democracia no
originariamente e sempre, pertenceu e pertence – o País era preciso fazê-la respeitar, isto é, dispor do Exérci-
poder político soberano, a liberdade de construir de- to como braço secular”.

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O Noticioso

025
ARQUIVO
António Ramalho Eanes e Jaime Neves, operacionais do 25 de Novembro, na primeira conferência de Imprensa

Terminado o confronto, logo se procurou: finirem o projecto político conducente à realização do


- Que o 25 de Novembro fosse o ponto de partida para seu legítimo desejo de verdadeiro bem-estar e, também,
uma recuperação das promessas feitas originariamen- o seu sistema de governo.
te pelo MFA à Nação, num quadro social e político, obvia- Como militar do 25 de Abril e do 25 de Novembro, di-
mente, muito diferente; rei que as Forças Armadas, apesar de tudo, cumpriram.
- Definir o papel nacional das Forças Armadas, atra- Se falta ainda cumprir Portugal, é problema que na de-
vés da Lei 17/75, em que “pela primeira vez se explicita o mocracia não cabe à Instituição Militar equacionar e re-
princípio da subordinação ao poder político”, como dis- solver. Cabe, indeclinavelmente, aos cidadãos, a todos os
se Maria Carrilho; cidadãos, fazê-lo.
- Reinstitucionalizar as Forças Armadas; É incontestável que a sociedade portuguesa mudou
- Contribuir para o restabelecimento de um clima de de forma radical nos últimos 40 anos. No entanto, apesar
tolerância e de desintimidação individual e política; de uma evolução tão positiva a diversos níveis, há ainda
- Dar a todos os partidos, sem excepção, a possibili- algumas áreas nas quais a evolução verificada no nosso
dade de, livre e legalmente, manifestarem e defenderem País é manifestamente insuficiente.
os seus interesses e posições. Tais são os casos da educação, da saúde, da produ-
Creio, pois, que o 25 de Novembro honrou a palavra tividade, do emprego e da competitividade, e a persis-
dada pelos militares à Nação no 25 de Abril; criou condi- tência de profundas desigualdades sociais. E são preo-
ções, legais, nomeadamente, para a subordinação políti- cupantes os sinais de alguma anemia da sociedade civil
ca do poder militar ao poder civil; e deixou aos partidos e e um crescente afastamento entre cidadãos e os deciso-
à Sociedade Civil a liberdade e a responsabilidade de de- res políticos.

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

Sessenta e oito
em setenta e cinco
Campanhas de dinamização cultural do MFA correram o
país. Mário Correia, que ia passar 15 dias a Proença-a-Nova,
ficou mais de 200 e foi presidente da Câmara

“Estávamos ali com a fezada de que is- sedento de liberdade, vive-se um clima Nação continuava a ser comandada por
to ia ser o melhor dos mundos”. Assim se de constante agitação, graças à organi- Oliveira Salazar, morto cinco anos antes
fazia a revolução, e as palavras de Má- zada campanha dos caciques aliados ao e afastado do poder desde 1968.
rio Correia serão partilhadas por muita clero reacionário” era, também, o que “Íamos por dez, quinze dias, e aca-
gente que, integrada na famosa 5.ª Divi- resolvia problemas, num concelho on- bei por ser o último a sair. Fiquei lá de
são do Estado-Maior General das Forças de as carências eram totais. E onde pô- janeiro a setembro de 1975”, recorda
Armadas, deu corpo às equipas de Di- de, sonhador na casa dos vinte, por em Mário Correia, que ainda hoje se re-
namização Cultural e Ação Cívica, que prática uma máxima que foi buscar a fere ao “elevado nível de obscuran-
espalhavam em Portugal a mensagem Sérgio Godinho e à qual se mantém fiel: tismo” vivido num concelho onde ce-
revolucionária, lançavam a semente “Só se pode querer tudo quando não se do os militares perceberam que havia
da cidadania participativa e ajudavam teve nada”. muito trabalho a fazer, para além do
a resolver os problemas que afetavam esclarecimento das massas. Falamos
populações de uma ruralidade afunda- Da 5.ª companhia à 5.ª Divisão de um sítio onde foram confronta-
026 da em esquecimento. Mário Correia cumpria o serviço militar dos, por exemplo, com um caso de le-
Quem agora encontramos em Sen- obrigatório. Após alguns adiamentos, pra, ou onde os problemas sanitários
dim, Miranda do Douro, é alguém que foi chamado para a primeira incorpora- passavam por situações quase anedó-
desenvolve um trabalho ímpar no âm- ção após o 25 de Abril, em julho de 1974, ticas, como a do fontanário de onde a
bito da etnomusicologia e que é ainda, sendo integrado na quinta companhia água saía com pelo de burro: “Um bur-
há muitos anos, conhecido como o ho- da Escola Prática de Administração Mi- ro tinha morrido e o dono atirou-o pa-
mem do Festival Intercéltico, presti- litar, “uma unidade revolucionária” em ra dentro de um poço. Só que esse po-
giado fenómeno cultural. Um homem que estava muita gente que se exilara al- ço tinha comunicação com a rede de
invulgar, economista que deixou a vi- gures, por se opor à guerra, e vinha ago- abastecimento. A solução que encon-
vência urbana e se instalou no planalto ra participar na revolução: “Acabámos trámos, ao jeito militar, era disparar
raiano para registar e sistematizar tudo por ir todos para a 5.ª Divisão”. balas incendiárias contra o cadáver
o que exista sobre gaiteiros e paulitei- Da 5.ª Divisão emanara a CODICE, decomposto, para, assim, possibilitar
ros. Mas é de outro homem que vamos acrónimo de Comissão Dinamizadora a limpeza das fontes, mas houve mui-
à procura: o aspirante Correia, que, em Central, responsável por estas inicia- ta contestação, pois estaríamos a per-
1975, chegou a Proença-a-Nova (distri- tivas que incidiram, sobretudo, nas re- turbar a alma do burrinho...”.
to de Castelo Branco) para duas sema- giões do interior Norte e Centro, em 1974
nas de dinamização cultural, acabando e 1975. Era a terras completamente des- O caso do externato
por ali ficar ficar de janeiro a setembro fasadas da realidade urbana que chega- “Quando lá chegámos, levávamos o dis-
desse ano. Passou todo o “Verão quen- vam as equipas de Dinamização Cultu- curso dos três dês do programa do MFA:
te” na então isolada e esquecida vila bei- ral e Ação Cívica, espécie de comissões desenvolver, democratizar, descoloni-
rã e chegou a ser, por escolha do povo, o proselitistas que levavam a boa-nova zar. Mas o confronto com a realidade al-
gestor militar que fazia as vezes de pre- revolucionária ao “país real” (não é cla- terou por completo essa agenda”, conta
sidente da Câmara. ro que tal expressão fosse usada ao tem- o homem que chegou a levar pessoal-
E de tal modo foi marcante nesse pa- po). E foi nesse espírito que o então aspi- mente os relatórios a Vasco Gonçalves,
pel que, depois de ele sair, as gentes da rante Correia, que já andara por outras vendo este lançar os papéis ao ar, insur-
terra fizeram uma manifestação exi- terras, chegou a Proença-a-Nova, uma gindo-se contra o país herdado da dita-
gindo que regressasse. O homem que vila onde a iluminação pública só dura- dura e insistindo na necessidade da re-
escrevia, em relatórios cuidadosamen- va até às dez da noite, quando o gerador volução.
te caligrafados, que “em Proença-a-No- era desligado. Algo que nem era mau de Ora, a revolução fazia-se, a nível lo-
va, vespeiro de reacionários, explora- todo, comparado com aldeias onde pura cal, implementando formas de decisão
dores e manobradores do povo traba- e simplesmente não havia eletricidade popular, como as comissões de aldeia,
lhador pouco ou nada politizado mas e onde havia ainda quem pensasse que a cujo papel era sempre louvado nos re-

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O Noticioso

Mário Correia
recorda o PREC como
um tempo de utopia
e, também, de gran-
de aprendizagem

latórios, estivesse em causa a constru-


ção de um cemitério no Vergão Fun-
deiro, a reparação de uma capela, nas
Corgas, para aí fazer um centro cultu-
ral, ou a mobilização das gentes de Vale
da Ursa para se fazer um caminho: “Es-
ta vitória do povo resultou importante
para a consciencialização da força das
organizações populares e para a parti-
cipação na discussão democrática”.
No caso concreto de Proença-a-
-Nova, a intervenção levada a cabo
pelo MFA no Externato Diocesano é,
claramente, o mais notório exemplo: 027
“Em torno de uma questão concre-
ta, mobiliza-se tudo e, de repente, re-
volta-se contra padres e regedores e a
mudança faz-se”.
A síntese que hoje faz Mário Cor-
reia, por si, não chega para descrever
o polémico processo que opôs a revo-
lução (chamemos-lhe assim) à dioce-
se de Castelo Branco e Portalegre, mas
torna-se claro que acelerou o processo
de chegada do ensino secundário ofi-
cial àquela vila beirã.
Havia em Proença-a-Nova a perce-
ção de que o colégio, gerido pela dioce-
se, resultara originalmente de uma di-
nâmica civil e de donativos, feitos, em
boa parte, por emigrantes, que haviam
PEDRO GRANADEIRO/GLOBAL IMAGENS
posto o edifício de pé. O antigo aspi-
“Quando lá chegámos, levávamos o discurso dos três dês rante fala ainda na “raiva surda” que se
sentia a propósito da gestão do estabe-
do programa do MFA: desenvolver, democratizar, descolo- lecimento de ensino e conta, também,
nizar. Mas o confronto com a realidade alterou por comple- quão importante foi a eclosão da revol-
ta de um grupo de professores civis (não
to essa agenda”, conta o homem que, jovem aspirante, ten- eclesiásticos) que, por tal, acabaram
por ser despedidos. Foi nesse contex-
tou darresposta aos anseios de uma população esquecida. to que os homens do MFA intervieram,
promovendo uma sessão no externato
que se tornou um palco da revolta popu-
lar e desencadeou o saneamento de to-
da a comissão administrativa e do dire-
tor do colégio.

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O Noticioso

Horizontes abertos
No discurso de Mário Correia persiste,
40 anos depois, a visão poética daquele
tempo. Se o célebre cartaz com que Viei-
ra da Silva celebrou o 25 de Abril procla-
mava “A poesia está na rua”, esse era,
de certo modo, o espírito destes jovens,
militares e outros, que viam no Proces-
so Revolucionário em Curso o seu Maio
de 68, pois punham em campo a carga
de utopia que haviam bebido das revol-
tas estudantis.
“A extrema-esquerda tinha criado
uma dinâmica muito grande, e é menti-
ra que o PCP tivesse a força que lhe atri-
buíam dentro da estrutura militar, não
O aspirante Correia, em 1975, foi eleito ges- obstante a ligação que a esse partido te-
tor militar pel o povo de Proença-a-Nova, que ria o Vasco Gonçalves”, diz, lembrando
votou em folhas azuis de 25 linhas e se mani- ainda que nunca teve filiação partidária
festou para que ele regressasse, após a saí- (“eu era uma mistura de tudo”) e enqua-
da da equipa do MFA. O esquema de eletrifica- drando-se numa “geração que não tem
ção ao lado exemplifica o trabalho desenvolvido na sua matriz exercer o poder”.
Porém, em Proença-a-Nova, chegou a
ser o presidente da Câmara. Ou gestor mi-
litar, como se dizia, assumindo funções
após a renúncia de Acúrcio Castanheira,
anterior presidente da Comissão Admi-
nistrativa, mas pondo como condição ser
escolhido pelo povo. Ainda hoje guarda
028 as folhas azuis de 25 linhas que os mora-
dores de cada aldeia assinaram (ou onde
apuseram a impressão digital), reclaman-
do a sua colocação em tais funções.
Funções que recorda com a nos-
talgia de um tempo que lhe “abriu ho-
rizontes” e que, soube há cerca de um
ano, poderiam ter-lhe custado a vida.
Participando num colóquio, organi-
zado pela Câmara de Proença-a-No-
va para recordar estes tempos e estas
experiências, viu um cidadão pedir
a palavra para contar que o carro que
“Nós, no MFA, respeitamos a vonta- ele usava, na qualidade de gestor mili-
de do povo” era, à época,a regra. E a ge- tar (um Mercedes da GNR), andou dois
neralidade dos docentes continuou a dias com “uma bomba igual à que ma-
dar aulas, até que a diocese, em respos- tou, em Abril do ano seguinte, o padre
ta, ordenou a saída de todos os professo- Max” (sacerdote que era candidato pe-
res sacerdotes, que inviabilizaria o fun- la UDP e foi assassinado na Cumieira,
cionamento da escola, onde havia cerca perto de Vila Real).
de 700 alunos. Ora, a revolução fazia-se, Esse cidadão estava, à época, cono-
também, de capacidade de improvisa- tado com organizações de extrema di-
ção, o que levou os homens do MFA a ir reita, como o MDLP (Movimento De-
de urgência a Lisboa, arranjando rapi- mocrático de Libertação de Portu-
damente, nas faculdades, finalistas dis- gal) ou o ELP (Exército de Libertação
postos a dar aulas em Proença-a-Nova. de Portugal), e a bomba só foi retirada,
O próprio Mário Correia, sendo da área terá admitido o próprio a Mário Cor-
da Economia, acabou a dar aulas de His- reia, por não haver mais ninguém em
tória. E garante hoje que os exames dos Proença-a-Nova que percebesse de
alunos de Proença, feitos em Castelo explosivos, pelo que facilmente seria
Branco por professores dos quadros pú- associado ao atentado que não chegou
blicos, foram um total sucesso. a acontecer.

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O Noticioso

Aliança
Povo-MFA
Decidida em Assembleia do
Movimento das Forças Armadas, a
8 de julho de 1975, a Aliança Povo-
A terra a quem
MFA era a cartilha pela qual se
orientavam, no terreno, as equipas de
Dinamização Cultural e Ação Cívica.
Mas era, claro, muito mais do que
a trabalha
isso. Com a Assembleia Constituinte
democrática e universalmente 029
eleita, e apresentando uma relação Nos distritos a sul do Tejo, a revolução dades, mas ocupavam três quartos da
de forças que obstaculizava a via fazia-se de outra forma. Era o espaço vasta extensão alentejana). No período
revolucionária preconizada pelos de implementação da Reforma Agrá- áureo do PREC, mais de um milhão de
setores mais à esquerda do MFA, ria, não tanto de ação das equipas de Di- hectares foram ocupados pelos campo-
a referida aliança significava a namização Cultural e Ação Cívica da 5.ª neses, que se organizaram em cerca de
corporização de um novo modelo Divisão. Território onde a influência do meio milhar de Unidades Coletivas de
de gestão do país, assente em “três Partido Comunista Português era for- Produção (as UCP, de que também hou-
linhas fundamentais: a do MFA, tíssima, o Alentejo era palco privilegia- ve exemplos noutras regiões do país).
a Popular e a Governamental”. do para a luta de classes, opondo uma Diversificação das culturas (agrícolas e
Apresentando o Conselho da esmagadora maioria de camponeses a pecuárias), garantia de trabalho duran-
Revolução como “órgão máximo da um punhado de grandes proprietários: te todo o ano, salários justos e igualda-
soberania nacional”, o documento os latifundiários, termo que entrou na de entre os trabalhadores eram pedras
preconizava o saneamento e rotina dos portugueses, tal como o slo- de toque deste novo sistema, que tinha o
progressiva substituição do aparelho gan “a terra a quem a trabalha”. Os traba- apoio do Estado, em particular nos tem-
de Estado, levando à “tomada do lhadores eram, em liberdade, a última pos da governação de Vasco Gonçalves,
poder pelos organismos populares”. de numerosas gerações praticamente de sindicatos e de partidos (o PCP, es-
Comissões de trabalhadores e escravizadas por modos de produção pecialmente). Vários fatores minaram
de moradores estariam na base arcaicos e pela arbitrariedade dos se- a Reforma Agrária. Não apenas a recla-
de assembleias populares locais, nhores da terra. Caído o Estado Novo e mação dos proprietários que haviam si-
que formariam as assembleias com a intensificação do processo revo- do expropriados, mas também o des-
municipais “e assim sucessivamente lucionário, houve espaço para materia- contentamento de pequenos e médios
até à Assembleia Popular Nacional”. lizar as revoltas de camponeses que já proprietários ou reivindicações de di-
Esta aliança decretada enquadra- se verificavam desde a década de 1950, ferenciação por parte dos trabalhado-
se, naturalmente, no extremar de mas que a ditadura reprimia ferozmen- res mais qualificados. A “Lei Barreto”
posições que se viveu em 1975 e que te. As vastas extensões de terra alegada- (de António Barreto, ministro da Agri-
o primeiro-ministro Vasco Gonçalves mente subaproveitada em função das cultura entre 1976 e 1978), pondo fim às
sintetizaria, em agosto seguinte, um culturas de sequeiro ali existentes, es- ocupações de terras, e a adesão à Comu-
mês antes da queda do V Governo tavam maioritariamente nas mãos dos nidade Económica Europeia, que trou-
provisório, num discurso proferido grandes proprietários (os latifúndios xe com ela a Política Agrícola Comum,
em Almada: “Ou se está com a superiores a cem hectares representa- foram fatores que determinaram o fim
revolução, ou se está com a reação”. vam apenas 6% do número de proprie- desta revolução rural.

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O Noticioso

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

Retorno
a um local
estranho
Meio milhão de pessoas regressaram
das colónias africanas, despojadas dos bens
de uma ou várias vidas
Textos de Pedro Olavo Simões Fotografias de Alfredo Cunha
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O Noticioso
TEMA DE CAPA

Bandeira nacional
arriada em Maputo,
Moçambique, a 25
de junho de 1975.
O princípio do fim
do Império

R
etornados. Nunca um uma alegria, para muitos deles, desem- ram), sendo praticamente residual, por-
eufemismo terá si- barcar num país ainda parado no tempo. tanto, o número dos que chegaram das
do tão contestado e, Em África, o lado mais tacanho da dita- restantes colónias: Cabo Verde, Guiné-
ao mesmo tempo, im- dura diluia-se, permitindo uma abertu- -Bissau, S. Tomé e Príncipe e Timor.
posto até fazer par- ra ao mundo e um arejamento das men- Para os que estavam nas principais
te do léxico comum. talidades que a repressão limitara fe- cidades – Luanda e Lourenço Marques
Muitos, quando lhes rozmente no Portugal europeu. À dita (hoje Maputo) –, a Guerra Colonial foi,
perguntamos, não hesitam em dizer metrópole chegavam para sentir na pe- durante anos, uma realidade distante,
que eram refugiados, muitos outros, ao le o medo que por cá havia em relação ao algo que não sucedia em zonas de ma-
fim de 40 anos, continuam a organizar- outro. Também portugueses, eram, afi- to onde a perceção do conflito era quoti-
032 -se como os espoliados do Ultramar. E nal, estranhos em terra estranha. Não só diana. Porém, após o 25 de Abril, um dos
“Ultramar” tem, claro, uma carga políti- tiveram de reconstruir a vida como pas- três dês do Movimento das Forças Ar-
ca, maior ainda se alguém falar em “pro- sar de quase apátridas a pessoas que, madas – descolonizar – tornava-se ur-
víncias ultramarinas”. Desaparece essa gradualmente, reconstruiram um sen- gente, porque urgente era a causa dos
conotação quando nos referimos a ex- timento de pertença. militares e de todos os que estavam na
-colónias ou à antiga África portugue- E é justo notar que, pela experiên- iminência de ser chamados a terçar ar-
sa. Retornados, protagonistas doloro- cia que traziam de África, muitos re- mas, materializada na máxima, que se
sos da queda do Império, como o foram tornados tiveram papel importante na tornou programa,. “Nem mais um sol-
os combatentes tombados na defesa do reconstrução da economia portugue- dado para as colónias”.
que do Império restava. Retornados. sa. Se fosse hoje, chamar-lhes-iam em- A descolonização é uma ferida aber-
Cerca de meio milhão de pessoas que, preendedores. ta. E os nomes dos que a protagoniza-
em tantos casos, não regressavam a sí- ram politicamente ganham, na boca de
tio nenhum, pois jamais haviam posto Urgência da descolonização quem veio de África, uma conotação du-
os pés na “metrópole”. Em Portugal. De nacionalidade portuguesa eram per- ramente negativa. Não porque muitos
Para toda essa gente, o ano de 1975 to de 430 mil, os restantes eram maiori- dos portugueses de África não vissem
foi traumático, não só pela efervescên- tariamente cidadãos dos novos PALOP a independência daqueles países como
cia política que se vivia no pequeno re- e, ainda, quase cinco mil de outras na- um destino incontornável, mas, apenas,
tângulo peninsular, mas pelos reflexos cionalidades. Angola (61%) e Moçambi- porque se imaginavam a fazer parte des-
dessa situação que, nas colónias afri- que (34%) foram os novos países de onde se destino. Ninguém sonhava ter de fugir
canas, os obrigaram a fugir, maiorita- mais portugueses regressaram (ou vie- da sua terra, da sua vida, do futuro que
riamente com uma mão à frente e ou- havia idealizado. Entre os retornados ca-
tra atrás, despojados de bens e de hori- bia gente que nascera em África, gente
zontes. Mas também pela efervescência OS QUE IAM PARA da segunda ou terceira geração nascida
política, claro, pois o espírito revolucio- ÁFRICA NÃO em África. Gente distante de Portugal, fí-
nário rapidamente os transformava nos sica e afetivamente, mas também os que
colonos exploradores, quando maiori- SONHAVAM COM levavam menos tempo de África, pois a
tariamente eram pessoas que haviam O REGRESSO migração para as “províncias ultrama-
vivido as vidas comuns que a vida lhes rinas” havia sido fomentada por Olivei-
proporcionara. Os que iam para Áfri- COMO O FAZIAM ra Salazar na década de 1960, estando já
ca não eram emigrantes ansiosos por em curso os conflitos que se resumem no
montar a sua casinha na pátria. Iam pa-
OS EMIGRANTES conceito de Guerra Colonial.
ra ficar e pronto. Daí que não tenha sido PORTUGUESES Convém clarificar, também, que a

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

descolonização não resultou, apenas, sistência aos Desalojados, para ajudar negoceia com Portugal a independên-
de um ideal revolucionário, do cansa- pessoas regressadas da Índia, ou o Cen- cia de S. Tomé e Príncipe; finalmente,
ço das tropas portuguesas ou de inép- tro de Apoio aos Trabalhadores Ultra- Angola era o mais complexo de todos os
cia dos agentes políticos. Logo no 25 de marinos, que dava assistência a traba- casos, por haver três movimentos inde-
Abril, o general António de Spínola, que lhadores cabo-verdianos. Logo após o pendentistas (MPLA, FNLA e UNITA),
defendia uma solução federalista para 25 de Abril, ainda antes do que viria a ser pelo que só em janeiro de 1975 foi alcan-
as colónias (teorizada em “Portugal e o o grande êxodo, começavam a chegar çado, no Alvor, um acordo para a inde-
Futuro”), conseguiu introduzir o “todo pessoas das colónias, levando à criação pendência... cuja data foi cumprida – 11
pluricontinental” da Nação na primei- do Grupo de Apoio aos Desalojados do de novembro de 1975 –, mas estando já
ra declaração da Junta de Salvação Na- Ultramar, mas o aumento do problema instalado um contexto de guerra civil
034 cional, mas isso revelar-se-ia inviável obrigou, em março de 1975, ao desenho que haveria de durar mais de um quar-
em vários aspetos: ia contra o progra- de outro tipo de resposta, materializa- to de século.
ma do Movimento das Forças Armadas da no célebre Instituto de Apoio ao Re- Ora, nesse caminho para as diver-
(MFA); jamais seria admitido pelos mo- torno de Nacionais (IARN), que em ou- sas independências, a urgência de fu-
vimentos de libertação africanos; con- tubro do mesmo ano passou a estar sob a ga dos portugueses começou a ser cada
trariava a comunidade internacional. alçada de uma Secretaria de Estado dos vez mais evidente. Impedidas pelo Es-
Ou seja, não só cedo se percebeu que Retornados, depois extinta e substituí- tado Novo de se organizarem e, portan-
os combatentes africanos não aceita- da pelo Comissariado Para os Desaloja- to, de terem um papel, por pequeno que
riam a paz enquanto não fossem reco- dos (CPD), instituído pelo Decreto-Lei fosse, na discussão da nova ordem, as
nhecidos como as únicas entidades le- n.º 683-B/76, de 10 de setembro. minorias brancas sentiram-se aban-
gítimas nos seus territórios, mas tam- Cinco meses bastaram para Portu- donadas, como nota Joaquim Vieira em
bém que tinham por trás o apoio tanto gal negociar a retirada de todas as coló- “Portugal Século XX – Crónica em Ima-
das Nações Unidas como da Organiza- nias: em agosto de 1974, em Argel (Argé- gens, 1970-1980” (Círculo de Leitores,
ção de Unidade Africana. lia), houve acordo com o PAIGC, da Gui- 2000), levando à revolta dos europeus
Foi a descolonização um sucesso ou né-Bissau, ficando também assegurada em Lourenço Marques, violentamen-
uma inevitabilidade, nos termos em que a independência de Cabo Verde; no dia 7 te reprimida pelo próprio MFA (100
sucedeu? Nem uma coisa nem outra. de setembro, em Lusaka (Zâmbia), são mortos e 250 feridos, na versão oficial,
Portugal, vivendo no êxtase da Liber- fechados com a FRELIMO os termos da mas fala-se em largas centenas de víti-
dade repentina, abriu mão das posses- independência de Moçambique; ainda mas mortais nos dias que se seguiram
sões africanas sem resguardar os cida- em Argel, o MLSTP é o interlocutor que à ocupação do Rádio Clube de Moçam-
dãos nacionais que lá viviam. E o insu- bique e à proclamação da “Rádio Mo-
cesso ficou para sempre estampado nos çambique Livre”). Em Angola, a confli-
rostos dos que tiveram de largar tudo, ANTES DO 25 DE tuosidade entre as três fações indepen-
fugindo de uma guerra de que as forças ABRIL JÁ HAVIA dentistas tornava-se cada vez maior, e
portuguesas já não queriam fazer parte. não seriam os portugueses, que por cá
EM PORTUGAL viviam outros tempos de fúria, a pro-
Nasce o IARN ORGANISMOS PARA mover a pacificação.
O retorno de cidadãos, curiosamente,
começara a desenhar-se já antes do 25 GERIR A CHEGADA A ponte aérea
de Abril. Organismos criados no âmbi- As circunstâncias atrás af loradas
to do então Ministério do Ultramar, co-
DE PESSOAS VINDAS marcam o pânico e a fuga de cida-
mo a Comissão Administrativa e de As- DAS COLÓNIAS dãos das colónias para a metrópole,

