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_SOFRIMENTO E _HISTORICIDADE 0 DESAMPARO ETICO-POLITICO | NA CONTEMPORANEIDADE ORG. ia | ELZA DUTRA ee: Scanned with CamScanner Esta obra agrupa estudiosos da fenome- nologia existencial, na interface entre Psicologia e Filosofia, que participaram do III Congresso Internacional de Fe- nomenologia Existencial, ocorrido em Natal, RN, em setembro de 2021. As pa- lestras e conferéncias ministradas pelos convidados do evento compéem este livro e abordam estudos, experiéncias e demais producées de saberes, movidos pelo tema principal do congresso: “So- frimento e historicidade: 0 desamparo ético-politico na contemporaneidade”, sob a otica fenomenolégica existencial. O tema, inspirado pelo cendrio politico e social que o pais vive desde 2018, em razio de uma nova ordem politica que tem se mostrado nefasta aos pilares civi- lizatorios, tais como, por exemplo, saiide, educacao, inclusio e sustentabilidade, segue a linha tematica proposta desde 0 I CIFE em 2017 e seguida pelo II CIFE, em 2019. E, com isso, mantém o propé- sito de oportunizar espacos de debates e reflexdes acerca de questdes pertinentes ao humano e a sua condicao de existente no mundo contemporaneo. . Em um mundo caracterizado pelas mais diversas expressées de sofrimento e en- volto por uma crise sanitaria causada pela Covid-19, é imperioso que a Psico- logia, particularmente em sua vertente fenomenolégica e existencial, desenvol- va reflexées e caminhos de pensamentos acerca dos sofrimentos existenciais na atualidade. Sao tempos atravessados, indubitavelmente, por acontecimentos sociais, éticos e politicos de todas as or- dens, que constituem 0 mundo fisico e Scanned with CamScanner SOFRIMENTO E HISTORICIDADE: o desamparo ético-politico na contemporaneidade Palestras apresentadas no III Congresso Internacional de Fenomenologia Existencial e IV Encontro Nacional do GT- Psicologia & Fenomenologia- ANPEPP hy yy wre all Yor? wt We. yw! ar bate V4 © Tipte Roameninho age 96101 Scanned with CamScanner SOFRIMENTO E HISTORICIDADE: o desamparo ético-politico na contemporaneidade Palestras apresentadas no III Congresso Internacional de Fenomenologia Existencial e IV Encontro Nacional do GT- Psicologia & Fenomenologia- ANPEPP Organizadora Elza Dutra 1* edigdo Rio de Janeiro, 2022 Scanned with CamScanner Copyright@ViaVerita Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nr. 9610 de 12.2.1998, £ proibida a reprodugo total ou parcial sem a expressa anuéncia da editora. Esse livro foi revisado segundo 0 Acordo Ortogréfico da Lingua Por- tuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. EDITORA Via Verita LTDA EDICAO Monica Paape Casa Nova CAPA E PROJETO GRAFICO Arthur Rocha e Giovana Paape Casa Nova DIAGRAMACAO Alexandre Sacha Paape Casa Nova IMAGEM DE CAPA Ivan Cabral REVISAO Samanta Samira Nogueira Rodrigues Dados internacionais para catalogacao na publicacao (CIP) $681 Softimento e historicidade : 0 desamparo ético-politico na ‘contemporaneidade / organizadora Elza Dutra. - 1. ed.~ Rio de Janeiro : Via Verita, 2022. 307 p.; 21cm. “Palestras apresentadas no III Congresso Internacional de Fenomenologia Existencial e IV Encontro Nacional do GT- Psicologia & Fenomenologia- ANPEPP”. Inclui bibliografia. ISBN 978-65-998169-2-5 1. Psicologia fenomenolégica. 2. Psicologia existencial. 3, Sofrimento - Aspectos psicol6gicos. I. Dutra, Elza. CDD - 150.192 Roberta Maria de O, V. da Costa - Bibliotecdria CRB-7 5587 VIA VERITA EDITORA www.viaverita.com.br editorial@viaverita.com-br @via.verita Scanned with CamScanner DIRETOR CULTURAL Marco Antonio Casanova (UERJ) CONSELHO EDITORIAL Marco Antonio Casanova (UERJ) Rébson Ramos dos Reis (UFSM) André Duarte (UFPR) Alexandre Marques Cabral (UERJ) COMISSAO EDITORIAL Joao Carlos Brum Torres (UERS) Giorgia Cechinatto (UEMG) Marco Antonio Casanova (UER)) Deborah Guimaraes (UNIFESP) Robson Ramos dos Reis (UFSM) Marcos Gleizer (UERJ) Michael Steinmann (Stevens Institute for Technology) Marlene Zarader (Universidade de Montpellier) Irene Borges Duarte (Univ. de Evora) Roberto Novaes de $4 (UFF) Ernildo Stein (PUC-RS) Cristine Mattar (UFF) Scanned with CamScanner SUMARIO Apresentagaio 11 Sofrimento e historicidade: o desamparo ético-politica na contemporaneidade Elza Dutra 15 Situagio hermenéutica e projeto de mundo: habitar como? Irene Borges-Duarte 29 Sofrimento psfquico no contemporaneo: a ansiedade como fenémeno de uma era Joelson Tavares 49 Desamparo ontolégico e desamparo ético-politico: interpelagdes a psicologia contemporanea Cristine Mattar 65 Da Dor ao Softimento Historicamente Constituidos: Expressdes Etico-Politicas Singulares na Contemporaneidade Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 89 Como uma tessera: a hospitalidade como modo de vida Josemar de Campos Maciel 101 Owvindo o falar: a solicitude de escutar o dizer do sofrimento contemporaneo Henriette Tonetti Penha Morato 119 i Scanned with CamScanner O Corpo a Cada Vez Meu: Ensaio de uma Fenomenologia da Corporeidade Gabriel Barroso 133 Tempo e melancolia: transtornos de comportamento bipolar e depressio Marco Casanova 151 O sofrimento e o desamparo no contexto brasileiro atual Ida Elizabeth Cardinalli 173 Fenomenologia dos corpos encruzilhados: sobre crises e cruzos nas Pombagiras de Umbanda Alexandre Marques Cabral 187 Sofrimento e clinica psicolégica como situaco hermenéutica Carmem Licia Brito Barreto 201 Mensagem de um adeus: compreendendo bilhetes de suicidio a luz da ontologia heideggeriana Ana Karina Silva Azevedo 213 Sofrimento psicolégico de universitdrios ingressantes ~ entrar na universidade sem nela entrar Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista 227 Projeto Escuta Solidaria na Universidade: mundaneidade de ser psicélogo Karla Carneiro Romero Correia, Anna Karinne Melo, Virginia Moreira 243 Scanned with CamScanner Luto na Pandemia de Covid-19: Por Quem Nos Enlutamos? Joanneliese de Lucas Freitas 265 A perspectiva ético-estético-politica da clinica da Gestalt-Terapia Ménica Botelho Alvim 279 Contribuigses fonomenoligicas as psicoterapias humanistas Georges Daniel Janja Bloc Boris, Joao Felipe Leite Costa 293 Scanned with CamScanner APRESENTAGAO Esta obra agrupa estudiosos da fenomenologia existen- cial, na interface entre Psicologia e Filosofia, que participaram do III Congreso Internacional de Fenomenologia Existencial, ocorrido em Natal, RN, em setembro de 2021. As palestras conferéncias ministradas pelos convidados do evento compoem este livro e ahordam estudos, experiéncias e demais produgées de saberes movidos pelo tema principal do congresso: “Safrimento e historicidade: 0 desamparo ético-politico na contemporaneidade”, sob a ética fenomenoldgica existencial. © tema, inspirado pelo cenario politico e social que o pats vive desde 2018, em razio de uma nova ordem politica que tem se mostrado nefasta aos pilares civilizatérios, tais como, por exemplo, satide, educagao, inclusio e sustentabilidade, segue a linha tematica proposta desde o I CIFE em 2017 e seguida pelo II CIFE, em 2019. E, com isso, ele mantém © propésito de oportunizar espacos de debates e reflexes acerca de questées pertinentes ao humano e & sua condi¢fo de existente no mundo contemporineo. tema do III CIFE foi pensado como uma convocasio as pessoas identificadas com as ideias fenomenolégicas e interes- sadas pelas facetas éticas e politico-sociais que formam o cenrio epocal onde as existéncias se constituem, para se debrugarem sobre as questées que fundam o nosso tempo. Em um mundo carac~ terizado pelas mais diversas express6es de sofrimento e envolto por uma crise sanitdria causada pela Covid-19, é imperioso que a Psicologia, particularmente em sua vertente fenomenoldgica e existencial, desenvolva reflexdes ¢ caminhos de pensamentos acerca dos sofrimentos existenciais na atualidade. Sao tempos atravessados, indubitavelmente, por acontecimentos sociais, éticos e politicos de todas as ordens, que constituem o mundo fisico hermenéutico do homem na atualidade, e que dizem sobre o seu modo de habitar o mundo. Poder reunir pesquisadores académicos, profissionais € estudantes em um tempo marcado por uma crise sanitdria e por todas as implicagées dela advindas é uma tarefa ardua e que exige, 11 Scanned with CamScanner diante da novidade das novas tecnologias virtuais, criatividade, coragem e motivacéo para se operacionalizar um evento de tal natureza, em meio a uma atmosfera sombria e pesarosa. A co- municagao totalmente on-line, imprescindivel nesses tempos de pandemia, tornou-se um dispositivo extremamente importante, tanto para que os espacos de cuidado das praticas psis mantivessem o seu sentido de existir, quanto para que pudéssemos concretizar um projeto como o ITI CIFE, um evento cientifico internacional, na modalidade virtual e, sobretudo, sob uma atmosfera de pesares ¢ incertezas. A despeito dos tempos dificeis que temos vivido nos tiltimos dois anos, pudemos dialogar e pensar sobre o ser-no-mundo e as rupturas do ethos que promovem sofrimentos, desamparo e desenraizamento. E dessas facetas do humano que este livro trata, a partir dos olhares de estudiosos da existéncia, que buscam entender como as crises sanitéria, politica e ética que atingem 0 mundo, especialmente o Brasil, afetam 0 nosso modo de ser € estar-no-mundo. Portanto, o significado deste livro tem um valor especial, que transcende o sentido restrito de uma produgao cientifica, uma vez que nesse momento histérico em que vivemos, reunir estudio- sos num encontro virtual e poder debater e buscar caminhos, que apontem para a compreensio e reflexio do que estamos vivendo, representa um ato de resisténcia, uma ago politica. E esse foi o nosso maior desejo no processo de organizagio do congresso, desde o momento em que ele comegou a ser gestado, traduzindo-se como um convite aos estudiosos da fenomenologia para participarem de um ato, antes de tudo, politico e de resisténcia, que os tempos atuais nos demandam. Nao poderia encerrar essa apresentacio sem antes registrar um agradecimento a equipe organizadora do III CIFE, por todos 0s atos, iniciativas e posturas que permitiram 0 evento acontecer de forma leve e acolhedora, apesar dos tempos de indignagao, in- certezas, perdas ¢ lutos em que vivemos. A todos que participaram desse encontro, um agradecimento especial, por nos ajudarem a recuperar, coletivamente, a esperanca em melhores tempos. 