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TRAÇOS DISTINTIVOS no Português Europeu

Um Esboço de Proposta
Renato Roque

1. Introdução
Utilizamos todos os dias de uma forma natural – e ainda bem que assim é – uma
ferramenta extraordinária, a nossa língua, sem nos interrogarmos sobre todos os
mecanismos biológicos, sociais, culturais, que tornam possível e aparentemente simples
esse uso. E o que parece tão fácil, é na verdade extremamente complexo.
Conseguimos expressar ideias com frases, com palavras e com sons, e isso já é
extraordinário, mas como garantimos que aqueles que nos ouvem compreendem essas
mesmas frases, palavras e sons? Poderá parecer trivial, mas não é, pois cada um de nós
pronuncia cada som constituinte de cada língua de uma forma diferente. E cada som vai
depender do som que o precede e do som que o segue. Os sons, ou fonemas, como são
chamados os sons elementares constitutivos de uma língua, são entidades contextuais.
Para além disso, em qualquer fonema, o som gerado por cada um de nós é diferente. O
fonema é o mesmo, mas o fone, ou seja o som físico, é diferente. Esse som é mesmo
identitário – a voz, tal como o fundo do olho, a iris, ou a impressão digital, permite
identificar-nos. Por isso, reconhecemos um amigo ao telefone de imediato. E, para além
disso, o som varia com a idade, com o género, com a cultura, com a origem social ou
com a região geográfica, com o estado de saúde e até com a estrutura do aparelho
fonador de cada um de nós.

É, portanto, uma pergunta pertinente: Como se garante, por exemplo, que quando
pronunciamos “capa” [kapɐ] o nosso interlocutor lhe associa o significado que
pretendemos, relativo a uma peça de vestuário usada, por exemplo, quando chove, e não
ouve em vez disso “copa” [kɔpɐ], não compreendendo o que queremos dizer, porque lhe
vai associar um significado totalmente diferente? Para tal incompreensão ocorrer,
bastará mudar o timbre da vogal tónica da palavra, e o que poderá parecer impossível,
observamos, por exemplo, nos falantes do dialecto açoriano de S. Miguel, onde
aconteceu uma rotação fonética em cadeia das vogais e um [a] pode ser pronunciado

1
como [ɑ] ou mesmo como [ɔ]. Por isso, temos tanta dificuldade em compreender as
pessoas que connosco falam, usando o dialecto cerrado de S. Miguel.

A realização e a percepção de um fonema, de uma palavra ou de uma frase fazem-nos


interrogar sobre os atributos de cada som que nos permitem identificá-lo e não o
confundir com outros.

Partimos nesta viagem à procura dos chamados traços distintivos do português. E


sabemos ao partir que vai ser uma viagem por etapas. Ou seja, este texto vai constituir
apenas uma proposta parcial.

2. As Unidades Fonológicas Construtivas de uma Língua

A longa evolução da escrita, até ao uso de símbolos que representam sons discretos da
linguagem, usando um alfabeto, pressupôs já, de alguma forma, a noção de que a língua
se constrói com uma sequência de sons elementares, a que se procurou associar letras do
alfabeto. E, realmente, sabemos que uma das preocupações dos novos acordos
ortográficos é de tentar aproximar a escrita do modo de dizer. Do modo de dizer padrão,
que é como quem diz o modo de dizer de quem manda, claro. É essa tentativa de
aproximação que justifica, por exemplo, tantas hesitações na escrita do português
antigo, pois os escribas tinham de registar novos sons, que não existiam no latim, e não
sabiam como deviam representá-los. Essas hesitações constituem mesmo marcadores de
época, ajudando a datar textos arcaicos.

A Linguística Histórica começou também a valorizar esses sons elementares, pois


percebeu-se que a evolução da língua se faz por transformações fonéticas desses sons e
não por transformações nas palavras.

A escola estruturalista de Saussure concluiria que os sons elementares disponíveis


seriam os mesmos para todas as línguas e que cada uma “escolhe” quais usar. No
entanto, para Saussure, o estudo dos sons era apenas o ponto de partida para o estudo da
língua. A esse estudo prévio dos sons das línguas ele daria o nome de Fonologia. Estava
criada uma nova disciplina na Linguística.

