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LUCIO FLAVIO RODRIGUES DE ALMEIDA "As redefinigdes do nacionalismo populista no Brasil” fe i ie ie ad. “ eo ATI Dissertagio apresentada como exigéncia parcial para a obteng3o do Grau de Mestre em Ciéncia Po litica no Instituto de Filosofia e Ciéneias Hu manas da UNICAMP, sob a orientagao do Prof. Dr. Décio Azevedo Marques de Saes. Campinas, 1984. UNIC AMP BIBLIGTECA CENTRA LUCIO FLAVIO RODRIGUES DE ALMEIDA “As redefinigdes do nacionalismo populista no Brasil" Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas, UNTCAMP 1984 I - Introdugao ........ sees e ee ee eee 4 1. © tema ., peeeeee ceeee 4 2. A bibliografia ........e. eee eee 5 3. Teorla e método ........44 a, Nagio e nacionalismo: algumas questées gerais ... 11 b. © itinerario de Stalin ..........000eeeeeeeeeeeee 13 ¢. Elementos para uma andlise do nacionalismo 20 d, As variantes ideolégicas ..........ceeeeeeeeeees 26 Be OBJOEO eee ee eee e eee e cece eee ee vee 320 TI - A_constituiggo do nacionalismo populista ...............5 32 1. A crise estrutural .............e cess eee eee 32 2. A matriz ideolégica . cite eee eee ceteteeeeeeee 40 HII ~ © nacionaliomo militar eeeeeeee eee eee ec eee cette ene e ee 43 1. 9 nacionalismo burocr&tico ....... weeeee 46 2. © nacionalismo da burguesia industrial ..... sees 71 IV - A crise do nacionalismo militar ...........0.0...0000e eee 82 1. A burguesia industrial escolhe o seu modelo ........ 82 2. OP. C. B. entra, a burguesia industrial sai ....... 87 3. A exacerbag%o do nacionalismo burocratico 93 V - 0 nacionalismo trabalhista ............0. eee eee eee seve 100 1. 0 nacionalismo da burguesia industrial ............. 100 2. © nacionalismo burocratico .i.eeeee eee eee eee eee eee 107 VI ~ QO nacionalismo triunfante .......... 1. © nacionalismo da burguesia industrial ........ 14 2. © nacionalismo burocrAtico ......ceeee sees eee e eee ees 120 VII - 0 nacionalismo reformista ...........eeeeeeee eee eee 127 1, © ascenso do nacionalismo popular .........e.eeeeee5 127 2, A burguesia industrial abandona o populismo .... 148 3, A exacerbagao do nactonalismo burocratico + 167 VIII - Conclus&o .........0.-..0 185 IX ~ NOtQS veeeeeeeeeeeeeeeceeeeeee eens 189 X - Bibliografia ... 210 “or l'essence d'une nation est que tous les individus aient beaucoup de choses en commun, et aussi que tous aient oublié bien des choses.” Renan (1) "explorar no Brasil, a justo titulo, sim; ndo explorar o Brasil." Citado em "0 Semanario” (2) 1 = Introdugao 1, 9 tema No interior do espélio politico e intelectual legado pela po- litica populista, o nacionalismo ainda avulta como uma questao pen dente. Nao faltaram aqueles que, em none do movimento operdrio, des- cartaram-no como um traste indesejavel. Ideologia que consagrava uma politica de colaboragao de classes, pedra de toque de uma ali- anga espiria do movimento operario com o populismo em crise, opgao catastréfica em nome da qual os principais grupos de “esquerda" a- bandonaram a tarefa de atribuir uma organizagao auténoma & classe operaria, o nacionalismo teria arrastado o movimento popular rumo ao abismo de 1964. Por outro lado, apesar do grande impacto que aquela ideologia exerceu, poucos atores sociais que participaram ativamente das lu- tas do perlodo 30-64 reconhecem-se como seus “suportes". E os que 9 £azem nao identificam no nacionalismo populista as caracteristi- cas mencionadas acima, tendendo, ao contrario, a atribuir a derro- ta de 1964 mais aos "acertos" do que aos "erro: entio realizados. Alom disso, aquele veredito nao conseguiu eliminar intedramen te a atrag&o que o nacionalismo tem exercido sobre importantes se- tores da vida politica brasileira, em particular entre as “esquer- das", nas duas Gltimas décadas. Palavras de ordem nacionalistas es tiveram presentes nos movimentos populares urbanos dos anos 67-68, que chegaram a momentos de contestagdo frontal A ditadura militar, assim como nas pregagSes dos sucessivos partidos de oposigao legal ao regime. Mesmo alguns oficiais plenamente identificados com 0 movimento de abril de 1964 e que cxigiam um maior “endurecimento” do regime durante 0 governo Castelo Branco, ao se identificarem com um certo tipo de nacionalismo, no deixaram de provocar certo "frisson" entre correntes que se pretendiam identificadas com a transformagao socialista da sociedade brasileira. Por sua vez, o envolvimento das oposigées com a candidatura do Gal. Euler Bentes Monteiro revelaria que tal atragao era algo mais do que um deslize ocasional. Finalmente, existem os que pretendem demonstrar que, as sim como as politicas de desnacionalizagao das economias dos pai- ses latino-americanos tem sido implementadas por regimes ditato- ydais, o nacionalismo que surge nas sociedades situadas ao sul do Rio Grande @ intrinsecamente democratico. Tudo isso leva-nos a supor que nacionalismo e populismo, embo ra tenham tomado o mesmo barco, n§o pereceram juntos durante o nau fragio. Portanto, a importancia de um debate sobre o nacionalisno no Brasil n3o possui uma dimensio apenas acad@mica nem, tampouco, se restringe a um periodo histérico j4 encerrado. 2 - A bibliografia No esforgo de revisdo dos axiomas correntes no pensamento das "esquerdas" antes de 1964, um lugar destacado coube 4s —erfticas das teses que imputavam 3 “burguesia nacional" um projeto de desen volvimento capitalista autGnomo, Para realiz&-lo, ela teria de se defrontar com o imperialismo, especialmente o imperialismo norte- americano, e seus aliados internos, o latiftindio semi-feudal e se~ tores da burguesia comercial (3), Por exemplo, uma critica sistematica das teses que informavam a estratégia de alianga da classe operaria com a "burguesia nacio- nal” seria feita por Prado Jinior (4}. Para ele, tal estratégia te ria sido decalcada do processo histérico chinés, radicalmente dis- tinte do brasileiro, Aqui, quem, eventualmente, por motives t&ti- cos, levantava uma bandeira nacionalista, era um setor da burgue- sia, uma burguesia de Estado, ligada ao que Prado JGnior denomina “capitalismo burocratico", o qual teria seu ritmo de expansio de- terminade pela maior ou menor amplitude dos empreendimentos econd, micos estatais. Por outro lado, o conjunto da burguesia brasileira nao teria interesses antagdnicos, mas complementares, aos do capi- talismo internacional. © equivoco das esquerdas, ao se aliarem ao "capitalismo burocrtico", tomando-o por uma "burguesia nacional", teria sido o responsivel pela disseminagdo do nacionaiismo no in~ terior do movimento popular. Furtado (5) também descartaria a possibilidade da existéncia de uma “burguesia nacional" nos paises “subdesenvolvidos". Ao con- tr€rio do ocorrido em certos paises europeus, onde o car4ter nacig nalista da burguesia formara-se anteriormente 4 revolugao — indus- trial (no caso, tratava-se de uma burguesia mercantil), no Brasil a classe dos industriais constituira-se acoplada ao comércio exter no, que lhe proporcionava tanto o mercado interno como as divisas para a aquisigao de equipamentos e matérias-primas importados. Fur tado admitia, porém, gue oposigées entre empresarios brasileiros e © capitalismo internacional ocorressem no plano subjetivo. Por outro lado, principalmente no que se refere as relagdes entre cidade e campo, a critica do modelo corrente entre as "es- querdas" no perfodo final do populismo inseriu-se num debate mais amplo, que envolveu grande parte da intelectualidade latino-ameri- cana ao longo dos anos 60: a critica das teses dualistas em suas varias modalidades (6). Segundo Prado Jinior (7), as relagdes de produgao na agricultura brasileira, mesmo nos setores de mais bai- xa produtividade, sao capitalistas, Por sua vez, Castro (8) e Oli- veira (9) situam-se entre os autores que sustentam a tese da fun- cionalidade do desempenho da agricultura brasileira para o proces so de acumulagao industrial. Na auséncia de uma "burguesia nacional” - e, de resto, de seu principal antagonista interno, © latiffindio semi-feudal - quais te riam sido as bases sociais que possibilitaram ao nacionalismo tor- nar-se, para usar uma expressao consagrada, a linguagem politica dominante nos filtimos anos do periodo populista? Apesar do carater intelectualizante da critica de Prado gf- nor ao equivoco tedrico das “esquerdas", suas referéncias ao "ca- pitalismo burocratico” tiveram o mérito de apontar para uma outra diregdo de andlise, a qual se mostraria bastante fecunda om varios outros estudos que abordaram o nacionalismo no Brasil. Referimo- nos a0 papel do Estado e dos setores sociais mais diretamente liga dos ao seu aparelho como suportes de uma ideologia nacionalista ou, quando menos, de uma "ideologia de Estado" travestida de nacio nalismo. Esta foi a direg&o seguida, entre outros, por Weffort, para quem 0 nacionalismo era "transfiguragio tedrica do populismo" (10), 0 nacionalismo & ai inserido nos quadros de um sistema poli- tico em que o Estado apresentava a especificidade de ser um Estado de compromisso ¢ um Estado de massas, Estado de compromisso entre ©s grupos que constituiram a coalizdo dominante no periode que se abriu com a “revolugao de 1930". & Estado de massas porque, como nenhum desses setores era capaz de constituir uma base de Legitind dade para o Estado, esta seria encontrada nas massas urbanas. Tal situagao teria tornado possivel que o Rstado obtivesse no compro- misso entre os grupos dominantes uma nova fonte de poder e passas- se 4 condig&o de arbitro entre as classes, formulando uma politica de desenvolvimento econdmico e social niio subordinada aos interes- ses imediatos de nenhuma delas. Nesses termos, o nacionalismo pas~ saria a ter significado politico ao servir de cobertura teérica ¢ ideolégica para o desenvolvimentismo. Em textos posteriores, nos quais procura analisar as condi- goes em que teria se realizado @ alianga do movimento operario com © populismo, Weffort afirma que o nacionalismo, que seria, alias, antes uma ideologia de Estado que nacicnalisno “stricto sensu", te ria penetrado no P. C, via influencia do tenentismo de esquerda, principalmente quande o grupo de Prestes assumiu a lideranga daque te partido, nos anos 45-46. Nesse periodo, teria fracassado um pri meiro ensaio de alianga do movimento operario com o populismo, Es~ sa alianga sé se realizaria em meados dos anos 50, quando aquele regime 4 estava em crise, Para justificd-la 6 que teria sido ela borada a concepgao de uma "burguesia nacional", Isso numa época em que se iniciava um intenso processo de associagao entre o empresa~ riado industrial brasileiro e o capital internacional (11). Cohn (12) situa as origens do nacionalismo na oposigio de es- tratos médios (intelectuais e burocracia