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ANO XXV • Nº 100 • EDIÇÃO ESPECIAL ABRIL DE 2023 ISSN 1517-6940

REMANDO CONTRA A MEsMICE

Christian Lynch • Wanderley Guilherme dos Santos • Fabiano Santos • Gustavo Maia Gomes
Marcos Azambuja • Leonardo Braga Martins • Leandro Faro • Tainá Louven • Eduardo Argüelles
Larissa Basso • Eduardo Viola • Felipe Cattapan • Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo
Bruno da Silva Antunes de Cerqueira • Benizete Ramos de Medeiros • Luana Cássia • Janio de Freitas
ISSN 1517-6940 CONSELHO EDITORIAL
DIRETOR
LUIZ CESAR FARO ADALBERTO CARDOSO LUIZ ROBERTO CUNHA
EDITOR SÊNIOR ÂNGELA DE CASTRO GOMES MARCIA NEDER
C H R I S T I A N E D W A R D C Y R I L LY N C H CORIOLANO GATTO MÁRIO MACHADO
EDITOR EXECUTIVO EDSON NUNES MÁRIO POSSAS
CLAUDIO FERNANDEZ EMIR SADER NÉLSON EIZIRIK
PROJETO GRÁFICO FABIANO SANTOS PAULO GUEDES
ANTÔNIO CALEGARI GILDA OSVALDO CRUZ PEDRO DORIA

ARTE
ISABEL LUSTOSA RENÊ GARCIA
M A R C E LO P I R E S JOÃO PEDRO FARO RICARDO RANGEL
PAULA BARRENNE
JOAQUIM FALCÃO RODRIGO DE ALMEIDA
PRODUÇÃO GRÁFICA JOEL MENDES RENNÓ SULAMIS DAIN
RUY SARAIVA JOSÉ LUÍS FIORI VICENTE BARRETO
REVISÃO LUIZ ORENSTEIN WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS =
GERALDO RODRIGUES PEREIRA
MARGARETH VARELA

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EDIÇÃO ESPECIAL ABRIL 2023
COPYRIGHT BY INSIGHT CEZAR MEDEIROS MIGUEL ETHEL
DANIEL DANTAS PABLO CERDEIRA
Todos os ensaios editados nesta publicação poderão ser DÉCIO CLEMENTE PAULO HADDAD
livremente transcritos desde que seja citada a fonte das
informações. ELIEZER BATISTA = PETRONIO LERCHE VIEIRA
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autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.
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JOSÉ MURILO DE CARVALHO
Preparados e
comprometidos
com o futuro
Nossos valores
Nossa equipe é o nosso principal patrimônio

Produtividade e inovação

Foco no desempenho sustentável e de excelência

Pensar, planejar, executar e monitorar

Reciprocidade e lealdade

Respeito pelos outros


M O N K
Insight Inteligência tem suas trilhas sonoras. São composições
com improvisos, acordes atonais, mudanças bruscas de ritmo.
Nosso convite é para que os leitores ouçam a música de
THELONIUS MONK enquanto se debruçam sobre os
ensaios da revista. Ambos se complementam. Monk é também o
protagonista da galeria de fotos que pode ser visitada nas páginas
seguintes. A imagem do compositor remete aos seus ritmos
sincopados. É como Insight Inteligência se ouve, sempre se ouviu.

Nossos parceiros são parte fundamental desta melodia.


Sem o seu apoio, não celebraríamos esse quarto de século de
existência. Eles são os outros acordes da nossa partitura.

MANUAL DE USO DE MARCA | MARCA DO GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ


5

HORIZONTAL

VERTICAL
M O N K
M O N K
M O N K
M O N K
M O N K
M O N K
M O N K
M O N K
M O N K

MAIS IMPORTANTE
THINK
TANK
DO MUNDO.
Eleita o terceiro Think Tank mais importante
e o mais bem administrado do mundo atualmente,
a FGV produz e dissemina conhecimentos
que contribuem para o progresso social
e econômico do país.

FONTE: 2020 GLOBAL GO TO THINK TANK INDEX REPORT.


18
RECADO
Inteligência é índice de desenvolvimento civilizatório, na forma de
contributos ao agregado acumulado de criatividade da humanidade,
muitos dos quais paradigmáticos, ao longo do tempo.

Para o Brasil, o momento é de aposta na recuperação do tropeço


dos últimos anos, marcados pela estultice. Momento de verificar o
que ficou de progresso material, resgatar os valores de inteligência
disponíveis e cuidar de sua multiplicação para um novo salto na
quadra que se inicia. A nação depende da conjugação absoluta de
todos esses elementos: o político, o econômico, o social. O cultural,
em síntese.

É preciso ter fé e ousar. Tudo o que a lógica não contraria está no


mundo das possibilidades. Tudo que é possível, ou bem se passou ou
bem passará.

Insight Inteligência continuará recrutando os intemeratos para


a batalha do debate de boa-fé. Seguirá pregando a convivência
inteligente na diversidade, rejeitada – hoje, mais do que nunca – toda
forma de exclusivismo e de extremismo. Sem democracia, não há
inteligência.

Iniciada há um quarto de século, nossa conversa continua. Nada há


de agonizante, aqui ou alhures. Ética, economia, política, direito,
história estão distantes de acabar. Os tempos podem ser árduos.
Aprimoramo-nos no calor da luta.

Em verdade, a espécie humana arribou há pouco às primícias da


existência. E o Brasil, este, ainda se acha no começo do orbe.

Com ele, segue Insight Inteligência.

ESPECIAL ABRIL 2023 19


JUBILEU DE PRATA -
25 ANOS DE INSIGHT ENSAIOS PÓSTUMOS
INTELIGÊNCIA DE WANDERLEY
Christian Lynch GUILHERME DOS
Um brinde ao próximo
SANTOS
quarto de século Simplesmente, desfrute

30 42

ENTREVISTA
EM BUSCA DA COM O AUDITOR
VERDADE PERDIDA Depoimento
Gustavo Maia Gomes Um balanço sem
Sete é conta de ressalvas
mentiroso
74
58

DO NILO À UCRÂNIA:
BREVIÁRIO DA
INOVAÇÃO MILITAR NA
GUERRA MODERNA
RANHURAS NO
Leonardo Braga Martins
IMPÉRIO AMERICANO
A batalha começa muito
– E O BRASIL SEGUE
antes do front
CAMINHANDO
Marcos Azambuja
De grão em grão, tem uma
94
nova potência chegando

85
8 DE JANEIRO
NO DIVÃ
Leandro Faro
Quando a multidão
psicológica transborda
o Telegram

SUMÁRIO
116

20
I N S I G H T

INTELIGÊNCIA
nº 100 | edição especial abril 2023

O GRITO DO SILÊNCIO
MARAMBIRÉ, UM FOGO VIVO – DE EDVARD MUNCH
– OS QUILOMBOLAS ESTÃO À PÓS-MODERNIDADE
CHEGANDO. ESTÃO CHEGANDO Eduardo Argüelles
OS QUILOMBOLAS Óleo sobre tela em alto e
Tainá Louven bom som
Sejam bem-vindos ao Brasil
146
132
OS DESAFIOS DA POLÍTICA
CLIMÁTICO-AMBIENTAL DO
NEGÓCIO
TERCEIRO GOVERNO LULA
Felipe Cattapan
Larissa Basso e Eduardo Viola
Para ler e assinar
embaixo Ao menos, o desmatamento
reputacional foi contido

174 158

ABOLICIONISMO E
ESCRAVAGISMO NO
PADRE ANTÔNIO VIEIRA A ARTE MUSICAL E A
Paulo Emílio Vauthier CASA DE BRAGANÇA
Borges de Macedo Bruno da Silva
Nem um abolicionista Antunes de Cerqueira
frustrado, nem um Basta acompanhar as
escravocrata enrustido claves

178 198

O PRECARIADO
SOBRE DUAS RODAS O VELHO JORNALISMO
ESTÁ MORRENDO E
Benizete Ramos O NOVO AINDA NÃO
de Medeiros e NASCEU
Luana Cássia
Janio de Freitas
Getulio Vargas caiu
da garupa Não trazemos boas notícias

210 222

ESPECIAL ABRIL 2023 21


CONSTELAÇÃO DOS 25 ANOS
DE INSIGHT INTELIGÊNCIA
(pinturas incidentais deJoan Miró)

Wanderley Guilherme dos Santos


Edson Nunes

Luis Roberto Cunha

Mario Henrique Simonsen


Coriolano Gatto

Claudio Fernandez

Roberto Castello Branco

Carlos Lessa

Maria da Conceição Tavares

Rodrigo de Almeida

Cesar Maia
Marcio Scalercio
José Luiz Bulhões Pedreira
Glaucio Soares

Luiz Carlos Bresser Pereira

Luiz Cesar Faro Christian Lynch

Carlos Ivan Simonsen Leal

Luiz Werneck Vianna

Felipe Cattapan

Dawisson Belém Lopes


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Renê Garcia
Joaquim Falcão

Ruy Saraiva Eliezer Batista

Daniel Dantas

Luiz Gonzaga Belluzzo

Fabiano Santos Marcus Fabiano

Arno Wehling
Jhonathan Mariano

24
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Jairo Nicolau Adalberto Cardoso

Leonardo Braga Martins


Sergio Werlang

Lena Lavinas

Fernando Limongi

Marcia Neder

Jorio Dauster
Isabel Lustosa

Gustavo Maia Gomes Argelina Figueiredo

João Pedro Faro


Paulo Henrique Cassimiro

ESPECIAL ABRIL 2023 25


I N S I G H T INTELIGÊNCIA
Marcus Figueiredo
Antônio Calegari
André Lara Resende
Guilherme de France

Aspásia Camargo

Alba Zaluar

Leandro Faro

Marcio Scheel
Aloisio Araújo
Hermano Cherques

Michel Misse Elizeu Santiago

Jorge Chaloub

Paula Barrenne

Sergio Abranches

Anna Cecilia Faro Bonan

Antonio Delfim Netto


José Almino de Alencar
26
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Roberto Mangabeira Unger

Pedro Doria

Idelber Avelar Gabriel Trigueiro

Louise Marie Hurel


Luis Carlos Fridman

Michael Mohallem

Antônio Porto Gonçalves

Henrique Luz

Mário Trilha

Eduardo Arguelles

Samuel Pessôa

José Vicente de Mendonça


Helga Gahyva

ESPECIAL ABRIL 2023 27


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Antonio Dominguez

Aline Gatto Boueri


Michele Prado
Felipe Borba

Roberto Campos

Arthur Candal

Paulo Guedes

Tainá Louven

João Sicsú

Gilda Oswaldo Cruz

Maria Silvia Bastos Marques José Murilo de Carvalho

Raphael de Almeida Magalhães

28
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Antônio Barros de Castro


José Szwako
Sulamis Dain
Rafael Ioris
Luiz Fernando de Paula

Rosa Maria Araújo


José Luis Oreiro

Rosiska Darcy de Oliveira

Fabio Kerche

Paulo Roberto de Almeida


Armando Guerra
ESPECIAL ABRIL 2023 29
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

JUBILEU
DE PRATA
30 EFEMÉRIDE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Christian Lynch
Editor sênior

de Insight
Inteligência
ESPECIAL ABRIL 2023 31
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

UMA HISTÓRIA INCONVENCIONAL DE SUCESSO


Insight Inteligência completa seu jubileu de prata. Trata-
-se de um feito inegável – quanto mais no Brasil, terra em
que o império do imediatismo, do sectarismo e da medio-
cridade tradicionalmente matam todos os periódicos volta-
dos para a intelligentsia antes que eles atinjam a primeira
infância. Revistas progressistas como “Cadernos do Nosso
Tempo”, de Hélio Jaguaribe; a “Brasiliense”, de Caio Prado;
a “Civilização Brasileira”, de Ênio Silveira; ou mais à direita,
como “República”, de Luiz Felipe d’Avila – nenhuma viveu
até os dez anos de idade. Insight Inteligência foi a única a contendo poemas e ensaios literários, além
conseguir atravessar as forças caudinas e vencer o tabu. dos artigos sobre antropologia, sociologia,
Concebida por seu primeiro editor, Wanderley Guilherme direito, economia, educação e cultura em
dos Santos, que lhe deu a forma e lhe instilou o espírito, geral. A principal exigência seria de que seu
a revista já somaria hoje idade para ter chegado à adoles- conteúdo não fosse convencional.
cência, arranjar namorada, completar a faculdade e até se Outro atributo obrigatório da Insight
casar e fazer mestrado. Feito verdadeiramente inédito nos Inteligência – seu público-alvo sofisticado
anais dos nossos periódicos “inteligentes”. e com poder de influência – foi inspirada
Esse sucesso, como tudo, tem sua história. E como na revista “Leaders”, de Washington,
tudo que diz respeito à Insight Inteligência, uma história publicação distribuída somente para os
fora da caixa. grandes líderes mundiais, notadamente os
Há duas décadas e meia, no restaurante Giuseppe, governantes dos Estados nacionais. Insight
em pleno Centro do Rio, uma conversa entre o diretor da Inteligência adaptou seu golden mailing
Insight Comunicação, Luiz Cesar Faro, e o saudoso diretor para os decision makers do Brasil. Assim
de comunicação da Vale, Carlos Pousa, partejou o que viria foi construída a listagem do grupo que
a ser a revista. Os dois interlocutores se questionavam receberia a revista, ou seja, expoentes da
sobre o espaço na área editorial para uma publicação que academia, congressistas, ministros do STF,
circulasse somente entre os principais tomadores de deci- membros do Poder Executivo, o Prelado,
são do país e tivesse um conteúdo diversificado das áreas os Altos Comandos das Forças Armadas,
humanas, sem qualquer restrição de caráter ideológico. dirigentes das mil maiores empresas do
A pluralidade de opiniões separava, de forma às vezes país – entre os quais os próprios controla-
radicais, os principais intelectuais do país. Nesse ponto e dores das companhias – e formadores de
na capacidade de financiamento da publicação residiam as opinião. Insight Inteligência seria distribuída
principais dúvidas sobre a adesão ao projeto. gratuitamente, não podendo ser adquirida
Nesse encontro foi decidido que o título da publicação em qualquer estabelecimento ou sob a
seria Insight Inteligência, de forma a capturar o nome da forma de assinatura. O conceito então era
agência de comunicação responsável pela produção e de que a obra se tornasse um objeto de
pela captação de recursos para colocar a nova mídia em cobiça, acessível apenas a um punhado
pé. Ficou decidido também que a revista seria robusta, de happy few.

32 EFEMÉRIDE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ESPECIAL ABRIL 2023 33


D
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

chegou, ouviu sobre o projeto da revista, com destaque


para a sua pluralidade. O ex-ministro da Previdência deu
seu veredito: “Essa revista não vai dar certo, é a tribuna do
inimigo. Ninguém vai quer apor o seu nome em um negócio
assim”. A julgar pelo diagnóstico, Eliezer não participaria.
Mas, logo a seguir, bem ao seu estilo, Raphael deu
uma guinada de cento e oitenta graus e disse: “Não vai dar
certo, mas gosto de desafios. Então, põe o meu nome aí”.
Ao que Eliezer respondeu: “Põe o meu nome também”. E
Mas logo surgiram outras dúvidas sobre questões es-
assim foi sendo adensado o Conselho, a partir de conver-
senciais: que empresas se sensibilizariam com um projeto
sas, desde o seu nascedouro, com grandes nomes como
elitista, de difícil leitura e que misturasse eventualmente
os de José Luiz Bulhões de Pedreira, Antonio Dias Leite,
articulistas de ideologias contrárias às dos patrocinadores?
Carlos Lessa, Antônio Barros de Castro e tantos outros
Quem seriam os articulistas que topariam essa convivência
personagens especiais, que foram sendo renovados ao
franca e democrática? E quem seria o editor da revista?
longo deste quarto de século.
Para chegar nos patrocinadores, concluiu-se que
alguém de grande influência apadrinhasse o projeto. Ou
WANDERLEY E SEU LEGADO
melhor: que diversos personagens especiais emprestas-
Mas, se havia os Conselhos e potenciais patrocinadores
sem seu prestígio à publicação. Ou melhor ainda: que os
na agulha, quem seria o editor da revista? Outro desafio
intelectuais, empresários e tecnocratas sensibilizados com
enorme. O tocador da obra tinha de ser reconhecido
a ideia fizessem parte do Conselho Editorial ou Consultivo.
como um intelectual respeitável e com amplitude de co-
Com a empreitada em mente, foi iniciada a peregrinação
nhecimentos humanísticos. Depois de várias reflexões, o
para a mais complexa operação de Insight Inteligência: o
nome escolhido foi do cientista político José Luiz Fiori, à
convencimento em cadeia dos membros dos conselhos.
época muito proeminente devido à sua análise crítica do
A concordância de um azeitava a aceitação de outro. Os
modelo econômico hegemônico, denominado Consenso
primeiros pedidos de benção foram feitos, quase que ao
de Washington. Fiori participou de duas reuniões no restau-
mesmo tempo, a dois expoentes do pensamento contrário:
rante Monte Carlo, na Rua Duvivier, em Copacabana. Em
Roberto Campos e Maria da Conceição Tavares. Polemis-
ambas, fez as mesmas indagações em relação à ousadia
tas e radicalmente opostos, os dois aceitaram em função
de juntar tribos ideológicas díspares. No final, deixou uma
de um pequeno truque: foi dito a Conceição que Campos
dúvida sobre sua participação, mas com um gostinho de
participaria; e a Campos que Conceição tinha topado. Na
que aceitaria. Ledo engano: dias depois, Fiori pulou fora,
verdade, nenhum tinha ainda aceitado. Estrearam no Con-
mesmo assim ressalvando seu apoio ao projeto e apondo
selho na base do “se ele vai, eu vou”.
o seu nome ao Conselho.
Mas eram necessários também grandes “árbitros”,
E agora, o que fazer? Em uma conversa com o cientista
ou seja, figuras que, expostas, atraíssem patrocinadores
político Edson Nunes sobre o dilema do editor da revista,
devido à sua respeitabilidade no mundo empresarial. O
surgiu uma ideia milagrosa: será que o cientista político
primeiro nome escolhido foi o de Mario Henrique Simon-
e filósofo Wanderley Guilherme dos Santos aceitaria a
sen, parceiro da Insight Comunicação desde a sua primeira
missão? Wanderley era uma espécie de santidade na sua
hora. Simonsen era largo em conhecimentos – música,
área de atuação. Polêmico, às vezes intimidador, e com
economia, matemática, filosofia, literatura clássica – e
um pensamento totalmente fora da caixa, imaginou-se
adorava uma provocação intelectual. Concordou de chofre:
que seria difícil ele aceitar. Coube a Edson Nunes todos
“Aceito e assino um artigo no primeiro número”. Assim os
os méritos para o ingresso de Wanderley. A conversa final
conselhos foram surgindo.
se deu em jantar na casa de Edson. Wanderley cravou sua
Nomes, em especial o de Simonsen, abriram as portas
presença e ali mesmo começou a construir o que viria a
para patrocinadores de difícil acesso. Algumas circunstân-
ser a Insight Inteligência.
cias foram hilariantes. Um exemplo: o convite a Eliezer
Batista integrar o Conselho. Eliezer pensou, pensou e cha-
mou Raphael de Almeida Magalhães, que tinha escritório
em frente à Vale, na Avenida Graça Aranha, no Rio. Os
dois eram grandes amigos e tocavam de ouvido. Raphael

34 EFEMÉRIDE
D
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Casa do Saber, no Rio. Rodrigo trouxe uma pegada de


diversidade cultural ainda maior à publicação. Wanderley
estava coberto de razão ao indicá-lo. Rodrigo ficou cerca
de três anos à frente da publicação. Deixou a editoria de
Insight Inteligência aceitando o convite do então ministro
da Fazenda, Joaquim Levy, para ser o assessor de comu-
nicação da Pasta. Posteriormente, se tornaria o assessor
de comunicação da presidenta Dilma Rousseff.
Foi em um telefonema recebido de Wanderley em ou-
tubro de 2012, no meio da reunião da Associação Nacional
de Pós-Graduação em Ciências Sociais, em Caxambu, que
dele recebi o convite para assumir a editoria da revista:
“Topas?”, perguntou ele. Foi somente depois de sondar
amigos comuns no inner circle de Wanderley que “topei”
a empreitada. Embora jovem, eu não era um desconhecido
da revista; já tinha colaborado nos anos anteriores com
quatro artigos, dois dos quais tinham virado matérias de
capa, uma das quais com considerável repercussão (“Sa-
Do ponto de vista da substância, Wanderley trazia uma quaremas e luzias: a sociologia do desgosto com o Brasil”).
concepção de revista voltada para a intelligentsia, decor- Assumi a edição a partir de janeiro de 2013 com o pro-
rente de sua intimidade na leitura, colaboração e produção pósito deliberado de “modernizar a tradição”, por assim
em periódicos aparentados, como os “Cadernos do Nosso dizer. O natural desgaste trazido pelos novos tempos ao
Tempo”, “Dados” e “Civilização Brasileira”. Do ponto de modelo original da revista pediam um pouco de sangue
vista da forma, porém, a inovação foi absoluta. Foi dele, novo para renová-lo e manter o corpo em atividade. Com
por exemplo, a ideia de que a publicação deveria ser uma o espírito de Wanderley sempre pairando sobre as águas,
revista de arte, o que amenizaria a aridez de grande parte Insight Inteligência segue como uma regência, na qual eu,
dos artigos. Wanderley criou as seções, a conversa entre Luiz Cesar Faro e Claudio Fernandez tocamos juntos, de
título e retranca de página, a diversidade temática e, princi- ouvido, sem quase desafinar. Outro milagre.
palmente, a recusa da mesmice em cada uma das páginas.
Com Wanderley dentro da parada como editor sênior, A FORMA DA INTELIGÊNCIA
era fundamental a escolha de um editor executivo que O primado de Insight Inteligência, desde o seu nasce-
ajudasse a empurrar a pedra ladeira acima. A escolha foi douro, sempre foi a busca do não convencional. Essa busca
o jornalista Coriolano Gatto, que tinha acabado de deixar a leva a um enorme esforço de criatividade, tanto do ponto de
editoria de economia do Jornal do Brasil. Coriolano trouxe, vista da forma como do conteúdo. Todo o design da revista
além da expertise com a paginação, sua rede de acessos, é pensado e executado como se ela fosse uma obra de arte.
que foi muito importante para a publicação. Ficou na fun- A obsessão do bom gosto artístico atinge não somente as
ção até março de 2006, quando foi sucedido por Claudio páginas do conteúdo, mas também os anúncios, que foram
Fernandez, que assumiu a partir do número 32 e desde emoldurados com pinturas, fotografias, camafeus e até
então empurra o piano com a mesma disposição de sua com os dedais da coleção de Ancelmo Gois. As peças de
inteligência rápida e seu inconfundível bom humor. apoio institucional, desde o primeiro número da publicação,
Depois de quase treze anos no comando de Insight ganharam vida, organizadas em sequência idêntica à de
Inteligência, Wanderley Guilherme decidiu, em 2010, que uma exposição, como partes de coleções esteticamente
era hora de deixar a exaustiva função de editor da revista. primorosas de discos, fotografias, quadros, livros, sempre
Permaneceria contribuindo com pautas e sugestões, como conjugando o plástico com o provocativo.
sempre imperdíveis. Mas abdicaria da parte executiva Da mesma forma, depois de vários e vários anos usando
da publicação. Na verdade, Wanderley sempre deu as o papel couchê mate brilho em suas páginas, Insight Inte-
diretrizes da revista, mesmo sem o cargo formal de editor ligência refletiu, ponderou e chegou à conclusão de que o
sênior. Foi dele a indicação do seu sucessor, o jornalista tipo de papel do miolo da publicação e da capa não deveriam
e cientista político, Rodrigo de Almeida, então curador da ficar algemados ao modelo original. Podem um número ou

ESPECIAL ABRIL 2023 35


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

outro serem editados inclusive com papéis distintos. E assim os leitores são surpreendidos com
revistas impressas com papel cartão, vergê e couchê brilho ou matte, entre outros, com diferentes
gramaturas. Foi uma decisão verdadeiramente revolucionária em relação às demais mídias. Assim
como as capas da revista sempre foram inusitadas, também já houve número em que a revista –
capa e inferiores – foi toda editada em preto-e-branco, e um dos artigos, publicado como história
em quadrinhos. Em uma frase: o padrão gráfico da Inteligência sempre foi não ter padrão.
A ilustração merece um parágrafo à parte, sendo talvez o carro-chefe por ser a parte mais visível
da publicação. Ela varia conforme o artigo, sendo tão criativa quanto luxuosa e imprevisível. Essa
transfusão de obras de arte, através de diversas soluções gráficas fora do padrão, não seria pos-
sível sem a maestria da designer Paula Barrenne, que interveio no projeto original do diagramador
Antônio Calegari. Paula olhou para a bela escultura de Calegari e, entre fios, cores, geometrismos,
decretou: “Levanta-te e anda”. É dessa combinação entre dois mestres da paginação que surgiu a
identidade visual de Insight Inteligência. A passagem de Calegari foi breve, porém marcante. Paula
bordou com excepcional sensibilidade cada página da revista. Está em praticamente tudo o que foi
feito na revista e escalada para os fazimentos do porvir.

36 EFEMÉRIDE
C
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Cabe ainda uma palavra sobre as modalidades de texto presentes em cada


edição da revista. Embora os “Recados” tenham por função se posicionar
sobre os fatos do presente, eles não funcionam em Insight Inteligência como
editoriais convencionais. Embora costumem também preceder os artigos,
são mais curtos e às vezes tecem considerações de ordem mais gerais.
A rebeldia da publicação já impôs, porém, recados publicados no meio da
revista, entre um artigo ou outro; que já se resumiram a repetir provérbios
populares; que já foram escritos em latim; e até um em que se resumiram à
ilustração de um conhecido gesto obsceno, acompanhado de um palavrão.
Há ainda os depoimentos ou testemunhais, no qual uma entrevista com
um personagem ou autor é convertida em formato de artigo, tornando mais
densa a expressão do pensamento; os dossiês, na forma de díptico ou tríptico,
nos quais artigos são aproximados pela temática abordada, oferecendo ao
leitor perspectivas e visões diferentes sobre um mesmo assunto polêmico.
A revista também costuma concluir cada número com um boletim de ocor-
rência, em que se dá notícia de algum fato histórico ou anedota – sempre
inusitada - envolvendo alguma personagem célebre.

A SUBSTÂNCIA DA INTELIGÊNCIA
O que é inteligente para Insight Inteligência? Conforme referido, desde o
berço a publicação se propôs ser transversal ou interdisciplinar, abrangendo a
expressão da inteligência em todas as suas manifestações estéticas, ideológi-
cas e intelectuais. Nem por isso ela deixa de ter por objeto privilegiado aquele
em torno do qual giraram todas as revistas prestigiosas que eram escritas e
voltadas à intelligentsia: a política, no sentido mais amplo da expressão. Ela
envolve, em primeiro lugar, política no conceito mais estrito de filosofia ou
pensamento político, o funcionamento das instituições, o comportamento
eleitoral, a burocracia, a ideologia, as relações entre os poderes, a política inter-
nacional, o contexto militar e geopolítico. Mas a política por que se interessa
a revista envolve também, em quase idêntica medida, a economia política,
que passa pelo funcionamento dos mercados mundiais e nacionais, abrange
questões financeiras de natureza pública e a formulação e implantação de
políticas econômicas voltadas para promover o crescimento e a produção
de novos empregos e tecnologias.
A revista também apresenta artigos sociológicos, antropológicos e jurídi-
cos que tratam de temas correlatos a essa preocupação política, tais como
raça, educação pública e privada, trabalho, mobilidade social, segurança
pública, política judiciária... Tudo isso, sem prejuízo do espaço destinado para
a história política e social, a psicanálise, a literatura, o ensaio, a poesia – e,
nos últimos tempos, também a música.

ESPECIAL ABRIL 2023 37


A
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A essa altura, não podemos fugir de uma pergunta essencial: mas


quem, afinal, é “inteligente” para a Insight Inteligência? A revista desde
o início recruta seus colaboradores entre o que há de mais sofisticado na
intelectualidade brasileira, e às vezes do exterior, a maior parte das quais
está presente na academia e, em especial, nas ciências humanas. Cabe
mencionar aqui apenas os nomes de alguns colaboradores sêniores que
perfilaram pela revista: antropólogos como Roberto da Matta, Roberto Kant
de Lima e Maria Stella Amorim; politólogos – além do próprio Wanderley -
como Hélio Jaguaribe, Candido Mendes, Edson Nunes, Bolivar Lamounier,
Argelina Figueiredo, Olavo Lima Brasil, Fabiano Santos, Fernando Limongi,
Leôncio Martins Rodrigues, Maria Regina Soares de Lima; historiadores
como José Murilo de Carvalho, Isabel Lustosa, Keila Grinberg; sociólogos
como Gláucio Soares, Luiz Werneck Vianna, Adalberto Cardoso; filósofos
como Paulo Arantes; juristas como Raymundo Faoro, Paulo Bonavides,
Oscar Dias Correia, José Luiz Bulhões Pedreira e Joaquim Falcão; diploma-
tas como Jorio Dauster, Samuel Pinheiro Guimarães e Marcos Azambuja.
No campo da economia, o elenco estelar de colaboradores segue com
Roberto Campos, Mario Henrique Simonsen, Maria da Conceição Tava-
res, Delfim Neto, Carlos Lessa, João Paulo dos Reis Velloso, João Sayad,
Bresser Pereira e Luiz Gonzaga Belluzzo. Na literatura, deram a honra de
sua colaboração, entre outros, Bruno Tolentino e José Almino de Alencar.
A valiosa contribuição ao acervo intelectual do país não passou des-
percebido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES). Insight Inteligência jamais se propôs, ressalve-se, a ser
uma publicação rigorosamente acadêmica, submetida aos critérios de sub-
missão de artigos à avaliação por sistema de blind review. Olhada por esse
ângulo, ela pode ser pensada, talvez, como uma revista protoacadêmica,
ou divulgadora de pesquisas acadêmicas para um público culto, mas não
necessariamente especializado do ponto de vista acadêmico. Nem por
isso a maioria de seus colaboradores deixou de incluir suas publicações
em Insight Inteligência em seus currículos profissionais, porque tem sido
sempre considerada acadêmica pelo alto nível de suas contribuições.
Esse fato levou a revista a ser involuntariamente incluída no sistema
Qualis e, como tal, avaliada em áreas tão multifacetadas quanto o Direito,
a Ciência Política e as Relações Internacionais, as Ciências Ambientais, a
Comunicação e a Informação, a Saúde Coletiva e a área Interdisciplinar.
Essa interface com a academia também possibilitou, aliás, iniciativas
paralelas à publicação impressa, como o Foro Inteligência, parceria com
o BRICS Policy Center / Centro de Estudos e Pesquisas BRICS, vinculado
ao Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e, mais recentemen-
te, o Conversas Inteligentes, no qual entrevisto colaboradores da revista,
sendo o material disponibilizado nas redes sociais por meio do YouTube e
de podcasts em diversas plataformas digitais.

38 EFEMÉRIDE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O TRIPÉ BENIGNO dO

INTELIGêNCIA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

SOCIAL TARGE

ANO XIX • Nº 75 • OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2016

INSIGHT
ANO XIX • Nº 75 • OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2016 ISSN 1517-6940

ANO XiX • Nº 74 • JULHO/AGOSTO/SETEMBRO dE 2016 iSSN 1517-6940

à procura de

HOBBeS

A NO X X I • N º 8 3 • 0U T UBRO / NOV EMBRO / DE Z EMBRO DE 2 018


INTELIGêNCIA
I N S I G H T

ANO XII • Nº 49 • 2º trImestre • JUNHO de 2010


A NO X X I • N º 8 3 • 0U T UBRO / NOV EMBRO / DE Z EMBRO DE 2 018

IssN 1517-6940
ANO XII • Nº 49 • 2º trImestre • JUNHO de 2010

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Quem vigia os vigilantes da Constituição? unidade
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artigo inédito de
outubro • Novembro • dezembro 2016 1
sérgio buarque de holanda
INTELIGêNCIA
INSIGHT

christian lynch e jorge chaloub e o histórico de fritura da constituição cidadã pág 4 0

NOSSOS VALORES
Com toda a sua abertura para o conjunto da inteligência Mas é preciso sempre pensar no futuro. Futuro quer dizer
brasileira, não seria honesto negar que Insight Inteligência mudança - o que, no caso de Insight Inteligência, significa
tem também seus compromissos políticos ou ideológicos. adaptação aos novos tempos, sem alterações no espírito
Uma revista concebida por Wanderley Guilherme dos San- que a move desde o berço. Diversos desafios despontam,
tos herda certas simpatias e inclinações. Em primeiro lugar, tanto no aspecto formal quanto de substância da revista,
a defesa implacável da democracia liberal e da república decorrentes da mudança radical da mídia introduzida pela
contra qualquer forma de autoritarismo, que suprimiria a internet, pela difusão das redes sociais e pela consequente
liberdade de expressão de que a revista necessita para massificação da informação.
existir. Em segundo lugar, ela é progressista, acreditando Hoje, quanto maior a visibilidade do conteúdo, maior a
que a defesa do status quo não é uma opção para um país capacidade de influenciar a opinião pública e os tomadores
que apresenta as desigualdades e os desequilíbrios do de decisão. A complexidade da produção da inteligência,
Brasil. Adotamos com gosto nosso o lema dos “Cadernos decorrente da hiperespecialização e da expansão dos
do Nosso Tempo”: “Os problemas do nosso tempo, na programas de pós-graduação em ciências humanas,
perspectiva do Brasil; os problemas do Brasil, na perspec- além da maior difusão desse conhecimento para fora dos
tiva do nosso tempo”. muros da universidade, também exige expandir a rede de
colaboradores e dar maior visibilidade ao seu conteúdo.
OS DESAFIOS DO PORVIR Outros desafios aqui decorrem do imperativo de adaptação
A longevidade de Insight Inteligência, comparada ao às novas mídias, como aquele de transferir para a tela do
verdadeiro cemitério de anjinhos que caracteriza a história computador o prazer e a beleza da edição impressa. Todas
das publicações análogas, se deve, portanto, ao fato de as cem edições estão disponibilizadas no site da revista,
ter nascido com a cara de seu fundador: humanística, bri- assim como vídeos, lives e podcasts.
lhante, imprevisível, ecumênica, erudita, às vezes séria, às Como se vê, Insight Inteligência já se prepara para os
vezes debochada, às vezes mau humorada, mas sempre próximos 25 anos. Que venha o jubileu de ouro! Como diria
criativa, e acima de tudo, brasileira. E ter sido, depois, o poeta, ele encontrará “lavrado o campo, a casa limpa, a
bem parida, bem alimentada, bem-educada, bem cuidada. mesa posta, com cada coisa em seu lugar”.

ESPECIAL ABRIL 2023 39


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ESPECIAL

ENSAIOS PÓSTUMOS DE

WANDERLEY
GUILHERME DOS SANTOS
os
s aq ui re u n id o s compõem os últim
s texto y Guilherme dos
s d e W an d e rle
dois projeto em
n o co n te xt o d e seu falecimento,
Santos seções introdu-
ro d e 2 0 1 9 . S ão
26 de outub m
o qu e vi rá a se r uma publicação e
tórias d cadas – pesquisa
e . S e g ue m in to
único volum ou
ita d e p o is d e ve rá preencher uma
a ser fe liográfica. Penso
d e re fe rê n ci a bib
outra lacuna fino
o su fici e n te s p ara relembrar o re
que sã odo intelectuais,
ar g ú ci a e in cô m
do estilo, a Per-
e ríst ic as tã o m ar cantes do autor.
caract de quero mais...
in te n so o g o st o
doe, se for

42 PRESENTE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

APRESENTAÇÃO

Fabiano Santos
Cientista político

GS contava com a interlocução diária de San Ro-


manelli e Adalberto Cardoso, e ambos consegui-
ram resgatar os arquivos nos quais os escritos se
encontravam no meio de inúmeras iniciativas e
documentos pessoais. Embora aparentemente
tratem de objetos bem distintos, na verdade, o
fio condutor é nitidamente o mesmo, sendo uma
obsessão em sua vasta obra: a democracia. O
contexto empírico é que muda, sendo no primei-
ro caso, a Atenas clássica, no segundo, o Brasil
contemporâneo. WGS era um aficionado por
política brasileira. Não se sabe tanto, contudo,
de seu apego à democracia ateniense. Desde
cedo, como aluno de Filosofia da antiga Faculda-
de Nacional de Filosofia (FNF, hoje IFCS/UFRJ),
desenvolveu paixão pelo assunto, sem ter tido,
no entanto, o impulso e estímulo para pesquisar
de maneira mais sistemática e escrever sobre o
tema. Encontrou tal contexto mais para o final de
sua vida, estimulado pelos achados recentes de
arqueologia e estudos sobre violência e guerra
na antiguidade. E, embora distintas as aplicações
empíricas, ficará mais ainda explicitado seu fio
condutor comum quando da leitura de todo o vo-
lume do qual constarão os dois ensaios. Desde
logo, convite feito às leitoras e leitores.

ESPECIAL ABRIL 2023 43


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

PAUSA ATENIENSE

A
elegante “Oração Fúnebre”, de Pé-
ricles, combina orgulho doméstico,
vaidade imperial e retórica preten-
de Lísias, datada tentativamente de 390, durante a guerra
siosa. Associado às felizes, porém
corintiana, é compreensivelmente contestada, pois, sendo
enganosas circunstâncias (as do
meteco, tal como Górgias, seu autor não teria direitos de
início da guerra do Peloponeso), que
participação na vida pública, estando sujeito até a pena de
antecederam seu desastrado desen-
morte se apanhado como intruso. Em diálogo composto
lace, se tornou o mais célebre exemplo de antiga tradição
na época da paz de Antalcidas (387), Platão apresenta
ateniense: a de mobilizar pela palavra a adesão dos cidadãos
uma contrafação das orações fúnebres, fazendo Sócrates
ao esforço beligerante em que a cidade estivesse empenha-
oferecer a Menexeno uma infalível receita de sucesso para
da.1 O estratagema de homenagear com rito discursivo os
qualquer discurso semelhante, consistindo em elogiar sem
mortos em combates militares obrigava eventualmente
reservas a cidade de Atenas. É a caracterização das orações
a mascarar com ênfase narrativa a decepção da derrota
fúnebres como o discurso ateniense para homenagear a
ali materializada nos cadáveres ainda por enterrar e na
própria Atenas (citar Loraux). Ao ensinar o uso de fórmulas
presença enlutada de mães, mulheres, irmãs e filhos,
para que Menexeno obtenha reputação, Sócrates enumera
compulsórios personagens na cerimônia de consagração
mediante discurso de Aspásia em homenagem aos mortos
dos epitáfios. Mesmo quando em furtiva oportunidade de
vitórias obtidas com socorro de, todavia, omitidos terceiros,
vanglória a propósito de uma vitória, Hipérides, responsável
silencia sobre derrotas, afaga aliados excessivamente e
pela última das orações fúnebres recolhidas (em 322 AC),
menospreza adversários. Estilisticamente, contudo, é o
promove acrobacias de estilo em busca de adereços com
mais sedutor dos discursos preservados, dando excelso
que transfigurar a morte e, subjugada por simbólica ressur-
exemplo do que para ele, Platão, não passava de subterfú-
reição, apresentá-la como entidade louçã: “esses homens,
gios com que a malícia dos demagogos iludia a audiência.
muito ao contrário de morrerem, pois morte não é palavra
Não seria por incompetência que Platão tomaria os sofistas
para ser usada onde as vidas são perdidas, como as deles
como a encarnação da perfídia e do engodo.
o foram, por uma nobre causa, passaram desta existência
Íntegros, e para serem tomados pelo valor de face,
para uma vida eterna”.2 É a trágica circunstância de elogiar
restam, além do de Lísias e o de Hipérides, comentando
a morte como se fosse a própria essência da manifestação
a guerra de Lamia, de 322, os de Péricles, dados, segundo
vital, sobretudo quando os defuntos são os mensageiros
Tucídides, em 431, e o de Demóstenes, na sequência da
silenciosos da decepção maior, a derrota. Licurgo, um dos
batalha de Queronéia, em 338. Em todos, a glorificação de
responsáveis pela tentativa de livrar a Grécia do domínio
Atenas e dos atenienses, vivos, mortos e lendários.
macedônio, depois da morte de Alexandre, exprime com
É magro o embornal de documentos sobre os tempos
absoluta clareza a estranheza da situação ao se referir às
primevos de Atenas. Tendo adotado o alfabeto somente
vítimas de Queronéia: “Invencíveis, tombaram nos postos
em meados do século VIIIAC, os primeiros escritos estri-
em defesa da liberdade, e se posso valer-me de um parado-
tamente históricos só serão elaborados quatro séculos
xo, paradoxo que, não obstante, transmite toda a verdade,
depois. Entrementes, a transposição narrativa da vida ate-
eles triunfaram em sua morte”.3
niense se dá transfiguradamente na poesia lírica e trágica,
Não obstante a importância e a pátina da tradição que
sobretudo nesta, e na dramaturgia. Por mais extensa que
lhes atribui Tucídides, a doxografia não preservou mais do
se avalie a contribuição dos progressos arqueológicos das
que seis orações fúnebres, e de credibilidade controversa.
Do mais antigo discurso, o de Górgias, por ocasião da paz
de Nícias, em 421, restou um fragmento.4 A oração fúnebre,

44 PRESENTE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de perseguições políticas”.7 A condição de cidadão atenien-


se favorecia e, em vários casos, promovia o monopólio de
privilégios nada desprezíveis, entre os quais o direito de
últimas décadas, o estudo da antiguidade grega, em parti- não ser torturado. Por fim, diversas peças forenses dos
cular da história ateniense, continua exposto a dificuldades famosos oradores gregos envolvem querelas familiares e
de genealogia, cronologia e filologia. Justamente porque o de corrupção. Entender a estrutura genealógica da política
consenso interpretativo liberal do século XIX, pobremente ateniense, assim, equivale em importância ao desvenda-
informado, foi espatifado pela subversão dos arqueólogos, mento das estruturas de parentesco das sociedades pré-
enriqueceu-se, assim, sensivelmente, a agenda de tópicos -literatas contemporâneas.
controversos. A política de compadrio, por exemplo, de que
Disputas sobre cronologia estão imediatamente liga-
a árvore genealógica constitui métrica medular, faz parte das ao esclarecimento de plausíveis nexos weberianos
da vida ateniense, assim como as cliques familiares e as de causalidade adequada. Por exemplo: maior ou menor
associações de interesse por via de casamento, descobrin- aceitabilidade da tese de uma suposta influência da deno-
do dimensão inédita na legislação sobre cidadania. Regras minada “revolução dos hoplitas” (infantaria) na sucessão
de parentesco são, ao mesmo tempo, condicionantes de de conquistas democráticas, tais como o alargamento da
alianças políticas. Introduz sabor quase contemporâneo base de cidadãos recrutáveis para funções de magistratura,
saber que o olímpico Péricles, através do casamento de ou, no outro extremo, como estamento de sustentação
seu filho, Xantipo, veio a relacionar-se familiarmente com das tiranias dos séculos VII-VI até meados do século V?,
embaixadores e generais, sendo ele próprio, é claro, emi- depende da datação de algumas daquelas reformas (vide
nente membro do clã dos Alcmeônidas, co-fundadores da a anterior referência a Fornara).8 Por sua crucial relevân-
cidade.5 Não é muito objetada, mesmo entre os classicistas

Por mais extensa que se avalie a contribuição dos progressos arqueológicos


das últimas décadas, o estudo da antiguidade grega, em particular da história ateniense,
continua exposto a dificuldades de genealogia, cronologia e filologia

cia, não há historiador da Antiguidade grega que não se


persuadidos de que Atenas não apenas inventou a ideia arrisque a uma cronologia. Postular uma cesura no século
como consagrou a prática da democracia, a convicção de VIII com a história anterior, ou singularizar o século VI,
que as três principais regiões da cidade – as montanhas, o desvencilhando-o do interregno dos dois séculos anterio-
plano e a costa marinha – estiveram por muito tempo sob res, são premissas que sustentam especulações sobre
controle político e econômico de três grandes clãs (isto é, os determinantes da explosão econômica e cultural dos
família e agregados).6 Bem radical, Bicknell considera que séculos V e IV, por exemplo, localizando-os no exterior, na
“a história de Atenas, pelo menos até o fim da guerra do retomada do comércio com o Oriente próximo. Negar as
Peloponeso, é essencialmente a história de suas famílias descontinuidades equivale a privilegiar a preponderância
líderes, a maioria aristocrática. Nobres casas, agrupadas em de causas endógenas à evolução grega, até mesmo des-
facções, competem pelo prestígio e pela auctoritas que lhes de a pré-história creto-minoica no segundo milênio AC.
permitirá eclipsar os rivais, sendo os principais prêmios as O tópico promoveu uma polêmica no mundo moderno
altas posições do Estado, primeiro os arcontados, depois ainda mais acalorada do que à época sobre a radical origi-
as posições de estrategas. nalidade ateniense.
Cabalas de nobres philoi (com a adição eventual de ricos
Eis um exemplo: “Podemos começar a ver agora, mais
e talentosos não aristocratas), frequentemente associados claramente, que o que emergiu pelo quinto século AC foi o
por laços matrimoniais, operam juntos como hetairoi para resultado de uma série de transformações que podem ser
obter posições e frustrar os echthroi, em particular por meio traçadas aos micenianos e ainda mais recuadamente aos

ESPECIAL ABRIL 2023 45


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

minoicos, aos primeiros pal


ácios, ao espírito internacio
do início da Idade do Bronze nal
, talvez ao período neolítico
aos primeiros agricultores, e
e, ainda além, aos primeiro
pescadores e primeiros com s anterior da democracia”.14 Por isso, considera claro “que
erciantes do mar Egeu”.9 O
abandono da escrita, entre ele (Clístenes) não chamava seu governo de democrático
o fim da civilização miceniana
e o século VIII, subordina a nem a palavra estava em uso à época”.15
macro história da Grécia aos
progressos arqueológicos, O termo que corresponde à forma de governo radical-
com suas limitações própria
ao contrário das civilizações s, mente contrária à democracia, “tirania”, também se apre-
do Oriente próximo, tão ant
gas quanto a civilização palacia i- senta com origem obscura. Ele não aparece em Homero,
l grega, testemunhadas por
documentos e literatura. aparentemente tendo sido usado pela primeira vez pelo
As modificações constituci poeta Archilochus, na primeira metade do século VII, não
onais dos séculos V e IV
comprometeram o significad por acaso quando se tornara frequente forma de governo
o tradicional de alguns vocá-
bulos ao mesmo tempo em entre as cidades gregas em gestação. Tanto “tirania”
que obrigaram a invenção de
outros. Questões, aparentem quanto “tirano” encontram-se no elogio de Píndaro a Hie-
ente, de filologia. Por isso que
se referem a realidades nov ron, tirano de Siracusa. Mas, não obstante a necessidade
as ou transfiguradas, termos
como “autonomia” ou “isono de adularem os patrocinadores, os poetas dos séculos
mia” exigem redefinição de
sentido, se é que já existiam VI e V se manifestarão contrários à tirania. Archilochus, o
na linguagem política quando
as reformas constitucionais mais antigo de todos, declara, sobranceiro: “As posses de
foram expedidas.10Fornara
Samos II entendem que “is e Gyges (tirano da Lídia), rico em ouro, não me atraem, nem
onomia” é vocábulo bastan
arcaico e que pode ser inte te
rpretado como significando fui acometido de ciúme de sua riqueza/ não invejo os feitos
praticamente a mesma coisa dos deuses/ e não tenho amor pela tirania”.16 Mais radical
que democracia, ainda que,
institucionalmente, esta não do que Archilochus, Teogonis, o enraivecido enunciador de
existisse no passado.11 No
debate constitucional fabrica preconceitos contra a participação dos cidadãos comuns
do por Heródoto entre três
príncipes persas, Otane, adv na vida política, aconselha a deposição dos tiranos por
ogado da forma democrátic
de governo, não utiliza a pal a
avra “democracia” para car todos os meios necessários, pois os deuses não ficariam
terizá-lo, mas “isonomia”. E ac-
em poética conclusão assinal ressentidos.17
a

A classificação de um governo como oligárquico é também novidade no discurso,


atribuindo-se a Tucídides a introdução do termo na convenção linguística da história política

que “O governo da maioria Mesmo Píndaro, adulador de tiranos, revelará sua pre-
tem, em primeiro lugar, o ma
belo dos nomes, a saber, iso is
nomia”.12 O próprio Heródo- ferência de estação no final da vida na ode Pítia 11.50-55:
to, avalista da implantação “Possa eu desejar as bênçãos dos deuses/enquanto busco
da democracia em Atenas por
Clístenes, observa, em episód o que é possível em minha idade/pois na cidade encontro os
io posterior de Histórias, que
“Aristagoras (de Mileto), abd estratos médios florescendo com mais acentuada prospe-
icando da tirania, implantou
um regime de isonomia”.13 ridade/ e eu censuro a condição das tiranias”. Sendo todos
O que substituiu e se seguiu
tirania não foi, portanto, a dem à
ocracia, mas um regime de aristocratas, se revoltavam contra a decadência do poder da
isonomia. O estudioso J.A.O. aristocracia promovida pelos tiranos nas principais cidades
Larsen foi um dos comenta-
ristas a afirmar, enfaticament gregas – Atenas, Corinto, Megara, Sicyon, onde os Ortagho-
e, que “isonomia” é o nom
e
ras e um primeiro Kleisthenes governaram tiranicamente
por mais de um século, Siracusa, Argos, Leontini, na Jônia
–, antes que combatiam por uma democracia ainda por vir.

46 PRESENTE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A classificação de um governo como oligárquico é solo ático, as lendárias e his


também novidade no discurso, atribuindo-se a Tucídides tóricas conquistas dos ances-
trais, especialmente as vitó
a introdução do termo na convenção linguística da história rias de Maratona e Salamina
a superioridade da educação ,
política. Admitindo que Ésquilo ou Eurípides, nas respecti- e do treinamento ateniense
e as vantagens da forma de ,
vas tragédias de mesmo nome, “As Suplicantes”, estejam governo de Atenas”.20 Sem
dúvida, o que não significa,
descrevendo procedimentos tipicamente característicos contudo, que as diferenças
ênfase não sejam relevantes de
.