12 Scanned with CamScanner Desejamos que o leitor encontre, nos escritos aqui apresen- tados, novos e renovados motivos e possibilidades de compreensoes da existéncia e das facetas que nos tornam humanos. Profa. Dra. Elza Dutra-UFRN Presidente do III CIFE Coordenadora do GT- Psicologia & Fenomenologia- ANPEPP 13 Scanned with CamScanner Profa. Dra. Elza Dutra Sofrimento e historicidade: 0 desamparo ético-politico na contemporaneidade! Profa. Dra, Elza Dutra PPgPsi-UFRN Bom dia a todos e todas! Sejam muito bem-vindos ao III CIFE! Thiciamos o nosso evento com um video de saudagio a todos que aqui estao. Trazemos cenas da nossa cidade, Natal, e de eventos ante- riores, na intengdo de revivermos momentos, apreciarmos as belezas naturais ¢ urbanas da nossa terra e recordarmos um tempo que hoje parece distante, diante das circunstancias nas quais nos encontramos. Nesse momento inicial gostaria de, em nome do congresso e equipe organizadora, expressar a nossa tristeza e pesar pelas mais de 600 mil mortes ocorridas no Brasil, causadas pela Covid- 19. Estamos todos enlutados e pesarosos pela atmosfera de perdas e saudade que paira sobre 0 nosso pais, e solidérios com aqueles que sofrem e sofreram com a partida de amigos e entes queridos que perderam a vida nessa tragédia que se abateu sobre o mundo. Gostaria de agradecer, desde j, a todos os participantes desse evento, especialmente aos nossos colegas palestrantes e con- vidados, que aceitaram o convite para aqui estarem compartilhando © seu tempo e, mais do que isso, por aceitarem o desafio de cons- truirmos juntos e de forma virtual, esse encontro. Gratidao a todos! Sejam todos muito bem-vindos ao III Congresso Interna- cional de Fenomenologia Existencial e ao IV Encontro Nacional do GT- Psicologia & Fenomenologia- ANPEPP. Este ano, em razio da crise sanitéria que vivemos hé quase dois anos, fomos obrigados a transformar o que seria um encontro presencial, em virtual. Por outro lado, a crise tem propiciado, desde o seu inicio, 1 Palestra de Abertura proferida no III Congresso Internacio- nal de Fenomenologia Existencial e IV Encontro Nacional do GT- Psicologia & Fenomenologia, em Natal- RN, no dia 22 de setembro de 2021. Este texto ter o formato de palestra, tal como indicado aqui. 15 Scanned with CamScanner Sofrimento e historicidade uma oportunidade de nos reinventarmos, de refletirmos sobre a vida ea existéncia, numa época de incertezas e de antincios concretos da finitude. Pensar a existéncia, o mundo ¢ o momento de crise sanitaria ¢ politica tornou-se uma inspirago para o tema principal do nosso evento, pois nao ha como vivenciar esse momento histérico e de crise humanitéria que estamos testemunhando sem que se reflita coletivamente sobre o mundo, a histéria e as situagoes de desamparo que experimentamos em nossa dimensio singular e, principalmente, coletivamente. Portanto, nada mais oportuno do que abordar, num evento como o que agora se inicia, o desamparo que temos vivido nos ultimos tempos, em razdo da pandemia da Covid-19, a qual, diga-se de passagem, vem acompanhada de uma crise humanitériae politica A pandemia que assola o mundo desvelou a inquestiondvel finitude humana, condigao da existéncia, revelando medos, temores, vulnerabilidades e, principalmente, a sensago e a consciéncia de um desamparo que, embora seja originario, tem sido chamado a se revelar em situagdes-limite como aquelas as quais temos sido expostos nesses tempos sombrios e de tormenta. E nesse cendrio gerador de sensagées de estranhezas temores que este evento acontece. Nao poderiamos abracar um tema tio oportuno a ser pensado no ambito de uma psicologia de bases fenomenolégicas, que tem como ideia principal o “ir as coisas mesmas”, e que, desde Husserl, propée a indissociabilidade entre ser humano e mundo. Como pensar a época em que estamos vivendo sob a lente fenomenolégica? Seria a politica um tema adequado € pertinente a ser tematizado no contexto do sofrimento e, por extensio, no ambito das praticas clinicas? Esse tema foi proposto no intuito de provocar os que pensam, estudam e trabalham a partir da lente fenomenolégica existencial, com 0 propésito de criar uma oportunidade para que nos debrucemos sobre 0 cenério que forma o nosso horizonte histérico e as suas implicagdes nas existéncias. Podemos dizer que aqui estamos reunidos para refletir sobre os dias de “peste”, de flagelo, pois é assim que temos vivido, em algum sentido e em muitos momentos dessa crise, Camus (2019), em sua obra A peste, reflete sobre a estranheza com que os seres humanos lidam com a crise e que diz muito sobre o que temos testemunhado nesses dias. Diz el 16 —_— a Scanned with CamScanner Profa. Dra. Elza Dutra O flagelo nao est a altura do homem; diz-se, entao, que 0 flagelo ¢ irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, séo os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois néo tomaram as suas precaucdes. Nossos concidadaos nao eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possivel para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossiveis. Continuavam a fazer negécios, preparavam viagens e tinham opinides. Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussées? Julgavam-se livres e jamais alguém serd livre enquanto houver flagelos. (p. 41). E sobre essa realidade da pandemia como um flagelo que tomou de assalto a vida no planeta, que estamos aqui pensando juntos sobre o horizonte histérico que faz cendrio aos acontecimentos das nossas vidas nesse momento, tal como referido por Camus. Uma vez mais retomo as palavras desse fildsofo, para retratar a atmosfera afetiva que, imagino, todos nés sentimos, a partir de nés mesmos, a0 nos percebermos paralisados na existéncia, como se estivéssemos encalhados no proceso de viver, como bem traduz Camus (2019, p. 72): E assim, encalhados a meia distancia entre esses abismos e esses cumes, mais flutuavam que viviam, abandonados a dias sem rumo e recordagées estéreis, sombras errantes, incapazes de se fortalecerem a nao ser aceitando enraizar-se na terra de sua propria dor. A atmosfera retratada aqui pelo fildsofo expressa os afetos que percebo presentes nesses tempos de pandemia. O aumento no nimero de pessoas que procuram atendimento psiquidtrico e psicolégico, as altas taxas de suicidio, sindromes do panico e depressio, entre outros, dizem do sofrimento que se evidenciou ao longo da pandemia, como tém mostrado intimeros estudos. ‘Ao lado desse cendrio de crise sanitaria, permanece uma crise 17 Scanned with CamScanner politica em nosso pais, o que tem agravado os mal-estares, além de alimentar a sensagio de desamparo e impoténcia de todos nés, Com isso introduzimos um sofrimento indiscutivelmente implicado no contexto politico, o que pode parecer estranho, principalmente aqueles do ambito da psicologia que ainda con- sideram que psicologia e, principalmente, a psicologia clinica, néo teria qualquer relagio com politica. Pois bem, o tema desse evento é um chamado para revermos essas posig&es € pensarmos sobre © que nés, que abracamos uma lente fenomenoldgica do mundo, temos a dizer sobre isso. O termo politica contempla varias facetas em seus signi- ficados, sendo a mais conhecida delas a politica no sentido insti- tucional. A presenga do uso do termo politica com esse sentido acaba por ocultar o “sex” politico que ela encerra e que habita todos nés, Nessa diregio vale lembrar o sentido grego de politica, o qual tem origem na polis, ou seja, no cidadao, como bem refere Arendt (2001), ressaltando que, “a rigor, a polis nfo é a cidade-estado em sua localizagio fisica: é a organizagéo da comunidade que resulta do agir falar em conjunto, ¢ o seu verdadeiro espaco situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propésito, néo importa onde estejam”. E continua: “Trata-se do espaco de aparéncia, no mais amplo sentido da palavra, ou seja, o espaco no qual eu aparego aos outros € os outros a mim; onde os homens assumem uma aparéncia explicita, ao invés de se contentar em existir meramente como coisas vivas ou inanimadas”. (p. 211). Por isso, causa estranheza quando ouvimos alguns psicélogos, principalmente no ambito da clinica, que, ao serem interrogados sobre a presenca da politica em suas praticas, costumam responder que nao gostam de falar sobre politica. Aqui se vé claramente o sentido institucional e partidario do termo politica. Porém, é possivel recorrer a filosofia e a outras disciplinas no intuito de que elas nos ajudem a compreender a politica de outra forma, como parte da condi¢éo humana, A esse respeito, Hanna Arendt (2001) é muito clara ao afirmar, em sua obra A Condigdo Humana, que “todos os aspectos da condigo humana tém alguma relagao com a politica’. (p, 15). A politica encontra-se em toda ago humana, uma vez que a agao, segundo ela, seria “a tinica atividade que se exerce diretamente entre 18 Se = Scanned with CamScanner Profa, Dra. Elza Dutra os homens sem a mediago das coisas ou da matéria, corresponde a condigo humana da pluralidade, ao fato de que homens, e nao o Homem, vivem na terra e habitam o mundo” (p. 15). Portanto, estamos falando de condigao humana, sobretudo pelo fato de sempre estarmos atravessando €pocas, como a atual, nas quais habitar o mundo e 0 seu horizonte histérico afeta, ou melhor, abre possibilidades de aces éticas ¢ politicas. O que estamos vivendo aqui, hoje e nos préximos dias, constitui uma ago atravessada por atitudes, posturas, sentidos, atmosferas afetivas e aces politicas. Especialmente quando trazemos a tona 0 cenfrio politico, sanitario e social atual que vai incidir