de Estado) 4 intensa pene tragio de grupos estrangeiros na economia brasileira apds a queda do Estado Novo. Entretanto, essa penetragio cada vez mais ostensi- va teria provocado o enfraquecimento do nacionalisno, nao fosse sy a undée ao desenvolvimentismo, que o I. §. E. B. transformara em i deologia oficial, justificadora de uma industrializagao a qualquer prego, O nacionalismo teria sido, assim, predominantemente, uma i- deologia da burocracia de um Estado promotor de uma politica de de senvolvimento capitalista, embora fosse encampado, taticamente, pe lo médio capital. A ele teria aderido oP. C., que, colocado na clandestinidade e isolado das massas, teria orlentado sua agio em fungdo do Estado. E ao atuar principalmente no interior do apare- iho estatal, como grupo de pressio, o P. C. teria colocado a clas- se operaria dependente das iniciativas da burguesia no poder. Abramos um paréntese. Embora as diversas interpretagdes do nacionalismo populista expostas até aqui expressem perspectivas teéricas distintas, elas apresentam, ao lado de sua inegdvel fecundidade, tres dificuldades bastante somelhantes. Em primeiro lugar, ao nivel tedrico, elas est&o demasiado pre sas a uma dicotomia conflito-complementaridade. Segundo elas, ou os empresarios nacionais tinham interesses contraditérios aos do capitalismo internacional ou, ent&o, n§o os tinham. Tal polariza~ do impediu as diversas andlises de apreendercm © sentido histori- co do processo de desenvolvimento capitilista no Brasil, assim ‘co mo os niveis diferenciados de integragdo e de conflitos dos dife- rentes setores do capitalismo brasilciro om relagdo ao sistema im- perdalista. E, sobretudo, impediram que se compreendesse que as re lagSes entre certas forgas que assumiram a ideologia nacionalista no Brasil e o sistema capitalista internacional incluiam, ao mesmo tempo, uma unidade e uma contradigo (13). Unidade em relagao continuidade nos quadros do sistema imperialista; e contradigao porque se tratava de uma luta para ocupar uma nova posigao no inte rior desse sistema. Bm segundo lugar, tais andlises sdo centradas, de modo mais ou menos explicito, na relagdo (apresentada como real ou imagina— ria) entre a ideologia nacionalista e um Gnico setor ou instancia da seciedade brasileira (burguesia nacional, Estado, burocracia de Estado}, este e aquela dotados de homogeneidade interna ao longo de todo o periodo, Tal relagdo univoca impediu as analises de com- preenderem que o nacionalismo populista comportava distintas vari- antes, cujo conhecimento @ importante para a apreensdo das redefi- nigdes daquela ideologia. Finalmente, uma questao de ordem histdrica, onde se entrela- gan as implicagdes teéricas apontadas acima. Os dois problemas men cionados revelam-se claramente quando se trata de submeter esses crit@rios a um teste decisivo: a explicag’o do que certos autores chamam de “o paradoxo do nacionalismo brasileiro". Como explicar que o momento de maior desenvolvimento do nacionalismo tenha sido Posterior a um intenso processo de associagao dos capitalistas au- tStones com o capital imperialista? f diffcil conceber uma espé- cie de derrapagem da ideologia em relagao & mudanga do padrao de a cumulag%o capitalista desencadeada a partir de meados dos anos 50 no Brasil, mudanga que j4 traria em seu bojo, como um efcito irre- versivel, 0 colapso do nacional-populismo em 1964. Por outro lado, a menos que se admita que tenha sido aberto, a partir da segunda metade dos anos 50, um proccsso qualitativamente distinte (0 que lo nao & © caso para os autores em questio), esse “vazio" também com- Promete as bases da anAlise do nacionalismo no que se refere ao pe rfodo anterior A chamada "internacionalizagio do mercado interno", Curiosamente, uma das tentativas de preencher esse "vazio" da an&lise ressuscita, com algumas nuances, a tese da "burguesia na- cional". & © que ocorre, por exenplo, com Martins (14), para quem @ "burguesia nacional auténoma* teria, juntamente com a burocracia estatal @ certos estrates médios, liderado a alianga nacional-popu lista e se constituido no fulero do nacionalismo brasileiro, Entre Fantor ao longo do periodo desenvolvimentista, muitos foram os des falques sofridos pelas forgas dirigentes desta alianga, normente no que se refere 4 burguesia nacional auténoma, devido ao processo de assoclagdo com o capital imperialista. De classe com veleidades portadora de um projeto de desenvolvimento capitalista autdnomo, ® burguesia nacional chegara ao limite de reduzir-se a uma constru Gho ideoldgica Geil no sentido de leyLtimar a altanga hacLonal-po= pulista frente ao conjunto das classes dominantes. A anflise de Martins carcce de uma fundamentagio tedrica e hist6rica justamente no que se refere A sua tese principal: a da e xisténcia de uma burguesia nacional autOnoma nos quadros do popu- lsmo brasileiro, Porém seu trabalho possui o mérito de tentar a recuperagao do sentido das praticas politicas ¢ ideolégicas nos a~ nos finais daquele periodo. Outra tentativa de explicar o "paradoxo do nacionalismo", em- bora sequindo uma diregio oposta A de Martins, @ feita por saes (35), Partindo da an§lise de Silva (16), ele considera o populismo como inserido no processo histérico de transigio do capitalise a+ gro-mercantil para 0 capitalismo industrial, ao mesmo tempo em que incorpora certas hipéteses de Weffort © de Cohn, Forma de “culto fo Estado", o nacionalismo seria mais voltado para a capacidade de autodeterminagao do Estado do que propriamente para a desnacionali zagdo Ga economia. Nas conjunturas em que a diminuigio da sobera- lL nia do Estado era percebida por sua burccracia como decorrente da dominagao imperialista, o nacionalismo incorporava-se, por meio da quela categoria social, & ideologia de Estado e, via organizagdes de esquerda, impregnava 0 movimento popular em ascenséo esponta~ nea. Ao se converter em forma de expressio desse movimento, 0 na- cionalismo, no qual a burguesia industrial nfo se reconhecia, era percebido por esta como uma ameaga, contra a qual ela nao vacila- xia em lutar abertamente em 1946. Pode-se, portanto, a partir das analises de Saes, pensar em certas variantes do nacionalismo populista, na medida em que tal i deologia se atualizaria ao se incorporar 4s praticas politicas de distintos grupos sociais. Isso permite, por exemplo, no que se re- fere ao inicio dos anos 60, formular hipéteses distintas daquelas que partem da vinculagao exclusiva e um tanto mecinica da intensi- ficagSo do nacionalismo ao novo padr3o de acumulagio capitalista que estava sendo implantado. Ao mesmo tempo, tal perspectiva tal- vez possibilite jogar luz sobre outros aspectos do nacionalismo en fases anteriores do periodo, 3 ~ Teoria e método Para isso, exporemos, em primeiro lugar, os pressupostos ted- xicos e metodolégicos mais gerais de nossa analise para, em segui- da, precisar o sentido como qual, & luz desses referenciais, sera utilizado © conceite de variante ideolégica com vistas 4 analise de um fendmeno ideolégico especTfico: o nacionalismo populista no Brasil. 3.a = NagHo e nacionalismo: algumas questées gerals © que @ a nagio? Decididamente, este n&o parece ter sido o modo mais feliz de 12 iniciar uma analise da questio nacional, A partir dai, chegou-se, por exemplo, a elaborar um conceito de naga abstraindo-se a(s) caracteristica(s) comum(ns), invarié~ vel(eis), dos diferentes fatos nacionais em diferentes lugares. PO de-se, também, seguir o trajeto opost. # Considerar os diferentes fatos nacionais como realizagdes mais ou menos acabadas da essén- cia nacional. Hm um caso como no outro, fica dificil escapar a uma aborda- gem empiricista-essencialista da questao (17). Pode-se, inclusive, fazer um estudo de tipo histérico evolutivo da nagao, tentando a- companhar suas sucessivas fases de desenvolvimento. Podo-se até so fisticar a analise, incorporando os pressupostos “dialéticos* de que as nagdes, como tudo na vida, estado sujeitas A lei da mudanga, tendo um comego, um desenvolvimento © um fim. Pode-se mesmo consi- derar que elas nao existem isoladamente, mas se relacionam como ambiente em que se desenvolvem, Mas, a menos que reduzamos a dialé ‘ica a um mero evolucionismo, um problema de base permanece. Parece-nos que ele consiste, no essencial, em deixar incélume # radicalidade da nagio, seja como um fato irredutivel (esta ou ax quela nagdo), seja como uma esséncia fundadora (a nagio). © primeiro trajeto, tipicamente empiricista-positivista, 8 0 que nos interessa mais de perto, pois 6 por al que, mais frequente mente, as ideologias nacionais adquirem uma aparéncia "cientifi- ca". Sua analise tem, portanto, implicag3es teérico-politicas dema Siado importantes para que a descartemos como uma simples querela de "escolas” © que esta em jogo &, a0 nosso ver, a possibilidade de ultra- Passar © campo das representagdes ideolégicas da naglo (as quais se travestem de "fatos") e, com isso, o carater critico (isto 6, explicativo) da teoria. Limitando-se a teoria 3 tarefa de depurar agueles "fatos" por meio de uma abstragio que isolaria seus aspectos “essenciais", blo 13 queta- © © processo do conhecimente (tcoria-pratica), no qual, ao mesmo tempo em que se reconhece a realidade empirica da nag3o, ne- ga-se a sua radicalidade, ou seja, faz-se sua critica. Em outros termos, fecha-se 0 caminho para que se introduza o aparente (um as pecto do real) em sua teia de determinagdes, o que possibilitaria, por um lado, conhecer a sua necessidade e, por outro, fazer a sua critica tedrica, condigio, alias, do conhecimento daquela necessi- dade. Julgamos de melhor fundamentar e desenvolver essas teses, to maremos como referéncia uma posi¢&o que, para a maioria das corren tes tedrico-politicas surgidas no bojo da IIT Internacional, che- gou a ter ares de paradigma. Referimo-nos 4 abordagem staliniana da questdo nacional, que, consiste, furdamentalmente, na conceitua yao de "nagdo", com a qual Stalin inicia seu ensaio "0 marxismo e a questdo nacional" (18) e em certas formulagées do capitule iv de "Fundamentos do leninismo", intitulado "0 problema nacional" (19). Propomos a hipétese de que, na medida em que acrescentou algo de especificamente seu @ analise do problema, stalin dispensou-lhe um tratamento teGrico-metodolégico de fundo positivista (no sentido que definimos acima). 3.b - © itinerario de stalin Propondo-se a responder 4 questic que ele mesmo formula, a qual, alias, @ a mesma do austro-marxista Bauer ("o que @ a na+ g30"?), Stalin parte da premissa de que a nagao 6 uma "comunidade determinada de individuos" (20), Comunidade determinada porque, se gundo Stalin, nem toda comunidade @ uma naglo. Cabe, entdo, inves- tigar quais as determinagSes que constituom esse tipo cepeci fico de comunidade. Como Stalin pretende se desincumbir dessa tarefa? Trata-se, para ele, de fazer um levantamento dos tracos, dos "indi ces", que, somados, caracterizariam a nagiio. A cnumeragio desses indices constitui, assim, 0 segundo momento de seu trajeto. 