Saussure centrava a sua análise estruturalista no conceito de signo, realçando o seu


carácter opositivo. Importava a forma como, quer no plano do significado da palavra,

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quer no do significante (sequência de sons), estes se opunham uns aos outros, se
distinguiam. Se o significado e o significante se opõem em Saussure, não se oporão
também os sons elementares, que distinguem uma língua, os chamados fonemas? A
língua falada é construída por uma sucessão dos fonemas existentes nessa língua. Mas
os fonemas são entidades abstractas, sem significado, e para mal dos estruturalistas a tal
oposição binária não acontece nos chamados fonemas.

3.2 O Fonema

A primeira unidade distintiva na Fonologia é assim o fonema. O conceito de fonema é


abstracto e teórico. A sua concepção está estritamente ligada à história da Fonologia.
Podemos mesmo dizer que o fonema é o conceito seminal da Fonologia, materializando
de alguma forma a necessidade de uma disciplina nova, autónoma da Fonética1, criada
nas primeiras décadas do século XX (Abaurre et al, 2006, p43).

A Fonologia, tal como a conhecemos, deve muito ao trabalho de Saussure, mas já


muitos foneticistas antes dele abordavam a necessidade de um conceito próximo do
moderno fonema. Estavam “preocupados com a função distintiva dos elementos fónicos
que contribuem para marcar as diferenças de significação entre as palavras das línguas
naturais” (ibidem). Alguns deles poderão terão influenciado o trabalho de Saussure:
“estavam estabelecidas as bases conceptuais para uma distinção metodológica, que
acabou sendo levada às últimas consequências pelos linguistas estruturalistas da escola
de Praga” (ibidem), ainda que Fonologia tivesse para Saussure um sentido diferente do
que lhe é dado hoje: “enquanto a Fonética é vista por ele como uma das partes
essenciais da ciência da língua, a fonologia não passa de uma disciplina auxiliar e só se
refere à fala”(ibidem, p44).

Muitas vezes, o ano de 1928, data do 1º Congresso Internacional de Linguística, em


Haia, é apresentado como o ano do nascimento da Fonologia, já com a intervenção
decisiva do linguista Roman Jakobson (Ibidem, p44).

Ao propor um método rigoroso e cientificamente fundamentado para a redução de um número infinito


de sons a um número de unidades linguisticamente pertinentes organizadas no interior de um sistema,
a escola fonológica de Praga ajudou a implementar o programa estruturalista saussureano, pois foi o

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As relações entre a Fonética e a Fonologia continuam a ser um assunto em aberto, mas a Fonética trata
dos sons, a Fonologia das unidades abstractas, que são as peças do puzzle da língua falada. Identificar os
fonemas de cada língua e caracterizá-los é tarefa da Fonologia.

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programa de investigação fonológica da escola de Praga que tornou possível abordar
sistematicamente as unidades abstratas (os fonemas) constitutivas dos sistemas fonológicos, bens
como os vários tipos de oposições e relações que essas unidades podiam manter entre si no interior
desses sistemas. (Ibidem, p44).

A Fonética adquirira já no século XIX grande importância no método histórico-


comparativo e na descoberta de protolínguas de origem. A Escola Neogramática, ao
conferir importância às chamadas leis fonéticas, que seriam universais e inexoráveis,
aumentou a importância do estudo dos sons das línguas ao longo do seculo XIX e início
do século XX. Num texto de 1932, “A Escola Linguística de Praga”, Jakobson criticaria
a visão naturalista dos neogramáticos e de muitos linguistas, e elogiaria o trabalho de
Saussure, e chamaria a atenção para a importância das funções da língua e de como
essas funções moldavam a forma e a evolução das línguas. E salienta a necessidade de
uma nova disciplina: a Fonologia.

Entre essas diferenças nos sons que constituem a fala, adquirem saliência as oposições (...) capazes
de diferenciar, em uma dada língua, os significados. Uma nova disciplina linguística, a fonologia,
estuda essas oposições e o seu rendimento funcional: faz um levantamento do repertório das
oposições significativas em uma dada língua, o sistema que formam entre si, os diferentes tipos de
relação nesse sistema, como as oposições polarizadas ou correlações. (...) A análise fonológica do
inventário de sons de uma dada língua difere radica-mente da análise naturalística da qual se ocupa
a fonética. A fonologia não exclui a fonética, mas enquanto a primeira é uma parte da linguística e
estuda os fonemas enquanto elementos constitutivos de uma determinada língua, a fonética descreve,
do ponto de vista naturalístico, o material sonoro do qual essa língua se utiliza. (Jakobson, 1932)

Enquanto as gerações anteriores punham a ênfase nas semelhanças, na procura da


história das línguas, a Escola de Praga punha a ênfase nas diferenças, na identificação
do sistema fonológico, e em particular nas diferenças distintivas. Essa fonologia de base
estruturalista daria lugar nos anos 60 e 70 a uma Fonologia Gerativa, proposta por
Chomsky e outros linguistas, que poria a ênfase na competência fonológica, ao serviço
da competência linguística. (Ibidem, p47).