diretamente sobre as nossas existéncias, projetos de vida e de pais, enfim, sobre a sobrevivéncia do planeta terra. O que pensar de todos esses acontecimentos politicos e qual o lugar de pensamento que a fenomenologia existencial ocupa num evento como esse que se inicia agora e que certamente iré repercutir nas nossas existéncias particular e coletivamente? Na verdade, estamos vivendo uma crise na democracia, expressdo essa frequentemente ouvida e lida nos tiltimos tempos. A respeito de tal crise, Casanova, no preficio do livro de André Duarte (2020), Pandemia e Pandeménio, refere-se a crise da demo- cracia em que reconhecidamente vive 0 nosso pais, como o “desastre brasileiro”, diante da turbuléncia que o pais vive desde a eclosio de um governo que, além da perversa gestio da pandemia, tem desenvolvido uma administragao do pais que se mostra nefasta € destrutiva em varios ambitos. Desde o ambiental, passando pelo social, até 4 dimensao cientifica e varias outras, que pedem uma andlise sob a ética da politica, do neoliberalismo e da necropolitica. No entanto, nao nos deteremos nessa andlise. Permaneceremos no Aambito da psicologia, tentando langar provocagdes sobre o modo como estamos habitando o mundo nesses tempos nebulosos em que vivemos. Nesse sentido, recorremos mais uma vez a Duarte (2020), que usa a expresso tempos de “pandemia e pandeménio” para descrever o momento atual, que seria um “modo brasileiro de gestio da vida e produgao da morte” (p. 17). Com essa ideia ern mente, podemos dizer que a pandemia, aliada & crise politica no Brasil, evelou as nossas cronicas mazelas,e, sobretudo, trouxe a tona as facetas mais cruéis e obscuras de grande 19 Scanned with CamScanner Softimento e historicidade parte da populagao brasileira. Como psicdloga, me ocorre lembrar nesse instante a nossa categoria e profissio. Como compreender,a partir das préticas psis, as quais chamamos de cuidado, esse cenirio atual favorecedor de sofrimentos com os quais lidamos em nossa propria vida e com aquelas que precisamos nos haver nas escutas que surgem nos consultérios ¢ atendimentos remotos? Estaria uma teflexio politica e ética muito distante das nossas praticas, sendo até mesmo incompativel com uma postura profissional, como alguns entendem? Seria o sofrimento originado unicamente da natureza subjetiva, fundada numa nogio solipsista de subjetividade? A lida do psicélogo com o sofrimento deveria se apoiar apenas em teorias ¢ técnicas que sustentariam a sua pratica, ou ser que essa lida nao exige uma reflexio mais ampla que inclua o sujeito no mundo, mundo esse que, principalmente nos dois tiltimos anos, vem sendo assolado globalmente por uma crise nunca vista nesse século? Tal ideia remete ao carter histérico do sofrimento, tio oportuno de ser pensado nesses tempos em que as depressdes, os suicidios, os temores € panicos surgem como sintomas de um sofrimento que ¢ epocal, como mostra Cristine Mattar (2021) em seu livro sobre depressio. No prefiicio dessa obra, Casanova afirma: “os softimentos, por mais que surjam na dimensio éntica, desde sempre esto relacionados ou em sintonia com a dimensio ontolégica”(p. 10). © que aponta para um caminho a ser percorrido por nés, psicdlogos e psicdlogas, que adotamos uma ética fenomenoldgica sobre os fendmenos humanos. Sobre o desamparo, este é visto pela psicandlise, tal como apresentado no Editorial da APPOA (2014, p. 7), como “uma ex- periéncia fundamental da condi¢ao humana”, em que, nas situayées de angustia, confronta o sujeito com “o seu estado de desamparo infantil origindrio”. Nesse sentido, o desamparo seria uma condigi0 origindria desde que o homem vem ao mundo. Podemos pensar que o mesmo pode ser pensado tendo em vista a fenomenologia. Arrisco dizer que é possfvel que a negatividade e a indeterminagéo do Dasein, junto as situagdes do mundo, o levam a se confrontar com o desamparo. Estar-no-mundo, numa determinada época ¢ horizonte histérico, pode suscitar o desamparo, na medida em que a condigéo humana nos coloca em contato com situagdes existenciais favorecedoras de experiéncias de vulnerabilidades, como esta afirmado no mesmo editorial (p. 7): “Toda vez que 20 ad Scanned with CamScanner Profa. Dra, Elza Dutra ficam esquecidas a fragilidade ea finitude da condigao humana € que ideais so impostos em nome do progresso, da razio ou da f€,0 resultado pode ser da ordem da barbirie”. Parece que o autor esta falando dos acontecimentos s6cio-politicos dos tltimos dias! E sobre a ética, o que temos a dizer? A nogio de ética como ethos, adotada aqui, evoca o sentido de morada ¢ terra natal. Quando vivemos uma situaco de extrema ameaca, de vulnerabili- dade tal que anuncia e fragmenta o ethos, o sofrimento des-oculta e desvela o desamparo, esse que é concebido como uma condigao primétia e origindria. Podemos refletir sobre como as turbuléncias oriundas de uma crise sanitéria como a que atravessamos afetam as existéncias, uma vez que somos seres-no-mundo langados na abertura em nossa condigao de existentes. As situages-limite, como jé pensava Karl Jaspers, nos mergulham no sofrimento ¢ nos fragmentam em nossa condigo ética de pertencer e habitar o mundo. Como diz o filésofo, (1959, Il, p. 125), “Em todas as situacdes-limite me foi retirado, por assim dizer, 0 cho por debaixo dos pés”. No caso da pandemia, pensamos tratar-se de uma situacao-limite, pois, além de ela nos tirar o cho, dela nfo temos como escapar ou no nos deixar afetar: nela estamos expostos sem certezas tiltimas a tudo aquilo que a situagao nos impGe. Enquanto transitamos pela existéncia,e aqui retomando os psicélogos clinicos, nio s6 por nos constitui mos como Dasein, mas igualmente pelo fato de que atuamos no Ambito da clinica e, por isso, somos inegavelmente afetados pelos acontecimentos do mundo, encontramo-nos atravessados pelo horizonte histérico nos softimentos que acolhemos. Portanto, viver uma pandemia, sobretudo do modo como temos vivido no Brasil, como “pandemia e pandeménio”, nos obriga, como profissionais do cuidado, a interrogar os fendmenos ¢ os afetos que dai surgem. Medo do virus, impoténcia, tédio, suicidio. Sobretudo, desamparo existencial. Sim, vivemos na indeterminagao, na negatividade, na falta. O registro ontolégico, como nos lembra Safra (2004), deve ser ressaltado, ao contrdrio do entendimento do sofrimento como estritamente psiquico, demandando o uso de intervenges técnicas, quando o que se pede é 0 exercicio do cuidado e a reflexio sobre o “entre” em que acontece a existéncia. Marta Rosmaninho 2i CRP 06/66101 Scanned with CamScanner Sofrimento e historicidade Momentos e épocas de crise levariam ao esfacelamento e ruptura da ética humana. Nao apenas como psicoterapeutas, filésofos e psicdlogos, mas antes de tudo como cidadaos perten- centes & raga humana, precisamos cuidar do humano e da sua motada, Vivemos na modernidade, portanto, reconhecemos nao 66 08 avangos tecnolégicos ¢ os beneficios que eles nos trazem em todas as éreas, mas igualmente reconhecemos o visivel adoe- cimento humane, principalmente nesses tempos de crise sanitaria ¢ politica. Sic doengas do corpo e da alma, Softimentos préprios da condigio humana, porém agravados, provocados ¢ favorecidos pelas fraturas do ethos humano no cenario histérico do mundo contemporineo. Testemunhamos o descaso com a vida humana, com o planeta, o esfacelamento cultural e 0 crescimento de ideias fascistas e obscurantistas no Brasil e no mundo, as quais atravessam a vida em sociedade e os problemas do nosso tempo. A esse respeito, Safra (2004) jé dizia que, Cada vez mais nos deparamos na clinica, com um tipo de pro- blematica humana que nos coloca, como foco e com urgéncia, 0 restabelecimento do ethos, o que nos leva ao estabelecimento de uma situacao que possibilite o acontecer da condi¢ao humana, a partir da compreensao daquilo que é 0 ontolégico no ser humano. f uma clinica que exige que o profissional possa estar situado no registro ético-ontolégico, a fim de que possa ouvir a dor do seu paciente no registro de seu aparecimento (p. 33). ‘Além do mais, Safra (2004) aponta o processo de globali- zagao e hegemonia da técnica, ao que cabe acrescentar a questo politica e social, como provocadores do esfacelamento do ethese do desamparo humano. E afirma que: “Nao se pode abordar a condicio humana eximindo-se de pensar 0 homem em sua historicidade”, pensamento esse que vai ao encontro das ideias do filésofo Martin Heidegger, inspirador do tema condutor desse evento. Qual 0 propésito de propormos um tema que ressalta a historicidade? Trago Casanova mais uma vez, que nos ajuda a entender o alcance dessa expressio, Ble diz: “Nés nunca estamos primeiro dentro, para posteriormente experimentatmos 0 fora, 22 4 Scanned with CamScanner Profa. Dra. Elza Dutra mas, a0 contrario, nés j4 estamos sempre fora, jogados em um campo para o qual toda interioridade nao apenas é inacessivel, mas também inutil” (Casanova, 2017, p. 32). que nos leva a reiterar que as situacdes politicas e as rupturas do ethos que vivemos, prin- cipalmente em tempos de crise e situag6es-limite como aquelas testemunhadas ha quase dois anos, criam um cendrio histérico e uma atmosfera afetiva geradora de mal-estares, sofrimentos e desamparo existencial. Como lidar com a ameaga de morte concreta que surge da convivéncia com um virus invisivel? Onde colocar a dor do luto, a auséncia de entes queridos e seus rituais de despedida? Todos esses so acontecimentos que compéem o nosso cenirio epocal e constituem o nosso modo de estar no mundo. Como nao considerar essa realidade, a qual podemos chamar de dimensao politica, nos sofrimentos que vemos chegar aos nossos atendimentos? Caberia, aqui, uma postura nada incomum entre psicélogos, ao dizerem que “nao gostam de politica” ou que “a po- litica nao deve entrar na clinica”? Esquecendo que politica, como jé disse Hanna Arendt, é uma ago da condi¢ao humana. Tudo é political Ao invés disso, concebe-se o ser humano como um ser, cuja supremacia se encontra