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Agostinho Neto
(MPLA), que veio a
ser o primeiro presi-
dente de Angola, ce-
lebra a independên-
cia de Moçambique
ao lado de Samora
Machel e sob o retra-
to deste

ou para Portugal, enfim, para a euro-


peia pátria. A ponte aérea entre Luan-
da e Lisboa durou de 13 de maio a 3 de
novembro de 1975, representando o
transporte de cerca de 300 mil pas-
sageiros em 905 voos. Somam-se os
voos de outras origens, particular-
mente Moçambique, e os transportes
marítimos, que foram a forma de de-
zenas de milhares de pessoas chega-
rem a Portugal. Muitos embarcavam 035
só com a roupa do corpo, muitos ou-
tros com pouco mais do que isso. Pe-
ças de mobiliário e outros pertences
eram despachados, por quem conse-
guia fazê-lo, em contentores, grandes
caixotões de madeira que se tornaram
icónicos, por permanecerem largas
temporadas junto ao Padrão dos Des-
cobrimentos, em Lisboa, com a supre-
ma ironia de os despojos do Império
ficarem abandonados junto a um mo-
numento à expansão portuguesa.
Olhados de lado num país que não
estava preparado para os receber, co-
Menos de meio ano foi suficiente para Portugal negociar mo se percebe nos testemunhos pu-
a independência de todas as colónias. Depois disso, e até blicados mais à frente, os retornados
eram, de facto, mesmo administrati-
à consumação oficial da entrega aos movimentos inde- vamente, os outros. O IARN era o ter-
pendistas, não houve uma transição cuidada, e os portu- reno da Administração Pública onde
se moviam, para aquilo que eram as
gueses que viviam em África escaparam como puderam. necessidades mais prementes, da ha-
bitação à concessão de empréstimos
A situação foi particularmente dura em Angola, onde cedo para iniciativas dos retornados, algo
começou a desenhar-se uma guerra civil que haveria em pequena escala comparando com
o que depois fez o CPD, através de em-
de durar mais de um quarto de século. préstimos para a criação de empre-
go. O IARN transportava retornados
de Lisboa para onde eles quisessem ir
(inclusivamente, apoiava os que deci-
diam logo emigrar para o estrangeiro),
facultava alojamento provisório, dis-

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tribuía roupas e géneros alimentares...


enfim, eram numerosas as tarefas, que
envolviam somas avultadas e, dada a
dimensão da crise humanitária, como
hoje prontamente se diria, também
as falhas eram muitas. E o IARN facil-
mente se tornou o alvo de contestação
por parte dos retornados, que também
saíam à rua em peso, por exemplo, pa-
ra exigir que o dinheiro colonial fosse
convertido em escudos, digamos as-
036 sim, metropolitanos.
Falámos superficialmente das coló-
nias africanas, Macau é, claro, uma con-
ta de outro rosário. E Timor? Não só era
um território esquecido, como passou
a ser representado por três diferentes
forças, com distintos objetivos (a Freti-
lin advogava a independência imedia-
ta, a UDT preconizava um cenário de
autonomia sob soberania portuguesa,
e a Apodeti queria o território integra-
do na Indonésia. Ora, após uma decla-
ração unilateral de independência pe-
la Fretilin e outros episódios, a Indoné-
sia invadiu o território, a 7 de dezembro
de 1975. No entremez, também de Ti-
mor chegaram a Portugal refugiados,
muitos deles mantidos longamente em
condições precárias. E temos ainda a
Índia. Portugal tinha sido, havia mui-
to, escorraçado da União Indiana, mas
só por esta altura se reconheceu a sobe-
rania desse país nos territórios de Goa,
Damão e Diu, sendo estabelecidas rela-
ções diplomáticas.
Passaram 40 anos sobre esse tempo,
mas o trauma de então não se perdeu.
Percebe-se isso, tanto com pessoas com
quem falamos como, sobretudo, com
as que recusam falar connosco. Aque-
las para quem recordar será, provavel-
mente, algo como perder tudo de novo.

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Missão de repatriamento
471,4 mil Ponte aérea 1.º voo a 13/5/1975
retornados portugueses 905 voos
(acrescem cerca de 30 mil de outras nacionalidades) 640 foram
garantidos
pelo Governo
Origem português
e 265
disponibilizados
MOÇAMBIQUE por governos
160,3 mil estrangeiros Último voo a 3/11/1975
ANGOLA
287,5 mil (34%)
Por via marítima 1.º a 13/7/1975
(61%)
27 navios
com mais
23,6 mil de 100 mil pessoas
(5%)

GUINÉ, TIMOR, CABO VERDE


E SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

Em Luanda,
o aeroporto era um
campo de refugiados,
durante a ponte aé-
rea. Tudo se precipitou,
como em Moçambi-
que, onde houve pres-
sa apagar os símbo-
los portugueses, ou na
Guiné, onde comba-
tentes portugueses
improvisaram bandei- 037
ras brancas.

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“Sinto-me
desenraizado
neste país”
António Queirós David foi para Angola com dez anos
e nunca lhe passou pela cabeça regressar a Portugal

“Fui para Angola com dez anos e vim te”. E na capital angolana vivia sem ter
com 35. Sinto-me desenraizado neste uma perceção clara da guerra, algo que
país”. A isso há que somar quatro decé- só sucedeu após o 25 de Abril, quando o
nios, maioritariamente vividos no tor- conflito passou a ser entre os três mo-
rão natal – Macieira da Lixa, Felgueiras vimentos independentistas (MPLA,
–, mas a frase com que António Queirós UNITA e FNLA).
David, 75 anos, enceta a conversa dá lo- O regresso foi como o de tantos. Mu-
go a entender como África é algo que ja- lher, filhos e sogra vieram à frente,
mais larga a pele de quem lá viveu ou quando foi criada a ponte aérea, mas ele
038 nasceu: “A minha terra verdadeira é não fazia tenção de deixar Angola. Só o
Luanda. Sou de Macieira da Lixa ape- fez no início de novembro de 1975, dias
nas porque nasci aqui. Angola é um país antes da independência (11 de novem-
que me desperta tudo, nem sei porquê. bro), quando a Polícia, já comandada por
Sente-se o cheiro da terra. Além disso, um angolano, lhe passou um salvo-con-
há as suas gentes. Viver lá era como vi- duto que lhe garantia o regresso a Luan-
ver num paraíso”. da ao fim de pouco tempo. Já em Lisboa,
Hoje, Queirós David vive a vida rein- quando tentou fazer uso do documento,
ventada , como tantos que, com a desco- na embaixada angolana, não passou do
lonização, se viram recambiados para sentinela. “Camarada, vê a data”, disse o
Portugal com pouco mais do que a rou- soldado, causando perplexidade, pois
pa do corpo. Tem hoje uma produção o documento era recente, e rematan-
de ovos, 75 mil a cada dia que passa. Em do, lacónico: “Isso era antes, mas agora
Angola tinha camiões e, também, ex- é depois”.
portava banana. Para onde? Para a en- Desistiu de voltar a Luanda, ainda
tão metrópole, não podia fazê-lo para por cima porque veio a saber que to- Em Luanda, antes
mais nenhum lado: “Só importávamos dos os seus camiões e máquinas já ha-
de Portugal, e as nossas exportações só viam sido levados dos sítios onde os
de 1975, sonhava com
eram feitas para Portugal. Nós, ex-habi- guardara. Ficara de mãos vazias, cá e lá. um país independente
tantes de Angola, tivemos a fama de ex- Em Portugal, começou por estar aloja-
ploradores, mas os verdadeiros explo- do em Mafra, em instalações da Escola de que ele e a família
radores estavam aqui: o preço do que Prática de Infantaria, por intercessão de também pudessem
exportávamos era estabelecido aqui, um cunhado militar. Daí saiu para casa
em Portugal. Não tínhamos um merca- de familiares da mulher, em Caldas da fazer parte
do livre, mas um mercado condicionado Rainha, onde uma amiga, que tinha um
pelo único país comprador”. aviário, o convenceu a enveredar pe-
Em Luanda cresceu, casou e foi pai lo negócio dos galináceos, algo que fez
de um rapaz e uma rapariga, que ho- com um empréstimo do IARN (Instituto
je são também angolanos. Têm dupla de Apoio ao Retorno de Nacionais) e da
nacionalidade, como os netos. “A na- banca. O negócio correu mal por vários
cionalidade é uma coisa que não pe- motivos, e Queirós David, necessitado
sa no bolso e pode vir a ser importan- de honrar os seus compromissos, desu-

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039

RUI OLIVEIRA/GLOBAL IMAGENS

nhou-se para conseguir um emprego na Estes 40 anos têm, ainda, o peso


construção civil que o levou nove meses de um sonho que não se concretizou.
à Arábia Saudita. Depois desse interreg- “Queria uma Angola independente
no, e de mais algumas voltas, acabou por onde pudesse estar eu e a minha famí-
estabilizar de novo no negócio dos ovos. lia”, diz, vincando que “a descoloni-
Na terra dele, Macieira da Lixa, onde zação foi uma catástrofe para os por-
experimentara, nos primeiros tempos, tugueses, mas ainda mais para os an-
a desconfiança com que os retornados golanos, que compraram uma guerra
eram olhados (exemplo: ninguém lhes civil de 25 anos, fruto de uma descolo-
queria arrendar casa), vive hoje sempre nização precipitada”: “Tinha sido be-
com os olhos e o coração postos em An- néfico, para angolanos e portugueses,
gola, onde já tem um armazém de pro- que se tivesse feito um bom tratado,
dutos alimentares. O regresso a Luan- não como o que se fez no Alvor, meten-
da, em setembro de 2007, foi mágico: do no mesmo saco três exércitos, todos
“Quando lá cheguei, senti uma alegria com ideias divergentes. A guerra não
tão grande, tão grande que não é possí- foi com os portugueses, mas foram os
vel traduzi-la em palavras”. portugueses os responsáveis”.

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TEMA DE CAPA

“Aprendemos a ser
ultra-solidários
uns com os outros”
Aos nove anos, Mário Fernandes chegou a Portugal
com os irmãos, deixando os pais em Moçambique

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O Noticioso

Mário Fernandes chegou a Portugal no altura em que conseguiram arrendar


dia 2 de setembro de 1976. Tinha nove casa própria, e mais tarde ainda, com
anos. Ter nove anos, naquele tempo e a vida do pai, pôde contrariar-se uma
vivendo aquela experiência, não era desestruturação familiar que esteve
o mesmo que hoje. Era ter percebido a em risco de acontecer.
guerra muito nitidamente em Mutara- Rijas eram aquelas crianças, graças
ra, na margem esquerda do Zambeze, também a um tipo de educação que por
província de Tete, Norte de Moçambi- cá seria menos comum, passando pe-
que. Era ter vindo com os dois irmãos, la prática desportiva ou pela valoriza-
sozinhos, para um ambiente estranho ção dada à qualificação escolar, mais
e hostil. A mãe, professora primária, só invulgar na “metrópole”, onde mui-
veio em 1977, com a filha mais nova. O tas crianças eram postas, desde cedo,
pai, só voltaram a vê-lo em 1981, ano em a aprender ofícios. Mas também por-
que definitivamente regressou a Por- que haviam vivido a guerra à porta de
tugal. “O trauma familiar” foi, para es- casa. “Sentíamos a guerra à nossa vol-
tas pessoas, a ferida mais funda que a ta. Tínhamos em Mutarara uma unida-
descolonização causou. de da Marinha, que patrulhava o Zam-
Hoje, Mário não tem dúvidas de beze, um quartel do Exército e uma ba-
identidade – “sou português e portis- se da Força Aérea. Já havia problemas
ta!... com uma costela moçambicana graves com a FRELIMO”, conta Má-
forte” – e todos os irmãos estão bem. rio, que, entre outros apisódios, lem-
Ele é enólogo, um dos irmãos é piloto bra que a casa deles foi poupada, tal-
de linha aérea, o outro professor, a irmã vez em 1975, porque em tempos a famí-
cirurgiã. Mas foram difíceis aqueles lia tinha apoiado e escondido, graças
primeiros tempos, em que três rapa- à forte moral cristã da matriarca, feri-
zitos se viram na casa da avó materna, dos do partido que veio a tomar o poder
em Monte Córdova (Santo Tirso), e num em Moçambique, mesmo que isso cha-
país cujo atraso só mais tarde conse- masse a atenção da PIDE.
guiram compreender. “Lembro-me de Em Portugal, aquela hostilidade
chagarmos lá e as pessoas dizerem, ad- inicial “foi-se diluindo”, mas os mo- 041
miradas: ´mas eles falam tão bem por- mentos traumáticos – os que se con-
tuguês’”. Como se os portugueses em tam e os que ficam calados – não são
África fossem uma espécie de nativos apagados da memória. “Traidores” é o
exóticos atrasados, quando era em Por- adjetivo usado para qualificar os pro-
tugal, por via de uma maior repressão e tagonistas políticos da descoloniza-
uma mais enraizada cultura de medo, ção. Porque sem nada foram deixados
que o grande atraso existia. tantos portugueses que, afinal, nem
Três irmãos sem pai nem mãe cons- queriam eternizar o império: “Nós en-
truíram, por via das circunstâncias, tendíamos que eles precisavam de au-
uma união mais forte e mais inque- todeterminação”.
brantável. “Aprendemos a ser ultra-
-solidários uns com os outros”, diz Má-
rio, lembrando que a hostilidade que
haviam encontrado era muito forte:
“Quinze dias depois de estarmos cá, es-
crevemos aos nossos pais a pedir para
voltarmos para Moçambique”. Na altu-
ra, ninguém sabia o que era “bullying”,
mas disso eram eles vítimas, sendo
apontados como retornados e alvos
de esperas e agressões. Vítimas pou-
co tradicionais, porque se habituaram
a ripostar, numa lógica que quase po- Em Mutarara, na
deríamos chamar “africana”, montan-
do armadilhas, fazendo emboscadas província de Tete,
ou o que fosse necessário para defen- a guerra com a FRELIMO
der o pequeno clã que formaram. “Éra-
mos muito resistentes”. Por essa altura, era uma realidade muito
o irmão mais velho tornou-se, para os próxima e percebida no
outros, uma figura paternal, e só mais
tarde, primeiro com a chegada da mãe, quotidiano
RUI OLIVEIRA/GLOBAL IMAGENS

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CAMINHOS DO PATRIMÓNIO

Os castros,
memória
nas brumas
Joel Cleto
arqueólogo

do noroeste
“Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Ibéria está ocupada pelos
042 romanos… Toda? Não! No seu extremo noroeste muitas aldeias (castros)
resistem ainda e sempre ao invasor.” Quem eram? Como construíram os
seus povoados fortificados? Quando e como desapareceram?

Castro de S. Lourenço Braga


Esposende Citânia de Briteiros
A11

A28
A3 Guimarães

A7

Vila do Conde

Citânia de Sanfins

Paços de Ferrreira

Penafiel
A4

OCEANO
ATLÂNTICO Porto
Castro do Monte Mozinho

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MIGUEL PEREIRA / GLOBAL IMAGENS

E
les estão por aí. Espalhados um pou- O maior exemplar
co por todo o território que se es- da civilização
tende da bacia do Vouga aos confins castreja que temos é 043
das Astúrias. Há mais de dois mil a citânia de Sanfins,
anos que fazem parte da paisagem, em Paços de Ferrei-
da memória, dos mitos e da identi- ra (em cima). O castro
dade daqueles que partilham estes de S. Lourenço, em
rios, montanhas, planaltos, vales e costa oceânica. Vila Chã, Esposende
Uma terra de nevoeiros, lendas e seres misterio- (foto ao lado), apre-
sos, onde práticas de sincretismo religioso mer- senta trabalhos de
gulham fundo no tempo as suas raízes. Sim. Mais reconstituição que
de dois mil anos depois, os castros continuam por dão a entender como
RUI MANUEL FONSECA / GLOBAL IMAGENS
aí e são uma das distintivas marcas arqueológicas seriam as casas
identitárias do Noroeste constituindo também,
nos nossos dias, um enorme potencial no crescen-
te turismo cultural.
O termo “castro” é, por isso, relativamente co-
mum neste extremo da Península Ibérica, sendo
utilizado para apelidar um tipo de povoado pré-
-histórico muralhado que, se nalguns casos per-
tence a épocas anteriores, na sua maioria corres-
ponde a uma realidade cultural que se alicerça
de modo evidente nos finais da Idade do Bronze
(c. 1000/900 anos a.C.) e que irá caracterizar to-
da a Idade do Ferro (no 1º milénio a.C.), embora al-
guns perdurem pelos primeiros séculos da roma-
nização.
Os castros, designados também por citânias
(nomeadamente quando se revelam de grande di-
mensão), caracterizam-se pela sua implantação
em locais proeminentes, aliando muitas das vezes Os castros eram
ótimas condições de visibilidade, designadamen- implantados em sí-
te sobre as bacias dos rios, com condições naturais tios com condições
de defesa. Apresentam, no entanto, outros siste- naturais de defesa

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CAMINHOS DO PATRIMÓNIO

mas defensivos mais ou menos elaborados e cons-


tituídos, regra geral, por várias linhas de mura-
lhas, associadas não raras vezes a fossos.
Numa primeira fase, estas estruturas defensi-
vas eram ainda muito embrionárias, com mura-
lhas construídas em terra e usando também pali-
çadas. Nessa época, as habitações edificavam-se
igualmente com madeira e outros materiais pere-
cíveis, cuja evidência arqueológica é hoje de difí-
cil registo para os arqueólogos que, especialmen-
te nas últimas três décadas, vêm estudando de um
modo sistemático estes povoados, a sua estraté-
gia de exploração do território e o impacto que ne-
les tiveram acontecimentos como os que ocorre-
ram a partir do século VII a. C. De facto, é a partir
desse momento que estas comunidades sofrem
duas importantes influências externas que, mais
do que do ponto de vista demográfico ou étnico, se
refletirão de modo evidente na sua cultura mate-
rial e prática tecnológica. Uma será “continental”,
oriunda do centro da Europa e que os investigado-
res classificam como “céltica”, e que corresponde-
rá à introdução da metalurgia do ferro. A outra se-
rá mais “mediterrânica”, resultante de contactos
que então se começam a multiplicar com púnicos,
gregos e, mais tarde, romanos.
Será, contudo, a partir do século II a.C. que se
produzirá a acentuada transformação que resul-
044 tará na imagem que hoje possuímos dos castros.
Tal radicará em importantes modificações decor-
rentes, em larga medida, da generalização da prá-
tica metalúrgica do ferro, que permite, por exem-
plo, o fabrico de utensílios mais resistentes, com
claras implicações na agricultura. Instrumen-
tos que serão também cruciais para que, por fim,
se assista à “petrificação” dos povoados e das suas
casas. Agora, graças à resistência do ferro, é possí- Visita à citânia teiras”, ou comerciais, portuários, mineiros… Há
vel extrair pedra com facilidade e trabalhá-la. As de Briteiros mesmo “castros agrícolas” implantados em vales
construções pétreas vulgarizam-se, incluindo as (foto acima) deve ou os que emergem junto ao mar, com uma prová-
próprias habitações, que, praticamente até à con- ser complementa- vel vocação piscatória e seguramente salineira…
quista romana, se caracterizarão pelo seu aspeto da com uma ida ao A robustez e monumentalidade das muralhas de
circular. Cada núcleo familiar seria composto por museu da Socieda- muitos castros, não negando o carácter guerrei-
diversas destas “casas” circulares, corresponden- de Martins Sarmen- ro e belicoso destes povos, não deixa igualmente
do a cada uma diferentes utilizações: espaços do- to (Guimarães). Em de se revestir de uma dimensão simbólica, refor-
mésticos, cozinha, armazéns, arrumos de alfaias Penafiel, o castro do çando a importância do povoado e dos seus diri-
e animais… Uma crescente concentração popula- Monte Mozinho (foto gentes. Algo, por vezes, também sublinhado pe-
cional e preocupações “urbanísticas” como a pa- mais pequena) apre- la colocação, junto às suas entradas, de estátuas de
vimentação de alguns dos eixos principais, o cui- senta aspetos úni- guerreiros de grandes dimensões (os conhecidos
dado colocado na distribuição de água e escoa- cos, como a enigmá- “guerreiros lusitanos”) que evocarão o antepassa-
mento de esgotos, permitem-nos classificar os tica estrutura circular do fundador do povoado ou da comunidade.
castros como proto-urbanos. no topo do complexo Na base do desenvolvimento dos castros, nes-
Nestes últimos séculos a. C. e associado à inten- te período, estará também o avanço dos romanos
sificação da metalurgia, da agricultura, e à petrifi- para norte, a imigração de populações originárias
cação generalizadas dos povoados, assistir-se-á, do sul, e um acentuado incremento dos contac-
também, a uma progressiva afirmação de algu- tos comerciais entre “castrejos” e romanos, bem
mas citânias como lugares centrais de um terri- identificados em níveis arqueológicos anteriores
tório mais vasto, onde castros “secundários” se à conquista romana.
parecem especializar em objetivos precisos ou E se esta se processa, oficialmente, por volta
na exploração de determinados recursos, sejam de 138-136 a.C. com a campanha de Iunius Brutus,
eles estratégicos, na defesa e vigilância das “fron- que, após derrotar os lusitanos, penetra significa-

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O Noticioso

tivamente para norte, a verdade é que na prática


estas populações permanecerão afastadas e resis-
tentes a um efetivo domínio romano durante mais
de um século. E só poderemos falar de uma real in-
corporação desta região no Império a partir das
primeiras décadas do séc. I.
E porque as estratégias de organização e explo-
ração territorial passam a ser outras, a romaniza-
ção ditará, a breve trecho, o abandono dos castros.
Não sem antes, contudo, fazer sentir a sua presen-
ça. A louça romana de fabrico comum generaliza-
-se e acompanha a crescente adoção de cerâmicas
de luxo. A cobertura das casas passa a recorrer ao
uso de telhas em vez do colmo. Vidros, adornos di-
versos, moedas e outros objetos romanos, recolhi-
dos pelos arqueólogos nos estratos corresponden-
tes aos finais de ocupação dos castros, demons-
tram que os indígenas assimilavam rapidamente
os hábitos e cultura dos seus colonizadores.
Abandonados, desde então, os castros passa-
rão a alimentar, até hoje, a imaginação das comu-
nidades que os identificam como lugares mági-
cos, cidades “dos mouros”, onde misteriosos tú-
neis conduzem até tesouros e belas princesas
encantadas…

045

Roteiro de visita
São muitos os castros que apresentam não só sig-
nificativas áreas limpas de vegetação e preserva-
MIGUEL PEREIRA / GLOBAL IMAGENS
das para visita, mas também atrativos centros in-
terpretativos. Um roteiro possível deverá levar o
visitante até à Citânia de Sanfins, em Paços de Fer-
reira, e ao seu museu e centro interpretativo. Tra-
ta-se da maior citânia conhecida até à atualidade.
Outro local incontornável, objeto de escavações
desde o século XIX, é a citânia de Briteiros. Possui
um interessante centro interpretativo que deve-
rá ser complementado com uma visita ao Museu
da Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães.
Castros que apresentam, também, áreas escava-
das muito significativas e centros de acolhimento
ao visitante, são os do Monte Mozinho (Penafiel),
que preserva no seu topo uma enigmática e gigan-
tesca estrutura circular, e o do Monte de Santa Lu-
zia (Viana do Castelo), onde é possível observar
dos melhores exemplares do típico aparelho de
encaixe das pedras utilizado pela arquitetura cas-
OCTÁVIO PASSOS / GLOBAL IMAGENS
treja. Ainda no litoral, não deixe de visitar o castro
de S. Lourenço (Esposende) ou a Cividade de Ter-
roso (Póvoa de Varzim). E, já agora, no arqueossí-
Metalurgia Avanço dos romanos tio da Rua de D. Hugo, sob os alicerces da sede da
do ferro facilitou e migrações favore- delegação Norte da Ordem dos Arquitetos, poderá
a petrificação ceram crescimento observar o vestígio de uma casa do tempo em que
destes povoados dos castros o Porto (o morro da Sé) foi também um castro.