14 A nag3o nao & uma comunidade " le raga nem de tribo, A atual nagéo italiana, diz Stalin, foi formada de romanos, germanos, e+ truscos, gregos, drabes, etc,, assim como os ingleses e¢ alemies “constitufran-se em nagdes com homens pertencentes a ragas ¢ a tri bos distintas" (21). Assim, recorrendo a una oposigio que nfo nos parece evidente ("raga" e "tribo" seriam comunidades a-histéri- cas?), Stalin chega ao primeiro Indic a nago é "uma comunidade humana historicamente constituida" (22). Para explicitar o segundo indice, stalin recorre a um outro contra-exemplo: os grandes Estados de Ciro ou de Alexandre, "“embo- ra fossem constituidos historicamente, formados de tribos e de ra- gas diversas", n3o eram nagdes, mas “aglomerados de grupos", forma os ao acaso e pouco coerentes, que se juntavam ou se desagregavan na esteira das vitérias ou derrotas deste ou daquele conquistador. assim, observa Stalin, "a nag&o no 6 um aglomerado acidental ou fémero, mas uma comunidade humana estavel" (23). Por outro lado, nem toda comunidade estavel @ uma nagio. A Austria e a Rissia, diz Stalin, sio commidades cstdvels. entretan to, ninguém "as chama de nagées". Elas formariam "comunidades de Estado" € ndo comunidades nacionais. 0 que distinguiria uma das ou tras?’ Para Stalin, no se pode conceber a comunidade nacional sem uma lingua comum, ao passe que esta nao é obrigat6ria para o Esta- do. Chegamos, assim, ao terceiro Indice arrolado por Stalin: “a co muntdade de idioma 6 um dos tragos caracterfaticos da nagio" (24). Mas isso nao significa que cada nagio fale um idioma diteren- te nem, Inversamente, que todos os que falem a mesna Lingua const, tuam uma fnica nagéo, "Uma lingua comum para cada nagiio , diz sta- lin, mas nfo necessariamente linguas diferentes para as diversas nagSes!" (25). Por que ingleses ¢ norte-americanos nfo constituen wa 5 nagio? Segundo Stalin, a comuidado nacional sd pode constituir no decorrer Ge relagdes "prolongadas e regulazes ... de uma vida em comum das pes 15 as, de geragSo a geragiio", © isso G impossivel sem um territério comum. Portanto, uma primeira explicagio para o fate de aqueles dois povos nao constituirem uma nagio estaria no fato de viverem em territérios diferentes. “A comunidade de territério" afirma Stalin, "€ um dos tragos caracteristicos da nag&o" (26). Todavia, diz Stalin, isso nao @ tudo. Sd a comunidade de ter- ritdrio nfo seria suficiente para fazer de ingleses e norte-ameri- canos uma finica nagao. Também seria necessario que houvesse uma li gagdo econdmica interna que juntasse "as diversas partes da nagio em um todo iinico". 0 quinto indice 8, portanto, “a comunidade de vida econdmica" (27). Mas as nagSes no se distinguem apenas pelas condigées de vi- Ga. Cada uma delas também se caracteriza por "sua psicologia", que se expressa no que cada cultura nacional tem de particular . Qual- quer conceituagio ficaria, portanto, incompleta se nado levasse em conta “as particularidades psicolégicas dos individuos reunidos em nagio". Chegamos, assim, ao filtimo indice levantado por Stalin comunidade de formag&o psiquica, que se traduz na comunidade de cultura, @ um dos tragos caracteristicos de uma nagio” (28). Temos, portanto, os seguintes indices que, segundo Stalin configuram a nagio: estabilidade, historicidade, idioma, territ6- rio, coesao econédmica e formagio psiquica (que se traduz em uma “comunidade de cultura", um "carater nacional"). © terceiro momento @ o da montagem do conceito, por meio do a grupamento des indices. A nagao, diz Stalin, 6 “uma comunidade hu- mana estivel, historicamente constitulda, nascida sobre a base de uma camunidade de Lingua, de territdrio, de vida eoon’mica e Ge formgSo psiqui ca, que se traduz em uma comunidade de cultura" (29). A esta definigao, Stalin acrescentara duas observagées. A pri neira refere-se 4 historicidade da comunidade nacional e 6 valiosa para compreendermos a concepgio de histéria a que ele recorre em sua conceituagdo: a nagdo, diz Stalin, "como todo fendmeno histori 16 co, est& submetida 4 lei da mudanga ... cla tem sua histOria, um comego e um fim" (30), Mais adiante, especificara essa historicida de da nag&o. Trata-se, segundo ele, de “uma categoria histérica do capitalismo ascendente" (31). A segunda precis&o diz respeito 4 totalidade dos indices. Sta lin observa que nenhum deles 6 suficiente para, sozinho, definir a nagao e que, por outro lado, basta que um s6 desses indices esteja ausente para que a "nacao deixe de ser nagao". Portanto, para que uma comunidade de individuos constitua uma nagao 6 necessaério que ela apresente todas as caracterIsticas arroladas por stalin (32), © conceito staliniano de nagio j& foi criticado seja por ser muito abrangente, seja, por outro lado, devido a seu carater super restritivo, No primeiro caso, Abdel-Malek observa que, embora aque le conceito tenha sido elaborado a partir do processo histérico de constituigado do capitalismo, os critérios formais de sua definigao (os Indices aos quais Stalin recorre) podem ser encontrados "com muito maior nitidez", em certas formagées sociais pré-capitalistas cuja continuldade histérica remonta A antiguidade (33). No segundo caso, Amin considera que a definicio de Stalin "nos habituou a confundir o fato nacional com uma de suas expres- sdes, a que resulta da histéria da Buropa". Sendo um resumo de uma experiéneia histérica particular, os conceitos em que se funda a teoria staliniana da nagio se revelariam inadequados quando se pas sa do caso europeu para a analise de certas realidades sociais do mundo pré-capitalista "onde uma velha tradigdo estatal se confunde com uma realidade cultural e finguistica" ou de regiécs que vieram a adquirix, em maior ou menor grau, esse tipo de unificagéo em de~ corréncia de sua integragio ao sistema capitalista mundial como co lénias ou paises semidependentes (34). Todavia, essas criticas, em si mesmas, no questionam necessa riamente 0 campo tedrico em que Stalin se coloca ce, a esse respei- to, niio deixa de ser significativo que elas ndo problematizem a a- wy dequagao da analise staliniana ao processo histérico europeu. Blas poderiam apontar simplesmente para a necessidade de ampliar a mostra" e aprimorar o seu tratamento, por meio, inclusive, de uma tipologia mais rica. As orlticas que pretendemos fazer sao de outra ordem e podem ser resumidas nos seguintes pontos: 1) a conceituagéo de Stalin nfo @ dialética; 2) ela ignora a luta de classes e, em particular, a luta politica de classes; 3) ela esta aprisionada no campo teéri co-ideolégico do nacionalismo. Isso n&o significa, en absoluto, que Stalin nao se refira se- ja 4s categorias da dialética, seja 4 luta de classes, nem tampou- co que ele poupe criticas contundentes ao nacionalismo. 0 que ocor re € que a dialética e a luta de classes, assim como o antinaciona lismo teSrico do marxismo ficam externos & concepgao staliniana da nagao, Um dos efeitos dessa relagao de exterioridade @ a propria auséncia, numa definigao que pretende dar conta de uma "categoria histérica do capitalismo ascendente", de qualquer referéncia aos vinculos existentes entre a nagio e as relagévs entre as classes constituintes do modo de produgao capitalista. Dal a necessidade sentida pelo préprio Stalin de acrescentar as precisdes citadas a~ cima. Por outro lado, essa articulagio da dialética A perspectiva positivista de Stalin n3o se faz sem prejuizo da primeira. Ao con- trario, ela é mutilada justamente em secu aspecto essencial: a uni dade de contraérios (a contradigio interna). No @ por acaso que a conceituagao staliniana da nagao (inclusive com as precisdes j4 ci tadas) considera a inter-conexao e a mudanga, mas nao incorpora a unidade de contrarios. Rigorosamente falando, o conceito staliniano da naglo nie ca- be no interior do corpo tedrico do materialismo histérico, Tal con ceite seria, no melhor dos casos, um conceito ideolégico, ou seja, uma nogao que, embora indique determinados aspectos da realidade, 18 nie nos permite conhect-los (35). ao construire conceite de nagao Por meio do processo de abstrag&o que descrevemos acima, ou seja, a partir de uma combinagao de caracteristicas externas aos "fatos” nacionais, Stalin constata a nagao (ou, pelo menos, uma certa cons telagao de fendmenos nacionais dotados de caracteristicas mais ou menos semelhantes), mas nao a explica. Para explicé-la seria necessario fazer a sua "critica’ ou se ja, negar-lhe a radicalidade de "fat + Ao nosso ver, o materialis mo histOrico o faz ao analisar os fendmenos nacionais como consti- tuindo um “espago” superestrutural das relagSes entre as classes de determinados modos de produg&o e formacSes sociais. 0 vinculo entre aquele espago e essas relagdes é contraditério, na medida em que o primeizo, ao mesmo tempo em que expressa, oculta as segun~ das. Por outro lado, esse préprio espago, embora estruturado, nao © homogéneo, mas apresenta clivagens © tensdes que decorrem da ex xisténcia, em seu interior, de elementos da ideologia das classes dominadas. Nesse movimento tedrico, dissolve-se a opacidade do "fato" na ional, elimina-se a sua irredutibilidade e, reconstituindo-se o movimento contraditério de suas determinagées, volta. ao fato, mas com a diferenga de que se produziu a sua inteligibilidade de relagdes determinadas entre os homens. Assim, a naglo deixa de ser © fato do qual se parte para construir a teoria (no sentido de co- ordenagao dos fatos) e & considerada como a representagao imediata & qual se volta ao fim (provisério) de um trajeto pelo qual se des vendou as relagdes que aquelas representagées (que, diga-se de pas sagem, sio também relagdes sociais) expressam e, no mesmo movimen- to, mistificam, Nesse sentido, a critica das representagdes (que sio também relagdes) ideolégicas passa pela critica das relagdes que as deter minam. Entretanto, esse processo tedrico pelo qual se vai do abs- trate ao concrete no © processo de génese do proprio concreto, a9 mas de como nos apropriamos teoricamente dele, reproduzindo-o como concreto espiritual. Antes como depois, ele conserva sua indepen- d@éncia fora do espirito (36). E assim como nao se trata de substi- tuir a critica da familia terrestre pela critica da familia celes- te, o materialismo historico nao supde que a critica tedrica da primeira seja suficiente para transform4-la (37). Negar teoricamen te a nagdo implica em nega-la como um conceito fundamental