em sua esséncia, individualidade ou vontade de ser, destituindo-o da sua inerente e inegavel dimensio de ser-no-mundo. Para isso, basta ver os intimeros coachs da vida e as diversas estratégias psicolégicas para se alcangar metas e resol- ver problemas de autoestima, prometidas e propagadas em redes sociais, recaindo no que Han (2015) j4 nomeara de sociedade da positividade e do cansaco! Nessa mesma diregio seguem as palavras de Irene Bor- --se 4 arte e A técnica e aos modos ges-Duarte (2019), ao referi de compreender “o que no mundo hé que compreender e fazer” (p.9). Ao que ela assinala que a compreensio desse viver e fazer sho epocais, e, assim sendo, esse agir do humano se relaciona nao 86 a0 politico e ao ético, mas também A vida cultural e cotidiana. Portanto, o nosso modo de ser e viver sao reflexo do cendrio po- litico e cultural em que vivemos na cotidianidade. Todavia, essa posicdo da Psicologia, podemos dizer, € histérica. S6 para contextualizar um pouco esse cendrio, é im- portante lembrar a crise da psicologia nos anos de 1970-1980, 23 Scanned with CamScanner Sofrimento e historicidade a qual repousava na insatisfagio do papel que a psicologia vinha desempenhando. Nessa época, a questo que estava em voga era: “qual a fungao social do psicdlogo?” E agora, em meio a uma pandemia e diante de uma crise social e politica em que 0 pais est4 mergulhado, o que, de certo modo, nos despertou, aos sacolejos, de uma inércia diante de violéncias de todas as ordens que envolvem um mundo que pode parecer distante ¢ fora da bolha em que nos protegemos em nossa condigio de classe média letrada e branca, seria 0 caso de interrogarmos: qual a telagao que 0 cenirio politico tem com os softimentos atuais? Com isso, nos vimos convocados a assumir uma posigao, principalmente nos trés tiltimos anos, desde o inicio da gestao do governo que atualmente preside o pais. Diante da tamanha desigualdade social que habita o Brasil, assolado por uma turbuléncia politica © por uma crise sanitéria jamais vista neste século e gerag0, nos demos conta, como cidadaos e psicdlogos, que precisamos reagir. Diante de um cendrio de violencia generalizada, de uma enorme desigualdade social, da destruigio de pilares civilizatérios como educacio, cultura e direitos humanos, me preocupa observar que psicélogos ainda se mantenham ancorados numa postura de neutralidade, protegendo-se atrés de palavras como “tolerancia’, as absurdas e indignantes posigdes politicas, e agindo em nome de uma neutralidade e postura profissional, quando o que esta em jogo é algo maior, que transcende uma postura idealizada como estritamente “profissional e ética”, limitada ao Cédigo de Etica da profissio. Nés, na verdade, estamos diante de uma crise ética, no sentido de ethos. Uma crise social e politica que incide diretamente sobre a dignidade humana, limitando 0 exercicio da liberdade de poder-ser e, sobretudo, atingindo o pacto social que permitiria uma convivencia civilizada e nao beligerante, Um cenério que chega ao espaco da clinica psicolégica, espago esse que representa ethos, no acolhimento ao ser-com € para o qual as invisibilidades recorrem junto ao sofrimento que isso representa. Com essa realidade em vista, me pergunto como as prati- cas clinicas estariam se articulando ou entendendo as dimensées social ¢ politica que atravessam os sofrimentos que nos chegam nos espacos de cuidado, Qual a posigao da Psicologia diante desse cenério? Se nao refletirmos sobre isso, poderiamos pensar, tal 24 « Scanned with CamScanner Profa. Dra, Elza Dutra como se fazia nos duros anos da ditadura, principalmente no que respeita ao campo da clinica, que a clinica, assim como os seus profissionais, estaria a servigo de uma psicologia de ajustamento as determinagées sociais e do assujeitamento do cidadao as opressdes e,com isso, contribuindo para a sua e nossa alienagao. Diante de todas as provocagées ¢ reflexdes desenvolvidas até aqui, é possivel dizer que estamos falando, em resumo, de como estamos habitando o mundo. Essa é uma nogao particularmente preciosa. Pois significa um chamado a se pensar por uma lente que amplia a existéncia na diregao de um cenério histérico, na diregao do reconhecimento de uma quadratura, como pensa o filésofo Martin Heidegger. Mas, a0 mesmo tempo, essa nogao remete ao sentido de trama de sentidos que formam o mundo para cada um de nés em sua singularidade, evoca a liberdade e, princi- palmente, fala de enraizamento e pertencimento. Diz da demora nas coisas e do resguardo de cada coisa em sua esséncia. Assim, caminhamos para o fechamento dessa mensagem assumindo que, ao final, o tema do nosso evento representa, antes de tudo, uma convocagéo para se pensar como estamos habitando o mundo, numa época caracterizada por uma crise de varias dimensées. Como diz o filésofo da fenomenologia hermenéutica, Heidegger, “tao logo, porém, o homem pensa o desenraizamento, este deixa de ser uma miséria. Rigorosamente pensado e bem resguardado, o desenraizamento € 0 tinico apelo que convoca os mortais para um habitar”. (Heidegger, 2001, p.141). Nao poderia encerrar essa fala de boas-vindas sem deixar uma mensagem de esperanga que possa fazer morada em nosso habitar o mundo. Esperancar, como diz o autor da Pedagogia do Oprimido, é resisténcia em nosso pais. Assim como sonhar, pois sonhando nutrimos a esperanga. Em homenagem ao centenirio desse ilustre brasileiro e pernambucano Paulo Freire, deixo aqui uma mensagem final que reflete o sentimento ¢ movimento que espero possamos alimentar em nossas vidas e no mundo. Nés, mulheres e homens, viramos seres na historia que nao prescindem do amanha. Nés somos seres em busca sempre de perspectivas de um amanhé que por sua vez nao esta ali a 25 Scanned with CamScanner Sofrimento e historicidade espera da gente, mas que € 0 resultado do que a gente faga pela transformagao do presente que a gente vive com a ilumina¢ao do ontem que a gente viveu. Ora, se nés somos seres incapazes de abandonar a perspectiva de um amanha que tenha que ser feito por nés, como tirar a perspectiva histérica? Nao é pos- sivel viver sem sonho enquanto projeto, enquanto programa (Freire, 2021). Feliz evento para todos! Muito obrigada! 6 ad Scanned with CamScanner Profa. Dra. Elza Dutra Referéncias Arendt, H. (2001). 4 condigao humana, Rio de Janeiro: Forense Uni- versitaria. Bauman, Z. (2007). Tempos liquidos. R. Borges- Duarte, Irene. (2019). Arte e Téonica em Heidegger. R, Casanova, M. (2017). Mundo ¢ Historicidade. Leitura fenomenoldgica de Ser e Tempo. RJ.: Via Verita. Camus, A. (2019). A peste. 278 edigao, Rio de Janeiro.: Record. Duarte, A. (2020)..4 pandemia e 0 pandeménio: ensaias sobre a crise da democracia brasileira. R.J.: Via Verita. Freire, P. (2021). Documentirio exibido na TV Cultura. Acessado em 15/09/2021. https://www.youtube.com/watch?v=tG_pVkhzrle Han, Byung-Chul. (2015). Sociedade do cansaro. Petropolis, R.J.: Vozes. Heidegger, M. (2001). Ensaios e Conferéncias. 28, Ed. Petropolis: Vozes. Jaspers, K. (1959). Filosofia, 2 volumes. Madrid: Universidad de Puerto Rico, Mate, Cristine (2021). Depressao: doenga ou fenémeno epocal? RJ.: Via erita. APPOA. (2014). Desamparo e Vulnerabilidades. Revista da Associagao Psicanalttica de Porto Alegre / Associagdo Psicanalitica de Porto Alegre. n. 45-46, jul.2013/jun. Safra, G. (2004). A po-ética na clinica contempordnea. Aparecida, S.P.: ideias e Letras. 27 Scanned with CamScanner Irene Borges Duarte Situagao hermenéutica e projeto de mundo: habitar como? Irene Borges-Duarte Universidade de Evora A atual situagdo socio-sanitaria, como consequéncia da pandemia global e totalitéria, que assola o nosso estar no mundo, cia condigdes de especial acuidade para pensar o projeto de mundo, a que Heidegger, a partir de meados do século pasado, em situagao de pés-guerra, chamou “habitar”. Para ele, este projeto, eminen- temente poético, € inevitavelmente coalescente com o projeto tecnolégico, a que chamou Ge-Stell, podendo, contudo, talvez, resgatar a autenticidade do enraizamento na terra e, nessa medida, dando um passo atrés, salvar o ser humano em propriedade. A questo, que ponho, interessa ao fildsofo e, de forma geral, ao ser humano que cada um de nés é ~ mas, por isso mesmo, também a0 psicélogo, no quadro da sua intervencao social e clinica. Tem, pelo menos, dois vetores de interrogac4o, de que deriva um terceiro: (1) E possivel esse “passo atras” na direcao de um habitar auténtico? (2) Se o fosse, de que modo seria alcanc4vel? E, como corolario desta interrogacao, (3) de que modo a agao clinica poderia con- tribuir para essa finalidade? Para responder-lhes, procurarei tirar partido da linguagem do jovem Heidegger, pondo-a em interagio com a do mesmo pensador, nos anos de 1950-60. Encontro no conceito de “situagio hermenéutica”, inicialmente definido em 1922, no Natorp-Bericht, e desenvolvido em Ser e Tempo, mas, aparentemente submergido nos anos a vir, o fio da meada para desenrolar adequadamente este processo, Exposta deste modo, tratar-se-4 de mostrar como, partin- k do de uma situagao hermenéutica (sempre) concreta e culturalmente determinada, pode ser possivel que esta se transforme, para cada um de nés, criando-se condigdes de outra forma de vida, ou seja, de outro projeto de mundo. Este processo transformador nao se da sem sofrimento: o sofrimento é, justamente, a hermenéutica da 29 Scanned with CamScanner Situagio hermenéutica e projeto de mundo dor, que, padecendo-a— como se diz — em corpo e alma, viabiliza a mudanga, a passagem a outra situagao. Haverd, naturalmente, que aclarar os conceitos: situagao hermenéutica, projeto de mundo, com-posi¢ao tecnolégica, habitar pottico, dor e softimento. Todos eles implicam essa particular forma de compreender o estar a ser humano, que se centra nao na sua mera concretude factica, nem no seu cardcter puramente ontolégico, mas na forma hibrida do éntico-ontoldgico como caracter do Dasein, bindmio (definido em Ser e Tempo) de que Heidegger nunca prescindiu, mesmo se nem sempre insistiu nesse particular jogo linguistico. Trata-se, na verdade, de pensar - com Heidegger, mas num caminho que é 0 nosso — a “nossa” situacao hermenéutica’, no seu cardter singular, em cada caso, ¢ servir-nos dessa linguagem para uma apropriacao do que nos é dado viver, sofrendo, e para uma possivel (re)orientagao da nossa agao, dela resultante. Vou comegar pelo caréter eminentemente humano que €0 ser projeto e ter projeto(s). 