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O Noticioso
ENTREVISTA

“FAÇO PARTE José Pacheco Pereira

DE UMA Historiador, político e insaciável recoletor

ESPÉCIE do que serão as bases da perceção que teremos

EM VIAS DE de nós próprios, vive numa aldeia ribatejana,

EXTINÇÃO,
046

rodeado por 200 mil livros e quilómetros

QUE SÃO OS de documentação, aí refletindo sobre a construção

SOCIAIS- da nossa memória coletiva e sobre os golpes de rins

-DEMOCRATAS” da política portuguesa.


Texto de Pedro Olavo Simões
Fotografias de Rui Oliveira

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O Noticioso

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O Noticioso
ENTREVISTA

“PODERIA DIZER QUE VENDO TUDO


ÀS UNIVERSIDADES AMERICANAS,
MAS NUNCA FAREI ISSO”

J
unto ao portão, a placa: ”Bewa- Isso resulta num arquivo invulgar... Quando há pouco falei em salvação,
re of the cat”. Cuidado com o ga- Não é apenas um arquivo institucional não o fiz de forma inocente. A História
to. O sentido de humor de José clássico, ou seja, não coleciona apenas não constitui salvação para ninguém...
Pacheco Pereira revela-se an- papéis, ou a biblioteca livros, mas tam- Sim, ensina menos do que o que se pen-
tes mesmo de receber a “JN His- bém tem uma parte importante daquilo sa, mas, apesar de tudo, mais vale sabê-
tória” na Marmeleira, terra que que é a “ephemera”, coisas voláteis, desti- -la do que não sabê-la.
pôs no mapa. Para lá do portão, nadas a desaparecer, mas também obje- … mas o que pergunto é se este trabalho
o universo. Não é uma casa e é uma ca- tos e peças que, de um modo geral, os ar- é um contraponto ao esquecimento e à
sa. O mesmo se lhe chamarmos institui- quivos não colecionam. Há aqui, na cole- apatia, duas formas de perdição.
ção, idem aspas se nos referirmos a la- ção política, de bolas de futebol a caixas Sim, sim... e estes materiais estão dispo-
birinto, à biblioteca borgesiana em que de costura, cinzeiros de praia, panos de níveis, na medida das condições da sua
estamos prestes a ser iniciados: 200 mil palco, faixas de rua... Quando mostro is- conservação. Recentemente, alguns
volumes convivem com o maior arqui- so às pessoas que visitam o arquivo, elas jornais pediram-me para reproduzir,
048 vo privado português, obra de uma pai- ficam surpreendidas, porque percebem do site do “Ephemera”, imagens de car-
xão, ou obsessão, de historiador, mas até que ponto, para reconstituir a nossa tazes de campanhas eleitorais anterio-
também de cidadão empenhado em que História, quer do ponto de vista icono- res. E o que se encontra é, evidentemen-
nada se perca, em travar o vazio. O em- gráfico, quer do ponto de vista da Histó- te, a memória de muita coisa incómo-
penho que o leva, falando disso, a falar ria propriamente dita, das palavras de da. Por exemplo, a campanha eleitoral
de tudo. ordem, das imagens, é fundamental pre- do CDS-PP contra o euro e em defesa do
servar esses aspetos. Para isso, este ar- escudo, acusando o PSD e o PS de ven-
Como define os materiais e documen- quivo também tem uma característica derem Portugal, de só quererem tacho...
tos que chegam ao seu arquivo: pedras muito diferente: sendo um arquivo pri- essa campanha existe fisicamente. Há
preciosas ou almas que salva do limbo? vado, a que eu dou o nome, é, na verda- cartazes, autocolantes... E não foi há tan-
É tudo junto... Temos um problema com de, obra de um número muito significati- to tempo como isso.
a nossa memória histórica: nalguns ca- vo de voluntários, que em todo o país re- Os eurocéticos que se transformaram
sos é seletiva, noutros é apologética. Em colhem sistematicamente a informação em europeístas...
consequência de 48 anos de historio- e impedem que numa campanha eleito- Exatamente... Transformaram-se em
grafia de regime, centrámo-nos num ral, por exemplo, grande parte das coisas europeístas calmos, que é uma desig-
determinado tipo de História (quando desapareça. Dou um exemplo: nas autár- nação daquelas que o Paulo Portas faz
fui estudante, acabava antes da Revolu- quicas de 2013 foram produzidos cerca e a gente não percebe bem o que é, ou,
ção Francesa, não se podia entrar no pe- de cem mil espécimes diferentes de ma- melhor, percebe bem de mais o que é.
ríodo contemporâneo). Ao mesmo tem- teriais (cartazes, outdoors, brindes, ca- Não faltam exemplos. Há aquele grande
po, o grau de destruição quase diário de netas, bandeiras, apitos, programas...) cartaz em que o Paulo Portas dizia “Eu
papéis, documentos, correspondên- em todo o país. Com a ajuda desses vo- fico” – e não ficou... Essas coisas, mui-
cia, cartas ou objetos é enorme. Todos luntários, conseguimos recolher aqui tas vezes, não são lembradas por inco-
os dias se perdem, literalmente, deze- cerca de 35 mil. Está a ver o que se perde, modidade. Não é lembrado que o Otelo
nas de milhares de papéis, em mudan- mesmo na melhor das hipóteses. E está- Saraiva de Carvalho deu uma entrevis-
ças de casa, em arquivos que as pessoas -se a perder a qualquer momento. Nesta ta ao “Povo Livre” a dizer que era social-
não valorizam e deitam ao lixo, em pa- altura em que nós estamos a falar, ime- -democrata, não é lembrado que o PSD
péis que as instituições não têm condi- diatamente a seguir a uma campanha se classificava, em cartazes, como um
ções para receber... Eu procuro, dentro eleitoral, as sedes estão a ser esvaziadas partido de centro-esquerda, não é lem-
desse nicho, salvar a maioria das coisas e atiradas ao lixo. É um período em que brada, por exemplo, a campanha negra
que possa e não deixo de estar conten- muitos voluntários estão a visitar as se- contra Sá Carneiro, feita em grande par-
te, porque algumas coisas importantes des para, pelo menos, retirar uma cópia te pelo PCP, mas também pelo PS, com a
têm sido salvas. de cada material. emissão das célebres notas com Sá Car-

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O Noticioso

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neiro de um lado e Freitas do Amaral do partido marxista”, ou a JSD não reedita- dades bem contadas, para fazer o para-
outro, não é lembrada, muitas vezes, a rá o seu jornal que se chamava “Pelo so- lelo. Mas é evidente que continua a ha-
situação de alguns conflitos sociais que cialismo”. Todas essas coisas estão aqui ver muitos obstáculos. Por exemplo, na
não têm as primeiras páginas dos jor- arquivadas. área que eu trabalho como historiador,
nais... Tudo isso tem aqui a sua memó- O território da memória é sinuoso, e que é a História do PCP e a História da
ria, e isso foi possível com uma atitude a historiografia deu azo, desde sem- Oposição, é muito difícil, ainda hoje, ter
ativa de procurar essa documentação, pre, às mais diversas formas de ma- acesso a materiais relevantes para esse
que dá, em muitos casos, uma ideia mui- nipulação. Parece-lhe que estas qua- estudo. Os arquivos do Partido Comu-
to diferente do que foi a História portu- tro décadas de democracia habilita- nista Português estão, de um modo ge-
guesa do que aquela que alguns dos ram as pessoas a lidar com verdades ral, fechados, muita gente que já morreu
atuais atores políticos pretendem dizer. mal contadas? não quis deixar autobiografias ou me-
Por exemplo, eu presumo que o PS não Mais do que na ditadura, em que as pes- mórias... Embora haja muita memoria-
reeditará o seu autocolante que diz “PS soas nem sequer tinham acesso às ver- lística associada, por exemplo, com os

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O Noticioso
ENTREVISTA

“O próprio PCP tem, hoje,


uma atitude mais aberta
em relação à sua História
e está também, de alguma
maneira, a afastar-se de
uma História oficial que
impedia que se soubesse o
que aconteceu.”

comunistas, a verdade é que ela é muito Já voltamos à biografia de Álvaro nuncia esta palavra com evidente car-
oficial. Verdadeiramente o que aconte- Cunhal. Agora, olhando para a classe ga irónica] fez-lhe uma pergunta, e ele
ceu, quem tomou as decisões, os proble- dirigente atual (e também para os jor- respondeu: “Então, que curso é que tu
mas dessas tomadas de decisão, isso não nalistas), parece-lhe que há humilda- tens? Estás a estudar, ó meu? Que cur-
está registado. Isso é um exemplo, mas de suficiente para ter aquela visão de so é que tu tens?”, e um respondeu que
outros partidos reconstroem, também, Bernardo de Chartres, de sermos anões estava a estudar Comunicação Social e
a sua história. A maneira como hoje, no aos ombros de gigantes, ou as pessoas outro História, e vai ele: “Isso não serve
PSD, é vista a génese do partido e a figu- têm a presunção de estar a iniciar um para nada!”... É evidente o ataque às hu-
ra de Sá Carneiro, e os textos de Sá Car- tempo novo partindo do nada? manidades que existe hoje, através da
neiro, é muito diferente daquilo que os Isso também é um problema etário. Os maior escassez de financiamento nas
textos e aquilo que ele fez, efetivamente, mais novos vivem nas redes sociais, vi- universidades, através da ideia de que
revelam. As instituições tendem a cons- vem no Facebook, vivem num determi- as universidades são marcas e têm de
truir uma História oficial, o que é váli- nado tipo de informação que, a seu tem- competir como se fosse um concurso
050 do também, por exemplo, para a Igreja. po, poderá ter valor histórico, mas não de marketing, a perda do sentido uni-
E o tempo não afrouxa essa atitude? substitui os livros nem aquilo que não versitário da “humanitas” e da “univer-
Apesar de tudo, há progressos. O pró- está na Internet. Isso é válido para polí- sitas”... Não perceber que o saber não é
prio PCP tem, hoje, uma atitude mais ticos e jornalistas (também depende da necessariamente medido pela empre-
aberta em relação à sua História e es- ignorância de cada um, há uns mais ig- gabilidade ou pela utilidade imedia-
tá também, de alguma maneira a afas- norantes e outros menos ignorantes). A ta – também é, mas não é necessaria-
tar-se de uma História oficial que im- memória é muito curta, feita apenas do mente esse o critério fundamental – faz
pedia que se soubesse o que aconteceu. que está na Internet e pode ser pesqui- com que as disciplinas das humanida-
Acredito que, com o tempo, outras ins- sado pelo Google, ou daquilo a que as des, o conhecimento clássico, da Gré-
tituições tenham essa abertura. Ago- pessoas têm acesso diário através das cia, de Roma, das civilizações orientais,
ra, continua sistematicamente a haver redes sociais, do Twitter, de blogues... o conhecimento da História medieval, o
uma grande circulação de histórias mal Às vezes, irrita-me ler um artigo de jor- conhecimento até da História moderna
contadas, e aí a comunicação social tem nal escrito como se no arquivo do pró- seja escassíssimo.
muita responsabilidade, porque repe- prio jornal, em papel, não houvesse da- Isso tem consequências...
te o que lhe dizem sem verificar. Nesta dos relevantes que alterariam algu- É evidente que tem enormes reflexos.
área em que eu trabalho, parte dos livros mas afirmações que o próprio artigo Pergunto-me como é que se colocam
publicados são completamente inúteis, faz. Bastava ir ao arquivo! Bastava ter a os jovens a ler “Os Maias” quando eles
porque têm as datas erradas, têm as his- preocupação de procurar, porque, mui- não conhecem uma única história bí-
tórias que lhes contam, muitas vezes a tas vezes, quando se fala de uma perso- blica, porque o sentido das histórias da
partir do interesse de quem conta a his- nagem, a memória dessa personagem, Bíblia perdeu-se, como se perdeu o fun-
tória, nada é verificado... Um dos gran- muitas vezes incómoda, está lá, no jor- damento da História clássica. O Eça ti-
des trabalhos, ao fazer a biografia do nal, mas no arquivo e tem de se procu- nha essa cultura, como aliás todos os
Cunhal, é repor uma sequência crono- rar. Esse hábito não existe. E os políticos, grandes escritores em Portugal (alguns
lógica rigorosa, retratar os processos de particularmente as gerações mais no- dos mais novos, agora, já não têm: as re-
decisão que, muitas vezes, são atribuí- vas, com exceções, insisto, de um modo ferências a esses valores e a essas histó-
dos a uma única pessoa, porque tam- geral não atribuem grande valor à His- rias desapareceram). Portanto, como é
bém há um fenómeno de culto da per- tória. Nunca mais me esqueço de uma que as pessoas podem ler aquilo? As cul-
sonalidade, distribuí-los por quem efe- cena que houve com aquele comissá- turas judaica, latina ou grega são os fun-
tivamente tomou essas decisões... Isso rio do impulso jovem, que dava uns sal- damentos da nossa civilização. Usamos
é, ainda por cima quando se trata de ati- tos no palco, e uma vez, um assistente de sistematicamente expressões e refe-
vidades clandestinas, particularmen- um desses encontros destinados a pro- rências a essa matriz, mas, com a perda
te difícil. pagar o empreendedorismo [JPP pro- dessa memória, que é, no fundo, um au-

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O Noticioso

mento da ignorância hoje patrocinado aprender em francês e não em dialeto, soas, na sociedade, têm de ter em rela-
pelo Estado, na medida em que se con- ou na tropa, a terem acesso a uma edu- ção a quem as governa.
sidera que estes conhecimentos não são cação laica mínima, nacionalista... A massificação e democratização do
importantes para ter uma vida de suces- São esses fatores – é por isso que o en- acesso ao ensino foi um dos grandes
so nos negócios – e são –, a verdade é que sino público é relevante – que ajudam desafios que se colocaram após o 25 de
isso está a desaparecer. a criar, no fundo, uma consciência na- Abril. É uma aposta ganha ou perdida?
Terá alguma coisa a ver, também, com cional, e a crise dessa consciência na- Ainda é uma aposta substancialmen-
aquilo de que Max Weber falava em cional passa, entre outras coisas, pe- te ganha. Por muito que haja recuos,
quando se reportava à ética protestante? la degradação da própria memória da é muito difícil que haja um recuo sufi-
Sim, no sentido em que, quando estuda- língua em medidas completamente cientemente significativo para que o
mos a leitura e a História da leitura, veri- inúteis e de engenharia política, como adquirido da democratização do ensino
ficamos que, nos países a que chegou a o acordo ortográfico, que afasta o por- ande para trás.
Reforma protestante, as pessoas apren- tuguês escrito das suas origens lati- O termo de comparação era, efetiva-
dem a ler para lerem a Bíblia. Isso signi- nas. E este afastamento não beneficia mente, muito baixo... 051
fica que taxas de analfabetismo mui- ninguém. Na verdade, não nos apro- Era muito baixo em todos os aspetos.
to baixas já existiam em muitos países ximou de ninguém, porque os outros Mas, de facto, do 25 de Abril até aos dias
protestantes no início do século XX, ta- países, sabiamente, continuam a falar de hoje, em áreas como a Saúde, com a
xas que Portugal só atingiu praticamen- e a escrever como já falavam e escre- mortalidade infantil, em áreas como a
te no final desse mesmo século ou no viam, ou como precisam de falar e es- educação, em áreas como a melhoria da
início do século XXI. crever por razões de unidade nacio- qualidade de vida urbana... Não me re-
Ou seja, no nosso mundo, esse tipo de nal, como é o caso de Angola. firo apenas ou principalmente a Lisboa
avanço, de alfabetização... Também a escola pública vem sendo e Porto, mas às pequenas cidades do in-
Tem muito a ver com cultura, tem mui- atacada em Portugal? terior. Houve uma verdadeira revolu-
to a ver com ideias sobre a sociedade, so- Sem dúvida. A escola pública é um gran- ção. Uma vez, numa campanha eleito-
bre a religião... de instrumento democrático para per- ral, disse que a melhor campanha que se
… e uma vez que não existiu esse impul- mitir o elevador social, permitir que podia fazer das mudanças em Portugal
so dado pela religião, é algo que se faz, as pessoas saiam da pobreza, não pa- eram os mapas de fotografia aérea, que
de alguma forma, por decreto e ação do ra a riqueza, enfim, mas para uma vi- revelavam, de facto, como pequenas ci-
Estado... da minimamente razoável, e a educa- dades do interior cresceram significati-
E fez-se, em grande parte, através da ção é o grande elemento dessa transi- vamente, ganharam equipamentos... o
escola pública, como se verificou em ção. Portanto, a crise da classe média que não estão a ganhar e, pelo contrário,
França, desde o século XIX, para criar em Portugal, nos últimos anos, também estão a perder, é a capacidade de fixar a
uma unidade nacional... Convém não se reflete numa crise da importância da mão-de-obra.
esquecer que, no século XIX, uma par- educação. Isso significa que não há, pra- Voltemos ao seu trabalho, materiali-
te importante de franceses não falava ticamente, educação de adultos, o que é zado neste arquivo. Costuma apresen-
francês: falava patois, falava auverg- péssimo porque Portugal tem um pro- tar a curiosidade quase como uma sua
nat, falava bretão... E o grande ins- blema de qualificação da mão-de-obra matriz genética. Pondo-a num prato da
trumento que modelou a sociedade, muito grande, e há uma degradação pe- balança, e estando no outro a ideia de
e que esteve na origem de uma certa las condições de trabalho e de exercí- serviço público, como é o equilíbrio?
ideia nacional da França, foi a combi- cio profissional, uma enorme degrada- As duas coisas estão ligadas, porque é
nação entre a escola pública e o ser- ção das escolas que faz com que as gera- evidente que um arquivo com esta di-
viço militar obrigatório. As duas coi- ções que vão saindo das escolas estejam mensão terá de ser, no futuro, público.
sas levaram milhares de jovens, que pior preparadas. E isso, depois, tem efei- E tenho uma vontade de que seja assim.
nunca teriam acesso ao francês a não tos nos salários, na competitividade, Evidentemente que uma política de va-
ser através da escola, onde tinham de na própria exigência crítica que as pes- lorização do arquivo, mesmo sendo ele

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ENTREVISTA

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privado, ajuda, depois, a que ele mais giamente financiadas, apenas na ba-
facilmente se torne público. Para além
“Tenho sempre recusado se do meu próprio trabalho, do meu di-
do mais, as coisas que aqui são salvas utilizar o arquivo como nheiro e dos voluntários. Vamos ver.
são salvas. Já não podem voltar ao sítio Está tudo preparado, e há um acordo fa-
onde eu muitas vezes as fui buscar, li-
instrumento de ajustes de miliar nesse sentido, para criar uma pe-
xo ou quase lixo. Felizmente, hoje, as contas históricos. Agora, quena fundação que permita manter os
pessoas que conhecem este trabalho fundos e continuar a adquirir (ou por
falam-me. Eu tenho praticamente to- o que existe e que é para oferta, como é a maioria dos casos) fun-
das as semanas duas ou três ofertas, publicar, é para publicar. dos da mesma natureza, e que crie um
umas mais importantes, outras menos polo de investigação que é suficiente-
importantes, mas há um contínuo flu- Se incomoda, é com eles...” mente perto dos grandes centros e, ao
xo de informação. Este arquivo move- mesmo tempo suficientemente afasta-
-se não só pela curiosidade. É um ar- do, com as vantagens de o afastamento
quivo que não tem um tostão do Estado: ser numa zona rural. Se as coisas corre-
tem dois tostões, chamemos-lhe as- rem bem, será esse o destino.
sim, que são os meus e os voluntários, E se não correrem?
que dão tempo e, nalguns casos, até, di- Se não correrem sob essa forma, eu não
nheiro, porque digitalizam, compram faço ameaças. Podia dizer “eu vendo tu-
materiais, oferecem coisas que têm va- do às universidades americanas”, mas
lor material e de que prescindem. Isto nunca farei isso. Mas não é que não ape-
permitiu fazer um arquivo que é, neste teça, porque, perante a incúria nacio-
momento, provavelmente, o maior ar- nal, o que apetece é fazê-lo. Mas não me
quivo privado português e que tem coi- passa isso pela cabeça, e encontrar-se-á
sas únicas. Quem quiser estudar algu- outra solução institucional para que es-
mas coisas tem de cá vir. tes recursos sejam públicos. E uma coi-
Para si é evidente, e isso parece tam- sa que defende este arquivo é a sua im-
bém ser consensual, a ideia de este ar- portância objetiva. Se quiser estudar a
quivo vir a tornar-se público... história do pós 25 de Abril, tem que cá
Na prática, já é: se alguém quiser, com as vir; se não vier, faz mal, faz coisas in-
limitações de tempo que eu tenho... completas. Se quiser estudar a histó- 053
... mas continua nas mãos de um homem ria da oposição portuguesa antes do 25
só, que esbarrou nas alterações à lei das poder quase discricionário ao primei- de Abril, do PC, das pequenas organiza-
fundações. Já encontrou solução? ro-ministro de decidir sobre os objeti- ções anarquistas, da extrema-esquer-
Não. Estou à espera de saber, porque a lei vos da fundação. Portanto, não me ar- da, tem de cá vir. Tem que vir aqui, co-
foi anunciada, mas não é ainda conhe- risco a por este património dependente mo tem de ir ao Centro de Documenta-
cida em detalhe. A história das funda- de decisões políticas que podem perfei- ção 25 de Abril, em Coimbra, como tem
ções é complicada, porque é a típica his- tamente existir. Nunca se sabe o que é de ir à Torre do Tombo, como tem de ir à
tória de deitar o menino fora com a água que vai acontecer. Fundação Mário Soares. Mas tem de vir
do banho. É evidente que havia muitas Que poriam esse património em risco... aqui, porque há aqui coisas que não há
fundações fraudulentas, mas essas não Em risco!... Está tudo preparado para, em mais lado nenhum.
acabaram, muitas delas, e havia umas eventualmente, se constituir, se a le- Aterroriza-o a ideia de este arquivo um
fundações ainda mais fraudulentas que gislação das fundações não for signi- dia ser desmembrado?
eram aquelas que o Estado fazia para ficativamente mudada, uma associa- Uma pessoa que conhece bem o mun-
desorçamentar. Aliás, parte delas ain- ção cultural sem fins lucrativos, e o que do dos papéis e dos livros sabe o que é
da não acabou. E o que é que se fez? Fez- acontecerá é que essa associação pode- que acontece... As coisas melhores vão
-se uma lei que desconhecia completa- rá funcionar com este património, mas para leilões e as coisas que eles conside-
mente a realidade. Por exemplo, a Fun- o património não transita para a asso- ram que são menos boas são divididas
dação Calouste Gulbenkian ficou com ciação, como transitaria para a funda- por um monte de alfarrabistas que, de-
uma classificação péssima na lista das ção. A minha intenção, no fundo, é doar pois, as vendem ou ao desbarato ou não
fundações, o que é um absurdo. A legis- aos portugueses um património que me excessivamente caras. Tive ocasião de
lação que saiu não impede a fraude, para custou muitos milhares de euros (são ver isso com o arquivo do antigo minis-
quem continua a fazê-la alegremente, também os edifícios onde se encontra, tro do Ultramar Silva e Cunha. Eu com-
mas beneficia apenas as grandes fun- não apenas os papéis e os livros e tudo). prei uma parte, que tem documentação
dações que tiveram poder de negocia- em condições de sobreviver e de se au- fundamental, não se pode dizer que não
ção. E cria um estatuto que torna mui- to-sustentar, desde que o aparelho bu- é relevante, como seja, por exemplo, a
to difícil a vida das pequenas e médias rocrático exigido seja mínimo e não se correspondência entre o ministro e os
fundações, que não podem ter os gas- tenha de empregar um número signi- governadores das colónias... Isso é pés-
tos que a lei implica em termos de pes- ficativo de pessoas para a manter. Até simo... Às vezes corre bem, porque são
soal, por exemplo... Além do mais, im- porque temos conseguido este mérito, mantidos os núcleos e muda apenas a
plica uma intromissão política, nalguns que é, nalguns casos, ter uma ação pú- propriedade. Mas, na maioria dos casos,
casos inaceitável, nas fundações. Dá um blica muito maior do que fundações re- é um festival de destruição também da-