Um fonema é uma unidade sonora distintiva numa língua, que não pode ser subdividida
em segmentos fónicos audíveis mais pequenos. Não tem significado, mas introduz
diferenças. A ocorrência de um fonema numa qualquer realização silábica de um
qualquer morfema estabelece diferenças relativamente a outras palavras, com outros
significados. É peça do puzzle que constitui a língua falada.

É preciso ter cuidado, pois se há uma relação natural entre cada fonema e a grafia, essa
relação é imperfeita: o mesmo fonema pode ter escritas diferentes e a mesma escrita
poderá corresponder a fonemas diferentes. Essas diferenças tendem a acentuar-se com o
tempo, pois as línguas evoluem mais rapidamente do que os acordos ortográficos.

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Por outro lado, a cada fonema corresponde um número infinito de realizações sonoras,
todas válidas, deste que se mantenham as mesmas funções distintivas na língua. Para
isso, a realização não pode afastar-se tanto do fonema ideal, que possa ser confundido
com outro. Há também alterações fonéticas provocadas pelo contexto do fonema na
sequência de fonemas, que não são distintivas, mas apenas contextuais. O mesmo
fonema também pode ter uma variação de realização dialectal, social ou mesmo
individual. É preciso, portanto, também distinguir o conceito de fonema de alofone,
variações do mesmo fonema, em função do contexto silábico em que ele ocorre,
dependendo por exemplo da vogal ou da consoante seguinte. Existe ainda o conceito
teórico de arquifonema, resultado de uma neutralização do fonema original, em
determinados contextos, caso por exemplo do /S/ de plural em português, que se
neutraliza em função do fonema seguinte, podendo transformar-se em /z/, /ʃ/ ou /ʒ/. /S/ é
um arquifonema.

Os fonemas de cada língua têm de ser identificados e validados pela metodologia dos
pares mínimos, proposto por Jakobson. Um par mínimo são duas palavras que apenas
diferem num segmento fónico, por exemplo “sapo” e “papo”, ou “chato” e jacto”. Se
“sapo” e “papo” são bem distintos no português, palavras com significados diferentes, o
/s/ e o /p/ têm de ser fonemas distintos do português. Estamos perante um fonema, se a
sua utilização cria ou permite criar novas palavras. O conceito de par-mínimo permitiu
não só ter um critério objectivo para identificar os fonemas de cada língua, mas também
conduziria a um outro conceito revolucionário na Fonética/Fonologia, o conceito de
traço distintivo, mais uma vez pela mão de Jakobson.

A distinção entre o conceito abstracto de fonema e o conceito físico de som, que o


realiza, levou a propor simbologias de representação também diferentes. Por exemplo
para “papo”: /papu/ e [papu].

3.2 Traços Distintivos

Sabemos que o fonema não pode ser subdividido em segmentos fónicos sequenciais
mais pequenos, mas poderá um fonema ser caracterizado por um pequeno conjunto de
traços fónicos distintos, que correspondam a propriedades acústicas ou articulatórias?

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Se não existem oposições binárias nos fonemas, talvez cada som (fonema) pudesse ter
traços, que o caracterizassem, e que se opusessem à ausência desses traços outros traços
em outros fonemas. Assim, construiríamos também para os fonemas um modelo de
oposições elementares.

Esses traços, chamados distintivos, foram identificados para a língua inglesa por
Jakobson et al em 19522.

Os traços distintivos de cada som elementar são as propriedades que permitem


distingui-lo de outros, por exemplo o /d/ é sonoro (vozeado) e /t/ não-sonoro (não-
vozeado), e tal propriedade em oposição permite distinguir “dó” de “tó” no PE.

Numa primeira abordagem, os sons elementares e as propriedades distintivas que os


distinguem poderiam não ser universais, ou seja, as mesmas para todas as línguas.
Assim, por exemplo, as vogais portuguesas nunca seriam descritas como breves ou
longas, por este atributo opositivo não ser usado no português, ao contrário do que
acontece noutras línguas.