1. O projeto de mundo(s) Nos Conceitos fundamentais da Metafisica (Heidegger, 1983), 0 ser humano, enquanto Dasein, é caracterizado como “formador de mundo”, Wéltbildend, por contraste com o animal, que esta con- finado ao mero ambiente ou mundo circundante (Umwel£), pelo que pode dizer-se que é “pobre” (de mundo). Anos mais tarde, 0 proprio Heidegger, em autocritica, dird que, em sentido préprio, 0 animal nem sequer tem “mundo”, pelo que nao tem sentido falar aqui de “pobreza” (Heidegger, 1989: 277). O que esta em questio 2 Retomo aqui, numa abordagem sistematica, aquilo que aparecia como pano de fundo num texto anterior, dedicado ao mesmo interesse de pesquisa no contexto clinico. Veja-se Borges-Duar- te, 2020. 3 Nos Beitréige (GA 65, § 154), ao reflectir sobre 0 conceito de “vida”, Heidegger corrige a sua anterior compreenséo da vida animal como “pobre de mundo” substituindo-a por “sem mund( designacdo que ja n4o considera sequer atribuivel ao inani- mado. O tema, rico e desafiante, fica, porém, fora da presente conjuntura refliexiva, 30 a Scanned with CamScanner Irene Borges Duarte € 0 conceito de mundo. $6 ha mundo quando hé um projeto ante- cipador do que vem ao encontro, mesmo que esse projeto lance no a-vir 0 que ja de sempre se est langado ¢ ajeitado a ser. Assim aparece a clarificagio do conceito de mundo nas paginas finais de Os conceitos fundamentais da Metaftsica (Heidegger, 1989: 530): © projeto que eleva a dimensio do possivel em geral e a desvela, o qual esta ja de anteméo articulado no possivel ser de este ou de aquele modo”; o seu carter singular “desvela-se como estando originariamente entrelagado na unidade estrutural originaria do projeto”, em que o ser do ente na totalidade est4 em pleno vigor, na sua possivel vinculacao entre si; “é no projeto que o mundo vigora”. O conceito heideggeriano de mundo é, pois, sempre o correlato de um projeto langado, de um jeito de ser “ai”. Projeto de que o animal carece, pois, dependendo total e instintivamente do meio em que vive, nao se langa a ser as possibilidades. .. que, por isso, nao tem. Esta primeira referéncia é importante, porque dela depende o que se possa entender por ser “formador” de mundo. Em alemao, bilden significa dar forma ou imagem (dil), €, por isso, pode fa- lar-se de Bildung como formacao ou educagdo — que € 0 processo (pessoal, mas sempre também coletivo e anénimo) de construgao ou edificagao do mundo cultural, a que pertencemos. Em inglés, a palavra da mesma raiz é Building, que significa edificagio. O mundo & 0 edificio cultural do espago-tempo existencial e histérico, em que somos e estamos. Ser no mundo significa fer um mundo, em que nascemos € cujos contornos vamos apercebendo, pouco a pouco, mas ao qual j4 de antemo pertencemos. Mas também significa vivé-lo A maneira da ex-sisténcia, isto 6, tendo expectativas c esperanga, medos e angustia, esperando que a vida continue ¢ nos traga o que concebemos e desejamos de bom, e nao nos traga ‘© que queremos evitar, mesmo sem ter visto ou experimentado isso que somos capazes de conceber, de desejar ou de temer. oO equilibrio entre o que sabemos e 0 que adivinhamos sem saber define a ambivaléncia do que € 0 nosso jeito de (j4) ser ¢ 0 que é pro-jeto de vir a ser. Ambos se dao em conjunto, ao contrério do que acontece com o animal, que, sem poder transcender a presenca, nao existe como projeto, nao dé forma ao mundo em poténcia, mas tio 86 se atém ao ambito em que esté circunscrito, desenvolvendo um “comportamento” (Benehmen), que de algum 31 Scanned with CamScanner Situagio hermendutica¢ projeto de mundo modo é “perturbado” (na tradugio de Casanova de Benommenbeit) pela presenga dos “desinibidores”. Temos, assim, um ente (humano) que, no seu ser, abre mundo, na medida em que, continuamente, cria e projeta formas proprias = em cada caso suas, mas também comuns com aqueles com quem com-vive - excedendo o que tem ante si, & mao ou retido sob a conceptualidade dos seus objetos mentais. E, no entanto, a sua projecio do novo € ela mesma situada, ajeitada ou apegada ao que estd sedimentado no seu viver j4 de sempre nesse mesmo mundo que, de fato, se est continuamente a criar, a0 correr-se 40 encontro (pessoal e impessoalmente) do que nos chega. H, pois, neste jogo existencial e histérico-cultural uma dindmica simultaneamente formadora e conformada, podendo ser inovadora na renovada repetigao do jé assentado. A compreensao deste jogo implica um reposicionamento critico, que Heidegger, nos anos da génese de Ser e Tempo, comegou por chamar mostracao ou “indicacao” (Anzeige) da “situagio hermenéutica”. A situacéo hermenéutica Ao contrério de Husserl, que considerava a Fenomenologia como uma orientagao filos6fica eminentemente moderna, por ele criada, na sequéncia das ideias de Brentano, Heidegger, seu disci- pulo, mas procedente de uma formacao (Bildung) muito diferente, confessou-se muito precocemente convencido que, como chegou a dizer, Arist6teles ja fazia “fenomenologia”. Esta afirmagio, para além de revelar uma perspectiva diferente da do seu mestre, no que respeita ao que entendiam sob tal designacao, denota igual- mente que se pode abordar o trabalho histérico — neste caso, em 4 Esta descricdo heideggeriana é criticavel, naturalmente, mas é reveladora do que Heidegger pretende indicar com 0 conceit de mundo, enquanto correlato do projeto da existéncia humana, Também nao é facil traduzir as designacdes heideggerianas, influenciadas pela elaboragdo da leitura de Uexkll. Leia-se, na tradugo de Casanova, em especial, a reflexdo do tradutor sobre os sentidos de benehmen e Benommenheit (Heidegger, 2003: 284), cujas ressonancias ndo ficam suficientemente explicitas na solugao encontrada, 32 Scanned with CamScanner FE Irene Borges Duarte histéria da filosofia — de uma maneira que nao € nem uma mera recolha asséptica de dados factuais, suficientemente documentados, nem se reduz a reconstrugao com fidedignidade do que um autor pensou e quis dizer, e que os seus intérpretes procuram reproduzir, ficis a essa vontade. Porque o que um autor disse ¢ mais do que cle proprio quis dizer, Hé aspectos do que ele nos legou nas suas obras que deixam ver 0 que ele prdprio, ao pensar, nao viu, seja porque procurava outra coisa, seja porque lé-lo com o olhar de outra época e de outros pressupostos altera necessariamente a compreensio do que ele mesmo disse. Aquilo que alguém disse pode nao querer dizer apenas aquilo que ele, de fato, quis dizer. A autointerpretagao de um autor é sempre isso mesmo: uma in- terpretagao... de si mesmo, na sua intengao significativa explicita. O dar-se a ver fenomenolégico pode, portanto, configurar-se de maneira diferente, nao em fungao do olhar de diferentes leitores, individualmente considerados, mas também, e muito marcada- mente, em fungio da perspectiva epocal em que se da cada nova leitura. Cada leitor lé em fungio da situago hermenéutica, que é a sua, sendo a do espago-tempo cultural a que pertence. Esta descoberta de alcance hermenéutico sera desenvolvida poste- riormente por Gadamer (1975), no que chamou Wirkungsgeschichte, a historia da repercussio de uma ideia ou de uma corrente de pensamento, habitualmente conhecida como “histéria efeitual” ou dos seus efeitos. Tem, pois, como contexto de nascimento, 0 estudo histérico da filosofia ¢ das filosofias. Mas tanto Gadamer como, sobretudo, Heidegger ndo a usam meramente nesse quadro. Na verdade, aquilo que determina esse efeito derivativo ou “de- formador” do sentido é 0 fato de a compreensao humana ser um acontecimento e um processo de existéncia, pelo qual tudo quanto hd se manifesta em discurso, isto é, se articula em “sentido”, com sentido, O Jogos (palavra e discurso) € onde o ser se mostra: fe- nomenologia é 0 caminhar do ser até palavra humana onde se mostra. E este caminho nao se faz solitariamente, mas sempre € 36 em didlogo: um dilogo em presenga, mas também em diferido, através do tempo, gracas aos textos que até nés chegaram. A presenga do outro, dos outros, 6, pois, fundamental e da-se no ambito cultural a que pertencemos. A nossa situagao hermenéutica (Gadamer, 1998: 83) ¢ a de aqueles que procuramos entender dé-se sempre, por isso 33 Scanned with CamScanner Situagio hermendutica¢ projeto de mundo mesmo, implantada numa certa cultura, com os pressupostos ¢ 05 equivocos que lhe sio inerentes. Compreender 0 outro implica, portanto, um encontro de horizontes. Gadamer traduz mesmo esse encontro numa “fusio”. Heidegger, mais cauto, limita-se a considerar que € necess4rio que cada um seja capaz de despertar a atengao para os descritores ou para as coordenadas dessa situacao, para os seus elementos-chave. E no chamado Natorp-Bericht (Heidegger, 2005), redigido em 1922, que esse antincio indicativo (Anzeige) da situagao herme- néutica aparece pela primeira vez, de uma maneira clara e muito simples: qualquer Dasein, seja um pensador hoje consagrado ou, simplesmente, um qualquer ser humano, olha a partir de um ponto fixo, em que esté assente, em que esta naturalmente confortavel. Esse € 0 seu ponto de vista (Blickstand), o lugar onde este de onde langa o seu olhar para o que tem frente. Esse ponto estvel, em que se ergue, 0 que ele mesmo nao vé: a sua marca cultural, as suas convicgdes, as potencialidades da sua lingua, a sua pertenga a um corpo social, a uma época etc. Tudo isso se erige no observador, quando observa, sem que ele atenda a isso. Aquilo a que atende € 0 que tem em frente, aquilo que se abre ao ser olhado. Mas a0 olhar, ele nao vé tudo 0 que est