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ENTREVISTA

quilo que caracteriza uma coleção, que para ser organizado e tratado por vo-
é a sua integridade e o olhar do colecio- luntários que tenham experiência e for-
nador, pois há sempre coisas que têm a mação. Não se seguem rigorosamente
ver com quem fez a biblioteca. Vejo isso os critérios arquivísticos, mas a verda-
até pela minha própria bilbioteca, que é de é que nos tentamos aproximar o mais
uma biblioteca de pelo menos três ge- possível desses critérios, tanto em ter-
rações de pachecos pereiras, e eu vejo mos de conservação como no aspeto
muito bem como é que o olhar de cada propriamente de organização... Há uma
um deles se reflete nos livros que com- espécie de cadeia de produção, que nor-
prou. Dou o exemplo do meu avô pater- malmente sou eu que faço: as coisas en-
no, que pintava e desenhava bem. In- tram, são processadas em função da sua
teressava-se por livros com gravuras e importância... a partir de uma forma ru-
comprava, independentemente do que dimentar de separação, já podem estar
fosse. Resultado: estão aqui livros valio- disponíveis. Depois há uma digitaliza-
síssimos, como por exemplo as descri- ção maciça...
ções do século XVIII das primeiras via- O que estão a fazer agora, por exemplo?
gens ao Polo Norte, ou próximo do Polo Estamos a acabar, também com traba-
Norte, aquela célebre viagem da fraga- lho voluntário, a digitalização dos pa-
ta de La Pérouse, está a primeira descri- péis do MES [Movimento de Esquer-
ção do estado da Luisiana, está o primei- da Socialista], que resultaram de duas
ro estudo sobre o oxigénio, estão coisas grandes ofertas, uma do Porto e outra
do Newton, que ele comprou... por cau- de Lisboa, de arquivos muito impor-
sa das gravuras. tantes no seu conjunto, na medida em
Já falou várias vezes da sua rede de vo- que incluem também muita coisa úni-
luntários, que é substancial... ca, como sejam notas de reuniões, pri-
Cerca de 140, nos períodos de eleições, meiras versões de artigos, papelada
essencialmente... que em muitos casos ajuda a esclarecer
Como é que os recruta? Tem a ver com a relações internacionais, em conjun-
sua presença na Internet? to com enormes coleções de papel que
054 Também. Existe um site ligado com o ar- vai até aos papéis reservados, como as
quivo, que é o Ephemera [ephemerajpp. atas internas do MES na sua fase final,
com] e existe, depois, uma página de Fa- quando se tornou numa organização
cebook, que é da responsabilidade des- marxista-leninista muito interessante,
ses voluntários, os amigos do Epheme- porque alguns dos membros dessa or-
ra, e existe também um Twitter associa- ganização são hoje pacíficos apoiantes
do a essa página. Não tenho aí nenhuma do PàF... e outros do PS. Eu tenho sem-
interferência. Há pessoas que me co- pre recusado utilizar o arquivo como
nhecem ou que falam comigo e, sei lá, instrumento de ajustes de contas his-
por exemplo, Francisco Pinto Balse- tóricos. Agora, o que existe e que é pa-
mão ofereceu-me um primeiro lote de ra publicar, é para publicar. Se incomo-
coisas, inclusive alguns materiais inte- da, é com eles...
ressantes sobre a história da Impren- É um pioneiro da blogosfera portugue-
sa em Portugal, sobre a história da SIC, sa, com o “Abrupto”. Pelas característi-
e as filhas do Emídio Rangel oferece- cas desse ambiente virtual, já se tornou
ram a biblioteca do pai.. A filha do prof. o ódio de estimação de muita gente...
Vítor Crespo ofereceu-nos os livros, os Isso faz parte, e eu lido muito bem com
papéis, as condecorações, mobília, que isso. Gera sempre duas coisas: um nú-
me permitiu, aliás, reconstituir o escri- mero significativo de pessoas que tem
tório dele aqui. E o mesmo acontece em uma grande aproximação (tenho cen-
relação aos papéis do Nuno Rodrigues tenas de cartas de pessoas que contam
dos Santos, que foram oferecidos pela a sua vida, o papel que teve um comen-
filha, Maria Emília Brederode. Há um tário ou uma discussão televisiva e, na
permanente fluxo, e há ofertas não pro- rua, sou sistematicamente abordado
priamente só de papéis e de materiais, por pessoas dizendo “eu gosto muito
mas também de trabalho. Há um con- do que o senhor diz”, ou “eu não sou do
junto de arquivistas, bibliotecários ou, seu partido, mas...”). O outro lado, evi-
até, voluntários que querem aprender e dentemente, são as campanhas anóni-
estudantes, que se ofereceram para tra- mas e três ou quatro pessoas que me to-
balhar. Portanto, isto vai permitir uma mam como o alvo de estimação... Atri-
nova fase do arquivo, que é atribuir, por buo-lhes a importância que têm, ou seja,
exemplo, neste caso, um destes espólios nenhuma.

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O Noticioso

A cama no gabinete
tornou-se icónica,
mas é só um sinal de
pragmatismo. Pri-
meiro, “gabinete”
é um enorme espa-
ço, onde Pacheco Pe-
reira muitas vezes
trabalha noite aden-
tro. Depois, nas noi-
tes mais frias, ha-
vendo ali bom aque-
cimento, mais vale ir
ficando.

055

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O Noticioso
ENTREVISTA

Documentos
chegam
constantemente
a casa de José
Pacheco Pereira

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O Noticioso

057

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O Noticioso
ENTREVISTA

Arquivo de
Sá Carneiro
(em cima) é uma
das jóias da coroa;
paixão do avô
de Pacheco
Pereira pelas
gravuras
motivava muitas
aquisições
bibliográficas

058

Aguardamos o quarto volume da bio- secretário-geral: um aspeto novo da vi-


grafia de Álvaro Cunhal. Em que pon- da do Cunhal, que é o Cunhal que este-
to está? ve cá um ano e meio, depois a fuga e de-
O quarto volume está... pronto. Se fos- pois está, essencialmente, no estran-
se há dois meses, eu diria praticamente geiro, tem uma vida e uma atividade
pronto. Está pronto, mas ainda não está muito diferente daquilo que poderia ter
inteiramente acabado. Conto, por estes um dirigente apenas interior do Partido
dias, entregar o texto. Já tem uma capa, Comunista. Faço o possível por retratar
muito bonita, já estão feitos alguns tra- essa atividade utilizando muita docu-
balhos preliminares... Agora, são mais mentação, que nunca foi usada ou que
de 600 páginas de História para oito era desconhecida.
anos, uma coisa com outra dimensão do É a obra de uma vida?
que o que é normal, milhares de notas, É. Num certo sentido é. Já escrevi mi-
documentação com origens desde ar- lhares de páginas, com este volume, e,
quivos romenos até aos Estados Unidos, depois, ainda fica a faltar o outro. Cin-
que permite colmatar a ausência que há, co volumes, com 500 ou 600 páginas, é
em muitos casos, de documentação di- aquilo a que antigamente chamavam a
reta portuguesa. E que retrata o Cunhal “obra magna”. Mas não é apenas a bio-

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O Noticioso

grafia de Cunhal. No fundo, é uma His- Sendo o dr. Pacheco Pereira uma voz o partido, independentemente do jul-
tória da oposição portuguesa, é uma crítica dentro do partido de que é mili- gamento que eu possa fazer sobre os
História da sociedade política, é uma tante... seus dirigentes. Com as regras da pu-
história do regime, também, visto sob Faço parte de uma espécie em vias de ex- blicação. Se quiserem publicar um es-
o ponto de vista da repressão... tinção, que são os sociais-democratas... tudo sobre Sá Carneiro, publicam tudo
Tratando-se de uma biografia políti- … entende que seria útil alguém – e po- o que há sobre Sá Carneiro ou, pelo me-
ca e não íntima, acaba por ser o maior demos estar a falar em si – fazer um es- nos, as coisas mais relevantes que há
estudo que existe sobre a História do tudo que desse esta profundidade ao sobre Sá Carneiro. Não escolhem. Por
PCP. Já o ouvi dizer que o próprio PCP conhecimento do PPD/PSD? exemplo, no arquivo de Sá Carneiro
faz uso do que ali publica... Sem dúvida! Quero dizer, aliás, que te- há aspetos que mudam a história por-
E muito, e muito... nho aqui, pelo menos, três importan- tuguesa. Mas um aspeto muito impor-
… mas continua a vetar as referências tes arquivos – e ainda o meu, que tem tante para a história do PPD e do PSD é a
ao biógrafo... muita coisa de relevo, principalmen- relevância que tinha, para Sá Carneiro,
Vamos ser justos: o PCP, nalguns aspe- te sobre o período de Cavaco Silva. Ha- a entrada na Internacional Socialista,
tos, começou a mudar. Já no último vo- ver aqui os papéis de Sá Carneiro, que que é um aspeto que hoje é considera-
lume houve pessoas com relevo dentro são únicos e sem os quais não se po- do quase anedótico, mas que o arquivo
do PCP e que tinham esta memória, co- de fazer a história da génese do parti- revela que, pelo contrário, foi uma po-
mo o Jaime Serra ou o Dias Lourenço, do e dos primeiros anos, haver os pa- lítica prosseguida intensamente: estão
que aceitaram ser entrevistados e for- péis de Nuno Rodrigues dos Santos, aqui relatórios de reuniões com o Par-
neceram informação importante. E is- que foi presidente do partido, num pe- tido Trabalhista inglês, com os sociais-
so já era uma mudança. Aliás, eu nunca ríodo complicado, e que também tem -democratas alemães, com os sociais-
me hei de esquecer, até porque isso im- muita documentação original, e ha- -democratas suecos... e que apenas foi
plicou uma coragem pessoal conside- ver os papéis de Vítor Crespo, que, pa- impedida por Mário Soares.
rável, quando foi do lançamento do li- ra além das suas funções institucionais Era território do PS...
vro, para além da Stella Piteira Santos, e como membro do Governo, e depois Era território do PS, mas isso não signi-
que também teve um papel relevante, o presidente da Assembleia da Repúbli- fica que os outros partidos sociais-de-
Jaime Serra e a esposa estavam na pri- ca, foi também membro de muitas de- mocratas não quisessem a adesão do
meira fila, e, portanto, honra e méri- legações do PSD na negociação do Blo- PPD e que Sá Carneiro não tivesse feito
to lhes devem ser atribuídos. Também co Central... Eu sempre disse, e conti- tudo o que podia para essa adesão. Isso
tenho de reconhecer que a atitude do nuo a dizer, que esta documentação, é relevante para percebermos a histó- 059
Partido Comunista Português vai pou- independentemente da minha posição ria política do partido. Provavelmente,
co a pouco abrindo-se a uma aproxi- crítica em relação à Direção do parti- teria sido, como se diz agora, um erro de
mação à sua História que não seja apo- do, está sempre disponível para quem, casting, mas a verdade é que isso é rele-
logética. E os sinais existem. O PC pu- do partido, a quiser estudar, ou em co- vante, porque o Sá Carneiro tinha uma
blicou integralmente as coleções do laboração, eventualmente, digitalizar enorme preocupação em que o partido
“Avante!” e de “O Militante”, publicou parte, porque pode fazer parte do ar- não fosse nunca classificado como de
uma edição das “obras escolhidas” de quivo público do PSD. Isto é uma po- direita, o que é, à luz dos acontecimen-
Álvaro Cunhal, que, apesar de tudo, é lítica que eu sigo sempre. Infelizmen- tos posteriores, interessante.
bastante fidedigna e é, aliás, um ins- te, não tenho tido resposta, mas repito Em declarações, há anos, dizia ser,
trumento de trabalho importante. Não mais uma vez, como aliás faço em re- em circunstâncias diferentes, a mes-
tem tudo, mas tem muita documenta- lação às outras instituições. Havendo ma pessoa que, na juventude, comba-
ção que permanecia ou inédita ou de aqui materiais que são relevantes pa- tia a ditadura e fugia da polícia. Que jo-
que não se conheciam aquelas versões. ra a História do PCP, do PS e de outras vem imagina que seria nas circunstân-
Esse é também um trabalho com mé- organizações, eles está sempre dispo- cias atuais?
rito e ajudou-me muito neste volume, níveis, em colaboração, para poderem Não faço a mínima ideia... Se fosse eu
porque, pelo menos, tinha a versão ca- ser tratados e divulgados. Até porque próprio, enquanto jovem, faria provavel-
nónica das obras de Cunhal para traba- muitos desses partidos, como é o ca- mente as mesmas coisas no contexto de
lhar. Ainda agora, uma pequena parte so do PSD, perderam grande parte do uma democracia. Agora, tenho dificul-
que falta do texto é sobre o prefácio que arquivo por incúria, uma parte por in- dade em fazer esse tipo de especulação.
Álvaro Cunhal escreveu, e nunca foi cúria, outra parte por... incúria. E mes- Faltar-lhe-ia o estímulo da oposição
publicado, para o “Quando os lobos ui- mo agora, no 40.º aniversário do PSD, ao regime?
vam”, de Aquilino Ribeiro, que se en- eu publiquei muita documentação ori- Não, não faltava... Ui, há tanta coisa
contra nas “obras escolhidas”. E tam- ginal, como atas de reuniões, que mos- para fazer oposição! Há tanta menti-
bém, quer do ponto de vista pessoal tram, por exemplo, que o PPD esteve ra pública, tanta circulação de meias
quer até do ponto de vista institucio- disponível para passar à clandestini- verdades, tantas histórias mal con-
nal, o Partido Comunista já não mostra dade depois do 11 de Março, porque não tadas, tanta coisa... há aí muita opor-
a hostilidade que mostrava no passa- sabia o que iria acontecer, muita do- tunidade de fazer oposição. Agora, é
do e, a um nível ainda minimalista, tem cumentação sobre alguns congressos evidente que o tipo de oposição que
tido uma atitude positiva em relação a e conselhos nacionais iniciais... Tudo se fazia contra um regime ditatorial é
este trabalho. Até porque, entre outras isso tem sido e continuará a ser publi- muito diferente da que se pode fazer
coisas, o Cunhal me elogiou... cado. E estará sempre disponível para num regime democrático.

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O Noticioso
ENTREVISTA

DOIS VOLUMES MARCAM


Foram recentemente lançados, com
a chancela da Tinta da China, os
dois primeiros volumes nascidos de

A ABERTURA AO MUNDO
“Ephemera”, o arquivo de José Pache-
co Pereira, que este vai disponibili-
zando, mediante digitalização e clas-

DE UM ARQUIVO
sificação de que é pessoalmente res-
ponsável, na Internet (ephemerajpp.
com). O primeiro destes dois livros é

COM MUITAS FACETAS


um estudo assinado pelo próprio Pa-
checo Pereira e por Júlio Sequeira e
dedicado aos autocolantes do PPD, de
1974, ano da fundação, a 1976, quando
mudou a designação para PSD (com
um período de transição em que se
apresentava como PPD-PSD). Mais
do que um ensaio sobre a iconogra-
fia de um partido (também um catálo-
go que vai muito além dos autocolan-
tes, revelando material propagandís-
tico diversificado) o trabalho permite
apreender de que forma o símbolo do
partido, entretanto estilizado, tinha
uma matriz histórica e ideológica cla-
ramente definida, de associação às
sociais-democracias europeias. O se-
gundo livro, sob o inesperado título
“Amorzinho”, resulta em cerca de 200
páginas de surpresa, delícia e ternu-
060 ra, mas será bem mais do que isso. A

“Amorzinho”
e “Autocolantes
do PPD”
são reveladores
da diversidade dos
fundos existentes
na Marmeleira

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O Noticioso

obra, organizada por Rita Maltez, re- exatamente, o grau de diferenciação


produz, no essencial, cartas troca- do que nós queremos fazer”, diz Pa-
das entre Maria de Lourdes e Alfredo, checo Pereira, que prevê publicar em
de 1934 a 1943. Pergunta óbvia: quem 2016 mais livros desta coleção. Está
eram Maria de Lourdes e Alfredo? em preparação, por exemplo, um es-
Eram isso mesmo, uma mulher e um tudo sobre a propaganda anti-Fre-
homem comuns, cuja correspondên- limo, nos últimos anos da guerra em
cia, trocada num tempo em que na- Moçambique, e as possibilidades são
moraram, casaram e foram pais, nos praticamente infinitas. Por exemplo,
comove, sem de nós fazer voyeurs, David Justino já foi convidado para
pois os materiais foram trabalhados se debruçar sobre as tentativas de Ví-
com especial cuidado, mas nos abre tor Crespo para fazer uma Lei de Ba-
portas para o que eram modos de vi- ses da Educação (foi ministro da tute-
da de gente simples, dá a entender co- la em três diferentes governos), exis-
mo o modelo de sociedade patriarcal te a ideia de fazer uma história oral
resultava numa clara diferenciação dos edifícios onde estão a biblioteca e
hierárquica entre marido e mulher, e o arquivo, na Marmeleira (Rio Maior),
mostra ainda, da forma parcelar que o poderá ser feito um estudo, através da
pode fazer a vida de um casal comum, correspondência de Henrique Galvão
algumas das vivências na década de quando esteve na Venezuela, de co-
implementação do Estado Novo em mo funcionava a oposição portugue-
Portugal. E há outra coisa que este li- sa na América do Sul (há, por exemplo,
vro confirma: se José Pacheco Pereira cartas de Ruy Luís Gomes, de Manuel
não teimasse na importância de guar- Sertório ou de Humberto Delgado...),
dar tudo, o lote de 600 cartas que lhe pode ainda ser feito um estudo sobre
deu origem, encontrado num arma- um militar que participou na génese
zém perto de Lisboa, teria certamen- da PVDE (precursora da PIDE)... en-
te acabado no lixo. “Estes dois primei- fim, como novos fundos estão sempre
ros volumes foram deliberadamente a chegar ao arquivo, as possibilidades
muito diferentes, que é para mostrar, são realmente ilimitadas. 061

PUB

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O Noticioso
DESTAQUE

Ceuta -1415
A
“Reconquista”
continua Texto de Luís Miguel Duarte
Historiador / Faculdade de Letras da Universidade do Porto

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O Noticioso

063

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O Noticioso
DESTAQUE

Há 600 anos, D. João I tomou a decisão de tomar a praça


marroquina de Ceuta. Do sucesso militar, muitos disseram
marcar o arranque da expansão portuguesa, mas aqui
aponta-se outro caminho para o entendimento desse feito
de armas: uma espécie de revisitação da Reconquista.

S
e quem me lê é uma leitora, impopularidade do tirano que ocupa- portugueses ignoram que, com tréguas
a questão nem se põe. Se é va esse trono era tal que, se D. Fernando e novas tréguas, com períodos de acal-
um leitor e tiver mais de 65 entrasse em Castela com o seu exérci- mia, a guerra entre Portugal e Castela
anos pode ser que tenha to, o seu caminho até o mesmo trono se- ainda matava gente e incendiava terras
conhecido a guerra colo- ria, mais do que um passeio, um triunfo em 1400. Era muito tempo e muita vio-
nial em Angola, Moçambi- quase ‘à romana’. Não foi. Segundo Fer- lência para um país relativamente pe-
que ou Guiné-Bissau (e se não Lopes, foi pelo contrário o princí- queno, sem uma população numerosa
for uma leitora ou um leitor, mais velho pio de “outra era”; até aí, o reinado d’”O nem uma economia pujante.
ou mais jovem, pode ter sabido o que era Formoso” fora exemplar, e o país vivia
064 ter um familiar na guerra). Eu ‘conheci’ próspero. Aparentemente, com o come- Pensar numa guerra nova
a guerra como criança e depois, jovem ço do ‘estado de guerra’, o sonho tornou- Quando finalmente o reino começou a
estudante, começava a viver dos céle- -se um pesadelo e o reino sofreu brutal- habituar-se às delícias da paz, às mu-
bres “adiamentos”; quando acabasse o mente com o conflito: nas devastações, lheres que não viam partir os maridos
curso, seguir-se-iam sem apelo a tropa nas carestias, na inflação descontrola- sem saberem se voltariam, ao campo-
e a guerra de África. Portanto, creio não da. A morte de D. Fernando (envenena- nês que vindimava a sua vinha e ceifa-
exagerar se afirmar que 90% dos que ti- do?) foi o fim triste de um mau reinado va a sua seara com a satisfação de saber
verem a delicadeza de me lerem nun- – pelo menos é isso que Fernão Lopes que, paga a dízima à Igreja e os tributos
ca estiveram numa guerra como com- quis que nós pensássemos. Ora, com o ao seu senhor, os frutos do seu traba-
batentes, nem a sofreram na pele como chamado “Interregno” ou Crise de 1383- lho acumular-se-iam merecidamente
civis. Ora, qualquer pessoa que tenha 1385, a guerra com Castela reacendeu- na sua adega ou no seu celeiro, sem se-
participado numa guerra, seja ela qual -se, mais violenta ainda. Na cantilena rem roubados ou queimados por solda-
for, nos dirá secamente: “Quem não an- da escola do meu tempo decorávamos dos inimigos, ou roubados por soldados
dou por lá nunca fará a mais pálida ideia facilmente as quatro batalhas: Atolei- amigos. D. João I e o grupo de compa-
do que aquilo é!” Uma guerra marca as ros, Trancoso, Aljubarrota e Valverde. nheiros que, ao seu lado, tinham com-
pessoas, muda-as para o resto da vida. Como se não tivesse havido mais na- batido em quase todas as batalhas des-
Em 1400, o reino de Portugal anda- da. Como se o Norte não tivesse sido in- tes longos anos de pesadelo, podiam por
va em guerra com Castela havia 31 anos. vadido por um exército castelhano que fim tirar as armaduras, pousar as espa-
Guerra intermitente, com intervalos chegou quase à vista do Porto. Como se das, descansar. Fazer planos para o fu-
de paz ou de mero descanso das armas, Lisboa ou Almada não tivessem sofrido turo. Por exemplo, dotar os seus filhos
mas sempre com a ameaça de recome- um dos cercos mais terríveis da sua his- mais velhos, Duarte, Henrique e Pedro,
çar no dia seguinte. Guerra (ou guer- tória… Lisboa, que aguentara outro cer- de uma “casa senhorial”, isto é, de ter-
ras, não é importante) em que Portugal co pouco antes, nas guerras ditas “fer- ras, rendimentos e criados que lhes per-
foi esporadicamente invasor mas regra nandinas”. Como se as áreas de frontei- mitissem o nível de vida que se espera-
geral invadido. Começou no reinado de ra – em Trás-os-Montes, nas Beiras, no va para príncipes. Por exemplo, pensar
D. Fernando, quando este, envenenado Alentejo – não tivessem sido verdadei- numa guerra nova.
por um lóbi de nobres castelhanos der- ramente martirizadas. A história, para Nem o rei estava fora do seu juízo,
rotados na chamada “Guerra Civil dos quase todos nós, acabava com Aljubar- nem de tal modo viciado no exercício
Trastâmaras” e exilados na corte portu- rota e a consagração do Mestre de Avis das armas que já não sabia fazer mais
guesa, dizia e repetia ao monarca por- como D. João I, rei de Portugal; o recon- nada. A razão era outra e simples de
tuguês que ele tinha legítimo direito ao tro de Valverde era já uma espécie de ré- compreender: o antigo Mestre de Avis
trono castelhano, por um lado, e que a plica de sismo. Por isso, quase todos os e os da sua geração viveriam e morre-

