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1517 d.C. - A Catástrofe protestante


“Mesmo se derramássemos todo o Rio Elba em lágrimas, não seria o suficiente para lamentar os desastres
da Reforma: é um mal sem solução”. Por mais estranho que pareça, essas palavras não foram ditas por um
católico, mas por Filipe Melâncton, amigo de Lutero e um dos principais realizadores da Reforma. O
próprio Lutero, pouco antes de morrer, escreveu sobre a mágoa que sentia a respeito do caos e da
proliferação das seitas propagadas por seus ensinamentos:

“Devo confessar que minhas doutrinas produziram muitos escândalos. Não posso negá-los,
e isso me assusta, especialmente quando minha consciência traz-me a lembrança de que
destruí a situação na qual a Igreja se encontrava, calma e tranquila, sob o papado”.

Se até mesmo alguns líderes protestantes chegaram a ter essa percepção sobre a Reforma, não espanta que
os católicos a vejam como uma verdadeira catástrofe. O historiador Paul Johnson chamou-a de “uma das
maiores tragédias da história, e a tragédia central do cristianismo”. Ela foi uma catástrofe e um castigo para
a Cristandade; um desastre levado até as últimas conseqüências, pois foi o apogeu de uma série de castigos
sem precedentes, desatrelados no curso dos dois séculos anteriores.

Duzentos anos antes de Lutero pregar suas famosas teses em 1517, o primeiro dos castigos que demoliriam
a civilização medieval já havia sido lançado: a grande fome de 1315 a 1322, que causou muitas mortes no
norte da Europa, onde algumas áreas tiveram uma taxa de mortalidade de 10%. No mesmo século, houve
sete outras grandes fomes no sul da França.

Desastres ainda piores vieram em seguida. Menos de trinta anos depois, a Peste Negra, a maior pandemia
que o mundo já viu, tirou a vida de milhões. Iniciou-se a Guerra dos Cem Anos, entre França e Inglaterra, e
o papado enfrentava uma série de adversidades, entre elas o Papado de Avignon, o Grande Cisma do
Ocidente e a heresia do conciliarismo (que reivindicava para os concílios uma autoridade maior que a do
papa). Como se já não bastasse, um novo grupo muçulmano, os turcos otomanos, invadiu o sudeste da
Europa em 1354.

Por que Deus parecia estar punindo a Europa de Santo Tomás de Aquino e São Luís, de São Gregório VII,
São Francisco de Assis e tantos outros grandes santos católicos? É claro que historiadores seculares negam
que os desastres dos séculos XIV, XV e XVI tenham sido castigos divinos. Para eles, as coisas na história
simplesmente acontecem, sem qualquer plano ou desígnio superior. Mudanças climáticas ocorrem
periodicamente, guerras simplesmente estouram, epidemias podem se espalhar a qualquer momento. Para
eles, o trabalho do historiador consiste apenas em analisar e registrar os acontecimentos e não buscar neles
algum significado transcendente. O historiador católico, porém, vê a história como a ação de Deus no
mundo em que Ele se encarnou. Para isso, Deus utiliza-se de instrumentos humanos, e nem sempre é fácil
notar de que modo e em que lugar opera a Sua mão.

Mas podemos examinar as pistas. Com efeito, desastres e catástrofes aparentam ser respostas de Deus a
ações imorais. Por isso, enquanto o historiador secular considera a catastrófica dissolução da civilização
medieval como um mero fenômeno interessante, eu me inclino a considerá-la um castigo. Mas um castigo
contra o quê, visto que a era precedente parecia tão dedicada às coisas de Deus e à Sua Igreja?
A frieza

São Francisco de Assis já havia notado algo errado em sua época, o começo do século XIII. Apesar da
impressão que se tem do século XIII como uma época fervorosamente devota, Francisco a via como uma
nova “era do gelo” para a espiritualidade. “A caridade”, dizia ele, “congelou”.