ai em frente. Seleciona nesta ou naquela direcdo (Blickrichtung) ou perspectiva, e s6 capta o que esté nessa linha de visdo. Podem ser varias, claro. E todo um horizonte (Sicheweite) 0 que ganha visibilidade na amplitude do olhado. E nesse intervalo que se move a compreensao ¢ que essa se desenvolve interpretativamente (Heidegger, 2005: 346-348), Para além das linhas que delimitam o horizonte, nada mais é visto, nada mais chega a aparecer fenomenologicamente. Toda a interpretagio se move no quadro do que pode ser entendido a partir do ponto de vista e da(s) perspectiva(s) assim abertas. Quando Heidegger falou disso foi justamente para enquadrar a sua ousada interpretagio de Aristételes-fenomendlogo. Também o fard, a partir de 1924, com Kant. Todos os grandes pensadores da hist6ria serio enfocados desta maneira: com interpretagées ousadas e renovadoras. Naturalmente, s6 aqueles que a situagio hermenéutica prépria de Heidegger tem em vista. Mas nio sio s6 os grandes pensadores que merecem ser compreendidos deste 34 i Scanned with CamScanner Irene Borges Duarte modo. Em Ser e Tempo, volta a falar de “situagao” na sua andlise do “poder ser” da resolugao, que € 0 modo de ser mais préprio do Dasein (§ 60). Mas jé nao usa a expresséo adjetivada como “hermenéutica”. Na verdade, a questao da compreensdo do ser ficou tratada na analitica do “ser em” (um mundo, § 32), onde a circularidade do processo é definida com penetragdo, na sua pré-estrutura (Vorhabe, Vorsicht, Vorgriff), dando continuidade ao brevemente apresentado em 1922, e aprofundando as implicagoes da circularidade hermenéutica, Sem entrar aqui numa leitura detalhada dos meandros da exposigao heideggeriana, quero reter dois momentos fulcrais. O primeiro € 0 sentido temporal do cérculo, ¢ as suas implicagbes para o acesso de cada Dasein ao seu Selést e 20 mundo em que se vive e se compreende a si mesmo e a tudo quanto encontra no seu viver, ocupado entre as coisas e os outros do seu mundo e do seu tempo. Na verdade, o processo pelo qual, desenvolvendo-se interpretativamente, tudo ganha sentido no “ai”, que é o mundo, esse proceso realiza-se sempre como um des-encobrir do que inicialmente esté jé ai, mas encoberto. E esse abrir-se do sentido que se faz sobre a base de um ter-prévio (de um ponto de vista fixo, estavel, que é o de todos os nossos propésitos), que vé — antes de ver de fato— 0 que a vista alcanga (pela cautela de aqueles pro- pésitos) e que, assim, pré-define e enquadra tudo quanto, nesse espago-tempo, pode ser objeto da minha compreensio. O que jé se adivinhava, antes de ser captado, € 0 que poderd ser captado de verdade. Por isso, na vida de todos os dias, s6 percebemos de fato aquilo que estavamos j4 predispostos para perceber. A situagao da compreensao é a de um estar langado, segundo o modelo do ja de antes. Uma situagao-limite pde 4 prova no s6 a veracidade das coordenadas, mas também a capacidade de cada um para trans- cendé-las. Essa capacidade dé-se na angistia, pela stibita ruina das nossas defesas: no panico, na auténtica angustia que revela a nio estabilidade radical do solo em que acreditavamos ter os pés bem assentes. O momento de crise é um terremoto, que nos desperta para o infundado da situagiio hermenéutica em que estavamos. E a crise e s6 ela que permite o salto para uma outra possibilidade, para além do ébvio - que habilita, portanto, a mudanga e a pas- sagem para outra situagao hermenéutica. 35 Scanned with CamScanner Situagio hermenéutica e projeto de mundo O segundo momento fulcral desta andlise vem bastante mais tarde, na estrutura da obra de 1927. Trata-se da introdugao da importancia da resolugdo (isto ¢, do ser-projeto e futuragao) na configuracao ou reconfiguragao da situagao, isto é, do “ai” em que aquilo que hé vem ao encontro da existéncia de cada um. Heide- get (1976: 299) comega por dizer da “situaga0” (§ 60): (1) que tem cardeter espacial, sendo inerente ao “ai” do proprio Dasein, e (2) que é um “fenémenc”, ou seja, algo que se mostra, que aparece. A espacialidade de que aqui é questo ¢ a do ser-no-mundo: ela corresponde ao ter lugar (Ort, Lage) na existéncia; nfo s6 no sentido factico, intramundano (6ntico), mas fundamentalmente em sentido auténtico e ontolégico. Mas ambas as referéncias nos interessam, pois, se bem que tudo tenha naturalmente um enquadramento concreto, observavel (vorhanden), isso s6 salta a vista na agdo re- soluta, isto &, quando o Dasein, ex-sistindo, langado para a frente no seu agir, da sentido as coisas e as arruma conjunturalmente no que se configura como o seu ambiente ou mundo-circundan- te, de que outros humanos participam, mas que € propriamente o seu. A situasao aparece fenomenologicamente como resultado da resolugao, que ordena ou pée ordem no que esta 4 mao no meu mundo. Esta ago nunca é anénima, impessoal (social), mas manifestagio do poder ser mais préprio de quem age. Por isso, a “situacdo”, neste sentido, nao aparece como aquilo em que ~ digamos ~ alguém est metido, sem de la poder sair—o que seria mera casualidade éntica, 0 estar aqui e agora e nao noutro lugar e tempo — mas, bem pelo contrario, como aquilo que se escolbe, que se configura decisivamente, quer se tenha ou nao consciéncia disso. “E a resolugiio (Entschlossenheit) que leva o ser do ai a existéncia da sua situagio” (Heidegger, 1976: 300), € na sua diregéo que se percebe o chamamento (Vorruf) da consciéncia, configurando as possibilidades em que se dé a existéncia factica. E, portanto, para terminar, “a resolugao nao é senio o ser em propriedade, de que 0 cuidado cuida ¢ que s6 possivel como cuidado” (Heidegger, 1976: 301). Parece, portanto, que, em Ser e Tempo, Heidegger considera a situagio nfo meramente no sentido que aparecia no Natorp-Beri- cht, como mera posigo epocalmente marcada por determinagdes énticas, com base nas quais a compreensio esta condicionada ea 36 a Scanned with CamScanner nena eee Irene Borges Duarte que é relativa. Na verdade, aquilo para que chama a atengao no § 60 é para o cardter eminentemente projetivo e resoluto da situa- gao existencial — por conseguinte, para o seu carater ontoldgico e possibilitante, que transcende a mera condi¢4o humana. Ha que juntar ambas as anilises. Eu estou jd de sempre numa via de compreensio, que predeter- mina 0 que posso compreender como aquilo que estou, de antemio, preparada para compreender. Por isso, como dir Gadamer (1975), é a tradic&io em que, conscientemente ou nao, me movo, que 4 partida e na maior parte das vezes compreende por mim. O esforco & meu, mas 0 quadro € aquele a que existencial e historicamente pertengo e estou presa. Nao sou nunca completamente original. A minha compreensio 6, inicialmente, sempre a de um fundo anénimo e tradicional. Mas, no entanto, partindo desse quadro a que pertenco, mas agora plenamente desperta para as suas linhas de rumo e para a sua amplitude, eu sou, ao mesmo tempo, capaz de redesenhar a minha ago vital e 0 exercicio do meu cuidado na Projegao de um futuro, em que o que tenho sido nao determine absolutamente o meu continuar a ser, antes o liberte para um poder ser de outra maneira. Se isso puder acontecer, nao sao, entao, as condigées concretas em que vivo e penso, que definem no futuro a minha situacdo hermenéutica, mas, sim, 0 meu préprio estar a ser em propriedade, que, libertando-se do que tacitamente me prendia, procede resolutamente na inauguragao critica do a-vir. O 6ntico ¢ 0 ontolégico — desambiguados — permitem com- preender a mudanga. Mas o lugar dessa desambiguagao é 0 acontecimento da crise, para que Jaspers chamou a atengio ao falar das “situagdes-limite”, e para que Heidegger (1979: 301), que se lhe refere numa breve nota, aponta ao falar da angistia. S60 desassossego critico da angistia poe a prova a vivéncia banal do dia-a-dia, a familiaridade acritica da imersao 6ntica. E a privagao brutal das confortaveis rotinas que rompe o habitus e cria 0 caos, de que as patologias dao fé. A sintomatologia desse caos, na sua multiplicidade de modos e intensidade, clama pelo cuidado soli- cito de quem possa trazer algum apaziguamento da dor, alguma resposta as perguntas do corpo ou da alma, alguma dadiva ou balsamo. A resposta em forma de droga, legal ou ilegal, atordoa 37 Scanned with CamScanner Situagio hermendutica ¢ projeto de mundo em vez de alertar. Pode ser conveniente, transitoriamente, mas 56 nesse contexto paliativo para a insuportabilidade da dor. Na verdade, s6 0 alerta resoluto pode encontrar a paz da resiiéncia A dor e da elaboragio de uma resposta. Em qualquer caso, pelo forjar de uma nova plataforma, de uma outra forma de estancia. A situasao hermenéutica nao , pois, um quadro fixo, mas sim um contexto em movimento, uma dindmica projetiva, que pode ser transformada pelo apelo da consciéncia e pelo assumir resoluto do proprio alento de existir, langado a abrir novas possibilidades. Esta conclusdo permite-nos saltar a consideragao do modo de ser epocal e da consisténcia das suas situagGes. : 3. A situagao hermenéutica que éa nossa e a sua mudanga Voltemos ao esquema simples do Natorp-Bericht. Consideremo- -lo na sua duplicidade pessoal e impessoal, naquilo que tem de veiculo de uma forma de ver andnima, jé sedimentada, e naquilo que tem de mais estritamente individualizante. Vou comegar por um exemplo do mundo da cultura, para procurar depois o foro psicolégico particular, Assisti, h4 pouco tempo, a um espetaculo de épera, que me pareceu, quer do ponto de vista artistico, quer do da concepgao € encena¢4o, muito conseguido, por criar, justamente, uma perspec- tiva critica da situagao facticamente retratada. E uma das pegas preferidas dos repert6rios tradicionais, amide representada, quer pela beleza da mtisica e das vozes, quer pela ambientagao da acao. A Madame Butterfly de Puccini foi concebida e estreada no dealbar do século XX, em 1904, quando os navios americanos comesavam a assenhorear-se dos mares, sem que ainda houvesse consciéncia de globalizagao cultural e econdmica. Era o