Gorgias recomenda que se investiguem os mortos para averiguação da medida em que


eventualmente possuíram aquilo que não convém aos homens dignos possuir e se deixaram
de possuir justamente o que importa aos heróis possuir

Embora da Oração Fúnebr


dos períodos pós Clístenes e pós Efialtes18, a palavra “de- e de Gorgias não tenha
restado senão breve fragme
mocracia” não é por eles registrada nas tragédias. nto, dele Vollgraff extraiu,
associando-o a outros fragme
Acorda-se que a palavra “democracia” foi utilizada pela ntos e testemunhos, extens
monografia sobre a moral sof a
primeira vez por Heródoto, já quando as práticas por ela ística, com base em apurad
tratamento filológico.21 Afasta o
designada, no entendimento de Heródoto do que seria um ndo-se da análise do esque-
ma central das orações – até
sistema democrático, estavam plenamente integradas ao porque não existe material
para tanto – colabora pouco
dia a dia da polis ateniense. Entretanto, o próprio vocábulo para o debate sobre o sentido
das orações fúnebres na vid
“demos” não parece haver possuído um significado trans- a política ateniense, ângulo
canônico estabelecido por
lúcido. Oscilam os historiadores entre a designação neutra Tucídides. Embora também
modesto em seu tratament
de “povo”, genericamente entendido, e a identificação de o do texto de Gorgias, Dupre
el aponta uma das relevan -
“classes baixas” da população. Donlan entende que se pro- tes passagens do fragmento
atinando com o sentido das ,
cessou uma mudança entre Sólon, para quem “demos” já orações fúnebres: sugerir
aos vivos como deveriam
ser a propósito de persuasiva
apontaria, positivamente, para as classes pobres, e Teognis, fabulação de como os mortos
o poeta aristocrata adversário da tirania, cuja referência ao haviam sido.
Em curta frase, Gorgias recom
“demos” insinua desqualificações pela pobreza.19 enda que se investiguem
os mortos para averiguação
As orações fúnebres, ainda quando em versões críticas, da medida em que eventual-
mente possuíram aquilo que
como a que Platão faz Sócrates colocar na boca de Aspásia não convém aos homens
dignos possuir e se deixar
am de possuir justamente
– segunda mulher de Péricles e que, aliás, era natural de Mi- que importa aos heróis pos o
suir. Daí retirariam os demais
leto, não de Atenas – tratam de matéria bastante delicada, oradores o critério para des
ou seja, de genealogia e alianças políticas, de cronologia, enhar o perfil da identidade
cívica do cidadão ateniense,
certamente um dos objetivos
portanto de contrafactuais históricos, e de filologia, isto é, centrais da canônica dos epi
de retórica eventualmente manipuladora. Não surpreende táfios, tão economicament
exposta pelos tradutores e
de Demóstenes.22 Para tod
que revele uma estrutura relativamente padronizada. Ou, efeito retórico, aos mortos não o
por outra, que suas mitologias e falsidades estejam rotini- cabe senão a lembrança do
heroísmo, mas esta fixa o cód
zadas. Os tradutores da Oração Fúnebre de Demóstenes, igo de conduta para os vivos.
editada pela Loeb Classical Library, reduzem a estrutura
dos discursos a um esquema de enorme simplicidade.
Dizem eles: “Entre os tópicos aparentemente de maior
recorrência estavam o nascimento da raça ateniense do

ESPECIAL ABRIL 2023 47


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Bravos os soldados, sem exceção. Tal como descritos


ao ritmo de parada militar e entonação de ordem do dia,
característicos da retórica tumular de todas as orações fú-
nebres sobreviventes. Nenhum daqueles mortos, mesmo nossa cidade nunca falha na punição dos maus
, no socorro
os combatentes mais tímidos entre eles, teria coragem de aos justos, extrai de todos os homens a justiça
em lugar da
hesitar diante do inimigo ao se descobrir destinatário dos maldade, e, assumindo individualmente todos
os riscos e
elogios daquelas contundentes orações. “Entre bravos, despesas, garante aos gregos uma segurança
comum”.29
uma morte gloriosa deixa o legado de uma fama imortal”, O orgulho da condição de autóctones é, no
discurso,
assegurava Lysias, pois “a morte pode ser compartilhada pacífica, e apenas registra o fato de não ter a
história da
por todos, mas, a bravura, somente por alguns”. A mor- cidade se feito pelo massacre inicial de uma
23
população
te é a demonstração em todos os sentidos definitiva da indígena, ao contrário de outras cidades grega
s. Exceto
nobreza genealógica dos combatentes. Por isso Hipérides no diálogo Menexeno, no qual Platão faz Sócra
tes colocar
considera supérfluo, em sua oração, elogiar a ascendência na oração de Aspásia, depois das declaraçõe
s de rotina,
de cada “ateniense, nascido em seu próprio país e com- celebrando a condição de autóctones, uma obse
rvação que
partilhando uma linhagem de indiscutível pureza”. Pois, excomunga os demais gregos da comunidad
24
e religiosa
quem pode duvidar da coragem “dos cidadãos que caíram que deveria uni-los.
nesta campanha, que deram suas vidas pela liberdade dos Diz Aspásia: “Nossa cidade merece os elogios
de todos
gregos, convencidos de que a mais segura prova de seu os homens, não somente os nossos, por várias
razões,
desejo de assegurar a liberdade da Grécia consistia em entre as quais a primeira e mais importante é
que ela é a
morrer em batalha por ela?”.
25 amada dos deuses”.30 Mas o excesso de auto-
glorificação
Com isso, “embora não tenham conseguido atingir a separatista se compensa, nos discursos, pela solida
riedade
senectude, conquistaram a fama que não conhece idade”. que os atenienses manifestam às demais cidad
26
es gregas

O orgulho da condição de autóctones é, no discurso, pacífica, e apenas registra o fato de não


ter a história da cidade se feito pelo massacre inicial de uma população indígena

A morte é o passaporte para a imortalidade, que a nega, diante de vicissitudes e de injustiças, e que fazem
seguir de
embora de forma perversa: um cidadão só se torna imortal ações efetivas, chegando ao sacrifício da morte.
Depois do
neste mundo ausentando-se dele. Demóstenes será ainda desastre de Queronéia, e outra vez apelando para
o recurso
mais transfigurador do sacrifico dos bravos: “[...] embora retórico de sustentar que os derrotados são
igualmente
os parentes vivos desses mortos mereçam nossa simpatia vencedores,31 ele acentua que deve “ficar
manifesto a
[...] e embora nossa terra nativa esteja desolada, cheia de todos os homens vivos, por igual, isto: que, com
efeito, a
lágrimas e luto, esses mortos, não obstante, por um justo liberdade do mundo grego inteiro só poderia ser
preservada
cálculo, estão felizes”. Homens que alcançaram uma em troca da vida destes homens”.32 O mesm
27
o já dissera
excelência que é divina e uma imortalidade que é humana, Lysias, ainda com mais amplitude: porque venc
eram os
dissera Górgias.28 persas na batalha de Platea, “nesse dia, eles
puseram o
São atenienses, vaidosos de sua cidade: “Compare-a mais maravilhoso dos fins a todos os perigos
presentes e
(Atenas) com o sol que visita o mundo inteiro e separa prévios: estabeleceram uma paz segura para
a Europa”.33
corretamente as estações, dispondo todas as coisas para
o melhor, com provisões, onde os homens são virtuosos e
prudentes, para seu nascimento e alimentação, as colheitas
e todas as necessidades da vida; do mesmo modo, assim

48 PRESENTE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Orações fúnebres são naturalmente hiperbólica


s. Há
que se elaborar uma justificativa aparentemente
sensata
para um evento, a morte, que é capaz de destr
oçar todos
os significados. A história conhecida, material,
batalhas
reais, sangrentas, serão associadas a uma inven
ção de an-
cestralidade em que os personagens, por herói
s, também
não estarão expostos ao desaparecimento prom
etido pela manifestar respeito por outra coisa senão pela reputação
morte. São seres excepcionais que derrotam
amazonas, da virtude e da sabedoria”.36 Nem por isso, entretanto, o
são filhos de deuses, como os de Heracles, a cons
tituírem bom sofista Sócrates, quando é de serventia a Platão, deixa
os primeiros capítulos de uma história cujos episó
dios reais, de assinalar na mesma passagem que alguns chamam a
como Maratona e Salamina, não se distinguem
dos eventos este tipo de governo de democracia, outros chamam do
fabulosos. Demóstenes usará todos os prime
iros nove que desejam, mas na realidade, trata-se, diz Aspásia, de
parágrafos de sua Oração para tratar de acon
tecimentos um governo dos melhores aprovados pela massa.37
mitológicos como se históricos fossem.
Péricles, o estratega e, segundo Tucídides, aquele que
Assim Lysias, ao estabelecer a continuidade
histórica de fato detinha o poder real na Atenas democrata, não foi
entre a ancestralidade e a democracia contempor
ânea: “Os tolerante em relação a dúvidas. Em sua estilizada oração,
ancestrais de outras comunidades, juntaram-s
e partindo transcrita ou transcriada por Tucídides, a presença dos
de diversos lugares, expulsando os nativos e
passando a ancestrais é crucial, mas restrita ao prefácio do discurso,
viver em uma terra que não era originalmente
sua. Nossos que abandona a narrativa dos episódios das batalhas con-
ancestrais, por outro lado, nasceram do solo, tendo
a Ática tra as amazonas e feitos semelhantes. Concisamente, a
simultaneamente como pai e mãe. Eles foram
o primeiro mensagem segue assim: “Nunca houve um tempo quando
povo, e à época o único, a expulsar os governant
es auto- eles (os ancestrais) não habitavam esta terra, que, através
cráticos e estabelecer a democracia na crenç
a de que a de seu valor, transmitiram de geração a geração, e deles
maior harmonia se encontra quando todos são
livres. [...] recebemos um estado livre”.38 E, o que poderia ser a con-
Honraram os bons e puniram os maus de acord
o com a clusão do discurso: “Mas antes de elogiar os mortos, quero
lei. Pensavam que controlarem-se mutuamen
te pela força assinalar por quais princípios de ação ficamos poderosos,
era próprio de animais, mas que os seres huma
nos devem e sob quais instituições e através de que modo de vida
determinar a justiça por meio da lei e persuadir
pelo uso nosso império engrandeceu”.39
da razão. Finalmente, que os seres humanos
devem ser O discurso, portanto, é prioritariamente sobre os vivos,
regidos por leis e ensinados pela razão, e suas ações
devem ou melhor, sobre as instituições sob as quais vivem os con-
servir a ambos os fins”.34
temporâneos, e sobre as conquistas que essas instituições
A conexão entre ancestralidade e democracia
está ex- permitiram aos atenienses realizar. Auto-congratulatório,
plicitamente estabelecida também em Demósten 35
es. É a encerra-se, nesse preâmbulo aos mortos, com uma dos
comunhão de origem que, segundo a Aspásia de
Sócrates/ slogans propagandísticos mais bem sucedidos de todos
Platão, a rigor obriga à busca da igualdade polític
a: “[...] a os tempos: “Para resumir: digo que Atenas é a escola da
igualdade da origem na ordem da natureza, nos
força, na Helade”.40 Na verdade, não foi escolar para a Helade, mas
ordem da lei, a buscar a igualdade política e, entre
nós, não para a posteridade. Péricles está para a mitologia contem-
porânea assim como Teseu está para a mitologia atenien-
se. E a descrição que fez de Atenas, sua vida econômica,
social e política transformou os atenienses nos ancestrais
do mundo moderno. Tal como a população possivelmente
acreditava nas narrativas de seus poetas, os herdeiros
contemporâneos daqueles atenienses confiam na radical
originalidade grega, particularmente dos atenienses, e co-
mungam na crença de que eles inventaram e praticaram
uma forma de democracia radical. Há razões para dúvida.

ESPECIAL ABRIL 2023 49


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ONDE OS VOTOS NASCEM OU A NOVA


GEOGRAFIA DO VOTO NO BRASIL

O
nde os votos nascem é um i o eixo essencial da
a preocu- A eleição dos governantes constitu
pação essencialmente dem comunidade contendo
ocrática. integração democrática de uma
Por “democracia” compre representativa é capaz
ende-se múltiplos conflitos. A democracia
sistemas nos quais as exigênc de demandas econômi-
ias para de conviver com diferentes pautas
participar dos processos eleitor pautas de direitos até
ais são cas e sociais, mas sociedades com
mínimas: idade e posse dos se os governos não
políticos consagrados pelo dire itos consensuais não serão democráticas
ões . Discutir processos
Trata-se de uma ordem pol
liberalismo contemporâneo. forem constituídos mediante eleiç
inar a natureza cons-
então privilégios oligárquicos
ítica que universalizou os até e resultados eleitorais significa exam
ivas. Onde nascem
de formação de governos,
de intervenção nos processos tituinte das democracias representat
virtudes e distorções
as oligarquias algemadas
assim como, anteriormente
, os votos no Brasil ilumina o caráter,
ileira.
religiosos ou genealógicos
sabotaram os fundamentos da democracia representativa bras
er involuntário. Ele
Com a veloz expansão popula
dos poderes de nobres e reis
. O eleitor é um desmancha praz
utado por inúmeros
dos avanços proporcionados
cional das nações, resultado dispõe de um simples voto, disp
explicitamente, tenta
dos sucessos na medicina
pela economia industrial e candidatos, e sua escolha é dúplice:
competidores, mas
aceitável para que a igualdade
preventiva, não existia razão colaborar para o sucesso de um dos
nte para a decepção de
perante os nobres permanec
reclamada pelos oligarcas cooperando indireta e inevitavelme
sorte. Ou melhor, de
iguais – a saber, laicidade ou
esse vedada à multidão de outro candidato, aleatório, de pouca
rtidários, o número de
rença sanguínea.
diversidade religiosa e indife- poucos votos. Em sistemas multipa
erior ao dos vitoriosos,
Depois de aproximadament derrotados é consideravelmente sup
apontamento, senti-
cias, adiamentos e controv
e dois séculos de resistên- independente da fórmula eleitoral. Des
ões comuns à enorme
formação dos governos est
érsias, o direito de intervir
na mento de traição, espanto são reaç
cipavam conquistar um
homens e mulheres, das
endeu-se a todos os adultos
, quantidade de candidatos que ante
confrontar-se com a
desconhecer que as duas
sociedades modernas. Dif
ícil posto na representação política ao
ão cívica e o reconhe-
direitos políticos ocorreram
maiores ondas de difusão
de fatídica distância entre sua disposiç
após as duas grandes guerras cimento dos demais cidadãos.
do século XX: se todos eram representação pro-
te, nada justificava qualquer
iguais perante o risco de mo
r- Em sociedades com sistema de
perdedores cujo sofri-
dos cidadãos vivos. Exemplos
estratificação no valor cívico porcional há um pequeno grupo de
conjunto daqueles que
de voto masculino, indepe
: a universalização do direito mento é ainda mais lancinante: o
mandato disputado. Se
Inglaterra, em 1919, e o me
ndente de renda, ocorreu,
na submergiram a poucas braçadas do
o de maiores médias
e mulheres, instalou-se, na
smo direito incluindo homens o sistema eleitoral for o denominad
França e na Itália, em 1945. e vários partidos, serão
Democracias de massa são e permitir coalizões eleitorais entr
idatos de uma coalizão
de cidadãos desfruta de um
aquelas em que a massa frequentes os casos em que cand
ora com número de
políticos. Entre eles, o crucial
conjunto mínimo de direitos não conquistem uma cadeira, emb
as coalizões (Nota de
nantes, com resultados matem
direito de eleger os gover- votos superior aos eleitos por outr
rutivo volume de Jairo
essencialmente imprevisíveis
aticamente possíveis, mas pé de página: Cf. o excelente e inst
Os (des)caminhos do
que às mesmas causas não cor
. Em excelente exemplo de Nicolau, Representantes de quem?
utados, Rio de Janeiro,
te os mesmos efeitos, a me
respondem necessariamen- seu voto da urna à Câmara dos Dep
sma causa – o ato de votar Jorge Zahar Editor, 2017).
acionada simultaneamente -,
te sistema inocente
consequências diversas das
por milhões de pessoas, ger
a Por esta e outras razões, não exis
deixam a desejar por
de oligarcas pelo voto de rare
que se seguiam às disputas na escolha de representantes: ou
enharias prejudiciais
a severa dieta de informaçõe
feitos eleitores, submetidos efetiva representatividade ou por eng
sistemas que negam o
s e vulneráveis a represálias. a grupos específicos. Por exemplo,
mulheres, ou negros,
direito de voto aos analfabetos, ou às
50 PRESENTE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

trajetória do perdedores sobre os vencedores. Mas a divisão do número


ou a minorias nacionais (como parece ser a
de extração de candidatos pelo número de lugares (o governo de 5.517
Estado de Israel em relação aos israelenses
de um motiv o contra o municípios em 2012) ilude o realismo da competição.
árabe) pecam por um ou mais
. Mas estas são Competiram 15.127 postulantes, levando à média de 2,7
código de valores de partes da população
quase todas candidatos por posto, sendo este praticamente o mínimo
deficiências de grande porte e superadas em
s. Agora, possível em competição por um lugar: dois candidatos.
as democracias representativas contemporânea
dos sistemas majo ritários Em 2016, para 5.568 lugares inscreveram-se 16.565
são os desperdícios de voto
das regra s de pessoas, com a média igualmente mínima de 2,9 candi-
para casas legislativas ou os paradoxos
e exérc ito datos por posto. Esta conta ignora que três dos maiores
apuração dos vitoriosos que alimentam o grand
ento que, partidos – PT, PMDB e PSDB -, assim como os demais,
de ressentidos com a democracia. Ressentim
conte staçã o ativa, desde não concorrem pela prefeitura em todos os municípios.
em geral, não se manifesta em
os não esco nda Em 2012, o PT concorreu com 1.779; o PMDB, com 2.258;
que a fidelidade aos valores democrátic
e o PSDB, com 1.621 postulantes; em 2016, o PMDB
desonrosos oportunismos.

A concordância dos derrotados integra de forma essencial o conceito de estabilidade


democrática. No passado, resultados em contextos locais foram várias vezes recusados pelos
perdedores e, naquele passado, substituídos por decisões bélicas

ado apresentou 2.320 candidatos, o PSDB, 1.720, e o PT, su-


Esse universo de rejeitados deveria ser estud
o os venc edore s. gado pelo processo de impedimento da presidente Dilma
com similar atenção à de que são objet
eleiçã o para Rousseff, ralos 981 competidores. Nenhum dos partidos,
Observando a longa lista de perdedores (na
tados, em 2006 , havia 9,7 candidatos em qualquer caso, e em nenhuma das eleições, a partir da
a Câmara dos Depu
ou seja, oito lutos por cada década de noventa, conseguiu eleger sequer metade de
para cada uma das 513 cadeiras,
cand idato vaga seus candidatos. Não imagino que exista uma razão siste-
celebração de sucesso; em 2014 a razão
eufor ia; e mática para o resultado; simplesmente ainda não ocorreu.
alcançou 16/1, com quinze frustrações por cada
os 16 (15,8) O desempenho modesto dos grandes partidos de-
em 2018, com 8142 candidatos, mantivemos
ment os para cada eleito), nuncia que a concorrência onde se apresentaram não
por vaga, com quinze desaponta
derro tados . Como foi desprezível, impressão equivocada que a métrica do
impressiona o equívoco da maioria dos
e núme ro número médio de candidatos poderia provocar. Do mesmo
explicar as desmoralizantes votações de grand
a alimentar modo que, em cada município, a competição pelo cargo
de derrotados? Qual o cálculo que os levou
ropos itada? A menos que situou-se bem acima dos 2,7 e 2,9 das médias calculadas,
expectativa tão obviamente desp
ro de pess oas com outra eleição majoritária, a de senadores, também alcança
exista nas sociedades expressivo núme
notado em patamares emocionantes. E a todas se associa a necessida-
extraordinária deficiência cognitiva – o que seria
tecimentos de democraticamente vital de reconhecimento da derrota
outros contextos, além do eleitoral -, que acon
a perce pção de indiví duos de por parte dos perdedores. A concordância dos derrotados
e processos comprometem
integra de forma essencial o conceito de estabilidade
perfeitamente normais?
dos
Descompassos entre celebrantes e entristeci democrática. No passado, resultados em contextos locais
ra com foram várias vezes recusados pelos perdedores e, naquele
também ocorrem em eleições majoritárias, embo
os. No Brasi l, cand idato sa passado, substituídos por decisões bélicas. Mesmo hoje, o
números não tão superlativ
expe rimen tam an- número de eleições locais contestadas indica a intensidade
prefeitos, governadores e senadores
A regra das disputas, em sua maior parte solucionadas, agora, por
siedades similares e desapontamentos parecidos.
ito por par- decisões da Justiça Eleitoral. Sem o consentimento dos
legal que obriga haver um só candidato a prefe
a supe riorid ade numé rica dos perdedores em eleições para governos estaduais e munici-
tido, ou coalizão, não evita
pais a natureza e custos dos conflitos seriam, sem dúvida,
profundamente modificados, com sequelas daninhas para

ESPECIAL ABRIL 2023 51


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

a respeitabilidade das instituições. A contestação dos desaparecimento parlamentar do PT em consequência da


resultados das eleições para a presidência da República, Ação Penal 470, imagina-se agora, em meio a 2018, um
em 2014, acrescentou o exemplo brasileiro à história do desastre fatal, não do PT algemado pela investigação Lava
inconformismo com a derrota. Jato, mas do PSDB, presuntivo acusador imaculado, com o
Finalmente, em regimes presidencialistas, com segun- gradativo envolvimento de seus líderes na teia da corrupção
do turno, a disputa pelo único lugar de poder ocorre com in- nacional. Mas são as eleições majoritárias as mais sensí-
tensidade máxima, concedendo poder letal a cada voto em veis a polêmicas de natureza constitucional. Nos Estados
competição que, no final, é obrigatoriamente bipartidária. Unidos, presidencialista, a expectativa protocolar de que o
Circunstâncias históricas levaram à repetição dos mesmos perdedor reconheça a vitória do adversário costuma ser o
dois partidos à disputa final pela presidência, PT e PSDB, momento consagrador da disputa democrática. No Brasil,
nas últimas seis eleições. Mas não são eles que a tornam a experiência contemporânea revela o potencial de instabi-
bipartidária, é o regime presidencialista com requisito de lidade pela recusa do perdedor a aceitar democraticamente
vitória por maioria absoluta exigindo, em geral, um segundo a derrota. (Nota de pé de página: A aparente trivialidade da
turno, necessariamente bipartidário. Outras as legendas, exigência disfarça a absoluta necessidade de uma declara-
ção explícita para a estabilidade de qualquer democracia,

Nas eleições de 2018 fez-se sentir a presença massacrante de novo


instrumento de persuasão de massas: as redes sociais com seus memes, mensagens,
WhatsApps, notícias falsas e comunicações instantâneas

e a exigência de maioria absoluta para a vitória produziria


outros tantos segundo turnos bipartidários. Precisamente, não obstante os inúmeros episódios de suspeita quanto
na oitava eleição, em 2018, depois de quase trinta anos, à confiabilidade dos resultados. Nos Estados Unidos, a
ocorreu nova disputa bipartidária em que os disputantes recente disputa entre David Trump e Hillary Clinton foi
não são o PT e o PSDB, mas o PT e o PSL. acompanhada de preocupantes declarações de ambos os
Embutida na anterior disputa rotineira entre os mesmos candidatos. Cf. David Runciman, How Democracy Ends,
dois partidos, algo que só acontece em relação à Presi- New York, Basic books, 2018).
dência da República, encontra-se fenômeno menos fugaz, Solucionar conflitos por via eleitoral exige permanente
talvez: o de que somente na eleição de 2014 a disputa não cuidado com a lisura das eleições, por certo, mas não só.
contou com representantes de São Paulo. Ainda quando, Há uma dimensão simbólica dos resultados numéricos que
por certidão de batismo, não era o caso – por exemplo, na repercute de modo às vezes patológico no equilíbrio emo-
competição dos anos 90 entre Fernando Henrique Cardoso cional das pessoas. Aos eventuais perdedores não se deve
e Luiz Inácio Lula da Silva – um carioca e outro pernambu- agregar a humilhação do deboche nem impor-lhes o juízo de
cano -, não existe dúvida de que a disputa se dava entre que são, por natureza, fracassados. Ou, conforme o grau de
dois “paulistas” climatizados. Durante a primeira década do inconformismo com a derrota, não convém menosprezar os
século XXI a competição se deu entre um paulista climati- ganhadores com a insinuação de que são desqualificados,
zado, Lula, e um puro sangue, primeiro José Serra, depois reação dos derrotados subsequente à eleição de Luiz Inácio
Geraldo Alckmin. Essa coincidência espelha outro aspecto Lula da Silva, em 2002. Na eleição de 2010, a propósito,
da competição eleitoral, a ser tratado posteriormente. Marina Silva interpretou seu insucesso eleitoral como ha-
A extraordinária repetição da disputa final entre PSDB e vendo “perdido, ganhando”. Em futebol, o refrigério dos
PT, em seis eleições, tem sustentado a tese da inviabilidade derrotados se abriga no juízo complacente de que foram
de uma terceira opção, a qual substituiria uma das siglas vencedores morais. Em política, trata-se de insinuação
aparentemente crônicas, tese desmentida pelas eleições sibilina para aviltar a vitória do adversário, denunciando-a
de 2018. Mas, do mesmo modo que se imaginava o prático como indigna de respeito, por suspeição de trapaça com

52 PRESENTE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

que foi obtida ou por alegada inferioridade de caráter dos de 1955, 41% se mostraram favoráveis à participação dos
vencedores. Em futebol, a presunção moral se esgota no militares na vida política quando, em 24 de agosto de 1954,
mundo da emoção pacificada. Mas, na política, representa há cinco meses, o presidente legalmente eleito Getúlio
grave ofensa ao protocolo da democracia. Vargas recorrera ao suicídio para evitar a humilhação de ser
Além de desmancha prazer, o eleitorado pode ser deposto. Entre o janeiro de 1953, de apoio à democracia, e
volúvel, até frívolo, tal qual a opinião pública de que é a o janeiro de 1955, de complacência com as intervenções
parte politicamente mais importante. O fenômeno pode militares, passaram-se não mais do que dois anos, com o
atingir figurações e tamanhos de enorme impacto, com terrível episódio de suicídio presidencial no intervalo.
sérios prejuízos em razão de efêmeras manifestações de Mais recentemente, durante a noitada de 31 de março/1
terceiros. Matéria-prima da opinião pública, cada um/uma de abril de 1964, rápida ação de rebeldia armada, com sede
de seus integrantes desconhece a maioria dos demais. em Minas Gerais, imobilizou o esquema de segurança
Ignora seus estilos de vida, manias, filmes preferidos, militar do presidente João Goulart, obrigando os demais
concepções sobre si próprio, e inclinações neuróticas. comandos militares a optarem pelo golpe ou pelo combate.
Não obstante, ao somatório de tamanha diversidade se Parte considerável optou explicitamente pelo golpe, a uma
designa pelo substantivo singular de opinião pública, ou surpreendente velocidade, enquanto outros se mantiveram
eleitorado, ou massa. É ao mesmo e único agregado que inermes diante da violência política. A resistência civil –
designamos diversamente e diversamente o estudamos. sindicatos, associações profissionais, grupos voluntários,
Inevitável, talvez, nem por isso ficam os estudiosos isentos etc. – não resistiu, rigorosamente, a nada. Oito dias depois,
de encargos clínicos: identificar com precisão o aspecto a 9 de abril de 1964, leu-se uma declaração dos militares
estudado sem negligenciar a complexidade material do, (o primeiro Ato Institucional) informando que “A revolução
digamos, paciente. vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este
Nas eleições de 2018 fez-se sentir a presença massa- se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta
crante de novo instrumento de persuasão de massas: as é a forma mais expressiva e radical do Poder Constituinte.
redes sociais com seus memes, mensagens, WhatsApps, Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se
notícias falsas e comunicações instantâneas. A internet legitima por si mesma”. Instalava-se a ditadura que consu-
substituiu a opinião pública pela massacrante difusão da miria os próximos vinte e um anos da vida política brasileira.
opinião privada, sem contraditório reconhecido e árbitro Sem embago, em maio de 1964, pouco mais de um
designado. (REFLEXÃO SOBRE OS ÚLTIMOS VOLUMES mês de exercício militar de cassação de mandatos e di-
SOBRE A INTERNET) reitos políticos, prisões sem conta de militares, políticos,
A frivolidade da opinião pública que, em geral, é bem líderes sindicais, jornalistas, escritores, além de invasões
maior do que a volatilidade do eleitorado (embora facetas e fechamento de instituições, enfim, depois de um mês
distintas do mesmo agregado) é ainda assim menor do que de ditadura, em maio de 1964, 56% dos brasileiros se
as ondas curtas do comportamento do mesmo agregado, declaravam a favor da suspensão de direitos políticos,
a opinião pública, mas esta enquanto massa acéfala. De assim distribuídos por classes econômicas: 68% dos
massas acéfalas é possível esperar extremos sacrifícios ricos e da classe média (classes A e B); 56% da classe C
por uma boa causa e é delas que surgem os espasmos de (pobres) e 46% da classe D (muito pobres) (Nota de pé
selvageria dos linchamentos e a disseminação de infâmias. de página: Todos os dados encontram-se no encarte de
Em consequência, tomar a aparência dos fenômenos so- pesquisas do IBOPE em Opinião Pública, ano II, vol. II,
ciais, ou por alguns de seus números de mais fácil acesso, n.1, dezembro 1994).
como indícios de estabilidade ontológica, sujeita a análise Em tese, a opinião pública deve ser democraticamente
à mesma síndrome de frivolidade. atendida, exceto no que a própria opinião pública, manifes-
Episódios da história contemporânea brasileira ilustram tada por seus representantes, deseja manter a salvo de
a relevância do fenômeno. Em janeiro de 1953, 20,4% de maiorias ocasionais. É disso que tratam as constituições
entrevistados em pesquisa de opinião pública, e este foi o e códigos aprovados por instituições representativas
maior contingente de respostas, definia o sistema democrá- legítimas. Mas o oceano da opinião pública é mais vasto
tico como cultor da igualdade entre todos os habitantes de e tumultuado do que os mares portugueses à época dos
uma comunidade. E em novembro do mesmo ano, 44,2% descobrimentos. Boatos, mas não apenas boatos; desin-
declaravam haver democracia no Brasil. Pois em 1954, no formação, mas não apenas desinformação; meias-verdades
ano seguinte, 78% da população considerava justa a proi- sobre fatos incompletos, mas não apenas estas; juízos
bição de voto aos analfabetos. Outro exemplo: em janeiro

ESPECIAL ABRIL 2023 53


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

população compreende e deseja alcançar como estado de


sobre caráter de pessoas públicas e privadas; nas arquiban- felicidade. Tudo isso, em uma democracia, depende, em
cadas de futebol, nas praias, nas reuniões de condomínio, primeiro lugar, de eleições e do acatamento universal das
nos jantares familiares, em tudo está presente a opinião preferências reveladas. Seria lamentável se os acadêmicos
pública, vestindo diferentes figurinos e obtendo variada se satisfizessem com registrar os resultados eleitorais
intensidade de adesão. A opinião pública é omnipresente e brasileiros em banco de dados internacionais, ainda que
sujeita a surtos. Para registro de referência, recomendo os tratados à altura técnica dos que já lá estão depositados.
trabalhos de Gabriel Tarde, em fins do século XIX e inícios Neste e nos capítulos assumo perspectiva mais
do XX, primeiras reflexões sofisticadas sobre o nascimento comprometida, tanto na linguagem numérica (não neces-
da “opinião pública”. (CONSIDERAR ORTEGA E LE BON). sariamente estatística) quanto valorativa, estimulado por
Nas pesquisas de intenção de voto não poderia ser di- desconforto com a moldura exacerbadamente tecnocrática
ferente; nelas se expressam momentos da opinião pública com que se investiga a hipótese de uma polaridade eleito-
em estado bruto, exposta a ela própria, ora dançarina, ora ral entre a região do Nordeste, atrasada e iletrada, e a do
estátua. E os resultados eleitorais são hieróglifos da opinião Sudeste, moderna e cognitivamente sofisticada. Conforme
esculpidos em tempo e lugar específicos. Representam e a tese, a polaridade teria nascido com a eleição de 2006.
ajudam a recriar um sistema de crenças sem certificado A hipótese tem sido adotada como convicção profética. A
de imortalidade, posto que transitórias, mas com capaci- preocupação com o sentido mais multifacetado das elei-
dade de provocar efeitos letais no presente estendido, o ções, do “por que” e de suas consequências, dissolveu-se
presente de quatro anos de um mandato presidencial, por na busca por um vanguardismo estatístico na descoberta
exemplo. A responsabilidade dos estudiosos do fenômeno do “como”, enquanto as conclusões mendigam por es-
eleitoral na fermentação de estereótipos ultrapassa, por- clarecimentos substantivos. Não obstante a atualização
tanto, a contabilidade dos votos. técnica nas análises quantitativas, a mensagem da literatura

Seria lamentável se os acadêmicos se satisfizessem com registrar


os resultados eleitorais brasileiros em banco de dados internacionais, ainda
que tratados à altura técnica dos que já lá estão depositados

Tão importante quanto traduzir resultados em lingua- acadêmica é redundante e consagradora do senso comum.
gem de causa e efeito estende-se laboriosa reflexão sobre Indiferente ao instrumental estatístico ou econômico
a transcendência das disputas, interessando a múltiplos utilizado, os resultados dos artigos e livros, em extraordi-
aspectos do futuro longínquo: problemas de integração nária maioria, alcançam a mesma conclusão: os eleitores
nacional, por via do mercado econômico e/ou projetos so- dos candidatos presidenciais do Partido dos Trabalhado-
ciais específicos; de integração social, pela redução drástica res concentram-se nas regiões atrasadas do país, com
dos gânglios comunitários, pequenos, médios ou gigantes- péssimos indicadores de escolaridade e renda e, por
cos, mas todos a caminho de devastadora incomensurabili- isso, recompensando em votos os patrocinadores de
dade entre os dialetos da ambição; irreconciliáveis sistemas programas de alívio à pobreza e miséria. Naturalmente, o
de crenças cívicas e pautas antagônicas; problemas de índice de desenvolvimento humano elaborado por Amar-
construção nacional, envolvendo os impactos da política tya Sen e colaboradores comparece generosamente nos
interna sobre as relações com o mundo, e reciprocamente; estudos mais recentes, garantindo aval internacional às
os desafios da chamada quarta revolução industrial (que, informações caseiras dos arquivos do Instituto Brasileiro
na realidade, consiste em total ruptura com esta), desafios de Geografia e Estatística. Há exceções à tese do nexo
de questões educacionais ainda não incluídas na tradicional causal entre programas sociais e retorno em votos ao PT,
rede curricular. mas a distribuição regionalmente qualitativa dos votos é
E para além deste censo não exaustivo, um perceptí- de aceitação unânime.
vel início do inevitável e inflamável debate sobre o que a Claro que, por incompleto o conjunto de artigos e livros
consultados, embora de referência infalível nas bibliogra-

54 PRESENTE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

a segurança de resultados contrários ao estabelecido,


fias correntes, registro a advertência de que tomo minha atribuindo-se agora à repetição dos mesmos resultados
avaliação com a cautela que a incompletude da consulta às o privilégio de enobrecer diferentes técnicas de análise.
fontes recomenda. Feita a ressalva, a meta destas seções Em outras palavras, por serem capazes de obter os re-
e capítulos é demonstrar, primeiro, a redundância subs- sultados repetidamente considerados como hipóteses
tantiva da hipótese de uma polarização eleitoral entre as substantivamente comprovadas, louva-se a nobreza da
regiões Norte e, principalmente Nordeste, e as regiões do novidade estatística. Finalmente, pretendo contestar que,
Sul e, em especial, do Sudeste, resultado comum a todos sem embargo do consenso acadêmico sobre a existência
os estudos examinados; e, segundo, que a redundância de uma polarização eleitoral entre Norte/Nordeste e Sul/
de resultados subverte cânones da investigação científica Sudeste, a tese é insustentável, resultado de análise
em que a introdução de técnicas mais avançadas garante robótica de percentuais impropriamente computados.41

NOTAS DE RODAPÉ

1. Tucídides, II.34-39. 18. Em Ésquilo, um mensageiro, Danaos, anuncia ao corifeu que a Assembleia
havia votado por unanimidade, com um levantar de mãos, a aprovação da lei
2. Hipérides, VI.27. do asilo, garantindo a integridade dos metecos perseguidos políticos e abolindo
a ameaça de que pudessem ser escravizados – As Suplicantes, 602-632 ; em
3. Contra Leocrates, 46-49. Eurípedes, é o próprio Teseu que, dispondo-se a ir liberar os mortos gregos
sequestrados por Tebas, deseja ter sua decisão ratificada pelo povo, pois,
4. Todos os textos dos sofistas, inclusive os de Gorgias, estão agora traduzidos conforme declara, havia criado um estado no qual todos são livres e têm os
e eruditamente organizados por Rosamond K. Sprague, em The Older Sophistas, mesmos direitos – As Suplicantes, 349-364.
Hackett Publishing Co., Indianápolis, 2001, a partir da referência Die Fragmente
der Vorsokratiker, editado por Diels-Kranz. 19. Cf. Walter Donlan, “Changes and shifts in the meaning of Demosin the
Literature of the archaic period” (1970), inThe Aristocratic Ideal and Selected
5. Ver Sealey, “The entryof Péricles intoHistory”, in Essays, ps. 70-71, para Papers, Bolchazy-Carducci Publishers Inc., Illinois, 1999. O principal fragmento
saborosa incursão em colunismo social histórico. antipopular está em Teogonis, 53-68.

6. Nota a ser elaborada com base em JohnMcK. CampII, “Before democracy: 20. Discursos de Demóstenes, introdução, p.3.
The Alkmaionidai and Peisistratidai”, in W.D.E. Coulson et alli, The Archaeology
of Athens and Attica under the Democracy, Oxford, Oxbow Monograph 37, 1994. 21. Cf. Carl Wilhelm Volgraff, L OraisonFúnebre de Gorgias (1952), Arno Press
reprint, New York, 1979.
7. P. J. Bicknell, “Studies in Athenian Politics and Genealogy”, separata de
Historia, Journal of Ancient History, n.19, Franz Steiner Verlag, Wiesbaden, 22. O breve comentário de Eugene Dupreel sobre a oração de Gorgias encontra-
1972, Prefácio. -se em LesSophistes (1948), Editions duGriffon, Neuchatel, 1980.

8. Para a aliança entre oshoplitas e a democracia, consultar Victor Hanson, 23. Lysias, 2.15.
“Hoplitas into democrats: the changing ideology of athenian infantry”, in Josiah
Ober and Charles Hedrick (eds.) Demokratia – A Conversation on Democracies, 24. Hipérides, VI, 7-11.
Ancient and Modern, Princeton, Princeton University Press, 1996;
para argumentos sobre a associação entre hoplitas e tiranias, ver A. Andrewes, 25. Hipérides, VI, 15-18.
The Greek Tyrants (1956), Londres, Hutchinson & Co, 1971, capítulo II.
26. Hipérides, VI, 42-43.
9. Cf. Colin Renfrew, “Ever in Process of Becoming”, em John A. Koumoulides
(ed.), The Good Idea: Democracy and Ancient Greece – Essays in celebration 27. Demóstenes, LX.32.
of the 2500th Anniversary of its birth in Athens, N.Y., Aristide D. Caratzas
Publisher, 1995. 28. Cf. Górgias, Oração Fúnebre, segundo a transcrição de Dionísio, o velho,
em Sprague, ob.cit., p.39, 5b.
10. Martin Ostwald, por exemplo, sustenta que “autonomia” foi um termo
inventado para designar um fenômeno novo, gerado por relações de subordina- 29. Hipérides, VI, 3-7.
ção entre cidade-estados. Cf. Martin Ostwald, Autonomia: its genesis and early
history, American Classical Studies 11, An American Philological Association 30. Menexeno, 238b.
Book, Scholars Press, 1982.
31. Ver Demóstenes, LX.19.
11. Cf. Fornara e Samons, no apêndice sobre isonomia, capítulo “Ephialtes”,
em Athens – from Cleisthenes to Pericles, Berkeley, University of California 32. Demóstenes, LX.23.
Press, 1991.
33. Lysias, II.47.
12. Cf. Heródoto, III.80.
34. Lysias, II.17-18.
13. Cf. Heródoto, V.37.2.
35. Cf. Demóstenes, LX.25.
14. Cf. J.A.O. Larsen, “Cleisthenes and the development of the theory of democ-
racy”, in Milton Konwitz e Arthur Murphy, Essays in Political Theory presented 36. Menexeno,VIII.238b.
to George Sabine, N.Y., Cornell University Press, 1948, p.6.
37. Menexeno, VIII.238b.
15. Larsen, “Cleisthenes”, cit., p.13.
38. Tucídides, Livro II.36.
16. Archilochous, 19.
39. Tucídides, Livro II.36.
17. Teogonis, 1181-82.
40. Tucídides, Livro II.41.

ESPECIAL ABRIL 2023 55


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O editor da revista Insight Inteligência,


Christian Lynch, conversa com
acadêmicos e especialistas sobre
temas candentes que fazem pensar
muito além do convencional.

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56
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Christian Lynch
CIENTISTA POLÍTICO

Gustavo Maia Gomes Isabel Lustosa Claudio Fernandez


ECONOMISTA HISTORIADORA E JORNALISTA
CIENTISTA POLÍTICA

José Szwako Antonio Dominguez Michele Prado


CIENTISTA SOCIAL ESPECIALISTA EM RELAÇÕES ESCRITORA
INTERNACIONAIS

ESPECIAL ABRIL 2023 57


V
58 REVELAÇÃO
V
EM BUSCA
DA

ER-
DADE
PER-
DIDA
Gustavo Maia Gomes
Economista

ESPECIAL ABRIL 2023 59


P
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ÓS-

60 REVELAÇÃO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

VER-
DADEPós-verdade – em inglês, post-truth –, escolhida como a palavra do ano de 2016
pelo Dicionário Oxford, é “um adjetivo relacionado a ou que denota circunstâncias
nas quais fatos objetivos são menos influentes em moldar a opinião pública do que
apelos à emoção e crenças pessoais”. Foi um título a que o neologismo fez jus. O
caminho da fama começou com a publicação, em 2004, do livro de Ralph Keyes
“Era da pós-verdade: Desonestidade e enganação na vida contemporânea”.1 Um
ano depois, a expressão chegava aos jornais brasileiros: “Não é raro a população
flagrar seus eleitos na mentira. [Quando isso acontece] alguns recorrem ao arre-
pendimento [como fez o então presidente dos Estados Unidos Bill Clinton], vão a
público e reconhecem o erro. [Em seguida] podem continuar como líderes políticos
respeitáveis. Não porque o povo tenha memória curta, mas porque hoje vivemos
na era da pós-verdade”.2
Vem o New York Times e dá sua opinião: “O sentimento é generalizado: entra-
mos em uma era da política da pós-verdade”.3 Mais elementos: em 2017, a Revista
UNO – publicação espanhola voltada para as empresas de comunicação – dedicou
um número ao tema “A Era da Pós-Verdade: Realidade versus percepção”. O que
é isso? pergunto. A Era da Pós-Verdade é como a Era das Grandes Descobertas?
Ou a Idade da Pedra Lascada? A jornalista Claudia Bia me socorre: “Pós-Verdade
é nada mais, nada menos, do que vemos todo dia nas redes sociais quando, por
exemplo, a veracidade ou não de uma notícia é menos importante do que se essa
notícia confirma nossas opiniões”.4 Se isso existe, e existe, trata-se de uma realidade
importante. Mas, inédita não é. Afinal, o que fazia Joseph Goebbels – o ministro da
Propaganda de Hitler – além de transformar mentiras em “verdades”, pela inces-
sante repetição? Ou Josef Stálin, com seus processos fraudulentos de condenação
política contra possíveis rivais?

ESPECIAL ABRIL 2023 61


V
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Com o não ineditismo, Fiona MacDonald, da BBC,


concorda: “Nós vivemos na era das fake news. Mas
elas não foram inventadas com o Twitter ou o You-
Tube – foram usadas [já] nos anos 1930, para fazer
[imagens de] pessoas reais desaparecerem”.5 Estava
se referindo à exposição de fotos soviéticas, em
muitos casos, retocadas a ponto de tornar invisíveis
os inimigos de Stálin que lá estavam nas versões
originais, realizada (a exposição) em Londres, em
2018. José Antonio Zarzalejos, no já citado número da
Revista UNO, amplia a ressalva, embora concedendo
um pouco à ideia do ineditismo histórico da “Era da
Pós-Verdade”: “Certamente, na política, a mentira ou
a meia-verdade sempre foram recursos manejados
com desenvoltura, mas agora [essa prática ganhou],
elementos sentimentais, emotivos, em suas falsas
mensagens, enriquecendo-as de uma força arrasa-
dora”.6 Álex Grijelmo, de El País, complementa: “A
era da pós-verdade é a era do engano e da mentira;
a novidade consiste na popularização das crenças
falsas e na facilidade para fazer com que os boatos
prosperem”.7
Diante de disso tudo, ocorreu-me uma reflexão:
se estamos vivendo numa Era da Pós-Verdade, na
qual as mentiras dominam tudo, tem de ter havido
um tempo em que a Política e a História eram regidas
pela verdade. Afinal, não pode haver pós-guerra sem
guerra anterior; ou pós-modernismo sem modernis-
mo. Fui a campo. Consultei jornais, revistas e livros
publicados desde o início do século XIX. Os resultados
foram desalentadores. Em resumo, a busca falhou:
a Era da Verdade nunca existiu. Mas descobri que
algumas mentiras de tempos passados, especialmen-
te engenhosas, tiveram (ou ainda têm) importantes
consequências políticas ou institucionais. Selecionei
sete delas para apresentar aqui: as aparições da
Virgem Maria, o monstro do Lago Ness, o Susto Ir-
landês, os Protocolos dos Sábios do Sião, o incêndio
do Reichstag, a Guerra dos Mundos e o Plano Cohen.