… s'il est vrai que les phonèmes diffèrent de langue à langue, chaque phonème n'est lui-même qu'un
groupement de traits distinctifs. Or ces traits distinctifs, dont le nombre est très limité, sont les mêmes
pour toutes les langues (cf. R. Jakobson, C. Fant, M. Halle, Preliminaries to Speech Analysis, M.I.T.
Press, Technical Report 13, 1952, ou bien N. Chomsky et M. Halle, Sound Patterns of English, New
York, 1968) (DUCROT et al, 1998)

Verifica-se por outro lado que os traços distintivos de uma língua são em pequeno
número. Assim, por exemplo, o /d/ tem o traço sonoro que o distingue do /t/, o traço oral
que o distingue do /n/ e o traço dental que o distingue do /g/. Verifica-se que nos cerca
de 30 fonemas, que grande parte das línguas possui, há pouco mais de uma dezena de
traços, que se combinam para distinguir cada um dos fonemas. Esta aparente
simplicidade parece encorajar a caracterização de cada fonema como um conjunto
pequeno de traços distintivos.

Como o fonema era visto como uma unidade indivisível, Jakobson propôs a utilização
do termo segmento para designar cada unidade fónica caracterizada por um conjunto de
traços distintivos. Mas na prática o que observámos, em várias fontes, é a utilização dos
dois termos como sinónimos.

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Os Traços Distintivos foram propostos por Jakobson e al, em 1952, na célebre publicação intitulada
Preliminaries to Speech Analysis, que apresentou uma lista de 12 traços distintivos binários para o inglês.

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Mas se parece haver relativo consenso sobre a existência e a utilidade dos traços
distintivos, há ainda polémica quantos a alguns aspectos que os caracterizam:

a) Devem ser todos binários ou podem ser ternários, quaternários, etc.? Binários
significa que todos se reduzem a um par de valores, como ± traço X, e cada
fonema será caracterizado por um conjunto de n traços +? Para alguns traços, o
carácter binário é evidente, tal como, por exemplo, ±sonoro, mas há situações
em que poderíamos ser tentados a usar traços não binários, como, por exemplo,
para os 3 fonemas oclusivos /p/, /t/ e /K/ usar um traço ternário: labial, dental e
palatal. Enquanto o fonologista Martinet admite traços binários, ternários,
quaternários, etc., Jakobson defende, no seu modelo, o carácter binário de todos
os traços. É uma das razões por que sustenta os traços, não em características
articulatórias, mas acústicas, por serem mais objectivas.
b) Deve corresponder cada traço a uma realidade sonora determinável, observável,
mensurável? Jakobson, novamente, garante que sim. Uma das razões com
certeza por que defende traços acústicos. Cada traço relaciona-se com uma
característica observável, depois de fazer uma gravação, ainda que admita a
possibilidade de camuflagem, por inclusão nos fonemas de características não-
distintivas, a que chama redundantes, que podem depender nomeadamente do
contexto.

Regressaremos às polémicas entre Jakobson e Martinet nas nossas propostas de traços


distintivos para o português e nas críticas aos traços propostos por Mateus et al, 2003.

Traços distintivos seriam características de tipo binário, com valor zero ou um, que
permitem distinguir um som de outro som. Por exemplo no par-mínimo “pita”/”pinta”
[pitɐ]/[pĩtɐ] o traço distintivo que os distingue, no segundo fonema/segmento, é
[±nasalidade]. Todos os traços têm um traço simétrico redundante, e teremos que optar
por um deles. Assim em vez de [+nasalidade] poderíamos dizer [-oralidade]. Os traços
oralidade e nasalidade são redundantes.

Verifica-se que há um conjunto relativamente pequeno de traços distintivos e que cada


língua depende de um subconjunto ainda mais pequeno desses traços linguísticos. Cada
fonema será, portanto, caracterizado por uma sequência de zeros e de uns, associados à
sequência de traços distintivos usada, por exemplo um fonema X poderia ser

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11000000110 – numa língua com 11 traços distintivos3, em que o fonema X apenas
apresenta 4 desses traços.

Será um conjunto de traços distintivos ± que define a característica sonora de cada


segmento, ou numa sequência de segmentos, usando a terminologia que os autores,
Jakobson et al, propuseram, pois consideravam o conceito fonema desadequado, coo
dissemos, por ter sempre correspondido à ideia de unidade fónica mínima. Vejamos por
exemplo os fonemas /p/ e /b/. Têm os mesmos traços distintivos, excepto o traço
[±vozeado]: [p] é [-vozeado] e [b] é [+vozeado]. O que difere entre /p/ e /b/ é apenas o
traço distintivo [vozeado], que tem valor + ou -, em vez do segmento na sua totalidade
(como nos proporia o modelo de contraste fonémico).