Como é possível, no século em que o Papa Inocêncio III ordenara a internação gratuita dos pobres nos
hospitais de todas as grandes cidades, no período em que até mesmo reis e duquesas se dispunham a cuidar
dos doentes, em que se fundaram novas ordens para pregar, ensinar, curar e redimir prisioneiros?

É evidente que São Francisco, ao utilizar a palavra “caridade”, não se referia somente aos trabalhos de
misericórdia corporal — embora estivesse profundamente empenhado neles — mas pensava antes de tudo
naquele terno amor por Deus, ordenado pelo que Nosso Senhor chama de “o primeiro e maior” dos
mandamentos. Era o amor a Deus que havia esfriado. (Vale a pena observar que Dante, ao escrever na
entrada do século XIV, representou as punições dos recantos mais profundos do inferno não com o
tradicional fogo, mas com gelo).

A coleta da Festa dos Estigmas de São Francisco de Assis, em 17 de setembro (Missal Tridentino), se refere
a esse crescente esfriamento:

Senhor Jesus Cristo, que no meio da indiferença do século Vos dignastes, para reacender os
nossos corações no fogo da Vossa caridade, gravar na carne do bem-aventurado Francisco
os estigmas da Vossa paixão, concedei-nos, por seus merecimentos e intercessão, a graça de
sempre levar a cruz e produzir frutos dignos de penitência.

Outro sinal desse esfriamento espiritual é o fato de que o Quarto Concílio de Latrão, em 1215, viu-se
obrigado a exigir o recebimento da Sagrada Comunhão ao menos uma vez por ano, sob pena de pecado
mortal. O fato de que a expressão central da devoção católica — sem mencionar o inefável privilégio —
precisasse ser transformada em obrigação em vez de ser naturalmente considerada uma alegria, mostra-nos
uma vez mais como o fervor religioso havia diminuído. É claro que Deus não responde ao pecado somente
com castigos, ele também envia graças especiais. Aqui, encontramos Deus se revelando de maneira
extraordinária a duas almas santas desse mesmo século: Ele deu à bem-aventurada Juliana de Liège a
missão de promover a Festa de Corpus Christi, para reviver a devoção ao Santíssimo Sacramento; e a Santa
Gertrudes, no final do século, Ele revelou o Seu Sagrado Coração.

A sociedade medieval e o desenvolvimento do comércio

A questão permanece: o que causou essa diminuição do fervor e o crescimento da frieza, mesmo no século
que parece ser o mais católico de todos? Alguns culpam as heresias que colocavam em dúvida a verdadeira
presença de Cristo na Eucaristia. Todavia, a maioria delas havia fracassado e não trouxe muitos danos,
embora tenha sido necessário o uso de grande força militar para reprimir a bizarra seita dos cátaros, que
florescia no sul da França e em partes da Áustria e Itália. O ensinamento cátaro de que toda matéria era
produzida por um espírito maligno atacava implicitamente o culto ao Corpo de Cristo no Santíssimo
Sacramento. No século XIII, contudo, as heresias ainda não tinham a grande influência que viriam a ter
mais tarde dentro da Cristandade; ainda não chegara o seu momento. As heresias medievais, portanto, não
foram a causa principal do crescimento da frieza, tampouco a corrupção que existia em certas áreas do
clero.

Logo, deve haver outro elemento envolvido no enfraquecimento da fé e do amor na Idade Média Plena, e o
ambiente no qual São Francisco cresceu nos dá uma pista dele. Seu pai era um próspero comerciante de
tecidos e residia numa movimentada cidade-Estado, num tempo em que a atividade comercial crescia por
toda a Europa. Por si só, isso não foi algo ruim. Comerciantes e associações de artífices operavam sob
princípios cristãos, prestando serviços sociais aos seus membros, regulando a qualidade do trabalho,
pagando salários dignos e cobrando preços justos. Gradualmente, porém, aumentava a complexidade dos
negócios e o individualismo dos comerciantes; no século XIII, ganhar dinheiro tornou-se uma preocupação
muito maior do que nos séculos anteriores.
Um medievalista francês observou que embora o povo do começo da Idade Média pudesse ser ganancioso,
ao cobiçar terras, prestígio, poder, entre outras coisas, o que ele vê no período final da Idade Média é
diferente. É o crescimento da avareza: o amor pelo dinheiro. Enquanto a cultura dos negócios crescia rumo
ao que por vezes se chama protocapitalismo, os corações católicos se mostravam cada vez mais divididos
entre Deus e o mundo. Um mercador do século XV escreve no topo do seu livro de contabilidade: “Em
nome de Deus e do lucro”. Como observa outro historiador da Idade Média Tardia: “Começou-se a manter
dois tipos de condutas: uma voltada para o lucro e a outra voltada para Deus”.