exotismo do cenirio que estava de moda, por essas alturas: uma cidade portudria do extremo oriente japonés, que 41 anos depois padeceu a aniqui go atémica — Nagasaki. E o tema, comovente — uma jovem de 15 anos apaixonada pelo garboso capitio de um navio, fundeado no porto — é um motivo lirico de todos os tempos. Sabemos que a histéria nao acaba bem: a confianga ingénua da moga ¢ traida pelo abuso do estrangeiro, que nada mais pretende que passar bem 38 ie i ed Scanned with CamScanner Irene Borges Duarte ‘© seu tempo de breve estadia no porto longinquo. Mas hoje nao podemos assistir a essa histéria sem saber que ela documenta um momento de ascensio do poder americano num mundo global, 0 mesmo tempo em que nao podemos desconhecer que a forma de tratamento dominante da mulher em sociedades patriarcais a instrumentaliza como objeto sexual, umas vezes, ou como guardia do lar, outras vezes, sem respeitar, nem num caso nem no outro, a sua dignidade como ser humano. E, contudo, a beleza da miisica do italiano Puccini sublinha o desejo, o amor, a confianga esperangada, a paciéncia e a tenaz espera de um retorno, ressaltando 0 tema da narragio, a figura afetiva da heroina, e nao o fundo ou contexto da ago conjunta, que, contudo, nao descura. A épera comove, sem revoltar, capta um quadro da vida quotidiana de todos os tempos, ambientando-o no que, contuda, j4 nfo é o nosso tempo, e ante 0 qual j4 nao podemos sentir-nos nem julgar da mesma maneira. Ora, por isso mesmo, montar, hoje, um espetaculo assim concebido, até para fazer jus a grandeza da obra, requer que os assistentes sintam ambas as coisas: beleza e indigna¢ao, empatia € revolta, essa espécie de tristeza critica, que regista o factico incontornével, sem perder, porém, a resolucao que permite conti- nuar num projeto de vida, que é 0 nosso, e que nao admite aquela situago, que, todavia, se sabe existir. Podia ser a impossibilidade de uma mulher afega continuar a acreditar que pode terminar os seus estudos superiores, apesar da retirada dos ocidentais de Cabul. Um ou outro destino de mulher, numa sociedade que lhe atribui um papel determinado, perfeitamente delimitado... e a nossa hermenéutica, a partir da nossa situagio que jé nfo é - ou nunca foi — a delas. Nesta leitura, modificada, a protagonista Butterfly sucumbe, entdo, nao por depressao, mas pela sua clarividéncia re~ soluta: o lirico transmuta-se em heroico e, portanto, em tragico. O sofrimento da jovem abandonada e sem recursos nfo ofuisca a sua forsa e nés, que choramos por ela, levados pela miisica que traduz intensamente o seu sentir, podemos ter por ela admiragao e nio pena. Mas hoje e aqui, neste mundo que € 0 nosso, mas nfo era © dela, procurariamos ajudar a que houvesse uma outra saida que nao fosse o suicidio. Nao aquela que a jovem Butterfly nao quer, resolutamente: voltar a casar-se com outro pretendente, demons- trando que aceita as regras do jogo da sociedade a que pertence. 39 Scanned with CamScanner Situagio hermenéutica e projeto de mundo Mas uma forma de poder lutar pela sua vida e sobrevivéncia, com as armas de que, resolutamente, pode fazer uso. O ponto de vista epocal, as perspectivas (psicolégica, ética, estética) ¢ 0 Aorizonte existencial e histérico assim delimitado configuram, pois, diferentes situages hermenéuticas, quer a0 nivel cultural e coletivo, quer ao singular, proprio de cada um, A obra, nas suas miltiplas leituras, chega-nos através do pér-em-cena e da interpretagdo de alguém, através de quem, mesmo sem nos darmos conta, entramos num didlogo multiplicado por todos os intervenientes no espetaculo. O ser-com, em que estamos a ser dialogicamente, permite que a situacao hermenéutica mude. Nio é esse também o papel do psicdlogo? 4. Qual o papel do psicélogo nesta mudanga? A questo da mudanga é importante na pratica da psicote- rapia, que a tem muito especialmente em mira, quer numa linha mais interventiva, ligada as terapias breves, quer numa pratica de acompanhamento a mais longo prazo. O trabalho do Grupo de Boston’, criado em 1995, em torno do trabalho de Daniel Stern (2004), é um bom exemplo dessa preocupacao. Uma das reitera~ das observasdes do trabalho deste grupo é 0 fato de, na relacio terapéutica, a mudanga poder ser constatada em varios momentos, sem que seja facil de situar o seu inicio ou um momento decisivo. Ao contrario da intencionalidade explicita da interpretagio, em sentido psicanalitico mais ortodoxo, com que pode contar-se numa linha freudiana ou mesmo lacaniana, a consciéncia de ter havido uma mudanga no processo de interagiio terapéutica s6 € apreendida retrospectiva e desconstrutivamente, no estudo de casos transcritos, revelando que, em geral, ela sé se vai manifestando a pouco e pouco, “momento a momento” e nunca de repente. O 5 The Boston Change Process Study Group. 6 Veja-se Mayes, 2005:745: “podem encontrar-se chaves para anatureza desta percepcdo da mudangca no estudo do processo momento-a-momento da interac&o entre o paciente ¢ 0 tera- peuta, O trabalho do Grupo de Boston pretende identificar tais momentos, € nao propriamente demonstrar o impacto @ longo 40 Scanned with CamScanner Irene Borges Duarte mais relevante parece ser que se deu 7a ¢ pela relagdo, afetando a compreensiio de ambos os interlocutores, ligados na autenti dade de uma procura de sentido, que é recfproca, e esta cheia de “descuidos e confusées” (sloppiness and fuzziness)’, mas permite sempre a recupera¢ao do inicialmente descuidado ¢ 0 aclarar do a partida confuso. Ao contrario de Heidegger, esta linha de trabalho parece, pois, deixar na retaguarda a ideia de um inicio repentino, para acentuar 0 desconttnuo fazer caminho, passo a passo, ou momento a momento, com avangos e retrocessos, que 86 a reflexao retros- pectiva pode chegar a esclarecer no seu verdadeiro alcance de “momento”. Nao seria tanto, pois, o stibito vacilar sem félego da angtistia, mas o poder sobreviver-the, sofrendo mas continuando a andar, que marcaria o processo de mudanga, amparado no didlogo terapéutico, que a deixa ver. Penso, juntando estas duas reflexdes, que o desenho da si- tuagio hermenéutica deve, justamente, dar a perceber tanto 0 ponto de partida, tao estavel quanto desatento e confuso, para uma compreensio habitual, de comodidade, quanto 0 novo ponto de partida, apés um caminhar dificil, as vezes penoso, aos sola- vancos, capaz de pdr em diivida o que antes se dava por seguro, por estabilizado. A ago do terapeuta, chamado a intervir, pode contribuir para voltar a levar a uma plataforma mais estavel a nova perspectiva, sem que seja nem possivel nem desejével voltar ao ponto de partida anterior, mas sim vé-lo em perspectiva e de longe, ele prdprio num novo horizonte. Hoje fala-se muito no “novo normal”, post-pandemia. La- mentavelmente, nfo se indica desse modo uma mudanga pro- priamente dita, uma auténtica novidade na nossa situacdo, mas simplesmente uma forma de voltar a(s) antiga(s) rotina(s), tendo em conta alguns cuidados extra a ter na realiza¢do da nossa quo- tidianidade. O horizonte, construido a partir do ponto de vista prazo quer da mudanga funcional do paciente, quer da satisfa- g4o que ele apercebe como resultante do tratamento. Portanto, 0 cerne da questo esta em identificar tais pontos de interagdo entre paciente e terapeuta.” 7 Mayes, 2005, 746-747. 41 Scanned with CamScanner Situagio hermenéutica e projeto de mundo epocal ¢ na perspectiva da civilizagao tecnologicamente apetre- chada, continua a ser o mesmo. E certo que ha, como sabemos, ideologias confrontadas, Mas so as mesmas de antes e em todas elas hé elementos pretensamente de progresso e outros de reacio. No variou nem o ponto de vista, nem as perspectivas, nem, em consequéncia, 0 horizonte. Essa via que se continua, imparavel, como uma autoestrada para o mesmo, inclui, como até aqui, uma colegio de patologias de diferentes tipos, a que a terapia procura responder como pode, sem que se modifique o enquadramento, sem que se possa transitar a outra posi¢ao para olhar. O terapeuta s6 pode tratar o estritamente individual, marcado pelo concreto da situagao pessoal de quem procura ajuda clinica. E, no entanto, como muitos terapeutas tém presente, algumas das iniciativas requereriam outro contexto para poder ter alcance po- sitivo e nao meramente paliativo. Haveria que mudar a plataforma de partida, haveria que poder confiar em que a ago conduzisse a outro lugar... de onde o olhar abrangesse um horizonte nao completamente outro, mas sim mais amplo, menos estreito. ‘Ao psicoterapeuta, como ao educador, cabe bem esse papel de limpeza de vista, de reorientagao do olhar. Este tem de dirigir-se nao & observancia dos eixos em que se move a mera quotidiani- dade, em que o paciente est, mas, sem a ignorar, & abertura de possibilidades, que transcendam os seus limites habituais, que encenem jogos diferentes. E, nessa medida, a questo da situaga0 hermenéutica é fundamental. $6 criando condigdes para outras modalidades de ver e de estar é que se produzem plataformas diferentes a partir das quais o olhar se possa langar mais ao longe, libertando-se das ideias fixas, dos habitos atavicos, das crengas inquestionadas. O terapeuta pode ser 0 outro educador para a vida. Neste contexto, a situagao hermenéutica prépria do terapeuta é da maior relevincia. Porque é no quadro do seu poder compreender que o didlogo liberta as possibilidades. Nao para que o paciente almeje realizar as possibilidades que no so suas, mas para que quem o atende aceda ao horizonte que ele tem fechado ¢ 0 auxilie 2 encontrar uma janela e a abri-la, para ver mais além, antes de poder achar a porta por onde sair Id para fora, Na consulta sé pode aver janelas, nao hd portas. Mas quem vé que Id fora ba algo mais 42, Scanned with CamScanner Irene Borges Duarte que 0 que antes via, poderd ir, por si s6, & procura de alguma porta. A relagao abre 0 caminho, Mas, em qualquer caso, tudo se passa dentro do espago-tem- | po da época em que vivemos, da qual nfo podemos libertar-nos t propriamente. Que podemos, entio, esperar? 