Um traço distintivo, até muito importante numa determinada língua, pode não existir
noutra língua. Por exemplo a [±nasalidade] é muito importante no português, mas há
línguas em que não existe como traço distintivo, ou seja, quer os falantes introduzam
nasalidade ou não, isso não terá implicação distintiva nos interlocutores.

O conceito de traços distintivos vai permitir também compreender melhor a evolução


diacrónica de uma língua, por exemplo a evolução de [p][b] por alteração de UM
único traço distintivo, como aconteceu em muitos vocábulos do português, saponem 
sapone sapoe  sapão  sabão.

O conceito de Traços Distintivos constituiu uma ferramenta muito útil para Chomsky et
Halle no desenvolvimento da chamada Fonética Gerativa, cerca de uma década mais
tarde, no conhecido trabalho The Sound Pattern of English, publicado em 1968.

3. A matriz inicial de Jakobson e as propostas para o


português

Depois da nossa viagem inicial de descoberta do famoso artigo de Jakobson e de estudar


a sua revolucionária proposta de 12 traços distintivos para o inglês, encontrámos uma
proposta de matriz de traços distintivos de Mateus et al (2003) para o português. O
estudo que fizéramos ter-nos-á oobrigao, de alguma forma, a fazer uma leitura critica da
matriz de Mateus et al, alimentada por um conjunto de dúvidas que imediatamente nos
despertou.

3
Na fonética/fonologia é usual usar [+] e [-], em vez de 1 e 0. Por outro lado, muitas vezes, para
caracterizar um fonema, apenas se listam traços +.

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3.2 Comentário crítico à matriz de Traços Distintivos proposta por Mateus et Al

Um conjunto dessas questões parece poder resultar da opção das autoras de seleccionar
traços de natureza articulatória para o português, ao contrário de Jakobson, que só
considerou no seu trabalho traços acústicos, que são marcas mais objectivas,
observáveis a osciloscópio ou num espectrógrafo. Acreditamos que a indefinição de
alguns dos traços distintivos propostos pelas autoras poderá resultar precisamente dessa
opção. Às dúvidas nalguns traços somam-se algumas indefinições, aparentemente
associadas a alguma terminologia ambígua utilizada. Depois questionamos também a
lista de fonemas apresentado, no que concerne às vogais do PE.

Matriz de Tralços Distintivos de Mateus et al para o PE

3.1.1 Lista de Traços propostos por Mateus et al caracterizados pelo modo de


articulação que nos suscitam dúvidas

a) Soantes

A definição dada pelas autoras é a seguinte:

Analisemos a definição: lemos “nos sons não-soantes o vozeamento é inibido”, mas,


como sabemos há oclusivas e fricativas vozeadas, por exemplo o /b/ ou o /v/ e,

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como tal, a definição parece ser incorrecta ou, pelo menos, pouco clara. Será que as
autoras pretendiam dizer “nos sons não-soantes o vozeamento-espontâneo é
inibido”? Se for assim, temos de compreender qual é a diferença entre vozeamento e
vozeamento-espontâneo. Fomos à procura. O que encontrámos:

A classe das obstruintes é uma classificação que abrange as consoantes cujo vozeamento não é
espontâneo, ou seja, aquelas cuja produção pode ser feita com ou sem vibração das pregas
vocais. (in Madruga, Rachel, 2018, Fonética e Fonologia da Língua Portuguesa, p57)

Lembrando que Chomsky & Halle já afirmavam, em SPE: "parece que o vozeamento em
obstruintes é algo um tanto diferente daquele observado em soantes". E ainda: "certas
observações bem conhecidas parecem suportar a conclusão teórica de que vozeamento não-
espontâneo envolve ajustes bem diferentes daqueles do vozeamento espontâneo. Assim, a corrente
de ar nas obstruintes vozeadas é notavelmente mais rápida que aquela das soantes", etc.
(Chomsky & Halle 1968:301). Adiante veremos que autores como Piggott (1992) e Rice (1993)
propugnam a existência de dois traços distintos, para os dois tipos de vozeamento. (in Wilmar da
Rocha D’Angelis (1998), Traços de modo e modos de traçar geometrias:línguas Macro-Jê &
teoria fonológica, p143-144)

Ou seja, entendemos que para Madruga um vozeamento espontâneo é obrigatório,


enquanto as oclusivas e fricativas vozeadas podem ser produzidas sem vozeamento.
Mas a ser verdade, tal vai colocar um problema sério na matriz de Mateus et al, pois
esse é o traço distintivo que distingue por exemplo o /p/ do /b/. Já segundo Angelis, os
dois vozeamentos existem, mas têm ajustes diferente. A opinião de Angelis tem a
vantagem de não questionar a matriz pelo flanco, mas parece ser evidente que o
conceito soante, que assenta no tal conceito de vozeamento espontâneo, com um ”ajuste
diferente” continua pouco claro.