Nosso Senhor afirma claramente: “Não podeis servir a Deus e a Mamom”. Daí a pobreza radical esposada
por São Francisco: Deus enviara um santo que dizia aos católicos o que estava errado e o inspirara a lhes
ensinar o remédio. Ao que parece, os ensinamentos de São Francisco não foram suficientemente praticados.
A ordem franciscana cresceu rapidamente, e as massas ouviam os frades pregarem. Governantes santos
como Isabel da Hungria e Luís de França entraram para a Ordem Terceira franciscana. Porém, tudo indica
que esse grau de conversão não satisfez os pedidos de Nosso Senhor.

É difícil acreditar que essa crescente preocupação com lucro não teve efeitos sobre a vida espiritual dos
habitantes cada vez mais ocupados das cidades do século XIV. O amor pelo dinheiro talvez não impeça que
uma alma ame a Deus, mas pode facilmente destruir o ardor espiritual, o gosto pela contemplação, pelas
devoções e o zelo pelos trabalhos de caridade. As crônicas nos contam que mesmo depois da Peste Negra,
as pessoas não se tornaram menos avarentas, muito pelo contrário. As heresias que brotaram naquele
momento, de algum modo, causaram mais danos e fincaram raízes mais fortes nas mentes do que as
heresias anteriores; as ideias heterodoxas de John Wycliffe na Inglaterra e Jan Hus na Boêmia duraram
bastante nos seus países de origem. Tudo isso, além dos problemas que prejudicaram o papado e
neutralizaram sua resistência aos males da época, havia debilitado as almas dos católicos comuns, tornando-
os mais vulneráveis aos heresiarcas do século XVI.

Subversão do pensamento

Quanto aos intelectuais, muitos haviam sido influenciados ao longo dos séculos XIV e XV pelas novas
ideias de Guilherme de Ockham, cuja filosofia do nominalismo subverteu a grande síntese escolástica entre
fé e razão, ao destruir sua fundação filosófica no realismo aristotélico. Ockham defendia que a mente
humana é capaz de conhecer coisas individuais, mas não conceitos universais (defendidos pelos realistas),
ou seja, não se pode conhecer Deus pela natureza; algo que é verdadeiro pela fé não o deve ser pela razão, e
vice-versa. Esses são apenas alguns pontos de um amplo e complexo pensamento, mas eles já indicam uma
mudança radical na mentalidade: da confiança dos medievais e clássicos no uso da mente, para o
pessimismo teológico e filosófico.

A perda de confiança na possibilidade de que a razão pudesse demonstrar a existência de Deus, e a ideia das
“duas verdades” (uma de fé e outra da razão) geraram incerteza teológica e até mesmo futilidade. O
nominalismo tornou-se popular entre círculos reformistas; é até possível que tenha sido o motivo de Lutero
se voltar inteiramente contra a razão: “A razão é a prostituta, sustentáculo do Diabo”, escreve ele. “O
Batismo deve eliminá-la”.