AS “APARIÇÕES” DA VIRGEM MARIA

62 REVELAÇÃO
V
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

AS “APARIÇÕES” DA

IRGEM
MARIA
A acreditar na Gaudium Press, existem mais de dois mil relatos de supostas aparições das
diversas Nossas Senhoras católicas (a primeira teria ocorrido no ano 40 d.C.), mas somente de-
zesseis foram reconhecidas pelo Vaticano. Infelizmente, dessas aparições chanceladas pela Igreja,
apenas sete estão relacionadas com algum detalhe nas fontes que consultei. São as seguintes:
(1) na Cidade do México (1531), a Virgem teria aparecido para um indígena; (2) em Siluva, Lituâ-
nia (1608-45), quatro crianças disseram ter visto a santa; (3) em Paris (1830), Catarina Labouré,
uma freira, testemunhou no mesmo sentido; (4) em La Salette, França (1846), foi a vez de dois
pastores passarem pela experiência transcendental; (5) em Lourdes, França (1858), Bernadette
Soubirous relatou visões semelhantes; (6) em Fátima, Portugal (1917), as crianças Lúcia, Jacinta e
Francisco teriam falado com a mãe de Jesus; (7) em Kibeho, Ruanda (1982-88), sete adolescentes
garantiram ter visto Maria.8
Chama a atenção o reduzido número de pessoas que estiveram presentes a esses alegados
eventos sobrenaturais. De cada vez, um indígena, quatro crianças, uma freira, dois pastores, sete
adolescentes... Essa parece ter sido a regra. Com efeito, numa relação compilada pela Wikipedia,
de 80 “aparições” da Nossa Senhora católica, em somente dois casos mais do que pouquíssimas
pessoas disseram ter tido participação direta nos acontecimentos. As exceções foram em Knock,
Irlanda (1879), onde “numerosas testemunhas” teriam visto Nossa Senhora, São José e São
João Evangelista de uma só vez; e em Assiute (Egito, 2000-01), em que “milhares de pessoas
aprovadas pela Igreja Ortodoxa Copta” declararam que a santa lhes havia aparecido. (Não entendi
bem essa coisa de as pessoas terem sido “aprovadas pela Igreja Ortodoxa Copta”. Seriam elas
como os eleitores na antiga União Soviética ou na atual Coreia do Norte?)9
De todo modo, esses dois foram eventos excepcionais. Na quase totalidade dos casos lis-
tados pela Wikipedia, a Virgem teria aparecido de cada vez para muito pouca gente: uma, duas,
até quatro pessoas, no máximo. Para São Tiago, apóstolo (40 d.C.); para o papa Libério e um
romano chamado João (352 d.C.); para Richeldis de Faverche (1061); para São Domingos de
Gusmão (1214); São Simão Stock (1251); Santa Catarina (1347); Joaneta Varoli, uma camponesa
(1432); Benedetto Pareto (1490); São Juan Diego, um indígena (1531); uma menina de 10 anos
(1579); uma menina pastorinha (c.1580); madre Mariana de Jesus Torres (1594); dois jovens po-
bres indianos e alguns marinheiros comerciantes portugueses (1600); quatro crianças (1608-12);

ESPECIAL ABRIL 2023 63


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

N
uma religiosa, a venerável Maria de Jesus de Ágreda (1650-
55); a pastora Benoîte Rencurel (1664-1718); João Alves,
20 anos, conhecido por João Mudo (1702); um grupo de
pescadores (1717); três meninas pastorinhas (1757); uma
pastorinha muda (1758); um grupo de católicos perseguidos
(1798); Santa Catarina Labouré, uma freira do Convento
das Irmãs da Caridade (1830); o padre Genettes (1836); a
irmã Justine Bisqueyburu (1840); dois pastores (1846); e

O MONSTRO
assim por diante.
A despeito de tão frágil base de apoio testemunhal,
esses eventos miraculosos, mesmo quando não reco-
nhecidos oficialmente pela Igreja Católica (ou por outra
DO

LAGO
igreja), passam por verdades incontestáveis para muita
gente. Pergunte ao Google pelas “aparições de Nossa
Senhora”. De cada 100 respostas obtidas, algo como
99 tratam esses supostos acontecimentos como fatos
indiscutíveis. É claro que se você perguntar por “falsas
aparições de Nossa Senhora”, muitas respostas também
virão. Mas o espírito geral é de complacência (em nosso
mundo ocidental; outros mundos têm outras ilusões). Isso O monstro do Lago Ness
beneficia a Igreja Católica, claro, e tem sido usado por ela Há as mentiras maldosas e as neutras. Talvez, até
para atingir objetivos políticos ou institucionais. existam as do bem. Uma dessas últimas seria Nessie, o
A crença nas “aparições de Nossa Senhora” – assim misterioso animal que ninguém jamais provou ter visto,
como nos dogmas religiosos, quaisquer que sejam – não mas que na sua improbabilidade continua mais vivo do
tem por base evidências empíricas, nem que fossem es- que nunca, a ponto de sustentar o movimento turístico
sas limitadas aos relatos simultâneos de muitas pessoas, das terras altas escocesas. “Relatos de um monstro habi-
talvez, coletivamente hipnotizadas. É apenas uma pós-ver- tando Loch [Lago] Ness remontam aos tempos antigos”,
dade que nos vem acompanhando há dois mil anos. Por que diz Amy Tikkanen, na Britannica: “O primeiro relato escrito
nunca ocorreu à Virgem, ou a quem controla sua agenda, aparece em uma biografia de São Columba, de 565 d.C.
descer em pleno Maracanã, numa tarde de domingo, du- De acordo com a obra, o monstro mordeu um nadador e
rante um jogo de futebol entre o Flamengo e o Corinthians, se preparava para atacar outro homem quando Columba
quando ela poderia ser vista por 60 mil pessoas no estádio interveio, ordenando que a fera voltasse às suas paragens”.
e mais 60 milhões nos aparelhos de TV? Aí, sim, teríamos (Santo é pra essas coisas mesmo. Mas, se ele prestasse
uma santa do primeiro time, autenticamente brasileira, mais atenção ao serviço, teria evitado a mordida inicial,
reconhecida em cartório. Até lá, continuaremos a conviver em vez de, depois do fato consumado, apenas mandar
apenas com fake news tão insistentemente repetidas que Nessie escolher outra vítima longe dali.) Desde então, as
chegam a substituir a realidade. Da mesma forma como histórias fantásticas não pararam de ser contadas, até que,
acontece com tudo o que é denotado pela palavra do ano em 1933, a lenda do monstro começou a crescer de forma
de 2016: pós-verdade. Palavra tão importante que dá nome rápida. Na época, uma estrada adjacente ao lago foi aberta,
a uma “Era”. Que Era? A que começou em 40 d.C.? oferecendo visão desobstruída do lugar onde se dizia que
o misterioso animal morava.
Um dia, por ali passaram dois namorados que garan-
tiram ter visto a criatura. O incidente foi noticiado em um
jornal escocês, e, a esse, vários outros relatos semelhantes
se seguiram. Ainda citando Amy Tikkanen, “em dezembro,
o Daily Mail contratou o caçador Marmaduke Wetherell
para localizar a serpente marinha”. O homem fez as bus-
cas e, ao longo das margens do lago, encontrou grandes
pegadas que acreditava pertencerem a “um animal de

64 REVELAÇÃO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

N ESS
patas macias, muito poderoso, com cerca de seis metros
de comprimento”. No entanto, “após uma inspeção mais
detalhada, os zoólogos do Museu de História Natural de-
terminaram que as pegadas eram idênticas e feitas com
um porta-guarda-chuva ou cinzeiro que tinha a perna de
um hipopótamo como base. O papel de Wetherell na farsa
não ficou claro”.10
Apesar desse fiasco, os esforços para iludir as pessoas
quanto à existência do monstro prosseguiram. “Em 1934, o
médico inglês Robert Kenneth Wilson fotografou a suposta
criatura. A imagem icônica – conhecida como Fotografia
do Cirurgião – parecia mostrar a pequena cabeça e o pes-
farsa liderada por um Wetherell [o mesmo do episódio
anterior] em busca de vingança”. O suposto monstro “era
na verdade uma cabeça de plástico e madeira presa a um
submarino de brinquedo”.
Em 2018, novos esforços para encontrar o mitológico
animal foram feitos. Seguiram-se novos fracassos. Nada
disso abala o prestígio da criatura. Apesar de jamais terem
sido encontradas provas de sua existência, o monstro
do Lago Ness continua sendo muito popular e lucrativo.
Estima-se que ele gere quase US$ 80 milhões anualmen-
te, em receitas do turismo, para a economia da Escócia.11
Oficialmente, o monstro continua lá: a convicção de que
coço do monstro”. O mesmo jornal Daily Mail publicou ele existe não é afetada pela absoluta falta de evidências
a fotografia, que teve grande repercussão internacional. factuais comprobatórias dessa crença. Nessie é mais uma
“Muitos especularam que a criatura era um plesiossauro, pós-verdade construída – e até hoje mantida – muito antes
um réptil marinho extinto há cerca de 65,5 milhões de de surgirem as redes sociais que conhecemos hoje.
anos”. Estavam enganados: em 1994, se demonstrou
que “a fotografia de Wilson tinha sido [o produto] de uma

ESPECIAL ABRIL 2023 65


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O SUSTO
IRLANDÊS
O Susto Irlandês
O chamado Susto Irlandês de 1688 foi um episódio da Revolução Gloriosa, o movimen-
to que acabou com o absolutismo na Inglaterra, dando lugar à monarquia constitucional.
A desconfiança de que o rei James, católico, já praticamente derrotado pelos seus inimi-
gos, iria tentar recuperar o poder com o apoio de soldados irlandeses, despertou o medo
entre a população. Os irlandeses contratados por James, também católicos, já haviam se
envolvido em episódios sangrentos na luta armada contra os ingleses, predominantemente,
protestantes. Nesse clima, nos últimos dias de novembro, uma declaração atribuída ao
Príncipe de Orange (marido de Mary, filha de James), mas que fora na verdade escrita por
um homem chamado Hugh Speke, difundiu a notícia falsa de que “soldados papistas”
estavam se dirigindo para Londres com a intenção de incendiar a cidade e trucidar seus
habitantes.12
Continua o mesmo autor citado: “Longe de ser um exemplo das paranoias pré-mo-
dernas, os sofisticados métodos usados para espalhar o rumor [que iria produzir o Susto
Irlandês] são mais parecidos com as campanhas de difamação contemporâneas”. De
fato, “Hugh Speke, que tomou para si o crédito de espalhar [e o fez com grande eficácia]
as notícias falsas pela Inglaterra e a Escócia, disse abertamente que para isso havia feito
uso de seu vasto conhecimento dos diversos meios de transporte da época, que levavam
cartas, pacotes e encomendas, e das respectivas horas em que eles chegavam e saíam
de Londres”.13
Outro personagem do mesmo episódio, Marshal Somberg, que também fez muito
para espalhar os boatos, gastou seis mil libras ao enviar pelo correio cartas anônimas
detalhando a ameaça. Assim urdido, o Susto Irlandês começou para valer na noite de
13 de dezembro, relata Khalid Elhassan. Fake news de preparativos para atrocidades
foram rapidamente seguidas por notícias igualmente inverídicas de atrocidades reais,
“à medida que se espalhavam os relatos também falsos de que os irlandeses estavam
incendiando cidades inglesas e massacrando os habitantes”. Os moradores de Londres
e dos condados vizinhos “correram para se armar e formar milícias, erguer fortificações e
patrulhar o campo para se proteger contra a chegada iminente de hordas imaginárias de
irlandeses sedentos de sangue”.14 Graves acontecimentos se seguiram a isso, embora
os irlandeses, dessa vez, não tenham aparecido.
A produção e a difusão em massa de notícias falsas com objetivos políticos (notícias
que, para todos os efeitos práticos, se transformam em “fatos”) são tidas como elementos
essenciais e inéditos da Era da Pós-Verdade, em que, dizem alguns, vivemos. Pode ser.
Mas, também pode não ser.

66 REVELAÇÃO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

S
PROTOCOLOS
DOS SÁBIOS DO

IÃO
Protocolos dos Sábios do Sião
Segundo Luiz Marques, em artigo escrito para a Fundação Perseu
Abramo, “o antissemitismo serviu de modelo ao que se tornou a pós-
-verdade. Os Protocolos dos Sábios do Sião foram a pedra de fundação
do futuro de horror, ao trazer à tona as pretensas atas do ancião-chefe
de uma reunião hebraica, publicadas pelo jornal russo Znamia (1903)”.15
Os documentos eram fraudes. Isso estava comprovado antes mesmo
de o regime nazista se instalar na Alemanha, o que não impediu que o
documento fosse usado para espalhar o ódio e instigar a violência contra
os judeus. Volto ao autor citado acima: “Os Protocolos correspondem à
realidade”, anotou Adolf Hitler em ”Mein Kampf“ (1925-26). “Encaixam-se
nos acontecimentos”, confirmou o notório antissemita Henry Ford. Assim,
se difundiu a inexistente conspirata do “cartel de banqueiros judeus”,
acusados de responsáveis pela depressão econômica entre guerras. O
Holocausto (Shoah) revelou até onde levam os preconceitos.16
No Brasil, os integralistas de Plínio Salgado (que teriam chegado ao
poder, nos anos 1930, se não tivessem tido como adversário Getúlio
Vargas, político mais raposa velha do que eles) tinham o livro fraudulento
como leitura de cabeceira. Um dos seus intelectuais de maior destaque,
Gustavo Barroso, difundia a crença de que os judeus, realmente, queriam
dominar o mundo, se já não o faziam, por meios financeiros. A influência
dessa pós-verdade chegou, entre nós, pelo menos, à última década do
século XX, como comprova esta notícia publicada no ano 2000: “Outro
campeão de vendas da editora é ‘Os protocolos dos sábios do Sião’, um
libelo antissemita que descreve uma suposta reunião de líderes judaicos
para dominar as nações. Para os historiadores, o livro não passa de um
texto forjado pela polícia secreta da Rússia czarista para justificar a per-
seguição aos judeus durante o Império”.17

ESPECIAL ABRIL 2023 67


M
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

INCÊNDIO DO
REICHSTAG
Incêndio do Reichstag
Na noite de 27 de fevereiro de 1933, o Reichstag, sede do Parlamento
alemão, pegou fogo. O plenário ficou completamente destruído pelas
chamas. Tendo sido nomeado chanceler há menos de um mês, Hitler
ainda não havia se estabelecido solidamente no comando. Seu grande
receio era uma insurreição liderada pelos arqui-inimigos do nazismo, os
comunistas. Imediatamente após a polícia ter chegado ao local do incên-
dio, segundo o site da rádio Deutsche Welle, “os principais suspeitos
começaram a ser ouvidos. Um deles, Marinus van der Lubbe, mantinha
ligações com os comunistas”. Ele confessou ter provocado o incêndio
– mas sozinho, em protesto contra a ascensão ao poder dos nazistas.
“Hitler não acreditava nessa versão. Ele reagiu de maneira histérica ao
relato de que uma única pessoa teria feito aquilo. E, teimosamente, in-
sistiu que uma conspiração comunista estava por trás de tudo”. Para os
nazistas, “o incêndio do Reichstag oferecia uma oportunidade única, o
que Hitler reconheceu de imediato. A população estava profundamente
insegura e as elites conservadoras – burocratas, políticos e militares –
temiam uma tomada de poder pelos comunistas. Ainda na mesma noite,
a polícia recebeu de (Hermann) Göring (então chefe da Polícia de Berlim)
a instrução de prender deputados comunistas e funcionários do partido.18
No dia seguinte ao do incêndio, “Von Hindenburg (1847-1934, ex-herói
da Guerra de 1914-18, mas àquela altura já muito idoso e apático), as-
sinou o Decreto do Presidente do Reich para a Proteção do Povo e do
Estado, que eliminava a liberdade de expressão, de opinião, de reunião
e de imprensa. O sigilo do correio também foi abolido. Além disso, o
governo em Berlim ganhava poderes para intervir nos estados, a fim de
garantir a paz e a ordem”. A partir de então, Hitler passou a dispor de
uma arma mortal para combater seus inimigos. Ele podia agora mandar
deter qualquer adversário, mesmo sem provas ou mandados judiciais.
Os jornais de oposição foram logo proibidos.19
Na História oficial do Terceiro Reich, o incêndio do Reichstag foi apre-
sentado como um golpe do Partido Comunista, mesmo sem que jamais
isso tivesse sido provado. Enquanto Hitler vencia avassaladoramente as
batalhas iniciais da guerra na Europa, todos os alemães acreditavam na
versão oficial do episódio criminoso, uma peça de propaganda importante
na consolidação do poder nazista dentro da Alemanha. Embora o termo
ainda não tivesse sido inventado, já era uma pós-verdade.

68 REVELAÇÃO
M
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

GUERRA DOS

UNDOS
Guerra dos Mundos
Em 30 de outubro de 1938, foi ao ar pela rede radiofônica CBS,
nos Estados Unidos, o programa “A Guerra dos Mundos”. O texto
narrado por Orson Welles (1915-85) era uma adaptação do livro
com o mesmo nome do escritor inglês H. G. Wells (1866-1946). Os
“mundos”, no caso, são dois planetas, e o enredo inclui a invasão
da Terra por marcianos. Acontece que a transmissão parece ter sido
feita com o propósito de deixar os ouvintes em dúvida quanto a se
tratar de um relato ficcional ou de notícias sobre fatos que estariam
acontecendo naquele momento, em locais próximos a Nova York,
onde, supostamente, os invasores haviam desembarcado.
Numa época em que histórias de alienígenas estavam em moda,
o episódio causou uma onda de pânico no país. “Alguns ouvintes
ouviram apenas uma parte da transmissão e, na tensão e ansiedade
de antes da Segunda Guerra Mundial, confundiram-na com uma
transmissão genuína de notícias. Milhares deles compartilharam
os relatórios falsos com outras pessoas ou ligaram para a CBS,
jornais ou para a polícia para perguntar se a transmissão era real.
Muitos jornais presumiram que o grande número de telefonemas
e os relatos dispersos de ouvintes correndo ou fugindo de suas
casas provavam a existência de um pânico em massa, mas esse
comportamento nunca foi generalizado.”20
De todo modo, durante alguns minutos, o falso passou por ver-
dadeiro, com consequências imprevistas. “Enquanto os ouvintes
em pânico ligavam para o estúdio, (um dos radialistas da CBS)
tentava acalmá-los no telefone e no ar, dizendo que o mundo
não estava acabando”. Nos dias que se seguiram à transmissão,
muitos órgãos de imprensa condenaram veementemente o que
havia acontecido. “O formato de boletim de notícias do programa
foi descrito como enganoso por alguns jornais e figuras públicas,
levando a protestos contra as emissoras.”21
Mesmo que a transmissão radiofônica de “A guerra dos mun-
dos” não possa ser caracterizada como um evento de pós-verdade
(pois nem Orson Welles nem ninguém estava disposto a sustentar
que os marcianos tinham, de fato, invadido a Terra), ele contém uma
lição antiga, mas inteiramente aplicável ao nosso mundo de hoje: a
difusão de notícias falsas pode trazer consequências verdadeiras.

ESPECIAL ABRIL 2023 69


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

C
PLANO

OHEN
Plano Cohen
O chamado Plano Cohen, divulgado no programa ra-
diofônico oficial “A Hora do Brasil” em 30 de setembro de
1937, descrevia a sequência de ações que deveriam ser
adotadas para a deflagração da revolução comunista no
Brasil. (Como se sabe, tinha havido uma tentativa nesse
sentido, com mortos e feridos, apenas dois anos antes.)
Ele foi escrito pelo capitão Olímpio Mourão Filho, chefe do
serviço secreto da Ação Integralista Brasileira, nossa versão
de partido fascista à italiana.
Era uma simulação, um “exercício” destinado a revigo-
rar a militância anticomunista dos camisas-verdes, mas foi
apresentado pelo governo como sendo autêntico e atribuído
ao Komintern, o órgão da União Soviética que controlava os
partidos comunistas em todo o mundo. Com base no Plano
Cohen – uma fake news, como diríamos hoje –, Getúlio
Vargas, cujo mandato presidencial expiraria no ano seguin-
te, “solicitou imediatamente ao Congresso autorização
para decretar o estado de guerra pelo prazo de 90 dias”. A
aprovação da medida – é a FGV-CPDOC quem diz – “abriu
caminho para o golpe do Estado Novo, desfechado em 10
de novembro de 1937”.22 Os brasileiros somente ficariam
sabendo que o Plano Cohen era uma fraude, e que toda a
parafernália reunida para o fazer parecer real não passava
de embuste, após a queda de Getúlio, em 1945.

70 REVELAÇÃO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

E ENTÃO?
E então?
Estes sete exemplos – as “aparições” da Virgem Maria, o monstro do Lago Ness,
o Susto Irlandês, os Protocolos dos Sábios do Sião, o Incêndio do Reichstag, a Guerra
dos Mundos e o Plano Cohen – servem para mostrar que mentiras se fazerem passar
por verdades (e renderem dividendos políticos, monetários ou institucionais para quem
as produz ou alimenta) não são ocorrências desconhecidas da História. Nunca houve, a
julgar pelas aparências esporádicas reunidas aqui (e por tantas outras que poderiam ser
agregadas), uma Era da Verdade. Mas, se a disseminação de notícias falsas ou de crenças
infundadas com propósitos políticos não constitui nada novo, o que sobra, então, do
conceito de pós-verdade? E da ideia de que estaríamos vivendo a Era da Pós-Verdade?
Vou examinar esse ponto tendo como referência o livro de Lee McIntyre, “Post-truth”,
2018, tal como resenhado por Carlos Alberto Ávila Araújo.23
McIntyre apontou cinco fatores que teriam conduzido à nossa suposta Era da
Pós-Verdade: (1) o negacionismo científico, “um fenômeno em que a autoridade da
ciência passou a ser questionada por pessoas comuns, em um processo motivado por
interesses econômicos de determinados grupos empresariais e corporativos”; (2) o viés
cognitivo, ou seja, a “tendência do ser humano a formar suas crenças e visões de mundo
sem se basear na razão e nas evidências, isto é, nos fatos, em um esforço para evitar
descontentamento psíquico”; (3) a queda de importância dos meios de comunicação
tradicionais “em detrimento do acompanhamento de notícias e informações por meio
das redes sociais”; (4) o auge das redes sociais que “se tornaram o ambiente privile-
giado a partir do qual as pessoas recebem notícias e informações do mundo. E [essas
redes] são construídas a partir de algoritmos que selecionam o que provavelmente as
pessoas querem [ler ou ver e ouvir] ou o que concorda com o ponto de vista delas”; e (5)
a relativização da verdade promovida pelo pós-modernismo, entre cujas “características
está (...) a denúncia de que qualquer declaração de verdade seria um ato autoritário (...),
[o que] acabou sendo uma crítica sequestrada por movimentos políticos para dizer que
tudo seria ideológico, e, portanto, não haveria ‘verdade’, apenas ‘fatos alternativos’”.24
Embora todos os cinco fatores listados acima tenham tido um papel no desen-
volvimento da cultura da pós-verdade, nada há de realmente novo com os itens de
número 1, 2 e 5. Tome-se o caso do “negacionismo científico”. Se a humanidade já
completou 5.500 anos de existência “letrada”, ela também tem 55 séculos durante os
quais as convicções da quase totalidade das pessoas foram formadas não com base
em evidências empíricas, ou na ponderação de provas e contraprovas, mas a partir de
superstições ou dogmas de fé. Negacionismo científico, no seu sentido mais amplo
(embora McIntyre se refira a uma história importante e particularizada, acontecida na
década de 1950), tem sido a regra desde o início dos tempos. Não pode explicar, sozi-
nho, um alegado fenômeno social, o da pós-verdade, que não completou sequer uma
década de existência. O mesmo pode ser dito do “viés cognitivo”: ele sempre esteve
por perto. Finalmente, a “relativização da verdade promovida pelo pós-modernismo”
é um desenvolvimento filosófico recente no que tange ao “pós-modernismo”, mas
antiquíssimo no que diz respeito à “relativização da verdade”.

ESPECIAL ABRIL 2023 71


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

De modo que ficamos com a “queda de importân- gastar um centavo. (Eu sei, Umberto Eco já tinha dito
cia dos meios de comunicação tradicionais” e com o isso.) Quanto mais idiota ele seja e mais propenso, por
“auge das redes sociais”. São esses dois fatores inter- isso mesmo, a acreditar em informações falsas ou em
-relacionados que fazem da pós-verdade um fenômeno opiniões estapafúrdias, maior a probabilidade de que tenha
específico do Século XXI. Um fenômeno que, com as suas sucesso na sua produção e replicação de inverdades, ou
características mais particulares, não poderia ter aconte- pós-verdades. Pior, muitos dos que receberem a Zezinho’s
cido antes. As mentiras e as crenças infundadas sempre News em seus telefones a repassarão para os amigos ou
moveram o mundo; sim, mas elas se difundiam a passo seguidores, criando um inferno informacional em questão
de cágado. Causavam, por isso, relativamente, poucos de minutos. Uma pessoa capaz de organizar isso – a pro-
danos. Marshal Somberg, vimos acima, gastou seis mil dução e distribuição de informações (preferencialmente,
libras esterlinas (em 1688!) para colocar no correio cartas falsas, pois a mentira é sempre mais mobilizadora do que a
anônimas detalhando a inventada ameaça irlandesa aos verdade) – será capaz de ganhar milhões de seguidores, de
habitantes de Londres, mas isso foi um feito excepcional. reais ou de votos. E de provocar estragos políticos. Nesse
Irrepetível, mesmo, dados os seus custos astronômicos, sentido, e somente nesse sentido, talvez possamos, afinal,
nas condições tecnológicas que vigoraram até a invenção falar em uma Era da Pós-Verdade.
da Internet e das redes sociais em sua versão eletrônica – É a velocidade, caro Watson, a velocidade e o custo
contemporânea. que fazem a diferença.
Hoje em dia, é diferente. Qualquer Zezinho dos Grudes
consegue o mesmo resultado em poucos cliques e sem gustavomaiagomes@gmail.com

NOTAS DE RODAPÉ

1. Ralph Keyes, The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary 13. Steven Pincus, idem.
Life, St. Martin’s Press, New York, 2004
14. Khalid Elhassan, 12 of History’s Most Baffling Mass Hysteria Outbreaks,
2. “Políticos são os menos confiáveis”. Correio Braziliense (DF), 17/7/2005, pág. 8. History Collection, November 28, 2017, em https://historycollection.com/12-
historys-baffling-mass-hysteria-outbreaks/6/ acesso em 30/11/2022.
3. New York Times, 24/8/2016.
15. Luiz Marques, A era da pós-verdade (29/11/2022), Fundação Perseu Abramo,
4. Claudia Bia, Pós-verdade. Porque 2016 ainda não acabou. Tribuna (SP), https://fpabramo.org.br/2022/11/29/a-era-da-pos-verdade/ acesso em 10/2/2023.
17/1/2017, pág. 15.
16. Luiz Marques, idem.
5. Fiona Macdonald, A manipulação de imagens pelos soviéticos, muito antes
da era das “fake news”, BBC Culture, 30/1/2018, em https://www.bbc.com/ 17. Tribuna da Imprensa (RJ), 7/4/2000, pág. 5.
portuguese/vert-cul-42810209 acesso em 10/2/2023.
18. Deutsche Welle, 1933: Incêndio no Reichstag era golpe na democracia
6. José Antonio Zarzalejos, Comunicação, jornalismo e ”fact-checking”. Revista alemã, em https://www.dw.com/pt-br/1933-inc%C3%AAndio-no-reichstag-
UNO, nº 27, 2017, pág. 12. era-um-duro-golpe-na-democracia-alem%C3%A3/a-16629973 acesso em
30/11/2022.
7. Álex Grijelmo, https://brasil.elpais.com/tag/posverdad/a A arte de
manipular multidões, El País (Brasil), 27/8/2017, em https://brasil.elpais.com/ 19. Deutsche Welle, idem.
brasil/2017/08/22/opinion/1503395946_889112.html
20. The War of the Worlds (1938 drama radiofônico), em Wikipedia.
8. Gaudium Press, De mais de duas mil aparições marianas registradas, só
16 foram reconhecidas pelo Vaticano, em https://pt.aleteia.org/2016/01/18/ 21. The War of the Worlds, idem.
de-mais-de-2-mil-aparicoes-marianas-registradas-so-16-foram-reconhecidas-pelo-
vaticano/ (18/1/2016, acesso em 1/12/2022); Aparições marianas, Wikipedia. 22. Paulo Brandi, Plano Cohen, em https://www18.fgv.br//cpdoc/acervo/
dicionarios/verbete-tematico/plano-cohen acesso em 1/12/2022. CPDOC é o
9. As frases entre aspas foram trazidas de “Aparições Marianas”, Wikipedia. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da
Fundação Getúlio Vargas.
10. Amy Tikkanen, Loch Ness monster (Legendary creature), in Britannica,
https://www.britannica.com/topic/Loch-Ness-monster-legendary-creature, 23. Lee McIntyre, Post-truth. MIT Press, London, 2018. Carlos Alberto Ávila
acesso em 30/11/2022. Araújo, O fenômeno da pós-verdade: Uma revisão da literatura sobre suas
causas, características e consequências. Alceu: Revista de Comunicação,
11. Amy Tikkanen, idem. Cultura e Política. Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, vol. 20,
nº 41, jul-set 2020, págs. 37 e ss.
12. Steven Pincus, 1688: The First Modern Revolution. Yale University Press,
New Haven, 2009, pp. 247-9. 24. Carlos Alberto Ávila Araújo, idem.

72 REVELAÇÃO
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ENTREVISTA

74 FALIBILIDADE
COM O

auditor
Inteligência: A imagem do auditor parece enclausurada em um profundo
dilema: o mito da infalibilidade. Esse dogma teria sido criado para justificar
uma credibilidade excepcional do fiador da contabilidade. Se dissesse o
contrário e confessasse alguma fragilidade, ele deixaria de ser o fiador
da contabilidade e se tornaria um blefe. Ou quase um blefe. O auditor
tem como função somente interpretar os números do balanço que são
facilmente visíveis?

Auditor: Os trabalhos de um auditor são regulados – há muitos anos – por


normas profissionais detalhadas, debatidas e aceitas pela sociedade civil
em todos os cantos do mundo, inclusive no Brasil. Eu acho que não existe
essa infalibilidade confessa do auditor, até porque nós temos vários casos
em que o auditor deixa claro a sua falibilidade ao fazer acordos em ações
judiciais ou administrativas. Então, eu acho que não existe esse conceito.
Todo ser humano é falível por princípio, inclusive o auditor. Mas, é claro,
ele é sujeito a fraudes de terceiros. Há tempos, eu já tinha uma opinião
sobre o que estava ocorrendo na Americanas. Na época era um palpite.
Puro feeling a partir de mera leitura de matérias somada à minha janela de
décadas de experiência. Parece – mas não há como se afirmar isso ainda
– uma fraude executiva. Mas estariam fraudando quem? Os acionistas,
a sociedade, fornecedores, agentes e, inclusive, os auditores. É preciso
entender que os auditores são fraudáveis quando as informações que lhes
são entregues estão manipuladas. Nós temos um caso na Índia, há uns
dez anos, em que o presidente da empresa junto com o CFO e o contador
fraudaram os auditores, apresentando documentos forjados. É claro que
não tem auditor que sobreviva a isso. Recentemente no Brasil nós tivemos
o caso do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), em que também um
conluio de executivos levou a uma maracutaia. Foi um escândalo no qual
quem quase pagou com um prego na imagem foi o auditor. No caso da
Americanas, não fosse a proeminência dos acionistas de referência e o
peso dos bancos credores, o primeiro culpado seria o auditor.

ESPECIAL ABRIL 2023 75


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

auditor Mas não me diga que não existe o auditor picareta.


Picareta tem em todas as profissões. Mas, com exceção raríssima, o auditor nunca
é o autor da fraude. Ele é, no máximo, testemunha. Ou, então, é o ser enganado, a
quem foram passados números e informações falsificadas. Ele trabalha com base
nas contas que lhe são disponibilizadas. Ele as interpreta e dá um parecer sobre a
correção da contabilidade. Então, tem que ter muito cuidado quando atacar o auditor.
Todos os profissionais de auditoria do mundo trabalham com normas de padrão
internacional, como já citei. No caso da Americanas, que é o escândalo mais recente
respingando no auditor, o principal procedimento é mandar uma carta para os bancos
confirmarem os saldos da companhia junto a eles. Então, espera-se que o banco
registre em carta o valor que aquela companhia deve junto à instituição financeira.
Se o banco responde em carta informando que a dívida é de tal montante ou mesmo
que não há dívida, o auditor está autorizado a dar crença àquela informação para
elaboração de suas conclusões. É tão simples como isso.

Então, o auditor nunca tem culpa? Ele é sempre vítima? Essa solução de que ele é um
observador sem responsabilidade pela qualidade do material que observa parece uma
fórmula para isentá-lo permanentemente.
O auditor vive, sim, um trade off entre a expectativa imagética da sua infalibilidade e
a realidade do risco do logro por parte das empresas. Agora, quando se erra mesmo,
por algum motivo técnico, e isso não é fraude, o auditor assume. Há vários casos
internacionais. Quando há uma fraude contra o auditor, é um engodo, não se con-
segue ver nada. Como vai ver, se os números e os documentos de garantia estão
manipulados? É por isso que tem uma carta que o auditor pede para os CEO e o
contador assinarem dizendo que tudo que declararam é a mais pura verdade. Eles
assinam. Tem que haver essa profissão de fé e eles serem corretos tecnicamente.
Essa é a principal garantia de que não há fraude. O auditor tem culpa quando age
em detrimento das normas profissionais a que já aludi, também.

Mas há casos de auditores condenados e até presos, além de expulsos da sociedade


em suas empresas. Como é que não tem auditor vigarista?
Não tenho conhecimento de casos assim no Brasil – de prisão. Conheci um caso
que foi o citado acima, na Índia. Como tem médico vigarista, é claro que podemos
ter auditor embusteiro. Parece uma declaração ingênua, porém é natural do ser
humano fazer isso. Mas a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) sabe quem são
os picaretas. O xerife do mercado examina os números e o parecer da auditoria e vê
quando não foi feito trabalho algum. Isso acontece, mas dificilmente entre as prin-
cipais firmas porque uma audita a outra. Há uma espécie de muralhas de qualidade
bem montadas para garantir a eficiência do trabalho. Mas quantos auditores têm o
Brasil? Sei lá, deve ter cerca de 1.000 auditores. Não há condições de exigir que um
auditor pequeno tenha a qualidade e profundidade que um auditor com estrutura
pesada de pesquisa e de asseguração de qualidade tem. Seria, no mínimo, naive.

76 FALIBILIDADE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ESPECIAL ABRIL 2023 77


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Mas as grandes auditorias cobrem 90% desse mercado. Se


há equívoco – ou mesmo a fraude – vai cair na conta delas.
Está certo dizer que o mercado é concentrado. Acho que país, por exemplo, houve um enorme problema de corrup-
seis ou sete auditorias cobrem até mais de 90% do mer- ção, e a auditora que era responsável pelo serviço devolveu
cado de companhias abertas. Agora, talvez o segmento a conta para a companhia. Por outro motivo, ou seja, pelo
precisasse fazer um trabalho de explicação mais ampla da comportamento inaceitável, uma auditora independente
responsabilidade diminuta do auditor nesses escândalos recusou-se a prosseguir com o trabalho junto à maior em-
contábeis. Há uma atração natural em considerá-lo cúmpli- preiteira do país. Esse procedimento, sim, eventualmente
ce da empresa quando ele é, na verdade, vítima. Imagine acontece. Ele é um atestado de independência.
uma das maiores auditoras internacionais líderes, que opera
no Brasil. Ela fatura algo na faixa de US$ 50 bilhões global- Há casos na mão inversa, com o cliente processando a
mente. Sua receita é lastreada em dois fatores: confiança auditora por ela ter identificado o que o contratante achava
e credibilidade. Esse é o produto que elas vendem. Então, que ela não deveria explicitar?
alguém acha que, por uma conta de R$ 500 mil, ela vai Há um banco de São Paulo que foi um caso similar. Uma
emporcalhar sua imagem? Não tem a menor chance. Não fraude do acionista contra todo mundo, inclusive contra
é crível isso. As grandes empresas de auditoria devolvem os próprios acionistas da família. O auditor também foi
clientes hoje em dia porque não querem ter exatamente processado, mas essa ação foi considerada uma técnica
esse risco. processual para livrar a barra do acionista.

Há denúncia de um caso em que a empresa fez um acordo Lá fora, no exterior, há vários casos de auditores que estão
com o auditor para que ele não revelasse informações presos.
fraudulentas do cliente.
Calma lá! Vários, não! Nos EUA não tem. Ocorreu na Índia,
Não existe essa hipótese. um caso espetacular, já citado aqui, em que os auditores
foram presos. O adendo fundamental é que deixaram os
"Não existe" é um pouco forte, não? auditores presos por um ano para descobrirem que a fraude
Não existe. Entre as firmas de auditoria que eu conheço, foi perpetrada pelo CEO e contador. Fraudaram o Conselho,
que eu estou acostumado a lidar, eu me arrisco a dizer, eu os acionistas e os auditores. Só bem depois soltaram os
dou os meus cinco dedos que isso não acontece. presos depauperados e com a imagem no chão. No Brasil,
acho que a lei não permite isso, porque ela é diferente em
termos da distribuição de responsabilidade. Só pode haver
E auditores que vendem pareceres?
acusação se tiver prova de dolo, má-fé ou negligência. Nos
Picaretas podem até fazer isso. Mas a CVM está de olho. outros lugares a legislação é mais dura.
Hoje nenhuma das companhias abertas contratam empre-
sas desse tipo, não conheço esses casos. Agora, abaixo
Em caso de fraudes contábeis como a da Americanas o
da superfície, nas corporações não sérias, não seria de se
auditor é chamado a depor?
estranhar que uma empresa contratasse uma auditoria –
como vocês intitulam, picareta – para fazer um trabalho Enquanto tem o inquérito, a CVM é quem chama. Se
superficial apenas para justificar o parecer, praticamente houver um processo judicial o auditor é chamado como
ou mesmo sem averiguações. Aí, de certa forma, é uma testemunha, no mínimo.
venda de parecer.
Em síntese, o auditor testemunha que houve uma fraude, por-
que senão ele teria identificado o embuste. Simples assim.
Você conhece casos em que o auditor abandonou cliente
É isso.
porque achava que ele não era idôneo?
Eu conheço um caso, na minha história de 40 anos como
E a CVM não revela essa lista negra?
auditor, um caso só. Agora há situações em que o auditor
se nega a emitir o parecer. Ou seja, cancela o contrato e Os processos da CVM são públicos normalmente. Ocorre
está aqui o seu dinheiro de volta. Tira somente as horas que que o processo às vezes demora a acontecer. Eles chamam
gastou e devolve a conta para o cliente. Na maior estatal do pessoas como testemunhas. O processo vai a julgamento
no colegiado. Esses ritos demoram. As vezes o crime é
contra a sociedade como um todo.

78 FALIBILIDADE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

entrevi
Por que o auditor não processa as empresas fraudulentas? São elas que estragam a
imagem dele.
Não fazem isso, mas seria cabível, sim. O auditor nunca processa cliente, nem por falta
de pagamento. Na minha opinião, é errado. Uma grande auditora tomou um trambique
de um relevante banco gaúcho de US$ 2 milhões, depois de ter cumprido todos os
trabalhos. Entregou o serviço pronto e não quis acionar.

Por que existe essa prática de não processar?


Eu acho que é a velha tradição do inglês – a profissão é de origem inglesa. Há uma
visão de que o padrão deve ser o de não processar a pessoa com quem tem relações
comerciais e poderá vir a ter de novo. Certos maneirismos naturais de uma sociedade,
de uma outra cultura.

Você acha que, com essa hiperdigitalização, a inteligência artificial e outras tecnologias
que vão demandar formas avançadas de auditoria e demonstrações contábeis próprias,
esse novo padrão vai atrapalhar a vida do auditor?
O auditor irá continuar trabalhando com pareceres de profissionais da área. Por exemplo:
se há um monte de nióbio no pátio de uma empresa, o auditor não é capaz de calcular
quanto de minério existe ali. Então, ele pede o cálculo de profissionais e utiliza essas
informações, registradas, para concluir seu parecer. O auditor se lastreia nas contri-
buições técnicas de outras profissões. Já acontece hoje e continuará acontecendo
mais, quando as demandas serão de ordem tecnológica.

Quais são os gatilhos contábeis mais comuns em que uma companhia burla o auditor?
Agora, com a Americanas, veio à tona essa operação de risco sacado, que era um termo
técnico sem maior repercussão até a explosão da fraude.
Risco sacado é uma operação normal, não tem problema nenhum. A questão sem-
pre é que você não consegue identificar uma informação que é falsa e atestada pelo
acionista ou pelo CEO. A rigor, não se consegue fraudar o auditor em um valor muito
significativo em uma operação dentro do balanço. Você consegue fazer é por fraude,
forjar documentos, forjar declarações e levar o auditor a uma determinada conclusão,
como foi o caso do Instituto de Resseguros do Brasil e como provavelmente foi o caso
da Americanas, essa última em grau muitíssimas vezes maior. Existem operações na
vida de uma empresa que fazem com que o auditor preste mais atenção. Por exemplo,
provisões do balanço são áreas de maior risco, porque são suscetíveis a manipulações.
Então o auditor atribui um risco maior e, portanto, fica mais atento naquele ponto, que
é um quesito no qual podem ser superestimadas receitas e subestimadas despesas.

Isso aparece em operações de stock options, não é?


Acontece, mas eu não diria que são valores muito grandes, capazes de mexer com
os resultados. E são provisionados, há definição de receitas etc. Na contabilização das
operações de leasing é que temos áreas mais sensíveis. O auditor sabe as áreas nas
quais atribui mais riscos. É sobre elas que vai se debruçar com maior atenção.

ESPECIAL ABRIL 2023 79


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

AUDIT O que ocorre quando um auditor não identifica uma fraude recorrente de uma em-
presa? Ele poderia ser punido com o castigo de não poder voltar a auditar aquela
companhia?
Existe isso na legislação brasileira. Inclusive a empresa fica suspensa de ser audi-
tora de companhia aberta ou até banida, com o registro cassado. Já aconteceram
muitos casos, fora do Brasil com o auditor sendo suspenso de operar por dois a três
anos. No Brasil, são duramente multados ou mesmo impedidos de auditar. Quem
regulamenta isso são a CVM, Susep e Banco Central.

Não seria o caso de haver alguma auditoria dos auditores, uma second opinion,
digamos assim?
Existe e chama-se peer review. No Brasil, essa prática existe há uns 25 anos ou
talvez mais. O procedimento é o seguinte: toda firma de auditoria é obrigada anu-
almente a ter suas operações auditadas por outra firma, por isso se chama peer. É
quando a auditoria A contrata a auditoria B para fazer auditoria de suas operações.
Aí a auditoria C contrata a auditoria A, por exemplo. E por aí vai. Isso é feito com

80 FALIBILIDADE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

houve um erro de R$ 10 milhões na conta tal, eu separo.


Se houve outro erro de R$ 15 milhões, eu adiciono ao mon-
uma seriedade louca. Até porque, imagine a disposição da tante. Caso, ao término do trabalho, os valores somados
auditora B indo vasculhar o trabalho da auditora A. Ela vai passem de R$ 50 milhões, eu levo em consideração todos
com uma disposição redobrada de achar algo negativo. O os equívocos apurados. Se não passar dos R$ 50 milhões,
auditor hoje é muito cercado. Por isso que o preço do seu está abaixo do limite de materialidade. Portanto, não tem
seguro aumentou mais de 100 vezes nos últimos 40 anos. problema nenhum. Está dentro da margem de erro. Isso
é regulado por normas específicas internacionais. Todos
Você já testemunhou ou soube de propostas indecentes por os auditores seguem exatamente a mesma regra. Quando
parte da empresa para o auditor? há problema, ou seja, erros contábeis, mesmo assim o au-
ditor apresenta-os à governança, mostrando onde houve o
Da empresa, não. Eu tive o caso de uma empresa que pediu
equívoco, mesmo que esteja abaixo da materialidade. Mas
proposta de auditoria e tinha grandes sacanagens ali. Era
aquilo é apresentado ao cliente, que deve corrigir.
uma companhia pública e propôs (no Rio de Janeiro) pagar
três vezes mais do que os honorários normais. A auditora
não aceitou, é claro. O risco de receber mais e participar As empresas estão ficando muito grandes. Estão tendo
de um conluio era simplesmente inaceitável eticamente. operações enormes no mercado financeiro e no mercado
de capitais, e cada caso que acontece da dimensão da Ame-
ricanas, por exemplo, isso tem um potencial de macular a
Existe por acaso uma black list de auditores corruptos, que
imagem do auditor, mesmo que ele esteja entrando, digamos,
os exporiam como devem ser expostos?
de gaiato. Esse risco de proliferação desses casos preocupa?
Não, porque uma lista dessas seria uma lista nazista. É
Preocupa, mas a gente olha retrospectivamente, os audi-
o macartismo dos auditores. Agora todo mundo sabe
tores que foram fraudados, por exemplo. É aquele negócio
no mercado de auditoria quem é quem, quem faz uma
todo: é dito que o auditor errou, ele foi acusado por anos. De
auditoria mais profunda e quem não faz. Enfim, existe; e
repente, descobre-se que ele foi fraudado. Então, a imagem
o pior não é isso, o pior é que essa expressão de “vender
do auditor estaria maculada. Mas não é bem assim. Para
parecer” não significa necessariamente que o profissional
você provar que maculou a imagem, é preciso também
não faz trabalho nenhum; significa que o profissional faz
provar que houve uma diminuição daquela firma. Se a firma
um trabalho limitado, que não dá para crer naquele trabalho
continuou crescendo, não maculou. Mas qual o resultado da
integralmente. Mas uma lista negra seria até ilegal no Brasil.
mácula? É perder substância como empresa. Teve o caso
da Satyam, na Índia. Foram dois anos de castigo recorrente
Essa questão do parecer limitado pode indicar que tem da sociedade em cima da auditoria, que foi proibida de
auditores que fazem vista grossa em relação a determina- trabalhar nesse período. Com o tempo foi se verificando
das verificações? E aí ele seria menos testemunha e mais que a culpa pela manipulação de dados não tinha sido da
cúmplice nesse caso? auditoria, mas, sim, da empresa contratante. O resultado
Se fizer isso é crime. Se esse auditor for identificado, no foi que a auditora foi reintroduzida no mercado da Índia e
caso de companhia aberta está banido. Não é nem caso de tornou-se a maior firma do setor naquele país. No caso da
suspensão. Se conseguir caracterizar o caso dessa forma, Americanas, é bem provável que, passado algum tempo,
ele está banido mesmo. a auditora que fez o serviço não só seja reconhecida como
sem qualquer culpa, como também vitimizada em função
Qual o limiar entre a vista grossa e o erro? da malversação de determinados agentes.
Veja, o auditor não consegue auditar 100% de uma empre-
sa. Pelas normas internacionais, existe um princípio cha- Tem caso em que o auditor denuncia a própria auditora da
mado de materialidade. E o que isso significa? Com base qual é sócio?
nos elementos patrimoniais da empresa, eu digo que meu Não conheço.
limite de materialidade é de R$ 50 milhões, por exemplo.
Então tudo que for abaixo desse valor, eu não vou deixar
de auditar, mas vou fazer um recorte. Deixar guardado,
em uma gaveta à parte, digamos assim. Se, por exemplo,

ESPECIAL ABRIL 2023 81


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

E quando uma auditora dedura o trabalho da outra?


Isso existe, sim, mas não se trata de denunciar. É uma norma do parecer da empresa
entrante. Ou seja, se eu começo a prestar serviços para uma empresa que era auditada
por outra firma, a primeira coisa que eu faço é examinar o trabalho feito pelos meus
antecessores. Se, na revisão feita nos papéis de trabalho dos auditores anteriores,
encontro uma conclusão no trabalho deles, sobre o ano anterior com a qual eu não
concordo e afeta a qualidade dos saldos iniciais, eu digo isso no meu parecer no que
toca os saldos iniciais. Isso acontece com alguma frequência. É técnico.

Isso é tornado público?


Sim. É publicado em parecer do auditor, que acompanha as demonstrações financeiras.

Isso gera algum tipo de animosidade entre os concorrentes?


Pode gerar alguma, sim. Mas existe muito profissionalismo e isso é o que perdura e
prevalece.

Ou seja, no final são jogadores do mesmo time.


É pragmatismo.

Vou te fazer uma pergunta conclusiva e provocativa. O termo auditoria independente não
é uma ficção? Independente de quem?
Independente do cliente. Isso não é ficção, não.

É independente, mas ao mesmo tempo paga pelo cliente.


É pago pela companhia, que assume as custas com legitimidade para isso. É que nem
a definição de Governo. Não existe uma separação grande entre Governo e Estado?
Eu sou pago pelo Governo, mas eu audito o Estado, entendeu? Então, existe uma se-
paração grande. Alguém tem de pagar. Quem vai pagar, então? No caso corporativo, é
a empresa. É sutil, mas há uma grande diferença nessa concepção.
AUDITO
Mas na corporação você consegue separar de forma tão clara conforme é o caso entre
Estado e Governo?
Consegue, facilmente.

Quais são os elementos que fazem separar?


A governança, nesse conceito específico, é algo que fica adstrito à diretoria executiva,
algo que a gente vê como “governo”. Nós não vamos ficar limitados a ela, nós somos
independentes desse espaço de decisão. Se precisar, os diretores vão falar com os
acionistas. Se a gente achar que tem um golpe dos elementos vinculados à governança
da diretoria executiva, nós vamos relatar o caso à sociedade. Esse disclosure pode ser
com cliente, com governante ou com outro auditor. Há coisa de duas dezenas ou mais
de anos, uma grande auditora ligou para o presidente do BC e para o presidente da
CVM para dizer que tinha uma fraude de mais de centenas de milhões em um banco
tradicional. Mesmo com todas as ponderações feitas pelas autoridades, a auditora
reportou todas as suas verificações. Não é um caso típico, mas é algo que acontece.

82 FALIBILIDADE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O auditor é que nem a democracia, a pior forma de governo, à exceção de todas as demais? Ou
seja: O auditor é a pior das atividades de controle das contas, à exceção de todas as demais?
Imaginemos o seguinte nessa linha do que você está argumentando, como a gente tira o auditor
da sociedade hoje? Como é que fica a credibilidade das demonstrações financeiras das empresas?

É verdade. É uma coisa que eu já ouvi anteriormente, já que eu tinha falado democracia; não há
uma democracia sem auditoria.
Não há. E tem mais, olha só que coisa louca: no Brasil são emitidos somente para companhias
abertas e instituições financeiras aproximadamente quatro mil relatórios de auditoria por ano.
Por baixo. Quantos erros são achados pela CVM, pelo Banco Central, ou pela Susep? Tendência
zero e alguma vírgula. Se tiver uma dezena de erros em um ano, e não necessariamente graves,
é muita coisa. É uma profissão crível, sujeita como todas as outras a eventuais cataclismas. Não
existe ninguém tão auditado quanto o auditor.

ESPECIAL ABRIL 2023 83


MAIS DE 20 MILHÕES
DE PESSOAS IDENTIFICADAS

INOVAÇÃO • TECNOLOGIA • BIOMETRIA • INCLUSÃO • CIDADANIA • PROTEÇÃO


SEGURANÇA • INTEGRIDADE • SOLUÇÕES • CONFIABILIDADE • RECONHECIMENTO

A Montreal está na
84 XXXXXXXX
identidade do brasileiro
RANHU-
RAS NO
IMPÉRIO
AMERI-
CANO
E O BRASIL SEGUE
CAMINHANDO

Marcos Azambuja
Diplomata

ESPECIAL ABRIL 2023 85


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

HEGEMONIA SOB AMEAÇA os quatro grandes sócios originais formadores do clube


Embora já tenha sido previsto não poucas vezes no pas- dos Brics, que, por sua população e extensão territorial,
sado, o declínio do império norte-americano me parece recursos naturais e por serem detentores de outras e
hoje inegável. Os Estados Unidos enfrentam de uns anos importantes dimensões de poder, são virtualmente incon-
para cá um desafio à sua hegemonia que foi em vários quistáveis. Mesmo sem os antigos territórios soviéticos,
momentos virtualmente exclusiva. Devem fazer agora a a Rússia é ainda duas vezes maior do que o Brasil, duas
transição de um mundo uni ou bipolar para a geometria vezes maior do que os 27 países da Europa, ocupando
mais complexa e exigente de um mundo multipolar. É da metade da América do Sul. São territórios que podem
natureza dos impérios nascerem, crescerem, se consolida- eventualmente ser derrotados, mas nunca plenamente
rem e enfrentarem seu ocaso. Ocaso este que, em relação conquistados, porque sua ocupação é quase impossível
aos Estados Unidos, não será súbito, mas provavelmente por ser tão onerosa em termos econômicos, logísticos e
muito lento e gradual. Os Estados Unidos não deixarão de militares. O que estou sugerindo é que, em política inter-
ser, até onde a vista enxerga, uma potência de primeira nacional e, sobretudo, na definição de poder, tamanho é
grandeza. Mas perderão a primazia virtualmente solitária documento. Dessa condição de que já são incontornáveis
que hoje detêm, como aconteceu no passado com o impé-
rio britânico. Não preciso ir mais longe no tempo, mas os
exemplos de processos de expansão, apogeu e ocaso de
DEU S
impérios são muitos e parecem ciclos quase inexoráveis,

A P O R
OLHID
apesar de acontecerem em velocidades e circunstâncias
históricas muito diversas.
O ES C
NA Ç Ã
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S UN I
TA D O titulares ou potenciais impérios os grandes países presen-

OS ES
tes na cena internacional não podem abrir mão. Não têm
como renunciar ao que intrinsecamente são.