do mate rialismo histérico, mas nao implica, evidentemente, em negar sua @ xist@ncia como categoria ideolégica e politica de determinados mo- dos de produgao e formagdes sociais. Em outros termos, ao tratar a nagao como uma categoria da su- perestrutura de daterminaéos modos de produgao e formagSes sociais, © materialismo histérico opera um deslocamento do campo teédrico a nalogo ao da critica das "robinsonadas” com que a economia politi- ca classica pretendia explicar “cientificamente" a "produgao em ge ral": ao mesmo tempo em que Marx nega as pretensées tedricas dos "“conceitos" de pescador e cagador individuais de onde partem Smith © Ricardo, ele demonstra os nexos existentes entre essas “{nocen— tes fiegSes do séc. XVIII" e as novas formas de sociabilidade ins~ tauradas pelo capitalismo (38). Ou seja, para aplicar a expresso Utilizada em relagao a um outro deslocamento tedrico andlogo (a ng gagdo da problem&tica do humanismo burqués), "descarta-se sua pre~ tensaio tedrica e se reconhece sua fungao pratica de ideologia" (39), A concepeao de Stalin, pelo contrario, leva a uma confusdo en tre o real (formagées sociais capitalistas ou em transigao para o socialismo) ¢ a aparéncia do real - que, note-se, nao & simples i- lusio, pois, ao mesmo tempo em que mistifica o real, @ aspecto par cial deste mesmo real - a nagio: comunidade onde os individuos 1i- vres e privados participam com igualdade de direitos (40) e, as- sim, produz uma ideclogia teérica que, por um processo de abstra— gao, "depura" a aparéncia do real na ilus&o de produzir o conceito 20 que explique o real, Em filtima andlise, o que ela faz é erigir 0 a parente em conceito. 3.c - Blementos para uma an§lise do nacionalismo Seguiremos, portanto, um outro trajeto. Embora nado desconhecendo a eficacia politica e ideolégica das xepresentages "nacionais", nado supomos, por outro lado, que elas, em si, j& tragam embutidos os conceitos que as explicam. Cabe, ao contrario, explica-las. 0 objetivo deixa de ser, portanto, a monta gem de uma definigao positivista da nagio e se parte de uma ques- to histérica que sé @ formalavel a partir das categorias do mate- rialismo histérico: a relagao entre o desenvolvimento do capitalis mo @ a constituigaic dos Estados nacionais. Trata-se, aqui, de in- vestigar como, sobre uma determinada infraestrutura, se “erguem" determinadas relagdes (estatais, nacionais) politicas ¢ ideolégi- eas entre as classes sociais. Em outros termos, como a luta entre as classes de um determinado modo de produclo delimita uma esfera politica e ideoldgica que @ a nagao. Efetuou-se, portanto, um deslocamento de campo teérico, deslo camento que repercute nao apenas sobre a metodologia — empregada, mas, igualmente, sobre a prépria natureza do objeto. Em primeiro lugar, j4 nao se define a "coisa", a nag%o, para, em seguida, pd-1a em movimento © em relagio com as condigdea exter nas. Ao contrario, a nag&o se define no seu movimento, que se ori- gina de sua propria contradigao interna. Adquire, a partir dai, in teligibilidade a afirmag3o de que "em cada nag3o moderna ... ha duas nagSes" (41). Em segundo lugar, ao ser reinserida em sua teia de determina- Ges, a nag&o aparecer& como o inverso de sua representagio (e dos conceitos que se restringem a sistematizS-la):o que se apresenta- va como uma comunidade, agora expressa um antagonismo e uma domina 21 glo. Percebe-se, entSo, que "em cada cultura nacional existem, ain da que nio estejam desenvolvidos, clementos de cultura democratica e socialista, pois em cada nagao ha uma massa trabalhadora e explo rada, cujas condigdes de vida engendram ... uma ideologia democré-— tica e socialista"(42). Finalmente, aquele deslocamento implica necessariamente que a questao nacional seja abordada em um quadro histérico determinado. A esse respeito, recorremos 4 demarcagio de dois momentos do processo de desenvolvimento do capitalismo que diferem radicalmen~ te do ponte de vista da questZo nacional: a poca da derrocada do feudalismo e do absolutismo e da constituigio do Estado democrati~ co-burgués; ¢ a época em que os Estados capitalistas estio plena- mente constituidos (43). Tal periodizagao permite-nos, no que se refere & primeira fa- se, situar a formagao dos Rstados nacionais nos quadros da revolu- gao burguesa, E bastante conhecido o processo que, com a dissolugao das re~ lagées de produgo feudais, levou & separagao entre o trabalhador eos meios de produgic e 4 constituigao do trabalhador "livre", proprietario de sua forca de trabalho, a qual ele vende ao capita~ lista, Nesta relago entre propriet&rio da forga de trabalho e do capital efetua-se uma extragio de excedente (sob a forma de mais- valia) sem que nela intervenha diretamente (como ocorria nas forma ges pré-capitalistas) a coergio extra-econdmica, Interessam-nos, aqui, certas determinagdes ideolégicas e poli ticas desse processo. De um lado, a dissolugao dos lagos de "depen déncia pessoal” © que faz com o que o individuo aparega *isolado dos lagos naturais que fazem dele, em épocas histéricas anterio- res, um clemento de um conglomerado humano determinado e delimita- do" (44), Constitiu-se, portanto, ao nivel da ideologia, em parti- cular da ideologia juridica, a figura de individuos livres e priva dos, competindo livremente no mercado, e se constitui, por outro 22 lado, um tipo especifico de autonomia do Estado (capitalista) que, ao contrario do Estado feudal, nao se apresenta como um Esta~ do de classe, mas como um Estado nacional. Frente a ele, os indivi duos constituem o “povo", o conjunto dos cidaddos que participam i gual @ livremente da comunidade nacional. Em um de seus primeiros textos, ainda a meio caminho do desvendamento do carater de domina gao de classe do Estado, Marx, com uma formulagao ao mesmo tempo ambigua e lapidar, sintetizaria a representagio da igualdade pelo Estado capitalista. Este "anula, a seu modo, as diferencgas de nas- cimento, de status social, de cultura e de ocupagio", ao declara- las como "diferengas nfo politicas, ao proclamar todo membro do po vo co-participante da soberania popular em hase de igualdade, ao abordar todos os elementos da vida real do povo do ponto de vis ta do Estado" (45). Nesse processo, que se assemelha a um jogo de espelhes, eria- se a representagdo ideolégica de um Estado guardiao do bem comum e © reflexo dessa imagem (seu efeito de retorno) delimita a esfera desse bem comum = como diz Marx, "a esfera da comunidade, da incum béncia geral do povo" - ao nivel da “soctedade civi ~ A existén- cla desse Estado que se apresenta “como generalidade", como a vida genérica do homem em oposigao 4 sua "vida material", nao suprime - ao contrario, supée - todas as premissas da vida egoista na “socie dade civil” (46). Configura-se, assim, ao nivel ideolégico, um locus da igualda de e da comanidade no interior de uma sociedade que se apresenta como composta de individualidades desiguais e competitivas. Consti tui-se a nagSo. Em suma, constitui-se um processo ideolégico no qual o Esta~ do, da perspectiva da “sociedade civil”, aparece como 0 guardido do bem comum @ esta, do ponto de vista do Estado, @ a "nagao". Ela delimita a esfera em cujo interior se goza dos atributos de cidada nia, de pertencimento a uma comunidade estatal. A ideologia da na- 23 ga0 6, portanto, indissoluvelmente ligada 4 legitimidade do Estado capitalista. Se isso & correto, a proposigao de que o nacionalismo se iden tifica, em geral, com a democracia liberal (democracia burguesa) & equivocada, pois supde uma identidade metafisica entre burguesia e Gemocracia. 0 fato de que as revolugdes burguesas “originarias" te nham tido um carater democratico levou 4 suposiglo de que a nagao yemetia a uma forma do Estado capitalista quando, na verdade, a re lagHo 6 muito mais profunda: ela remete a um tipo de Estado. A na~ g%o & inseparavel da encenagao da soberania popular pelo Estado ca pitalista, Essa identificagio entre democracia e nacionalismo supSe que a legitimidade do Estado capitalista sé se realiza na democracia, © que, evidentemente, 6 um postulado (tardio) Liberal burgués (ao qual nem sempre o movimento operario estava imme). Ora, 0 naciona- jismo liberal burgués nao & 0 nacionalismo, mas uma forma especifi ca de encenagio da comunidade nacional. Forma esta que, em suas versdes originarias, ndéo supunha necessariamente sequer o sufragio universal. De um ponto de vista estritamente burgués, os membros da comunidade nacional se "igualavam* e compartilhavam de um inte- esse comum na medida em que fossem proprietdrios de algo mais do gue a prépria forga de trabalho, Aos prolet&rios caberia a incdmo- da posigao de estarem na “sociedade civil” sem dela participarem, nao pertencendo, portanto, & comunidade dos cidadGos. Eram vistos como uma espécie de gado humano ou, em outros termos, como “uma coisa que deveria ser administrada pelo Estado para torna-la produ tora do lucro nacional" (47), © que articula democracia e nacionalismo @ a participagao das massas na revolugao burguesa. f nesse sentido, por exemplo, que Le nin assinala como caracteristica da primeira fase a que nos referi mos (a da constituigdo dos Estados democratico-burgueses) o fato de que cs movimentos nacionais “incorporam, de um modo ou de ou- 24 tro, todas as classes da populagio na vida politica, por melo da imprensa, pela participagio em instituigdes representativas, etc." (48). Besa participagio das massas, em especial dos camponeses, im primia 4 luta pela nagdo um carater contraditOrio: por um lado, e- xa uma luta contra a desigualdade “natura: " do feudalismo, uma lu- ta pela libertagao dos vinculos feudais. Por outro lado, essa 1i- berdade era um novo tipo de dominagio de classe. Se a nagdo remete 4 legitimidade do Estado capitalista, em contrapartida a forma que este Estado adquire ndo deixa de repercu tix sobre a configuragéo nacional. 