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O Noticioso

Não há certezas
quanto à origem do
mais célebre retrato
de D. João I

e os da sua geração viveriam e morre-


riam com o fantasma de mais uma inva-
são castelhana, sempre mais uma. Em
boa verdade, estavam cheios de razão,
e a vontade do reino vizinho de anexar
Portugal e de vingar Aljubarrota man-
tinha-se bem viva entre os seus gover-
nantes e grande parte da alta nobreza e
dos mestres das ordens militares humi-
lhados na batalha real de 1385. 065
De repente, D. João I vê ‘uma jane-
la de oportunidade’, como hoje diría-
mos. Morre o rei de Castela, Henrique
IV, e deixa no trono um filho com pou-
co mais de um ano, Juan II, e dois tuto-
res, uma das quais se chamava Catarina
de Lencastre e era meia-irmã de Filipa
de Lencastre, portanto cunhada do rei
de Portugal. As últimas tréguas assina-
das com Castela terminariam em 1411, e
A história, para quase todos nós, acabava com Aljubar- os portugueses estavam a dar tudo por
tudo para as prolongar. Se os regentes
rota e a consagração do Mestre de Avis como D. João I, rei castelhanos aceitassem esse prolon-
de Portugal; o recontro de Valverde era já uma espécie gamento, Portugal ficaria com tempo e
oportunidade para mostrar ao mundo
de réplica de sismo. (...) De repente, D. João I vê ‘uma jane- da época que Aljubarrota não tinha sido
sorte nem acaso, e que o pequeno reino
la de oportunidade’, como hoje diríamos. Morre o rei de no fim do mundo, onde a Europa acaba-
Castela, Henrique IV, e deixa no trono um filho com pouco va e depois só havia mar, podia convo-
car e colocar num campo de batalha um
mais de um ano, Juan II, e dois tutores, uma das quais se exército temível, sem medo de defron-
chamava Catarina de Lencastre e era meia-irmã de Fili- tar fosse quem fosse e com muitas pro-
babilidades de vencer. Vantagem adi-
pa de Lencastre, portanto cunhada do rei de Portugal. As cional: se a geração dos 50 e dos 60 tinha
últimas tréguas assinadas com Castela terminariam em provado tudo o que havia a provar den-
tro de uma cota de malha, a dos seus fi-
1411, e os portugueses estavam a dar tudo por tudo para lhos – ou seja, a de Duarte, Pedro e Hen-
rique – não tinha provado coisa nenhu-
as prolongar. ma. Sabiam lutar corpo a corpo, andar a
cavalo e caçar javalis – mais nada. Esta-
va a chegar o dia em que lhes caberia a

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O Noticioso
DESTAQUE

eles tomar conta do poder: no reino, nas infirmadas, que não ficaria surpreen- despedidas finais dos soldados, já em
casas senhoriais a que pertenciam. Co- dido se D. João I e o seu círculo muito Portugal, consumada a vitória. Fonte
mo podiam ser respeitados? Mais: com próximo tivessem começado a conce- preciosa, que nos dá informações úni-
a desvalorização brutal da moeda que ber uma operação militar antes de ter cas, temos de fazer o que quase sem-
o país sofrera na sequência das guerras um alvo preciso para ela; ou pelo menos pre fazemos: cruzar o que ela nos diz
fernandinas e, depois, da Crise de 1383- pensando em vários alvos possíveis. A com o que nos transmitem outros do-
85, a nobreza, que recebia uma parte verdade é que, confirmadas em 1411 as cumentos da época, outras versões do
grande das suas rendas em dinheiro, es- tréguas com Castela, pelas quais o rei que aconteceu, para tentarmos ficar um
tava numa situação muito complicada. muito ansiava, de imediato se come- pouco mais próximos da verdade – que
066 Podia sempre pedir ao rei de Portugal çou a falar, primeiro à boca pequena nos a mais não podemos aspirar, em histó-
mais tenças e mais benesses, mas pa- corredores do palácio, depois em círcu- ria. Porque Zurara era um funcionário
ra isso tinha de as merecer. Em que ou- los cada vez mais alargados e mais pú- do rei, pago pela Coroa, para continuar
tro cenário é que um fidalgo pode espe- blicos, da possibilidade de se ‘fazer al- aquilo que Fernão Lopes tinha começa-
rar legitimamente justiça a generosida- guma coisa’, isto é, de se montar uma ex- do: escrever a “crónica geral do reino”;
de do seu rei senão depois de o servir na pedição militar poderosa para atacar… entenda-se, narrar, devidamente am-
guerra com a sua gente? E os três infan- logo se veria o quê. plificados, as glórias e os feitos heroicos
tes, Duarte, Pedro e Henrique, a recla- dos reis de Portugal, para servirem de
mar com o pai que só aceitariam ser ar- Zurara e as armadilhas da memória exemplo aos vindouros e porque, como
mados cavaleiros depois de “derramar Os historiadores portugueses, sobre- ele próprio disse, não há melhor túmulo
sangue inimigo” (que inimigo?) numa tudo os que trabalham épocas mais re- para um homem do que imortalizá-lo na
batalha a sério, e não no decurso de fes- cuadas, costumam lamentar-se amar- história ou na lenda. Zurara, que podia
tas burguesas com duelos de fazer de gamente de falta de documentos ou nem ser nascido aquando da conquista
conta, regadas a bom vinho malvasia e imagens, sobretudo quando nos com- de Ceuta, escreveu a crónica por volta
a cheirar a doces confitados… paramos com os nossos colegas ingle- de 1450, sem conhecer a cidade ou qual-
Uma guerra – melhor dizendo, uma ses, catalães ou italianos. Desta vez não quer outra cidade muçulmana, sem ter
façanha militar única, sem continuação temos grande razão de queixa: Gomes posto os pés em África, sem fazer a mais
– podia resolver estes três problemas: Eanes de Zurara, o homem que suce- pequena ideia do que era o cheiro a san-
exibição de um poder militar que inti- deu a Fernão Lopes como cronista-mor gue e o ruído infernal de uma batalha a
midasse, ocupação da nobreza e palco do reino e como guarda-mor da Torre sério. Escreveu-a baseando-se sobretu-
para a entrada dos infantes em cavala- do Tombo (portanto da documentação do, como honestamente esclarece, nas
ria. E, dependendo do alvo do ataque, da Coroa de Portugal), escreveu uma memórias do Infante D. Henrique. Ora,
conseguir vantagens colaterais: en- crónica completa exclusivamente de- como Marcel Proust lembrou, “a memó-
fraquecer um rival político ou comer- dicada ao ataque a Ceuta – é do ataque ria das coisas passadas não é necessa-
cial, ocupar um ponto estratégico para a Ceuta, pois claro, que estamos a falar riamente a memória de como as coisas
a defesa de todo ou de parte do territó- desde a primeira linha: conhecida às se passaram”. Mais: a crónica é termi-
rio português, deitar a mão a uma im- vezes como Crónica de D. João I, 3ª Par- nada depois da Batalha de Alfarrobei-
portante praça de negócios ou escala de te, ou mais vulgarmente Crónica da To- ra, travada no dia 20 de Maio de 1449, na
navegação. mada de Ceuta, ela trata pormenoriza- qual o Infante D. Pedro perdeu a vida,
Tenho escrito, de forma cómoda por- damente da expedição desde o obscuro junto com os seus companheiros mais
que é uma daquelas intuições que creio momento em que o projeto teria come- próximos. Com toda a certeza, Zurara
que nunca poderão ser provadas nem çado a germinar na mente do rei até às teve de reescrever passagens inteiras e

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O Noticioso

Ceuta no final do
século XVI (desenho
do Civitates Orbis
Terrarum, de Braun)

lo que não devemos esperar dele.


Decidida a expedição, começaram
de imediato os preparativos por todo o
país. No círculo restrito em torno do rei,
pesavam-se os prós e contras dos vários
alvos possíveis – alguns dos quais cris-
tãos e em paz com Portugal. Entre eles
constou certamente Ceuta, desde a pri-
meira hora. Porque era uma das duas
chaves para entrar e sair do Mediterrâ- 067
neo – a outra era Gibraltar; e se o ocu-
pante da cidade tivesse boa capacida-
de naval, ninguém passaria no Estrei-
to sem sua autorização. Porque era uma
cidade muçulmana, pelo que podia ser
atacada sob a vaga bandeira da Cruza-
da e da expansão da fé cristã. Porque em
Portugal sabia-se, de certeza absolu-
ta, que a cidade não estava muito forte,
e não seria de certeza a primeira priori-
dade de socorro do reino de Fez. Reino
esse que, também era sabido em Lisboa,
atravessava graves problemas dinás-
ticos e estava a ser devastado por uma
epidemia.
Na escolha de Ceuta terão pesado
na cabeça dos decisores razões comer-
ciais? Depende daquilo em que estiver-
eliminar outras, porque por esses anos CRÓNICA DE mos a pensar. Se a pergunta for: os gran-
o nome do antigo regente de Portugal des mercadores de Lisboa, do Porto e do
não se recomendava. Além disso, se for- ZURARA TEM Algarve desejaram e apoiaram a con-
mos à procura da versão do ‘outro lado’, quista de Ceuta para se apoderarem de
da narrativa muçulmana ou, pelo me-
DE SER ENCARADA um porto que, mesmo numa fase de de-
nos, da inclusão de alguns testemunhos COM O NECESSÁRIO clínio, era uma escala muito frequenta-
credíveis de antigos habitantes de Ceu- da por toda a navegação mediterrâni-
ta, ficamos de mãos a abanar. Estou com
DISTANCIAMENTO ca, desde a que vinha das poderosas ci-
isto a dizer mal de Zurara e da sua cró- CRÍTICO dades italianas, como Génova, Veneza
nica? De forma alguma: estou apenas a e Pisa, até à originária do Mar Negro ou
dizer o que era um cronista há seis sé- do Egito, carregada de especiarias e te-
culos, como trabalhava e com que obje- cidos de luxo? Porque esses ricos mer-
tivos; o que é legítimo pedir-lhe, e aqui- cadores bem sabiam como chegavam

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O Noticioso
DESTAQUE

constantemente a Ceuta caravanas vin- Infante D. Henrique esqueceu-se e Zu- te a transbordar de felicidade com essa
das das planícies atlânticas do ocidente rara não o escreveu). Apenas podemos requisição e com o projeto militar em si
marroquino carregadas de trigo, ou do acreditar que é uma hipótese que podia mesmo.
interior do continente africano, de Tom- fazer algum sentido na época. Os contingentes do Entre-Douro-e-
buktu, transportando sal e sobretudo o -Minho, de Trás-os-Montes e das Beiras
valiosíssimo ouro que Portugal não ti- A preparação da armada reuniram-se no Porto e embarcaram
nha. A essa interrogação só podemos Beneficiando de um período razoavel- para Lisboa numa frota capitaneada pe-
responder pela negativa: se um gru- mente longo de paz e de um governo lo Infante D. Henrique, o qual, desde os
po social e económico ou uma entida- equilibrado, duradouro e estável, o país primeiros momentos, parece ter queri-
068 de política se quisesse apoderar de um revelou, nos preparativos da armada, do destacar-se dos irmãos aos olhos do
rico entreposto comercial, mais ainda uma impressionante vitalidade. Não só pai e de toda a gente, procurando aber-
na posse de gente de uma religião ‘ini- a mobilização militar propriamente di- tamente protagonismo. No resto do País
miga’, com a intenção de o manter como ta parece ter atingido um dos seus nú- – Entre-Tejo-e-Guadiana e Algarve – a
era, portanto de não afugentar nenhu- meros mais elevados, dentro do hori- mobilização militar e logística foi diri-
ma rota, nenhuma caravana, nenhuma zonte do possível, como a requisição e gida pelo Infante D. Pedro, convergindo
feitoria, podia cercar essa praça, sub- adaptação de embarcações portugue- as tropas, as armas e os abastecimentos
mete-la até com alguma dureza, mas sas de comércio e a construção de bar- para Lisboa. D. João I coordenava tudo. E
certamente não a conquistaria pela vio- cos novos, o fretamento de navios es- D. Duarte? Fazia o que o pai devia fazer:
lência pura, matando ou escravizando trangeiros de quase toda a parte, com governava o reino. Em princípio o cargo
os seus anteriores habitantes. Mas po- as respetivas tripulações, a prepara- ia-lhe tocar a ele, por isso, quanto mais
demos colocar a questão de outra ma- ção e armazenamento de vinho e de ali- cedo se fosse habituando…
neira: o Rei D. João I estava com certe- mentos, a construção de escadas pa- A Lisboa acorreram também muitos
za informado de que, apesar do Tra- ra subir às muralhas e de máquinas de combatentes estrangeiros. Mesmo ig-
tado de Windsor com a Inglaterra, em guerra – tudo parece ter funcionado às norando o destino final da armada, que
1386, ou devido a ele, os barcos portu- mil maravilhas, sem qualquer percal- os responsáveis portugueses consegui-
gueses viviam tempos ásperos nos ma- ço, e no meio de um manifesto entusias- ram manter em rigoroso segredo até ao
res do Norte da Europa, porque ao cele- mo popular (claro que Zurara é homem fim, eles queriam lutar sob a bandeira
brar uma aliança com a Inglaterra o rei- para ter exagerado este entusiasmo). do rei de Portugal, e receber os conse-
no tornou-se automaticamente inimigo Se eu ou o leitor fôssemos mercadores, quentes honra e proveito. Ingleses não
dos inimigos daquela, em particular os se tivéssemos um barco já fretado pa- vieram praticamente nenhuns, porque
franceses e os castelhanos. E durante ra ir a um destino com uma carga e re- o rei Henrique V preparava-se, preci-
uma extensão considerável da navega- gressar com outra, se tivéssemos negó- samente pelos mesmos dias, para in-
ção para o Norte, esses barcos estavam cios já firmados, e nos viessem requi- vadir uma vez mais a França (a batalha
à mercê das marinhas cantábrica, bas- sitar o barco para ser utilizado pelo rei de Azincourt, vencida pelos ingleses,
ca e francesa. Será que, consciente dis- de Portugal numa expedição militar (e travou-se em 25 de Outubro, ou seja,
so, o rei quereria conquistar um ponto portanto correndo sérios riscos de não dois meses depois da tomada de Ceu-
de apoio, uma escala segura, na nave- voltar; ou voltando, de o pagamento da ta) e queria levar com ele todos os bar-
gação entre o Mediterrâneo e o Atlânti- requisição nunca ser feito – o que real- cos e todos os seus súbditos em idade e
co, ou mesmo apenas no Mediterrâneo? mente aconteceu aos barcos dos merca- estado de combater. De Castela não veio
Nunca o saberemos ao certo, porque se dores do Porto), é muito de crer que nem mesmo ninguém porque o regente, que
o pensou, o rei não o disse (ou, se disse, o eu nem o leitor ficássemos propriamen- acabava de ser entronizado como rei de

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O Noticioso

Quantos eram, barcos e


homens? Boa pergunta, e
essencial. Mas não sabe-
mos a resposta: há tantos
números sugeridos, mui-
tos dos quais disparatados,
e tão pouca fiabilidade na
maior parte dos cálculos,
Aragão, ignorando se os portugueses rel, de luto pela rainha. Mas prevaleceu
iam atacar domínios castelhanos, ara- que temos de nos ficar por a vontade maioritária de continuar, pelo
goneses ou o ‘couto privado de caça’ de que poucos dias depois a armada portu-
Castela, isto é, o reino muçulmano de
uma sugestão de quantida- guesa levantava âncora de Belém e ru-
Granada, proibiu os súbditos de partici- de e uma avaliação de qua- mava ao Algarve. Quantos eram, bar-
par ou sequer de dar alguma ajuda aos cos e homens? Boa pergunta, e essen-
portugueses. Muitas destas coisas sa- lidade: o exército cristão te- cial. Mas não sabemos a resposta: há
bemo-las devido às cartas que um es- ria entre quinze e vinte mil tantos números sugeridos, muitos dos
pião aragonês enviou, de Lisboa, a esse quais disparatados, e tão pouca fiabili-
regente, e que chegaram até nós. Gran- homens; quanto aos barcos, dade na maior parte dos cálculos, que 069
de parte das informações que ele pas- sabemos o número certo de temos de nos ficar por uma sugestão de
sou para Castela parecem fidedignas, quantidade e uma avaliação de qualida-
outras acredito que lhe tenham sido ‘so- galés – quinze – mas igno- de: o exército cristão teria entre quin-
pradas’ por uma contra-espionagem ze e vinte mil homens; quanto aos bar-
portuguesa. E à pergunta do milhão de
ramos quantas naus e gran- cos, sabemos o número certo de galés –
dólares, como hoje diríamos – que terra des barcos à vela as acom- quinze – mas ignoramos quantas naus
é que os portugueses vão atacar? – du- e grandes barcos à vela as acompanha-
rante quase toda a sua estadia em Por- panhavam, para não falar vam, para não falar de uma multidão
tugal ele não soube responder: chegou de uma multidão de embar- de embarcações mais pequenas que se
a colocar dez hipóteses, algumas per- juntou à expedição. Tem-se atirado com
feitamente abstrusas. Só dois dias de- cações mais pequenas que um número redondo – 200 barcos – que
pois de a armada largar de Belém ele se juntou à expedição. me parece pecar muito por excesso. Fei-
escreveu uma carta à pressa, ainda as- ta esta reserva, passemos então à apre-
sim sem certezas, dizendo ao seu rei: a ciação qualitativa: D. João I saía de Lis-
maior parte das opiniões de rua acredi- boa à frente de um exército muito bem
ta que os portugueses vão atacar Ceuta. armado, abastecido e grande, para os
Atrás disse que correu tudo bem na parâmetros medievais; e o transporte
preparação. Não foi rigorosamente as- desse número de soldados, dos respeti-
sim: nos dias anteriores à partida, co- vos alimentos e de todos os aprestos mi-
meçou a espalhar-se na capital a peste, litares exigiu um número também ele-
provavelmente trazida a bordo de um vado de barcos de grande porte. É o que
dos muitos barcos que chegara a Lis- podemos afirmar com certeza; e já não
boa. Conhecemos a vítima mais céle- é pouco.
bre dessa epidemia: a rainha D. Filipa Faremos depressa o caminho até
de Lencastre, cuja saúde se agravou ra- Ceuta, para poupar ao leitor o calvário
pidamente, vindo a falecer no mosteiro por que passou a armada, cuja viagem,
de Odivelas em 19 de Julho de 1415. Pés- em contraste, começou por ser lentíssi-
simo agoiro! Multiplicaram-se as vo- ma, com os barcos domiciliados duran-
zes que defendiam o abandono do pro- te uma interminável semana ao largo
jeto: não se envergava uma armadura de Lagos (em cuja praia o capelão real,
de guerra por cima de um traje de bu- Frei João Xira, tinha finalmente torna-

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O Noticioso
DESTAQUE

do público o alvo da empresa e divul- Iríamos ter mais um dos numerosos (a começar pelas portas). Podiam então
gado a bula de Cruzada concedida pelo cercos que D. João I e Nuno Álvares Pe- começar os bombardeamentos, as ten-
Papa, garantindo a plena absolvição dos reira conduziram e que, na esmagado- tativas de escalar as muralhas, de fa-
pecados a quem perdesse a vida em tão ra maioria dos casos, terminaram com a zer desabar partes delas através da es-
santo cometimento), porque o vento en- vitória dos sitiantes e a tomada do caste- cavação de minas ou de forçar as portas,
tendeu não colaborar. E depois passou lo ou da cidade ou vila amuralhada? Os chegando-lhes fogo ou martelando-
da calmaria ao inferno, quando o ven- portugueses vinham muito bem prepa- -as com “carneiros”. Em que é que este
to finalmente veio, mas veio com tal for- rados com escadas e com engenhos de cerco diferia de todos aqueles em que
ça que por duas vezes quase destroçou guerra; sabemos que tinham construí- os homens de 1383-85 tinham partici-
070 a expedição, atirando com as galés pa- do em Santarém uma impressionante pado? Em duas particularidades. Pri-
ra Algeciras e com os barcos à vela para torre de assalto com cinco andares, tra- meiro: tratando-se de uma península,
Málaga. Pela terceira vez as duas com- ziam uma espécie de muralhas ‘portá- com a parte mais robusta das fortifica-
ponentes da armada reuniram-se à vis- teis’ de madeira para se protegerem, ções precisamente no ponto de ligação
ta de Ceuta, quando se multiplicavam as traziam com toda a certeza máquinas ao continente, os atacantes nunca con-
vozes que defendiam o regresso rápido de tiro (trabucos, trabuquetes, catapul- seguiriam fechar o cerco, pelo que os si-
ao reino sem correr mais riscos, esque- tas). Trariam artilharia de fogo? Trinta tiantes poderiam sempre receber refor-
cendo o senho da conquista. É que bas- anos antes, ela pode ter estado presen- ços militares e abastecimentos do inte-
tava terem-se afundado uma galé e uma te em Aljubarrota, mas a sua difusão nos rior. Segundo: o exército atacante estava
nau para o reino, que ainda chorava a cenários de batalha, sobretudo quando metido em barcos; precisava de desem-
morte da rainha, perder o rei, o seu her- está a dar os primeiros passos e, por is- barcar em uma das duas praias (a nor-
deiro Duarte e os dois seguintes na linha so, acaba muitas vezes a rebentar na ca- te ou a sul), de pôr em terra os engenhos
da sucessão, Pedro e Henrique. Subiria ra dos artilheiros ou limita-se a espan- de guerra que vinham, na sua maioria,
ao trono o Infante D. João, com 15 anos. tar os cavalos ‘amigos’ ou ‘inimigos’, es- em peças de madeira que depois seriam
Não aconteceu. E D. João I, bem apoiado sa difusão, dizia eu, pode ter sido mais montadas no campo de batalha, preci-
pelos três filhos, conseguiu impor a sua lenta do que se pensa. Para nossa irrita- sava de tempo e de espaço para as duas
vontade e silenciar os descontentes. Ti- ção, Zurara não fala de bocas-de-fogo; coisas. Como me informou Fernan-
nham chegado até ali; ele que assustara em Ceuta, foi encontrada pelo menos do Villada, um arqueólogo que conhe-
meia Europa com a sua mobilização mi- uma “bombarda”, mas não temos indí- ce a história de Ceuta como poucos, “as
litar e naval invejável não passaria pe- cios de que os muçulmanos tenham fei- praias seriam muito diferentes do que
la humilhação de voltar para casa com o to fogo com ela; esclareço que escrevi vemos hoje. A norte haveria três: San-
rabo entre as pernas, sem ter conquista- “bombarda” entre aspas porque, como to Amaro, Santa Maria e “La Sangre”; a
do coisa alguma nem sequer desembai- diz o grande especialista destas coisas, sul, salvo pequenas enseadas (Torreci-
nhado a espada. Nuno Varela Rubim, os cronistas não lla, Sarchal e Ribera, esta minúscula),
Chegamos assim a meados de Agos- percebiam coisa nenhuma de artilha- seria difícil encontrar uma praia areno-
to, e a situação é a seguinte: uma penín- ria, pelo que chamavam “bombarda” a sa e grande. Intriga-nos o facto de Zura-
sula bem defendida por muralhas e por qualquer peça de artilharia. ra afirmar que havia rochedos. Mas um
uma cidadela, na base do istmo, e um Seguir-se-ia a disposição das tropas barco que se aproximasse bastante de
exército atacante poderoso, bem arma- para o cerco, a instalação do comando terra ficaria ao alcance de todos os pro-
do e – talvez seja para mim o fator mais num lugar de onde este tivesse boa vi- jéteis que de cima das muralhas os de-
importante – com um comando muito sibilidade sobre todo o terreno, a iden- fensores fizessem chover sobre ele. E
experiente. tificação de pontos fracos nas defesas se os soldados saltassem do barco para