FORMAÇÃO DO IMPÉRIO NORTE-AMERICANO


Os Estados Unidos nasceram com as 13 colônias na costa
atlântica no fim do século XVIII. Fizeram uma revolução
CICLO NATURAL bem mais importante e influente a longo prazo do que foi
Impérios não costumam nascer impérios, mas surgem em a francesa. Ela gerou uma ordem constitucional e uma
países na sua origem relativamente pequenos ou militar- normatividade que sobrevive há 200 anos, apesar das tur-
mente fracos que, no entanto, se transformam em sede e bulências e ameaças da recente administração de Donald
cabeça de poderosas entidades. A pequena Holanda criou Trump. É quase incrível que em duas ou três cidadezinhas,
um vasto império marítimo. Portugal, diminuto, construiu como era então Boston e Filadélfia, e mesmo Nova York, já
e defendeu o seu. Espanha e França por longos períodos existisse naquele momento de fundação, no fim do século
conservaram seus vastos impérios. O mais poderoso de XVIII, uma elite intelectual com homens e gênios como
todos, por extensão e por influência, nos tempos moder- foram Adams, Jefferson, Franklin, Madison e Hamilton. É
nos, foi o império britânico que, em determinado momento, quase um milagre, como aquele que aconteceu na tam-
controlava mais da metade do nosso planeta. Diferentes bém pequena Atenas, em um outro momento bem mais
deles, que projetavam sua autoridade e ambições através remoto da história. A construção política que ergueram os
do poder naval e administrações coloniais funcionando “founding fathers” foi de tal brilho, de tal qualidade, que
muito além de suas fronteiras, estão hoje países como a sobrevive vigorosa até hoje. Os Estados Unidos foram
Rússia, a China, a Índia e o Brasil. Escolhi arbitrariamente construídos ideologicamente a partir da ideia da sua ex-

86 CONTA-GOTAS
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

cepcionalidade, como nação escolhida por Deus, dotada também submeteu os então imensos territórios indígenas,
de um destino manifesto. Como os judeus, aliás. Mas os cuja lembrança permanece nos nomes de estados como o
norte-americanos carregam muito mais vantagens. Golda Wyoming, Indiana, entre tantos outros lugares. O que se fez
Meir dizia que Deus escolheu o povo judeu, mas lhe deu com os índios nos Estados Unidos é uma história de horror.
o pior lote do Oriente Médio, porque era o único que não Os norte-americanos mataram todos os búfalos porque
havia petróleo. Não é definitivamente o caso dos norte- sem búfalos haveria muito poucos índios, que viviam de
-americanos. Através da retórica imperial da porta aberta se alimentar da sua carne. Enquanto os Estados Unidos,
a todos, do slogan de que os Estados Unidos são “a terra ao mesmo tempo, são o lugar da promessa, da abundância
de oportunidades”, os norte-americanos acenam com a e da esperança, são também o lugar de uma ferocidade
esperança de uma vida melhor e mais livre, mensagem de implacável contra tudo que estiver em seu caminho. Essa
um vigor extraordinário. Atraíram e ainda atraem a melhor dualidade acompanha quase sempre o comportamento
imigração e os grandes talentos, sobretudo europeus e das superpotências: a coexistência do poder absoluto e ao
asiáticos. Um de seus símbolos mais importantes foi a mesmo tempo imensamente criativo; poder imensamente
Estátua da Liberdade. Não é só como o nosso Cristo apenas generoso, mas também miseravelmente cruel.
benévolo e acolhedor. É uma estátua que diz em sua base
- “Venham do mundo para aqui as massas esfaimadas, os A ESCALADA AO POSTO DE POTÊNCIA
seus pobres, os seus abandonados”. Ao longo do século
O século XX foi, sem dúvida, o século norte-americano. Foi
XIX, os Estados Unidos crescem quase que organicamen-
um século curto que, para os historiadores, começa com
te, expandindo-se por meio de conquistas e aquisições.
a Primeira Grande Guerra, em 1914, quando os Estados
Alcançaram, assim, a dimensão continental e bioceânica
Unidos entraram no conflito ao lado da Grã-Bretanha e da
que hoje têm. Possuem como império a melhor geografia
França, e, juntos, derrotaram a Alemanha, em 1918. A
possível. Sua configuração geográfica lhes permite ser
Alemanha era um império frustrado. Quando os alemães
grande potência no Atlântico e no Pacífico, com notável
afinal se tornaram um único Estado, a partir da união da-
projeção sobre o Golfo do México e sobre o Ártico. Os
quela miríade de principados, grão-ducados e reinos, em
norte-americanos não têm nenhum rival próximo. Embora
1871, tiveram a sensação de ter chegado ao jantar dos
o Canadá possua também um imenso território, conta
impérios quando já se estava servindo a sobremesa. Já
com uma população irrisória de trinta e poucos milhões de
estavam estabelecidos na Ásia, na África e no Caribe o
pessoas. Também o México nunca foi uma ameaça – muito
império britânico, o francês, e até o holandês e o portu-
pelo contrário, foi a grande vítima da expansão imperial do
guês. Os alemães tiveram de se contentar com Namíbia,
seu vizinho. Enquanto a China construiu no passado uma
Togo e Tanzânia. A Alemanha se sentia roubada do seu
grande muralha para se proteger dos ataques de povos
destino – logo ela, que se percebia como a nação mais ta-
mais agressivos do que ela, os Estados Unidos pensaram
lentosa e mais criativa. A Primeira Grande Guerra foi na sua
em construir o seu por um outro tipo de temor; para não
essência um conflito continental europeu que a ninguém
serem invadidos pela pobreza do México e por países ainda
interessava e que começou pelos automatismos previstos
mais pobres do Caribe e da América Central. É verdade
em acordos de assistência recíproca. Esses pactos obri-
que por vezes os Estados Unidos são seduzidos por uma
gavam os aliados a mobilizar forças em prazos mínimos e
visão isolacionista, que no fundo é ingênua porque o poder
pôr em marcha, também de forma breve, as engrenagens
em escala global só se sustenta se o país se engaja e influi
de um sistema de acordos de reação automática e que
em múltiplos teatros.
continham incontornáveis gatilhos temporais. Fazia, então,
pouco sentido, e hoje nenhum sentido, que um arquiduque
UM VITORIOSO E VÁRIOS DERROTADOS austríaco assassinado em Sarajevo pudesse detonar uma
Os grandes derrotados da expansão imperial americana catástrofe como aquela. A declaração de guerra da Áustria
foram o império espanhol e seus herdeiros, com as perdas à Sérvia obrigou a entrada no jogo da Rússia; a entrada
sucessivas dos territórios mexicanos, caribenhos e, por da Rússia obrigou a entrada da Alemanha; a entrada da
fim, das Filipinas e de Cuba – estas sendo a última grande Alemanha obrigou a entrada da França e da Inglaterra. Em
humilhação sofrida por uma Espanha declinante. Daí os uma semana estavam todos mobilizados em uma guerra
nomes de quase metade de seu território: Novo México, que na frente ocidental ficou quase estática durante três
Arizona, Flórida, Nevada e Califórnia, que atestam a exten- anos, até a chegada decisiva dos norte-americanos em
são e a origem dessas conquistas. O poder em Washington auxílio de franceses e britânicos. O general Pershing, ao

ESPECIAL ABRIL 2023 87


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

desembarcar com o contingente norte-americano, proferiu


uma frase extraordinária: “Lafayette, estamos aqui”. Isto
porque a independência norte-americana, lá atrás, tinha sido
feita decisivamente pela França, então aliada dos colonos
britânicos rebelados da América, impedindo o envio dos
reforços metropolitanos britânicos. O equilíbrio de forças
se desfez, a Alemanha colapsou e a guerra terminou. Se
os Estados Unidos tivessem se mantido neutros, a Alema-
nha teria resistido por muito mais tempo, porque a Rússia
já estava derrotada na frente oriental e provavelmente o
resultado teria sido um armistício bem mais favorável à
Alemanha. Ou talvez mesmo uma vitória germânica.

DA GUERRA, SURGE UM IMPÉRIO


Com Woodrow Wilson na Conferência de Versailles, os
Estados Unidos despontaram como a nova grande potência
mundial. Ao longo da década de 1920, os norte-americanos
vivem um momento de abundância – talvez o ciclo mais
veloz e extraordinário de enriquecimento que a história já
tenha assistido: é o petróleo, os transportes, a mecanização
dos bens de consumo, é a agricultura se transformando
em ciência, a capacidade comercial expandida em direção
a todos os mares e oceanos; a comunicação de massa
veiculada pelo cinema e pelo rádio. A crise de 1929 é
um baque, sem dúvida. Logo chegará outro grande ator
político, Franklin Roosevelt, que com o New Deal trouxe
a ideia de que era possível e necessária uma segunda re-
volução americana, para repactuar os termos do contrato
social existente. Os Estados Unidos recuperaram, assim,
pouco a pouco, o terreno perdido. Na década de 1930, a
Rússia de Stalin estava também se recolocando de pé com
a eletrificação e a industrialização planificada. Inglaterra
e França geriam seu relativo declínio, confrontados com
uma nova onda de aspirações nacionalistas na periferia
colonial. Quanto à Alemanha, a sensação de iniquidade
com os termos do tratado de Versalhes, que pusera fim à
Primeira Guerra, tornou possível a ascensão do nazismo,
como uma forma de revanchismo feroz da extrema-direita.
Mas o que terminou de consolidar a marcha imperial norte-
-americana foi a Segunda Guerra Mundial. Mais uma vez,
os norte-americanos foram a única potência a atravessar
o conflito praticamente intactos. Em 1945, a Alemanha
está arruinada; a Rússia, exausta; a Itália, desmoralizada;
a Inglaterra, embora vitoriosa, empobrecida e sob severo
racionamento. Os Estados Unidos são, então, senhores
absolutos do mundo, especialmente até 1949, quando a
Rússia soviética detona sua primeira bomba atômica. A era
nuclear mudou a lógica da guerra antes travadas com armas
convencionais. A guerra sempre se apoiou na ideia de que

88 CONTA-GOTAS
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

a vitória no conflito era rentável e vantajosa apesar das os norte-americanos perderam a visão imperial estratégica
perdas humanas e materiais. As armas nucleares, porém, e, com ela, a oportunidade de redesenhar o mundo. A
elevaram os custos e perdas humanas do conflito direto a partir desse momento, os Estados Unidos se embrulha-
níveis insuportáveis para todos os que a possuíssem. Ao ram em uma série de guerras onerosas e inconclusivas
mesmo tempo, se tornaram a única garantia de que seus no Afeganistão, Síria, Líbia, Iraque. São conflitos que os
detentores não seriam mais agredidos dali por diante. norte-americanos não perderam, mas também certamente
Esse impasse explica por que a Guerra Fria foi travada por não ganharam. Enquanto os Estados Unidos se atolaram
décadas de forma indireta entre as duas superpotências, nessas guerras, aconteceu um fato tão extraordinário
assumindo sobretudo a forma de guerras convencionais quanto havia sido a emergência dos Estados Unidos no
na periferia dos dois impérios da época. Foi nessa época século 19: o ressurgimento da Ásia na cena geopolítica. A
que George Kennan desenvolveu a doutrina da contenção, China dá uma demonstração extraordinária de capacidade
preconizando que a única maneira de enfrentar a União depois de mais de um século de caos e humilhação, de
Soviética era brecando seu expansionismo pelas beiradas.
Nessa corrida, durante a qual os impérios britânico e francês
terminaram de se desmanchar, russos e norte-americanos
se organizaram militarmente pela OTAN e pelo Pacto de
P L E XO
COM
Varsóvia, neutralizando ao mesmo tempo seus antigos
adversários, a maior parte dos quais obrigados a ingressar
A I S
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I C A N O TIPOLA
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N O R TE IREÇÃO
M P É RIO AS EM D
LTA DO I NDÊNCI
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M U NDO EVIDEN quase colonização explícita, guerra civil, ocupação japonesa,
O E COM revolução comunista e depois cultural. É, sobretudo, Deng
Xiaoping que traz a China de volta à condição de grande
potência. É verdade que os Estados Unidos continuam a
se valer de sua melhor geografia. A China está encostada
na Rússia e na Índia, o que certamente não é uma vizi-
nhança confortável, enquanto os Estados Unidos não se
numa ou noutra. Até hoje os principais derrotados da última
preocupam nem com o Canadá nem com o México. Mas
guerra, Alemanha e Japão, não possuem armas nucleares,
não é só a China. É a Índia, que volta também a ser uma
nem dispõem de assento no Conselho de Segurança das
grande potência. É a Indonésia, que cresce de influência.
Nações Unidas. Além da Europa, o império norte-americano
É a Turquia, que volta a ser um país de certo peso. É o Irã,
controla a chamada White Commonwealth, que reúne os
com uma presença cada vez mais incontornável. É a Rússia,
principais países brancos de língua inglesa, como são a
que retorna ao jogo. É como se certos atores mudassem a
Austrália, a Nova Zelândia e o Canadá, além de possuírem
roupa, fizessem uma plástica e voltassem a dançar como
bastiões avançados no Oriente Médio, como Israel, e na
no passado. Também a Coreia do Norte lança mísseis
Ásia, como o Japão, Taiwan e a Coreia do Sul.
de longo alcance e de certa complexidade. O mundo em
volta do império norte-americano ficou mais complexo e
O IMPÉRIO COMEÇA A DESCER A LADEIRA com evidentes tendências em direção à multipolaridade. A
O século norte-americano chega ao fim no seu apogeu, decadência do império norte-americano advém de desafios
por volta de 1990, quando caem o muro de Berlim e o externos e internos. Internamente, os Estados Unidos
império russo-soviético. Os Estados Unidos deixam de ser sofrem um processo de decadência de suas instituições,
um império entre impérios, para se tornar o único império que foram feitas apenas para acomodar essencialmente
em pé. Foi justamente quando não tinham mais rivais que grupos brancos de origem europeia. Tocqueville já dizia

ESPECIAL ABRIL 2023 89


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

no começo do século XIX que o contrato social norte- ligando para corações e mentes dos outros países. Só quer
-americano excluía dois grupos: os indígenas e os negros, produzir mais, mais barato e com mais eficiência. Então, os
estes escravizados. Também os mestiços ou hispânicos Estados Unidos estão entrando em rota de colisão com os
eram vistos como subalternos ou com muita ambivalên- chineses. Ontem, foram drones derrubados; hoje, é esse
cia. A ascensão e revalorização desses segmentos nas negócio de que o TikTok tem que ser proibido; amanhã,
últimas décadas levaram os norte-americanos a uma crise será Taiwan. Pouco a pouco os riscos vão se multiplican-
de identidade que paralisou seu sistema político. Alguns do, em algum momento esse caldo pode entornar. Mas
querem sacrificar a democracia para manter a identidade a China não quer hoje uma briga com os Estados Unidos,
primitiva; outros querem preservar a democracia e forjar porque sabe que perde, tendo em vista a disparidade de
outra identidade. Trump é uma figura inédita na história poder militar e tecnológico. Os Estados Unidos não são
norte-americana: não existe nada que preceda a ele como só um império; são sucessores de impérios que reúnem
desafio a uma normatividade que vem desde Washington.
O poder imperial norte-americano, embora militarmente
intacto, está declinante, principalmente, porque sua so-
ciedade encontra-se muito dividida. O país perdeu a sua
coesão e o sentido de missão, ou seja, a crença de ser uma
nação natural e irresistivelmente predestinada à grandeza.
U ES UA
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D E C LIN IVIDIDA
O E S TÁ UITO D
E R I CAN RA-SE M
R T E -AM ENCONT
D E R NO DADE
O PO SOCIE fragmentos do império britânico e francês. A União Euro-
peia é uma dependência do poder militar norte-americano,
assim como o Japão. A falta de visão estratégica norte-
-americana, própria de períodos de declínio, segue com
a sua pretendida expansão para o leste da Europa, atrás
O PODER DESLIZA PARA A ÁSIA de tradicional influência russa. Quando os Estados Unidos
Enquanto isso, o eixo da dominação imperial parece então eram ainda aquela tripa de 13 ex-colônias britânicas na bor-
migrar do Atlântico Norte para a Ásia. Enquanto a China fez da do Atlântico, em 1820, já tiveram a audácia de declarar às
progressos extraordinários, assim como a Índia reafirma potências europeias, então muito mais poderosas, que não
com brilho seu passado, a Europa é na verdade vassala dos admitiriam sua intromissão nos assuntos do Novo Mundo.
Estados Unidos. É real a crença de que o mundo tem um Foi a doutrina de Monroe. Quando a Rússia soviética tentou
novos eixos para além do G7 criado em torno dos Estados colocar mísseis em Cuba, os Estados Unidos ameaçaram
Unidos, que são os Brics – Brasil, Rússia, Índia, China, África o império, então concorrente, com uma guerra atômica.
do Sul. Há também o G20, que reúne de fato o diretório do Como puderam os norte-americanos imaginar, portanto,
poder mundial. Os Brics trazem consigo a ideia da multipo- que a Rússia admitiria o avanço indefinido da OTAN na
laridade. Para os Estados Unidos, o desafio chinês parece direção de suas fronteiras, inclusive em um país historica-
ainda maior do que o soviético. A União Soviética nunca mente vinculado à identidade russa como a Ucrânia? Agora
foi um grande adversário comercial, tecnológico; nunca a Rússia diz: ou vocês saem, ou nós vamos para guerra.
produziu nada bem e barato; os soviéticos eram maus Essa guerra está anunciada desde a rejeição do acordo de
negociantes, e mesmo algo incompetentes militarmente. Minsk. Nenhum império admite ser desafiado em sua área
A Rússia era um imenso mastodonte com uma ideologia, de influência. Nem o Brasil aceitaria nas suas fronteiras
lutando pelos corações e mentes dos homens, acenando presenças estrangeiras hostis, se outro império quisesse
com a superação da ordem capitalista. A China está pouco meter tropas no Paraguai ou na Bolívia.

90 CONTA-GOTAS
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O IMPÉRIO BRASILEIRO
A América do Sul foi sempre um remanso estratégico, do
ponto de vista geopolítico. Isto aqui não importa muito no
jogo mundial do poder, não tem maior interesse, daqui não
se controla nada vital para os grandes impérios. A América
do Sul pareceria uma grande lança apontando em direção
à Antártica, e ninguém quer nada com a Antártica. Nós
não somos estrategicamente importantes. Essa relativa
irrelevância foi para nós, brasileiros, um fator benigno,
que nos deu o tempo e a pausa necessários para que o
país se desenvolvesse e pudesse chegar intacto até aqui.
Porque, conforme já disse algumas vezes, o Brasil também
é um império à sua maneira. Ao contrário de outros, como
a própria Rússia e a China, ou vizinhos do nosso subcon-
tinente, como a Argentina e o México, o Brasil nunca foi
derrotado. Também tem historicamente suas ambições,
de alguma maneira imperiais ainda que inconscientes e
essencialmente benignas. O Brasil tem os ingredientes da
dimensão imperial, a começar pelo tamanho. Sua história
é toda atravessada pelo cuidado em não perder a unidade
territorial herdada da colonização. Toda forma de separatis-
mo sempre foi duramente reprimida. E o que nos sobrou de
território é uma imensidão. O Brasil é incomensurável. Tal-
vez por isso tenha feito até hoje apenas uma única renúncia
à sua aspiração imperial: a da posse de armas nucleares. É
algo de que participei ativamente e que até hoje me dói. Não
porque eu quisesse ter armas nucleares, mas porque foi
uma renúncia, e o Brasil não gosta de renúncias, e, sim, de
ter todas as opções abertas pela frente. Mas, nesse caso,
o interesse regional, o interesse nacional, nossos compro-
missos com os vizinhos e com a causa da paz indicavam
que podíamos colaborar sem ter armas atômicas. O Brasil
não precisa delas para se defender, justamente porque é in-
conquistável por outros fatores e circunstâncias. Há pouco
fui de avião à Colômbia. Passei a viagem quase que com o
nariz enfiado na janela, olhando o Brasil lá embaixo durante
quatro horas. Depois de atravessarmos a fronteira, porém,
em menos de meia hora, já estávamos em Bogotá. E veja
que a Colômbia não é um país pequeno. Há uma cena de
um dos documentários da Segunda Guerra que sempre
me fascinou. Mostra um bando de oficiais alemães que
parecem perdidos naquelas estepes russas infindáveis. Os
generais estão se perguntando: que diabo de lugar é este?
Onde estamos? Por que nós nos metemos aqui? Como a
gente sai disto? O Brasil também tem essa capacidade de
intimidar um potencial adversário pela sua capacidade de
parecer não terminar nunca. Você sai do Rio de Janeiro,
avança cem quilômetros e a mal passou de Petrópolis.
Mais cem e chega a Juiz de Fora. Mais cem, ainda está

ESPECIAL ABRIL 2023 91


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

em Barbacena. Nós brasileiros nos acostumamos com adversários. O Brasil não tenta vender nenhuma ideologia,
essa dimensão continental do Brasil, e dela só lembramos expansão territorial ou corrente migratória. Condenamos a
quando saímos do país. Quando embaixador em Genebra, agressão russa na Ucrânia porque o Brasil, conforme a carta
eu podia escolher entre oito países em que eu poderia ir de das Nações Unidas, não concorda que nenhuma alteração
trem ou automóvel almoçar. Levava quinze minutos para de fronteiras se faça por via militar. Temos fronteiras com
chegar de carro à França; um pouco mais de tempo para dez países, cujas fronteiras respeitamos impecavelmente.
chegar à Bélgica, à Áustria, à Itália ou a Luxemburgo! No Só a China e a Rússia têm fronteiras mais extensas do
Brasil haveria sempre mais Brasil pela frente... O Brasil tem que nós. Então, o Brasil é um país muito cuidadoso, que
também uma imensa percepção da sua continuidade his- não pode nem quer dar a impressão de ser truculento ou
tórica. Sempre me surpreende que, quando há um desfile ameaçador. Tem que ser cordato, racional, moderado.
militar brasileiro, ele se inicie pela exibição das bandeiras
históricas, a primeira das quais uma cruz, como traziam pin- O AMANHÃ DO IMPÉRIO BRASILEIRO
tadas nas suas velas naus e caravelas. É como se a história
O futuro brasileiro não pode ser outra coisa, portanto, que
do Brasil fosse um rio que desemboca no presente sem
essa expansão natural, amistosa de nossos interesses –
rupturas; uma espécie de corredor do tempo. O Brasil se
nunca uma forma agressiva, predatória, territorialmente
considera herdeiro de si mesmo e de Portugal, do próprio
expansionista. Com tudo isso, o Brasil tem também todo
fato de que o nosso imperador fundador era herdeiro da
interesse na multipolaridade. Sou multipolar por convicção
coroa de Portugal e foi depois de rei de Portugal.
e pelo que entendo deva ser nosso interesse nacional. A
minha ideia de multilateralidade é a de que o mundo é
A MONTAGEM DO QUEBRA-CABEÇAS BRASILEIRO nossa província, porque o Brasil foi formado por europeus,
Das dimensões do poder adquiridas no século XIX, nos africanos, asiáticos sobre a matriz dos que já estavam aqui.
faltavam, porém, outros elementos para ser um império. Aonde vou, há sempre algum elemento cultural que me faz
O primeiro era a demografia; nós não tínhamos gente. sentir em casa. Como acarajés em Lagos, quibes no Líbano,
Éramos quatro milhões em 1822. Hoje, com 220 milhões sushis em Kioto, pizzas em Nápoles, churrascos em Bue-
de habitantes, somos coisa grande. O segundo elemento nos Aires. Um país como o Brasil tem de ser naturalmente
faltante era econômico. Não tínhamos produtividade. Isso favorável a um mundo multipolar, no qual possa jogar em
se resolveu com a industrialização, e hoje, principalmente, todos os tabuleiros e tenha fichas em todas as mesas. O
com o agronegócio, vocação nossa desde os primórdios Brasil é ainda é um ator menor, mas já é certamente um
da colonização açucareira em Pernambuco. O Brasil é uma global player. Não é muita ficha, não é muita mesa, mas
superpotência agropecuária. O terceiro elemento faltante nós temos muitas jogadas para fazer. Não somos vassalos
era a matriz energética. Atravessamos um século XIX sem naturais de potência nenhuma. Vamos jogar bem com os
carvão e um século XX sem petróleo. Mas hoje o Brasil Estados Unidos, mas também queremos uma Europa
produz quatro milhões de barris de petróleo por dia. É um forte, assim como todas as Américas, a Ásia e a África. A
dos dez maiores produtores de petróleo do mundo. Está nós convém o acesso a uma multiplicidade de tabuleiros.
– coisa inacreditável – a caminho de ficar autossuficiente
em trigo. O Mato Grosso do Sul excedeu a Argentina como azambujamarcos@hotmail.com
maior produtor mundial de soja. Tudo isso leva a crer que
existem condições para que o Brasil cumpra um dia o seu
grande destino imperial e que possamos chegar lá. Não vejo
nenhum país do mundo com essa obsessão pelo próprio
futuro. Mas o Brasil nunca é abertamente ou consciente-
mente imperialista. Talvez por excesso de terras a ocupar,
nosso imperialismo foi quase sempre para dentro, na forma
de uma marcha para o Oeste. Nós nos sentimos folgada-
mente bem na nossa roupa. No plano internacional, como
diria Sérgio Buarque, gostamos de nos mostrar como um
gigante cheio de bonomia. Temos uma disposição risonha
para a humanidade, para a coisa construtiva. Não temos
ânimo imperial no sentido agressivo, porque não temos

92 CONTA-GOTAS
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

As vinícolas mais consagradas, que escreveram


a história do vinho de qualidade em cada
região do mundo, você só encontra na Mistral.

Mistral, a importadora dos melhores vinhos.


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ESPECIAL ABRIL 2023 93


94 FOGO
DO NILO
À UCRÂNIA:
BREVIÁRIO DA
INOVAÇÃO MILITAR
NA GUERRA MODERNA

Leonardo Braga Martins


Oficial Superior da Marinha do Brasil

A ideia de inovação e a sua centralidade no mundo contemporâneo são,


em boa parte, produtos do pensamento de Joseph Schumpeter (1883-1950)
e das correntes tributárias da sua reflexão. Em “Capitalism, Socialism and
Democracy”, de 1942, o economista austríaco lança as bases da concepção
de inovação e empreendedorismo que estruturam os discursos, as práticas
e os textos sobre o tema até os dias de hoje:

“Vimos que a função dos empreendedores é reformar ou revolucionar


o padrão de produção explorando uma invenção ou, de um modo mais
geral, uma possibilidade tecnológica não experimentada de produzir uma
mercadoria nova ou produzir uma antiga de uma nova maneira, abrindo
uma nova fonte de abastecimento de materiais ou uma nova demanda
para os produtos, a partir da reorganização de uma indústria e assim por
diante.” (SCHUMPETER, 2013, p. 220, tradução nossa).

ESPECIAL ABRIL 2023 95


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Gallouj e Djellal (2017) destacam, na construção de


Schumpeter, a ideia da inovação como a “socialização de
uma invenção”. Outrossim, os mesmos autores alertam
para a riqueza da tipologia schumpeteriana, que, ao contrá- NEM MESMO AS EMPRESAS
rio de dividir a inovação em produto e processo,1 propõe MAIS INOVADORAS DA
cinco diferentes categorias: (1) novos produtos, (2) novos
métodos de produção, (3) novos mercados, (4) novas fon-
ÉPOCA (COMO A XEROX),
tes de abastecimento e (5) novas formas de organização. TINHAM CONDIÇÕES DE
Percebemos assim que a inovação, embora se relacione
decididamente com novas tecnologias, não depende delas
TRANSFORMAR TODAS AS
de forma absoluta. É possível inovar a partir da mobilização DESCOBERTAS IMPORTANTES
inédita de uma tecnologia pré-existente em um contexto
EM PRODUTOS, MESMO
“não experimentado”.
No século XXI, o aprofundamento das mudanças de- PORQUE NOVOS PRODUTOS
sencadeadas pela “era da informação” (CASTELLS, 2005) REQUEREREM NOVOS
proporcionou condições para a emergência de maciças
redes de produção e socialização do conhecimento, tal MODELOS DE NEGÓCIOS

96 FOGO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

como prescrevem Nonaka e Takeuchi (1997). Por conseguinte, a capacidade de inovação


das instituições passou a depender mais fortemente dos seus níveis de integração com
essas redes.
A necessidade de compreensão dessa realidade, nova e paradigmática, estimulou
a reflexão e a formulação de modelos alternativos, com destaque para a concepção da
inovação aberta de Chesbrough (2003). De certo modo, como afirmam Gallouj e Djellal
(2017), a pesquisa em inovação exige um olhar sobre o grau de abertura da organização às
influências do ambiente, independentemente do arcabouço conceitual empregado. Mas,
ao contrário do que prescreve Rogers (2003) que divide o processo de difusão de inovação
em etapas, a abordagem da Open Innovation (inovação aberta) confere aos processos de
internalização, combinação e externalização de conhecimento o status de elemento reor-
ganizador e estruturante das instituições inovadoras.
Assim, podemos conceber a inovação aberta como artifício para explicitar um grau tão
maior de capilaridade das redes de conhecimento que põe em xeque os processos até
então bem-sucedidos de inovação. E que processos seriam esses? De acordo com Ches-
brough (2003), a era de ouro da inovação no pós-Segunda Guerra Mundial é marcada pela
combinação de investimentos públicos e privados de vulto, direcionados para a pesquisa
básica, qualificação da força de trabalho técnico-científica e estabelecimento de centros de
pesquisa e desenvolvimento (P&D) encadeados verticalmente. Esse processo foi fortemente
protagonizado pelas demandas do setor de defesa, tal como ilustra o discurso de despedida
do presidente norte-americano Dwight Eisenhower (1890-1969) em janeiro de 1961:

“Até o último de nossos conflitos mundiais, os Estados Unidos não tinham indústria de
armamentos. Os fabricantes americanos de relhas de arado poderiam, com o tempo e
conforme necessário, fazer espadas também. Mas agora não podemos mais arriscar
o improviso emergencial da defesa nacional; fomos compelidos a criar uma indústria
permanente de armamentos de vastas proporções. Somado a isso, três milhões e meio
de homens e mulheres estão diretamente engajados na defesa. Gastamos anualmente
com segurança militar mais do que a receita líquida de todas as corporações dos Estados
Unidos.” (EISENHOWER, 1961, p. 1038, tradução nossa).

Etzkowitz e Leydesdorff (1995) em “The Triple Helix – University – industry-government


relations: A laboratory for knowledge based economic development” mostraram que, em-
bora as cadeias de inovação fossem verticalizadas, existiam relações múltiplas e recursivas
entre os principais atores da inovação – universidade, indústria e governo. Isso fertilizaria
o ambiente onde o paradigma da “inovação aberta” iria florescer no final dos anos 1990
e início dos anos 2000. A partir de um estudo de caso de “inovação fechada” (companhia
Xerox dos EUA), Chesbrough (2003) afirma que a mudança foi motivada principalmente pelo
crescente “superavit” de ideias novas geradas pelas atividades de pesquisa, não apropriadas
internamente pelos setores de desenvolvimento. Possuindo escopos e mercados definidos,
nem mesmo as empresas mais inovadoras da época (como a Xerox), tinham condições de
transformar todas as descobertas importantes em produtos, mesmo porque novos produtos
requererem novos modelos de negócios, fazendo com que uma novidade material acabe
impondo mudanças em todas as dimensões da tipologia de inovação schumpeteriana.

ESPECIAL ABRIL 2023 97


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O afluxo de novas ideias passou a ser mais bem aproveitado com o financiamento de em-
presas pequenas e médias por fundos de capital de risco, com uma agilidade e um apetite ao
risco compatíveis com o prospecto de lucros proporcionados por inovações disruptivas, dentro
do espaço de aversão ao risco deixado pelas empresas em seus modelos de inovação endógena
ou de financiamento conservador de inovação externa (CHESBROUGH, 2002).
Conforme disserta Merindol e Versailles (2020) tratando da realidade contemporânea, o
modelo de inovação aberta é um corpo estranho no setor de defesa e há dois motivos para
isso. Em primeiro lugar, as políticas do setor estão estruturadas em torno (1) do controle das
tecnologias, (2) da proteção das capacidades da Base Industrial de Defesa (BID), (3) de uma
cadeia logística altamente verticalizada e centrada em torno de grandes empresas integrado-
ras de tecnologia e (4) de uma relação em que o Estado é tanto cliente quanto regulador; em
segundo lugar a adoção de modelos de inovação aberta requer um relacionamento novo e
mais complexo entre civis e militares inovadores, deixando até mesmo o termo BID sem um
sentido prático como conceito de gestão, considerando que a inovação em defesa pode vir
de qualquer lugar (e não necessariamente de um ator rotulado como parte da BID). Merindol
e Versailles (2020) sugerem, como alternativa, a adoção do termo “ecossistema de defesa”.
A Guerra na Ucrânia é talvez o exemplo mais recente dessa nova dinâmica, se considerarmos
as soluções inovadoras desenvolvidas pelos ucranianos dentro de um ambiente de cooperação
aberta entre a população civil, provedores comerciais de produtos/serviços e o setor militar,
assim como a produção de capacidades decorrentes da articulação operacional de sistemas
de diferentes níveis de sofisticação tecnológica. Este artigo, à luz dos referenciais teóricos e
metodológicos de inovação militar e cultura estratégica, apresenta uma proposta de abordagem
que visa indicar as condições que favorecem a inovação em defesa, tanto “fechada” quanto
“aberta”. Casos concretos são utilizados para ilustrar a aplicação dos conceitos apresentados
e, por fim o emprego da aeronave não tripulada de origem turca Bayraktar TB-2 é brevemente
analisado. Concluiu-se que (1) a cultura estratégica, embora seja considerada na literatura con-
temporânea um fator interveniente da inovação militar, pode ser mais bem compreendida como
propulsora da inovação; (2) que o paradigma corrente na base industrial de defesa ocidental é
fortemente influenciado pela cultura estratégica norte-americana de alto conteúdo inovador e
altos custos; e (3) existem percursos de inovação alternativos para potências médias, em que
a articulação de sistemas de diferentes níveis de complexidade tecnológica a partir da inovação
operacional ganham destaque na construção de capacidades militares2

O CAMPO DE ESTUDOS DA INOVAÇÃO MILITAR


O imbricamento entre tecnologias de mercado e inovação militar teve início nos anos 70 e
se intensificou a partir da década de 90. Esse fenômeno é contemporâneo à emergência do
campo de estudos de inovação militar, fundado por Barry Posen com a obra “The Sources of
Military Doctrine: France, Britain, and Germany between the World Wars” (GRIFFIN, 2017).
É oportuno observar que, de modo coerente com a perspectiva das redes de conhecimento,
a produção do campo está organizada em torno das relações entre os atores da inovação militar,
o que justifica o seu agrupamento como proposto por Adam Grissom (2006): (1) relações civis-
-militares; (2) relações entre forças singulares nacionais; (3) relações dentro da força singular;
e (4) influências culturais.

98 FOGO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A despeito das diferenças, as escolas compartilham algumas constatações


importantes. Em primeiro lugar os autores consideram, de forma unânime, que as
organizações militares são “intrinsecamente inflexíveis, propensas a estagnação e
receosas de mudança” (GRISSOM, 2006, p. 919); em segundo lugar, caracterizam
a inovação militar como uma mudança doutrinária de escopo e impacto significati-
vos, capaz de promover um aumento da eficácia de combate (GRISSOM, 2006).
Onze anos mais tarde, Griffin (2017) aponta que os estudos culturais se
tornaram prevalentes e totalizantes, fenômeno produzido pelo encadeamento de
dois compromissos: (1) para constituir-se como subcampo (aceito) das relações
internacionais, os estudos culturais de inovação militar subordinaram-se às visões
positivistas e aos modelos sistêmicos reducionistas embutidos nas outras três es-
colas; (2) isso resultou na acomodação da cultura como uma variável interveniente
de fatores externos, como os geográficos e tecnológicos, e, por conseguinte, no
abandono (ou ignorância) do estudo da cultura como fator propulsor da inovação.

ESPECIAL ABRIL 2023 99


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Em “Preditcing Military Innovation”, Isaacson, Layne e Arquilla (1999)


apresentam uma taxonomia mais bem equipada para a exploração das
questões levantadas por Griffin (2017), identificando quatro perspectivas
– a realista estrutural, a societal, a organizacional e a cultural. A partir de
hipóteses testáveis, formuladas a partir das três primeiras perspectivas,
os autores investigaram três casos: (1) Forças de Defesa Israelense, entre
1948 e 1982; (2) o Exército Norte-vietnamita, entre 1965 e 1970; e (3) as
forças que lutaram a Guerra do Chaco (Bolívia e Paraguai), entre 1932 e
1935 (ISAACSON; LAYNE; ARQUILLA, 1999).
Como conclusão, foram identificados sete fatores que favorecem a
inovação militar: (1) alto nível de ameaça externa; (2) mudanças relevantes
nos objetivos políticos; (3) restrições moderadas de recursos; (4) coesão
social; (5) fiascos militares passados; (6) oficiais antigos, influentes e pa-
trocinadores de mudança (product champions) e (7) percursos de carreira
que favoreçam a ascensão de Oficiais inovadores (ISAACSON; LAYNE;
ARQUILLA, 1999). Interessante registrar ainda o que os autores expres-
saram ceticismo em relação ao valor da perspectiva cultural, em virtude AS ORGANIZAÇÕES
de um histórico de análises culturais consideradas “fracas” e um poder
explanatório julgado maior de outras abordagens (ISAACSON; LAYNE;
MILITARES, DE UM
ARQUILLA, 1999). MODO GERAL, SERÃO
Quinze anos antes, em “The Sources of Military Doctrine: France,
Britain, and Germany between the World Wars”, Barry Posen (2014)
DEIXADAS POR CONTA
realizou estudos comparados a partir das perspectivas realista-estrutural e PRÓPRIA, COMO UMA
organizacional, como artifício metodológico para modelagem de estratégias
DAS BUROCRACIAS
nacionais. Entre as suas principais constatações, Posen (2014) aponta que
as organizações militares, de um modo geral, serão deixadas por conta ESPECIALIZADAS E
própria, como uma das burocracias especializadas e semiautônomas que SEMIAUTÔNOMAS QUE
compõem o Estado Moderno, e dentro desse caráter prevalecerão as
tendências de estagnação doutrinária, falta de integração com os objetivos COMPÕEM O ESTADO
políticos do Estado e predileção pelas doutrinas ofensivas. MODERNO
Sobre a influência da tecnologia, Posen (2014) aponta duas conclusões
importantes: (1) que a pouca experiência com uma nova tecnologia permite
aos civis ou militares chegarem às conclusões que desejarem sobre a guerra
do futuro, de acordo com as suas predileções organizacionais ou estraté-
gicas; (2) que a tecnologia, per si, provê pouca explicação para mudanças
doutrinárias, considerando que as lições contundentes da Primeira Guerra
Mundial foram traduzidas em uma variedade muito grande de doutrinas.
Curiosamente, a despeito das ricas possibilidades conferidas pelo uso de
abordagens cruzadas, a estratégia fundante de Posen entraria em desuso
no século XXI, fenômeno que foi constatado e criticado por Griffin (2017).
Importantes autores contemporâneos, como Farrell, Rynning e Terriff
(2013), abdicariam até mesmo da adoção de uma abordagem teórica, ale-
gando que a teoria é uma forma de reduzir a complexidade, em proveito da
capacidade explicativa, mas que ela pode complicar mais do que esclarecer.

100 FOGO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ESPECIAL ABRIL 2023 101


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

102 FOGO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Atentos aos alertas de Isaacson, Layne e Arquilla (1999) e Griffin (2017), a


escolha que se impôs foi a investigação da cultura estratégica como potencial
motor da produção e apropriação de tecnologias militares. Para isso o trabalho se
dispôs a utilizar a inovação tecnológica e a doutrina de operações militares como
eixos transversais de investigação.

CULTURA E ESTRATÉGIA
Reconhecido como autor de peso dentro da escola cultural (GRIFFIN, 2017),
Dima Adamsky (2010) propõe o estudo da cultura estratégica como variável inter-
veniente entre a tecnologia e a inovação militar. Adamsky (2010) afirma que não se
vincula às proposições positivistas e que entende o relacionamento entre a tecno-
logia e a inovação militar como um ente socialmente construído e amalgamado em
torno de uma nova “teoria da vitória”. Como teoria da vitória, não nos referimos
a uma teoria propriamente dita, mas ao conceito formulado por Stephen Rosen
(1988) que se refere aos pressupostos assumidos por uma organização militar
sobre como será a guerra no futuro e como ela deverá ser vencida. É importante
notar que uma teoria da vitória não se limita às especulações de natureza tática,
requerendo ademais uma adequada integração entre os objetivos militares dos
níveis táticos, operacionais e estratégicos (BARTHOLOMEES, 2008), e entre os
objetivos militares e políticos do Estado (POSEN, 2014).
A despeito do caráter polissêmico do termo “estratégia”, de um modo geral
a literatura aponta que o seu uso está associado ao processo de seleção de
meios para o alcance de determinados objetivos (MINTZBERG; AHLSTRAND;
LAMPEL, 2010; RIBEIRO, 2008). Ao descrever a escola cultural de pensamento
estratégico, Mintzberg, Ahlstrand e Lampel (2010, p. 253) definem a cultura como
“essencialmente composta de interpretações de um mundo e das atividades
e artefatos que as refletem” e que “Assim, associamos cultura organizacional
com cognição coletiva”. Os mesmos autores afirmam que a estratégia expressa
essencialmente uma perspectiva comum, fundamentada em intenções coletivas,
e que ela pode ser mais bem descrita identificando-se quais capacidades são
protegidas e usadas pela organização em proveito do alcance de seus objetivos
(MINTZBERG; AHLSTRAND; LAMPEL, 2010, p. 256).
Assim, é preciso notar que a estratégia (como produto da ação coletiva) não é
necessariamente resultado de uma ação consciente e deliberada, mas um modo
de ação que emerge a partir das relações entre as pessoas e entre pessoas e
artefatos. Essa constatação proporciona condições de entender o chamado “pla-
nejamento estratégico” como uma tentativa de disciplinar a estratégia emergente
de uma organização a partir da perspectiva de sua liderança formal.
Na busca por elementos que nos permitam delimitar essa estratégia emer-
gente, aquela que de fato orienta a ação das organizações, mostra-se oportuno
recorrer a Edgar Morin. Para Morin (2011), o elemento central da estratégia é a
incerteza; se um modo de agir está orientado em torno do cumprimento de um
programa de ações predeterminadas e indiferentes ao contexto histórico, ele não
é estratégico; estratégia é um agir capaz de comportar algum grau de incerteza.

ESPECIAL ABRIL 2023 103


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

CONSIDERANDO QUE A GUERRA


É POR NATUREZA A SEARA DA
INCERTEZA, É BASTANTE LÓGICO
QUE AS FORÇAS MILITARES
BUSQUEM REDUZI-LA COMO PODEM

104 FOGO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A estratégia luta contra o acaso e busca a informação. Um exército envia batedores,


espiões para se informar, isto é, para eliminar ao máximo a incerteza. Além disso,
a estratégia não se limita a lutar contra o acaso, também procura utilizá-lo. Assim,
a genialidade de Napoleão em Austerlitz foi fazer uso do acaso meteorológico que
cobria de bruma os mangues por ele mesmo reputados de impraticáveis ao avanço
dos soldados. Ele construiu sua estratégia em função dessa bruma que lhe permitiu
camuflar os movimentos de sua armada e atacar de surpresa o exército imperial,
sobre seu flanco mais desprovido (MORIN, 2011, p. 80).

Portanto, para efeito desse trabalho, a cultura estratégica é considerada como o


conjunto de práticas de uma organização mobilizadas para lidar com a incerteza. Posen
(2014) identifica oito dessas práticas na cultura estratégica de organizações militares: (1)
o desenvolvimento de rotinas para lidar com tarefas, problemas e eventos, consolida-
das em “procedimentos operacionais padrão”; (2) a associação lógica de vários desses
procedimentos em programas de ação modelados para cenários padrão; (3) a articulação
e a promulgação de uma doutrina militar, a grosso modo definida como um repertório
de programas de ação; (4) o treinamento, a premiação e a promoção dos indivíduos, de
acordo com a proficiência que exibem na execução da doutrina; (5) a reserva de força de
trabalho e inventários de equipamentos e suprimentos em proveito da independência e
da resiliência da força; (6) a luta por certa autonomia política, administrativa e operacio-
nal, motivada pelo medo de que um exercício desinformado e caprichoso de autoridade
externa desequilibre o delicado relacionamento entre a estrutura interna da força e sua
doutrina; (7) o uso de estratégias de influência política, como a busca por prestígio e a
circunscrição dos assuntos militares aos círculos internos, na tentativa de assegurar aos
líderes militares o reconhecimento da condição de especialistas e agentes competen-
tes para julgar os aspectos intrínsecos à organização, equipamento e recrutamento de
pessoal militar; e por fim (8) uso das mesmas estratégias de influência política dentro do
setor de defesa para assegurar a uma força singular o reconhecimento de competência
e influência em áreas de conhecimento transversais, onde possam ocorrer disputas
doutrinárias entre forças congêneres.
O que essas características implicam para a compreensão da inovação militar? Em
primeiro lugar, implicam reconhecer que a doutrina é cara às organizações militares, pois
reduzem a incerteza da ação no combate por meio de uma adequada coordenação das
unidades e pela obtenção de resultados previsíveis das ordens emanadas. Considerando
que a guerra é por natureza a seara da incerteza, é bastante lógico que as forças militares
busquem reduzi-la como podem, não só por meio da preservação e do cultivo da doutrina,
como também pela reserva de meios e pessoas sob seu controle e supervisão diretas.
Mas considerando ainda que essas forças, a partir do século XX, operam artefatos cada
vez mais sofisticados e diversos, é lógico inferir que as doutrinas se tornaram condutas
culturais cada vez mais complexas, especializadas e mal integradas entre si e com os
objetivos políticos do Estado – portanto, ainda mais difíceis de serem compreendidas e
modificadas do que no período histórico estudado por Posen. Outrossim, num mundo
em que esses mesmos artefatos evoluem de forma acelerada e evidente, causa cada vez
mais estranheza a perpetuação de doutrinas por períodos prolongados (POSEN, 2014).

ESPECIAL ABRIL 2023 105


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Compreendendo que a mudança doutrinária é reconhecida pelas instituições militares


como uma fonte de incerteza, é preciso identificar de que forma a cultura estratégica lida
com ela.

ESTRATÉGIA E INOVAÇÃO
A partir das considerações de Posen (2014) e Grissom (2006), constatamos que a pre-
servação da cultura e dos padrões de organização a ela associados é um objetivo tácito das
organizações militares, expresso pela sua estratégia de fato. Portanto, é lógico investigar as
diretrizes estratégicas presentes nas culturas militares que contemplem o fenômeno da mu-
dança interna. A primeira, e mais óbvia, é a estratégia de permanecer com a mesma doutrina
e organização diante das incertezas, o que chamaremos de estratégia de preservação. Como
já foi dito, a “guerra do futuro” é um construto volúvel que pode ser instrumentalizado para
atender variados objetivos políticos. Há o risco das forças se mobilizarem para uma “guerra
do futuro” imaginada hoje, que amanhã se torne irrelevante em decorrência de novas tecno-
logias ou políticas extemporâneas de governo. Posen (2014) aponta ainda que, pior do que
lutar usando uma doutrina obsoleta, é lutar sem doutrina alguma, o que acontece quando
uma força militar é acionada quando está atravessando um período de transição doutrinária.
Mas, eventualmente, as organizações militares sofrem transformações. Para compreendê-
-las, de um modo simplificado, podemos recorrer a duas categorias de estratégia de mudança
– as estratégias de conformidade externa e de conformidade interna (MARTINS, 2016). A
estratégia de conformidade externa é uma “atitude transformadora do ambiente” que visa
modificá-lo, tornando suas características mais favoráveis à perpetuação e à prosperidade da
organização (Martins, 2016). Algumas estratégias de conformidade externa são facilmente
identificáveis dentro e fora do setor de defesa, como os trustes, os cartéis, a propaganda,
o marketing, o lobby e a comunicação social. Outras são específicas do setor de defesa e
permeiam os mais diversos níveis de decisão, com sua prevalência dependente do grau de
protagonismo militar do país.
O Departamento de Defesa dos EUA, por exemplo, tem como missão explícita “moldar
e manter um mundo pacífico, próspero, justo e democrático e promover condições de es-
tabilidade e progresso para o benefício do povo americano e pessoas em todos os lugares”
(USA, 2016, p. B-3, t.adução nossa). Podemos identificar também relações de conformidade
externa entre elementos de um mesmo sistema nacional, tal como ilustra o discurso do
presidente norte-americano Eisenhower, em 1961, sobre a crescente influência política do
complexo industrial de defesa do país:

Essa conjunção de um imenso estabelecimento militar e uma grande indústria de arma-


mentos é nova na experiência americana. A influência total – econômica, política e até
espiritual – é sentida em cada cidade, cada casa do Estado, cada escritório do governo
federal. Reconhecemos a necessidade imperiosa desse desenvolvimento. No entanto,
não devemos deixar de compreender suas graves implicações. Nosso trabalho, recursos
e meios de subsistência estão todos envolvidos; assim é a própria estrutura de nossa
sociedade. Nos conselhos de governo, devemos nos prevenir contra a aquisição de
influência indevida, desejada ou não, pelo complexo industrial militar. O potencial para
o aumento desastroso de um poder inadequado existe e vai persistir (EISENHOWER,
1961, p. 1038, tradução nossa).

106 FOGO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Em contraponto à conformidade externa, a estratégia de conformidade interna se beneficia do


fato de que as instituições militares, mesmo conservadoras, não são absolutamente rígidas e mo-
nolíticas, constituindo-se a partir de redes de relações (ROSEN, 1988). A capacidade intrínseca de
criação, destruição e modificação dessas redes proporciona certa plasticidade. Assim, a estratégia
de conformidade interna baseia-se na “modificação das correlações internas a fim de assegurar
a coerência do interno com o ambiente cultural” (MARTINS, 2016, p. 111).
A conformidade interna “estaria a serviço mais fortemente da imitação de comportamentos
já estabelecidos pela cultura vigente” (Martins, 2016, p. 111), uma prescrição consistente com os
históricos de “modernização” dos contingentes militares, onde as lideranças civis-militares mime-
tizam as forças de outros países considerados avançados, sem necessariamente compreenderem
os seus próprios contextos operacionais.
É importante notar que os conceitos de conformidade externa e interna são tipificações uti-
lizadas para facilitar a compreensão. Na prática, as instituições combinam essas estratégias nos
diferentes relacionamentos que estabelecem. A intenção, por exemplo, de moldar o ambiente de
um modo específico (conformidade externa) pode requerer uma capacidade indisponível na força,
e, portanto, exigir a sua autotransformação (conformidade interna). Sinergias e desconcertos po-
dem se estabelecer quando as estratégias de dois atores são conectadas em um relacionamento
(como, por exemplo, a relação entre países aliados). Uma determinada força pode ser objeto de
modificações impostas pelo poder político (ação de conformidade externa do poder político sobre
a força militar) que eram desejadas pelos líderes militares (conformidade interna). As estratégias
podem ser implementadas por diferentes mecanismos de coordenação, instrumentalizando mer-
cados, políticas e conhecimento, inclusive por atores como as indústrias e os centros de pesquisa,
gerando um fechamento do modelo de inovação (LEYDESDORFF; IVANOVA, 2016).

ESPECIAL ABRIL 2023 107


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Assim, é possível formular mais quatro hipóteses de mudança: (1) sujeição às estratégias
de conformidade externa do poder político; (2) sujeição às estratégias de conformidade externa
do ecossistema de defesa; (3) sujeição às estratégias de conformidade externa de aliados ou
das outras forças congêneres; (4) sujeição às próprias estratégias de conformidade interna. A
consolidação das oito hipóteses levantadas encontra-se no Quadro 1.