0 que faz com que a naglo, a es fera da igualdade, seja um terreno canbiante, pois sua configura- 80 depende de como as classes em luta definem o ambito da igualda de entre seus membros: iguais enquanto proprietérios, iguais en- quanto representados por meio do parlamento e do sufragic univer~ sal, etc. isso implica em considerar a nagao como relativamente auténo- ma frente as classes sociais. Autdnoma, no sentido de que o iguali. tarismo dos nacionais configura uma esfera de igualdade formal, per eposigio A divisdo de classes (escravidéo assalariada). # rela ‘ivamente autOnoma porque o carter dessa igualdade depende da es- truturagao das classes ao nivel politico. Ao contrario do movimento socialista que, embora nao sendo in diferente Bs liberdades formais, remete-as 4 desigualdade real, o nacionalismo consiste em centrar a questo da igualdade no 4mbito do Estado-nagae (membros da comunidade nacional). Esta fetichiza= gao da nagao &, portanto, 0 corolario da fetichizagao do Estado co mo uma entidade acima das classes. Ela opera uma separagio estan— que entre esse Gmbito da igualdade (a nagHo) e a dominagao de clas se. Por outro lado, a "quest%o nacional" expressa um problema re- lativo & forma especifica de legitimidade do Estado capitatista, 2s embora nfo necessariamente questione a legitimidade em geral deste Estado. Precisemos c argumento. A nagdo esta em questo quando a forma especifica de legitimi dade do Estado capitalista 6 ameagada: 1) de "fora", como uma ofen. sa 4 sua soberania; 2) de “dentro”, pelo questionamento da forma de encenagao da igualdade, Isso nos leva a repetir que a autonomia da nagao nao @ absolu ta e que a definigio do Smbito da igualdade é determinada pela re~ lagao das classes em luta. Para o Estado fascista alemfo, constitu ir a esfera da igualdade no interesse do capital financeiro impli- cou um processo politico-ideolégico no qual, por um lado se absor- via e, por outro lado, se canalizava para "fora" da luta de clas~ ses © protesto social. 0 resultado foi o expurgo da cidadania (da nagao) de toda uma “nacionalidade” (os judeus). Em outros termos, © movimento pelo qual o Estado fascista constituiu uma nagao ale~ ma foi o mesmo pelo qual ele constituiu uma nagio “estrangeira" dentro da prépria Alemanha, definindo, inclusive, critério “positi vos" que demarcassem os nacionais do “inimigo interno". B signifi- cativo que mesmo os alemaes de ascend@ncia israelita que nao se i- dentificavam como judeus fossem excluidos da nagio. Literalmente, © Estado fascista os constituia em “judeu: Pode ocorrer o contraric: um grupo viver a desigualdade en- quanto nao compartilhando daquele ambito comunit&rfo definido pelo Estado-nagSo. Coloca-se entao o objetivo de constituir o "seu" pré prio Estado-nagao. Em qualquer dos casos - e aqui chegamos ao es- sencial ~ isso significa que o Estado existente nao constituiu, ao nivel politico e ideolégico, todos os agentes da formagiio social em "cidadZos". Insistimos novamente no car&ter relativo da autonomia desses movimentos nacionais frente & luta de classes. Os "critérios", a partir dos quais aquele grupo vive sua opressao (territério, idio- ma, religifo, “raga”, etc. - critérios que nao raras vezes lhe sao 26 Ampostes, como vimos no primeiro caso), nem sempre apresentados se gundo os canones da razio cientifica, niio sho inteligiveis em si mesmos (embora pretender que o sejam taga parte da ideologia do mo vimento nacionalista em questo). Sua inteligibilidade funda-se, em G@ltima anflise, nas relagdes de classes que aquele movimento ex pressa. Portanto, fazer uma depuragio daqueles critérios c, a partir dai, construir o conceito de nagSo nio implica somente em ficar ao nivel da aparéncia, Implica, especificamente, em ficar prisioneiro justamente das apar@ncias das quais se nutre o nacionalismo. 3.4 ~ As variantes ideolégicas Ja abordamos o processo pelo qual, na sociedade capitalista, eperase um duplo movimento, ao nivel superestrutural, de "desagre gragao" das classes sociais e de constituigio dos "cidaddos", ago- ra reunificados na "sociedade civil", sob a agide do Estado capita lista. Vimos, também, como se determina o carater relativamente aut® nome da nagéo no que se refere as classes sociais: por um lado, e= ja configura uma esfcra de igualdade formal, por oposigio & domina so de classe, e, por outro, o carater dessa igualdade depende da estruturagao das classes ao nivel politico. A esse nivel de abstragio, pode-se detectar uma matriz ideold, gica que faz com que a ideologia nacional seja, ao menos tenden- cialmente, burguesa. Isso na medida em que, ao nivel superestrutu- ral, constituem-se relagdes (relagdes "nacionais") que sao condi- 980 para a reproducdo das relagdes capitalistas de produgo. Gran- de parte das anilises limita~se a operar com essa determinagao mais simples. Todavia, buscando uma concretude maior, @ possivel apreender os efeitos do movimento contraditéric da ideologia nacional ao ni- 27 vel das diferentes classes sociais. Ocorre que, mesmo sofrendo a dominagao ideolégica, as classes dominadas vivem a ideologia domi~ nante de um modo particular, chegando inclusive, em certos perlo- dos, a expressar o protesto contra a dominagdo nos termos dessa i- deolegia. Propomos, aqui, a utilizag%o do conceito de variantes ideolé- gicas (49), que remete, ao mesmo tempo, % autonomia relativa da i- deologia e ao conteiido concreto que diferentes classes e fragées em luta lhe imprimem, Acreditamos que tal conceito nos auxiliara a compreender, por um lado, como a pratica dos dominados redefine a ideologia dominante e, por outro, como o Estado capitalista “recu- pera" os elementos da revolta dos dominades, depurando-os de seus aspectos antagonisticos e, por meio de uma "légica politica do ho- mogéneo" (50), articula-os 4 matriz ideolégica dominante, que, nes te processo, se redefine, Em suma, recorremos a esse conceito com © objetivo de apreender o movimento pelo qual uma formag3o ideolé- gica se atualiza sob o impacto da luta de classes. Concordamos com Badiou e Balm&s quando estes afirmam que "as transformagSes de uma formagio ideolégica sao invariavelmente res~ postas & resist@ncia ideolégica popular. A inictativa nao pertence aos contefidos internos da dominag3o, mas 4 resisténcia que ela sus cita" (51). Todavia, acrescentamos duas ressalvas no sentido de a~ tribuir maior concretude 4 formulagio. Em primeiro lugar, nem toda resisténcia produz os mesmos efei tos ao nivel da formagao ideolégica. Tais efeitos dependem, em ca- da situagao concreta, do impacto e do ponto de incid@ncia da luta ideolégica dos dominados. Interessa-nos, neste trabalho, um tipo especifico de resisténcia: a das lutas populares que, embora des- providas de organizagio politica e subordinadas 4 ideologia domi- nante, preduzem - em grande parte, devido a essas caracteristi cas - ao se intensificaren, efeitos importantes ao nivel da regi3o dominante daquela ideologia, 28 A segunda ressalva diz respeito ’s determinagées sociais da diferenciagSo da “viv@ncia" ideoldgica por parte dos dominantes, o que remete 4 questGo da exist@ncia de verdadeiros "subconjuntos i- deolégicos" da ideologia dominante (52). As “respostas" 4 resistén cia popular podem ocorrer diferenciadamente, quer se trate desta ou aquela fraglo ou categoria social. Como veremos ao longo deste trabalho, interessa-nos mais particularmente o modo como se redefi ne, ao nivel do empresariado industrial e da burocracia de Estado, uma ideologia especifica. No sentido delimitado acima, partimos da hipdtese de que, em- bora haja uma iinica matriz da ideologia dominante, podemos detec- tar variantes suas, que expressam 0 mode como cada classe, fragio ou categoria social "vive" essa ideologia. Abre-se, portanto, = a possibilidade tedrica de abordarmos, por exemplo, uma variante po- pular da ideologia burguesa e, no caso em questo neste trabalho, de uma variante popular da ideologia nacional. Pode-se, também, na busca de maior concretude, ao rastrear o movimento de constitui¢gao da ideologia nacional, considerar a rela tiva disting3o entre a matriz ideolégica da nag’o e sua variante especificamente burguesa. Assim, 0 nacionalismo da burgucsia njo mais aparece como idéntico ao nacionalismo burgués, no primeiro sentido (ainda demasiado indeterminado), mas como uma variante de- le. Com esse trajete, esperamos contribuir para superar o dilema em que envolveram certas an4lises do nacionalismo populista no Bra sil; ou se forga, de um modo puramente alusivo, uma identidade da matriz ideolégica do nacionalismo com um setor das classes dominan tes (a “burguesia nacional”), ou se nega simplesmente a existéncia de uma burguesia nacicnalista, pelo fato de que nenhuma das fra~ gées de classe dominantes assumiu o nacionalismo populista na ple- nitude de suas caracteristicas. Ocorre que nem sempre a variante burguesa do nacionalismo 6 a 29 quela em que se reconhece mais facilmente o nacicnalism burgués. Po de ocorrer - € ocorrey efetivamente no caso do populismo brasilei- ro - que tal proximidade seja maior no que se refere & variante bu rocratica do nacionalismo. Uma Gltima observagao: partindo do suposto de que “a ideologi a dominante @ um poder organizado em um conjunto de aparelhos" (53), consideramos impossivel uma analise da jdeologia que se ate~ nha somente aos contefidos intelectuais, considerados independente- mente dos aparelhos nos quais se materializa. © conceito de variantes adquire seu pleno sentido quando nos referimos, portanto, ao conjunto dos mecanismos de domina¢io/resis téncia ideolégica, quais sejam, o conteiido intelectual das ideolo~ gias, sua forga de classe e os aparelhos onde elas se organizam e veiculam. Assim, conceituamos variantes como modalidades de realizagae de conteiidos ideolégicos dominantes sob a determinagic de pratica da classe ou frag3o de classe que as incorpora e dos aparelhos em que eles se materializam. A partir dessa conceituagao, pretendemos ir além do ponto em que se deteve a maioria das andlises, justamente por se limitarem a abordar o nacionalismo populista enquanto nacionalismo burgués, no sentido mais abstrato a que nos referimos. Assim, esperamos con tribuir para a explicagao do nacionalismo n&o mais como algo gené- rico, indeterminado e sempre idéntico a si mesmo, Dessa forma, tal vez 0 nacionalismo perca o ar de "ideologia da sociedade" (proble- mtica funcionalista), ao mesmo tempo em que se evita, por outro lado, a vinculagao mecanica entre o conjunto do nacionalismo e de- terminada classe social. Capta-se, portanto, a ideologia enquanto conjunto contradité- rio em si mesmo e onde a contradig&o expressa/oculta a natureza das relagSes basicas entre as classes sociais. 