Comparando a matriz original, proposta por Mateus et al, com a mesma matriz com
menos esse traço [soante], percebemos a razão de incluir este traço no português.

Verificamos que sem o traço [± soante] teríamos um problema de distinção com o


fonema /ɾ/ que se confundiria com /z/. Ao dizer que o /ɾ/ é soante, resolve-se esta
incongruência. O traço [soante] é pois não-descartável na matriz de Mateus et al.

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b) Coronal

Definição das autoras:

No Portal da Língua Portuguesa encontramos para “lâmina da língua” a seguinte


definição: “A parte anterior da língua compreendendo a ponta e o que se encontra
imediatamente à volta”. Para “coroa da língua encontramos exactamente a mesma
definição”. Já para “dorso da língua” encontramos “Superfície da parte anterior da
língua que não engloba a ponta ou apex”, que parece corresponder a uma zona muito
maior do que a coroa.

Pontos de Articulação e Regiões da Língua

A figura divide a zona dorsal em postero e antero dorsal e é muito grande, parecendo
confirmar que dorsal >> lâmina ou coroa.
“Porque razão o / ʃ/ ou /ʒ/ classificados como dorso-alveolares são coronais? A ponta da
língua está realmente elevada a tocar os dentes ou alvéolos?
c) Anterior
Vejamos o que escrevem as autoras:

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A questão neste traço é apenas um conflito de terminologia, já que as vogais da parte
frontal do polígono vocálico são chamadas ANTERIORES. É o caso do [e], do [ɛ] e do
[i]. Poderia ser “Obstrução Anterior”?
d) Alto e Baixo
Definições das autoras:

A utilização de dois traços, que parece que deveriam ser complementares, de acordo
com a própria definição das autoras (corpo da língua acima e língua abaixo da posição
neutra) acabam por ter excepções estranhas em muitos fonemas: as vogais /o/ e /e/, mas
também as consoantes /l/, /p/, /b/ etc., com dois sinais (-). Ficamos sem perceber onde
está o corpo da língua num /p/ ou num /t/!
e) Recuado
Definições das autoras:

Como pode ser o /a/ recuado pronunciado com a língua totalmente no chão da boca?
Realmente, aqui, a classificação de Mateus et al parece traduzir mais o diagrama das
frequências, ver abaixo, e assim características acústicas em vez de aspectos
articulatórios relacionados com a posição da língua.

3.1.1 Lista de questões sobre as vogais

a) As semi-vogais

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As autoras consideram as duas semi-vogais como fonemas do PE, o que nos parece ser
facilmente questionável. Realmente, se pensarmos bem, as semi-vogais devem ser
consideradas como alofones das vogais respectivas.

O som da vogal [i] e [u] modifica-se num contexto de ser 2ª vogal de um ditongo. A
vogal e a semi-vogal têm distribuição complementar. Não passam no teste dos pares
mínimos. Existem pares mínimos com [i] e [y] por exemplo? Qual? E realmente se
dissermos [pai] com hiato ou (pay] com ditongo, a palavra que toda a gente entenderá
será a mesma, “pai”, por isso questionamos: o [w] e o [j] são realmente fonemas do
PE?

E para distinguir as vogais das consoantes o traço [consonântico] seria suficiente.


Percebemos que foram as semi-vogais que obrigaram as autoras à introdução do traço
redundante [silábico].

b) As vogais átonas

A vogais átonas, o [ɨ] e o [ɐ], pelo contrário, não são consideradas fonemas por Mateus
et al. É no entanto muito fácil apresentar pares mínimos que justificam a sua
classificação como fonemas. Sabemos que resultam de um processo de redução de
vogais anteriores, mas já adquiriram no PE força própria de distinção entre palavras.

Por exemplo “pára “ e “para”: [parɐ] e [pɐrɐ]; ou “quê” e “que”; [ke] e [kɨ]

3.2 Algumas conclusões

As alíneas da secção anterior resumem indefinições ou dúvidas, que na matriz de


Mateus et al alguns dos traços distintivos apresentados nos suscitaram, tal como o
conjunto das vogais que as autores consideram ou não fonemas do PE.