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O Noticioso

a praia, mais perto das muralhas - e por- EM 1415, CEUTA ninguém o fez; há apenas alusões bre-
tanto mais expostos - ficariam. ves e pouco claras às razões da derrota
ESTAVA EM PERDA das gentes do Islão.
A sorte na decisão da guerra Estou convencido de que os defenso-
Houvera tempos em que os habitan-
DEMOGRÁFICA, res de Ceuta, que tiveram mais do que
tes de Ceuta se teriam rido de qualquer LONGE DOS TEMPOS tempo para avaliarem o poderio dos
exército ameaçador: com uma popula- cristãos, rapidamente perceberam que
ção pujante e numerosa, com quase to-
EM QUE SE DIZIA se deixassem alguns milhares daque-
dos os do sexo masculino especialistas INVULNERÁVEL las bisarmas couraçadas de aço dos pés
no uso e disparo de bestas de vários ti- à cabeça pôr um pé na praia e começar 071
pos, com muralhas altas e grossas, pos- a montar máquinas de guerra, o desti-
sivelmente com a marinha de guerra no da cidade estaria traçado. Era uma
muçulmana fundeada em boa ordem questão de tempo. E por isso preferiram
no porto e preparada para atacar, com jogar uma cartada arriscadíssima, qua-
alguns contingentes das tropas do rei se suicida, mas talvez a única que lhes
de Fez prontos para socorrer rapida- restava: abrir uma das portas da mu-
mente a cidade, esta não era invulnerá- ralha e mandar para a praia uma força
vel, como chegou a dizer de si própria, de vanguarda que tentasse, quase com
mas não andava longe disso. Só que em o desespero dos condenados, atacar os
Agosto de 1415, que longe Ceuta estava soldados da vanguarda cristã no mo-
desses tempos e dessa confiança! Pro- mento em que eles saltassem dos batéis
vavelmente estava em perda demográ- para a praia – se possível, ainda dentro
fica, fator gravíssimo porque a exten- da água; as pesadas armaduras arrastá-
são de muralhas a defender era enor- -los-iam para o fundo do mar.
me, e para defender bem muralhas é A história militar tem isto de curio-
preciso gente com fartura em cima de- so: pode acontecer que campanhas ou
las; no porto, cinco inúteis galés sem tri- táticas que foram cuidadosamente pre-
pulantes e aparentemente sem coman- paradas ao longo de meses sejam deci-
do; nem se mexeram de onde estavam. didas em poucos minutos, às vezes por
Não sabemos o estado de conservação sorte ou por fatores aleatórios: o vento
dessas muralhas, nem se as portas e as que virou no meio de uma feroz batalha
torres que as enquadravam estavam naval, invertendo com isso o sentido do
devidamente reforçadas. Não sabemos combate, e às vezes riam-se os do Islão
quantos homens em condições de com- bradando que o vento estava com Mao-
bater existiam e ficaram em Ceuta, nem mé, e às vezes riam-se os cristãos cons-
o seu enquadramento militar, a sua ex- tatando que o vento lutava por Jesus
periência, as suas armas, a qualidade Cristo; a carga de cavalaria que, na sua
dos comandantes. Para apurar tudo is- primeira e aterradora investida, conse-
so, precisávamos de outro Zurara do la- guiu “romper” as linhas da frente do ini-
do muçulmano, de alguém que nos des- migo, traçando logo ali o destino da pe-
se a visão dos atacados. Que eu saiba, leja (caso da carga castelhana sobre o

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O Noticioso
DESTAQUE

072

exército de Afonso V em Toro, em 1476), vitais, os atacantes conseguiram saltar Ceuta estava seccionada em zonas
ou pelo contrário tropeçou em obstácu- para a praia e aguentar firme, reforçan- e bairros, separados por muralhas in-
los, afundou-se em “covas de lobo”, pa- do rapidamente as suas fileiras. E como teriores com as suas portas e mesmo
ra se ir fazer empalar na muralha de lan- uma onda que vem e vai, os locais de- por fossos. Desse modo, teoricamente
ças solidamente empunhadas por uma pressa deram consigo a recuar desorde- os cristãos podiam conquistar um dos
muralha de peões (caso da carga caste- nadamente para o abrigo das muralhas. sectores e os muçulmanos redobrarem
lhana – e francesa; e portuguesa – sobre Conta-nos Zurara (e faz sentido) que o a resistência no seguinte. Mas isso não
o exército de D. João I em Aljubarrota, Infante D. Duarte, que recebera ordens ocorreu: fica a vaga intuição de que, en-
em 1385). Abreviando: na praia de Ceu- do pai para tomar a praia e não se mover tre os habitantes da cidade, nem a força
ta, naquela manhã de 21 de Agosto de de lá, percebeu que tinham uma opor- militar era muita, nem os capitães mui-
1415, os primeiros cristãos (portugue- tunidade caída do céu para entrar den- to experientes e carismáticos. O moral
ses e pelo menos um francês e um ale- tro da cidade, oportunidade essa que dos cristãos estava em alta, o dos mu-
mão) que puseram os pés na areia, con- poderia durar poucos minutos. E deu çulmanos de rastos; e como estas coi-
fiando na proteção das suas armaduras ordem para que os cristãos perseguis- sas contam! O desenrolar dos comba-
e na força letal das suas armas, investi- sem os muçulmanos e entrassem, enro- tes, segundo Zurara, teria sido uma or-
ram com surpreendente rapidez sobre dilhados neles, pela porta aberta. Creio gia de violência e de destruição, as mais
os muçulmanos que os aguardavam, que foi nestes breves momentos que se das vezes gratuita, de casas e de bens, e
abriram uma clareira, e logo atrás de- decidiu a sorte do combate e que se per- de obsessão pelo saque. Durante algu-
les vieram outros, e outros, e mais ou- cebeu que ele ia ser muito mais rápido mas horas combateu-se corpo a corpo,
tros. Nesses segundos, nesses minutos do que as duas partes previam. rua a rua, beco a beco. Temerário em

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O Noticioso

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BRUNO SIMÕES CASTANHEIRA/GLOBAL IMAGENS

excesso, o Infante D. Henrique arris- Tapeçarias ficação também fora abandonada, e en-
cou por mais do que uma vez a sua vida encomendadas por traram tranquilamente nela nessa mes-
e a dos que lutavam a seu lado, perden- D. Afonso V, para assi- ma noite, espetando num ponto bem al-
do nisso um dos seus companheiros nalar a tomada de Arzila, to uma bandeira de S. Vicente, patrono
mais leais. Mas ao fim da tarde Ceuta são o mais icónico teste- de Lisboa. Pela primeira vez, uma cida-
estava quase completamente ocupada munho das campanhas de muçulmana do Norte de África caía
e vazia dos seus habitantes muçulma- portuguesas no Norte de em mãos de cristãos. E num espaço de
nos, muitos dos quais já tinham fugi- África. São conhecidas poucas horas. Os infantes que queriam
do nos dias anteriores ao ataque, com como “de Pastrana”, um batismo de sangue para o dia da sua
as famílias e os haveres que consegui- pois foram perdidas por entrada na cavalaria não podiam ter so-
ram transportar. Portugal e pertencem, nhado com melhor desfecho; nem os no-
Faltava tomar o “castelo”, ou seja, a hoje, à colegiada dessa bres que acorreram em busca de honra e
cidadela que fechava a península a oci- localidade espanhola de proveito; nem o rei de Portugal: se um
dente, e que seria um reduto, esse sim, dos seus objetivos centrais era impres-
quase inexpugnável. D. João I mandou sionar e pôr os reinos vizinhos em res-
pôr-lhe uma guarda à porta e deu or- peito, a fulminante conquista de Ceu-
dens para que o exército descansasse ta, rapidamente comunicada e amplia-
nessa noite. No dia 22 de manhã veriam da pelas várias cortes europeias, serviu
a melhor maneira de o tomarem. Mas às mil maravilhas os seus intentos.
entretanto perceberam que essa forti- Esta é, em traços sumaríssimos, a

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O Noticioso
DESTAQUE

história da conquista. Poucas baixas do viajavam entre os dois mares, houve Na carta que o Infante D. Pedro escre-
lado cristão – um fidalgo caído em ba- vários sectores sociais e de atividade veu em 1428, em Bruges, ao seu irmão
talha, uma dúzia deles vítimas da peste, que enriqueceram à custa do sustento Duarte, na prática o regente do reino,
não sabemos quantos soldados popula- de Ceuta. Mas a praça como entrepos- informou-o da voz corrente nas cor-
res mortos, muitas baixas do lado mu- to comercial morreu no dia da conquis- tes europeias que frequentava: Ceu-
çulmano: não temos qualquer sugestão ta; foi frequentada por alguns merca- ta começou por ser, para a Coroa por-
ou hipótese de números credíveis para dores estrangeiros que vendiam bens tuguesa, um feito de se lhe tirar o cha-
avançar. variados à guarnição portuguesa, mas péu; mas muito cedo se converteu num
nunca mais teve barcos muçulmanos, desastre financeiro, de que o país fa-
074 Caríssima e praticamente inútil nem as caravanas de trigo ou de ouro, ria bem em livrar-se o mais cedo possí-
No dia 22 começaria outra história de nem as sedas e as especiarias, nem co- vel; aliás, na sua regência, D. Pedro ten-
Ceuta: a da transformação das mesqui- lónias de mercadores genoveses como tou agir de forma coerente, mandan-
tas em igrejas, a interminável cerimó- antes tinha. O pagamento da guarnição do a Ceuta um barco com ordens para
nia de armar novos cavaleiros, a esco- ficava caro e o seu sustento caríssimo, que o capitão da cidade a evacuasse e
lha de uma guarnição de cerca de três porque praticamente todos os objetos a devolvesse aos anteriores habitan-
mil soldados de elite para ficarem a e víveres de que precisavam tinham tes. Só que esse barco foi atacado por
guardar a praça e de um capitão para que ir do continente, ou da próxima ci- uns misteriosos ‘piratas’ (os tais pira-
os comandar. Aparentemente, tudo foi dade castelhana de Tarifa. Para isso o tas que o domínio português de Ceu-
pacífico exceto a última parte. A arma- reino foi obrigado a mobilizar um vo- ta supostamente evitaria) e nunca
da portuguesa regressou rapidamen- lume impressionante de recursos. No- chegou ao destino. Azar dos Távoras…
te ao Algarve; as tripulações e os bar- meado governador de Ceuta, o Infante Ceuta continuaria portuguesa, ca-
cos estrangeiros fretados foram pagos D. Henrique, que de 1415 até morrer, em ríssima, melancólica e praticamen-
(em sal, suponho que porque não havia 1460, só lá voltaria duas vezes, requisi- te inútil. Até que, em 1668, os habitan-
dinheiro) e desmobilizados, as recom- tava todos os anos, nas várias circuns- tes da cidade, com alguma ‘ingratidão’
pensas pelos feitos em combate pedi- crições fiscais do reino, os almoxarifa- cínica que faria revolver nos túmulos
das a D. João I e, regra geral, despacha- dos, uma percentagem brutal das res- D. João I, os seus filhos e o seu cronis-
das favoravelmente. petivas arrecadações. Foram criados ta Zurara, entenderam que, assim co-
Hoje discute-se que balanço deve dois impostos novos para sustentar a mo assim, ficariam melhor sob a so-
ser feito da presença portuguesa em cidade, mais um corpo de tanoeiros e berania de Carlos II, que em 1665 su-
Ceuta, pelo menos até 1580 (porque al- ferreiros – pagos pela Coroa de Portu- cedera a seu pai Filipe IV de Espanha,
guns anos depois da Restauração de gal, por quem havia de ser? – que tra- III de Portugal, do que sob a obediên-
1640, mais precisamente em 1668, os balhavam exclusivamente no abaste- cia do português D. João IV. Estariam
ceutis declinaram regressar à sobera- cimento da praça. Com regularidade, os ceutis ainda impressionados com a
nia portuguesa, como em princípio de- jovens da nobreza ou simples aventu- por assim dizer pujança de Filipe IV,
viam, e continuaram ‘espanhóis’ – até reiros desaguavam na praça para efe- que teve oito filhos da primeira espo-
hoje). Pertenço aos que pensam que a tuar o seu tirocínio e amealhar algum, sa, cinco da segunda e mais onze de
avaliação só pode ser negativa: talvez o que geralmente faziam através de ra- damas sortidas? Não foi um desfecho
se tenha evitado alguns ataques de pi- zias militarmente pouco dignificantes propriamente exaltante, na estrita óti-
ratas às costas algarvias, talvez se te- sobre as pobres aldeias vizinhas, e não ca portuguesa, para uma história que
nha dado outra segurança aos barcos raro criando problemas de segurança tinha começado, faz agora 600 anos,
portugueses, e cristãos em geral, que aos veteranos da guarnição de Ceuta. com um épico feito de armas.

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O Noticioso

Outras conquistas no Norte de África


PORTUGAL
Praças-Fortes ESPANHA
e Fortalezas
Portuguesas

Alcacer-Ceguer

Tânger CEUTA
Arzila
Fortaleza da Graciosa
S. João da Mamora
construção falhada

Azamor Anafé FEZ


TUNÍSIA
destruição
Mazagão da cidade

Fortaleza Safim MARROCOS ARGÉLIA


de Aguz
MARRAQUEXE
Mogador

Santa Cruz
do Cabo Guer

Tânger que promovera o reforço da ca- Larache II, foi pretexto para que D. Ma-
1437 pacidade bélica do reino, sonha- 1489 nuel ali enviasse uma armada de
Fala-se em “desastre de Tân- va conquistar Tânger. Foi acon- Larache era a cidade portuária 500 velas, transportando 15 mil 075
ger” e fica tudo dito. A oposição selhado a tomar antes Alcácer que servia Fez e Alcácer-Quibir. homens que conquistaram es-
à expedição era grande, mas D. Ceguer, uma praça de pequena Ao mandar construir uma for- sa praça.
Duarte acabou por seguir o rumo dimensão.. taleza na foz do rio Loukos, D.
dos que desejavam a conquis- João II materializava uma amea- Mazagão
ta, com dois irmãos dele, os in- Anafé ça, que havia sido idealizada no 1514
fantes D. Henrique e D. Fernando, 1469 tempo do seu pai, sobre aquelas Para conquistar Azamor, D. Jai-
que buscava ser armado cavalei- O ataque protagonizado por D. cidades. Dois anos depois, o rei me, duque de Bragança, havia
ro pelos feitos em batalha, à ca- Fernando, irmão do rei Afonso V, de Fez reconquistou Larache. desembarcado num lugar on-
beça. Má organização e peque- a Anafé (hoje Casablanca), que de veio a ser instalada a forta-
no contingente (seis mil homens) era uma base de pirataria e cor- Safim leza de que nasceu a cidade de
resultaram em fracasso. Preso D. so, não foi um primor estratégi- 1508 Mazagão, ao ser demolida, em
Fernando, que veio a morrer ca- co. Sem gente que lhe permitisse Desde a tomada de Arzila, Sa- meados do século XVI, para dar
tivo em Fez e transformado pela deixar ali uma guarnição, optou fim era protetorado dos portu- lugar a uma cidadela. É talvez o
lenda em “Infante Santo”, nunca por arrasar tudo. gueses, que aí haviam estabe- local de Marrocos onde os ves-
tendo servido de moeda de troca lecido uma feitoria. Em 1508, tígios da presença portugue-
para a devolução de Ceuta, como Arzila aproveitando rivalidades entre sa são mais perenes e visíveis.
queriam os marroquinos, ficou 1471 os habitantes, Diogo de Azam- Mantida em posse portuguesa
D. Henrique com o peso de ter si- Arzila terá sido o maior feito em buja tomou a cidade de assal- após a união dinástica (1580-
do, provavelmente, o responsá- Marrocos de D. Afonso V, não to e fez da feitoria fortaleza. De 1640), foi o último baluarte lu-
vel maior pelo desastre. apenas pelo sucesso da empresa Safim, já capitaneada por Nuno so em território marroquino: em
militar, mas também pelo facto Fernandes de Ataíde, partiu em 1769, em pleno período pom-
1471 de dela ter resultado a ocupação 1515 um ataque a Marraquexe, balino a cidade foi abandonada
Após a tomada de Arzila, os ma- de Tânger, sem resistência, pelos não mais que uma demonstra- e os seus habitantes transferi-
grebinos evacuaram a cidade e portugueses. Tânger era, de fac- ção de poder. dos para Nova Mazagão, do ou-
os portugueses ocuparam-na to, o alvo preferencial do monar- tro lado do Atlântico, no que ho-
tranquilamente. ca, mas a prudência aconselhou a Azamor je é o estado brasileiro de Ama-
que optasse por esta praça mais 1513 pá, junto ao delta do Amazonas.
Alcácer Ceguer a sul, que tomou com 30 mil ho- A expulsão de alguns portu-
1458 mens embarcados na maior ar- gueses de Azamor, cidade que
Em Ceuta temia-se o cerco pelas mada alguma vez produzida por prestava vassalagem a Portu-
forças do rei de Fez, e D. Afonso V, Portugal (477 navios). gal desde o reinado de D. João

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O Noticioso
DESTAQUE

Cinco quinas
intocadas e intocáveis
nas armas da cidade,
que se orgulha
do passado português

CORBIS

Marcas de V
estígios de edifícios de outros
tempos que, ainda que mu-
tilados e, em muitos casos,
adaptados a novos usos, de-

Portugal numa
safiam as investidas do tem-
po que passa. De igual modo, há relíquias
076 de outros que, apesar de definitivamente
vencidos, permanecem no subsolo, guar-

cidade milenar dando segredos que são desvendados pe-


la arqueologia.
Uns e outros, os emergentes e os enter-
rados, constituem um valioso patrimó-
Qualquer cidade histórica contém a recordação, mais nio, que forma o cimento e o esqueleto da
cidade atual, que se ergue firmada sobre
ou menos evidente, de todas as que a precederam. essas outras cidades, pertencentes a ou-
tros tempos.
Texto de Fernando Villada Paredes Ceuta, com uma presença humana
Instituto de Estudios Ceutíes que remonta há mais de 170 mil anos e
com uma ocupação contínua do seu nú-
cleo urbano que dura há quase 2700 anos,
não é uma exceção.
Caminhar pelas suas ruas e praças
converte-se, para quem conjuga curiosi-
dade interesse com um olhar atento, num
permanente desafio: o repto que a cidade
nos lança está, justamente, em descobrir o
brilho dessas outras Ceutas que resistem
ao desaparecimento.
Entre todas as reminiscências de tem-
pos passados, a herança lusa ocupa um lu-
gar destacado, pois a partir de 1415 come-
çaram a produzir-se profundas trans-
formações urbanas, que, em parte, se
prolongam até aos nossos dias.
Esta presença portuguesa traduz-
-se não apenas em vestígios materiais ou
em imóveis, mas também nas tradições e
símbolos da cidade.

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O Noticioso

Entre os restos monumentais, as mu- que a ocultavam. E ainda a da frente me- nifesta-se nos nomes de muitas ruas (Pe-
ralhas são, sem qualquer tipo de dúvida, ridional. Rasgando as duas frentes amu- dro de Meneses, Enrique el Navegante,
os de maior envergadura, mostrando que ralhadas abrem-se duas portas, a de San- Luís de Camoens, João I de Portugal, Bea-
a defesa constituía uma preocupação es- ta Maria, a norte, e a da Ribeira, no lado sul, triz da Silva, Lisboa, etc.), de escolas (por
sencial. que já estavam em uso na época portu- exemplo, o Instituto de Enseñanza Secun-
Se bem que as obras de manutenção guesa, embora, provavelmente, tenham daria Luís de Camões) ou na toponímia lo-
e de melhoramento tenham sido cons- origem mais antiga. cal mais tradicional, de que são exemplos 077
tantes, desde 1415, foi preciso esperar pe- A leste foi aberto um outro fosso, neste o monte Hacho ou Sarchal (uma derivação
lo tempo de D. João III, rei de Portugal en- caso seco, que hoje é apenas parcialmen- de Seixal), entre outros.
tre 1521 e 1557, para assistir à reforma de te visível, por ter sido coberto, no século Também os principais símbolos da ci-
maior envergadura das muralhas. O pro- XX, por uma grande praça e pelo edifício dade ostentam o legado português: a ban-
jeto, pensado para fazer frente aos desa- do mercado central da cidade. deira de Ceuta é herdeira da de Lisboa, o es-
fios que constituía o advento da artilha- O legado português em Ceuta é, tam- cudoéodePortugal,comligeirasmodifica-
ria pirobalística, foi traçado por Benedi- bém, evidente nos principais templos e ções,eopendãorealmostranumadasfaces
to de Ravena. ermidas. Conservam-se obras de arte e o escudo português, tendo na outra o espa-
Este arquiteto deu especial atenção à imagens de grande devoção, como a de nhol. Este fenómeno verifica-se ainda com
frente ocidental da cidade antiga – o lado Santa Maria de África, patrona e “alcalde- algumas das mais prestigiosas instituições
mais exposto aos ataques inimigos. Ali se sa” perpétua de Ceuta, doada pelo infan- culturais da cidade, como é o caso do Insti-
construiu uma poderosa muralha, flan- te D. Henrique, por cuja alma ainda se ce- tuto de Estudios Ceutíes, que se orgulha de
queada por dois baluartes cingidos por lebram regularmente missas nessa igre- ter como emblema uma antiga moeda por-
um fosso navegável, que liga as águas das ja. Também é alvo de profunda veneração tuguesa, conhecida como “ceitil”.
baías norte e sul. Uma frente abaluarta- a imagem de Nossa Senhora do Vale – “a Neste património imaterial teremos
da que, integrando as anteriores mura- portuguesinha” –, chegada à cidade com de contar com cerimónias que ainda ho-
lhas, incorporava os avanços da nova ar- a frota lusitana, em 1415. je se realizam e tem as raízes firmadas no
te de fortificar desenvolvida em Itália. Um À guarda dos arquivos de Ceuta, tan- período português. Em cada tomada de
prodígio de eficácia e racionalidade, cujos to religiosos como civis, existem valiosas posse da autoridade militar máxima faz-
ecos chegaram às longínquas terras da Ín- séries documentais pejadas de referên- -se a entrega solene do “aleo”, o bastão de
dia, onde a fortaleza de Diu se reconstruiu cias a linhagens portuguesas. Especial- comando simbólico dos Meneses. Depois
“seguindo a traça da de Ceuta”. mente importante é o legado de uma ins- de o receber, o novo comandante dirige-
Ainda hoje estas muralhas e fosso, am- tituição tipicamente portuguesa, como é -se ao altar de Nossa Senhora de África,
pliados posteriormente, em época já es- a Real e Santa Casa da Misericórdia, pre- onde esse pau se encontra normalmente
panhola, marcam profundamente a tra- servado no Arquivo Central de Ceuta. De depositado.
ma urbana desta cidade autónoma. igual modo, os museus locais conservam A presença portuguesa permanece vi-
Apesar de ter sido sujeita a reformas de numerosas peças arqueológicas e, tam- va, 600 anos depois, em Ceuta e nos cora-
maior envergadura, também permanece bém, escudos que recordam aqueles tem- ções dos ceutis, fazendo parte de um le-
em pé, e em relativo bom estado, a mura- pos distantes. gado que, em conjunto com os outros pe-
lha setentrional da cidade, recentemen- Todavia, além destes vestígios mate- ríodos, anteriores e posteriores, permite
te reabilitada e despojada de edificações riais, a herança portuguesa em Ceuta ma- explicar e compreender o que hoje somos.

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O Noticioso
DESTAQUE

Passeando
pelo Porto
de D. João I
Cidade invicta está intimamente ligada
ao rei “de Boa Memória”, ao infante D.
Henrique e à conquista de Ceuta
Germano Silva
Jornalista e historiador

D
. João I passou pelo Porto, pela primeira
vez, em 1385. Foi logo a seguir às Cortes
de Coimbra, em que fora aclamado rei.
Veio ao Norte para “meter na ordem“ al-
gumas terras do Entre-Douro-e-Minho
que estavam por Castela. O Porto, en- 01
078 tão, circunscrevia-se ao interior do pe- Neste painel de azulejos, que pode ser admirado no átrio da estação fer-
rímetro da muralha chamada fernandina. E não teria mais roviária de S. Bento, no Porto, o pintor Jorge Colaço (1868–1942) procu-
do que seis a sete mil habitantes. O rei foi recebido triun- rou recriar a cena da chegada ao Porto do cortejo que acompanhou a prin-
falmente pelos burgueses, que lhe prometeram lealda- cesa Filipa de Lencastre quando ela veio casar com D. João I. A princesa,
de e colocaram ao seu serviço “seus corpos e haveres e até filha do duque de Lencastre e da encantadora duquesa Branca, celebrada
despender as vidas por honra do reino ”. Agradeceu D. João pelo poeta Chaucer, vinha da Galiza, em Espanha, onde estava com o pai,
I respondendo que “os havia [aos do Porto] por bons e leais e entrou na cidade pela porta do Olival, indo hospedar-se no paço do bis-
e lhes faria muitas mercês…”. Dois anos depois, o mestre po. D. João I veio logo a seguir a cavalo, do Sul, onde andara a alistar tropas.
de Avis voltou ao Porto para casar (14 de fevereiro de 1387) Instalou-se no mosteiro de S. Francisco. Encontraram-se pessoalmente,
com a princesa D. Filipa de Lencastre. O casamento reali- no paço do bispo, na véspera do casamento.
zou-se na Sé, mas a boda foi servida no paço do bispo. No
antigo, não no atual, que é do século XVIII. Uma curiosida-
de: o mestre de cerimónias da boda, que foi servida no pa- Estação
ço do bispo, foi o condestável de Portugal, D. Nuno Álva- de São Bento
res Pereira. Em 1394, D. Filipa de Lencastre estava nova- ra
ei
Avenid

mente no Porto. Nesse ano, a 4 de março, uma quarta-feira Silv


da
de Cinzas, deu à luz, nesta cidade, o seu quinto filho, que, ho
a D. Afo

uzin
dias depois, na pia batismal da Sé, tomou o nome de Hen- e Mo
ad
nso He

rique e que passaria à história com o cognome de “O Nave- Ru


gador”. D. Henrique voltaria ao Porto, 21 anos depois, em
nrique

1415. Desta feita para tomar posse e comandar uma arma- Rua da Bainharia
s

da constituída por embarcações de vários tipos, a maior Sé do Porto


parte das quais construidas nos estaleiros do rio Douro.
Para abastecer a frota, os portuenses esvaziaram os seus
celeiros e adegas. Centenas de cabeças de gado foram aba-
tidas, as carcaças esquartejadas e as carnes, depois de sal- Rua do Infante Túnel d
a Ribeir
a
gadas, metidas nos bojos dos navios. Ficaram as tripas, de D. Henrique
cuja confeção nasceu, para os portuenses e segundo reza
a lenda, o honroso epíteto de tripeiros. Numa radiosa ma- Casa do Infante

nhã de julho de 1415, a armada zarpou do rio Douro e fez-se


ao mar. Viria a integrar, depois, a numerosa frota com que RIO DOURO Ponte Luís I
os portugueses foram à conquista de Ceuta.