O Renascimento do final do século XV e do século XVI desferiu o derradeiro golpe na estrutura


cambaleante da civilização medieval. O individualismo, já alimentado pela nova cultura dos negócios,
tornou-se um verdadeiro culto para escritores como Pico della Mirandola, que glorificava o homem de uma
maneira nunca antes vista em cultura alguma, incluída aí a dos gregos e romanos. Outros exaltavam o
“indivíduo heroico”, enquanto Maquiavel, com o seu infame mote “os fins justificam os meios”, conseguiu
ser o mais imoral de todos os que estavam determinados a manter sua posição e poder. As ideias desses
homens representavam a antítese do pensamento medieval, que valorizava a coletividade em vez do
individualismo, a humildade em vez do orgulho e a moral católica em todas as áreas.
A revolta seguinte

Esses elementos não representam as causas inevitáveis do desastre conhecido como Reforma Protestante,
mas contribuíram para favorecer sua emergência. A frieza espiritual, a preocupação excessiva com os
afazeres mundanos, o individualismo, a exposição a diversas noções heréticas e a corrupção generalizada do
pensamento (o que prejudicou a relação entre fé e razão): todos esses elementos contribuíram para deixar as
mentes confusas e as almas indefesas perante o tsunami que estava prestes a atingi-las.

Aqui já podemos notar a diferença entre essa análise e a versão convencional sobre as origens da Reforma.
O mito da Reforma é descrito da seguinte maneira: No século XVI, a Igreja Católica havia se tornado
mundana e corrupta. O clero era imoral, os mosteiros eram fossas de iniquidade e se praticava a compra e
venda de coisas santas. A situação era intolerável por toda parte, todos sentiam que alguma medida
precisava ser tomada. Havia uma insatisfação generalizada contra a Igreja Católica, e um grande anseio por
uma religião mais simples, fiel aos Evangelhos e que colocasse as pessoas em contato direto com Deus. Por
fim, um corajoso padre alemão, Martinho Lutero, revoltado com a venda de indulgências, indignou-se e
protestou publicamente. Esse foi o começo de uma grande renovação do cristianismo, inevitável e
historicamente necessária.

A maioria dos protestantes, evidentemente, tem aceitado esse enredo, e até mesmo historiadores católicos
aceitaram partes dele, talvez intimidados com a difusão universal do mito nos livros didáticos e nas
universidades. A verdade, porém, é muito diferente.

Em 1991, a Oxford University Press publicou uma revisão do assunto feita por Euan Cameron
intitulada The European Reformation. É um resumo excelente e erudito sobre a Reforma, e inclui uma
investigação das pequenas seitas e das práticas religiosas do povo comum. Contribuiu muito para
desmantelar os elementos do mito reformista. A respeito da afirmação de que a corrupção no clero inflamou
entre o povo um clamor generalizado por reforma, Cameron diz o seguinte:

Antes do ano 1500, padres extravagantes ou libertinos vinham sendo reprimidos em sermões
havia pelo menos 150 anos. São Bernardo de Claraval, já no ano 1150, escrevia
severamente contra a avareza no clero. A respeito de vícios e ambições políticas, João XII
(955-964) ultrapassou facilmente o Papa Alexandre VI. Se os problemas eram antigos,
também eram as críticas. Mas, os agitadores “reformistas” do ano 1500 pensavam que sua
época era um tempo de declínio catastrófico, precedida por séculos de primordial piedade.
É preciso que esse mito seja visto somente como mais um clichê.

Uma abordagem como essa traz novos ares para os estudos sobre a Reforma. Males existiam e sempre
existiram. Os católicos comuns não esperavam que o homem — com sua natureza corrompida — fosse
perfeito, e não mudariam da indignação com as “maçãs podres” dentro do clero para a ideia de que a
própria Igreja devia ser fragmentada. Não há evidências de que a maioria dos católicos sequer quisesse que
a Igreja ensinasse algo que já não fizesse antes. Muitos estavam conscientes da necessidade de reformas
institucionais, para garantir, por exemplo, que os bispos fizessem seu trabalho adequadamente e que os
padres fossem corretamente educados. Com efeito, o Quinto Concílio Geral de Latrão, realizado de 1512 a
1517, incluiu entre os diversos temas a serem discutidos a necessidade de reformas. O seu foco principal,
porém, foram as questões políticas urgentes, e o seu trabalho foi dificultado pelas rivalidades entre alguns
participantes. Talvez tenha sido uma última chance dada à Igreja para que respondesse com vigor à apatia e
ao materialismo dentro do clero; pouco depois, naquele mesmo ano de 1517, era tarde demais, pois Lutero
havia entrado em cena.