QUADRO 1

HIPÓTESES DE INOVAÇÃO MILITAR (NÃO EXCLUDENTES)

HIPÓTESE DESCRIÇÃO

Falhas da própria força ou de forças similares que demonstram claramente


(1) Falhas do passado a inadequação da doutrina, pondo em dúvida a reserva de competência dos
militares como especialistas em assuntos da sua área operacional.

Falhas da própria força que demonstram claramente a inadequação de


(2) Falhas recorrentes em sua doutrina, motivando o seu próprio pessoal a questionar a validade dos
combate pro-cedimentos operacionais padrão e a modificá-los pelo imperativo da
necessidade operacional.

Mudanças políticas que alteram as possibilidades de atuação das forças


armadas, abrindo novos nichos operacionais não explorados (inimigos
diferentes, novos ambientes operacionais, novos objetivos, novas formas de
combater). Essas mudanças podem ser tanto estímulos (maiores orçamentos
(3) Mudanças políticas específicos para uma área, assunção de compromissos políticos de longo
prazo, maior cooperação civil-militar), como restrições moderadas (restrições
orçamentárias moderadas, negação de acesso a determinados artefatos ou
adesão a tratados que proíbem determinado artefato ou que limitam sua
proliferação, suas características ou o seu volume de produ-ção).

Mudanças da doutrina militar dentro da área de conhecimento da força,


(4) Imitação realizadas ou disseminadas por terceiros reconhecidos como atores
prestigiados e/ou bem-sucedidos em campanhas militares.

Submissão a reformas impostas pela liderança civil. Normalmente são de-


(5) Sujeição às estratégias
sencadeadas pela falta de integração entre os interesses políticos e militares
de conformidade externa
ou pelas hipóteses 1 e 2. Quando a força deseja a mudança imposta pelo
do poder político
poder político, a situação se enquadra também na hipótese 8.

(6) Sujeição às estratégias


Submissão a mudanças impostas pela indústria de defesa. Normalmente são
de conformidade externa
desencadeadas pela falta de integração entre os interesses econômicos da
da base industrial de
indústria e os interesses militares da força
defesa

(7) Sujeição às estratégias


Submissão a mudanças impostas pelas doutrinas de operações dos aliados
de conformidade externa
e/ou das forças congêneres. Normalmente são decorrentes da falta de inte-
de aliados ou das outras
gração entre a doutrina da força e doutrina dos aliados ou congêneres.
forças congêneres

Submissão a mudanças impostas pelas capacidades que a força deseja ter


(8) Sujeição às
(visão de futuro), mas que não possui e precisa desenvolver (planejamento
próprias estratégias de
estratégico). A visão de futuro, em si, normalmente será produto da liderança
conformidade interna
militar.

108 FOGO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

CASOS CONCRETOS
Tal como afirma Vego (2020, p. 299), “a doutrina reflete a vontade e a filosofia de uma organização e
específica premissas e ações para sustentar seus esforços”. Isso implica perceber que a doutrina será
mais longeva (e a inovação doutrinária menos necessária) se as premissas que a sustentam permane-
cerem no tempo. Nesse caso, a inovação mais plausível será decorrente da excelência profissional de
oficiais seniores, cultivada por longas e profícuas carreiras militares, que lhes proporcionaram as compe-
tências e a autoridade (moral e formal) para transcender a doutrina. Trata-se de um modo “confortável”
de inovação para a cultura militar, pois valoriza a experiência e a precedência hierárquica, e que tem no
almirante britânico Nelson (1758-1805) um exemplo clássico e digno de registro:

“A Batalha do Nilo ocorreu perto do fim da era do combate a vela. Nelson teve poucas oportuni-
dades de adotar táticas para novas tecnologias, como Napoleão fez com a artilharia móvel e os
grandes capitães Panzer fizeram mais tarde com os tanques. Dito isso, a conquista de Nelson é
ainda mais notável: ele adaptou suas táticas a um sistema de armas que tinha séculos de idade
em seus fundamentos e com uma visão que raramente, ou nunca, foi igualada no mar. Podemos
acreditar que seu domínio tático foi alcançado ao longo de uma vida inteira. O general prussiano
e teórico militar Carl von Clausewitz argumentou que, embora uma boa estratégia pudesse vir do
novato inspirado, as táticas eficazes eram o trabalho de uma vida inteira.” (HUGHES; GIRRIER,
2018, Cap. 1, tradução nossa).

O século XX e as primeiras décadas do século XXI desvelaram uma realidade profundamente distinta.
A renovação e a atualização dos procedimentos táticos e operacionais tornaram-se demanda permanente,
impostas pelo acelerado desenvolvimento tecnológico. Doutrinas que ignoram as implicações do avanço
tecnológico estão sob o risco perene de obsolescência e de transmutação em dogma (VEGO, 2020).
Considerando as proposições de Posen (2014) e Vego (2020), apresenta-se como oportuno obser-
var mais uma vez a doutrina como instrumento de simplificação da realidade e redução da incerteza.
Tomando as premissas doutrinárias como suposições (julgadas verdadeiras) que amparam a propo-
sição de determinadas ações (ABBAGNANO, 2007; VEGO, 2020) é possível investigar as relações
entre tecnologia e tática a partir da identificação das premissas tecnológicas que dão sustentação às
prescrições doutrinárias.
Um bom exemplo pode ser extraído da Segunda Guerra Mundial. Os torpedos, mais conhecidos
hoje pelo uso a bordo dos submarinos, eram utilizados também por navios de superfície. Unidades
rápidas, especificamente construídas para lançar torpedos (as torpedeiras), foram concebidas como
alternativa mais econômica aos modernos (e caros) encouraçados a partir do século XIX (TILL, 2018).
Logo tornar-se-ia necessário desenvolver navios rápidos para escoltar os encouraçados – nascia o
contratorpedeiro, que na prática passou a fazer as duas tarefas – ataque torpédico e escolta, inclusive
em contraposição à ameaça de submarinos (TILL, 2018).
Na década de 40, a Marinha dos Estados Unidos da América (USN) considerava que o combate naval
se daria mormente com a troca de fogos de artilharia e que os contratorpedeiros inimigos poderiam ser
destruídos antes que pudessem lançar seus torpedos (VEGO, 2020). Essa tática era coerente com as
características do torpedo que a USN possuía (Mk 15, com alcance de 5,5 km e velocidade de 85 km/h)
(ROWLAND; BOYD, 1952, p. 91) e com a crença de que a artilharia de canhões de seis polegadas seria
capaz de neutralizar ou afundar contratorpedeiros inimigos à distância de 9,1 km, beneficiada pela sua
alta cadência de fogo e pela direção de tiro por radar (MORISON, 2001, p. 195).

ESPECIAL ABRIL 2023 109


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Na Guerra do Pacífico, essa premissa se mostraria equivocada. Ignorante da existência do


torpedo japonês Tipo 93, capaz de alcançar alvos a 20 km viajando a 91 km/h (USN, 1946), os
EUA sofreriam danos severos decorrentes de ataques torpédicos nas batalhas da Ilha de Savo
(OHMAE, 1957) e do Golfo de Kula e Kolombangara (MORISON, 2001). Além disso, bem treinados
para o combate noturno e com postos de observação visual mais elevados, navios japoneses
chegaram a detectar navios norte-americanos antes de serem identificados pelos radares inimigos
(VEGO, 2020), derrubando mais uma premissa tecnológica assumida pelas forças navais dos EUA
(a superioridade da detecção do radar).
Cabe fazer distinções claras entre as premissas tecnológicas e as premissas sobre o compor-
tamento do inimigo, cuja formulação e uso é arriscada e usualmente condenada pela literatura
profissional militar. Lawrence Freedman provê justa ilustração ao discutir a visão de futuro do
almirantado britânico sobre o uso de submarinos no século XX. Em julho de 1914, o famoso es-
critor Arthur Conan Doyle (1859-1930) publicou “Danger! Being the log of Captain John Sirius”,
a história do Comandante da Flotilha de Submarinos de Norland, um país fictício da Europa con-
tinental, envolvido em disputas coloniais com a Grã-Bretanha (DE CASTELLA, 2014). Diante de
um ultimato britânico, após um incidente entre os dois países, o Comandante da Flotilha (John
Sirius) é chamado para uma reunião emergencial; nela, assiste o rei expressar seu desalento e a
convicção de que a única alternativa viável era render-se, considerando que a pequena armada
de Norland não seria páreo para a Marinha Real (DOYLE, 1914). Convencido pelo Almirante Horli,
comandante da Marinha, o rei decide ouvir Sirius antes de sua decisão final:

– Você parece autoconfiante, Capitão Sirius.


– Eu não tenho nenhuma dúvida, senhor.
– O que, então, você aconselharia?
– Aconselharia, senhor, que toda a esquadra seja reunida sob os fortes de Blankenberg e
protegida do ataque por barreiras e estacas. Lá eles podem ficar até o fim da guerra. Os oito
submarinos, no entanto, o senhor deixará sob meu comando para usar como achar adequado.
– Ah, você atacaria os navios de guerra ingleses com submarinos?
– Senhor, eu nunca chegaria perto de um navio de guerra inglês.
– E por que não?
– Porque eles podem me machucar, senhor
– O que, um marinheiro e com medo?
– Minha vida pertence ao país, senhor. Não é nada. Mas estes oito navios... tudo depende
deles. Não podia arriscá-los. Nada me induziria a lutar.
– Então, o que você vai fazer?
(DOYLE, 1914, p. 3, tradução nossa).

Após uma longa conversa, Sirius apresenta o seu plano para o rei – atacar e afundar os navios
mercantes que abasteciam as ilhas britânicas, levando o Reino Unido à fome (sem que a Marinha
Real pudesse fazer algo a respeito). Curiosamente, a ficção foi desacreditada pelos almirantes
britânicos, que refutaram a verossimilhança da história afirmando que era inaceitável e incivilizada
a destruição de navios civis desarmados (FREEDMAN, 2017). As duas grandes guerras provariam
justamente o contrário.
O emprego de drones turcos Bayraktar TB-2 é o caso mais recente do efeito “Sirius” e pode ser
mais facilmente escrutinado usando o quadro de referência proposto. A Turquia, tendo promovido
um processo de integração entre os objetivos políticos e militares (ROSSITER; CANNON, 2022)
(hipótese 5) e submetida ao embargo norte-americano na compra de drones aéreos (hipótese 3),
estabeleceu um programa nacional de desenvolvimento de aeronaves de combate não tripuladas
compatíveis com a realidade orçamentária do país e dos potenciais compradores (hipótese 6).

110 FOGO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Sua principal estrela é o drone Bayraktar TB-2, um modelo


de longo alcance, capaz de voar por aproximadamente 27
horas, numa altitude operacional de 18.000 pés, transpor-
tando uma carga útil de 150 kg, composta tipicamente de
4 bombas guiadas a laser (BAYKAR Technology, 2023).
O FRACASSO UCRANIANO O fracasso ucraniano durante a Guerra da Criméia em
2014 (hipótese 1) estimulou a Ucrânia a adquirir os drones
DURANTE A GUERRA turcos em 2018, medida que se mostraria decisiva no en-
DA CRIMÉIA EM 2014 frentamento das forças terrestres russas quatro anos mais
tarde. O Azerbaijão, sujeito à influência da aliada Turquia
ESTIMULOU A UCRÂNIA (hipótese 7), adquiriu os Bayraktar TB-2 em 2020 e fez uso
A ADQUIRIR OS deles durante a segunda guerra de Nagorno-Karabakh,
vencendo a Armênia. No mesmo ano, forças turcas em
DRONES TURCOS EM apoio ao governo da Líbia (Government of National Accord
2018, MEDIDA QUE SE – GNA) derrotaram a LNA (Libyan National Army) utilizando
os Bayraktar TB-2 para destruir peças de artilharia, blinda-
MOSTRARIA DECISIVA NO dos e baterias antiaéreas da LNA, numa campanha em
ENFRENTAMENTO DAS que o sucesso foi predominantemente obtido a partir do
ar (PACK; PUSZTAI, 2020).
FORÇAS TERRESTRES
RUSSAS

ESPECIAL ABRIL 2023 111


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Cabe pontuar que o sucesso não foi obtido a partir do emprego isolado de drones. A vitória foi
alcançada pelo emprego articulado de (1) sistemas de defesa antiaérea navais, embarcados em fra-
gatas turcas posicionados no litoral; (2) baterias antiaéreas em terra, que proporcionavam a proteção
de áreas vitais da GNA contra a aviação da LNA; e (3) sistemas de guerra eletrônica que “cegavam”
às baterias antiaéreas móveis de origem russa Pantsir S-1, e determinavam a sua localização para
que os Bayraktar TB-2 as destruíssem (PACK; PUSZTAI, 2020).
O sucesso do Azerbaijão e Turquia no enfrentamento de inimigos equipados com sistemas de
origem russa apontaria um padrão a ser repetido na Guerra da Ucrânia em 2022. O sucesso ucraniano,
portanto, não surpreende.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o maior orçamento militar no mundo, os EUA estabeleceram um padrão a ser imitado, exer-
cendo forte influência sobre potências médias como a Grã-Bretanha e a França (FARRELL; RYNNING;
TERRIFF, 2013), conformando esses aliados por meio de múltiplas relações. Considerando que esses
países também são importantes atores na área de defesa, suas bases industriais e unidades militares
somam-se às contrapartes norte-americanas, na propagação de um paradigma cultural militar mar-
cado por: (1) uso intensivo de tecnologia sem a prévia sustentação de um conceito operacional; (2)
desestímulo ao desenvolvimento de capacidades cognitivas que sustentem a inovação operacional;
e (3) normalização de custos exorbitantes de aquisição e operação de artefatos militares.
Tal como apontam Merindol e Versailles (2020), a tradição norte-americana está assentada a
priori na superioridade de artefatos militares (mesmo implicando em altos custos) e a posteriori no
desenvolvimento de doutrinas que orientem o seu uso. Uma perspectiva aderente à pujança da base
industrial de defesa dos EUA e à estatura da pesquisa científica-tecnológica do país.
Pressionados por outros fatores, países como Israel (ADAMSKY, 2010), Coreia do Sul (RASKA,
2016) e Turquia orbitam entre a adesão ao paradigma ocidental predominante e o desenvolvimento
de soluções específicas para os seus problemas político-militares. Essa postura tem como resultado
prático a construção de capacidades militares a partir da articulação de equipamentos de alta, média
e baixa complexidades tecnológicas, servindo-se (especialmente nos últimos dois níveis) de compo-
nentes, produtos e serviços comerciais (Commercial of the Shelf – COTS).
Nesse sentido, o contexto de inovação aberta que se estabeleceu no século XXI pode proporcionar
maior autonomia e eficiência às forças militares, por meio da participação em redes mais amplas de
inovação. Essa participação tem potencial para estimular a cultura de inovação operacional das pró-
prias forças, proporcionando condições para a articulação de (1) soluções tecnológicas alternativas e
mais baratas para problemas militares tradicionais; e (2) soluções tecnológicas complementares para
problemas não resolvidos “dentro de” ou “por causa de” modelos de inovação fechados.

O autor é professor do Programa de Pós-Graduação em Defesa e Segurança da Universidade Federal


Fluminense (UFF) e Conselheiro da Associação Brasileira de Redução de Riscos de Desastre (ABRRD)
bragamartins@gmail.com

NOTAS DE RODAPÉ

1. Essa é a classificação adotada pelo Manual de Oslo, 3ª edição, publicado em 2005. A quarta edição, de 2018, ampliou significativamente
a quantidade de categorias de inovação.

2. Este artigo é produto da adaptação e do aprimoramento das reflexões desenvolvidas no trabalho “Implicações dos Avanços Tecno-
lógicos nas Operações Navais: o papel da cultura de inovação militar na apropriação de tecnologias de geração, armazenamento e uso
de energia em submarinos diesel-elétricos” produzido no âmbito do Curso de Política e Estratégia Marítimas da Escola de Guerra Naval,
publicado em 2021 e disponível em <https://www.marinha.mil.br/egn/teses_dissertacoes> .

112 FOGO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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ESPECIAL ABRIL 2023 113


8 DE JANEIRO
NO DIVÃ
Leandro Faro
Psicanalista

O PÂNICO DAS MASSAS

“Mais de cem ônibus foram fretados em diversas cidades do país para levar grupos de bolso-
naristas para a capital federal, onde foi marcado um grande ato para questionar o resultado
das eleições, que elegeram Luiz Inácio Lula da Silva como presidente. O grupo, que fazia
uma manifestação de caráter golpista, invadiu e vandalizou os prédios do Congresso,
do Supremo Tribunal Federal (STF) e o Palácio do Planalto. Os manifestantes estavam
concentrados no Quartel-General do Exército, em Brasília, antes de descerem em
direção à Esplanada dos Ministérios. Vídeos divulgados na internet mostram policiais
militares do Distrito Federal conversando com manifestantes bolsonaristas enquanto
uma multidão invadia o Congresso Nacional.” (EXAME, 2023)

“A exemplo de outros acampamentos diante de quartéis espalhados pelo país, o


da capital federal exibiu desde o começo faixas e cartazes com dizeres antide-
mocráticos e ataques ao processo eleitoral, ao STF, ao ministro Alexandre de
Moraes e a Lula, por exemplo. Com pedidos de ‘Socorro, Forças Armadas’,
as mensagens de teor golpista e ameaçador recorrentemente reivindicavam
ações inconstitucionais e violentas.

116 PATOLOGIA
ESPECIAL ABRIL 2023 117
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NTAG IA DO S PE LA UNIFORMIDAD E DAS MULTIDÕES,


MENS MAIS SÁBI OS , QU AN DO CO
MESMO OS HO

(…) com os antigos vínculos sociais e mudava seu comporta-


Com o passar do tempo, no entanto, as declarações mento depois de se envolver com “más companhias”. É
se inflamaram e se radicalizaram ainda mais. Um áudio difícil não nos lembrarmos também da violência cometida
gravado em 5 de janeiro, por exemplo, mostra uma por pessoas ditas “pacíficas”, quando inseridas no contexto
mulher afirmando: ‘Já era, agora é tudo ou nada. Se das torcidas organizadas. E mesmo a mais profunda sede
tiver que empurrar, empurra. Se tiver que dar tiro, dá de justiça, quando mobilizada pelas multidões, acaba se
tiro. Se tiver que meter a mão no pescoço… Não tem subvertendo em puro linchamento.
mais que ter dó’. Porém, o surreal da cena é que, no caso, a grande
Neste domingo, extremistas que retornaram ao acam- “má companhia” se materializa na figura do próprio ex-
pamento após os atos terroristas falavam em ‘tacar -presidente da república! Óbvio que essa subversão acar-
fogo’ no STF.” (REIS, FERREIRA & BORGES, 2023) retaria outros efeitos: na medida em que os legitimadores
do movimento são representantes das instituições, não
Não é de hoje que o comportamento caótico de são mais os adolescentes os grandes “encantados” pelo
certos grupamentos sociais causa espanto. Não apenas sectarismo. Chamou a atenção da imprensa a quantidade
em função dos episódios violentos que surgem eventual- de idosos acampados em frente aos quartéis.
mente em seu meio, mas também por conta da intensa
resistência que cada pessoa inserida nestes grupos tem “O período no acampamento em frente ao quartel,
diante de qualquer alegação que deslegitime ou coloque desde novembro, era visto pelos pais de Felipe como
em xeque as crenças mais profundas que sustentam esta uma festa: um grupo de idosos, que passava algumas
“comunidade”. horas do dia juntos. 'Era uma comunidade, falando a
As respostas prontas, que são apontadas como armas mesma língua, dividindo as mesmas ideias. Passaram
diante de qualquer forma de questionamento do evidente Natal e Ano Novo naquela calçada. Isso cativou, virou
absurdo, têm sido tão repetidas que esgotam qualquer um passatempo e tomou uma proporção que culminou
possibilidade de debate. Não pelo argumento, mas pelo na crença de que iriam até Brasília tomar o Planalto e
cansaço: “mídia lixo, comprada pelo PT, doutrinação de não aconteceria nada’.” (BUGNI, 2023)
esquerda”. Assusta ainda mais quando o alvo não é um
determinado candidato ou opositor político: Apesar da situação sui generis, da mesma forma que
certas correntes da psicologia se referem eventualmente a
“O ódio foi despejado aos gritos. Minha mãe me este fenômeno de adesão de grupos da adolescência como
chamou de comunista, me agrediu verbalmente e não um “comportamento de seita”, nossa mídia tem ousado
conseguiu manter o verniz religioso que sustenta a associar o bolsonarista, mesmo aquele que não aderiu
imagem bolsonarista. Ela não se importou nem em ser objetivamente às ocupações das frentes dos quartéis, às
avó, destilando maldade na frente do meu filho. Usou seitas religiosas:
até meu pai, morto durante a pandemia e enterrado nu
em um saco plástico, para me entristecer, afirmando “O episódio mostra que os atos ultrapassaram todas
que ele não me aceitaria.” (SOUZA, 2022) as barreiras da política e começam a virar casos para
a psicologia social. Marcados pela ritualística e com
A cena suscita uma imagem recorrente de nosso elementos de liturgia, eles se aproximam do comporta-
tempo. Familiares atônitos diante da abrupta mudança de mento das seitas religiosas — um fenômeno presente
personalidade de determinado ente querido. Logo trazemos em vários locais do mundo, já estudado e que merece
à mente a figura do adolescente que, subitamente, rompia atenção. Sem objetivos concretos, os atos golpistas —

118 PATOLOGIA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

UM IM BE CI L, E, VIA DE REGRA, É ISSO QUE ACONTECE


PODEM SE COM PO RTAR CO M O

que, desde a derrota de Bolsonaro para o presidente que todo ímpeto revolucionário do liberalismo se conver-
eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ocupam estradas e tesse em uma defesa das tradições e do status quo tão
portas de quartéis— flertam com o simbólico e com o violenta e reativa quanto a velha nobreza destituída. No
espiritual. Parecem lutar não por pautas objetivas, mas entanto, mesmo que em tese a nova ordem tenha tido
apenas pela união de um grupo cheio de fanatismo.” uma vitória expressiva em seus intentos de apaziguar
(LACSKO, 2022) os mesmos ânimos revolucionários que antes gestaram,

E
restou como resíduo subjetivo um medo, de contornos
sse encorajamento em buscar compreender paranoicos, da violência das multidões.
um fenômeno tão exótico a partir das suas E, tal como nossa época, entre os intelectuais e “for-
motivações psicológicas aponta para um madores de opinião”, imperava a sensação de que:
medo estrutural. A força do impacto produzido
pelo “comportamento de seita” bolsonarista impossibilitou “As multidões sempre desempenharam um papel im-
que pudesse ser visto como “um problema do outro”. portante na história, mas nunca tão considerável como
Representou uma ruptura social de caráter muito mais nos nossos dias. A ação inconsciente das multidões,
íntimo do que estávamos acostumados. As dissensões se substituindo-se à atividade consciente dos indivíduos,
alargam, do espaço público ao seio dos lares, levando toda é uma característica da época em que vivemos.”
a sociedade a buscar entender o que está acontecendo. O (LE BON, [1895]1980)
temor é de que, por incompreensível, o bolsonarismo se
torne incontrolável. Por consequência, não foram poucos os intelectuais
Engana-se, no entanto, quem acredita que o problema liberais que se debruçaram sobre o tema. O controle das
do comportamento irracional, suscitado pela integração do multidões era um problema que não apenas preocupava
indivíduo às multidões, seja algo restrito aos nossos dias. as elites burguesas, como se tornou tão popular a ponto
Muito menos que os efeitos das multidões sobre o com- de ser um tema produtor de best-sellers de época.
portamento dos indivíduos tenha sido alvo de investigação Entre as obras mais influentes do período, temos
somente com o bolsonarismo. de destacar “A Psicologia das Multidões” ([1895]1998),
Houve outro momento histórico em que o dilema do de Gustave Le Bon. Nela, o autor busca compreender
comportamento disruptivo e violento das multidões foi o comportamento do indivíduo dentro de uma multidão.
considerado uma marca da própria época, por seus pró- Chamava-lhe a atenção que, quando ela se formava, os
prios contemporâneos, e que, igualmente aos dias atuais, indivíduos que a compunham deixavam de apresentar
produziu medo e inquietude. diferenças e especificidades e incorporavam novas carac-
terísticas. Segundo ele, a personalidade individual tendia
A TÉCNICA DE CONTROLE BOLSONARISTA a se dissolver, dando lugar a uma entidade singular – a
Não é de hoje que pesquisadores e intelectuais têm “multidão psicológica”: uma espécie de alma coletiva, em
buscado melhor compreender (nem sempre com as me- que os sentimentos, ideias e atos de cada um passavam
lhores motivações) o comportamento das massas. Igual- a se orientar em uma mesma direção. Le Bon chamou
mente aos nossos dias, o fim do período das revoluções este fenômeno de “lei da unidade mental das multidões”.
burguesas, no séc. XVIII, elevou os atos insurgentes das A multidão seria, assim, incapaz de atos que exi-
multidões, antes a “mola mestra” dos processos revolu- gissem inteligência elevada. Mesmo os homens mais
cionários, no grande temor das novas elites. sábios, quando contagiados pela uniformidade das mul-
Quão logo os últimos resíduos do antigo regime de- tidões, podem se comportar como um imbecil, e, via de
monstravam estar finalmente superados, não tardou para regra, é isso que acontece. A multidão nivela por baixo.

ESPECIAL ABRIL 2023 119


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Isso porque, no momento em que uma pessoa passa Impulsos estes que ficariam ainda mais incontrolá-
a ser influenciada por ela, se torna incapaz de resistir a veis num grupamento que garantisse o anonimato de
impulsos excitatórios, que normalmente seriam inibidos seus membros. Desta forma, os homens ignoram seus
pelas repressões sociais. sentimentos de responsabilidade e ponderabilidade, e se
Cabe nos perguntarmos, então: o que é uma multidão sentem livres para ceder aos mais baixos instintos, mesmo
psicológica? Como ela é capaz de exercer tal força sobre a quando põem em risco a sua própria preservação.
vida mental de seus componentes? E qual seria a natureza
das alterações mentais produzidas por esta força? São “De acordo com a mulher, que afirma permanecer no
essas as principais questões sobre as quais se debruçou acampamento ‘para lutar pelo Brasil até a morte’, o
a psicologia das multidões. E, aqui, preferimos deixar Le tempo em que estão no local ‘enfrentando sol e chuva’
Bon responder por si a questão: fez com que os ‘nervos ficassem à flor da pele’. Con-
forme relatado, quem não foi embora até o momento
“(...) quaisquer que sejam os indivíduos que a com- está preparado ‘para matar ou morrer’.
põem, sejam semelhantes ou dessemelhantes o seu ‘Se alguém grita ‘infiltrado’, os outros chegam e não
tipo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua inte- querem saber. Partem para cima e metem mesmo a
ligência, o simples fato de se terem transformado em porrada. Estamos todos com sangue nos olhos. Só
massa os torna possuidores de uma espécie de alma sairemos daqui com o código fonte’ (…) ’Não aceitamos
coletiva. Esta alma os faz sentir, pensar e agir de uma que o Brasil vire uma Venezuela. Não aceitamos que
forma bem diferente da que cada um sentiria, pensaria nossas casas sejam invadidas e nossa polícia seja desar-
e agiria isoladamente. Certas ideias, certos sentimen- mada. Lutaremos até o fim das nossas vidas, se preciso
tos aparecem ou se transformam em atos apenas nos for. E estaremos preparados para isso muito em breve.
indivíduos em massa. A massa psicológica é um ser Estamos nos organizando e a qualquer momento uma
provisório, composto de elementos heterogêneos que guerra civil acontecerá. Bandidos e a esquerda não nos
por um instante se soldaram, exatamente como as comandarão jamais’, finalizou.” (METROPOLES, 2023)

N
células de um organismo formam, com a sua reunião,
um ser novo que manifesta características bem dife- o que diz respeito ao atentado de janeiro, o que
rentes daquelas possuídas por cada uma das células.” vemos é um entrecruzamento entre a força da
(LE BON apud, FREUD, 1921/2011, p.13) veiculação da imagem, por meio da publicação
de fotos e vídeos, ao mesmo tempo em que
O autor explica a constituição de uma multidão psicoló- imperava nos acampamentos certo anonimato garantido pela
gica, a partir de determinados efeitos de contágio mental: privacidade das tendas armadas e das redes sociais. Isso nos
quando em multidão, todo sentimento, todo ato, toda di- mostra como a imagem é essencial para garantir a força da
reção adquire efeito contagioso. Por conta deste efeito, os identificação, o que não previa Le Bon. No entanto, o anoni-
indivíduos facilmente sacrificam seus interesses pessoais mato investe ao movimento ainda mais força.
e seu bem-estar em função dos interesses coletivos. “Tem
um sentimento de onipotência: para o indivíduo num grupo “O Telegram foi, mais uma vez, a arena preferida do
a noção de impossibilidade desaparece.” Adquirem, assim, bolsonarismo, por permitir a circulação de fake news,
um profundo sentimento de invencibilidade, que lhe per- teorias conspiratórias, discursos de ódio e pregações
mite se entregar a impulsos que resistiria se estivesse só. contra a democracia. Ao longo do dia, foram várias as

OS HOMENS IGNORAM SEUS SENT


IMENTOS DE RESPONSABILIDADE
E PONDERABILIDADE,

120 PATOLOGIA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

lives nas quais os terroristas produziam provas em abun- Além do efeito contagioso decorrente da integração do
dância contra si ao filmar as invasões que promoviam indivíduo à multidão psicológica, uma das características
a prédios públicos. Ana Priscila Azevedo, por exemplo, desta “alma coletiva” é sua intensa sugestionabilidade: in-
compartilhou vídeos em que aparece dentro do Palácio divíduos mergulhados numa multidão rapidamente entram
do Planalto afirmando aos gritos que estava ’tomando num estado que muito se aproxima da hipnose, fazendo
o poder de assalto’. Adriano Castro, que participou do com que a personalidade consciente desapareça. Isso
primeiro BBB, em 2002, reeditou mais de vinte anos transformaria as multidões em entidades extremamente
depois, por quatro horas, o seu próprio “big brother” crédulas e abertas a toda sorte de influências; o indivíduo
ao transmitir ao vivo em seu canal (226 000 inscritos) passa a pensar por imagens, que surgem umas após as
a caminhada dos golpistas do QG do Exército à Praça outras por associação, como ocorre nos indivíduos imagi-
dos Três Poderes. ’Para quem disse que a gente não nativos. “Os sentimentos de um grupo são sempre muito
conseguia, que ia ter Guarda Nacional, ia ter isso, não simples e muito exagerados, de maneira que não conhe-
sei o quê. Não teve foi nada’, disse, entusiasmado.” cem a dúvida nem a incerteza”. (LE BON, [1895]1998)
(MAGRI & BECHARA, 2023)
FAKE NEWS: “UMA MENTIRA CONTADA 1000 VEZES...”
Tanto a divulgação da autoimagem (as lives) quanto Não obstante a assertividade com que Le Bon descre-
o anonimato (o Telegram) estão a serviço de garantir a ve e sintetiza o comportamento das multidões, ele acaba
sensação de intenção individual: “estou aqui porque EU caindo em um paradoxo relativamente fácil de perceber.
decidi estar”, e, simultaneamente, a sensação de per- Não é possível saber se motivado pelo medo inescrutável
tencimento coletivo; ambos são eficazes, independente do caos, que para ele é representado pelas multidões, ou
das contradições existentes entre eles. Nas multidões, por certo constrangimento em revelar a própria tecnologia
“as ideias mais contraditórias podem existir lado a lado que estava fundando. Ao mesmo tempo em que suscita
e tolerarem-se mutuamente, sem que nenhum conflito determinadas formas de controle das massas – “O grupo
surja da contradição lógica entre elas”. Isso porque, para é um rebanho obediente, que nunca poderia viver sem um
Le Bon, a multidão dá às palavras poderes mágicos. Não senhor” – relativiza a própria sentença, quando conclui:
existe razão ou argumentos suficientes para combater “Possui um anseio tão forte de subserviência, que se
certas expressões. submete a qualquer um que se indique como chefe” (Ibid.).
No caso do bolsonarismo, percebemos esse efeito A escolha, inclusive, do termo “multidão”, eventual-
duplamente manifesto: ao mesmo tempo em que determi- mente revezando com “massas”, na tradução do termo
nadas expressões respondem a qualquer tipo de questiona- francês “Foules”, não foi ao acaso. Para o autor, como já
mento, funcionando como uma blindagem subjetiva, certas pudemos verificar, a multidão, apesar de algumas caracte-
palavras que sustentam os argumentos contrários mais rísticas de destaque, permanece ingovernável. É impossível
comuns servem como gatilhos para uma reação imediata: construir um líder, pois “qualquer um serve”; impraticável
se utilizar de argumentos, se “qualquer palavra” puder
“Quando expliquei que talvez o Bolsonaro tenha per- despertar os mesmos “estados hipnóticos”; insustentável
dido apoio por causa da maneira como ele lidou com a conduzir os ânimos, já que sua natureza é caótica e irritável.
pandemia, a minha irmã começou a chorar e falar que A multidão psicológica seria, assim, conflitivamente,
‘agora não importa mais esse tanto de morte já que o ao mesmo tempo intolerante e obediente à autoridade.
aborto vai ser legalizado’.” (SOUZA, 2022) Tende, por isso, a hipervalorizar a força e a violência. “Quer

E SE SENTEM LIVRES PARA CEDE


R AOS MAIS BAIXOS INSTINTOS

ESPECIAL ABRIL 2023 121


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

R AVAL IA DA PE LOS SEUS RESU LTADOS, ENTÃO, AS


SE UMA TECN OL OG IA PO DE SE

ser dirigido, oprimido e temer seus senhores. Fundamen- Tal metamorfose é tão psiquicamente intensa que minimi-
talmente, é inteiramente conservador e tem profunda zaria qualquer interesse dele pela verdade:
aversão por todas as inovações e progressos, e um respeito
ilimitado pela tradição.” (LE BON, [1895]1980) No entanto, “Exigem ilusões e não podem passar sem elas. Cons-
aparentemente, Le Bon busca evidenciar a todo momento, tantemente dão ao que é irreal precedência sobre o real;
o quanto é dificultoso o controle de quais tradições podem são quase tão intensamente influenciados pelo que é
ser suscitadas, bem como os meios pelos quais pode se falso quanto pelo que é verdadeiro. Possuem tendência
manter seu senhor. evidente a não distinguir entre as duas coisas.” (ibid.)

D
ilema este solucionado com facilidade, não Avaliando, enfim, a receita da “Intentona Bolsonarista”
apenas pelo nosso Jair Bolsonaro, como de 8 de janeiro, a partir dos princípios da Psicologia das
historicamente pelos líderes fascistas que, Multidões, podemos chegar a um panorama de aplicação
desde a década de 1930, têm encontrado da técnica: inicia-se aquecendo os ânimos, através de uma
sucesso em promover a adesão das multidões em seus intensa disseminação de notícias falsas, ataques pontuais
intentos de tomada do poder político. E se existe algo que o e argumentos defensivos; acrescenta-se a construção de
bolsonarismo especificamente comprovou é que os meios uma estrutura física, onde os apoiadores possam fortalecer
apontados por Le Bon como mobilizadores das multidões seus vínculos grupais (as tendas em frente aos quartéis);
são eficazes mesmo quando elas se encontram disper- garantam estrutura logística para congregar os grupos
sas. As redes sociais são capazes, sim, de dar o estímulo dispersos sob uma localidade estratégica (os mais de 100
necessário às massas, e reproduzir de forma controlada ônibus fretados); e, por fim, “abram as porteiras”.
as formas capazes de torná-las “multidões psicológicas”. Se uma tecnologia pode ser avaliada pelos seus re-
É simplista, no entanto, considerar que a máquina de sultados, então, as fake news ainda são uma boa e velha
produção e divulgação de fake news de Bolsonaro esteve ferramenta de propaganda.
apenas a serviço da desinformação pura e simplesmente.
A “lei da unidade mental das multidões” nos dá indicações O LE BON QUE EM NÓS HABITA...
do quanto as multidões só podem ser excitadas por um
estímulo excessivo. Para se produzir qualquer efeito sobre “Se ele tivesse sido preso, eu não sei o que faria, se
ela, não é necessário argumento ou lógica, deve-se exage- eu deixaria ele lá para aprender.”
rar na ênfase e repetir a mesma coisa por diversas vezes, “Foram muitas brigas por causa disso. Mas eu acho
exacerbando, assim, as emoções mais fortes. que eu não denunciaria meu pai, apesar de tudo. A
Tendo em vista os efeitos do trabalho ferrenho do gente tenta salvar a pessoa até o último minuto.”
chamado “gabinete do ódio” ao produzir desinformação (PONTES, 2023)
em escala industrial, com o intuito de divulgar e cristalizar
a ideologia do grupo, então, a psicologia das multidões Se tem algo que diferencia completamente o medo de
demonstrou mais uma vez sua eficácia. No contexto bra- Le Bon e o temor que o bolsonarismo tem representado
sileiro, as multidões incontroláveis se tornaram “gado”, dentro dos lares brasileiros é que, enquanto ele fala de
submissos ao som do berrante. um lugar diferenciado, representando as elites prósperas
Segundo Le Bon ([1895]1980), ele já não é ele mes- e afortunadas da Europa, em oposição profunda àqueles
mo, “é um autômato cuja vontade tornou-se impotente”. indivíduos sob o status de “multidão psicológica”, nas famí-

122 PATOLOGIA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

BO A E VE LH A FERRAMENTA DE PROPAGANDA
FAKE NEWS AI ND A SÃ O UM A

lias a ruptura é íntima e próxima demais. Enquanto massa significado: fanatizados, terroristas, golpistas, criminosos,
amorfa, violenta e influenciável, são necessários meios comportamento de seita.
para contê-la e controlá-la; enquanto familiar irreconhecível, A multidão é o outro. Ela precisa ser!
“a gente tenta salvar a pessoa até o último minuto”. Esta estratégia, no entanto, não consegue ocultar a
No entanto, o que aproxima os casos é que podemos verdade que busca encobrir. Quer para Le Bon, quer para
reconhecer sem muita dificuldade uma percepção de nossos jornalistas e comentadores de notícias, quer para o
profunda alteridade nas duas situações. Le Bon se con- familiar atônito, a necessidade de demarcar claramente os
sidera destacado em sua condição de estudioso1, e, por limites da diferença carrega um dilema insolúvel. Se, em
isso, imunizado e distinto, em algum grau, dos efeitos da tese, mesmo o mais sábio, comedido e racional de todos
multidão psicológica. Para as famílias que sentem a súbita os homens se converteria em massa amorfa quando sob
mudança de personalidade de seus parentes, a sensação efeito da “multidão psicológica”, o que nos faria distintos
de alteridade é igualmente percebida, em justa proporção à ou blindados contra a influência que facilmente converteu
quebra de reconhecimento, sem que, no entanto, nenhuma pessoas tão próximas?
justificativa traga consolo. Esta é uma questão tão crucial nos debates acerca da
Conforme a expressão tão repetida pelos psicanalistas: psicologia das multidões, que demarca também o ponto
“aquilo que não encontra lugar na fala, retorna como o Real em que Freud, ao analisar minuciosamente a obra de Le
do sintoma”. No caso, puro e simples terror: Bon, se afasta de suas conclusões. A maior distinção entre
as teorias de Le Bon e Freud reside justamente na compre-
“Gustavo disse ter ficado muito abalado pelas frases ensão do intelectual francês de que o aspecto hereditário
ditas pela mãe dele, mas a que mais incomodou foi a do inconsciente se relacionaria a algum componente racial.
mãe dizer que eu preciso dela mais do que ela precisa Quando as características pessoais seriam suspensas pela
de mim, então devo calar a boca. A maneira como ela re- integração do indivíduo às multidões, seria uma espécie de
agiu e olhou para o próprio filho foi o que mais o abalou. inconsciente racial que emergiria no lugar.
´Foi um choque ver que minha mãe não estava me Já Freud (1921/2011) insiste que “(…) a superestrutura
vendo como filho, mas como inimigo político. Ela foi mental, cujo desenvolvimento nos indivíduos apresenta
cruel nas palavras. Ela pegou em pontos pesados. Ela tais dessemelhanças, é removida, e as funções incons-
falou com raiva. Ela falou com cólera no olhar´, lembra cientes, que são semelhantes em todos, ficam expostas
ele.” (SOUZA, 2022) à vista”. Ou seja, a primeira grande ruptura de Freud com
a psicologia das multidões não é nada apaziguadora para a
A necessidade de marcar uma distinção profunda situação que enfrentamos em nosso país. Não existe abso-
diante de um fenômeno que nos provoca toda a sorte lutamente nenhuma distinção entre as nossas operações
de incertezas e inseguranças tem dado legitimidade ao inconscientes e as daqueles que se encontram sob o efeito
uso de termos que dificilmente consideraríamos “politi- do “enamoramento juvenil” das multidões.
camente corretos” em outra circunstância. Mesmo entre
os maiores e mais respeitáveis veículos de comunicação, “´Meu filho tem um grupo de amigos de esquerda e
temos eventualmente nos deparado com os termos ele se sentiu desafiado. E, como é um menino bem
“gado” e “bolsominion” para se referirem aos apoiadores rústico e corajoso, pediu para um menino carimbá-lo
de Bolsonaro. Quando a distinção profissional é mais exi- [marcar na pele o número 22 em ferro em brasa]. Um
gida, os termos são mais técnicos, mas não estéreis em não aceitou, mas o outro sim e fez a marca´.

ESPECIAL ABRIL 2023 123


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Agora, o rapaz tem esperança de conhecer o presiden- determinadas situações promovem, e em outras não, os
te, por quem é ´apaixonado´.” (METRÓPOLIS, 2022b) efeitos da chamada “multidão psicológica”.
De fato, ele não conseguiu compreender a função do
Freud nos indica os principais argumentos para sus- líder na constituição de um grupo de forma tão brilhante
tentar essa hipótese: Primeiro, que evidentemente a como conceituou a mente grupal. Entende como algo da
massa se mantém unida graças a algum poder. Mas a ordem do instinto ou da essência. É natural, para ele, que
que poder deveríamos atribuir este feito senão o próprio assim que seres vivos se reúnam em certo número, caiam
amor? Segundo, que temos a impressão, se o indivíduo instintivamente sobre a influência de um líder.
abandona sua peculiaridade na massa e permite que os Embora essa noção de lançar qualquer grupo a meio
outros o sugestionem, que ele o faz porque existe nele caminho do encontro de um líder, esse deve ter alguma
uma necessidade de estar de acordo, e não em oposição a coisa em suas qualidades pessoais que o torne elegível.
eles, talvez, então, “por amor a eles”. (FREUD, 1921/2011) Deve de antemão ser conduzido por intensa fé numa causa
Seria, então, a libido a energia que representa o que ou ideia, e se posicionar como representante desta, a fim
entendemos sob os sentidos típicos da palavra amor. Tanto de despertar a fé do grupo. Deve possuir uma firme e impo-
como atração sexual quanto todas as outras formas da nente vontade. Em geral, Le Bon tende a considerar que a
sua manifestação: amor de pais e filhos, entre irmãos, os principal influência dos líderes reside em se fazer notar por
laços de amizade e até mesmo o amor por um ideal ou pela meio das ideias das quais eles próprios seriam fanáticos.
humanidade em geral. A psicanálise descobriu que todas A palavra “representante” é central aqui. Existe sempre
essas manifestações se encerram num mesmo impulso, um hiato entre o representante e o que busca representar.
quer quando conduzem à união sexual, quer quando são E isso torna a representação uma espécie de performance,
desviados de sua função original, como nos anseios de na qual convencer o outro da fidelidade da representação
proximidade social e o autossacrifício (Ibid.). é muito mais relevante do que qualquer correspondência
Em conclusão, se “todas as cartas de amor são ridícu- com o representado. Em outros termos, a própria noção
las”, e “não seriam cartas de amor se não fossem ridícu- sugere que não é bem necessária essa “fé intensa”, nem
las”, não existe a ninguém a possibilidade de escapar, em mesmo grande força de vontade; é mais importante que
algum momento da vida, de se ver “escrevendo ridículas os indivíduos creiam nisso.
cartas de amor”. Muito antes do termo “bolsonarismo” surgir no cenário
Mesmo que o remetente seja o próprio Bolsonaro. político, o líder supremo da Igreja Universal, Edir Macedo,
em seu livro “Plano de Poder”, já demonstrava conhecer
UM LÍDER PARA CHAMAR DE SEU muito bem como este processo ocorre:
Uma coisa, entretanto, Le Bon até aqui não nos ajudou a
entender. Mesmo se, no caso hipotético de uma total demo- “O mito é uma chancela. No caso da política, sua po-
cratização que garantisse que a psicologia clínica individual tencialidade deve ser bem explorada para que a pessoa
desse conta de solucionar todos os dilemas advindos das seja o ator principal de um partido – porém, sua imagem
relações mais próximas entre os indivíduos, ainda não tería- deve ser resguardada – evitando assim seu desgaste
mos clarificado a “mente grupal”. Nos faltaria compreender de desconstrução.
o que levou esse mesmo indivíduo a pensar, sentir ou agir Dependendo de sua grandeza, o mito se torna uma
de maneira inteiramente distinta daquela que se esperava. E, marca, um produto à parte, independente da sigla
para além disso, de por que isso tem ocorrência tão aleatória: partidária.” (MACEDO, 2011)

QUAL SERIA, ENTÃO, A FORÇA MAI


S IMPORTANTE PARA A FORMAÇÃO
DE UM GRUPO

124 PATOLOGIA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O que Edir Macedo chama de “imagem do mito”, Le to, por mais diferentes que sejam de resto, a mesma
Bon chamará de “prestígio”. Ele seria uma espécie de simulação (ilusão) de que há um chefe supremo — na
domínio exercido sobre os indivíduos, quer por um indiví- Igreja católica, Cristo, num Exército, o general — que
duo, um trabalho ou uma ideia. Tem como característica ama com o mesmo amor todos os indivíduos da massa.
paralisar completamente nossas faculdades críticas e Tudo depende dessa ilusão; se ela fosse abandonada,
substituí-las por extrema e profunda admiração e respeito. imediatamente se dissolveriam tanto a Igreja como
Ou seja, a metamorfose pela qual passou Jair Bolsonaro, o Exército, na medida em que a coerção externa o
de “ex-militar encrenqueiro” a “mito”, foi operada conve- permitisse. Esse amor a todos é formulado expressa-
nientemente para garantir um líder que sustentasse o pres- mente por Cristo: “O que fizestes a um desses meus
tígio necessário para operar seus efeitos. Pois, conforme pequenos irmãos, a mim o fizestes.” (Ibid.)
sustentado pelo intelectual francês, esse prestígio seria,
enfim, o condicionante do sucesso e do fracasso do líder. Desta forma, quanto maior a paixão suscitada pela

P
ilusão do amor do líder por nós, maior a intensidade com
ara a formação dos chamados grupos psico- que isso se dará. Todo recurso, todo legado, toda cultura,
lógicos, mais do que a proximidade física, é toda tradição, passa a estar a serviço da exaltação e da
necessário que os indivíduos que a compõe proteção da imagem do líder:
tenham ao menos “algo em comum uns
com os outros, um interesse comum num objeto, uma “O capitão sem meias palavras, agressivo como um
inclinação emocional semelhante numa situação ou noutra pica-pau, desfazedor de mistificações políticas e sociais,
e “certo grau de influência recíproca”. (MCDOUGALL, apud quase um Sócrates expondo as inconsistências dos
FREUD, 1921/2011) De forma que, quanto mais alta essa seus adversários e as hipocrisias dos bem-pensantes,
influência, mais facilmente se formam os grupos psicológi- virou MITO num átimo de tempo, num tempo mitoló-
cos e mais intensas as manifestações dessa mente grupal. gico, não real, tendo combatido minotauros e ciclopes,
Qual seria, então, a força mais importante para a for- desprezando sereias e medusas encantatórias, como
mação de um grupo psicológico? O prestígio do líder ou o se fosse Ulisses arribando a Ítaca, aquela Pasárgada
“em comum” que os une? onde só os bem-afortunados chegam. Por que, como,
Freud (1921/2011) conclui que os grupos se constituem, por qual merecimento Bolsonaro foi aspergido por
sobretudo, por dois laços emocionais distintos: de um lado, tanta graça, tanta fortuna, tanta sorte, tanto carisma
o laço com o líder, e, de outro, entre os membros do grupo. para arrebatar multidões de brasileiros com esperança
O laço com o líder tende a ser o mais importante, tornando de que ele viria para ‘salvar’ o Brasil de suas desgraças
os laços entre os membros uma consequência desse laço mais recentes – não mais fome, nem deseducação –
inicial, que, por isso, teria um caráter mais primitivo. De porém o flagelo mais cruento da violência terrificante, da
tal forma que todas as energias do sujeito passam a ser criminalidade fustigante e da corrupção desmoralizante
direcionadas para uma espécie de servidão voluntária, na para toda uma nação.” (GOMES, 2020)
qual tudo ao alcance deve ser feito para defender o líder e
eliminar ameaças ao grupo. No entanto, é aqui que Freud acaba com a delimitação
entre “mentalidade grupal” e funcionamento subjetivo
“Na Igreja – podemos, com vantagem, tomar a Igreja dito “normal”. A única distinção seria que, por conta da
católica como modelo – prevalece, tal como no Exérci- suspensão da repressão proporcionada pela ambivalência

PSICOLÓGICO? O PRESTÍGIO DO LÍ
DER OU O “EM COMUM” QUE OS UN
E?