Perante isto, decidimos iniciar um caminho que nos permitisse chegar a uma solução
menos problemática, O método de Jakobson servir-nos-á como inspiração. Os nossos
poucos conhecimentos de fonética, obrigaram-nos nesta fase a tentar o exercício apenas
para as vogai cuja acústica compreendemos. Numa segunda fase tentaremos alargar o
exercício às consoantes, se formos capazes de o fazer.

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4. As vogais do PE e uma proposta de traços distintivos

De acordo com o que escrevemos acima, não consideraremos as semivogais, /w/ e o /j/
como fonemas e consideraremos as vogais átonas /ɨ/ e o /ɐ/ fonemas do PE. As
justificações foram dadas e cremos serem bastantes para o fazermos. Também as vogais
nasais devem ser consideradas fonemas. É fácil uma vez mais encontrar pares-mínimos
para cada uma delas: manta e mata, tenta e teta, pinta e pita, onde e ode, ou nunca e
nuca.

Determinada a lista das 14 vogais a considerar, partiremos do diagrama espectral das


vogais que nos mostra as caracteristicas acústicas de cada vogal. Cada vogal é
caracterizada por duas frequências, também chamadas formantes: uma baixa frequência
e uma alta frequência. Esse par é determinado pelas frequências de ressonância das duas
cavidades ressonantes do sistema falador: a faringe e a boca.

As pregas vocais, ao vibrarem, devido à passagem do ar vindo dos pulmões, geram uma
frequência fundamental, que varia de pessoa para pessoa, e que depende do género, da
idade, etc. Essa frequência base situa-se em torno de um valor médio próximo de 100
Hz. Mas a vibração gera igualmente uma série muito grande de harmónicos com
frequências múltiplas da frequência base. As duas cavidades ressonantes filtram dois
harmónicos, f1+f2, como a figura abaixo ilustra.

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É esse par de frequências que permite gerar o som identificado como cada uma das vogais,
como a tabela e o diagrama abaixo evidenciam.

F2 (alta) F1 (Baixa)
a 1300 750
2200 550

e 2500 350
i 2800 250
1ooo 550

o 800 350
u 700 250
1100 700

ü 2000 250
i 1300 250

Frequências associadas às vogais Diagrama das vogais no PE

Nota: a figura acima foi construída a partir de (Malmberg, 1954, 28)

3.1 Traços Distintivos para as vogais no PE

Ao procurar traços distintivos que sejam evidentes, observando o Diagrama das Vogais,
começamos por constatar que há uma clara divisão em duas zonas na F2 (Alta
Frequência). Parece assim ser lógico criar um traço distintivo F2A (F2 Alta) que
caracterizará as chamadas vogais anteriores: o [i] o [o) e [ɔ] . Já na chamada F1 (Baixa
Frequência), a disposição das vogais parece claramente organizar-se em 4 zonas. Assim
parece ser lógico recorrer a um traço distintivo quaternário, com valores 0, 1, 2, 3.
Somos, desta forma, confrontados no PE com a possibilidade de usar um TD não
binário (FB) associado a um binário (F2A) como se observa na figura.

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Diagrama das Vogais e os dois TDs propostos

Poderíamos assim propor 2 TDs:

F2A (F2 Alta): ± (ou 1/0)

F1 (F1 é Frequência Baixa): 0, 1, 2, 3

A nossa Matriz ficaria:

a ɛ e i ɔ o u ã ẽ ĩ õ ũ ɐ ɨ
FA - + + + - - - - + + - - - -
FB 3 2 1 0 2 1 0 2 1 0 2 0 3 0
Nasal - - - - - - - + + + + + - -
RVA - - - - - - - - - - - - + +

Temos uma matriz para as 14 vogais do PE com apenas 4 Traços Distintivos, em que
um deles é não binário. Temos de confessar, no entanto, que o recurso a traços
distintivos não binários nos causa, por agora, algum desconforto. Mas assumimos este
documento como uma versão zero da nossa proposta, onde podemos confrontar
soluções alternativas. Teremos ainda de a completar com as consoantes, trabalhos que
reservamos para o futuro.