Ao analisar as origens da Reforma, é preciso lembrar também que grande parte da Europa não cedeu às suas
ideias. Onde a Reforma de fato ocorreu, observa Cameron, o seu êxito estava ligado à prática de submeter o
dogma ao debate público. Em lugar da verdade revelada por Deus, convidavam-se as pessoas a escolher
aquilo em que desejavam acreditar. Nessas áreas, contudo, a religião misturou-se com a política. O
historiador Carlton Hayes diz: “O protestantismo foi o aspecto religioso do nacionalismo”. Segundo
Cameron: “A Reforma deu a muitos grupos da Europa as primeiras lições sobre o comprometimento
político com uma ideologia universal. No século XVI, a religião se tornou política de massa”.
Três “reformistas”: Lutero, Calvino e Henrique VIII

Não discutirei aqui em detalhes as posições teológicas dos fundadores das três novas religiões criadas na
Reforma. Além da falta de espaço, seria inútil falar sobre a “posição teológica” de um homem como
Henrique VIII. As principais novidades ensinadas pelos heresiarcas se encontram em diversas obras
católicas conceituadas. Em todo caso, minha preocupação é menos com as complexidades teológicas do
movimento herético do que com a questão de por que ele obteve sucesso. Irei simplesmente apontar
algumas características do novo ensinamento protestante que parecem ter agravado o enfraquecido estado
espiritual em que grande parte da Cristandade já se encontrava: esfriamento da devoção a Deus, a Nossa
Senhora e à Santa Eucaristia, preocupação excessiva com dinheiro e aumento do individualismo. Até
mesmo o abuso que levou Lutero a apregoar publicamente suas novas ideias religiosas — que ele já havia
desenvolvido — era o tipo que interessava à sua época: a venda de indulgências.

A questão das indulgências

Essa afronta causou escândalo na época, e embora o Papa Leão X (Giovanni di Lorenzo de Médici) a
tivesse ordenado, algumas autoridades da Igreja não a permitiam em suas dioceses. Leão — que queria
dinheiro para a construção da nova basílica de São Pedro — e um arcebispo alemão endividado com jogos
reuniram forças para implantar a venda de indulgências (reduções das punições temporais decorrentes do
pecado, inclusive os pecados dos indivíduos que estão no purgatório). O famoso verso citado por Tetzel,
“Assim que soa a moeda no fundo do cofre, sai do purgatório a alma que sofre”, talvez seja um pouco
exagerado, mas sintetiza o objetivo da campanha: venda por atacado de benefícios espirituais em troca de
dinheiro.

Esse tipo de comércio imoral não era algo novo; há um vendedor de indulgências trabalhando de modo
semelhante nos Contos de Cantuária, obra de Geoffrey Chaucher, do final do século XIV. O mais
interessante é a razão de esse comércio estar ativo naquele momento. Não se pode imaginar a venda de
indulgências sendo tão lucrativa sem que houvesse uma economia florescente e uma mentalidade receptiva
da parte das classes endinheiradas. É certo que o comerciante, não propenso a adquirir as indulgências
mediante orações e boas obras, e sem tempo para rezar por seus parentes falecidos, viu o mercado de
indulgências como uma bênção. Dinheiro, tinha-o; tempo livre, não. Mais tarde, quando Lutero dizer-lhe
que não existe a necessidade de indulgências e que, portanto, ele poderia guardar seu dinheiro, o
comerciante ficará ainda mais feliz.