30 4, Objeto Enfim, trata-se de esbogar uma analise das sucessivas redefi~ nigdes da ideologia nacionalista, ao longo do perfodo populista no Brasil, procurando, em particular, investigar suas relagdes com 0 processo de industrializagio. ais relagdes ocorreram, evidentemente, no interior de uma e- volugao histérica bastante complexa, ao longo da qual cada fase se caracterizava, ao mesmo tempo, por rupturas e continuidades. As continuidades devem-se, em primeiro lugar, ao fato de que, naguele periodo, o nacionalismo voltou-se para o reforgo das estru turas de um Estado cuja politica favorecia, em filtima analise, a transigao para o capitalismo industrial no Brasil. Vale dizer que, eu todas as fases, para os grupos sociais cujas praticas incorpora ram essa ideologia, a legitimidade do Estado vinculava-se estreita mente A sua capacidade de implementar uma politica de industriali- zagio. Mesmo nos momentos em que o movimento nacionalista incorpo- rava um discurso critico em relagdo & estrutura social, o Estado ra considerado uma entidade capaz de, ao ampiiar sua intervengao, contribuir para a transformagio da scciedade. Assim, nenhuma arti- culagao do nacionalismo, mesmo aquela que denominames nacionalisme radical, jamais chegaria a desenvolver uma critica do Estado popu- lista. Uma segunda continuidade diz respeitc ao papel determinante do aparelho de Estado enquanto lugar de estruturagaco da ideologia populista e, ao mesmo tempo, enquanto campo de luta privilegiado pelo movimento nacionalista. A esse respeito, @ importante obser- var que, em todas as fases, um ramo do aparelho estatal, o exéred— to, teria um papel decisivo, embora nem sempre dominante, enquanto aparelho ideoldgico. Por outro lado, as redefinigSes das relagdes entre os distin- tos setores do aparelho do Estado teriam um papel importante para a rearticulag’o interna da ideologia nacionalista. Assim, por exem 31 plo, a fase de clara dominancia do aparelho repressivo foi aquela em que se constituiu o que designamos por "nacionalismo militar” (54). Por sua vez, 0 nacionalismo reformista seria ininteligivel sem a referéncia, em primeiro lugar, ao peso crescente que o aparelho sindical adquiriu nos Gltimos anos do periodo populista e, em se- gundo lugar, ao papel desempenhado, ao mesmo tempo, enquanto unida des de produgSo capitalista e apareihos ideolégicos, pelas empre- sas estatais brasileiras. Evidentemente, essas rearticulagées internas ao aparelho do Estado devem ser relacionadas com as diversas configuragées das forgas politicas, inclusive ao nivel internacional. A existéneia de continuidades, que expressam os limites estru turais 4s redefinigdes da ideclogia nacionalista no Brasil, nao nos deve fazer ignorar os aspectos de ruptura. Por exemplo, 0 na~ cionalismo foi, em uma certa fase, a expressao de um pacto politi~ co do conjunto das classes dominantes, pacto este que fundava um regime abertamente ditatorial e antipopular, E foi, em uma outra fase, a articulagdo, ao nivel ideolégico, de forgas que se batiam pela democracia. Bm nome do nacionalismo, apelou-se, com sucesso, numa fase, a uma formiddvel participagio do capital estrangeiro na economia brasileira e, numa outra fase, combateu-se, também em no~ me do nacionalismo, a dominagdo imperialista, ainda que sem desven dar as formas concretas que revestiam tal dominagdo. Neste Gltimo sentido, mesmo o nacionalismo reformista, embora exprimindo uma ascensiio real do movimento popular, teve efeitos de sorganizadores sobre tal movimento. Assim, pode-se afirmar que, na prépria ruptura, instaurava-se a continuidade. Por outro lado, ao se radicalizar no interior do aparelho do Estado, o nacionalismo punha em quest&o as préprias estruturas do Estado (o que, alias, contribuiu para que se alterasse a forma de dominagio, em 1964). Neste sentido, pode-se também afirmar que a prépria exist@ncia do nacionalismo reformista era portadora de uma 32 tendéncia a instaurar a ruptura na continuidade da ideologia nacio nalista. II - A constituigao do nacionalismo populista A crise estrutural "Fagamos a revolugao antes que o povo a faga.” Essas palavras, pronunciadas por um velho chefe oligarquico, exprimiam com admiravel crueza as contradigdes do movimento pollti co-militar que pés um termo & chamada " Repiblica Velha". Em sua primeira fase, 0 discurso expressa um jogo de forgas que, para a- 1ém do horizonte politico de varios de seus protagonistas (inclusi. ve do autor em questZo), abriria caminho para extraordinarias mu- dangas institucionais que se realizariam a partir daquele movimen- to. com efeito, a "revolugio de 1930" abriu caminho para a rees- truturagao do Estado nacional, tornando-o melhor aparelhado para o prosseguimento, em novos termos, do processo de desenvolvimento ca pitalista no Brasil. 0 antigo isolacionismo dos Estados foi substi tuldo pela constituig&o de um espago eccnémico relativamente inte- grado; diversos institutes econdmicos de Smbito nacional foram cri ados (inclusive no dominio do café e do agiicar, antes submetidos a controle regional); a politica fiscal tornou-se mola propulsora dos investimentos; e, mais tarde, os investimentos diretos do pré- prio Estado seriam fatores essenciais para a implantago de comple xos econémicos importantes para o prosseguimento da industrializa— gao, Nesse sentido, ocorreria, de fato, uma ruptura com a velha or dem olig&rquica. Insistimos na especificagao: desenvolvimento do capitalismo em novos termos e nao inicio do desenvolvimento capitalista no Bra sil, & preciso considerar que todas as forgas constitutivas da or- 33 dem capitalista j& estavam presentes, de um certo modo, na forma~ gdo social brasileira, bem antes de 1930. Portanto, convém preci~ sar de que falamos quando nos referimos 4 “velha ordem oligarqui- ca", Em primeiro lugar, observemos que j& existia um parque indus- trial relativamente importante e dotado de uma capacidade de acumy lag%o nfo negligenciavel durante a "Repiblica Velha". Este setor industrial nao se constituiu exclusivamente em condigdes totalmen- te adversas, a partir, por exemplo, apenas do artesanato ou da pe- quena empresa, ao longo de um penoso processo de concentragao e centralizagao do capital, Pelo contrario, outras condigGes estive- ram na base de sua implantagao: uma consideravel acumulagao de ca~ pital, um setor financeiro relativamente desenvolvido e um grande niimero de "trabalhadores livres". Por sua vez, tais condigdes nao eram inteiramente alheias ao setor que desempenha o papel principal na acumulagao capitalista ao longo do periodo, ou seja, o setor cafeeiro. Essas primeiras grandes indistrias foram instaladas com capitais acumulados ao ni- wel da comercializagao do café e seus operarios eram, em sua maio- xia, imigrantes cuja chegada ao Brasil sé adquire inteligibilidade quando situada no interior de um processo de constituigio de um mercado de trabalho na regido do café. A constatagao desses fatos, hoje bastante conhecidos, induz- nos a tentar compreender as relagdes entre o capital cafeeiro e o capital industrial. Aqui, buscamos apoio nas anAlises que precuram situar a expansio cafecira e a industrializaglio enquanto dois mo- mentos da transigao para o capitalismo no Brasil (54). Tal perspec tiva permite-nos ir além de uma analise que considere essas rela~ gSes como simples relagées setoriais (agricultura - indistria) e¢ centrar o foco na analise de um processo de acumulagao de capital cujo nficleo nfo era nem o capital agrario, nem o capital industri. al, tas 0 capital mercantil, & nesso sentido que se pode afirmar 34 que © capital cateeiro era fundamentalmente um capital mercantil e gue era predominantemente ao nivel desse capital mercantil que se acumulava o capital engendrado, num primeiro momento, a partir da produgao de café e, depois, também a partir da produgao indus~ trial. Tal perspectiva nos permite também efetuar uma demarcagdo no interior do grupo que foi tradicionalmente denominado "as oligar- quias", isto &, os grandes proprietarios de terra, cujos princi- pais representantes ("os fazendeiros de café") teriam detido o po- der de Estado durante a "Repiblica velha". £ necessario fazer uma distingao entre os proprietarios de terra (inclusive os "fazendeiros de café") e a grande burguesia ca feeira, Esta, embora fosse constituida tamb&m por grandes “fazen- deiros de café", definia-se objetivamente enquanto burguesia mer- cantil, ligada as atividades de financiamento, importag3o e expor- tagao. A esse respeito, 8 preciso evitar a armadilha do discurso ide oldgico do periodo. Frequentemente o discurso antiindustrialista e xa formulado em termos de "defesa do café" ou mesmo de “defesa da agricultura", 0 que induzia muitos dos agentes sociais da época a supor que a politica do Estado privilegiava os interesses dos "pro prietarios de terra". Todavia - e ficarcmos apenas neste exemplo ~ a politica de valorizagao do café foi imposta pela grande burgue sia cafeeira © exprimiu, de modo exemplar a predominancia dessa fragao de classe (55). Entretanto, se, por um lado, a dominagao do capital mercantil eriava certas condigées para a acumulagio de capital industrial, por outro lado, ela estabelecia limites bem rigidos para o desen- volvimento das forgas produtivas e, em particular, da industriali~ zago. Gorender explica como, "j4 no inicio dos anos 30 ... 9 cha- mado ‘complexo cafeeiro' deixara de ser positivo para o desenvol’ mento industrial e se convertera nitidamente em obstaculo" (56). 35 Nao faremos aqui uma analise exaustiva dessas relacGes contradité- rias entre o capital mercantil e o capital industrial, mas nos 1i~ mitamos a mencionar certos de seus efeitos sobre o desempenho des- te Gltimo: tratava-se de indistrias cuja produgao era, em sua maio ria, de bens de consumo (57) e que nao eram beneficiarias senao in cidentalmente de uma politica (em particular a politica financei- ra) cuja légica era ditada, em filtima analise, pelos interesses do capital agro-mercantil. Mas voltemos & nossa célebre exortagio. Na medida em que as transformagGes institucionais efetuadas pela “Revolugao de 1930” expressaram o deslocamento da posigao da burguesia agro-mercantil no interior da nova coalizio dominante, tratava-se, de fato, de uma ruptura com a velha ordem oligarauica. Este fol o aspecto "revolugao". Mas o velho Ant@nio Carlos nao se enganava quanto 4 escolha dos protagonistas. Nao se tratava de fazer a "revolugio” com o po- vo, nem tampouco em nome do povo, mas de manter 0 povo fora do pal co onde se faria a “revolugao”. Em sua segunda parte, a oragio do oligarca mineiro expressava a natureza nem sempre visivel de todos os movimentos politicos que séo feitos sem a participagio popular organizada: a contra-revolugdo e, com ela, os compromissos com a velha ordem que acabava de ser rompida. umbora tenha provocado a ruptura do sistema olig&rquico, a “revolugSo de 30" nfo destruiu inteiramente o poder das “oligar- quias”, Durante muito tempo, o setor agro-exportador continuaria sendo 0 niicleo da acumulagio capitalista e as massas rurais ainda deveriam esperar tres décadas para que algumas vozes, do interior do Estado populista, lhes sussurrassem timidamente que a questao social no era um caso de policia. Todavia, a referéncia ao “povo" no era simples figura de re~ térica. Se o movimento de constituigao da burguesia industrial na “Repiblica Velha” foi o mesmo movimento de sua insergao no bloco 36 no poder (al se introduzindo sem nenhum processo de mob{1izagio po pular), a contrapartida desse processo foi a constituigao