5. Do mundo Ge-stell , a recuperagao do habitar na terra A nossa situacao hermenéutica, na sua dimensao coletiva, marcada pelo ter prévio, ver prévio e conceber prévio, éa da civilizacdo ou cultura tecnolégica, a que Heidegger, a partir do final da década de 1940, chamou a era de Ge-stell: a com-posi¢ao de todas as posigées numa tinica engrenagem global e totali- téria em que pre-domina ~ isto é, domina de forma prévia ou antecipada - uma compreenso das coisas e das formas de vida regida pelo principio da supremacia do que Nietzsche tinha chamado vontade de poder e ele proprio (Heidegger) explicitou como mera vontade de querer. A esta forma de entender cor- responde um projeto de mundo em que este se nos apresenta como 0 objecto do nosso desejo, o espaco social organizado em funcao de dar resposta a ambigao dos humanos, de cumprir as finalidades pré-concebidas como adequadas ao nosso bem-estar. E mundo aquilo que se adequa ao nosso gosto e & nossa vontade, socialmente promovida e politicamente administrada. & £ Em si mesmo, nada hé de errado nisto. Querer que nés ¢ os i nossos proximos vivam o melhor possivel, nesta terra em que nas- | cemos ¢ temos de fazer pela vida, parece até ser bastante sensato. E isso faz-se organizadamente, planeando, ¢ nao andrquica ou caoticamente. E esse principio a que chamamos progresso. Nao € um principio de desenvolvimento individual, mas coletivo: nio se procura o bem de um 6, mas de todos, pois o bem de todos dé mais garantias que o da busca de cada um por si. O sisterna foi-se adequando no sentido do maior bem, evitando a monstruosa juta de todos contra todos, o Leviaté de Hobbes, que corresponde a uma fase intermédia do desenvolvimento social e politico. Esse bem comum, hoje, tem os contornos biopoliticos, que Foucault 43 Scanned with CamScanner Situagdo hermengutica e projeto de mundo (1975) definiu no quadro da sociedade disciplinar e super-egoica, € que, na sua fase terminal, como tem defendido Byung-Chul Han (2004), se veio a converter numa sociedade do desempenho que promove o empreendedorismo e a produgio multitarefas, obrigando a uma autoexigéncia que, longe de permitir o tédio, leva 20 cansago crénico, a sindrome de Burn out, & depressio. A interimplicacao do sistema sociocultural ¢ da satide individual e coletiva é total. Mas a autoimagem do sistema é a de uma maior liberdade num contexto de incremento do bem-estar geral. Estamos jé uns largos passos a frente do que Heidegger, muito esquematicamente, experimentou e descreveu. Mas ndo safmos fora do seu esquema, A sociedade e projeto de mundo que traduz o conceito de Ge-stell € a que se retroalimenta circularmente (fee~ dback) como vontade de querer vazia, como autopromogao num futuro em que se repita, melhor ainda, o que jé de antes se tinha encomendado, dando sentido a terra como um imenso armazém de objetos e destinos consumiveis. Esse projeto esta vigente. A sua lei é inexoravel e incontornivel Mas é um pro-jeto, isto €, 0 jogar-se de tudo num lance ou sorte. Este lance 6 formal, € um modo de fazer, uma modalidade de estar aser-no-mundo, A este projeto de mundo, que configura a nossa vida social e, portanto, a nossa mentalidade, a nossa Weltanschawng, pode-se responder-lhe criticamente, aquilo que o velho Heidegger, cada vez mais poeticamente, nas palavras e imagens de Hélderlin, foi desenhando como um outro projeto: 0 do habitar, wohnen.Do seu discurso, sobressai a importancia de uma re-ligacdo a terra, a tegido de encontro com a natureza e com os deuses da tradigao de cada um. Mas também é fundamental a celebragio do com-vi- ver com os préximos, quer na intimidade do lar (Heim) ou fogo sagrado, quer na comunidade resolutamente elegida como propria. Mas como é isto possivel na cidade digital em que vivemos através dos nossos avatares? Pode esse projeto ser coalescente com o de Cestell? Na minha interpretagio de Heidegger, essa coalescéncia € possivel, pela resolugdo hermenéutica: 0 tomar em propriedade o Projeto de habitar a terra, que j4 nfo ¢ a natureza virgem, mas o mundo hiper-urbano aberto ao digital, enraiza este mundo ao co-habiti-lo, A presensa do intramundano, do éntico na sua 44 4 Scanned with CamScanner a Irene Borges Duarte concretude e casualidade e no modo como se nos apresenta, nao € evitdvel. O que é modificavel é a forma de estar & beira das coisas ¢ dos humanos nessa mundaneidade dominada pela tecnologia socialmente implantada. Ela nao pode ser ingénua: nio podemos deixar-nos ir na voragem do que se nos exige. A fenomenologia critica do nosso mundo é um requisito da nossa entrega pela ex-sisténcia ao ser do que se nos dé a ver e a viver. Nao hé lugar para mundbs alternativos, em que nos refugiemos doentiamente, ‘ou que recusemos em nega¢ao. Sé Ad um mundo e é este. Mas cabe a possibilidade de o experimentar poeticamente, isto é, criando um espaco de jogo ao nosso tempo proprio, em que exergamos auten- ticamente o ir proximidade do que sao as nossas raizes — natais ou adventicias, em lugares de migragdo e com novas amizades —e lutemos criticamente, com os meios a disposigio de cada um, por sobrepor-nos 4 mera engrenagem industrial e consumista. Esse €0 possivel reencontro com a Terra, como espago vital. Nao é uma invengao fantasiosa ou doentia. Esta via “terrena” (ou “terrana”) é © que pode ser: um odsis no deserto gestéllico, rodeado e, de certo modo, coartado por ele, mas, mesmo assim, rompendo a hege- monia dessa imensa firia consumista. O projeto poético do habitar @ terra manifesta-se, resiliente, como um paradigma alternativo, que no exclui o que hd, mas se serve dele de outro modo, sem Ibe ser servil. O psicélogo clinico, como qualquer outro humano no seu tempo, pode langar-se na sua nobre profisséo com um projeto ou com o outro. Nao é indiferente. Nada no nosso exercicio como bumanos é neutro ou indiferente. O projeto tecnolégico exerce-se tecnicamente, promove o ser eximio e experto na aplica¢ao de estratégias de um ou outro tipo, ao sabor das diferentes linhas de trabalho. O projeto poético também segue o aparecer das formas de viver, dos discursos que os manifestam e dos comportamentos distorcidos que revelam o sofrimento. Mas a sua intervengao é a do acompanhamento afetuoso, mas critico, num apoio incondicional, mas atento a esses momentos em que uma réstea de rebeldia ou de sofrimento alerta para a possibilidade de mudanga. Encontrar © momento afetivo da mudan¢a possivel nao é tarefa facil. Talvez nao seja propriamente uma tarefa, mas apenas uma sensibilidade. A pratica ajuda, a meméria de muitos momentos cuja experiéncia se deu ao longo de muitos percursos. Mas € 0 poder trazé-los ao 45 Scanned with CamScanner Situagio hermendutica e projeto de mundo discurso dialégico que o transforma em ago, interagindo em forma terapéutica. E a palavra (dita ou traduzida em gesto) que cria a possibilidade de compreender de maneira diferente e, portanto, que abre outro horizonte para outro projeto. 6. Para terminar. Termino, entao, numa tentativa sintética de responder 4s minhas 3 interrogagées iniciais: E possivel o “passo atrés” na diregao de um habitar mais auténtico, mais sao? Como? E, como pode a ago clinica contribuir para essa finalidade? O “passo atras” heideggeriano nfo é um retrocesso, mas © acesso ao que ficou obstruido por uma exigéncia civilizacional, que desvia sistematicamente o projeto de mundo da proximidade dialégica e afetiva para o longinquo neutro e virtual, do mundo terreno, elaborado em discurso, para o mundo digital, codificado algoritmicamente ou para a sociedade do consumo jé de antes pre-concebida e proporcionada matematicamente. Nesse mundo nao hé auténtica demora, nao hé tempo para ser, para estar. Sé para passar, correndo, como o coelho da Alice, para algum lugar onde também nfo se pode morar. Habitar neste mundo s6 € possivel, de verdade, saltando a outra forma de estar: elaborando-o poeticamente. E essa elaboragio poética que permite uma mudanga da situagio hermenéutica e a transigio ao horizonte de outro projeto. E preciso viver e padecer o sentir-se preso ao primeiro para querer libertar-se e poder langar resolutamente as bases do segundo. Na escola nao ensinam isso. Na escola, em geral, reproduz-se 0 esquema socio-culturalmente determinado, que conduz a instrugio de toda a gente para a finalidade de servir profissionalmente 0 sistema. Mas também para o sofrer. E esse sofrimento que leva Adoenga ea crise. Nao sendo pedagogo, o terapeuta é, porém, 0 interlocutor dese projeto insano, na sua presenga em cada um dos que o padecem e se dio conta disso, procurando-o, Como interlo~ cutor, a principio tio s6 ouvinte — papel tao insatisfatério quanto fundamental - pode ser a voz (ou 0 siléncio) que responde de outra maneira, que mostra que pode haver outra via, outro projeto para este mesmo mundo, em que todos estamos. A sua fungao social é paliat 46 at Scanned with CamScanner Nh rene Borges Duarte o que a prépria sociedade fez mal. Mas o seu sentido profundo, a sua vocagio € cuidar de recordar que hd alguma forma de poder-se ser quem se & habitando o mundo como se fosse casa sua. Dizia Husserl (2006: 140), em grande estilo, acerca da Fi- losofia, que “tem constantemente de exercer a sua fungao enquanto arconte de toda a humanidade”, isto é, tem que ser guia da reflexao acerca de todos os ideais e do ideal de todos, ser o magistrado da _——_umiversalidade do bumano, Percebemos 0 que queria dizer. Mas creio | que é hoje mais coerente e mais proximo da verdade, pensar que : representantes do humano somos todos e cada um, pois é precdria | a universalidade do que se da em situagées tao diversas. H4, porém, / quem, pela sua vocagao ¢ exercicio do cuidado pelas formas de vida sa, possa ser uma voz em nome da diferenga, um magistrado da diversidade do habitar nesta terra, que nao € s6 meramente humana. Penso que esse pode ser o lugar do terapeuta. 47 Scanned with CamScanner

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