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O Noticioso

05
Terá sido aqui, na chamada Casa do Infan-
te, que, segundo uma antiga tradição, nasceu o
Infante D. Henrique. O edifício atual, onde fun-
FOTOS DE ISABEL LEAL/GLOBAL IMAGENS
ciona o Arquivo Histórico Municipal, é o resul-
02 04 tado das sucessivas transformações por que
O casamento de D. Quando veio ao Por- passou a primitiva construção, mandada fa- 079
João I com D. Filipa de to, pela primeira vez, zer, contra a vontade do bispo, em 1325, por D.
Lencastre foi, sem dú- D. João I prometeu Afonso IV, para servir como “Almazém régio”,
vida, um dos eventos aos da cidade “fazer- isto é, como alfândega da cidade. A tradição de
pátrios mais memo- -lhes muitas mercês“. que aqui terá nascido o infante D. Henrique as-
ráveis que tiveram por E cumpriu. Entre 1395 senta na hipótese de o edifício antigo ter servi-
palco a catedral portu- e 1405 mandou fa- do, também, de paço real. Não há certezas a es-
calense. Nesta igreja zer uma nova rua, “pa- se respeito.
seria também batiza- ra enobrecimento da
do o quinto filho do ré- cidade “, a que queria
gio casal, o infante D. 03 tanto que lhe chama-
Henrique. Edifício de A rua da Bainharia tem este nome porque ne- va “a minha rua For-
estrutura românica, a la viviam, e tinham suas oficinas, os homens mosa “. É hoje a rua do
Sé do Porto foi cons- que faziam as espadas e as respetivas bainhas. Infante D. Henrique. D
truída entre os séculos Armeiros e bainheiros trabalharam arduamen- . Afonso V, neto de D.
XII e XIII, por iniciativa te, durante meses, para apetrecharem, com João I, comparava a rua
de D. Teresa, mãe de D. espadas novinhas em folha, os tripulantes das a um palácio. Dizia que
Afonso Henriques . Do naus que o Infante veio buscar ao Porto . É uma a rua, propriamente di-
tempo do casamento das mais antigas artérias da cidade, já referi- ta, “era a sala de visi-
de D. Filipa com D. João da em documentos do século XIII. Chamava-se, tas; as casas eram as
I é esta figura de uma por essa época, rua de Ferraris, designação que câmaras (quartos e
barca, uma “coca” es- andava ligada à existência das ferrarias do Por- outras dependências);
culpida numa pedra do to, que ficavam da parte de fora da cerca primi- o mosteiro (de S. Fran- Rua do Infante
gigante junto da porta. tiva, por causa do perigo de incêndio. A rua fi- cisco, ali perto) a cape- D. Henrique
Trata-se da mais anti- cava, efetivamente, da parte de fora do “muro la; e a praça ( que tinha foi centro cívico
ga representação ico- velho“, ou seja, no exterior de primitiva muralha. ao meio um cruzeiro e da cidade
nográfica conhecida de No dia da primeira visita de D. João I ao Porto an- onde se correram tou-
um barco. Deve ter sido davam, “dançando e foliando”, nesta rua, “não ros) o seu jardim…” . Foi
esculpida nos finais do apenas as mulheres de meão estado e condi- a rua mais importan-
século XII. ção”, diz Fernão Lopes, “mas também muitas te do Porto dos séculos
das boas da cidade andavam com elas por hon- XV e XVI.
ra da festa”.

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O Noticioso
MUSEU DO TRIMESTRE

Museu Nacional de Machado de Castro

080

Coleções postas Será na forma como o próprio edifício, na sua


multiplicidade monumental, respira e conversa
com as inestimáveis coleções que reside o cará-

em diálogo ter único do Museu Nacional de Machado de Cas-


tro, em Coimbra. Entrar ali é, sinteticamente, per-

com os visitantes
ceber como tantos elementos, que estavam indi-
vidualmente classificados, se articulam e criam
um conjunto coerente e indivisível.

e com os edifícios
Teremos de falar aqui do notável acervo, em que
se destaca a impressionante coleção de escultu-
ra (ou não tivesse sido o patrono um insigne es-
cultor), mas tal só poderá ser feito depois de se dar
a perceber o espaço, do antigo paço episcopal, er-
guido onde outrora foi o fórum da romana Aemi-
num, mantendo como alicerce o espantosamente
conservado criptopórtico (o labirinto estrutural
com que os romanos venceram a irregularidade
topográfica do que veio a ser a Alta de Coimbra),
passando por elementos como a renascentista
capela do Tesoureiro, de que se mantêm impor-
tantes vestígios no interior do museu, ou a barro-
ca igreja de São João de Almedina, erguida onde

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O Noticioso

Entrada do museu
e igreja de S. João
de Almedina.

081

FOTOS: CARLOS SANTOS SILVA/GLOBAL IMAGENS

INFORMAÇÃO ÚTIL

Sé Nova
MUSEU
R. São João
R. do Norte

LARGO DR. JOSÉ RODRIGUES


3000-236 COIMBRA
239 853 070
Fronteiro à Sé No-
va, o museu está nu- Zonas exteriores, Do tríptico da Pai-
ma zona de difícil es- como o pátio cen- xão de Cristo, obra
tacionamento. O pá- tral ou a esplanada do pintor flamengo
tio central, a loja ou a da cafetaria, monta- Quentin Metsys, so-
cafetaria são de en- da nas traseiras da bram os dois volan-
trada livre. Fecha Sé Velha, são de en- tes e um fragmento
à segunda-feira e à trada livre e estimu- do painel central. Foi
terça de manhã, e o lam a relação da ci- encomendado pelo
bilhete geral custa dade com o seu prin- rei D. Manuel I para as
seis euros. cipal museu. clarissas de Coimbra.

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O Noticioso
MUSEU DO TRIMESTRE

antes houve um templo românico. e que virá a ser Escultura


o auditório do museu, no âmbito de candidatu-
ra ao Portugal 2020. E exemplar é, também, toda a
Terracota
obra de ampliação e modernização, assinada pe- moldada
lo arquiteto Gonçalo Byrne. em mistério
Há 27 anos que Ana Alcoforado faz do museu a e maravilha
sua segunda casa, vivendo os últimos sete na pele
de diretora da instituição. Orgulha-se, com toda a Tanto pode a Ceia de
legitimidade, de estar associada à transformação Cristo de Hodart des-
de um vetusto e limitado museu, instituído pela lumbrar pelo espan-
República em 1911 e inaugurado dois anos depois, to de expressivida-
num moderno projeto de museologia marcado de que emana das fi-
pelo “diálogo muito forte entre o edifício e as co- guras, em terracota,
leções”. Essa relação passa, por exemplo, pela ex- como pelo mistério
posição de algumas peças romanas no contexto em torno do escul-
único do criptopórtico ou, ainda, pela colocação tor, francês, de quem
de escultura renascentista na zona onde foi re- muito pouco se sa-
construída a capela do Tesoureiro: “Sempre que be e que terminou,
há preexistências arquitetónicas, as coleções es- em 1534, esta mo-
tão em diálogo com elas”. numental obra des-
Num acervo tão vasto, torna-se difícil escolher as tinada ao refeitório
peças mais notáveis, mas torna-se quase forçoso do mosteiro de San-
destacar, à cabeça, a Ceia de Cristo de Hodart (es- ta Cruz, em Coimbra.
cultor quinhentista de quem muito pouco se sa- Sabe-se que o artis-
be), conjunto de peças em terracota originalmen- ta recebeu cem du-
te concebido para o refeitório do mosteiro de Santa cados de ouro pe-
Cruz. “Para mim, é o melhor conjunto escultórico la encomenda, ge-
existente em território português”, nota a diretora, nerosa quantia à
que destaca ainda a icónica peça que é o cavaleiro época, e tenta justi-
082 medieval ou a Deposição de Cristo no Túmulo, de ficar-se a perplexi-
João de Ruão, a coleção de pintura do Norte da Eu- dade que constitui o
ropa, com um tríptico da Paixão de Cristo à cabe- uso do barro, numa
ça... a enumeração jamais terminaria. região onde o mate-
Exposições temporárias, programação para di- rial de excelência era
ferentes públicos, visitas temáticas e visitas guia- a pedra de Ançã, es-
das, visitas “flash” (dez minutos, à hora do almoço), peculando que tra-
uma peça em destaque a cada trimestre que pas- duz simbolicamente
sa, garantias de acessibilidade para cidadãos com a fragilidade huma-
mobilidade reduzida, formas de musealização na. O conjunto es-
promotoras da integração, colóquios, conferên- cultórico foi desfei-
cias, espetáculos musicais ou de dança... O dina- to, dispersado e par-
mismo do museu passa também por esta ideia de cialmente destruído,
estar sempre algo a acontecer. E, aí, merece desta- entre 1865 e 1880, e
que o papel da Liga de Amigos do Museu Nacional só não se perdeu de-
de Machado de Castro, em especial, mas não só, no vido a um longo es-
que respeita à sensibilização dos mais novos para forço do Museu Ma-
estas realidades. chado de Castro, que
Além de ser o museu de referência nacional no hoje mantém o con-
campo da escultura, esta instituição é, também, junto num espaço
um marco da identidade coimbrã, não só por es- nobre, embora sem
tar assente, digamos assim, sobre as fundações qualquer pista docu-
da cidade, como, também, pelo valor simbólico mental que permita
de muito do que guarda, com destaque para pe- repor com exatidão o
ças do tesouro da Rainha Santa Isabel. E a requa- ordenamento origi-
lificação ajudou, e de que maneira, a fortalecer nal das figuras, tipi-
esse casamento com a população, que tem sem- camente renascen-
pre as portas abertas, sem pagar, para desfru- tistas, que forma um
tar do pátio ou, ainda, para desfrutar, da espla- conjunto único à es-
nada da cafetaria, da deslumbrante vista sobre cala europeia.
o vetusto casario, do qual sobressai, dois passos
abaixo, a Sé Velha da cidade.

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O Noticioso

Tesouros reais e simbólicos


O tesouro da Rainha Santa Isabel, aqui representa-
do por um colar, é exemplo, pela devoção e carinho
que ali há pela mulher de D. Dinis, de como Coim-
bra se identifica com o seu museu, onde podemos
apreciar peças como a “Deposição de cristo no tú-
mulo” (João de Ruão, sec. XVI) ou o famoso “Cava- 083
leiro medieval” (atribuído a mestre Pero, sec. XIV).

Criptopórtico
Um mergulho
na romana
Aeminium
Alicerce do fórum romano de Aemi-
nium, erguido no tempo de Augusto e
ampliado em meados do primeiro sé-
culo da Era Cristã, quando Cláudio era
imperador, o espantosamente bem
conservado criptopórtico continua a
ser sustentáculo do edifício históri-
co do museu, que foi paço episcopal
de Coimbra. A possibilidade de circu-
lar pelo interior daquele que é o maior
edifício romano conservado em Por-
tugal constitui, ainda, o melhor exem-
plo de como o espaço interage com as
coleções.

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O Noticioso
SABOR DA HISTÓRIA

Cogumelos
mortais
e imortais
Hélio Loureiro
Chefe de cozinha

E
084
ncontramos na cultura greco-ro-
mana algumas das mais remotas re-
ferências aos cogumelos, tanto en-
quanto iguaria gastronómica como
pelas propriedades farmacêuticas
que lhes eram reconhecidas. Ou se-
ja, serviam para abrilhantar divi-
nais banquetes e, também, para subtilmente en-
venenar inimigos. Se é conhecida, na Roma an-
tiga, a preferência pelos boletos colhidos nas
zonas húmidas do Norte de Itália, tão temidos co-
mo apreciados, chega-nos dos gregos, particu-
larmente de Hipócrates, o uso desses fungos com
fins medicinais: para os cultivar, usava esterco co-
locado ao pé de determinadas figueiras, método
descrito por Nicandro de Cólofon.
Sendo o figo símbolo da sabedoria, pois na sua
flor, que consumimos como fruto, concentram-
-se inúmeras sementes que traduzem a a concen-
tração do conhecimento, podemos acreditar que
o cultivo de cogumelos sob os ramos da figueira
serviria, de algum modo, para que eles fossem en-
riqucidos com mais ciência.
Também na Bíblia encontramos referências a
cogumelos, sem nunca surgir uma descrição das
suas variedades. E muitas teorias fazem crer que o
maná não seria nada mais nada menos do que co-
gumelos: “Eis que vos farei chover pão dos céus, e Hipócrates, pai da
o povo sairá, e colherá diariamente a porção para Medicina, espalhava
cada dia, para que eu o prove se anda em minha lei esterco junto a figueiras
ou não. E acontecerá, no sexto dia, que prepararão para os cultivar

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O Noticioso

Perdição dos gastrónomos, e por COMPOTA assadas na brasa. Já os egípcios comiam-nas en-
DE COGUMELOS voltas em gordura de ganso e cozidas em papelo-
isso aqui estão, mas também EM VINAGRE, te. Foram os romanos e os gregos que lhes deram
letais, curativos ou afrodisíacos, MOSTARDA E MEL o cunho afrodisíaco e terapêutico, poderes a que
INGREDIENTES: ainda podemos encontrar referências no séc. XIX,
mágicos ou terrenos, estes fungos 400 G DE COGUMELOS quando Alexandre Dumas escreve que “pode em
têm tido uma vida atribulada (PORTOBELLO, CHANTERE- certas ocasiões tornar as mulheres mais ternas e
LAS, MÍSCAROS, PLUROTES, os homens mais amáveis”. Mas as trufas estiveram
através dos tempos. PODEM SER OUTROS… ) também associadas à feitiçaria, como se vê nes-
5 COLHERES DE SOPA te testemunho do século XVII: “Visto que, duran-
DE AZEITE te as tempestades , saem chamas de vapores hú-
1 COLHER DE CHÁ DE MEL midos , enquanto nuvens obscuras emitem ruídos
3 DENTES DE ALHO ensurdecedores , não é de admirar que o relâmpa-
EM LÂMINAS go , quando atinge o solo , dê origem às trufas , que
2 CEBOLAS EM MEIAS LUAS se parecem com plantas”.
MUITO FINAS Na Idade Média, eram consideradas fruto do
1 COLHER DE SOBREMESA diabo e, por tal, não eram consumidas a não ser
DE MOSTARDA DE DIJON por feiticeiros ou seguidores do demo.
3 COLHERES DE VINAGRE Foi no Renascimento que voltaram à mesa, de-
DE VINHO TINTO. saparecendo novamente e ressurgindo, depois,
Leve ao lume o azei- quando Luís XIV reinava em França. La Varenne
te, deixe aquecer, recomenda-as como entradas, cozinhadas em vi-
junte o alho e a ce- nho e servidas em cima de pétalas de flor.
bola, deixe alourar, Só no século XVII as trufas foram definitiva-
junte o mel e a mos- mente classificadas como cogumelos, pelo botâ-
tarda, envolva bem, nico francês Claude-Joseph Geoffroy, em “Obser-
junte o vinagre e dei- vation sur la végétation des truffes”.
xe ferver. Retire do As trufas mais apreciadas são as de Périgord,
lume. Leve ao lume em França, e a trufa branca de Piemonte, em Itá-
água a ferver mer- lia. No “Larousse gastronomique”, os cogumelos 085
o que colherem; e será o dobro do que colhem cada gulhe os cogumelos são referenciados como vegetal sem clorofila nem
dia. E quando o orvalho se levantou, eis que sobre campestres duran- flor, vivendo em lugares frescos e húmidos sobre
a face do deserto estava uma coisa miúda, redon- te três minutos, re- um suporte alimentar, o húmus, raízes e madeira.
da, miúda como a geada sobre a terra. E, vendo-a, tire-os, escorra-os e Enfim, passemos ao que hoje será mais im-
os filhos de Israel disseram uns aos outros: Que é seque-os bem em ci- portante, ou seja, o bom uso que podemos fazer
isto? Porque não sabiam o que era. Disse-lhes pois ma de um pano. Co- destes fungos que, não sendo vegetais nem fru-
Moisés: Este é o pão que o Senhor vos deu para co- loque-os no tacho do tos, têm mil serventias. Falamos aqui dos que
mer”. (Êxodo 16:4,5,14,15) azeite e da mostarda podemos consumir sem irmos parar ao hospi-
Sabemos que os egípcios os conheciam e de- envolva bem, tem- tal, como poderíamos fazê-lo acerca daqueles
les nos deixaram alguns indicadores, como a pe- pere de sal e pimen- cujas qualidades podem ajudar-nos a ter alta do
dra de cogumelo, uma variedade muito aprecia- ta preta moída. Fer- mesmo hospital.
da existente nas margens do Mar Negro, que se va de novo com os Os cogumelos podem ser mais ou menos caló-
petrificavam e de que nos deu noticia Teofras- cogumelos, coloque ricos, dependendo da variedade (por exemplo, a
to no séc. IV. Muitos acreditam e teorizam que os em frascos de vidro, lepiota fornece oito vezes mais calorias do que os
cogumelos, no antigo Egito, estavam associados feche-os e vire-os ao crista de galo). Os mais populares na cozinha, pela
à imortalidade e que a Ankh, também conhecida contrário. Deixe ar- facilidade com que se encontram no mercado, são
por cruz egípcia, não seria mais que e estilização refecer e coloque-os os cogumelos de Paris, presentes em numerosas
de um cogumelo. no frio. Sirva no pra- receitas. Mas, ultimamente, uma vaga de produ-
Horácio exultava-os nos seus cânticos, en- zo de uma semana. ção nacional trouxe até nós inúmeras variedades,
quanto Plínio nos fala em pormenores das dife- que fazem as felicidade dos gastrónomos, como os
rentes espécies. As trufas eram muito apreciadas pleurotus, portobello, míscaros, boletos, cantare-
no tempo do Império, e, se em Roma se procura- las e tantas outras variedades que vão aparecen-
vam no solo, também se importava trufa bran- do, em produção biológica e não só.
ca da Trácia e da Cirenaica (Líbia), bem como tru- A recolha de cogumelos é tão antiga como a das
fa negra do Egito. A ideia de que as trufas são filhas bagas e devem ser cozinhados o mais rápido pos-
de um raio é muito antiga, e Teofrasto aceita es- sível após a recolha, para que conservem não só o
ta esta crença, enquanto Plutarco a reforça, enten- sabor, mas, sobretudo, a humidade que lhes dá a
dendo tratar-se de barro queimado por um raio. frescura no cozinhado. Devem ser lavados rapida-
Galeno recomendava-as pela voluptuosidade mente e bem secos, depois salteados, havendo até
que transmitiam, e Filoxeno de Leucádia afirma- algumas espécies servidas em cru. A duração da
va que o poder erótico delas era infalível, quando cozedura é variável.

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O Noticioso
ENSAIO FOTOGRÁFICO | Por Reinaldo Rodrigues

Torre de Belém
Aleitura de
Manuel Jorge
Marmelo*
Assim como Gomes Eannes de
Zurara narrou a conquista de Ceu-
ta sem tê-la visto, fiando-se no que
contavam os que lá tinham estado,
também para esta crónica da to-
mada da torre de Lisboa pelos turis-
tas hei de socorrer-me somente do
que ouço dizer e observo nas ima-
gens do repórter. Tem, esta invaso-
ra res, muito para cima de dois mil
cavaleiros e quatro mil peões, tanto
povo e de tão distantes reinos que,
às vezes, parecem não existir lis-
boetas em toda a cidade de Lisboa.
Aristóteles, citado pelo Zurara, pos-
tulou que “a natureza é o princípio
do movimento e da folgança”. Ora,
vigiando as hordas invasoras pelo
prisma do fotógrafo, também neste
086 caso, e descontando-se-me a na-
tural rudeza e o fraco engenho, pos-
so afirmar que os bárbaros vêm pa-
ra folgar e flanar à fresca natural do
Tejo, enamorando-se e envolven-
do-se da luz que dele irradia e das
imaginárias tágides que em suas
águas se banham.
Bizarro é, e mais não digo, que os in-
vasores não tragam mais arma ne-
nhuma além dos vários aparelhos
destinados à captação de imagens,
mais semelhando que, tal como em
certas tribos atrasadas, também
eles crêem que lhes basta fotogra-
far para nos pilharem a alma dos lu-
gares e das gentes. O que mais se
assemelha às adagas com que se
travavam as batalhas antigas são
as varas metálicas a que se dá o no-
me de “pau-de-selfie”, embora a
estas, ao que posso observar, as
usem, por narcísico paradoxo, para
roubar as próprias almas.
Quanto a Ceuta, estamos entendi-
dos: fica fora de mão e ninguém nos
convence a regressar enquanto não
virmos no instagram o autorretrato,
são e inteiro, do nosso bom rei por lá
adormecido.