de um proletariado industrial relativamente concentrado e dotado de gran de combatividade. E se a burguesia industrial se acomodava como po dia no interior da velha ordem oligarquica, o movimento operario, por sua vez, conseguiu criar formas de organizagio econdmico-corpo rativas e mesmo politicas 4 margem e, em certa medida, fora do con trole, do sistema institucional existente. Neste contexto, a burguesia industrial nao dispunha de grande margen de manobra, Fustigada, "de cima", pelo conjunto dos setores agro-mercantis e, "por baixo", pelo movimento operfrio, cla se de- frontava com dois adversarios que, em certas conjunturas, ameaga~ vam minar suas préprias bases de acumulagSo. No essencial, a politica da burguesia industrial foi a de bus car 0 maximo de acomodagao com os setores agro-mercantis e manter © maximo de intransigéncia diante do movimento operario. A esse xespeito, a posigao dos empresarios industriais de Sio Paulo foi tipica: de um lado, fidelidade ao principal partido “oligdrquico" do pais, o P. R. P., €, de outro, recusa sistematica em reconhecer sequer a legitimidade das reivindicagSes operarias (58). © compromisso nao se fazia sem tensdes. Frequentemente os in- dustriais tiveram de se defrontar com os ataques dos setores agro mercantis, cujo discurso elegia como alvo privilegiado as "indas— trias artificiais”. Estas viveriam, no dizer de seus opositores, em ambiente de estufa, completamente deslocadas em um pais de voca gao agraria; utilizavam matérias-primas importadas, drenando pa- ra o exterior riquezas produzidas pela agricultura; sobreviviam & sombra de favores alfandegarios e cambiais, o que, além de impedir 0 livre jogo do mercado, onerava o tesouro nacional, corrofa o va- lor da moeda e encarecia o consumo de produtos (estrangeiros} de melhor qualidade (59). Na base desse dicurso, que empolgava setores das altas cama~ 37 das médias (60), existiam contradigdes reais, que envolviam inte- resses que, inclusive, transcendiam os limites da formagéo social brasileira. Ao se expandirem por faixas de bens de consumo fabricadas no exterior, os industriais entravam em contradigac nfo apenas com o capital cafeeiro € as camadas médias tradicionais, como também so- friam os efeitos do tipo de dominagio imperialista predominante no periodo. Em relagao aos setores voltados para as atividades de importa go/exportago, a principal controvérsia dizia respeito & politica fiscal e cambial, Enquanto os industriais queriam uma politica pro tecionista, que taxasse pesadamente os bens de consumo importados, mas nao as matérias-primas e bens de capital que eram adquiridos no exterior, os setores agro-mercantis, assim como as camadas mé- dias tradicionais, tinham interesse em uma politica de livre cam- bismo, que possibilitasse a mais livre importagao de bens de consu mo. O que, alias, era do interesse dos exportadores estrangeiros. Por outro lado, para importar ao m4ximo esses produtos, era interessante um cambio alto, ou seja, que cada mil-réis fosse tro~ cado pela maior quantidade possivel de libra esterlina, Também e- ram interessados no cambio alto os bancos credores da divida exter na (a desvalorizagao da moeda brasileira dificultava o pagamento da divida} e as empresas estrangeiras de servigos pilblicos aqui es tabelecidas, “cujas tarifas em mil-réis perdiam valor-ouro com a queda do cambio” (61). Tais elementos demonstram que a dominancia do capital mercan- til na formagiio social brasileira e a hegemonia da burguesia cafe- eira no interior do bloco no poder expressavam €, ao mesmo tempo, xeproduziam, um tipo de dependéncia que assinalava um lugar especl fico dessa formagao social no interior da divisao internacional do trabalho: 0 de exportador de produtos agricolas e de importador de mereadorias manufaturadas e capital bancario. Nesse contexto, ° 38 prosseguimento em novos termos do desenvolvimento capitalista no Brasil implicaria n3o somente uma alteragao das relagdes de clas- ses no interior da formagio social como também uma redefinigao de sua propria depend@ncia ao sistema imperialista. Redefinir tal po- sigio exigia, de um lado, um certo tipo de mobilizagao popular, o que significava, por outro, correr o risco de abrir caminho para o questionamento da prépria dependéncia, ora, a afirmagiio de que a "revolugio de 1930", ao ampliar 0 sistema politico para absorver os setores excluidos pela velha or~ dem oligarquica, efetuou uma democratizagao do Estado deve ser re~ lativizada pela consideragao desse processo em seu duplo aspecto: © de uma ruptura e o de uma contra-revolugao; o de uma ultrapassa~ gem e © de um compromisso com o passado, © mesmo movimento pelo qual o Estado se "democratizou” foi o do desmantelamento sistemati co das organizagées independentes da classe operaria e o seu enqua Gramento em um aparelho sindical de caracteristicas fascistas, o da manutengao das massas rurais nas mesmas condigdes da "Repiblica velha" ¢ o da constituig3o de um padrao de representagao politica no qual, independentemente das formas cleitorais democr&tico-bur- quesas que vigoravam em certos perlodos (e das quais estava exclu ida a maior parte da populago rural), predominava o vinculo dire~ to entre o chefe do Estado e o conjunto dos cidadZos. Em outros termos, a "revolugao de 1930" abriu caminho para uma configuragao nacional do Estado mais apropriada ao desenvolvimento do capitalis mo, mas isso nZo significou que esse Estado adquirisse a forma de- mocratico-burguesa plenamente constitulda. Finalmente, @ muito significativo que o velho oligarca tenha falado em “revolugao". Nenhuma transformagao de grande importancia havia ocorrido se ja na pratica politica, seja no horizonte ideolégico das "oligar- quias" ao ponto de leva-las a uma luta cruenta ao nivel nacional. A prépria “Alianga Liberal” havia conservado a velha praxe de limi 39 tar as contradigées intra-oligarquicas 4 luta eleitoral e 4 recon- ciliagio. E, imediatamente apéds a derrota eleitoral, Joio Pessoa (o candidato da A. L. 4 vice-presid@ncia da Repiiblica) atirmaria que "jamais se contara comigo para fazer um movimento armado. Pre firo dez Jilios prestes a uma revolugio”. Mas € importante observar que o movimento eleitoral da “Alian ga Liberal" e a deposigao de Washington Luis "nao foram conduzidos pelos mesmos agentes politicos"(62), nem tinham as mesmas perspec- tivas. Assim, enquanto, apds a derrota eleitoral, as "oligarquias" dissidentes j& se preparavam para a reconciliagao, os “tenentes" impulsionavam o movimente rumo & derrubada da "Repiiblica velha". Com efeito, nem todos os atores sociais encaravam a sociedade brasileira com as lentes do liberalismo oligirquico. Outras visdes de mundo orientavam seja a decisdo do principal partido operario, oP. C. B., de nao participar diretamente da “revolugao", seja a dos tenentes de constituirem a vanguarda desse movimento. N3o se trata de fazer aqui uma andlise da ideologia do “tenen tismo” (63), mas de observar que os movimentos tenentistas, ao se orientarem progressivamente para uma reestruturagao profunda do a- parelho de Estado segundo uma via autoritaéria e centralizadora, e conseguindo envolver nesse processo importantes segmentos das oli- garquias ¢ obter um apoio difuso entre amplos setores da pequena burguesia e do proletariado, testemmhavam a crise da ideologia do minante na “Repiblica velha". Gestava-se no interior da ordem oligrquica um novo sistema i deolégico, gue se convencionou chamar de “pensamento autoritario", cujo fulcro orientava-se "no sentido de conceituar e legitimar a autoridade do Estado como principio tutelar da sociedade" (64). Dominagao do capital mercantil ao nivel da acumulagéo, deslo-~ camento da burguesia agro-mercantil no interior da nova coaliziéo dominante; eis alguns aspectos essenciais para a compreensio do panorama politico brasileiro no periodo que se abre com a "revolu~ 40 glo de 1930". Por outro lado, as contradigdes no interior da formagéo — so- cial eram sobredeterminadas pela crise do capitalismo mundial, em cujo contexto se intensificava a competi¢ao entre os distintos campos imperialistas. Internamente, a crise econdmica mundial enfraquecia drastica mente a posigao do capital mercantil. Isso, ao lado da perda da he gemonia pela burguesia cafeeira, inviabilizava a execug3o de uma politica de Estado que privilegiasse, nos termos em que se fazia na Repiblica Velha, os interesses do capital mercantil e comprometia a solidez dos lagos que vinculavam, de um modo especifico, a forma Gao social brasileira ao sistema imperialista em crise. Configura- va-se, portanto, uma crise de hegemonia e uma crise de dependén~ cia. A contrapartida da crise de hegemonia foi a ampliagic do pa- pel da burocracia estatal na definigao da politica de desenvolvi- mento capitalista no pés-30, Manobrando em meio ao equilibrio ins- tavel entre as distintas fragées das classes dominantes e tirando proveito das contradigées que grassavam no campo imperialista, a buroeracia de Estado lograria, por meio do enquadramento politico @ ideclégico de amplos setores do proletariado e das baixas cama~ das médias, criar uma base de massa para uma politica que, em Glti andlise, favorecia o processo de industrializagao- 2 - A matriz ideolégica Ao nivel ideolégico, tal processo foi coroado pela constitui~ gSo de um certo tipo de nacionalisme cujas caracteristicas princi- pais ja se deiineariam na primeira fase do periodo populista. Em primeiro lugar, os sctores da burocracia de Estado mais comprometidos com essa politica, ao se chocarem com as classes € fragdes interessadas na manuteng%o da velha ordem politica e do pa aL @xho de dependéncia que nela se fundava, seriam o principal e mais constante "suporte" da ideologia nacionalista no Brasil. Seja com os tenentes, na primeira metade dos anos 30, ou com os militares nacionalistas, durante a campanha do petréleo; seja com Vargas, na luta pela implantagao da siderurgia ou denunciando as "remessas de lucros", ow Juscelino Kubistcheck resistindo is pressées do F. M. I., ov Brizola com as encampagdes de empresas de servigos pitblicos e denunciando o “processo espoliativo", o movimento nacionalista, Andependentemente de suas sucessivas redefinicdes, sempre teria, na sua linha de frente, membros e setores da burocracia estatal. Uma segunda caracteristica do nacionalismo populista 6 estrei tamente relacionada com a que acabamos de mencionar. Nao apenas parcelas da burocracia de Estado eram o principal "suporte” do na~ cionalismo, como o préprio aparelho do Estado constituia a arena privilegiada dos embates entre as tend&ncias nacionalistas e seus adversarios. © aparelho estatal era quase sempre o ponto de parti- da e, invariavelmente, o ponto