ESPECIAL ABRIL 2023 125


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

TO DA SO RT E DE IMPULSOS AG RESSIVOS CONTRA


QUANTO M AI S LE VA NTAM OS

anonimato/divulgação da imagem do grupo psicológico, alguma pista sobre a angústia do familiar atônito; ou como
teríamos condições de perceber melhor o que ocultamos antipatia ou aversão explícita ao estranho ou ao estrangeiro.
quando “autocontrolados”. Ou seja, demonstraríamos mais Constituindo-se, assim, como carácter elementar esse
abertamente nossa verdade inconsciente. empuxo ao ódio e essa inclinação à agressividade (Ibid.).
Porém, quando em grupo, essa hostilidade aparente-
UM PAI PARA A TODOS GOVERNAR, MAS AMAR SOMENTE A MIM mente se dissolve. Os indivíduos que o compõe tendem
Não parece, à primeira vista, que este cenário idílico, no à uniformização, se tornando mais tolerantes às individu-
qual “o pai ama a todos e por isso todos podem se amar”, alidades em seu meio, tornam-se iguais no amor ao líder.
seja o caso, quando analisamos as motivações e os atos do Possibilita, assim, que sejam incapazes de nutrir qualquer
dia 8 de janeiro em Brasília. Se o amor ao líder e aos outros sentimento de aversão dentro do grupo. Ele impõe limi-
membros do grupo explica os vínculos que o sustentam, o tações ao amor narcisista, opondo-lhe um laço libidinal
que pode clarificar a violência reativa com que o grupo lida igualmente potente com os seus componentes.
com o outro? Freud ([1921]2011) nos responde: “O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor
pelos outros, o amor por objetos.” (Ibid.) Não obstante esse
“Mas mesmo durante o reinado de Cristo se acham tipo de elo não impor ao narcisismo limitação duradoura,
fora dessa ligação os indivíduos que não pertencem somente o amor age como fator civilizatório, já que torna
à comunidade de fé, que não o amam e que ele não possível a transformação do egoísmo em altruísmo. Isso
ama; por isso uma religião, mesmo que se denomine pode ser visto tanto na atração sexual, que impõe ao nar-
a religião do amor, tem de ser dura e sem amor para cisismo toda sorte de limitações, como no amor homos-
com aqueles que não pertencem a ela. No fundo, toda sexual dessexualizado dos homens entre si, originário do
religião é uma religião de amor para aqueles que a abra- trabalho, da proximidade, ou dos interesses em comum.
çam, e tende à crueldade e à intolerância para com os Dessa forma, justamente os limites impostos pelo grupo
não seguidores. Por mais difícil que seja pessoalmente, ao amor narcisista, se constituiriam a maior evidência de
não se deve recriminar os fiéis com muita severidade que a essência mesma de uma formação grupal reside nos
por isso; para os infiéis e indiferentes as coisas são, laços libidinais forjados no seio do grupo. (Ibid.)
psicologicamente, bem mais fáceis neste ponto.” É, enfim, a introdução do amor na equação que pro-
porciona as condições para ampliarmos o que temos visto
Merece destaque que, a repetição das fake news até aqui para além do patológico. Ressalta aos olhos que, a
produz ainda mais força pulsional quando alicerçada pela partir deste ponto, deixa de existir qualquer distinção entre
inflação dos aspectos mais violentos da distinção com o o funcionamento da “mente grupal” e o funcionamento do
outro. Em outros termos: quanto mais levantamos toda inconsciente dos indivíduos ditos “normais”.
sorte de impulsos agressivos contra o outro, menos agres-
sividade se volta para dentro do grupo, e, assim, garante-se EU SOU AMOR, DA CABEÇA AOS PÉS
a empatia e o sentimento de filiação mútua entre os seus Não importa se intelectual erudito, como Le Bon, ou
componentes. bolsonarista dos mais “fanatizados”, todos nós nos consi-
Essa hostilidade pelo outro pode ser vivenciada de deramos donos de nós mesmos. Afinal, somos indivíduos:
duas formas distintas: uma ambivalência de sentimentos não-divididos, totais e singulares em cada uma das nossas
quando se dirige a uma pessoa amada, enquanto assume especificidades. Temos orgulho do quanto somos autossu-
contornos narcisistas, de amor a si mesmo, o que pode dar ficientes, racionais e conscientes de cada um dos nossos

126 PATOLOGIA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

E SE VOLTA PA RA DENTRO DO GRUPO


O OUTRO, MENOS AGRESSIVIDAD

atos. Não somos iguais, não somos imitação, não somos se debruçar sobre a influência de um número maior de
cópia; somos íntima e genuinamente “nós mesmos”. A pessoas simultaneamente.
possibilidade de que, por qualquer motivo, saiamos deste Dando esta hipótese como confirmada, a primeira
lugar é que nos produz o “temor do bolsonarismo”. Te- consequência lógica é de que, então, poderíamos iden-
memos virar “gado”. tificar a formação de cada elemento que até aqui temos
Se o amor é o maior “culpado” pelos fenômenos que abordado ainda nos primeiros anos de desenvolvimento
Le Bon aponta como a “multidão psicológica”, então não do sujeito. E, o que encontramos quando olhamos para
existe nenhum sentido em sustentar qualquer distinção nosso modelo prototípico de família – a família tradicional
entre esses laços específicos de vinculação grupal e os burguesa – aquela mesma que tem sido apontada como
laços promovidos pelas veiculações mais íntimas. Ou objeto frágil, e que precisa de toda sorte de defesa contra
seja, os laços libidinais que as pessoas estabelecem em sua degradação, ainda marca as formas como constituímos
contextos grupais mais amplos, como as comunidades nossa subjetividade.
surgidas em frente aos quartéis, e até mais extensos, No início do processo de desenvolvimento, já se inicia
como uma religião ou mesmo uma sociedade inteira, a série de distinções simbólicas que vão dar escopo para a
têm exatamente a mesma natureza que os vínculos anunciação do sujeito no mundo social. Para com a mãe e o
mais primordiais, do sujeito com seus pais e parentes pai, o filho desenvolve dois laços distintos: “uma catexia de
mais próximos. objeto sexual e direta para com a mãe e uma identificação
com o pai que é tomado por modelo” (FREUD, 1921/2011).

C
“Em meio a uma ruptura entre os poderes alimentada
pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), um vídeo omo consequência da unificação do “Eu”,
de uma criança apoiando o chefe do Executivo federal em um segundo momento, esse duplo laço
chamou a atenção dos internautas. Nas imagens, o conduz ao Complexo de Édipo: o filho constata
menino fala que ama Bolsonaro e grita ‘mito’. como seu pai se interpõe entre ele e a mãe,
‘Eu vou falar mito, Bolsonaro. Mito! Bolsonaro’, disse tomada como objeto primário de seu desejo. Essa percep-
o menino. ‘Vocêê gosta do Bolsonaro?’, questiona um ção se torna ambivalente e se identifica com o desejo de
homem, que não se sabe se pai da criança. ‘Mito, eu substituí-lo, também em relação ao desejo da mãe. Desta
te amo’, responde o menino. (...) forma, a identificação é ambivalente desde seu início,
O deputado Hélio Lopes (PSL-RJ), grande amigo do abarcando ao mesmo tempo o sentimento de admiração
presidente Bolsonaro, chegou a comentar as imagens. e a vontade de aniquilar.
‘Ensina a criança no caminho em que deve andar, e, Esta ambivalência primeira terá um papel decisivo,
ainda quando for velho, não se desviará dele”, disse o pois as marcas da identificação paterna proporcionarão ao
parlamentar, citando Provérbios 22:6’.” (MENDONÇA, sujeito as possibilidades de estabelecer outros vínculos de
2021) identificação. Será, então, a identificação que marcará a
forma como os laços do sujeito com os objetos substitutos
É, portanto, um erro fazer qualquer distinção entre atualizarão, no contexto grupal, as formas das primeiras
uma psicologia individual, que trabalharia sobre as relações identificações familiares.
mais diretas, como as relações familiares, profissionais, A partir daqui, não é difícil fazermos alguma generaliza-
amorosas, etc, e uma psicologia social, que tenderia a ção sobre a distinção que se dá entre tomar como objeto

ESPECIAL ABRIL 2023 127


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ou se identificar com ele, a distinção depende se esse laço Não é difícil mensurar o quanto desta “fragilidade
se liga ao objeto ou ao sujeito. Quando o pai é tomado por narcísica” pela qual o Eu passa para sustentar a si mesmo
objeto de desejo, podemos dizer que é o que gostaríamos pode ser compensada pela identificação a um líder. Ele
de ter, quando é tomado a partir da identificação, que ele pode, enfim, assegurar a estabilidade das ilusões do Eu, fa-
é o que gostaríamos de ser. Esse último laço é possível zendo o papel de “supereu coletivo”: “figura fantasmática
antes mesmo de que qualquer escolha objetal seja feita. onipotente, capaz de impor o entusiasmo masoquista do
Podemos assim dizer que a identificação busca moldar o autossacrifício ‘por ideais de nada’”. (Ibid.) No entanto, não
próprio Eu do sujeito conforme a imagem que fora tomada basta para isso um “líder qualquer”. Diante da fragilidade
por modelo. (FREUD, 1921/2011) do “Eu”, a busca não é por uma figura destacada e ideali-
Neste momento do percurso, pode parecer que su- zada que possa servir de modelo. Mas somente “através
bitamente abandonamos o bolsonarismo e os atos de 8 da identificação com uma imagem de si próprio no interior
de janeiro e passamos ao debate estritamente teórico. da ordem social, mas marcada pela onipotência” (Ibid.) é
No entanto, como nos diria o professor Vladimir Safatle , possível alguma forma de compensação.

T
“é certo que o conceito central para compreendermos a
maneira como a psicanálise pensa a política e suas possi- heodor Adorno (Apud. SAFATLE, 2020) cha-
bilidades de transformação é ‘identificação’”. Isso porque, mará a esta nova conformação de liderança
a psicologia das massas fora um divisor de águas para a de “alargamento da própria personalidade do
psicanálise, pois passamos a considerar as dinâmicas e sujeito, uma projeção coletiva de si mesmo,
conflitos sociais como vínculos de identificação. ao invés da imagem de um pai cujo papel durante a últi-
ma fase da infância do sujeito pode bem ter decaído na
“Essa é uma maneira de dizer que as relações de poder sociedade atual”. Bolsonaro não foi constituído à imagem
são necessariamente produtoras de sujeitos. Pois iden- de um pai, mas sim à imagem narcísica de cada um dos
tificar-me é ‘fazer como’, assumir para mim uma forma bolsonaristas. Ele caracteriza a este tipo de líder como um
exterior que me constitui, que me conforma e define os “pequeno grande homem”: “(…) uma pessoa que sugere,
caminhos de meu desenvolvimento. Agir no interior da ao mesmo tempo, onipotência e a ideia de que ele é apenas
vida social a partir de normas, regras, comportamentos mais um do povo, um simples, rude e vigoroso americano,
não é simplesmente uma questão de aprendizado, mas não influenciado por riquezas materiais ou espirituais”.
também de produção de si. Eu não irei apenas copiar Qualquer semelhança com nosso caso particular está longe
modelos ideais, eu irei internalizá-los, constituir minha de ser mera coincidência:
‘interioridade’ e ‘personalidade’ a partir deles. Ou seja,
eu me identificarei com eles.” (SAFATLE, 2020) “O presidente Jair Bolsonaro é um homem simples e
isso tanto pode ser sua glória como sua tragédia. Bolso-
Em outros termos, tudo aquilo que nos constitui, que naro é um homem simples porque sua visão de mundo
demarca nossas formas de ser no mundo, que indicamos não convive bem com a complexidade. Para ele, o mundo
pelas expressões “eu sou”, “eu sinto”, “eu quero”, “eu ideal seria aquele em que menino é menino e menina é
faço”, estão alicerçadas em uma série de modelos inter- menina e a família e a pátria os esteios da sociedade; a
nalizados que, na verdade, me constituem, sem que eu corrupção se combate com cadeia e o crime com arma
seja uma cópia ou imitação de nenhum deles. “Ou seja, na mão; Deus é a origem de tudo e o socialismo o de-
aquilo que aparece a nós como o lugar natural de nossa mônio que tudo quer destruir. Simples assim.
individualidade, o cerne de individuações baseadas no uso (...)
extensivo da primeira pessoa do singular, seria na verdade Que Bolsonaro representa o pensamento de direita
o fundamento de nossa alienação. (Ibid.)” é óbvio, mas sua eleição foi a eleição de um homem

128 PATOLOGIA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

simples, com valores conservadores bem arraigados e alismo contemporâneo e “de suas ilusões de identidade”,
que soube se utilizar das redes sociais – o instrumento não se trata de um “colapso da individualidade”. Porém, é
que deu voz a todos, inclusive os mais simples – e, por uma “defesa narcísica e agressiva de uma individualidade
conta da situação do país, atraiu a maior parcela do elei- sempre em colapso” (SAFATLE, 2020), que produzirá re-
torado brasileiro que não é de esquerda ou direita, mas gimes autoritários, paulatina e industriosamente.
que já não aguentava mais a corrupção e a violência.”
(AVENA, 2023)
leandrofaro1@hotmail.com

Se não podemos demarcar com exatidão diferenças sig-


nificativas entre o psiquismo daqueles que se incorporam
às massas autoritárias e aqueles que resistem ao “canto da NOTA DE RODAPÉ
sereia”, é porque, ao contrário do que se supõe quando se
fala do “Eu” fragilizado em consequência do hiperindividu- 1. E de racialmente superior. Sim, Le Bon era “cientificamente racista”.

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ESPECIAL ABRIL 2023 129


Concer
180 KM AO LADO
DA NATUREZA.

Do Rio a Juiz de Fora,


esse é o nosso caminho.

c o n c e r. c o m . b r
132 ANCESTRAL
Tainá Louven
Comunicóloga

Marambiré,
UM
FOGO
VIVO
Os quilombolas estão chegando.
Estão chegando os quilombolas.

“Manter a tradição não é guardar as cinzas, mas soprar a brasa”, definiu Jean
Jaurès. Os bafejos curtos que chegavam até o Quilombo do Pacoval, em Alenquer, no
Pará, até alguns anos atrás, viraram uma lufada. A comunidade secular, mantida como
nau encravada na floresta à espera de um vento bom, encontrou, finalmente, um lugar
no mapa-múndi da web. Chegou aonde a minha vista – e a do mundo todo – alcança.
Dependendo da parte do Brasil onde se esteja, é preciso viajar muito para ir ao Qui-
lombo do Pacoval. Essa é uma das razões pelas quais nunca consegui voltar lá, depois
de uma visita, em janeiro de 2016, para participar da festa do Marambiré.
Fui ao Quilombo do Pacoval a convite do artista paraense Silvan Galvão, músico e
mestre da Cultura Popular, junto com outros cariocas que nunca tinham ouvido falar
daquela festa. Cheguei sem saber quase nada e saí com entrevistas, vídeos, fotos,
memórias e uma ideia de pesquisa.

ESPECIAL ABRIL 2023 133


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O episódio deu origem à dissertação “A performance do amplas do quilombo. Em frente, havia uma construção
Marambiré: identidade e cena na festividade do Quilombo pequenina, um quarto e sala sem qualquer móvel e sem
do Pacoval”, concluída em 2018 sob orientação de Zeca banheiro. Apenas redes penduradas por todos os lados.
Ligiéro, para a finalização do mestrado pela Universidade Da janela, viam-se dois garotos dando banho em um
Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. O trabalho cavalo no rio – enquanto também se banhavam nas mes-
procurou relacionar a prática performativa e seus elementos mas águas. O Rio Curuá, passagem obrigatória para chegar
cênicos à realidade sociopolítica do quilombo amazônico. e sair do quilombo, é fundamental para a comunidade.
A performance, aqui, é entendida como a conjunção da Durante o primeiro almoço na grande mesa de ma-
dança com o toque da caixa de marambiré, dos pandeirões deira que ficava do lado de fora da casa de Tia Nazita, as
e do canto que os acompanha naquele contexto especí- perguntas sobre a festa do Marambiré foram inevitáveis.
fico e ritualizado, seus personagens, narrativas, figurinos, No entanto, naquele ano, pela primeira vez, a performance
adereços e cenários. havia sido cancelada. Isso aconteceu por falta de adesão
O que era para ser uma pesquisa acadêmica transbor- dos locais e pelo falecimento do Rei de Congo. Além disso,
dou para outras áreas do meu interesse. Vez por outra, a Rainha Mestra estava com o braço quebrado.
motivou a busca por informações sobre a festa do Maram- A tradição tinha sido suspensa devido, principalmente,
biré e o Quilombo do Pacoval. Nos primeiros anos após a ao pouco interesse da comunidade em participar, com ex-
conclusão do trabalho, pouca coisa aparecia na internet. ceção dos mais velhos. A decisão de procurar as senhoras
Hoje em dia, bastam alguns cliques e o acesso virtual e os senhores que sempre fizeram a performance acon-
acontece, como milagre, a um maior número de fontes, tecer, na intenção de manifestar apoio e, principalmente,
como a página do Quilombo no Facebook, criada em 2019. aprender com eles, acabou tendo efeito surpreendente – e
Na época da minha pesquisa, embora fosse inundada se fortalecendo no conceito de Drama Social, de Victor
por informações de outras partes do Brasil e do mundo, Turner (1996).
por meio do sinal das TVs abertas, a comunidade não Aquela ruptura se transformou em um momento de
tinha meios para se colocar na mesma proporção de sua crise imediatamente após a chegada do grupo de cario-
importância cultural. A comunicação era, basicamente, de cas. Foi a partir de uma demanda externa que a crise se
mão única. instalou: uma interrupção temporária que poderia se tornar
permanente, algo muito grave para os participantes mais
REVISITA antigos do Marambiré, dedicados a perpetuar a tradição.
Depois de uma viagem de barco, ônibus e moto a partir Até então, a comunidade parecia conformada com a impos-
de Santarém, era preciso atravessar a pé a ponte do Rio sibilidade de realizar a performance, mas talvez não tenha
Curuá para chegar à comunidade, sete anos atrás. Logo dimensionado a ameaça cultural que isso representava.
à beira do rio estava a casa de Tia Nazita, uma das mais À deriva pela perda das lideranças, os quilombolas

OS QUILOMBOS e sua cultura


não são muito bem conhecidos
até pelas autoridades que deveriam
ter informações precisas para
basear suas políticas públicas de apoio

134 ANCESTRAL
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

encontraram na chegada dos olhares de fora uma O temor de que a performance não se repetisse nos
oportunidade para uma nova mobilização, uma conversa próximos anos levou à decisão dos visitantes de documen-
pública sobre a ruptura que poderia ser fatal. No dia tar a festa, que aconteceria à noite. Até aquele momento,
seguinte, porém, algo inesperado surgiu, como uma existia um único trabalho acadêmico especificamente sobre
espécie de reparação, no sentido de buscar resolver a o folguedo, a dissertação de mestrado da pesquisadora
crise: logo de manhã cedinho, um menino avisou que, a Lygia Teixeira intitulada “Marambiré: o negro no folclore
pedido dos mais velhos, a festa aconteceria naquela noite. paraense”, aprovada pela Universidade Estadual do Pará
A presença dos visitantes impulsionou a comunidade a (UEPA) em 1988 e no ano seguinte transformada em livro.
performar sua tradição, que tanto orgulho dá ao Pacoval. Além deste trabalho acadêmico, havia duas referências
A decisão sobre o cancelamento foi revogada. fílmicas: os documentários “Rituais e Festas de Quilombo
O neto do antigo Rei de Congo tinha aceitado substituir – Marambiré”, de 2011, dirigido por Eduardo Souza como
seu avô e, com isso, a festa poderia acontecer novamente. parte de um projeto que engloba outras quatro manifesta-
Sem tanta pompa, isso é certo, já que não teriam tempo ções culturais de quilombos; e “Marambiré – corporalidade,
para organizar tão bem, como nos outros anos, os figurinos, música e fé”, dirigido por André dos Santos e vencedor
os instrumentos, a coreografia, a procissão. A crise estava do edital Rumos Itaú Cultural, que estreou em novembro
sendo superada. de 2017 no SESC Boulevard, em Belém. Este segundo
Por acontecer ao longo de todo o ano, o Marambiré se documentário foi filmado no ano de 2016, após nossa ida
encontrava em estado de latência, o que justificava seu ao Pacoval.
retorno súbito. A decisão resultaria numa performance Posteriormente, de acordo com Luiz Ismaelino Valente,
diferente da usual, menos estruturada. em entrevista cedida por e-mail para a conclusão da dis-
sertação, o Marambiré resistiu ao abalo sofrido em 2016,
quando quase não aconteceu. Nos anos de 2017 e 2018,

O
voltou a ocorrer com preparação apropriada, cortejo com-
pleto e toda a vontade de compartilhar com a comunidade
primeiro ponto dessa ação reparadora foi a seus cantos, toques e danças.
substituição do Rei de Congo por seu neto, acionando o Mais tarde, o cineasta quilombola André dos Santos foi
dispositivo tradicional de sucessão familiar (VASCONCE- ao Pacoval para filmar seu documentário, já com patrocínio
LOS, 2007). A segunda questão foi a integração de um do Itaú Cultural. Isso confirmou que havia, sim, um grande
jovem ao núcleo da performance tradicional, o que amplia interesse na cultura do quilombo, ainda que, infelizmente,
as possibilidades de mobilização da comunidade como um ela fosse desconhecida da maioria dos brasileiros.
todo, por trazer para a festa um setor que, na maioria dos
casos, permanece crítico ao que é “antigo”. À DERIVA
O próprio Rei de Congo, o falecido Joaquim Carolino Os quilombos e sua cultura não são muito bem conhe-
Monteiro, confirmou, em entrevista de 2010, que a morte cidos até pelas autoridades que deveriam ter informações
de um deles poderia ser suficiente para que o Marambiré precisas para basear suas políticas públicas de apoio. Havia,
parasse para sempre. Seu medo era, exatamente, desapa- na época da pesquisa, cerca de 3.500 comunidades qui-
recer sem conseguir passar adiante, de forma consistente, lombolas mapeadas no Brasil, de acordo com a Fundação
seu conhecimento: Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, mas o mesmo
site esclarecia que, segundo outras fontes, os quilombos
“Antigamente era mais fácil, hoje as pessoas não brasileiros podiam chegar a cinco mil.
querem mais saber da parte cultural. Hoje, pra pessoa A dúvida hoje é menor, já que há mais disponibilidade de
tirar o seu tempo pra passar, pra ensinar pras crianças, informações e entidades mobilizadas a apoiar os quilombos,
ela vai dizer: ‘Não, vou me ocupar mais ali, porque eu embora o diagnóstico de carências continue o mesmo. A
tenho que fazer minha farinha, eu tenho que pegar notícia “País tem mais de 6 mil quilombos e ignora maio-
meu peixe… ’ Você tá entendendo? A gente quer tanto ria”, publicada pelo jornal Folha de São Paulo (21/03/2023),
ensinar pra nossa juventude, mas infelizmente, se não esclarece que são ao menos seis mil comunidades, das
aparecer um substituto, na hora em que Miguel morrer quais apenas 478 oficialmente reconhecidas.
pode parar, o Nelson morrer pode parar, o Bigó morrer Mesmo regularizado pelo Instituto Nacional de Co-
pode parar, a Alcideia, a Maria Pimentel...” lonização e Reforma Agrária (Incra) em 20 de novembro

ESPECIAL ABRIL 2023 135


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de 1996, 20 anos depois a comunidade do Pacoval ainda sofria as


consequências de problemas estruturais, como falta de saneamento
básico e conflitos recorrentes com fazendeiros. Isso levava a outras
questões socioambientais, entre elas, o assoreamento do importante
Rio Curuá, devido à construção de uma barragem irregular pelo dono
de terras e produtor de açaí em larga escala conhecido como Macário.

À MERCÊ DA SORTE
Pessoas escravizadas foram levadas ao Baixo Amazonas para
trabalhar, principalmente, na criação de gado e no plantio de cacau
em Óbidos e Santarém, a partir da segunda metade do século XVIII
(FUNES, 1995). Já nas primeiras décadas da implantação das fazendas,
começaram a se formar quilombos no alto da cabeceira do Rio Amazo-
nas, acima das cachoeiras. Os escravizados fugiam pelos rios à noite
e, então vivendo nos quilombos, passavam a enfrentar a repressão
dos senhores e do governo.

“Vale destacar que o contato dos quilombolas com a sociedade


não era marcado apenas pela repressão. Os quilombos eram
também visitados por religiosos, por cientistas e por comer-
ciantes. Durante todo o período da escravidão, os quilombolas
comercializaram seus produtos agrícolas diretamente com os
comerciantes nas cidades da região (como Óbidos) ou com os
regatões que subiam os rios em direção aos quilombos. Os qui-
lombolas produziam mercadorias importantes para o comércio
local, como a mandioca, o tabaco, o cacau e algumas “drogas
do sertão”. Desta maneira, se inseriram nas sociedades locais,
constituindo redes de solidariedade, conquistando sua autonomia
e forjando uma cultura afro-amazônica através da reestruturação
de sua vida socioeconômica.” (FUNES, 1995)

Tantos anos após a abolição da escravatura, ainda havia insegurança


em relação à permanência nas terras. Maria da Cruz Assis, a Dona Cru-
zinha, compositora, 78 anos, nos contou sobre os conflitos no Pacoval:

“Quando demos fé eles estavam entrando aqui. Foi aquela briga.


E eu não tinha parado, eu andei por muitos lugares. E pra mim não
tinha noite, não tinha dia. Tava tendo um conflito mesmo, quase
que acontece derramamento de sangue. (...) Eles estavam devas-
tando a mata, o pessoal entrou. Nesse tempo não tinha telefone,
eu nem sabia falar no telefone. Aí eu fui ver uma colega lá na cidade
e ela ligava pra São Paulo, Brasília, Fortaleza, ligava pro CEDENPA,
né, em Belém, uma associação dos negros do Pará… Tudo por
aí, pra onde me chamavam e eu ia lá falar sobre esse assunto,
esse perigo. Por isso “braço a braço, ombro a ombro”, nós nos
unimos. (...) Aí fizemos o primeiro Encontro Raízes Negras, que
foi nos 100 anos de Abolição. Nós festejamos aqui, começou no
Pacoval. Nesse encontro veio tudo quanto é negro da redondeza,
todos estavam aqui.”

136 ANCESTRAL
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ESPECIAL ABRIL 2023 137


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Possuir um título da terra, porém,


não basta. O governo precisa dar
suporte técnico e jurídico para que,
após a titulação, OS QUILOMBOLAS
não fiquem à mercê da sorte

138 ANCESTRAL
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O Encontro Raízes Negras foi fundamental para que os passou a ser procurado por jornalistas e pesquisadores para
quilombos amazônicos conseguissem, pouco a pouco, a dar entrevistas e, apesar da credibilidade que ganhou, não
titulação de suas terras. Em parceria com os quilombolas compartilhava o modo de fabricar o “remédio dos pretos”:
e com entidades como a Paróquia de Oriximiná e a Asso- era uma tradição familiar. Como seus filhos e netos não
ciação Cultural Obidense (ACOB), o Centro de Estudos e se interessavam em aprender, ele temia que, ao morrer,
Defesa dos Negros do Pará (CEDENPA) promovia o evento os quilombolas passassem a sentir falta dessa mistura
desde 1988, revezando o local entre os quilombos. Dessa de ervas que tão bem fazia à saúde. Inclusive porque o
forma, criou-se uma estratégia de fortalecimento mútuo, hospital mais próximo ao Pacoval ficava em Alenquer, a
uma luta conjunta pelos direitos dos quilombolas. aproximadamente três horas da comunidade.
Para chegar lá, era necessário atravessar o Rio Curuá
de barco, esperar por um ônibus que só saía uma vez por

A
dia e, em aproximadamente três horas de estrada de terra,
alcançar o centro da cidade. O acesso a uma farmácia,
pós sete anos de mobilizações, no dia 20 de supermercado ou caixa eletrônico também era precedido
novembro de 1995, o primeiro quilombo brasileiro a ter por esta mesma viagem.
suas terras tituladas foi Boa Vista, em Oriximiná, Pará, o Dentro do Quilombo havia duas ou três vendinhas e
que impulsionou as outras comunidades a seguir pressio- alguns bares – muito comum em tribos indígenas e qui-
nando o Estado pelo mesmo reconhecimento. “Foi um dos lombos, o alcoolismo não era raro no Pacoval. A violência
maiores motivos [a titulação da Boa Vista]. A gente viu essa tipicamente urbana, porém, não existia. Não ocorriam assal-
necessidade de lutar por um direito que era nosso, e que tos no Pacoval, onde o perigo era outro: invasões de terras.
até então a gente desconhecia”, disse Verinha Oliveira dos “Aqui nós todos somos parentes”, afirmou Dona Cru-
Santos, do Quilombo do Cuecé, professora e uma das lide- zinha. O sentimento de segurança é verdadeiro, inclusive
ranças que participaram da luta pela titulação do território. para os visitantes. É como se uma única família habitasse
Possuir um título da terra, porém, não basta. O gover- aquele espaço e abrisse sua casa e seu grande quintal,
no precisa dar suporte técnico e jurídico para que, após a com suas belezas e incompletudes, a quem chegasse
titulação, os quilombolas não fiquem à mercê da sorte. de fora.
“Esse rio é minha rua” – diz a música de Paulo André e
Ruy Barata – e, no Quilombo do Pacoval, a avenida principal PERFORMANCE E APRENDIZADO
é o Rio Curuá, porta de acesso à comunidade. A falta de A maneira própria de enxergar o mundo é também
encanamento adequado, problema comum aos quilombos, fundada na sociedade à qual pertencemos, o “corpo so-
causava doenças recorrentes, como infecções intestinais cial” ao qual nosso “corpo individual” se integra. No caso
e verminoses. específico do Marambiré, só existe um Rei de Congo, que
Outro perigo que enfrentavam eram os animais se move daquela maneira porque há também um Contra-
peçonhentos. Ainda que, graças à tradição passada de mestre. Há Rainhas porque estas têm relação direta com
geração a geração, o Pacoval fosse conhecido por seu os Valsares. Entender, pois, como funciona a dinâmica
“contraveneno” ou “remédio dos pretos”, uma espé- coletiva – na cultura e na sociedade – torna-se fundamental
cie de xarope de ervas medicinais. Em entrevista para para a compreensão de sua performance. Escreve Denise
a pesquisa, Seu Carmito disse que o preparo curava Zenicola (2014, p. 96):
qualquer enfermidade – de problemas de pele a dores
de estômago. Sua especialidade, no entanto, era, como “As formas comportamentais remetidas ao corpo têm
o nome sugere, o efeito antiofídico. Pessoas picadas por referências tanto do plano espiritual quanto do social;
cobras ou insetos venenosos buscavam o curandeiro e um corpo ritual constrói-se em paralelo a um corpo
ele estava sempre a postos para oferecer o tratamento. O coletivo. (...) Na contínua criação do corpo coletivo, e
problema é que, segundo ele, ninguém mais sabia fabricar entendemos a expressão “criação do corpo coletivo”
a poção no quilombo. Faltava interesse dos mais jovens como as formas com as quais um corpo individual se
e o fato de a receita ser transmitida oralmente dificultava relaciona com o grupo social, o processo de aprendizado
sua perpetuação. da tradição, trajetória e técnica tem no mecanismo disci-
Quando o Instituto Butantan de São Paulo reconheceu plinar sua eficiência e é atravessado por procedimentos
o valor medicinal do “contraveneno” de Seu Carmito, ele de acompanhamento e vigilância dos mais antigos.”

ESPECIAL ABRIL 2023 139


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Ramon Santana de Aguiar (in LIMA, 2008, p. 225-226) perda. (...) Transportam valores estéticos e cognitivos,
se detém sobre o espaço da memória nas artes cênicas, transcriados por meio de estratégias de ocultamento
entrando em diálogo com os demais autores: e visibilidade, procedimentos e técnicas de expressão
que, cinética e dinamicamente, modificam, ampliam e
“O espaço mnemônico, como aqui proposto, está com- recriam os códigos culturais entrecruzados na perfor-
preendido na perspectiva da memória em sua relação mance e âmbito do rito, em cujo contexto a realidade
temporal e espacial e é estabelecido não somente no cotidiana, por mais opressiva que seja, é substituída
plano individual, mas, sobretudo, na esfera do coletivo: e alterada, na ordem simbólica e mesmo na série
a dimensão da memória social que é deflagrada nos histórico-social.” (MARTINS, 2003, p. 71-72)
espectadores durante a assistência da encenação e
depois dela, nos desdobramentos possíveis. (...) É a Por tal poder de transformação da realidade cotidiana
percepção da coletividade e do pertencimento no qual é que se deve dedicar atenção às manifestações culturais
todos os envolvidos – palco e plateia – estão inseridos. tradicionais, como a festa do Marambiré. Para Câmara
(...) É nele – espaço mnemônico – que se dá a tonalidade Cascudo, a tradição é a ciência do povo; ciência impregnada
de coletivo, de social e de político no fazer teatral.” na memória do corpo e da voz.
Nas línguas bantas, o verbo “tanga” designa, ao mes-
O Marambiré, como tantas outras expressões culturais mo tempo, escrever e dançar. E dele deriva o substantivo
brasileiras, acontece no espaço mais inclusivo de todos: “ntangu”, uma forma de se referir ao tempo. Podemos
a rua. O caráter procissional não apenas permite que as deduzir que, aqui, não há hierarquia entre a memória do
pessoas assistam à manifestação, mas as convida a fazer texto e a do corpo, estando a letra caligrafada em papel bem
parte dela. E, assim, a performance religiosa ganha forte próxima ao corpo em performance (MARTINS, 2003, p. 81).
função artística e social, de festa e de espetáculo – “a igreja
oferecia a ideia de enredo e a forma do desfile e o povo “O banto, quando encontra um estrangeiro, não lhe
miúdo entrava com o carnaval” (TINHORÃO, 2006, p. 22). pergunta “Quem és?”, mas “O que danças?” Para
Oswald de Andrade (1924), por sua vez, usou outras um africano, o que um homem dança é sua tribo, seus
palavras: “Não fomos catequizados, fizemos foi carnaval”. costumes, sua religião, os grandes ritmos humanos
de sua comunidade.” (Roger Garaudy apud SANTOS,
2007, p. 128)

N as performances afro-brasileiras, a reinvenção


é fundamental – seja por uma repressão externa, seja pela
É necessário refletir, principalmente, sobre “o perigo
de uma história única” (ADICHIE, 2019): aquela contada
por quem vence as guerras, pelos que têm poder político
chegada de novas gerações e, com elas, formas inovadoras e bélico. Antes da Lei 10.639, de 2003, não havia, nas
de se relacionar com a sociedade. É possível observar, no escolas públicas brasileiras, obrigatoriedade do ensino de
Marambiré, a marca histórica dos atravessamentos de História e Cultura Afro-Brasileira, o que contribuía para a
diferentes culturas e sistemas simbólicos em uma relação exclusão social de 56% da população nacional, porcen-
dialógica aparente na performance. Ao mesmo tempo, tagem que se autointitulou preta ou parda no censo do
mudanças estruturais ocorrem como forma de “atualiza- IBGE em 2021.
ção” do ritual, com a chegada dos mais jovens e também Para incluir todas as histórias, é necessário ler as pala-
graças ao acesso às tecnologias de difusão de informação. vras, observar os corpos, ouvir as vozes faladas e cantadas,
dos jovens e dos idosos. Afinal, como diz o provérbio
“As performances rituais afro-brasileiras, em todos os africano, “cada idoso que morre é uma biblioteca que se
seus elementos constitutivos, oferecem-nos um rico incendeia”.
campo de investigação, conhecimento e de fruição. Por
meio delas podemos vislumbrar alguns dos processos PRECONCEITO E RESISTÊNCIA
de criação de muitos suplementos que buscam cobrir as Muitas pessoas ainda sentem que é difícil dar lugar
faltas, vazios e rupturas das culturas e dos sujeitos que (e preferência) às vozes não-hegemônicas. Há, de fato,
aqui se reinventam, dramatizando a relação pendular menos informação em circulação a respeito delas, mas
entre a lembrança e o esquecimento, a origem e sua isso está mudando.

140 ANCESTRAL
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O MARAMBIRÉ,
como tantas outras expressões
culturais brasileiras, acontece
no espaço mais inclusivo
de todos: a rua

ESPECIAL ABRIL 2023 141


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Quando essas vozes estiverem mais presentes nas Apesar das dificuldades de inserção e adesão ao
bibliografias das escolas e universidades e, assim, condu- academicismo eurocêntrico, de maneira geral, existem
zirem os debates em pé de igualdade com os franceses, diversos grupos de resistência cultural dentro do ambiente
ingleses e alemães, teremos acesso a uma discussão universitário, como é o caso dos fluminenses Núcleo de
intercultural – que não apenas justapõe culturas distintas, Estudos das Performance Afro-Ameríndia (NEPAA) e La-
mas as torna porosas para que se influenciem com res- boratório de Pesquisas em Oralidade (Laboral) - UNIRIO,
peito e autonomia, como diz o relatório da Unesco sobre Companhia Folclórica do Rio e Laboratório de Estudos
a diversidade cultural, publicado em 2009. Africanos (LeÁfrica) - UFRJ, Laboratório de Estudos das
O relatório explica que a interculturalidade – termo que Diferenças e Desigualdades (LEDDES) - UERJ, Núcleo de
passou a substituir a palavra “aculturação”, utilizada pela Estudos Africanos (NEAF) e Laboratório de História Oral e
Antropologia a partir dos anos 1940 – é a relação simétrica Imagem (LABHOI) - UFF.
entre, por exemplo, a cultura indígena e a cultura ocidental, Coordenados por professores dos programas de pós-
que visa à devolução da dignidade pisoteada dos indígenas -graduação em Memória Social e Artes Cênicas da UNIRIO,
em diversos campos, das artes às religiões. o NEPAA e o Laboral propuseram, em 2016, cursos de
Não se trata de integrar as culturas, mas de conviver guarani e yorubá. As turmas ficaram cheias e isso nos
na diversidade, reforçando a autonomia cultural, comba- levou à reflexão de que há, sim, interesse no aprendizado
tendo preconceitos e modificando atitudes em um diálogo de línguas não-hegemônicas e, sobretudo, brasileiras.
respeitoso entre culturas. Isso ainda é uma tarefa a ser O yorubá foi incorporado à cultura brasileira através das
realizada, um projeto democratizador, que busca aprovei- pessoas que vieram escravizadas do oeste africano – em
tar as contribuições das outras culturas sem renunciar às especial da região que vai da Nigéria à Costa do Marfim.
próprias tradições. O guarani, por sua vez, surgiu no sul da América Latina,
mais especificamente onde hoje se localizam a Argentina,
o Paraguai, a Bolívia e o Brasil.
Chamamos de “línguas minoritárias” as que, talvez,

G
tenham sido minorizadas. Outro preconceito ocorre por
meio da generalização, que atropela as formações culturais
raças, em parte, à internet – que, apesar de tão distintas dos povos bantu, jêje, ewé, fanti, ashanti, mina,
espalhar notícias falsas e polarizar opiniões, tem papel yorubá, entre tantos outros.
importante na tomada de consciência dos mais jovens –,
muitos já não escutam passivamente que alguém “des-
cobriu” uma terra onde viviam tantas pessoas, mais tarde UMA VOLTA NO TEMPO
dizimadas pelo tal “descobridor”, quando, nas escolas, se Toda vez que eu dou um passo
fala sobre a Descoberta das Américas. O mundo sai do lugar (Siba)
Todorov, que escreveu sobre isso em “A conquista da
América: a questão do outro” (2010), resume: Os passos do Marambiré mexeram com o meu
mundo, de alguma maneira. Além da pesquisa acadê-
“Pode-se medir nosso grau de barbárie ou civilização mica para o mestrado da UNIRIO, depois visitei outros
por como percebemos e acolhemos os outros, os di- quilombos, como o São José da Serra e o Campinho da
ferentes. Os bárbaros são os que consideram que os Independência, no estado do Rio, e continuei interessada
outros, porque não se parecem com eles, pertencem nas performances afro-brasileiras. Após a conclusão da
a uma humanidade inferior e merecem ser tratados dissertação sobre o Marambiré do Pacoval, segui viagem
com desprezo ou condescendência. Ser civilizado rumo a um segundo mestrado, onde pesquisei o samba
não significa haver cursado estudo superior ou ter lido em Tóquio, no Japão.
muitos livros (...): todos sabemos que certos indivíduos Sempre quis saber se a festa do Marambiré continuava
com essas características foram capazes de cometer acontecendo, mas, de longe, não conseguia muitas infor-
atos de absoluta barbárie. Ser civilizado significa ser mações. Agora, não é difícil encontrar algumas novidades
capaz de reconhecer plenamente a humanidade dos pela internet. Edilton Pacoval, o jovem presidente da As-
outros, ainda que tenham rostos e hábitos diferentes sociação Comunitária de Negros do Quilombo Pacoval de
dos nossos.” Alenquer (Aconquipal), está no Youtube, no Facebook, no

142 ANCESTRAL
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Instagram e em reportagens sobre a atuação de jovens A melhor e mais importante das notícias que ele me
lideranças quilombolas em defesa de suas comunidades. deu foi a de que a festa do Marambiré continua aconte-
São notícias sobre a questão da terra, do desenvolvi- cendo. A renovação de lideranças, como o próprio Edilton
mento de uma economia local mais sustentável e justa, do Pacoval, o advento da internet no quilombo, o engaja-
além do fato de Edilton Pacoval ser o primeiro quilom- mento da universidade local, o apoio de organizações não
bola do Alenquer a chegar à universidade. O acesso à governamentais nacionais e estrangeiras e do governo do
educação superior amplifica a voz dele e a faz chegar Pará ajudaram a resgatar e reforçar a tradição cultural. São
mais longe. Foi assim que conversamos, neste início de ventos de boas novas.
2023, pelo WhatsApp, superando as barreiras impostas
pela distância física. tainalouven@gmail.com

BIBLIOGRAFIA

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: SANTOS, Cláudio Alberto dos. Tambores incandescentes, corpos em êxtase –
Companhia das Letras, 2019 técnicas e princípios bantus na performance ritual do Moçambique de Belém.
Rio de Janeiro: UNIRIO, 2007.
ANDRADE, Oswald de. “Manifesto da poesia Pau-Brasil”. In: Correio da Manhã,
edição de 18 de março de 1924. TINHORÃO, José Ramos. Cultura popular: temas e questões. São Paulo:
Editora 34, 2006.
CASCUDO, Luís da Câmara. Tradição, ciência do povo – pesquisas na cultura
popular do Brasil. São Paulo: Global, 2013. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
FUNES, Eurípedes. “O Pacoval do Marambiré, do contraveneno, Pacoval dos
mocambeiros”. In: Nasci nas Matas, Nunca tive senhor – História e Memória TURNER, Victor. Schism and continuity in an African society. Manchester:
dos Mocambos do Baixo Amazonas. São Paulo: USP, 1995. Manchester University Press, 1996.

LIMA, Evelyn Furquim Werneck (org). Espaço e Teatro: do edifício teatral à VASCONCELOS, Juliana de. Congado: uma celebração do hibridismo afro-
cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. -brasileiro. Três Corações: UninCor, 2007.

MARTINS, Leda. “Performances do tempo e da memória: os congados”. In: O ZENICOLA, Denise. Performance e Ritual: a dança das Iabás no Xirê. Rio de
Percevejo, n. 12, p. 68-83. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2003. Janeiro: Mauad X / FAPERJ, 2014.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

SOBRE A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


A MUDEZ QUE ASSOLA AS ARTES E SEU IMPACTO

146 SUSSURRO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Eduardo Argüelles
Cardiologista e artista plástico

DO SILÊNCIO
MUNCH
V ARD
DE ED NIDADE
O DER
S-M
À PÓ

ESPECIAL ABRIL 2023 147


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

148 SUSSURRO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

E ste artigo foi originado por uma curiosidade, por um questionamento: qual
seria a obra de arte que melhor expressaria o mundo atual, este em que vivemos? Creio
que haveria, se não consenso, provável maioria se alguém propusesse “O Grito”, de
Edvard Munch.
Para entender tal ligação, é necessário discutir, com algum detalhe, cada um dos
personagens envolvidos: o artista, a obra, o ser que somos e o mundo em que vivemos,
a pós-modernidade.

O ARTISTA
Edvard Munch foi um pintor, gravador e desenhista nascido em meados do século
XIX (1863) em Adalsbruk, pequeno lugarejo próximo a Oslo, no que era, então, o Reino
Unido da Suécia e Noruega. Filho de médico militar de fervorosa religiosidade, Munch
foi orientado a seguir a carreira de engenheiro, mas logo desistiu para se dedicar intei-
ramente à pintura e à arte. Fortalecia a decisão, o fato de Munch ter convivido com a
arte e a sua história desde cedo, através de familiares próximos.
O artista tornou-se órfão de mãe aos cinco anos, perdendo sua irmã primogênita e
preferida, Johanne Sophie, quando eram ambos ainda adolescentes. Posteriormente,
viu falecer, ainda jovem, uma outra irmã e conviveu com a insanidade mental de uma
terceira por toda a vida, fechando o círculo familiar de perdas com a morte do pai. De
compleição frágil e vítima de enfermidades, Munch sofreu com a doença, a frustração,
a dor e a morte por toda a juventude, o que lhe causou reflexos graves como a adição
ao álcool, angústia, ansiedade, depressão e medo pelo restante de sua existência.
Em 1880 iniciou-se na pintura, viajando a Paris em 1885 e 1889. Nesta segunda ida,
como fruto de premiação artística, permanecendo na França por cerca de quatro anos.
Em 1892 viajou para Berlim, local em que desenvolveu seu estilo mais marcante, logo
passando a fazer parte do círculo mais prestigioso de artistas e intelectuais da cidade.
Entre 1880 e 1885, ainda na Noruega, Munch desenvolveu rápido aprendizado na Es-
cola de Artes e Ofícios de Oslo, produzindo sob a influência do estilo dos impressionistas
franceses. Tal prática se acentuou, naturalmente, em Paris, o que fez com que Munch
seja citado, equivocadamente, em algumas biografias, como pintor impressionista.
Pinceladas largas e traços sequenciais em obras em pastel apresentam semelhanças
com o trabalho do grupo francês, havendo, inclusive, alguns em que Munch parece
sutilmente se inspirar no divisionismo de Signac, ao pintar paisagens de sua terra natal,
da França e da Alemanha. Importante salientar, no entanto, que ainda antes de viver em
Paris, Munch já ensaiava os primeiros passos na temática e no estilo que marcaria a sua
obra: emoções e sentimentos humanos, em particular os seus próprios.

ESPECIAL ABRIL 2023 149


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

É de 1885-86 o primeiro quadro, de uma série de seis,


em que Munch retrata Sophie sentada e com a cabeça
acomodada em um travesseiro, vítima da tuberculose.
Enfermidade que havia acometido fatalmente a mãe do
artista e que levaria também Sophie à morte. Munch
continuou pintando versões da "Menina doente", mesmo
após a morte de Sophie, utilizando apenas a lembrança da A OBRA: O GRITO
cena, demonstrando como o fato real havia impregnado de
forma indelével e dolorosa a mente do artista. “O Grito”, obra célebre de Edvard Munch, não é peça
Na década de 90 do século XIX e na primeira década única, mas uma série de cinco trabalhos compostos por
do século seguinte, Munch atravessa seu período mais quatro quadros e uma litogravura. Esta última feita em 1900
fértil e original, ao expressar, em imagens, sentimentos e que deu origem a várias cópias em papel. Os quadros
recolhidos do seu inconsciente mais profundo, frutos das foram realizados sobre tela ou cartão, utilizando tinta a óleo,
experiências dolorosas de que era vítima. têmpera ou pastel, nos anos de 1893,1896 e 1902. Como
É desse período a maioria de suas obras mais conhe- em outras ocasiões – “Menina doente”, “Mulheres na
cidas e celebradas: “Death in the sickroom” (1893), “As ponte”, “Meninas na ponte”, “O beijo” – as repetições de
mãos” (1893), “Ansiedade” (1894), “Puberdade” (1894- “O Grito” são bastante semelhantes entre si, não sendo
95), “Vampiro” (1895), “Melancolia da noite” (1896), claras as razões para o fato, relativamente raro entre os
“Separação” (1896), “A voz” (1896), “O beijo” (1897), grandes nomes da pintura mundial.
“Herança” (1897), “Metabolismo” (1898-99), “Autorretrato Dois trabalhos da série “O Grito” não tinham, origi-
no inferno” (1903), “Inveja” (1907), além das cinco versões nalmente, esse nome, mas termos que expressavam,
de O grito, tema deste texto. literalmente, angústia e desespero.
Também nesse período a história registra a pior fase São muitas as teorias acerca da origem das paisagens
do estado psicológico do artista, com o aprofundamento e da figura humana retratadas na série; desde quadros de
do uso do álcool e episódios de delírio e alucinação, culmi- Gauguin e Van Gogh, até imagens arqueológicas. Parece
nando com sua internação, durante meses, em hospital mais provável que, pelo menos na primeira versão (1893),
psiquiátrico, entre 1908 e 1909. Munch tenha sido vítima de alguma alucinação provocada
A partir de 1910, sua obra perde em relevância, ao pelo álcool. Exausto, teria vislumbrado algo como “sangue
abordar temas de menor impacto, em particular, retratos, e línguas de fogo” acima do fiorde de Oslo. Segundo a
autorretratos, cenas do cotidiano e inúmeras paisagens, descrição do próprio artista, além da visão, teria ocorrido a
em especial as de Asgardstrand, localidade a sudeste da percepção fantasiosa e auditiva de um “grito infinito” per-
Noruega e ao sul de Oslo, junto à costa do fiorde de Oslo. passando a natureza. Após pintar o fundo sob tal sensação,
Esse e outros fatos demonstram que, mesmo nos longos o artista teria pintado a figura humana em primeiro plano,
períodos passados fora da Noruega, Munch sempre re- expressando nela, claramente, a emissão de um grito. Na
tornava ao seu país de origem para, finalmente, ali passar realidade, o grito vinha da intimidade, talvez inconsciente,
seus últimos vinte anos de vida, quatro dos quais sob a do próprio Munch.
brutalidade da bota nazista que invadira a Noruega em 1940. Em toda a série, assim como em outros trabalhos de
Munch faleceu em Oslo, em 1944, após ter salvo gran- caráter expressionista, Munch utilizou cores fortes para
de parte da sua extensa obra da intolerância predatória do expressar sentimentos, comportamentos e emoções, sem
nazismo, que a considerava como parte integrante de uma preocupação maior com a imagem real, em interpretações
“arte degenerada”. Apesar dessa e de outras avaliações absolutamente pessoais. A figura humana que emite o
equivocadas, Munch pode ser considerado como um dos grito é despojada de detalhes. É algo próximo a uma figura
maiores nomes da arte mundial recente, principalmente por pintada por uma criança ou um adolescente, mas transmite
ter sido o principal precursor do expressionismo, movimen- forte impressão de angústia, ansiedade, desespero, dor,
to que extrapolou o campo da pintura para se manifestar, pânico e perplexidade. Todo o conjunto é sinuoso, defor-
também ricamente, na escultura, arquitetura, literatura, mado, antecedendo o recurso da deformação utilizado nos
música, dança, assim como no teatro e no cinema. trabalhos expressionistas que viriam depois.