As ideias de Lutero se adaptam a uma era comercial e individualista

Podemos agora examinar as ideias de Lutero no contexto de sua época. A sua afirmação de que “somente a
fé” é necessária para a salvação, por exemplo, casou bem com a época, ao livrar-se da necessidade daquelas
penosas boas obras. (Lutero não disse que não se devia fazer boas obras; na verdade, ele disse que se devia
fazê-las; mas é natural ao homem concluir que, se algo não é estritamente necessário para a salvação, pode
ser deixado de lado). Lutero também disse que “o cumprimento dos deveres temporais é a única maneira de
agradar a Deus”. Essa perda na ênfase da contemplação e da vida espiritual provavelmente contribuiu para
o fechamento dos mosteiros e conventos na Alemanha e para a concentração em objetivos seculares, entre
eles o comércio. Isso soou bem aos ouvidos dos burgueses do Sacro Império Romano-Germânico, e se
adaptou bem ao espírito da época. Devemos relembrar que desde a Idade Média reis e autoridades se
esforçavam incansavelmente para controlar as terras da Igreja dentro do império. Não é de admirar que seus
descendentes tenham se encantado ao ver esses valiosos territórios, que seus ancestrais tanto haviam
cobiçado, desprotegidos e sem poder de reação.

Outro ponto que casou bem com a época e que seduziu mentes cada vez mais individualistas foi o princípio
de que somente a Bíblia era a regra de fé e que cada indivíduo podia interpretá-la sozinho.

Como observa um autor moderno, “o mandato divino de decidir o que era verdade e o que era heresia
passou da Igreja — a quem pertencia — para o indivíduo”.
A teologia de Calvino prepara o terreno para os negócios

O pregador francês João Calvino concordava com Lutero em muitos pontos, mas enfatizou a doutrina que
se tornaria seu cartão de visitas: a Predestinação Absoluta. Calvino acreditava que, desde a eternidade, Deus
havia determinado algumas almas ao Céu e outras ao Inferno, e nada que um indivíduo fizesse poderia
mudar sua sentença eterna. Era horrível ter de conviver com uma ideia como essa, e os primeiros calvinistas
freqüentemente se angustiavam com a noção de que talvez estivessem condenados e que não podiam fazer
nada a respeito.

A teoria, porém, fora de algum modo abrandada pela ideia de que se o indivíduo fosse um dos “eleitos”,
sabê-lo-ia mediante alguns sinais de Deus. Acreditar nos ensinamentos calvinistas seria um desses sinais,
assim como se comportar bem; mas o sinal mais seguro, porque mais objetivo, seria o de que os negócios
mundanos da pessoa estavam melhorando. Isso se inspira no modo como Deus lidava com os hebreus no
Antigo Testamento, recompensando-os com prosperidade material quando eles O agradavam.

Henrique VIII promove o cisma da Inglaterra

Diferentemente de Lutero e Calvino, Henrique VIII não pretendia criar uma nova teologia; ele queria
apenas um divórcio, mas o papa não queria concedê-lo.

Quando fez de si mesmo o chefe da Igreja na Inglaterra, rompendo com Roma, ele primeiramente criou um
cisma, e não uma nova igreja. Contudo, mesmo antes de morrer, depois de ter passado por mais dois
divórcios e ter executado duas esposas, seus colegas de ideologia protestante haviam começado a introduzir
mudanças na liturgia católica.

Durante o reinado do sucessor de Henrique, surgiu a Igreja da Inglaterra. Era uma nova seita protestante
que costurara remendos católicos com diversas ideias heréticas e uma forte associação à coroa e aos deveres
patrióticos. Mais tarde, alguns calvinistas — sempre radicais e militantes — se tornaram muito influentes
no país, a ponto de, no século XVII, conseguirem implantar uma revolução e executar o rei legítimo (Carlos
I). Essa influência calvinista afetaria a sociedade e a economia tanto na Inglaterra como nos Estados
Unidos, onde rebeldes puritanos fundaram as primeiras colônias da Nova Inglaterra em 1620 e 1630. As
ideias calvinistas inglesas contribuiriam para moldar a perspectiva americana sobre a vida política, social e
econômica.