* Escritor

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ENSAIO FOTOGRÁFICO | Por Reinaldo Rodrigues

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ENSAIO FOTOGRÁFICO | Por Reinaldo Rodrigues

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O Noticioso
HISTÓRIAS CÓSMICAS

Descobrimentos,
Espaço e
Miguel Gonçalves
Coordenador Nacional
da Sociedade Planetária
combustíveis
De como as causas da expansão
portuguesa se conjugaram, noutra
dimensão e noutro tempo, para
atacar a fronteira celeste

T
udo começou com um bip. Era ou- E onde mora então esta cíclica memória e práti-
tono, e a Boston Philharmonic Or- ca que liga Portugal e o Espaço, passado, presente
chestra, que juntava músicos (ou e futuro? Com que lições aprendidas ou esqueci-
aspirantes a tal) dos observatórios das? Com que alterações de paradigmas? Qual foi
astronómicos de Harvard e do Smi- o verdadeiro combustível dos Descobrimentos e
092 thsonian, estava reunida para levar da contemporânea Exploração Espacial?
a cabo o primeiro ensaio, destina- No mítico “History of Rocketry & Space Travel”,
do a preparar o décimo concerto anual, agendado escrito pelo pai do programa norte-americano
para a primavera seguinte. À medida que o ensaio Apollo, o engenheiro alemão Wernher Von Braun,
decorria, um a um, silenciosamente, os elemen- há uma comparação apaixonante: “Durante o Re-
tos do conjunto iam deixando a sala. Coisa bizar- nascimento, o Príncipe Henrique, o Navegador de
ra, pensaria qualquer observador que não se lem- Portugal, estabeleceu no seu castelo à beira-mar,
brasse de que era a tarde do dia 4 de outubro de em Sagres, o precedente mais próximo para com
1957 e, claro, do que essa data significava. aquilo que a comunidade espacial está a tentar
Nesse instante, os instrumentistas amadores concretizar no nosso tempo. (...) O Príncipe Henri-
regressavam à sua ocupação principal: a Ciência. que treinou os astronautas do seu tempo – homens
Colcheias e semicolcheias eram substituídas por como Bartolomeu Dias, Fernão de Magalhães e
órbitas, apogeus, perigeus, estimativas de passa- Vasco da Gama – e criou o ambiente de explora-
gens... a clave de sol dava lugar a outra, uma bola ção que lançou Cristóvão Colombo a partir da vi-
com 58 centímetros de diâmetro coberta de alu- zinha Espanha para a sua histórica viagem. (...) Se-
mínio e ligações elétricas, que viajava a mais de ria complicado concretizar [os Descobrimentos]
900 quilómetros de altitude e demorava 98 mi- se fosse solicitado a justificar as suas ações nu-
nutos a dar uma volta à Terra. Chamava-se “Sput- ma base racional ou prever um retorno ou estudo
nik” e o seu bip provocava os orgulhosos festejos de custo-benefício do seu programa de explora-
de alguns e, também, os silenciosos medos de tan- ção. Ele exerceu um ato de fé, e o Mundo tornou-se
tos outros. Para muitos historiadores, o sinal sono- mais rico por isso. A exploração do espaço é o de-
ro do primeiro satélite artificial da Terra, obra da safio dos nossos dias. Se nela continuarmos a de-
engenharia soviética, marcou o início da História positar a nossa fé e prosseguirmos tal demanda, a
da Exploração Espacial . “Exploração” é um termo sua recompensa será generosa”.
moderno e tranquilo, pois o vocábulo então usa- Deixemos a questão da “fé” e da “recompensa”
do era vincadamente belicista: “Conquista”. Co- e chamemos à reflexão Stephen Pyne, historia-
locou-se assim nos céus, por obra dessa palavra, a dor e professor na School of Life Sciences da Ari-
geopolítica terrestre. Atirámos para o Cosmos um zona State University. É autor do provocador livro
imenso déjà vu da nossa História – da Humanida- “Voyager – Seeking Newer Worlds in the Third
de e dos portugueses – e repetimos noutra escala, Great Age of Discovery” e não esconde a sua fú-
mas em igual natureza, um mosaico que, ironica- ria face ao excessivo romantismo de Von Braun,
mente, tem tanto de orgulho como de depressão. identificando motivos menos nobres para a faça-

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O Noticioso

nha lusa. Apesar de reconhecer que os portugue- sonda Mars Orbiter Mission, e o Japão também já
ses inauguraram a Primeira Época da Descober- levou a cabo missões de sucesso a asteroides e ou-
ta, situando a Segunda Época nos séculos XVIII e tros corpos menores. A Rússia estuda seriamente
XIX (com o Iluminismo ou Charles Darwin, com colaborações com a China e com a ESA, para reer-
a aventura do “Beagle”, como figuras e eventos guer o seu poderio espacial, e anuncia-se agora
maiores) e apontando uma Terceira Época de Des- que a França e Israel aliaram-se para uma missão
coberta, que começa na exploração do Polo Sul e até Vénus. A lista é mais extensa, mas a conclusão
avança com os nossos primeiros passos na nave- é evidente: o Espaço, tal como nas “décadas lu-
gação pelo Cosmos. A irritação de Pyne com Von nares” – e à semelhança do mar, no passado –,
Braun e com os que elegem como motor da ex- volta a ser palco de afirmações geopolíticas
pansão portuguesa o simples exercício da curio- e, graças à evolução da ciência e da tec-
sidade, da bravura quase afrodisíaca ante o des- nologia, tornou-se financeiramente
conhecido e a contribuição solidária para o co- mais acessível.
nhecimento dos limites do nosso planeta, deve-se É desta maior acessibilidade
à colisão entre essas ideias e a sua tese maior, há que nasce aquilo a que se cha-
muito reconhecida pela historiografia: que todas ma “Novo Espaço”. Desde fi-
estas épocas de descoberta resultaram de um ali- nais da década de 1990 que
nhamento da política, do militar e da economia; e as andanças espaciais co-
que, por acaso, a ciência e a tecnologia surgem co- meçaram a ser olhadas
mo “penduras” destas boleias civilizacionais. E com realismo económico
sempre com a presença de duas nações imperiais: pelo setor privado – algo
Portugal/Espanha, França/Inglaterra, EUA/ mais sério na avaliação dos
URSS, num alinhamento cronológico. riscos, das recompensas e do
Portugal e os Descobrimentos são muito cita- esforço do que os sonhos épicos pós-
dos no livro de Pyne, ora com profunda e sincera -Apollo, pelos quais já caminharíamos em Mar-
admiração, ora com apontamentos críticos sobre te e teríamos estações e hotéis em órbita da Terra.
a génese e os resultados da façanha; a páginas tan- Estas novas empresas espaciais privadas focam-
tas, chega a afirmar que a liderança mundial qui- -se, sobretudo, em prestação de serviços (nes-
nhentista portuguesa é um “exercício de alqui- te momento, o caso mais emblemático será a Spa- 093
mia histórica”: “Podemos encontrar as razões dos ceX e o aluguer dos seus foguetões e cápsulas que
seus ingredientes, mas nenhuma explicação para faz à NASA para as suas viagens não tripuladas até
a forma como se deu a combinação”. à Estação Espacial Internacional), no estudo de
A exploração era assunto de Estado, pago pe- viagens turísticas espaciais, no desenvolvimento
lo Estado, ao serviço do Estado. Mais de 500 anos de sistemas de lançamento de aeronaves e, até, na
depois, a corrida espacial tinha o mesmo ADN. Foi exploração de minério em asteroides. Em muitas
a confrontação pura e dura entre dois blocos na- das mais conhecidas empresas que operam nes-
cionais, dominantes a nível global numa determi- ta indústria estão milionários relativamente jo-
nada época, que nos empurrou para mais além. A vens e que, por vezes, se qualificam como “órfãos
dimensão e natureza das fronteiras é que muda- de Apollo”, toda uma geração que bebeu a excita-
ram: as do nosso tempo, da Terceira Época de Des- ção da exploração lunar e se sentiu traída: assim
coberta, situam-se “lá em cima”. No entanto, co- que a bandeira americana foi espetada na super-
mo frequentemente refiro, “vivemos numa época fície do nosso satélite natural, terminou a dispu-
extraordinária, depois não diga que não foi avi- ta espacial.
sado”. Décadas após a epopeia lunar, continuam Também os fundadores de empresas como a
a ser as agências governamentais a liderar o nos- Google ou a Amazon estão seriamente envolvidos
so conhecimento espacial. Recentemente, a sonda nos negócios espaciais, não só pelo romantismo.
New Horizons mostrou-nos admiráveis mundos O espaço já não é apenas um palco geopolítico, é
novos – Plutão e as suas luas – e mais quatro son- também a nova sala de reuniões de multinacio-
das terrestres navegam nos confins do Sistema nais privadas, e os números impressionam: desde
Solar, todas elas da NASA. A agência espacial go- 2010, o número de empresas cresceu seis vezes,
vernamental americana também está em Saturno atingindo as 800 que trabalham diretamente na
(sonda Cassini), em parceria com a ESA, a agência exploração espacial, negócio que envolve mais de
espacial europeia suportada por financiamentos 10 mil milhões de dólares!
públicos. Os europeus também estão num come- Dos Descobrimentos lusos até à aventura espa-
ta, em Marte e, até há bem pouco tempo, em Vénus. cial milionária privada separam-nos mais de cin-
Foi também a vontade governamental que permi- co séculos, mas não a natureza do seu combus-
tiu que a exploração espacial fosse feita noutros tível: a rentabilização financeira e a afirmação
idiomas: a China levou uma sonda e um peque- geopolítica. Públicas ou privadas, a ciência e tec-
no “rover” à Lua e está, também, a construir a sua nologia são os ajudantes e não os motivos. Afinal,
estação espacial; a Índia já chegou a Marte, com a não mudámos assim tanto...

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O Noticioso
ROSTOS DA HISTÓRIA

Marc Bloch
1886-1944

S
erá difícil perceber onde reside, essencialmen- ch e Fèbvre lançaram em Janeiro de 1929, dez anos depois de
te, a grandeza de Marc Léopold Benjamin Bloch, se encontrarem na Universidade de Estrasburgo, o estudo do
se no facto de ser um notável historiador, ligado passado nas vertentes económica e social passou a impor-se
ao movimento que revolucionou a historiogra- a uma antiga forma de fazer História política, e não só as fon-
fia na primeira metade do século XX, se no pa- tes passaram a ser interrogadas (não meramente “interpreta-
triotismo que fez dele herói da Resistência fran- das”) como ganharam outra abrangência: os sacrossantos do-
cesa, fuzilado pelos nazis, dez dias depois de os cumentos passaram a ter novas companhias no processo de
Aliados desembarcarem na Normandia. produção historiográfica. Basicamente, tudo o que tenha re-
Mas é enquanto historiador que aqui lembramos esse ho- sultado da ação humana, do vestígio arqueológico ao nome
mem que, com outro grande, Lucien Fèbvre, criou em de uma rua, é fonte histórica, e o cruzamento de fon-
1929 uma revista chamada “Annales d'Histoire tes (incluindo as que fornecem outros ramos do sa-
Economique et Sociale”. É aí que se verifica a ber) é, tendo por base a problematização, a cha-
grande rutura com a Escola Metódica (dita po- ve do processo de construção historiográfica.
094 sitivista) então vigente, que tinha como pala- “O bom historiador assemelha-se ao ogre da
dinos dois mestres de Bloch (Charles-Vic- lenda. Onde quer que fareje carne humana,
tor Langlois e Charles Seignobos), autores sabe que está aí a sua presa”, escreveu Blo-
da “Introdution aux études historiques”. ch em “Apologie pour l'histoire ou métier
Essa corrente, que não deve ser olhada d'historien”, obra que escreveu na clan-
com o desdém que por ela tinham os que destinidade e deixou incompleta, mas
a derrubaram (Bloch entre eles), era, po- que se tornou, mesmo assim, a mais reco-
demos hoje dizê-lo, um espartilho limi- nhecida de tudo o que escreveu (em Por-
tador do conhecimento do passado. Pa- tugal, publicou-se sob o desinspirado tí-
ra eles, que seguiam os dogmas do ale- tulo “Introdução à História”).
mão Leopold Von Ranke (1795-1886), que O estudo da Idade Média foi o que mais
não deixa de ser fundamental no progresso ocupou Bloch, autor de vasta bibliografia,
da ciência histórica, era regra o recurso ex- de que ressaltam títulos como “Os reis tau-
clusivo às fontes documentais (“pas de docu- maturgos” ou “A sociedade feudal”, e concei-
ments, pas d'histoire” – sem documentos não há tuadíssimo académico. Acabara de ser nomea-
História, diziam os franceses) e interditava ao his- do professor de História económica na Sorbonne
toriador qualquer tipo de problematização, pois ti- quando deflagrou a II Guerra Mundial, após anos em
nha por missão descrever “o passado tal como ele aconteceu” que vira goradas todas as tentativas de assumir uma cátedra
(“wie es eigentlich gewesen ist”, na fórmula rankiana). no Collège de France, num processo em que talvez já houves-
“Se fosse antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. se indícios de antissemitismo.
Mas sou historiador. É por isso que amo a vida”. Afrase não é Judeu a assistir ao avanço do III Reich, Marc Bloch ainda
de Bloch, mas ter-lhe-á sido dita pelo historiador belga Henri tentou, a páginas tantas, escapar com a família para os Esta-
Pirenne (1862-1935), durante uma viagem a Estocolmo, e aca- dos Unidos, mas tal não foi possível, acabando por passar à
ba por traduzir todo um programa que veio libertar a História clandestinidade e por ingressar nas fileiras da Resistência.
daquilo que até então acabava por ser (e sempre haverá quem E nessa condição morreu este antigo combatente da Gran-
por aí caminhe), amiúde, um instrumento de propaganda na- de Guerra, patriota, professor e notável historiador. Foi preso
cionalista, que resumia o estudo do passado aos grandes pro- e torturado pela Gestapo, em março de 1944. Em junho, com
tagonistas, aos grandes feitos, às grandes vitórias também, o avanço dos Aliados, os alemães trataram de dar conta dos
pois dificilmente o lado dos perdedores é conhecido. prisioneiros, que eram cada vez mais, ora deportando-os pa-
Para a chamada “Escola dos Annales”, “compreender” pas- ra campos fora de França, ora executando-os sumariamen-
sou a ser um verbo predominante, em território onde antes te. Marc Bloch tombou num campo de Saint-Didier-de-For-
imperava a missão de “relatar”. Com os “Annales”, que Blo- mans, a norte de Lyon, no dia 16 de junho.

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O Noticioso

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O Noticioso
LIVROS

UM MUNDO
QUE ABRE
OS BRAÇOS
AO MUNDO UMA HISTÓRIA
CONCISA DE PORTUGAL
KL – A HISTÓRIA DOS CAMPOS
DE CONCENTRAÇÃO NAZIS
Maior apetência pelos temas MARIA CÂNDIDA PROENÇA NIKOLAUS WACHSMANN
históricos constitui um desafio Temas e Debates | 808 páginas | 24,40 € D. Quixote| 856 páginas | 35,90 €
São sempre assinaláveis as obras Tragicamente monumental, a
importante para os investigadores de síntese que, pela abordagem e obra de Wachsmann, professor
pela organização, abrem as por- em Birkbeck, Universidade de
tas do conhecimento a um públi- Londres, é, mais do que a com-
co eclético. A autora, professo- pleta síntese que faltava, um ma-
Do crescente dinamismo do mercado editorial ra aposentada da “Nova”, pegou nancial de revelações sobre os
português no que concerne a temas históricos, nos sete volumes da sua História campos de concentração nazis
patrimoniais e quejandos, bem patenteado neste de Portugal para jovens e redi- (“Konzentrationslager”, daí o tí-
nosso rol de sugestões bibliográficas, podem ti- recionou o texto para um público tulo). É, internacionalmente, uma
rar-se várias conclusões. A óbvia tem a ver com mais amplo. das grandes novidades de 2015.
a apetência que o público tem por estas matérias.
Ninguém publica livros sem a ambição de os ven-
096 der. A menos óbvia decorre da mais óbvia: au-
menta entre os investigadores, até há não mui-
to tempo encerrados no hermético microcosmos
dos circuitos académicos, a perceção de que a
produção de conhecimento só tem a ganhar com
o alargamento do leque de destinatários desse
mesmo conhecimento. Vai deixando de ser regra,
para os historiadores, a ideia de que só o reconhe-
cimento pelos pares é verdadeiramente impor-
tante (consequência de a investigação estar, qua-
se sempre, associada à construção de carreiras
profissionais no meio universitário), dando lu-
gar a uma faceta de divulgação essencial a que a
historiografia cumpra o seu papel de força ativa
na formação de uma sociedade mais apta a lidar
com os desafios com que se depara. Não é claro
que a História constitua uma solução mágica pa- HISTÓRIA PRODIGIOSA PORTUGUESES NOS CAMPOS
ra projetarmos o futuro, tal a tendência que sem- DE PORTUGAL (VOL. II) DE CONCENTRAÇÃO NAZIS
pre há para replicar erros do passado, mas é uma
evidência absoluta que a ausência deste conhe- JOAQUIM FERNANDES PATRÍCIA CARVALHO
cimento resulta num coletivo desestruturado e Verso da História | 382 páginas | 19,90 € Vogais | 264 páginas | 16,99 €
perdido. Das obras de síntese, como “Uma Histó- Depois de “Mitos & Maravilhas”, O jornalismo é fonte da História
ria Concisa de Portugal”, à transformação de uma que parava no século XVIII, Joa- e, também, forma de a escrever,
dissertação de doutoramento em matéria para quim Fernandes dá-nos “Magias mau grado a modéstia dos jorna-
o grande público (veja-se o trabalho de António & Mistérios”, o “imaginário oníri- listas e a desconfiança dos aca-
Costa Pinto sobre o Nacional-Sindicalismo), tu- co e místico português” nos sé- démicos. Patrícia Carvalho apro-
do o que aqui se vê poderá ser enquadrado nessa culos XIX e XX, Das chuvas de funda, em livro, as reportagens
tendência, com o louvor maior a ir para dois me- sangue em Trás-os-Montes ao originalmente dadas à estampa
dievalistas, Luís Miguel Duarte e João Gouveia mito da costureira, passando por no “Público” que mostram a an-
Monteiro, que fazem da aventura da História um visões, mesas girantes e fantas- tes desconhecida realidade dos
deleite tanto para o intelecto como para os senti- mas, é um Portugal insólito, te- portugueses caídos no sistema
dos. Esse é também o caminho. meroso e arrojado que se revela. nazi de campos de concentração.

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O Noticioso

OS CAMIZAS AZUIS A GUERRA QUE PORTUGAL AS FONTES CEUTA 1415


E SALAZAR QUIS ESQUECER DO PORTO SEISCENTOS ANOS DEPOIS

ANTÓNIO COSTA PINTO MANUEL CARVALHO ARMINDA SANTOS (COORD.) LUÍS MIGUEL DUARTE
Edições 70 | 364 páginas | 19,90 € Porto Editora | 272 páginas | 16,60 € Afrontamento | 234 páginas | 18,00 € Livros Horizonte |256 páginas | 22,00 €
Em 1932, Rolão Preto fundou o Ao falar de Portugal na Grande Nascido do Clube Unesco da Ci- O historiador Luís Miguel Duar-
Nacional-Sindicalismo, forma or- Guerra, esquecemos que um dos dade do Porto, este trabalho é te é tão notável a problematizar
ganizada do fascismo em Portu- motivos que nos levou ao confli- algo em aberto, que resulta da como a comunicar. Assim torna
gal. Ao estudar o fenómeno, nas- to foram as possessões africanas ação e estimula a ação. Não se acessível a todos os públicos al-
cido do Integralismo Lusitano, o e que foi em África, especialmen- contentando com a mera obser- go que transcende a evocação da
autor mostra como o salazaris- te em Moçambique, que mais sol- vação e catalogação das fontes tomada de Ceuta. Recusando se-
mo, mesmo buscando nele inspi- dados lusos morreram. Manuel do Porto, os autores vêem o que guir Zurara estritamente, conse-
ração, resultou numa construção Carvalho fez uma longa série de está bem e mal, idealizam solu- gue, de forma inédita, mostrar
distinta e longeva, de que os pró- reportagens, no “Público”, aqui ções e contactam as entidades algo dos olhares de outros, os de
prios fascistas foram opositores. adaptadas e melhoradas. que podem pô-las em prática. Ceuta, sobre a conquista.

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COLOMBO E A DEMANDA UMA HISTÓRIA SEGREDOS 1415 - A CONQUISTA


DE JERUSALÉM DO DESEMPREGO DE LISBOA DE CEUTA
CAROL DELANEY YVES ZOBERMAN INÊS RIBEIRO E RAQUEL POLICARPO JOÃO GOUVEIA MONTEIRO
ASA | 368 páginas | 17,90 € Teodolito | 304 páginas | 16,00 € Esfera dos Livros | 238 páginas | 16,50 € Manuscrito | 222 páginas | 14,90 €
Têm sido menosprezadas as mo- Neste estudo de longa duração, Que cidade se esconde sob a ci- Zurara é narrador. João Gomes
tivações religiosas da empreita- Zoberman mostra como, dos dade? Quantas? Este exercício da Silva, alferes-mor do rei, tam-
da de Cristóvão Colombo. Carol tempos em que a caridade era a leva-nos a uma Lisboa desco- bém. A fórmula é arriscada, por-
Delaney dá, neste livro de 2011, resposta até se tornar matéria nhecida, que a arqueologia vai quanto constrói uma narrativa
a visão de um homem que, tendo económica e política, o desem- revelando e que se mostra de romanceada para abordar histo-
morrido sem perceber que che- prego é determinante na defini- forma mais ou menos acessível. ricamente os acontecimentos de
gara a um “novo mundo”, queria ção da ação pública. Hoje, a solu- Não é propriamente uma investi- 1415. Sendo dos medievalistas
formar uma aliança com o Gran- ção não virá com a reposição de gação científica, nem um guia em mais cotados no campo da histó-
de Khan e arrecadar ouro que fi- uma situação prévia, mas com sentido estrito, nem uma efabu- ria militar, o professor de Coim-
nanciasse a conquista de Jerusa- uma “mutação que faz apelo a to- lação. Mas é isso tudo, assim re- bra prossegue com assinalável
lém e a reconstrução do templo. da a energia criativa do homem”. sultando em muito mais. sucesso a invulgar demanda.

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O Noticioso
PONTES NO TEMPO

O regresso
da Questão do Oriente
José Pedro Comparar a atual crise de no (1774), após a derrota deste último pelos exércitos
Teixeira Fernandes do czar – Tratado de Küçük-Kaijnardja; e o Tratado de
Professor refugiados com a tragédia da II Lausana (1923), que regulou o fim do Império Otoma-
Guerra Mundial será um claro no e a emergência da Turquia moderna. Um aspeto a
reter para o mundo de hoje: as áreas de maior turbu-
exagero. Há na queda do Império lência geopolítica na proximidade da Europa – Balcãs,
Síria, Líbano Iraque, Israel/Palestina, Líbia –, são ex-
Otomano um paralelismo -territórios otomanos.
mais interessante.

3
Várias tragédias humanitárias e vagas de re-
fugiados ocorreram ligadas aos aconteci-
mentos da Questão do Oriente. Embora com

1
intensidades e conflitos de dimensão variá-
O problema dos refugiados não é novo na Eu- vel, a devastação da guerra atingiu a genera-
ropa. A tragédia da II Guerra Mundial, com lidade dos ex-territórios otomanos dos Balcãs e Mé-
a imensa vaga de refugiados que provocou, dio Oriente – Anatólia, Levante e Transjordânia. Ter-
permanece viva nas memórias familiares e ritórios onde hoje, em grande parte, se desenrola a
na identidade coletiva de vários povos. Pe- crise dos refugiados. Em resultado de conflitos sec-
los campos de refugiados dessa altura passaram mi- tários e da ascensão dos nacionalismos, a coexis-
098 lhões de alemães, franceses, polacos, checos, judeus tência entre as populações muçulmanas do Império
e gente de muitas outras nacionalidades. Foi, aliás, (turcas, curdas e árabes) e as populações cristãs (gre-
na sequência dessa catástrofe humanitária, que, em gos, arménios, maronitas, assírio-caldeus, etc.) ficou
1951, surgiu a Convenção das Nações Unidas sobre gravemente deteriorada. O mesmo aconteceu à coe-
o Estatuto dos Refugiados. Esta, juntamente com o xistência entre turcos e árabes, com a I Guerra Mun-
Protocolo Adicional de 1967, contém os princípios ju- dial. A guerra entre a Grécia e a Turquia (1919-1922)
rídicos ainda hoje aplicáveis. Evocar os aconteci- originou ainda uma enorme crise humanitária. Os
mentos da II Guerra Mundial é, por isso, tentador. No Estados dos Balcãs e do Médio Oriente modernos
entanto, as comparações entre acontecimentos his- nasceram no meio de tragédias humanitárias e des-
tóricos só poderão ser elucidativas se as situações fo- locações de refugiados.

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rem fundamentalmente comparáveis. A enormíssi-
ma dimensão da catástrofe humanitária provocada A Sociedade das Nações (SdN, 1919), a orga-
pela II Guerra Mundial não a torna uma boa compa- nização precursora das Nações Unidas, te-
ração. Aquilo a que estamos a assistir hoje tem a sua ve de gerir uma grave crise humanitária na
principal origem nos conflitos do Médio Oriente, es- sequência da já referida guerra greco-turca
pecialmente na guerra da Síria. Apesar da destruição e da deportação recíproca de populações,
de centenas de milhares de vidas humanas, a des- envolvendo mais de 1,5 milhões de pessoas. Coube
proporção das situações e da vaga de refugiados que ao norueguês Fridtjof Nansen, que desempenhava o
aflui à Europa é manifesta. cargo de Alto Comissário da SdN para os Refugiados

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– o antecedente do atual Alto Comissariado das Na-
Há, no passado histórico europeu, aconte- ções Unidas para os Refugiados –, um papel de rele-
cimentos que podem merecer paralelis- vo nessa missão. No mundo de há um século, as cri-
mos interessantes intelectualmente e, pro- ses humanitárias no Mediterrâneo oriental e Médio
vavelmente também, mais clarificadores do Oriente ficavam praticamente confinadas aos terri-
tempo presente. Um deles é conhecido na tórios onde ocorriam. Hoje, numa era de globaliza-
história europeia como a Questão do Oriente. O no- ção, a realidade é outra. As centenas de milhares de
me está associado à decadência do “homem doente da refugiados da Síria que procuram asilo em solo eu-
Europa”, ou seja, do Império Otomano, na designação ropeu – numa guerra que já produziu quatro milhões
dada pelo czar russo Nicolau I no século XIX. A Ques- –, mostram amplas e desconhecidas repercussões.
tão do Oriente teve várias crises durante o longo pe- Ironia histórica: o regresso da Questão do Orien-
ríodo histórico que durou. Os seus marcos convencio- te ocorre quando a própria Europa parece ser o novo
nais são o tratado entre a Rússia e o Império Otoma- “homem doente”.

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