150 SUSSURRO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“O Grito” é a obra mais conhecida de Munch, mas


em vários outros trabalhos o artista norueguês revela sua
genialidade ao transformar em imagens emoções, instintos
e sentimentos. Sua obra catalogada abrange cerca de 1.800
trabalhos, sendo a Galeria Nacional de Oslo e o Museu COMUNICAÇÃO, INFORMAÇÃO E DEFORMAÇÃO
Munch, também em Oslo, os locais em que se concentra Caberiam aqui várias reflexões ao nos debruçarmos
a maioria do seu acervo disponível à visitação. O enorme sobre os fenômenos que determinaram e determinam o
prestígio atual do artista e o valor comercial de suas obras uso da tecnologia da informação como indutora da cons-
explicam o roubo e o assalto de dois exemplares da série trução de um projeto hegemônico que atingiu todas as
“O Grito” nos dois museus citados. O mesmo se aplica à áreas fundamentais da vida em sociedade, como a ética,
compra, em 2012, por 120 milhões de dólares, do único a economia e a política. Modificando ou introduzindo várias
exemplar da série em mãos de colecionador particular. práticas culturais, sejam as de cunho pessoal, a cultura
Seu “grito” continua vivo e, mesmo sem som, tirou do anima, sejam as de cunho coletivo, a cultura antropológica.
silêncio o sofrimento e a dor que o artista sentia, transfor- Hábitos, costumes e moral de caráter globalizante, mas
mando uma imagem simples e estática no ícone do que com identidade única e bem definida.
se poderia chamar de o “grito do silêncio”. Antes do advento da pós-modernidade, do ponto de
vista da criação, circulação e consumo de produtos cultu-
rais, dois tipos bem definidos poderiam ser reconhecidos:
os produtos destinados às elites e aqueles oferecidos às
O MUNDO massas populacionais periféricas.
EM QUE VIVEMOS A comunicação doméstica, de baixo conteúdo, des-
provida de imagem e passiva, já produzida pelo rádio, foi
PÓS-MODERNIDADE - MANIPULAÇÃO, PASSIVIDADE, VIGILÂNCIA enormemente transformada e ampliada em natureza,
O grande Império ocidental (e ainda mundial) capitaneou qualidade, audiência e conteúdo com o aparecimento da
extraordinário desenvolvimento científico e tecnológico que televisão, gerando o acesso simultâneo e quase universal
atingiu várias e importantes áreas de interesse humano, das populações urbanas ao novo meio eletrônico, inician-
como saúde, educação, segurança, mobilidade urbana, do um processo de mescla social do consumo cultural
comunicação à distância e acesso à informação imedia- até então inexistente. Nesse período, ocorreu também o
ta. Todas elas de certo modo contaminadas pela visão desenvolvimento rápido e a oferta diversificada de várias
mercantilista e o papel secundário destinado aos valores outras mídias, cada uma com sua linguagem própria, carac-
humanísticos, perfil característico da pós-modernidade e terizando um amplo e novo processo de convivência das
do seu sustentáculo teórico, o neoliberalismo econômico. mídias e da desejada e sutilmente imposta modelagem
Enquanto isso, multiplicaram-se e se tornaram mais cultural através delas.
visíveis os preconceitos que sustentam a pobreza, a fome, A disponibilidade tecnológica, instrumental-operacional,
a homofobia, a misoginia, o armamentismo, o fanatismo dos meios de comunicação culminou com o desenvolvi-
político, a intolerância religiosa, a devastação ambiental, o mento da rede mundial de computadores, a internet, e a
trabalho escravo, o racismo e as múltiplas intervenções sua utilização posterior para a comunicação interpessoal,
militares que continuam a vitimar centenas de milhares de doméstica, informal e instantânea através das redes sociais.
inocentes em significativa parte do mundo. Nele, o homem A comunicação transportada pelas diversas mídias no
privilegiado e supostamente moderno desfrutando de espaço cibernético e atingindo, simultaneamente, amplas
inesgotável tecnologia, porém passivo, dataficado, vigiado, camadas elitizadas e periféricas de populações globalizadas.
manipulado, silencioso e enganado. Mesmo com o aparecimento dos canais fechados de
televisão e das plataformas de uso mais restrito, teorica-
mente destinados a um público mais “seleto”, a redução
do custo das assinaturas e dos acessos deixou as novas
tecnologias ao alcance do grande público, capaz de absorver
programação extremamente diversificada e orientada ao
entretenimento digital.

ESPECIAL ABRIL 2023 151


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de experiências influenciadas por fatores ideologicamente


A partir de tão complexo, torrencial e sedutor apelo, o manipulados pelos emissores da comunicação”. A esses
mundo vem vivenciando enorme transformação em seu fatores de manipulação se somam as chamadas influên-
perfil cultural, adotando hábitos e costumes radicalmente cias naturais como família, amigos, professores, valores
diversos dos anteriores, em acentuado e rápido processo pessoais hierarquizados, religião e ambiente de trabalho,
de perda de identidade e de homogeneização cultural. permitindo entender a criação e solidificação de mecanis-
Obrigado a operar instrumental tecnológico em constan- mos internos que resultam em inarredáveis interpretações
te e autoritária atualização, podemos descrever o homem “individuais” da realidade, em “modelos mentais petrifi-
moderno como um ser dependente, perplexo, solitário, cados, em sua maioria forjados de modo inconsciente”.
silencioso, “adaptado” e híbrido em frente a uma tela lumi- Crenças, generalizações e preconceitos capazes de originar
nosa, seja ela de computador, televisão ou telefonia celular. enganosa interpretação pessoal da realidade. É a conhecida
“minha opinião”, não necessariamente submetida ao fato,
à realidade e ao compromisso prioritário com a verdade. Na

D
prática, a obediência inconsciente ao grito sutil de quem
manda e o silêncio acomodado de quem deve obedecer.
Grito sutil da comunicação de massa que visa promover
a informação eficiente através da comunicação não violen-
ta, ou seja, aquela na qual se constrói a suposta informação
esde o advento ampliado da fotografia, com empatia e estratégias amparadas nos interesses de
nos anos finais do século XIX, a imagem vem sendo res- quem emite e nas expectativas ou necessidades, es-
significada e ampliada em importância e uso. A revolução pontâneas ou criadas, do receptor, buscando atendê-las.
imagética atingiu todos os setores da atividade humana, Como regra, as conhecendo ou as criando artificialmente
da medicina à corrida espacial, da inteligência artificial de forma prévia.
a “selfies” e tatuagens universais. Na comunicação, Nesse ponto, se torna importante enfatizar que comu-
multiplicaram-se os botões e as funções do dedo humano, nicação e informação constituem fenômenos diversos.
já em parte substituído pelo comando de voz e com futuro A comunicação funciona, na prática, como algo seme-
previsto para a resposta comunicativa obedecer ao simples lhante aos nossos sentidos. É o instrumento, o veículo de
olhar ou até mesmo, na era pós-humana, ao próprio pensa- transporte de estímulos ou símbolos, em si mesmo neutro.
mento. O homem instalado em crescente comodidade e À mente humana cabe reconhecer o estímulo, no caso, a
praticidade, convidado a se entreter e se informar, porém informação em linguagem conhecida, para, em seguida,
induzido sutilmente a não pensar. interpretá-la, completando o ciclo comunicacional com
Não seria impertinente constatar que as novas tec- a sua aceitação, rejeição ou indiferença. A informação,
nologias visuais disponíveis para a inesgotável escolha contudo, não é neutra. Carrega em si determinado conte-
individualizada, assim como o amplo espaço destinado údo que contém significados ou busca ressignificações,
à intercomunicação cibernética resultassem na sensa- teoricamente ainda dependentes da interpretação crítica
ção de conhecimento pleno e no exercício de uma nova do receptor. Esse processo é recorrente e contínuo,
subjetividade, desafiada nas 24 horas do dia pela torrente demandando decisões e escolhas que, em seu conjunto
comunicativa. complexo, nos definem. Quando não exercemos a crítica,
A comunicação massiva se horizontalizou, mas na busca no entanto, o conteúdo informacional é automaticamente
de audiência universalizada perdeu em verticalidade. Tal introjetado, transformado em conhecimento e arquivado
perda se acentuou pela prática de estratégias de manipula- como memória, construindo suposta opinião.
ção que envolvem repetição associada à omissão, caracte-
rizada pelo silêncio, a não notícia. Todo o conjunto a serviço
do objetivo maior, a percepção, ou seja, “o resultado final

152 SUSSURRO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O ” IVO E,
GR IT A V
SEU “ CONTINU SOM,
M O SEM
ME SILÊNCIO E A DOR
S
OU DO RIMENTO TIA
TIR F N
O SO ARTISTA SE
O
QUE

ESPECIAL ABRIL 2023 153


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

CONHECIMENTO, PENSAMENTO, MEMÓRIA


Importante, nessa linha de reflexões sobre os vários
atributos da mente humana e como eles são modernamen-
te controlados, algumas considerações sobre fenômenos
mediados por funções específicas da própria mente. Al-
guns, com frequência, não diferençados entre si, gerando
conflitos e equívocos de atribuição e interpretação. É o que A cultura pós-moderna, fortemente calcada na infor-
ocorre, por exemplo, entre conhecimento e o exercício do mação, é fruto majoritário do conhecimento do outro, com
pensamento, da consciência crítica. o qual o receptor pode ou não se identificar. Visto desse
Vimos que a absorção não crítica da informação gera ângulo, o conhecimento faria parte do passado, remoto ou
conhecimento, ainda que desprovido de cogito, indene à recente, do já pronto, podendo tornar-se perigosamente
reflexão consciente, ao pensamento. Na realidade, qualquer acrítico e manipulável. Em termos da potencialidade da
que seja o nome que possamos dar aos atores do fenô- mente humana, o conhecimento é pedra bruta, não lapi-
meno, conhecimento e pensamento são atributos distintos dada. Inversamente, a análise fundamentada do que nos
que se constroem e que atuam de forma específica na é apresentado como informação, constitui o presente. O
mente humana, ainda que mantendo amplas, contínuas constante desafio ao pensamento crítico e à racionalidade
e necessárias interações. O conhecimento represado na em relação ao que nos circunda, o “aqui e agora”, o que nos
memória, nutrindo o pensamento com a informação; o permite criar e praticar valores, fazer escolhas no imenso e
pensamento crítico, avaliando a informação e gerando um contraditório universo das alternativas físicas e metafísicas.
novo conhecimento, negando, validando ou enriquecendo Envolve o racional e o sensível em complexas interações,
a informação. cuja intimidade material mais profunda desconhecemos,
O conhecimento não tem aqui a conotação filosófica mas que define quem somos. Na realidade, somos o que
abordada no ceticismo ou nas tentativas de oposição praticamos, expresso em escolhas e comportamentos.
aos céticos. Seria, apenas, o conjunto de informações Elementos e condições perenes, irrecorríveis, que
recebidas e oferecidas em nossa experiência racional. sequer sabemos se existem, como “alma”, “destino”,
Advém de processos e produtos múltiplos que nos são “índole” e “caráter”, se existissem, a priori participariam
continuamente ofertados através do aprendizado formal impositivamente desse processo, dificultando a aceitação
e informal, aí incluídos todas as fontes e veículos de in- do conceito de “livre arbítrio”. Ao contrário, ideia, intuição
formação, e “arquivados” com maior ou menor retenção e pensamento especulativo seriam fruto independente e
pela memória. Em tais processos, podemos ser receptores livre do processo sensitivo-racional, refletindo a existência
passivos ou buscadores ativos. Seria a “munição” que nos de um olhar criativo, voltado para o futuro, para o que ainda
chega externamente e que nos vem através do outro, do não é, para o que ainda não existe.
conhecimento alheio, seja o outro ou o alheio um livro, um
professor ou a experiência do cotidiano. A ERA PÓS-MODERNA
Diversamente, o pensamento é algo produzido inter- A tecnologia de comunicação na era pós-moderna
namente, refletindo o ser racional e sensível que somos. envolve, necessariamente, todos os elementos e fatores
Utilizando a memória como instrumento, determina esco- discutidos. Se expande e se impõe através das mídias de
lhas, identificações, individualidade. Em sua sedimentação massa, propondo valores através de poderosos vetores es-
crítica, nos define como ser pensante, cria identidade. pecíficos de convencimento, que ressaltam a sua suposta
supremacia. Há evidente e consciente equívoco na apro-
priação indébita e contraditória de expressões destinadas a
imprimir um caráter progressista, vanguardista e evolutivo
aos valores da contemporaneidade. Na realidade, a cultura
pós-moderna é, em vários aspectos, conservadora, inserida
na concepção autoritária de mercado e na lógica conserva-
dora do capital globalizado e do neoliberalismo.

154 SUSSURRO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Na era comunicativo-informacional que vivemos, um


perverso processo envolvendo e objetivando fusão cultural
acrítica, passividade intelectual e informação torrencial,
repetitiva e fortemente ideologizada, vem resultando em
homogeneidade submissa de “gostos” e comportamen-
tos, assim como obediência ao “politicamente correto”.
Produzindo a falsa sensação de plenitude do conhecimento, um “mundo tecnológico”, descrito por Heidegger como
liberdade intelectual e uso responsável da subjetividade. “valores essenciais da modernidade e subordinados a
Fenômenos ilusórios e potencialmente determinantes de interesses por ela determinados”.
ignorância política, ideologias excludentes, fragilidades A cultura pós-moderna serve, na verdade, a uma visão
éticas, comodismo e inquietante silêncio. ideológica de inspiração neoliberal e instrumental, que resul-
ta em desconstrução da heterogeneidade, das identidades
e da diversidade cultural, limitando a capacidade cognitiva

M
e a sensibilidade, ao criar relações ideológicas definidas
pelo mercado e a ideologia que o sustenta: investimento,
competição, consumo, lucro e acumulação. Em um mun-
do globalizado, obediente a decisões centralizadas e com
movimentação financeira em escala industrial. Um produto
esmo em um mundo polarizado ideo- cultural, refém de sentenças pragmáticas que determinam
logicamente, a dominação econômica, tecnológica e infor- que o que não está na mídia, não está no mundo, o que
macional vem se impondo, conduzindo à alienação social independe de tecnologia deve desaparecer.
e ao individualismo. Nesse cenário, a informação passa a A obsessão desconstrutiva está presente no cotidiano
ocupar papel relevante como instrumento de uma nova do planeta globalizado e tecnologizado, no exercício pe-
cultura. Banal, descartável, evanescente e fluida, como noso de dolorosa autofagia, na qual a tecnologia recente
convém ao interesse do cooptação intelectual e ideológica destrói a que a precedeu e que será inexoravelmente
e ao consumo alienado e de massa. destruída pela que a sucederá. Fenômeno que repercute
O conceito de progresso baseado na produção e em hábitos, costumes e comportamentos, forjando uma
mercantilização em larga escala, assim como no desen- cultura fluida, homogeneizada e em processo acelerado
volvimento incessante de novas tecnologias, necessitaria de identidade única.
de instrumentos adequados de adesão e convencimento, Então, cabe a pergunta: não progredimos nada? O
visando o consumo. Daí a importância visceral da cultura, mundo, tão dinâmico, é e será sempre o mesmo?
o papel central do “entretenimento” e da indústria cultural O progresso ocorreu e o mundo mudou. O penoso e
fortemente homogeneizante e globalizada. difícil processo civilizatório produziu frutos que resultaram
O controle das mídias atuando através da saturação em menor transgressão física entre Estados, e do “eu” em
extrema como sutil condutora de uma sociedade global relação ao “outro”. Leis e punições intrínsecas a elas deses-
subordinada ao tripé ideológico “tecnologia-mídia-consu- timulam confrontos e infringências. Muitas soluções foram
mo”, cujas raízes últimas, teóricas e sociológicas, talvez encontradas e estimuladas, mas o aumento acentuado da
se escondam em sofisticadas estratégias definidas em população, a péssima distribuição de bens e da riqueza pro-
órgãos de inteligência. Na prática, um consumo repetido duzida e a consequente e cruel desigualdade social resulta-
e redundante, mas que atende às demandas planejadas ram em novos gargalos e cronificaram antigos problemas.
por ideologias baseadas em vaidade, individualismo, hedo- Certamente o cenário e as roupagens mudaram, mas os
nismo, exclusão, egoísmo e autoexaltação. Experiências atores são os mesmos, perplexos em sua “essência” e
e emoções fluidas nas quais a tecnologia atua como ele- nas contradições que dela derivam, agora agravadas pelo
mento aglutinador, unindo mídia e consumo, moldando mercantilismo e o empoderamento da falsa subjetividade
que favorece a manipulação contínua e fortalece o ego, o
individualismo e as “certezas” equivocadas. Na prática, a
tecnologia da comunicação-informação manipulando os fios
de um teatro de marionetes. Nesse teatro, a desconstrução
da cultura é vista apenas como um detalhe.

ESPECIAL ABRIL 2023 155


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A vida como objetivo maior de uma des-


construção que, em razão da linguagem dominantemente
imagética, encontra pouca gente disposta a ouvir e
e do fato e na aceitação do silêncio do grito e os ecos
inexistentes de tal silêncio.
Quem sabe, como Munch, um grito, o grito do silêncio,
pensar. Em particular, o contraditório, envolvidos que nos aliviasse e, magicamente, nos devolvesse a capacidade
estamos no entretenimento e na passividade que “aju- de ver a realidade, de desfrutar a verdadeira liberdade e de
dam a viver” na simples aceitação do cômodo e na obri- despertar em nós a fraternidade que refutamos em nome
gatoriedade do parecer feliz. Mais de cem anos depois, do individualismo, do egoísmo e da comodidade. Um grito
continuamos, coletivamente, a padecer dos mesmos que cotidiana e explicitamente nos recusamos a dar, mas
males que Munch padecia individualmente. Ao contrário que permanece, corrosivo, letal, depressivo e silencioso
dele, no entanto, “engolimos” nosso grito. Por razões dentro de nós. Sim, o mundo mudou, o progresso ocor-
várias não nos damos conta do fenômeno ou fingimos reu, mas, a despeito do muito que foi feito, resta TUDO
que ele não existe. O uso em larga escala de ansiolíticos por fazer.
e antidepressivos ajuda na negação da realidade, no
confronto permanente com o fim do óbvio, da verdade earguelles@globo.com

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HOFFMAN, Edith. El Expressionismo. Buenos Ayres: S.P.A.D.E.M., 1964.

156 SUSSURRO
LOGÍSTICA SUSTENTÁVEL
PARA TODO O BRASIL
A Rodofly é uma das pioneiras no uso de
caminhões elétricos no país e iniciou a conversão
de sua frota de diesel para diesel-gás (GNV).

UMA EMPRESA
QUE RODA AS ESTRADAS
NA DIREÇÃO DE UM
BRASIL MAIOR

ro d of l y. co m
Larissa Basso
Jurista e internacionalista

Eduardo Viola
Sociólogo

158 SATÉLITE
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CLIMÁTICO- L TA
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DO TERCEIRO
GOVERNO A
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ESPECIAL ABRIL 2023 159
O I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O primeiro (2003-2006) e o segundo (2007-2010) governo Lula alcançaram resultados substanciais


na redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) brasileiras. Os resultados estão diretamente
relacionados à redução do desmatamento na Amazônia: de em torno de 28 mil km2 em 2004 para
7 mil km2 em 2010 e 4,5 mil km2 em 2012 – o patamar mais baixo, já no governo seguinte. Durante
esse período, o Brasil aumentou seu compromisso no regime internacional sobre mudança climática,
pela primeira vez assumindo metas voluntárias de redução de emissões e atuando em parceria com
outros países para estabelecer mecanismos de cooperação para mitigação. Esse momentum da
política climática brasileira, apesar de não ter colocado o país na trajetória do crescimento do baixo
carbono – porque não houve redução de emissões nos setores energia, agroindústria, setor indus-
trial e resíduos, nem das emissões de desmatamento em outros biomas – não voltou a se repetir.
Duas décadas depois, o desafio de mitigação da mudança do clima é muito mais complexo e
urgente. O mundo ultrapassa com velocidade cada vez mais alta as fronteiras planetárias – limites em
sistemas geobiofísicos que asseguram a relativa estabilidade de condições para a vida no planeta1.
O contexto de economia política global – instabilidade econômica, diminuição do crescimento e
retrocessos na expansão da democracia – é adverso para aprofundar o compromisso climático. O
Brasil está inserido nesse contexto global. Além disso, enfrenta desafios adicionais em razão dos
retrocessos significativos ocorridos na governança climático-ambiental nos últimos anos.
Para entender os desafios da política climático-ambiental do terceiro governo Lula, é necessário
fazer uma análise em duas partes. Primeiro, verificar os dados das emissões brasileiras de gases
de efeito estufa, identificando os principais setores emissores e a trajetória de sua contribuição
desde 1990. Em seguida, contextualizar a economia política – global e doméstica – que estrutura
as opções de políticas públicas, como era nos anos 2000 e como difere duas décadas depois.

TRAJETÓRIA DAS EMISSÕES BRASILEIRAS DE GEE: 1990-2021


Ao contrário da maioria dos países, que têm na produção e uso de energia os setores que
respondem pela maior parte das emissões de GEE, no Brasil, o grande vetor dessas emissões
é a mudança de uso da terra, especialmente o desmatamento. A Figura 1 ilustra, por setores, a
trajetória das emissões brasileiras entre 1990 e 2021. Note-se que o setor "mudança de uso da
terra e florestas", LULUCF (sigla em inglês para Land Use, Land Use Change and Forestry) tem
emissões muito mais altas que os demais. Essas emissões começaram a cair em 2004 e voltaram
a subir a partir de 2013. As emissões dos demais setores, em patamares muito mais baixos, têm
trajetória de crescimento.

GRÁFICO 1

BRASIL, EMISSÕES DE GEE (GIGA TONELADAS DE CO2 EQUIVALENTE (GtCO2e)

2,50

2,00

1,50

1,00

0,50

0,00

Fonte: Elaboração própria, com dados de SEEG (2022)2.


LULUCF Agropecuária Energia Processos Industriais Resíduos

160 SATÉLITE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ESPECIAL ABRIL 2023 161


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A curva fica mais evidente na Figura 2, que ilustra a da redução de atividade econômica durante a pandemia
média quinquenal (exceto para 2020 a 2021, que é a média de covid-19.
bianual) das emissões por setor. Os dados mostram que Mitigar a mudança do clima no Brasil, portanto, re-
o setor LULUCF, mesmo no período em que as emissões quer prioritariamente ações para reduzir as emissões de
haviam baixado substancialmente, nunca deixou de ser o desmatamento. Essas contidas, também são muito rele-
mais relevante para o total brasileiro de emissões. O gráfico vantes as ações nos setores de agropecuária e energia,
2 também ilustra a curva ascendente das emissões dos tanto por sua participação no total de emissões brasileiras
demais setores e, no setor de energia, uma pequena de- como pelo papel central que ocupam na atividade eco-
saceleração no crescimento no biênio 2020-2021 – reflexo nômica brasileira.

GRÁFICO 2

BRASIL, MÉDIA QUINQUENAL DAS EMISSÕES, POR SETOR (GtCO2e)

2.00
1.80
1.60
1.40
1.20
1.00
0.80
0.60
0.40
0.20
0.00
LULUCF Agropecuária Energia Processos Resíduos
Industriais
1990-1994 1995-1999 2000-2004 2005-2009 2010-2014 2015-2019 2020-2021

Fonte: Elaboração própria, com dados de SEEG (2022)2.

162 SATÉLITE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

º º
O CONTEXTO NOS 1 E 2 GOVERNOS LULA
Quando Lula assumiu a Presidência em 2003, os preços
das commodities internacionais estavam em elevação, pro-
porcionando ganhos substanciais e crescimento econômico
a grandes exportadores, como o Brasil. Havia também con-
trole inflacionário e estabilidade fiscal, resultado do Plano
Real. No mundo, os atentados terroristas de 11 de setem-

A
bro de 2001 haviam introduzido um fator de instabilidade
na política global, mas cresciam em número os países que
adotavam regimes democráticos. A economia no mundo
estava em expansão, movida pela estabilidade econômica
no Norte Global e as taxas de crescimento extraordinárias
da China. A estabilidade econômica no Brasil e o aumento
das exportações de commodities reforçavam o espaço de
interação que o Brasil vinha ganhando com seus parceiros
globais. Lula ampliou o papel do Brasil como um dos líderes
do Sul Global, investindo em aumentar a presença interna-
cional em outros continentes, especialmente África, e em
parcerias com economias emergentes e outros países em
Além disso, políticas climático-ambientais para redução
desenvolvimento. O fórum IBAS (Brasil, Índia e África do
do desmatamento tiveram primazia nos dois primeiros
Sul), o fórum BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África
governos Lula por três fatores políticos. Primeiro, a lideran-
do Sul), a cúpula África-América do Sul, a cúpula países
ça dos ministros Marina Silva e Carlos Minc, crucial para
sul-americanos e africanos e a cúpula Brasil-Caricom são
mobilizar uma coalizão ambientalista ampla. Segundo, o
algumas das iniciativas do período.
alinhamento de Lula com membros de movimentos sociais
O contexto externo da época também era favorável ao
em temas socioambientais. Terceiro, a política externa
aumento do compromisso climático. Em 2001, o terceiro
focada em estabelecer o Brasil como uma grande potência
relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do
internacional e a consciência de que avanços na proteção
Clima (IPCC, na sigla em inglês) atualizou metodologias
ambiental seriam fontes de soft power para o Brasil4.
e fez alertas sobre consequências muito mais graves do
acúmulo da concentração de GEE do que antes previsto –
AS POLÍTICAS CLIMÁTICO-AMBIENTAIS
como um maior aumento da elevação do nível dos oceanos º º
DOS 1 E 2 GOVERNOS LULA
até o final do século. No mesmo ano, entrou em vigor o
A redução do desmatamento na Amazônia foi foco da
Protocolo de Quioto, com metas de redução de emissões
política climático-ambiental das duas primeiras administra-
para os países industrializados. Estava em discussão no
ções Lula. Houve combinação de esforços que começaram
regime internacional do clima um mecanismo de mercado
em governos anteriores, como a criação de florestas prote-
para possibilitar que países industrializados financiassem
gidas e demarcação de terras indígenas e novos esforços.
iniciativas de redução de emissões em outros países e con-
Entre os novos esforços, ações em três frentes: mudanças
tabilizassem como reduções em suas metas, o que mais
institucionais, cooperação e incentivos financeiros.
tarde veio a ser o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo.
Em 2004, entra em vigor o Plano de Ação para Preven-
A combinação da economia global em expansão e
ção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, o
aprofundamento parcial do regime climático com um
PPCDAm. Durante sua primeira fase (2004-2008), foram
contexto doméstico de estabilidade fiscal, a inflação baixa
criadas carreira especializada para servidores na área
e crescimento econômico proporcionavam condição para
ambiental, com a defesa de sua atuação técnica contra
ampliar o espaço de pautas climático-ambientais, pois na
entendimentos diferentes de outros ministérios, e es-
América Latina, em geral, e no Brasil, em particular, meio
tratégias de cooperação entre autoridades estaduais da
ambiente e mudança do clima ganham espaço político
região amazônica e o Governo Federal. Teve início a im-
quando economia, segurança e corrupção – as principais
plementação do Programa Áreas Protegidas da Amazônia
preocupações da sociedade – não são centrais no debate
(ARPA), lançado em 2002, dentro da moldura do Sistema
sociopolítico3.
Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) para coletar

ESPECIAL ABRIL 2023 163


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

E
e gerenciar doações na conservação de áreas na Floresta
Amazônica. O sistema DETER para monitoramento do
desmatamento em tempo real foi lançado pelo Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), aumentando a
efetividade de execução da lei. Em 2006 foi criado o Serviço
Florestal Brasileiro e, em 2007, o Instituto Chico Mendes
de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Além disso, entrou em vigor um novo sistema de
cooperação, em duas frentes. A primeira, entre gover-
nadores na região amazônica e o Governo Federal, nas
ações de fiscalização e repasses financeiros. A segunda,
novas modalidades de cooperação internacional, incluindo Entre 2009 e 2010, o Brasil atinge o ápice de seu com-
mecanismos com vistas a receber doações para financiar promisso climático. Três fatores contribuíram. Primeiro,
iniciativas de combate ao desmatamento, como o Fundo a redução do desmatamento na Amazônia, que ajudou a
Amazônia (2008), que recebeu recursos substantivos da enfraquecer o discurso, dominante por décadas, de que
Noruega e, em menor escala, da Alemanha. o desmatamento era incontrolável no Brasil e fortaleceu
Incentivos financeiros foram o terceiro pilar do tripé do os atores alinhados com seu combate. A redução do
combate ao desmatamento na Amazônia. Uma versão do desmatamento ampliou o capital de soft power do Brasil
Bolsa Floresta, um programa piloto de pagamentos por nos fóruns internacionais e fortaleceu a coalizão de forças
serviços ambientais para áreas florestais estabelecido pelo a favor de um maior compromisso do Brasil no regime
estado do Amazonas em 2007, foi implementada na esfera internacional do clima.
federal: utilizando as doações do Fundo Amazônia, o Go- Segundo, o tema das mudanças climáticas ganhou
verno Federal fazia transferências para municipalidades da apelo perante a opinião pública, em razão dos eventos
região amazônica com a condição de que o desmatamento climáticos extremos cada vez mais frequentes e de sua
fosse contido5. A regularização de títulos de propriedade presença frequente na mídia. A cobertura da mídia também
da terra e a proteção do meio ambiente passaram a ser foi intensa em relação a informações científicas sobre a mu-
condição para obtenção de crédito rural6. Além disso, houve dança do clima: entre 2005 e 2008, as matérias dedicadas à
iniciativas transnacionais, como a moratória da soja (2006) mudança do clima cresceram em 200%, apenas durante a
e da carne (2009) – grandes compradores globais dessas primeira metade de 20078. O documentário “Uma Verdade
commodities comprometeram-se a não adquirir produtos Inconveniente” e o quarto relatório do IPCC, publicado em
oriundos de áreas desmatadas, e o rastreamento da pro- 2007 – que, em conjunto, receberam o Prêmio Nobel de
dução tornou possível identificar a origem dos produtos. 2007 – também foram amplamente divulgados.
Em 2007, com a criação do Comitê Interministerial Terceiro, atores privados passaram a pressionar o
sobre Mudança do Clima para coordenar a ação nacional Governo Federal por maior compromisso climático. A mo-
na mitigação da mudança do clima, a mudança climática tivação foi o temor de que impostos de fronteira passariam
tornou-se um tema transversal – ainda que limitado – dentro a ser cobrados de países sem compromisso climático,
da administração federal. Os trabalhos do comitê deram como o Brasil, prejudicando a competitividade no mercado
origem ao Plano Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), internacional – por exemplo, a Lei Waxman-Markey, que
que enumera as oportunidades de mitigação de emis- estava em discussão nos EUA na época, mas acabou
sões brasileiras em diversos setores. A partir do PNMC, rejeitada depois no Senado americano.
o PPCDAm tornou-se um plano setorial para redução de Em 2009, o Brasil comprometeu-se a reduzir de 36,1%
emissões de uso da terra no bioma amazônico; um pro- a 38,9% do crescimento de sua curva de emissões de
grama similar foi estabelecido para o Cerrado; e programas 2020, ou seja, as emissões projetadas até 2020. A meta era
similares foram estabelecidos para outros setores7. pouco ambiciosa, pois utilizava projeções de PIB infladas e
era facilmente superada com a redução do desmatamento
que já ocorria na Amazônia. Ainda assim, pela primeira
vez o Brasil tinha um compromisso jurídico de redução
de emissões, incorporado à Lei da Política Nacional sobre
Mudanças Climáticas.

164 SATÉLITE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O TEMA DAS
MUDANÇAS CLIMÁTICAS
N H O U A P E LO
GA
PERANTE A OPINIÃO PÚ
BLICA,
EM RAZÃO DOS
EVENTOS CLIMÁTICOS
EXTREMOS CADA VEZ
I S F R E Q U E N TES
MA
ESPECIAL ABRIL 2023 165
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

(os outros dois foram Costa Rica e Marrocos) que apresen-


taram Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na
sigla em inglês) com redução absoluta de emissões, e não
apenas redução da curva de crescimento de emissões ou
redução da intensidade de carbono da economia. Apesar
disso, a linha de base da NDC brasileira, 2005, foi um ano
de grandes emissões de desmatamento, então o com-
promisso não era ambicioso. A ambição também estava
ausente nas indicações de redução setoriais, ainda que,
como esclarecido pelo texto da NDC, fossem indicativas.
No governo Temer, a pauta climático-ambiental perdeu
O CONTEXTO E AS POLÍTICAS CLIMÁTICAS ENTRE 2011 E 2022 ainda mais espaço. As preocupações da opinião pública
A pauta climático-ambiental começou a perder ênfase eram a deterioração da economia e os aumentos do
já na administração Rousseff. O contexto global era o desemprego, dos crimes e de outros problemas de segu-
enfrentamento dos reflexos da crise financeira de 2008, rança. Temer tinha alta rejeição e precisou negociar apoio
que havia diminuído o espaço político para outros temas. político com a bancada ruralista, aprovando leis de interesse
O Brasil não ficou de fora. Além dos efeitos da crise in- da bancada: legalizou títulos de propriedades rurais sem
ternacional, a agenda climática perdeu prioridade para a questionar a legalidade das ocupações; cancelou dívidas de
opinião pública, e as coalizões pró-clima perderam força fazendeiros; suspendeu a ratificação de demarcações de
em razão de: escândalos de corrupção denunciados na terras indígenas e alocou largas quantidades de recursos
Operação Lava Jato; insatisfação popular motivada pela em emendas para beneficiar congressistas11. No regime
diminuição da redução da pobreza e pela falta de melhoria climático, o Brasil bloqueou negociações de mecanismos
dos serviços públicos; aumento da representatividade da de mercado de carbono.
bancada ruralista no Congresso Nacional após as eleições Entre 2019 e 2022, o paradigma mudou: Bolsonaro pra-
de 2010; e o estilo tecnocrático de Rousseff, que reduziu ticou a política antiambiental12. Evidências do antiambien-
o alinhamento com pautas socioambientais. talismo podem ser notadas em três frentes. Primeira, no
No ambiente doméstico, foi aprovado em 2012 o novo desmonte de instituições nacionais de proteção ambiental
Código Florestal, que reduziu a proteção de áreas florestais e redução do orçamento das remanescentes. Entre outras
em propriedades privadas9 e abriu espaço para aumentar medidas, foi extinta a Secretaria de Mudança Climática e
o desmatamento legal. O baixo avanço nos dois primeiros Florestas do MMA e transferido o Serviço Florestal Brasi-
governos Lula em relação à redução de emissões de GEE leiro para a alçada do Ministério da Agricultura e Pecuária;
nos outros setores, resultado de poucos esforços ou po- o orçamento do Ibama foi substancialmente reduzido, e
líticas contraditórias – por exemplo, em relação à energia, as multas ambientais aplicadas passaram a ter que ser
coexistiam o discurso de aumentar a participação de fontes confirmadas pelo Núcleo de Conciliação Ambiental, criado
renováveis na matriz energética e políticas de isenção fiscal em 2019; o governo extinguiu os órgãos colegiados que
a derivados de petróleo – continuou no governo Rousseff, supervisionavam a execução do PPCDAm e do PPCerrado,
com agravantes – como a crise no setor elétrico, diminuindo reduzindo sua efetividade.
a participação de hidrelétricas no total de energia fornecida
ao Sistema Interligado Nacional, em razão de mudança de
regras na renovação de contratos em 2015.
No regime internacional do clima, Rousseff retomou a
ênfase na doutrina das responsabilidades comuns, porém
diferenciadas – que não havia sido abandonada nos gover-
nos Lula, mas estava bastante mitigada –, e a associação
entre metas climáticas e desenvolvimento. Quando da assi-
natura do Acordo de Paris (2015), o Brasil comprometeu-se
a reduzir suas emissões em relação aos níveis de 2005 em
37% até 2025, com indicação de alcançar 43% até 203010.
O Brasil era um dos poucos países em desenvolvimento

166 SATÉLITE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

desde 2022 e a escalada da inflação. As restrições de


circulação de pessoas reduziram a atividade econômica e

S
desorganizaram cadeias globais de suprimento, com im-
pacto na diminuição do crescimento econômico e do PIB.
Políticas de estímulo fiscal e monetário para conter os pre-
juízos aceleraram a escalada da inflação, cuja contenção se
tornou um grande desafio. A guerra entre Rússia e Ucrânia
trouxe novas incertezas, incluindo mudanças nos preços
Segunda frente, no discurso antiambiental e de des- de diversas commodities internacionais – por exemplo,
legitimação da ciência, Bolsonaro repetidamente atacou petróleo e grãos. O aumento da animosidade entre Estados
os dados sobre o aumento do desmatamento, inclusive Unidos e China é um fator muito preocupante a médio e
exonerando o presidente do INPE e propondo contra- longo prazos, por seu potencial de fragmentar ainda mais a
tação de empresa privada para fazer o monitoramento. economia global e mudar o paradigma se uma nova guerra
Também propôs usar doações para o Fundo Amazônia fria for consolidada.
para compensar donos de terras invadidas quando essas O enfraquecimento da democracia é outro fenômeno
fossem expropriadas – o que foi prontamente recusado que caracteriza o contexto atual. Se nas décadas anteriores
pelos países doadores e levou, inclusive, à suspensão das as redes sociais foram ferramenta para ampliar o acesso
doações por parte deles – e apoiou reduzir a proteção nas a informação e reverter regimes autoritários – como
UCs e em terras indígenas – por exemplo, ofereceu apoio a primavera árabe demonstrou –, há alguns anos elas
ao Projeto de Lei federal nº 490/2007, que estabelece passaram a ser ferramentas efetivas de disseminação de
que terras indígenas sejam demarcadas por lei após um notícias falsas. Há debate sobre a regulamentação de seu
debate político no Parlamento, retirando a competência uso. Enquanto isso não ocorre, um ciclo vicioso é formado
técnica da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), pelas notícias falsas disseminadas em ambiente de insegu-
estabelecida em 1973. rança econômica e crescente crises sociais, aumentando
Terceira, nas posições brasileiras no regime interna- a polarização entre diferentes segmentos da população e
cional do clima. Bolsonaro retirou a candidatura brasileira diminuindo a possibilidade de formação de consensos, que
para ser sede da COP 25 em 2019. Em razão de mudança é a base da democracia.
de metodologia, reduziu, e não aumentou, a ambição do O Brasil é afetado pelas duas tendências. O PIB bra-
compromisso brasileiro assumido no Acordo de Paris ao sileiro teve retração acentuada com a pandemia e, de
apresentar a primeira revisão, em 2020. Distorção que foi acordo com o Banco Mundial, apenas em 2022 retomou
parcialmente corrigida na segunda revisão, apresentada os níveis de 2019. As taxas de crescimento seguem baixas
em 2021 – mas que mantém compromisso mais baixo e a inflação, alta. As circunstâncias externas, o aumento
comparado com a meta apresentada em 201513. Além da de juros para conter a inflação e a alta participação da
proteção ambiental ter caído e os crimes ambientais terem economia informal na geração de empregos reduzem a
aumentado em todo o país, o desmatamento – decisivo possibilidade de retomada de crescimento no curto prazo.
nas emissões de mudança de uso de terras brasileiras A produtividade da economia brasileira é baixa e, com pro-
que, em 2021, responderam por 49% das emissões totais blemas estruturais em infraestrutura, educação e serviços
do país14 – cresceu acentuadamente durante o governo públicos, não há perspectiva de melhora no curto e médio
Bolsonaro. O pequeno avanço na redução de emissões no prazos. A democracia brasileira passa por um momento
setor de energia deu-se em razão da redução de atividade crítico, parcialmente revertido pelo resultado das eleições
econômica no contexto da pandemia de covid-19. de 2022. As instituições mostram resiliência, mas há
forças profundas enraizadas na sociedade brasileira, cujas
O CONTEXTO DO INÍCIO DO TERCEIRO GOVERNO LULA tendências antidemocráticas não dão pista de que serão
O terceiro governo Lula tem início em um contexto apaziguadas no curto prazo.
global e doméstico bastante diverso de duas décadas atrás Nesse contexto, e dado o perfil das emissões brasi-
e muito desafiador para ampliar o compromisso climático. leiras, apresentamos os principais desafios para avançar
No contexto global, a economia enfrenta uma fase de o compromisso climático-ambiental brasileiro no terceiro
contração em razão de choques sucessivos, especialmente governo Lula nos setores mudança do uso da terra, agro-
a pandemia de Covid-19, a guerra entre Rússia e Ucrânia pecuária e energia.

ESPECIAL ABRIL 2023 167


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

AS PRESSÕES DE
E S M ATA M E N TO
D E
SÃO DIVERSAS
AS AÇÕES PARA C
ONTÊ-LO
PRECISAM LEVAR
ESSA HETEROGENEIDADE
EM CONSID
ERAÇÃO

168 SATÉLITE
A
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

DESAFIOS A SEREM SUPERADOS

Setor mudança de uso da terra: reduzir drasticamente


o desmatamento
Coexistem no Brasil duas visões sobre o desmata-
mento. A primeira entende a floresta como obstáculo ao A floresta está ainda bastante preservada no centro
desenvolvimento. Desenvolvimento requer que atividades e norte do Amazonas, maior parte do Amapá, o norte
modernas – incluindo agricultura, pecuária e mineração – do Pará, do Acre e de Roraima – área que corresponde a
substituam a floresta, criando renda para as populações 39% da Amazônia legal. Conter o desmatamento nessas
locais e ajudando o Brasil a melhorar sua posição na regiões requer ação em três frentes: definir o status das
economia global. A segunda visão entende que a floresta áreas não destinadas como unidades de conservação e/ou
tem valor em si, tanto local como global. É lar de grande terras indígenas; oferecer assistência para implementar e
biodiversidade e populações tradicionais que não podem aprofundar práticas de bioeconomia, com foco na produção
ser substituídas. Também tem papel importante para ser- sustentável de produtos tropicais com cadeias globais de
viços ecossistêmicos imprescindíveis para a vida, e para valor cuja participação do Brasil ainda é extremamente
regular padrões climáticos regionais e sistemas planetários. baixa; e ampliar pagamentos por serviços ambientais vin-
A primeira visão não foi suprimida durante os 1º e 2º go- culados à manutenção da floresta em pé16.
vernos Lula. O desmatamento na Amazônia caiu porque a No centro e no sul do Amazonas e de Roraima, a maior
lei passou a ser aplicada e políticas repressivas de aplicação parte do Pará, norte do Mato Grosso e de Rondônia e partes
da lei conseguiram reduzir drasticamente o desmatamento do Acre – área que corresponde a 29% da Amazônia legal
e porque novos incentivos para atividades de manutenção – a floresta está sob pressão e as o desmatamento ocorre
da floresta em pé as tornaram lucrativas. Nos governos principalmente em razão da grilagem de áreas públicas
Rousseff e Temer, esses incentivos perderam prioridade; o não destinadas e de atividades ilegais, como venda ilegal
governo Bolsonaro, por outro lado, reverteu os incentivos, de madeira e garimpo. Para conter o desmatamento, são
e o desmatamento voltou a ser lucrativo. essenciais ações para avançar o ordenamento territorial,
Para conseguir voltar a reduzir o desmatamento na transformando áreas públicas em florestas protegidas e
Amazônia, Lula precisa retomar os incentivos para manter evitando novas mudanças no marco legal que legitimem
a floresta em pé, além de combater as pressões políticas a grilagem; ações de comando e controle e fiscalização
para ampliação de atividades econômicas com impacto ostensiva do desmatamento e garimpo; e assistência téc-
no desmatamento, como a mineração ilegal, e o crime nica e crédito para melhor uso das áreas já desmatadas por
organizado, que se sofisticou substancialmente nas últimas atividades de agropecuária de baixo carbono16.
duas décadas e está disseminado na região. No entanto No sul do Acre, a maior parte de Rondônia, todo o
a Amazônia legal é uma região complexa e heterogênea; leste do Pará e partes do norte de Mato Grosso, a floresta
as pressões de desmatamento são diversas e as ações já foi amplamente desmatada – restam apenas 34% da
para contê-lo precisam levar essa heterogeneidade em cobertura original14. Nessas regiões, a regularização fundi-
consideração15. ária é fundamental para conter o avanço da grilagem, mas
outras ações também são importantes para gerar ativida-
des econômicas e renda alinhada com uma economia de
baixo carbono: aumentar a produtividade da agropecuária,
via práticas intensivas; restaurar áreas degradadas, com
reflorestamento para ganhos de crédito em mercados de
carbono e espécies que gerem receita em cadeias produ-
tivas, como a da celulose; e melhorar a infraestrutura e os
serviços, para atender a população. Essas ações também
são válidas para as áreas de Cerrado da Amazônia legal –
centro e sul do Mato Grosso e do Maranhão e maior parte
do Tocantins16.

ESPECIAL ABRIL 2023 169


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

D
Por fim, nas áreas urbanas da Amazônia legal, que con-
centram 76% da população, o desafio é gerar emprego e
renda alinhados com a preservação da floresta. Para isso,
é essencial melhorar a infraestrutura urbana e os serviços
públicos, além de ampliar a oferta de ensino, saúde e em-
prego para a população16.
Em relação aos demais biomas – especialmente o
Cerrado e o Pantanal, biomas que proporcionalmente mais
De fato, a principal política pública para redução das
perderam vegetação nativa das décadas recentes –, reduzir
emissões da agricultura é o Plano Setorial de Mitigação e
o desmatamento significa promover um novo paradigma
de Adaptação às Mudanças Climáticas para a Consolidação
de produção agropecuária.
de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agri-
cultura – Plano ABC. Desde 2021, passou a ser chamado
Setor agropecuária: integrar produção agropecuária
Plano ABC+ e conta com ações nos eixos: práticas para
e preservação da vegetação nativa
recuperação de pastagens degradadas; sistemas de plantio
A agropecuária no Brasil tem dois setores: o setor de
direto, para grãos e hortaliças; sistemas de integração, que
agricultura de pequena e média escala e a agroindústria.
incluem integração lavoura-pecuária-floresta e sistemas
Cada um desses setores é formado por coalizões diversas,
agroflorestais; florestas plantadas; bioinsumos, que inclui
e o avanço da descarbonização requer entender essas
fixação biológica de nitrogênio e microrganismos promoto-
dinâmicas.
res do crescimento de plantas; sistemas irrigados; manejo
O setor da agroindústria é subdividido em três grupos.
de resíduos da produção animal, que inclui tratamento de
O primeiro é composto de empresas agropecuárias tec-
dejetos animais e outros resíduos e estimula o uso dos
nologicamente avançadas, competitivas nos mercados
subprodutos para bioenergia e biofertilizante; e terminação
internacionais com regulamentação climático-ambiental
intensiva (melhor uso de recursos forrageiros)17.
avançada, como o de países industrializados. O segundo
Os dois outros grupos da agroindústria compõem a
grupo tem empresas tecnologicamente avançadas, mas
base da bancada ruralista do Congresso Nacional; en-
vende seus produtos prioritariamente no mercado interno
tendem práticas de baixo carbono como custos extras
ou em mercados com menor regulamentação climático-
de produção e fazem lobby para manter os métodos da
-ambiental, como a China. O terceiro grupo tem empresas
agricultura tradicional. A agricultura de subsistência, salvo
que investem pouco em tecnologia e menos ainda em
exceções, enfrenta escassez de técnica e recursos para
práticas de baixo carbono. A agricultura de pequena e
as práticas de baixo carbono.
média escalas tem dois subgrupos: pequenas e médias
Para esses três grupos, é fundamental deslocar o
empresas agrícolas, capitalizadas (predominantes no Sul
financiamento agrícola, vinculando os recursos a práticas
e Sudeste), e a agricultura de subsistência (predominante
de baixo carbono. No Plano Safra 2022-2023, do total do
no Norte e Nordeste).
crédito destinado a investimento – financiando insumos
As práticas descarbonizantes são adotadas pelo
e melhorias para aumentar a produtividade no campo –
primeiro grupo da agroindústria, porque a pressão dos
apenas 6,54% dos recursos foram alocados para o Plano
mercados consumidores gera incentivos para que invistam
ABC+18.
em ações de redução de emissões, inclusive pressionando
o governo brasileiro para avançar em acordos internacionais
Setor energia: expansão de fontes renováveis
do gênero. Uma parte das pequenas e médias empresas
e eficiência energética
agrícolas capitalizadas investem na descarbonização como
forma de obter pagamentos por serviços ambientais e A descarbonização da energia global avança devagar,
aumentar sua produtividade. pois o mundo continua muito dependente dos combustí-
veis fósseis: carvão, petróleo e gás responderam por 87%
da oferta global de energia em 1973 e 80,90% em 201919.
A matriz energética brasileira é diferente: carvão, petróleo e
gás responderam por 51,79% do total da energia ofertada
em 2019, e as fontes renováveis, 46,14%20. Entre meados
das décadas de 2000 e 2010, a participação de fontes

170 SATÉLITE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

fósseis na matriz, especialmente na geração elétrica, tem


aumentado no Brasil, resultado de escolhas políticas e falta
de prioridade para a agenda climática no setor – inclusive

N
durante os dois primeiros mandatos de Lula. Contudo, as
fontes eólica e solar têm se mostrado muito competitivas
no Brasil e contribuem para o aumento da participação das
renováveis na matriz elétrica desde a segunda metade
da década de 2010: em 2021, hidrelétricas, eólica e solar
contribuíram com 68,87% da eletricidade consumida no
Brasil20. Quando a eletricidade produzida por biomassa –
No setor de transportes, o mundo caminha para a
cana-de-açúcar, lenha, lixívia e biodiesel – é adicionada, o
eletrificação como forma de reduzir a dependência de
total sobe para 76,86%20.
combustíveis fósseis. A entrada de ingresso dos veículos
Apesar de sua competitividade econômica, há desafios
elétricos nos mercados dos países industrializados está
técnicos para aumentar a participação das fontes eólica e
acelerada, tendo inclusive a União Europeia aprovado re-
solar na geração elétrica, em especial a descentralização
gulamentação comunitária para proibir a comercialização
e a digitalização.
de novos veículos com motor a combustão após 2035.
Ao contrário de carvão, petróleo e gás, encontrados em
No Brasil, o uso do etanol nos veículos leves e a mistura
reservas, ou da fonte hidrelétrica, que depende de um curso
do biodiesel no diesel para transporte de carga contribui
de água, vento e luz solar são onipresentes. Aproveitar esse
para a redução das emissões no setor, mas os ganhos
potencial depende de um sistema inteligente, que conecte
são parciais. Os motores flex-fuel perdem em eficiência
as unidades produtoras e consiga responder à demanda
em comparação aos que funcionam apenas com um com-
em tempo real. Esse é um grande desafio no Brasil. Além
bustível, e, após as políticas de preço dos anos 1990 para
da implementação de redes inteligentes – instalação de
o etanol, o consumidor não tem confiança em adquirir o
infraestrutura, a instalação de hardwares e softwares que
carro puramente a etanol. No transporte de cargas, a mis-
aumentam a capacidade de processamento de dados pela
tura de biodiesel ainda é bastante baixa, e há resistência
rede, são necessárias mudanças na operação e regulação
inclusive dos produtores de soja brasileiros para aumentar
dos mercados elétricos para: incorporar os prossumidores
a percentagem mais rápido, pois o Brasil teria que importar
– consumidores que também passam a gerar eletricidade
biocombustíveis22.
e vender o excedente para a rede; repensar o papel de
Para descarbonizar o setor de transportes, o Brasil tem
agentes como as distribuidoras e o operador nacional do
três grandes desafios. O primeiro é diminuir a dependên-
sistema; inserir critérios de conteúdo de carbono na dife-
cia do modal rodoviário para transporte de cargas, que é
renciação de preço das fontes nos leilões e no preço final
pouco eficiente, principalmente em um país de dimensão
da eletricidade para o consumidor; e desenvolver setores
continental como o Brasil. Aumentar o uso de hidrovias e
de indústria e serviços relacionados às novas fontes e
ferrovias proporcionaria ganhos de eficiência em escala,
tecnologias necessárias para a descarbonização.
mesmo sem troca de combustíveis, e é um passo impor-
O aumento da eficiência energética é também um
tante para encaminhar a transição para o baixo carbono
grande desafio no Brasil. Apesar de estarem em vigor
do setor. O segundo desafio é enfrentar a resistência das
diversas políticas públicas de conservação e uso eficiente
montadoras em relação aos veículos elétricos no Brasil. As
da energia – por exemplo, o Programa Nacional de Conser-
mesmas empresas que adaptam sua produção para aten-
vação da Energia Elétrica (Procel); o Programa Nacional de
der às exigências dos mercados em países industrializados
Racionalização do Uso dos Derivados do Petróleo e do Gás
fazem lobby para resistir a mudanças na regulamentação
Natural (Conpet); a Política Nacional de Conservação e Uso
nacional, aliando-se ao setor do etanol, aos produtores de
Racional de Energia – e a eficiência energética ter passado
petróleo e biocombustíveis, aos fabricantes nacionais de
integrar o planejamento do setor, com o Plano Nacional de
Eficiência Energética, há incerteza sobre a eficácia dessas
políticas públicas. Segundo a OCDE, os ganhos de eficiên-
cia energética têm sido bastante baixos no Brasil21. O Atlas
de Eficiência Energética Brasil 2021 pode servir de base
para ampliação e aprofundamento das iniciativas.