Os resultados

Conhecemos bem os resultados da Reforma. Criaram-se novas religiões hostis a Roma e, geralmente,
submissas às novas monarquias sob as quais haviam emergido. A Cristandade foi fragmentada de modo
irreversível, e a Igreja perdeu grande parte da Europa, a qual conseguira unificar a duras penas durante a
Alta Idade Média. Os santos da Contrarreforma conseguiram recuperar alguns desses territórios e reformar
os abusos na administração eclesiástica, mas grande dano já havia sido causado e grande parte da
Civilização Ocidental permaneceria infestada com ideias protestantes. O Padre Frederick Faber, um
convertido do anglicanismo, analisou diversos efeitos da mentalidade protestante nos católicos da Inglaterra
do século XIX. “É difícil”, observa ele, “viver entre icebergs e não sentir frio”.

Em um de seus livros, ele aponta um dos resultados mais prejudiciais da convivência dos católicos com os
descrentes:

As Sagradas Escrituras comparam a vida a uma terra cansada (...) Assim é com a religião.
Não podemos viver entre descrentes e, ao mesmo tempo, gozar da brilhante vida espiritual
dos que vivem nos tempos e regiões de fé. Os que passam a vida numa espécie de Éden
doméstico, que deixariam senão com pesar, e convivem em demasia com os que não são
filhos da Igreja, logo são prejudicados por estas relações, desde que vivam em paz com
aqueles a quem nunca deveriam cessar de tentar converter. A fé, bem como a santidade,
debilita-se e fenece no convívio de tal sociedade, cuja atmosfera não lhes é conveniente. Daí
originam-se tantas opiniões estranhas sobre a facilidade da salvação para os hereges, indo
até a baixeza de considerar a bondade de qualquer doutrina como medida de verdade. E
bondade, entenda-se, não para com Nosso Senhor e a Sua Igreja, mas para com os que não
estão ligados a Ele ou a Ela.

Quem, hoje em dia, não tem na família ao menos um descrente, com o qual ninguém quer discutir, para não
ter que perturbá-lo com incômodas questões religiosas?

O processo de mudança da civilização católica da Idade Média até a fragmentação do mundo cristão no
século XVI pode se resumir da seguinte maneira: a cobiça e a mundanidade primeiro produziram
indiferença às coisas de Deus, e o amor por Nosso Senhor esfriou. Quando nem sequer os numerosos santos
que Deus enviou no século XIII puderam tocar os corações dos cristãos na medida que Ele desejava, a
Europa sofreu os castigos da fome, da peste e da guerra. Conseqüentemente, os homens cresceram piores e
não melhores. Até mesmo os papas foram punidos com cismas e heresias. O castigo seguinte, muito pior,
foi a difusão de erros filosóficos e teológicos em toda a Cristandade por heresiarcas carismáticos e
obstinados, pregadores de falsas doutrinas e ódio à Igreja.

Esse processo continua até hoje. Com efeito, o julgamento privado alcançou sua conclusão lógica no culto
do homem moderno: a partir do conceito “todo homem é um papa” durante a Reforma, para a ideia de que
“todo homem é seu próprio rei” no período revolucionário seguinte, chegando ao atual “todo homem é seu
próprio deus”. É verdade que a Igreja da Contrarreforma, cuja ponta de lança foi o Concílio de Trento,
reformaria abusos e conseguiria grandes vitórias. Papas exemplares a lideraram, e ela recebeu a graça de ser
auxiliada por vários santos. O número total das legiões de almas que ela não pôde recuperar na Europa
talvez tenha sido compensado pela conversão de milhões no Novo Mundo.

Entretanto, muito do que se perdeu nunca mais foi recuperado. A Igreja, no mundo moderno, tem
permanecido na defensiva, e todos nós fomos afetados pela mudança do clima intelectual originariamente
introduzido pela mentalidade protestante.

Fonte: Dez datas que todo católico deveria conhecer, Castela Editorial, 2013.

Tradução de Gabriel Galeffi Barreiro

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