de chegada do movimento nacionalis- ta. JA no imediato pSs-30, posigdes chaves do aparelho estatal se- riam ocupadas pelos "tenentes", cujo papel seria importante na con- quista ou mesmo na eliminagao de Srgdos ocupados pelas “oligarqui- ast. fal cenario nao era exclusivo dos embates entre os membros "profissionais" da burocracia estatal. Nele também se degladiavam empresarios encastelados em "Srgios técnicos", como foi o caso de Simonsen (Conselho Nacional de Politica Industrial e Comercial) em sua célebre polémica com Gudin (Comissao de Planejamento Econdmi- co). Finalmente, no que se refere 4 incorporagéo dos setores popula res ao movimento nacionalista, poderiamos mencionar a importAncia adquirida pelos sindicatos oficiais na iiltima fase do periodo popu- lista. uma terceira caracterIstica da ideclogia nacionalista consis tia em que os movimentos por ela informados jamais se voltavam con- 42 tra o Estado, mas visavam redefinir sua politica. Seja no que se refere & necessidade de um protecionismo industrial, uma das rei- vindicagdes mais constantes do empresariado manufatureiro ao longo do periodo, seja em relagao aos investimentos diretos do Estado na economia, seja quanto & implementagao das "reformas de base" ou & planificag3o da economia, o nacionalismo populista visava ou refor gar uma politica do Estado 44 em fase de execugao ou cobrar do Es= tado, visto como tendo abandonado as suas verdadeiras finalidades, a definig&o de uma politica especifica. Em quarto lugar, no que se referia & relagio com o imperialis mo, © nacionalismo populista adquiria eficdcia politica na medida em gue lutava para redefinir a posigio da formagao social brasilei ra na divisdo internacional do trabalho, nao visando eliminar, mas redefinir, a dependéncia, Isso se aplica tanto & luta de Vargas pa ra implantar a grande indistria sideriirgica como aos protestos dos empresarios nativos contra a implantagio de indfistrias estrangei~ ras que concorreriam com as j& existentes no pais. Tanto em um co- mo em outro caso, © nacionalismo nfo se chocava (pelo contrario, inclufa) com uma politica sistem&tica de atragao de investimentos estrangeiros diretos em amplos setores da economia brasileira. Is 80 implicaria, ao longo do periodo, uma postura seletiva frente ao capital estrangeiro, a qual priorizava aqueles investimentos que contributssem efetivamente para o avango da industrializacgaco = no pais. Finalmente, as linhas de forga do discurso nacionalista consis tiam, ao nosso ver, em duas idéias principais, Seja com Simonsen, ao afirmar, recorrendo a Calégeras, que o pals jamais seria forte e independente enquanto continuasse como simples produtor de "géne xos coloniais", seja com os ideSlogos do ISEB ao se referirem & “a lienagio nacional", seja com os "tenentes” ao bradarem contra a au séncia de "organizag3o nacional”, o nacionalismo populista insis- tia, sob variadas formas, na idéia de uma nagao incipiente, incom- 43 pleta, carente de identidade prépria c, portanto, fragil. A segunda id@ia-forga aludia & necessidade de um Estado for- te, dotado dos meios adequados para integrar © conjunto dos cida~ d3os na comunidade nacional e enfrentar, assim, os agentes corrosi vos, internos e externos que ameagavam a nacionalidade, impedindo sua marcha rumo & plena emancipagiio. Tais caracteristicas constitulam, por assim dizer, a matriz i deolégica do nacionalismo populista brasileiro. Todavia, como ja dissemos na introdugao, a esse nivel de indeterminagao & impossi- vel dar conta do movimento contraditério dessa ideologia. Para aq tingir uma concretude maior, analisaremos como, sob o efeito das praticas de diferentes classes sociais que foram pertinentes para © tema em questac, essa matriz se atualizou, de diferentes modos, constituindo, em cada fase do nacionalismo populista, uma constela gio ideolégica especi£fica. III - Q nacionalismo militar A década subsequente 4 "revolugiio de 30" caracterizou-se, ao nivel econémico, por um grande crescimento da acumulagao — indus~ trial. Se entre 1920 ¢ 1929 a produgSo agricola tinha aumentado & ta xa média de 4,58 ao ano (17,58 para a agricultura de exportagao) e a produgao industrial a 2,8% a.a., a tendéncia inverteu-se no pe- rlodo 1933-1939: a produgao agricola de exportagio aumentou apenas 1,28 aca. (abaixo da média de conjunto da produgio agricola, que foi de 2,4%) e a produgao industrial a 11,3%. Neste mesmo periodo a participagao da produgao industrial na composigao do produto fi- sico dobrou, passando de 21% para 43% (65). Se considerarmos ape- nas 0 caso do Estado de Sio Paulo, o crescimento da produgao indus trial foi ainda maior: 14% ao ano (66). No que se refere ao niimero de estabelecimentos industriais, 44 @entre os 49.418 existentes no Brasil em 1940, 26.881 tinham sido criados entre 1933 e 1940. Ja entre 1943 e 1939, "o nfimero de esta belecimentos e 0 capital investido tinham quase dobrado, aumentan- do quase 50% © niimero de operarios e também dobrando a forga —mo- triz instalada, o que indica uma utilizagio de téenicos com um mai jor investimento de capital (67). Por outro lado, enquanto o indice do salario real (1914=100) era de 120 em 1932, a partir deste ano ele cai progressivamente a t@ chegar a 99, em 1938 (68). E enquanto os salarios reais no Esta do de So Paulo foram diminuidos de 20% entre 1932 e 1938, o valor da produgao para cada operario, a pregos constantes de 1933, aumen tou cerca de 75% entre 1932 e 1939 (69). certos aspectos qualitativos desse crescimento merecem ser ob servados. Se verificarmos os dados de 1940, veremos que as indis- trias de base (metalurgia, mec&nica, material elétrico e material de transporte) dobraram sua participagao noe valor agregado na in- distria (70). No que se refere ao Estado de Sdo Paulo, esse proces so foi ainda mais significativo: "... as indistrias tradicionais, foram as que menos se desenvolveram no pericdo (1933-1939), sendo a indiistria de produtos alimentares a que apresentou a menor taxa anual de crescimento da produgao (2,98), seguida da indistria téx- til (6,5%) e de vestimentos e caigados (8%). Em um grupo intermedd Ario, outras indiistrias tiveram um crescimento da produgao a taxas mais elevadas: bebidas (17,9%), papel (7,38), couros e —peles (18,48). Ao mesmo tempo, as indGstrias de base se desenvolveram a taxas muito altas (...) A produgdo da indfistria metaliirgica aumen— tou & taxa de 24% ao ano, a quimica e farmacéutica a 29,98, a ine distria de material de transporte (principalmente a montagem de au tomveis (9) a 39% ao ano € a indistria de minerais nao met@licos (principalmente o cimento) a 16,48 por ano" (71). Mesmo durante a segunda guerra mundial, apesar dos obstaculos & importagado de maquinas, equipamentos e matérias-primas, a produ- 45 g&o industrial aumentou em seu conjunto & taxa de 5% ao ano. Esse crescimento foi possibilitado pela utilizagao maxima dos equipamen tos ¢ instalagdes existentes, principalmente os do setor —t8xtil (72), Evidentemente, do ponto de vista do desenvolvimento — indus- trial, o acontecimento mais importante do periodo foi o inicio da construgao da Usina de Volta Redonda. Todavia, ao nivel da produ~ glo, seus efeitos sé se manifestariam apés a guerra, Um outro aspecto importante refere-se & importagdo de bens de capital que, quase paralisada em diversos setores tradicionais, en tre 1939 e 1937 (em particular no setor téxtil), tendeu a aumentar muito mais rapidamente no setor das indistras de base. Neste se~ tor, a parte dos investimentos estatais foi crescente, em particu dar durante a guerra. Além da Usina de Volta Redonda, outras empre sas de economia mista foram criadas para a produgao de minério de ferro, de motores para caminhdes e avides e para o Alcali (73). Muito se escreveu sobre o carater “intencional" ou “nao inten cional” da industrializag3o neste periodo que, grosso modo, se es~ tende até meados dos anos 40 (74). Evidentemente, ele no foi intencional no sentido de que te- ria se realizado em um contexto politico caracterizado pela hegeme nia da burquesia industrial nem pelo controle do aparelho de Esta~ do por essa fragio de classe. Alias, mesmo que fosse o caso, o ter mo "intencional” nfo seria o mais apropriado. Nenhuma politica de Estado exprime uma intengao, mas uma relagao de forgas. Tampouco se tratou de um processo “orientado", no seu conjun- to, por uma planificag&o global e a longo prazo. Mas aqui também 0 problema no nos parece bem formulado. WA industrializagées nao planificadas e também existem planos de industrializag’io que, jus- tamente por nao disporem de bases sociais e politicas suficientes, no se realizam. Por outro lado, esse processo (como, alias, todos os proces- sos de industrializag’o) teve uma dimens’o "intencional”, na medi- 46 da em que forgas sociais agiram no sentido da industrializagdo se constituiu, inclusive, uma ideologia que a justificava, ou me- lhor, uma articulagao especifica do nacionalismo populista: 0 na- cionalismo militar. & importante notar que, assim como a auséncia de uma planifi. cago global nao significou que a politica do Estado foi implemen— tada de modo erratico, como simples respostas diversificadas e des providas de coeréncia interna, aos efeitos da crise mundial, nem tampouco em moldes puramente ortodoxos e anti-industrialistas, por outro lado o nacionalismo militar nao implicou um monopélio dos mi Litares na formulagdo de uma politica monoliticamente industriali- zante, nem tampouco que esta politica expressasse sobretudo os in~ teresses da “corporagio militar". Nem todos og militares professa~ vam essa ideologia ©, por outro lado, nem todos os que a professa~ vam eram militares. 0 que pretendemos afirmar @ que o conjunto dos interesses das classes dominantes era organizado pelo e no inte rior de um Estado cujo aparelho dominante, inclusive ao nivel ideo légico, era o ex@ército e que esta politica favorecia, em filtima a- nalise, um processo especifico de industrializagao. 1 - 0 nacionalismo burocratico A problemitica da intencionalidade da industrializagao no pds 30 destaca-se entre as sequelas deixadas pelo impacto da ideologia nacional-populista sobre as “esquerdas". Ao se transfigurar em pro jeto revolucionario, o nacionalismo imprimiria sua marca na tese @a cxist@ncia de uma "burguesia nacional" dotada de projcto indus— trializante. Em contrapartida, a historiogratia mais recente insis tiu na tese oposta, sem, muitas vezes, deixar de assumir os mesmos termos da questio, E, na medida em que, no centro desse debate, a definigao do carater da “revolugao de 30" adquiriu uma importancia estratégica, um dos trajetos escolhidos foi o de investigar se nas

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