16
Uma alternativa a usar o FB como um traço quaternário seria usar 3 TDs FB250, FB350
e FB400, valores para F1 que caracterizam [i]e [u], [e] e [o], [ɛ] e [ɔ], respectivamrnte.
A nossa matriz seria:

a ɛ e i ɔ o u ã ẽ ĩ õ ũ ɐ ɨ
FA - + + + - - - - + + - - - -
FB250 - - - + - - + - - + - + - +
FB350 - - + - - + - - + - + - - -
FB400 - + - - +- - - - - - - - - -
Nasal - - - - - - - + + + + + - -
RVA - - - - - - - - - - - - + +

Para já não vemos vantagens de uma ou de outra das alternativas que apresentámos.

3.1 Processo Fonológico

Um Processo Fonológico (materializado num conjunto de Regras Fonológicas) traduz


um processo transformativo que transforma um segmento noutro num contexto
específico. Este processo permite representar as transformações fonológicas que dão
origem à língua falada, a que Chomsky chama Representação Superficial.

O Processo Fonológico recorre a Regras Fonológicas bem especificadas, que traduzem


as transformações fonológicas numa língua, pelo recurso ao conceito de traços
distintivos. A Fonética Gerativa cria assim uma ferramenta teórica, um modelo, que
permite explicar a evolução das línguas.

/Representação subjacente/ Regra fonológica 1 Regra fonológica 2 … Regra


fonológica N [Representação superficial]

Por exemplo, um processo fonológico de nasalização transforma uma vogal oral numa
vogal nasal.

Há apenas três tipos de processos fonológicos: 1. modificação de um segmento (o


segmento adquire ou perde traços distintivos), 2. eliminação de um segmento
(representada pela transformação [segmento]  Ø) ou 3. inserção de novos segmentos
(representada por Ø  [segmento], em determinados contextos.

As regras fonológicas são representadas da seguinte forma:

17
Cada elemento da regra – A, B, C, D – vai ser caracterizado por traços distintivos4. O
contexto fonológico é expresso pelo sinal ____, que pode ser precedido ou seguido por
segmentos.

Como exemplo da modificação que referimos teremos,

/ +vocálico +acento / → [+nasal] ∕ ____ / +consonantal +nasal/

Uma regra que se lê: uma vogal acentuada torna-se nasal antes de consoante nasal.
Estamos na presença de um processo fonológico de modificação, pois o nº de segmentos
mantém-se, só os traços distintivos da vogal são modificados.

As regras podem ser ou não obrigatórias, podem implicar ou não uma ordem de
aplicação, para garantir o mesmo resultado, numa determinada língua.

A tabela seguinte mostra um conjunto de símbolos usados para especificar contextos.

Simbologia Contexto

V ____ V contexto intervocálico (entre vogais)

# ____ início de palavra

____ # final de palavra

____ + ____ limite de morfema

____ $ ____ limite de sílaba

A utilização de traços não binários, que propusemos numa das alternativas, obriga-nos
também a propor uma extensão da simbologia para as chamadas regras de geração
fonológica na Fonologia Gerativa.

4
No entanto, por simplicidade, são por vezes utilizados símbolos, por exemplo V para vogal ou C para
consoante. Teríamos / V+acento / → [Ṽ] / ____ /C+nasal/

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Como traduzir com a nossa matriz por exemplo a transformação de [a] em [ɔ] no
dialecto dos Açores, fruto da rotação encadeada das vogais. Propomos:

/ +vocálico +acento [-F2A] [FB3] / → [+FB1]

Em suma, vez dos símbolos +- teremos de indicar o índice original e o final de um TD


que mude.

5. Conclusões
A preencher

6. Bibliografia

ABAURRE, M.B. Marques et al, 2006, O Trabalho e a Frase, Editorial Pontes


CHOMSKY, Noam, HALLE, Morris, 1968, The Sound Pattern of English
DUCROT, Owswald, TODOROV, Tzevtan, 1998, Dicionário Enciclopédico das
Ciências da Linguagem, Editora Perspectiva, p165-169, p213-219
JAKOBSON, Roman, 1932, A Escola Linguística de Praga, Selected Writings: Word
and Language p539-536
JAKOBSON, Roman, HALLE, Morris, FANT, C. Gunnar M, 1952, Preliminaries to
Speech Analysis
MATEUS, M. H. Mira, ANDRADE, Amália, VIANA, M. do Céu, VILLALVA, Alina,
1990, Fonética, Fonologia e Morfologia do Português, Universidade Aberta, pp.235-
239
MALMBERG, Bertil, 1954, A Fonética, Livros do Brasil
MATEUS, M. H. Mira, et al, 2003, Gramática da Língua Portuguesa, Caminho, pp
999-1000
TOLEDO, Cecília, 2017, “Fonologia Gerativa”, UFMG - Universidade Federal de
Minas Gerais

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