ESPECIAL ABRIL 2023 171


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

autopeças e aos sindicatos de trabalhadores da indústria


automobilística – que temem o desemprego dado que a
produção de veículos elétricos envolve menos peças e
tende a ser mais robotizada. O terceiro desafio é ampliar a
rede de transporte público de qualidade nas cidades. Além Entre as condições gerais de governabilidade está um
de atrasar a descarbonização, o uso de veículos particulares desempenho econômico razoável, com retomada do cres-
é a maior fonte de poluição nas cidades, com prejuízo para cimento em torno de 2% a 3% do PIB em 2024, e manter
a saúde pública, e causa os enormes engarrafamentos no a inflação sob controle. Para isso, são necessários ajustes
trânsito, com grandes perdas econômicas. em 2023, como reforma tributária e corte de isenção de
Por fim, é importante acompanhar as mudanças em impostos e subsídios, que equivalem a aproximadamente
relação aos sistemas de preços e de tributação dos com- 3,5% do PIB, em vários setores econômicos. Os embates
bustíveis. O governo Lula manteve, entre 1º de janeiro e dentro do governo e com a base no Congresso sobre o
28 de fevereiro de 2023, a política de Bolsonaro de isenção tema são fonte de instabilidade. Os discursos do presidente
dos impostos federais sobre combustíveis líquidos, medida Lula sobre a possibilidade de retirar a autonomia do Banco
extremadamente negativa do ponto de vista da descarbo- Central na decisão da taxa de juros básica da economia
nização – pois significa manter subsídios aos combustíveis também vão na contramão.
fósseis – e contraditória com sua campanha eleitoral de A segunda condição é manter as coalizões com o
2022, vez que Lula firmou compromisso com a plataforma centro, especialmente com PSD, União Brasil e MDB, e
socioambiental proposta por Marina Silva em setembro que a maioria dessas bancadas respondam às lideranças
de 2022. Para o período entre 1º de março e 30 de junho partidárias. Sem essa coalizão, o governo não terá maioria
de 2023, a medida foi parcialmente mantida: os impostos para aprovar leis e outras medidas no Congresso, além de
sobre a gasolina voltarão a ser cobrados, mas apenas R$ de se ver preso a concessões individuais que impedirão o
0,47 por litro, ou 68,11% do vigente em meados de 2022, avanço de qualquer agenda programática.
que era R$ 0,69 por litro; os impostos sobre o etanol são A terceira condição é manter a aprovação do governo.
retomados em R$ 0,02 por litro, contra R$ 0,24 por litro Lula foi eleito com pouco mais de 50% dos votos, uma
vigente antes da desoneração; a desoneração foi mantida margem bastante pequena, e grande parte dos votos rece-
para o gás natural veicular (GNV) e o querosene de aviação. bidos de uma coalizão ampla pró-democracia em contexto
Além disso, a Petrobras anunciou uma redução de R$ 0,13 de graves ameaças institucionais. Na campanha e na posse,
por litro no preço da gasolina vendida às distribuidoras. sinalizou que governaria para essa coalizão ampla, mas
Apenas a reoneração do etanol está alinhada com a des- desde o início do governo tem dado sinais contraditórios.
carbonização: com impostos mais baixos sobre o etanol, Dada a situação de instabilidade que o Brasil enfrentou nos
a diferença entre o preço final do litro desse combustível últimos anos e diante da extrema-direita, representada pelo
e o da gasolina aumentará, incentivando os consumidores bolsonarismo raiz, que segue como força política forte no
a optar pelo primeiro. A reoneração da gasolina é mitiga- Brasil, o abandono por Lula de um discurso de pacificação
da pela redução do preço cobrado pela Petrobras, o que nacional, direcionado ao centro democrático, em favor de
significa a manutenção do subsídio de forma indireta, e a uma repetição do “nós contra eles”, em polos invertidos
manutenção da desoneração para o GNV e o querosene com o bolsonarismo, é bastante preocupante e deteriora
de aviação, sem qualquer justificativa plausível do governo, ainda mais o nível de confiança da sociedade no sistema
segue na contramão. político – que é tradicionalmente baixo no Brasil, mas caiu
ainda mais nos últimos anos.
Condições gerais de governabilidade
Por fim, mas não menos importante, só será possível ao Larissa Basso é Pesquisadora no grupo Economia Política
novo governo Lula enfrentar os desafios climático-ambien- Internacional, Variedades de Democracia e Descarbonização
tais brasileiros se conseguir manter a governabilidade. Ela do IEA-USP e no projeto “O Brasil na OCDE” do IPEA.
larissabasso@gmail.com
depende de uma mínima estabilidade político-econômica,
que permita que outros temas entrem na agenda de discus- Eduardo Viola é Pesquisador Sênior do Instituto de Estudos
são política e afaste a ameaça de instabilidade institucional. Avançados da USP, Professor de Relações Internacionais
na Fundação Getúlio Vargas e na Universidade de Brasília e
Pesquisador Nível 1B no CNPq
eduviola@gmail.com

172 SATÉLITE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS E BIBLIOGRAFIA

1. São nove fronteiras planetárias identificadas pela ciência, entre elas a mudança n. 134, número especial Bicentenário da Independência, 2022, pp.143-162
climática. Mais detalhes em <https://www.stockholmresilience.org/research/
planetary-boundaries.html> 13. Para uma análise detalhada: BASSO, Larissa. Avaliação e desafios para o
alinhamento do Brasil à normativa da OCDE sobre meio ambiente e clima. IPEA,
2. Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG). Texto de Discussão 2847, fevereiro de 2022. Disponível em: <https://repositorio.
Emissões totais brasileiras, por setor, 1990-2021. Base de dados. Disponível ipea.gov.br/bitstream/11058/11740/1/TD_2847_Web.pdf>
em <https://plataforma.seeg.eco.br/total_emission>
14. Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG).
3. RYAN, Daniel. Politics and climate change: exploring the relationship between “Emissões do Brasil têm maior alta em 19 anos”. Comunicado à imprensa
political parties and climate issues in Latin America. Ambiente & Sociedade, n. de 1º de novembro de 2022. Disponível em <https://seeg.eco.br/imprensa>
02, 2017, p. 271-286.
15. O Projeto Amazônia 2030 é uma das melhores fontes de dados e propostas
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Amazon. New York/London: Routledge, 2018. amazonia2030.org.br/>

5. O decreto federal 6.231/2007 incumbiu o MMA de criar uma lista, atualizada 16. VERISSIMO, Beto et al. As cinco amazônias: bases para o desenvolvimento
periodicamente, com municípios que seriam autorizados a receber transferências sustentável da Amazônia Legal. Projeto Amazônia 2030, n. 52, novembro de
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com dados do INPE. o-desenvolvimento-sustentavel-da-amazonia-legal/>

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à mudança do clima e baixa emissão de carbono na agropecuária 2020-2030,
7. Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado Plano ABC+. Disponível em: <https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/
(PPCerrado); Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE); Plano ABC, sustentabilidade/plano-abc/arquivo-publicacoes-plano-abc/final-isbn-plano-
agricultura de baixo carbono; Plano de Redução de Emissões da Siderurgia. setorial-para-adaptacao-a-mudanca-do-clima-e-baixa-emissao-de-carbono-na-
agropecuaria-compactado.pdf>
8. ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância. Mudanças climáticas na
imprensa brasileira: uma análise comparativa de 50 jornais nos períodos de julho 18. BRASIL, Ministério da Agricultura e Pecuária. Cartilha do Plano Safra 2022-
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politica-agricola/plano-safra/2022-2023/cartilha-plano-safra-2022-2023.pdf/>
9. A proteção foi reduzida de três formas. Primeiro, permite que até 50% – o
limite anterior era de 20% – de uma propriedade rural localizada no bioma 19. Agência Internacional de Energia. Key Energy World Statistics 2021. OCDE/
Amazônia seja desmatada, caso essa propriedade esteja localizada em IEA, 2021. Disponível em <https://www.iea.org/reports/key-world-energy-
estado brasileiro com pelo menos 65% do território ocupado por UCs ou statistics-2021>.
terras indígenas. Segundo, em todos os biomas, a lei cancelou multas de
desmatamento ilegal ocorrido antes de 2008, desde que os proprietários 20. Cálculos próprios, dados de BRASIL, Ministério de Minas e Energia. Balanço
ingressassem no Programa de Regularização Ambiental. Terceiro, para todos Energético Nacional – séries históricas 1970-2021. Disponível em https://www.
os biomas, os registros no Cadastro Ambiental Rural (CAR) passaram a guiar epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/BEN-Series-Historicas-
a obrigação de reflorestar; porém, as informações incluídas no CAR são Completas
autodeclaratórias, e ausente o georreferenciamento em muitas localidades
brasileiras, o que diminuiu a efetividade. 21. OCDE. Evaluating Brazil’s progress in implementing Environmental
Performance Review recommendations and promoting its alignment with
10. BRASIL, Ministério das Relações Exteriores. Contribuição nacionalmente OECD core acquis on the environment. OCDE, 2021. Disponível em <https://
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11. PEREIRA, Joana C.; VIOLA, Eduardo. Climate change and biodiversity
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12. VIOLA, Eduardo; FRANCHINI, Matias. A governança ambiental no Brasil: Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, 2018.
da destruição das florestas aos objetivos de descarbonização. Revista da USP

ESPECIAL ABRIL 2023 173


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Felipe Cattapan
Músico

NEGÓCIO
Não,
não vá virando a página, não,
desta vez não se trata de literatura
– não tem perigo de poesia,
nem ameaça de cultura: Eu prometo que não me intrometo,
é prosa sem proselitismo. você evita e omite o mito;
Sem estética nem ética, Eu minto o que admito,
ritmo nem rima, você admira o que se admite;
moral nem métrica: Eu cito o que não li,
é meramente e tão somente, você repete o que eu recito;
imediato e imediatamente Eu me repito em um monólogo
– reduntantemente – que você decora como um diálogo;
um puro e simples Eu não reflito sobre o contexto,
negócio você presta atenção ao texto;
(que a gente faz, esquece Eu evito o drama
e depois se entrega ao ócio). se você dispensa a trama;
Eu não escrevo nada além do normal,
você me lê do começo até o final;
Eu conto uma história com começo-meio-e-fim,
você promete que vai gostar de mim;
Eu me castro politicamente correto,
você recalca o resto e o reto;
Eu oculto as obscenidades,
você se satisfaz com a banalidade;
Eu não sou contra nenhum ato,
você assina no final o contrato;
Eu exagero no humor,
você esconde a sua dor.

174 POESIA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ESPECIAL ABRIL 2023 175


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Depois
a gente ataca a gramática
simplifica a sintaxe
joga fora a metáfora Enquanto isso
desmascara e desacata nós vai pintano essa fôia em branco
a demagogia da poesia cuma purção de letrinhas preta
se escancara e enche a cara presquecê que o papel é branco...
vomita o vazio da azia (e branco é uma palavra
vai à forra do forró palavra é linguagem
da farra de risos histéricos linguagem é convenção
da diarreia das ideias sem razão convenção é pacto
descome e come até desabar concretizado em contrato).
mergulha fora de foco na televisão
interna na internet a eterna solidão No final
não arrisca nem risca pra não cair nem quicar você assina o contrato
bota as bolas pra frente tentando bailar e o poema
na pornografia cotidiana sem sorte nem mérito – e ensina a desaprender a lição.
exorciza o medo em um esporte esotérico (Mas se depois de ler sentir remorso,
se agitando em sexo pra evitar relembrar não haverá reclamação
que todos os autos e os atos – afinal:
você, eu e o nosso contrato negóçio é negóçio).
tudo isto e tudo o mais
vai inevitavelmente
O autor é regente de orquestra e
invariável e irreversivelmente
professor do Departamento de Música da
se neologizar.
Universidade de Artes de Berna, Suíça.
felipe.cattapan@gmail.com

176 POESIA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ESPECIAL ABRIL 2023 177


178 CAFUZO
ABOLICIONISMO
E ESCRAVAGISMO
NO PADRE
ANTÔNIO VIEIRA
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo
Advogado

ntônio Vieira é um dos autores luso-brasileiros mais


estudados de todos os tempos; ainda assim, há
facetas suas não muito exploradas, como toda a sua
teoria política e, em especial, a contextualização das
suas concepções dentro das ideias do seu tempo.
E, entre todos, um assunto merece destaque: a
escravidão. Por dever de ofício, precisou ocupar-
-se da evangelização dos índios, mas a escravidão
constituía ponto de fricção entre os jesuítas e os
colonos portugueses.

ESPECIAL ABRIL 2023 179


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ieira não se limitou a tratar do tema como um intelectual; foi também


um militante. Em 1652, desembarcou no Maranhão incumbido de duas
missões: uma, pela Companhia de Jesus, para pregar o evangelho; a
outra, por D. João IV, para obrigar os colonos a cumprir as leis indíge-
nas. O problema todo começou na década de 1530, quando D. João III
decidiu impulsionar a colonização e exploração do território brasileiro
por meio do cultivo da cana-de-açúcar, produto que empregava a mão
de obra escrava tanto dos “negros brasis” (os ameríndios) como dos
“negros da Guiné” (os africanos). Em 1549, o primeiro governador,
Tomé de Sousa, trouxe instruções régias de submeter os índios hos-
tis pelos meios que se dispusesse, o que contrariava as ordens dos
jesuítas que viajavam no seu cortejo.1 Um século depois, apesar da
significativa mudança da política da coroa sobre a escravidão indígena,
os colonos ainda se comportavam como sempre. Em seu tempo no
Maranhão, Vieira empreendeu diligências para amenizar os maus tra-
tos, influenciou a criação de nova lei em matéria de escravidão indígena
e, por isto, foi expulso de lá pelos colonos em 1661.
O pensamento de Vieira sobre a escravidão se encontra espalhado
numa obra muito volumosa, em sermões, cartas e pareceres, mas o
seu legado parece dividir comentaristas. Muita tinta já se verteu sobre
uma suposta inconsistência do jesuíta sobre a escravidão, já que ele
ora se apresenta como um verdadeiro abolicionista, ora um defensor
pragmático do status quo e, ainda, alguém que não aplicou os mesmos
princípios que defendeu contra a escravidão indígena em relação à
africana. Existem até mesmo movimentos de revisionismo histórico
voltados a alterar a reputação que Vieira ainda parece deter.2Mas estas
críticas padecem de anacronismo. Em verdade, as suas ideias neste
quesito apresentam razoável coesão, pois se inserem numa tradição
desenvolvida anteriormente pela escolástica ibérica.
O presente trabalho procura desvelar essa influência. Não se trata
de intento novo ou revolucionário. Muitos autores já aludiram a essa
influência3, e o próprio Vieira cita escolásticos como Francisco Suárez,
Luís de Molina e Juan de Solórzano Pereira. Mas as comparações e
paralelos já traçados se limitam ao tom geral da obra de Vieira e se
mostram pouco precisos quando se especifica um tema. Ao final, o
leitor poderá concluir que o emprego dos rótulos “abolicionista” ou
“escravocrata” não se aplica como disjuntivos mutuamente excluden-
tes para explicar a posição de Vieira.

UMA LEITURA ABOLICIONISTA DE VIEIRA: A IGUALDADE NATURAL DOS HOMENS


A leitura tradicional de Vieira sempre o caracterizou como um
abolicionista. E não faltam trechos da obra do autor para justificar isto.
No primeiro “Sermão da Primeira Dominga da Quaresma”, de 1653,
também conhecido como “Sermão das Tentações”, a propósito da
escravização ameríndia, Vieira adverte a plateia com palavras bastante

180 CAFUZO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

duras: “Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu


vos desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado
mortal; todos viveis e morreis em estado de condenação, e
escravas por natureza? Tal como a escola salmantina, o
todos ides direitos ao inferno. Já lá estão muitos, e vós tam-
jesuíta também não subscreve a esta doutrina. Já em
bém estareis cedo com eles, se não mudardes de vida”.4
1633, no “Sermão XXVII do Rosário Maria Rosa Mística”, a
Esta interpelação parece fazer eco ao sermão-denúncia
propósito dos escravos africanos, Vieira consegue enunciar,
do Frei Antônio de Montesinos: “Todos vós estais em peca-
sem reservas ou titubeios, a tese da igualdade natural dos
do mortal. Nele viveis e nele morrereis, devido à crueldade
homens: “estes homens não são filhos do mesmo Adão
e tiranias que usais com estas gentes inocentes. Dizei-me,
e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com
com que direito e baseados em que justiça, mantendes em
o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e
tão cruel e horrível servidão os índios?”.5 É a partir deste
morrem, como os nossos?” E, adiante: “porque a natureza,
sermão que se desenrolou toda a Querela da Conquista,
como Mãe, desde o Rei ao Escravo, a todos fez iguais, a
e Vieira se coloca no lugar de Montesinos, quiçá com a
todos livres”.7 Somos todos naturalmente iguais, porque
expectativa de gerar o mesmo impacto.
compartilhamos a mesma paternidade; a qual, em última
O débito de Vieira aos escolásticos ibéricos, porém,
instância, não é a adâmica, mas a divina. Trata-se, pois, de
ultrapassa simples alusões. Todo o contexto intelectual
uma igualdade teológica. A natureza não criou os homens
dessas frases remonta a debates da escola salmantina. O
escravos, mas livres. A escravidão se introduz por circuns-
autor condena o cativeiro porque ele não reflete a condição
tâncias ulteriores, que constituem o imprevisível jogo da
normal do ser humano. Criado à imagem e semelhança
vida, ou, de modo mais simples – como aduz o próprio
de Deus, no estado natural (de direito natural), as pessoas
autor no mesmo trecho – pela fortuna.
viviam em liberdade. A escravidão existe por instituição
Portanto, Vieira considera todos os homens iguais por
humana (de direito positivo).
natureza, mas importaria a cor da pele para alguma outra
O instituto da escravidão, portanto, viola a lei natural.
diferença? Em outras palavras, ainda que o jesuíta conside-
Mas como pode Vieira pensar assim, se Aristóteles6, refe-
rasse todos os homens iguais por sua mesma paternidade
rência obrigatória de Tomás de Aquino e de toda escolástica
divina, a pele mais escura impediria uma igualdade real dos
nova ou antiga, já havia sentenciado que existem pessoas
africanos com os europeus? Seria ele um racista?
No “Sermão XX do Rosário Maria Rosa Mística”, de
data incerta, o pregador afirma que, nesta República8, os
senhores se distinguem dos seus escravos pelo nome,
cor e fortuna, e, com o intuito de consolar os africanos
AINDA QUE O JESUÍTA das suas aflições, explica que nenhuma dessas diferenças
se mostra relevante aos olhos de Deus e de Maria. A cor,
CONSIDERASSE TODOS em especial, não torna o africano menos racional – ou
OS HOMENS IGUAIS menos humano – do que o seu senhor. “Entre os homens
POR SUA MESMA dominarem os Brancos aos Pretos é força, e não razão
ou natureza.” Esta frase não poderia ser mais eloquente:
PATERNIDADE DIVINA, brancos e pretos são iguais pela razão e pela natureza. E
A PELE MAIS ESCURA ainda cabe observar que Vieira atribui não à fortuna, mas à

IMPEDIRIA UMA força o motivo dessa dominação. Trata-se de um cativeiro


ilícito, injusto não ab initio, mas quod administrationem. E
IGUALDADE REAL DOS então, depois de apresentar a violência, arremata o discurso
AFRICANOS COM OS num tom poético: “Lá disse Deus a Samuel que Ele não era
como os homens; porque ‘os homens olham para o rosto,
EUROPEUS? SERIA ELE e Deus para os corações’: Homo videtea, quae parente,
UM RACISTA? Dominus autem intuetur cor [1Rs 16, 7]. Pois assim como
nos olhos de Deus, assim também nos de Sua Mãe, cada
um é da cor do seu coração”.9

ESPECIAL ABRIL 2023 181


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

No “Sermão da Epifania”, pregado em 1662 na Capela Real de Lisboa,


Vieira tenciona mostrar para a Rainha e à Corte em geral a gravidade da
injustiça sofrida com a expulsão do Maranhão que acabara de sofrer. Acaba
por tocar no problema do racismo, ao mostrar a desfaçatez em julgar o
cativeiro do ameríndio por causa da cor:

“Dos Magos, que hoje vieram ao Presépio, dois eram brancos e um


preto, como diz a tradição; e seria justo que mandasse Cristo que Gas-
par e Baltasar, porque eram brancos, tornassem livres para o Oriente,
e Belchior, porque era pretinho, ficasse em Belém por escravo, ainda
que fosse de São José? Bem o pudera fazer Cristo, que é Senhor dos
senhores; mas quis-nos ensinar que os homens de qualquer cor todos
são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé, se creem e adoram
a Cristo, como os Magos. Notável coisa é que, sendo os Magos reis, e
de diferentes cores, nem uma nem outra coisa dissesse o Evangelista!
Se todos eram reis, por que não diz que o terceiro era preto? Porque
todos vieram adorar a Cristo, e todos se fizeram cristãos, e entre cris-
tão e cristão não há diferença de nobreza, nem diferença de cor. Não
há diferença de nobreza, porque todos são filhos de Deus; nem há
diferença de cor, porque todos são brancos. Essa é a virtude da água
do batismo. Um Etíope, se se lava nas águas do Zaire, fica limpo, mas
não fica branco; porém na água do Batismo sim, uma coisa e outra:
Asperges me hyssopo, et mundabor: ei-lo aí limpo; lavabis me, et super
nivem de albabor [Sl 50: 9]: ei-lo aí branco. Mas é tão pouca a razão e tão
pouca a fé daqueles inimigos dos índios, que, depois de nós os fazermos
brancos pelo batismo, eles os querem fazer escravos por negros.”10

Os homens de todas as cores são iguais por natureza, mas a fé os


iguala ainda mais. Uma vez batizados, não há mais “diferença de nobreza,
APARENTEMENTE nem diferença de cor”. Não se deve interpretar esta passagem de forma
literal: o batismo dos índios (ou dos africanos) não autorizaria a alforria dos
VIEIRA PARECE NÃO escravos. Mas Vieira aqui repete a concepção esposada no breve papal
TER OS MESMOS de 146211; o cristianismo iguala a todos e torna o preconceito racial algo

ESCRÚPULOS EM próprio de pessoas de “tão pouca a razão e tão pouca a fé”. Neste trecho,
o inaciano pretende, em verdade, mostrar a insensatez do racismo. E, na
RELAÇÃO AOS passagem imediatamente anterior, Vieira explica que a cor é até mesmo
AFRICANOS QUE relativa: portugueses podem ser considerados mais escuros se comparados
com os europeus do norte.
DISPENSOU AOS
AMERÍNDIOS. NÃO “Já considerei algumas vezes por que permitiu a Divina Providência,

HÁ OUTRO TERMO: ou ordenou a Divina Justiça, que aquelas terras [do Maranhão] e outras
vizinhas fossem dominadas dos Hereges do Norte [os holandeses]. E a
O AUTOR PARECE razão me parece que é porque nós somos tão pretos em respeito deles,
HIPÓCRITA como os índios em respeito de nós e era justo que, pois fizemos tais leis
[as leis que permitiram a escravidão dos índios], por ela se executasse
em nós o castigo. Como se dissera Deus: ‘já que vós fazeis cativos a
estes, porque sois mais brancos que eles, eu vos farei cativos de outros,
que sejam também mais brancos que vós’.”12

182 CAFUZO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

á duas lições a se extrair aqui. A primeira é a de que a diferença de cor não


autoriza a escravidão. A segunda é a de que os portugueses não devem
julgar pela cor para também não serem julgados por este mesmo parâmetro.
Deus usa de ironia nos seus castigos.
De fato, Vieira revela grande empatia com o sofrimento dos escravos
africanos. A sua bisavó paterna era africana.13 Uma vez que atribui tanto
poder à inconstante fortuna, o jesuíta sabe que poderia ter sofrido o mes-
mo destino deles. E, a partir de dois elementos, a natureza que iguala os
homens, e a fortuna que os diferencia, Vieira apresenta a irrazoabilidade
do preconceito:

“Se a fortuna os fez Escravos, a natureza fê-lo homens; e porque há de


poder mais a desigualdade da fortuna para o desprezo, que a igualdade
da natureza para a estimação? Quando os desprezo a eles, mais me
desprezo a mim; porque neles desprezo o que é por desgraça, e em
mim o que sou por natureza.”14

Essa frase parece bem convincente; entretanto, é possível fazer outra


leitura de Vieira.

UMA LEITURA ESCRAVAGISTA DE VIEIRA: OS AFRICANOS


De fato, é no tópico da escravidão africana que os críticos gostam de
apontar inconsistência no pensamento de Vieira. Em diversos pareceres
escritos antes e depois da sua expulsão do Maranhão, o autor sugere
substituir a mão de obra indígena pela africana.15Como agravante, ele
parece ter consciência de que alguns africanos foram escravizados por
títulos inválidos.16 Vieira, portanto, parece haver desconfiado que nem tudo
caminhava tão bem com o famigerado “mercado das almas”, e chega a
se referir a este comércio como “mercancia diabólica”17. Ainda assim, não
se moveu para denunciar nem minimizar o cativeiro dos africanos, como o
fez em relação ao dos índios.
Em suma, aparentemente Vieira parece não ter os mesmos escrúpulos
em relação aos africanos que dispensou aos ameríndios. Não há outro
termo: o autor parece hipócrita. Ronaldo Vainfas resume: “uma vez escra-
vista, sempre escravista: Vieira foi grande defensor da escravidão africana
no Brasil até o fim da vida. O maior de todos”.18
Esse tipo de crítica, todavia, só faria sentido se Vieira tivesse sido um
árduo defensor do abolicionismo da escravidão indígena e, assim, haveria
um contraste com a sua posição sobre a escravidão africana. Mas isso
reduz o pregador a uma caricatura. Importa, pois, apresentar o seu pensa-
mento nele mesmo e à luz do seu contexto cultural, sem juízos formados
de antemão ou anacronismos.
Quiçá, a melhor maneira de fazer sentido das ideias de Vieira sobre
a escravatura africana – se realmente houver alguma coerência entre
elas – é mergulhar de modo direto na mais enigmática, contraditória e
hermética passagem do autor sobre o tema, e somente depois, à luz dela,
analisar outros textos. Trata-se da carta a Roque Monteiro Paim sobre a

ESPECIAL ABRIL 2023 183


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

rebelião do Quilombo dos Palmares. A coroa passou anos


a procurar uma solução para as guerrilhas dos levantados
dos Palmares, sem nenhum sucesso com as incursões
militares. E havia uma desconfiança generalizada quanto a
buscar acordos pacíficos. Mas o rei achava que um religioso
poderia lograr êxito e entreteve a ideia de enviar um padre
italiano para catequizar os revoltados e também negociar
uma rendição.
Consultado a este respeito, Vieira, em carta de 02 de
julho de 1691 a Roque Monteiro Paim, desembargador do Libertar os africanos, para Vieira, acabaria com toda a
Paço, juiz da Inconfidência e secretário do rei, manifesta- revolta. E, assim, eles poderiam viver como os índios livres,
-se contra esta decisão. Expõe cinco motivos para tanto, provavelmente também em aldeias ou povoações similares
quatro muito pragmáticos, entre os quais: a desconfiança deles mesmos, a receber instrução e a fé cristã dos seus
dos quilombolas que tomariam o padre por um espião do párocos. A conclusão parece óbvia: o inaciano desejava
governador, e o fato de que nunca deixariam de admitir aplicar aos africanos o mesmo plano que elaborou para os
novos fugitivos. Mas, por último, apresenta o único argu- ameríndios. Mas, novamente, a frase seguinte coloca esta
mento de ordem moral: “quinta, fortíssima e total, porque proposta em xeque:
sendo rebelados e cativos, estão e perseveram em pecado
contínuo, e atual, de que não podem ser absoltos, nem “Porém, esta mesma liberdade assim considerada seria
receber a graça de Deus, sem se restituírem ao serviço e a total destruição do Brasil, porque, conhecendo os
à obediência de seus senhores, o que de nenhum modo demais negros que por este meio tinham conseguido
hão de fazer”19. o ficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada
Segundo Vieira, os africanos não possuiriam o direito engenho, seriam outros tantos Palmares, fugindo e
de se rebelar contra o domínio dos seus senhores. Estão passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que
em pecado. O correto seria voltar ao serviço dos seus não é outro mais que o próprio corpo.”21
mestres. E, na frase seguinte, o jesuíta propõe um curso
de ação hipotético, mas, a seu ver, o único eficaz para A liberdade é uma noção perigosa para o Brasil. Pode
resolver o problema: espalhar-se. Muitos comentaristas retiraram deste excerto
a lição de que, para Vieira, a escravidão africana corres-
“Só um meio havia eficaz e efetivo para verdadeira- ponderia a uma estrutura essencial da sociedade colonial,
mente se reduzirem, que era concedendo-lhe Sua a “moeda corrente entre Angola e Brasil”22, posto que a
Majestade e todos seus senhores espontânea, liberal economia brasileira só poderia subsistir às custas da mão
e segura liberdade, vivendo naqueles sítios como os de obra africana. Certamente, trata-se de uma leitura pos-
outros índios, e gentios livres, e que então os padres sível, mas o inaciano não menciona a economia colonial
fossem seus párocos, e os doutrinassem como aos nesta carta. Libertar os revoltados é perigoso porque os
demais.”20 demais africanos – e há muitos no Brasil – também vão
passar a exigir isso e podem criar novos Palmares. Talvez
Vieira considerasse mesmo a libertação africana deletéria
para a economia colonial, mas esta passagem não permite
esta conclusão. A decisão de alforriar os quilombolas é
ruim porque cria um exemplo que irá se repetir. E não há
nenhuma explicação a mais sobre isso no texto.
Imediatamente depois, Vieira passa a se debruçar sobre
as formalidades de despedida da carta. De fato, não se
pode desvendar a concepção do autor sobre a escravidão
africana com o emprego dos disjuntivos “abolicionista” ou
“escravagista”: três ideias consecutivas de uma mesma
carta bastam para evidenciar que outro contexto interpre-
tativo se faz necessário.

184 CAFUZO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ssa perspectiva ética pendular de Vieira, no que concerne à es-


cravidão africana – que, por enquanto, convém denominá-la mais
simplesmente de “ambivalente” – também aparece em outros
jesuítas portugueses. De um lado, o grande defensor dos índios
no século anterior, Manuel da Nóbrega, em carta de 1551 a el-rei
D. João III, pede que envie alguns escravos da Guiné para ajudar
nas tarefas mais árduas no colégio dos meninos indígenas livres
da aldeia na Bahia.23 Outrossim, o Pe. Angel Valtierra chama este
comportamento dos jesuítas de o “pecado do tempo”, e, ainda,
reproduz carta de 21 de agosto de 1611 de Luís Brandão, o reitor
do Colégio São Paulo em Luanda, a Alonso de Sandoval, em que
aquele dizia a este para não nutrir muitos escrúpulos em relação
à escravidão africana, que seriam “bem cativos”.24 Do outro lado,
ainda no século XVI, os professores Miguel Garcia e Gonçalo Leite
e, mais tarde, o próprio Manuel da Nóbrega, escandalizados com
o comércio de almas, passam a se recusar a ouvir confissões de
quem possuísse escravos africanos. Por esta ousadia, os dois
primeiros são transferidos de volta para a Europa.25 Trata-se, pois,
de questão generalizada demais para constituir um vício individual.
A proposta de substituir uma escravidão pela outra já seria
suficiente para despertar a ira dos críticos, mas a ideia de Vieira
que mais os irritou é, sem dúvida, o “consolo caritativo” desenvol-
vido na série de sermões que ele mesmo editou em 1686 sob o
PARA VIEIRA, nome de “Maria Rosa Mystica”. Os textos desta coleção revelam
A ESCRAVIDÃO muita profundidade espiritual e são menos “políticos”. O tema da
escravidão africana aparece em três deles: os sermões XIV, XX e
AFRICANA XXVII. Mas, ao contrário do “Sermão das Tentações” e de outros
CORRESPONDERIA consagrados aos índios, o objeto não é propriamente a escravidão,
A UMA ESTRUTURA a licitude ou os aspectos sociais dela, mas o sofrimento do trabalho
pesado e a condição existencial do africano, tirado de sua terra
ESSENCIAL DA natal e jogado num mundo que lhe é estranho, violento e hostil.26
SOCIEDADE Então, neles, Vieira não busca denunciar a escravidão, mas elevar

COLONIAL, A “MOEDA a dignidade daqueles que se tornaram objeto de escárnio.


Nestes sermões, Vieira desenvolve três teses sobre o povo
CORRENTE ENTRE africano: uma filiação teológica de Maria, uma consanguinidade com
ANGOLA E BRASIL” Cristo e, ainda, uma eleição especial. As duas primeiras são um
tanto heterodoxas para a Teologia católica, mas Vieira as apresenta
com uma densidade conciliar. A última, embora muito original, não
é desviante. O trabalho árduo e a violência, já neste mundo, cor-
respondem a provações que purificam os escravos para ganhar a
recompensa no próximo. Representam a etapa do purgatório, um
lugar de sofrimento e expiação da culpa para a retificação da alma.
Após afirmar que o mistério do terço que coube aos africanos seria
o doloroso e, tal como Cristo comparou as suas dores na Paixão
com as penas do inferno, descreve as dos escravos num engenho
de cana-de-açúcar – uma das caracterizações mais vivas e impres-
sionantes de toda a língua portuguesa – como um “doce inferno”:

ESPECIAL ABRIL 2023 185


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Não há dúvidas de que isso dignifica o sofrimento dos


escravos, mas não o explica, e, uma vez que todos os
homens são iguais por natureza, essa explicação possui
um valor fundamental, e Vieira não foge dela. Mas é ne-
cessário acertar a pergunta: por que os africanos passam
“E que coisa há na confusão deste mundo mais por tamanhas dores, enquanto os brancos possuem vida
semelhante ao inferno que qualquer destes vossos mansa, ou, como o inaciano afirma, por que aos escravos
engenhos, e tanto mais quanto de maior fábrica? Por são reservados os mistérios dolorosos e aos brancos os
isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta defi- mistérios gozosos do Rosário? Perceba-se que o jesuíta
nição de quem chamou a um engenho de açúcar doce não deseja uma resposta sociológica para esta indagação,
inferno. E, verdadeiramente, quem vir na escuridade que explique como ocorreram e se formaram as estruturas
da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente sociais da escravidão africana. Ele quer uma resposta mais
ardentes; as labaredas que estão saindo a borbotões essencial, como se interpelasse o próprio Criador por que
de cada uma, pelas duas bocas ou ventas por onde ele parece amar alguns filhos mais do que outros. Logo
respiram o incêndio; os etíopes ou ciclopes banhados no início do “Sermão XXVII do Rosário”, Vieira enuncia a
em suor, tão negros como robustos, que subministram questão:
a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que
o revolvem e atiçam; as caldeiras, ou lagos ferventes, “Os Senhores poucos, os Escravos muitos; os Senho-
com os cachões sempre batidos e rebatidos, já vomi- res rompendo galas, os Escravos despidos e nus; os Se-
tando escumas, já exalando nuvens de vapores mais de nhores banqueteando, os Escravos perecendo à fome;
calor que de fumo, e tornando-os a chover para outra os Senhores nadando em ouro e prata, os Escravos
vez os exalar; o ruído das rodas, das cadeias, da gente carregados de ferros; os Senhores tratando-os como
toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, brutos, os Escravos adorando-os e temendo-os, como
e gemendo tudo ao mesmo tempo, sem momento deuses; os Senhores em pé, apontando para o açoite,
de tréguas nem de descanso; quem vir, enfim, toda como estátuas da soberba e da tirania, os Escravos
a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela prostrados com as mãos atadas atrás, como imagens
Babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto vilíssimas da servidão e espetáculos da extrema mi-
Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança de inferno.”27 séria. Oh! Deus! Quantas graças devemos à fé que
nos destes, porque ela só nos cativa o entendimento,
Na Teologia cristã, é comum retratar o sofrimento de para que à vista destas desigualdades, reconheçamos,
Cristo na Paixão como necessário para expiar os peca- contudo, vossa justiça e providência. Estes homens não
dos de toda a humanidade. Não é que Cristo houvesse são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas
experimentado as piores dores do mundo, mas, porque almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo
conseguiu conceder ao seu sofrimento um sentido, um Cristo? Estes corpos não nascem e morrem, como os
propósito de natureza divina, todos os seres humanos nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre
potencialmente podem ser salvos.28 Da mesma maneira, o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo sol?”30
aduz Vieira logo em seguida: “mas, se entre todo esse ru-
ído, as vozes que se ouvirem forem as do Rosário, orando
e meditando os mistérios dolorosos, todo esse inferno se
converterá em paraíso, o ruído em harmonia celestial, e
os homens, posto que pretos, em anjos”. Não há outra
conclusão possível: para Vieira, o trabalho nos engenhos
constitui a Paixão dos escravos, e, se estes suportarem o
fardo com a oração do Rosário, dariam às suas dores um
significado transcendental e se converteriam no próprio
Cristo.29

186 CAFUZO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ara Vieira, há algo muito errado. Se a fé é verdadeira, e ela ensina a


igualdade natural dos homens, por que existem tantas diferenças?
A fortuna junta a miséria e a felicidade no mesmo teatro. De fato,
tanto poder assim à fortuna parece destruir as lições da fé.
E então o pregador formula um argumento que parece contra-
ditório: por causa destas desigualdades é que se pode perceber a
justiça e a providência divina. Vieira serve-se do clássico hilemorfis-
mo cristão sobre os homens serem constituídos de corpo e alma
para afirmar que apenas o corpo estaria cativo. Portanto, “o cativeiro
que padeceis, por mais duro e áspero que seja ou vos pareça, não
é cativeiro total, ou de tudo o que sois, senão meio cativeiro”31. A
alma também pode ser escravizada pela vontade de pecar, mas a
oração pode domar esta pulsão. A salvação está muito próxima dos
escravos: basta fazer bom uso da condição mesma de cativos em
que já se encontram.

“Quando servis a vossos Senhores, nem vós sois seus her-


deiros, nem eles vos pagam o vosso trabalho. Não sois seus
herdeiros, porque a herança é dos filhos, e não dos Escravos,
e não vos pagam o vosso trabalho, porque o escravo serve
por obrigação, e não por estipêndio. Triste e miserável estado
servir sem esperança de prêmio em toda a vida, e trabalhar
sem esperança de descanso, senão na sepultura! Mas bom re-
médio, diz o Apóstolo (e isto não são encarecimentos, senão
fé católica). O remédio é que, quando servis a vossos Senho-
POR QUE OS res, não os sirvais como quem serve a homens, senão como

AFRICANOS PASSAM quem serve a Deus: Sicut Domino, et non hominibus; porque
não servis como Cativos, senão como livres, nem obedeceis
POR TAMANHAS como Escravos, senão como filhos. Não servis como Cativos,
DORES, ENQUANTO OS senão como livres, porque Deus vos há de pagar o vosso tra-
balho: Scientes quod accipietis retributionem; e não obedeceis
BRANCOS POSSUEM como Escravos, senão como filhos, porque Deus, com quem
VIDA MANSA, POR vos conformais nessa fortuna, que ele vos deu, vos há de fazer
QUE AOS ESCRAVOS seus herdeiros: Retributionem haereditatis. Dizei-me: se ser-
vísseis a vossos Senhores por jornal, e se houvésseis de ser
SÃO RESERVADOS herdeiros da sua fazenda, não os serviríeis com grande vontade?
OS MISTÉRIOS Pois, servi a esse mesmo que chamais Senhor, servi a esse

DOLOROSOS E mesmo homem, como se servísseis a Deus, e nesse mesmo


trabalho, que é forçoso, bastará a voluntária aplicação deste
AOS BRANCOS OS como: Sicut Domino: como a Deus, para que Deus vos pague
MISTÉRIOS GOZOSOS como a livres; e vos faça herdeiros como a filhos: Scientes quod
accipietis retributionem haereditatis.”32
DO ROSÁRIO?

ESPECIAL ABRIL 2023 187


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

astaria aos escravos permanecerem nesta condição e continuarem a servir


como já o servem, mas fazendo-o de coração, como quem labora para o pró-
prio Deus, que o reino dos céus lhe seria assegurado. Essas palavras podem
soar bastante hipócritas, além de induzir ao conformismo, mas Vieira acredita
nelas. Para o jesuíta, não se trata de um consolo pueril e inconsequente: a
própria fé católica o ensina. Ele acrescenta que esse estado que Deus colo-
cou os africanos consiste na vocação do Filho de Deus, quando padeceu na
Paixão.33 A Paixão de Cristo concedeu a toda a humanidade um remédio, a
salvação, mas também um exemplo de conduta. E os escravos, ainda que
pela força, já realizam esta conduta. É suficiente apenas que a disposição
interna seja semelhante à de Cristo para ganhar o paraíso e a liberdade eterna.
E é também por isso que a Providência Divina ordenou o cativeiro: dentro da
doutrina católica, trata-se de uma forma bastante segura de ganhar o reino dos
céus. Como imitadores do Cristo no momento mais importante da história da
salvação, Vieira vislumbra assim um sinal de eleição.34 E, assim, o pregador
consegue concluir o consolo aos escravos:

“E como o estado ou religião do vosso cativeiro, sem outras asperezas ou


penitências mais que as que ele traz consigo, tem seguro, por promessa
do mesmo Deus, não só o prêmio de bem-aventurados, senão também a
herança de filhos, favor e providência muito particular é da Virgem Maria
que vos conserveis no mesmo estado, e grandes merecimentos dele,
para que por meio do cativeiro temporal consigais, como vos prometi, a
liberdade ou alforria eterna.”35

Este trecho recebeu críticas bastante severas, em especial de Alfredo


Bosi. Num determinado momento da elaboração deste consolo, Vieira recorre
ao evangelista Lucas, mas promove uma sutil, embora importante alteração
nas palavras do santo. Eis a citação, conforme o jesuíta: “bem-aventurados
aqueles escravos a quem o Senhor no fim da vida achar que foram vigilantes
em fazer sua obrigação”.36 De acordo com o crítico, no entanto, a tradução
literal do texto da Vulgata usada por Vieira termina com a palavra “vigilantes”.
Vieira teria acrescentado a expressão “em fazer sua obrigação” para obrigar
o evangelista a dizer mais do que pretendia. No original, a vigília se refere à
espera do Salvador, o que comanda o fiel a permanecer atento e prudente.
O acréscimo, no contexto do sermão aos escravos, impõe o dever do traba-
lho e da sujeição. Conclui Bosi: “a moral da cruz-para-os-outros é uma arma
reacionária que, através dos séculos, tem legitimado a espoliação do trabalho
humano em benefício de uma ordem cruenta”.37
Outros comentaristas conseguem se mostrar ainda mais duros do que
Bosi.38 No entanto, essas críticas ora presumem o abolicionismo e o escra-
vagismo de Vieira para respectivamente a escravidão indígena e a africana,
ora interpretam o jesuíta a partir de ideologias posteriores, como é o caso
da marxista. Ademais, não penetram no nível analítico do sermão de Vieira,
que não é o sociológico.
Na série das pregações do rosário, Vieira em muito transcendeu o domí-
nio do imanente. Neste mesmo sermão, quando afirma saber que há entre

188 CAFUZO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

os escravos alguns cujos “cativeiros são justos”, de acordo com o direito


vigente, ele complementa que não há, nem pode haver, Teologia que
justifique essa desumanidade e sevícia.39 Para o autor, existiria, pois, um
descompasso entre o que prescreve o Direito e a Teologia. A escravidão
perpassa dois níveis distintos: um jurídico-político e outro mais espiritual.
Compreender a diferença entre ambos explica o tratamento desigual que
Vieira concedeu à escravidão africana e à indígena. Nesta, foi um militante
que atuou em prol de uma causa e mudou a legislação de seu país; naquela
outra, examinou no texto sagrado os motivos existenciais que levaram o
Criador a permitir tamanha diferença entre homens.
Vieira não está a sugerir que a escravidão constitui algo bom ou uma
sorte na vida dessas pessoas, e sim, de modo paradoxal, uma benção.
Mas, antes de tudo, trata-se de um consolo: diante de um mal, o pregador
convida a olhar para alguma faceta boa do sofrimento. No cristianismo, há
uma tradição muito significativa sobre o consolo o qual chega a corresponder
a um dos atributos da Terceira Pessoa da Trindade. Vieira, portanto, nestes
sermões, acredita desempenhar um dos papéis mais sublimes reservados
aos sacerdotes dentro da sua fé: oferecer conforto aos mais fracos.

O PROBLEMA DA ESCRAVIDÃO AFRICANA ATÉ VIEIRA


Com a descoberta do Novo Mundo, os escolásticos ibéricos se pronti-
ficaram para apresentar uma defesa do que consideraram os excessos da
conquista. Escreveram diversos tratados voltados para a condição jurídica

MESMO PARA e teológica dos índios. Porém, não houve o mesmo empenho em relação
à escravidão africana. A diferença essencial entre a escravidão indígena e a
OS PADRÕES DE africana resumia-se a uma questão legal: com algumas poucas exceções na
UMA ÉPOCA MAIS costa ocidental, os habitantes da África não eram súditos do rei português,
nem se encontravam sob a responsabilidade de receber o evangelho por
“DURA” DO QUE A parte de nenhum monarca europeu.
ATUAL, O SILÊNCIO Ainda assim, embora os portugueses tivessem apenas se deparado
DAS AUTORIDADES com um comércio de almas já existente nas costas africanas, a demanda
que impuseram incrementou este mercado muito além dos limites das
COLONIAIS formas lícitas de escravidão admitidas à época. Por este motivo, ao longo
PORTUGUESAS, E O de todo o século XVI, este comércio iria gradualmente adquirir uma péssima

DE MISSIONÁRIOS reputação; daí porque Vieira atribui à morte de D. Sebastião e à subsequente


dominação espanhola – “o cativeiro de sessenta anos” – a aplicação de uma
RELIGIOSOS, punição divina a todo reino pela participação portuguesa nesta escravidão.
REVELA-SE Mas não vai além disso.
Por mais de um século, os portugueses nutriram o que se pode denomi-
ENSURDECEDOR nar de verdadeira “ignorância culposa” em relação à escravidão africana. O
comércio de almas encontrava-se operante tão cedo como 146040, e antes
da virada do século já havia se tornado o maior tráfico de escravos que a
Europa conhecera, mas Portugal preferiu presumir que todos os cativos
decorressem de modalidades justas de escravidão. Não há dúvidas de que
a Bula Romanus Pontifex, ao autorizar a escravização dos africanos que se
inserissem na fórmula vaga de “inimigos do nome de Cristo”, concedeu
muita latitude sobre a questão.41 Contudo, mesmo para os padrões de
uma época mais “dura” do que a atual, o silêncio das autoridades coloniais
portuguesas, e o de missionários religiosos, revela-se ensurdecedor.42

ESPECIAL ABRIL 2023 189


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

para a Companhia de Jesus, em especial, o problema da licitude da escravi-


dão representava questão delicada. Segundo Serafim Leite, os jesuítas, de
fato, se viam muitas vezes de mãos atadas sobre a licitude da escravidão.
“Sendo legal essa escravatura, a oposição dos Jesuítas equivaleria a uma
revolta, e nunca os Jesuítas se colocariam contra as leis. Se se pusessem
em oposição ao Governo que a legalizou, logo no princípio da sua catequese,
inutilizá-la-iam antes mesmo de a iniciar.”43 É por este motivo que Vieira
afirma haver um descompasso entre a Teologia e o Direito na escravidão
africana. Ele acreditava na licitude dela.
Francisco de Vitória constitui um bom exemplo do pensamento vigen-
te. Embora tenha entrado para a História como um grande defensor dos
direitos dos índios, ao restringir diversos títulos jurídicos cruéis pelos quais
poderiam ser conquistados pelos espanhóis, ele não dedica o mesmo
engenho para o problema da escravidão africana em suas relecciones.
A escravidão africana parece não existir. Somente numa carta ao Frei
Bernardino de Vique de 18 março de 1546 (ano provável), o autor procura
responder a algumas perguntas sobre a chamada contratación, o mercado
português de escravos na costa oeste africana, do qual os espanhóis tam-
bém aproveitavam para o fornecimento de mão de obra: primeiro, se os
portugueses atraíam as almas com bugigangas para depois as sequestrar;
segundo, sobre a licitude da guerra da qual resultou a escravidão; terceiro,
sobre a existência de costumes dos africanos em alienar criminosos con-
denados à morte como maneira de comutação da pena, e se tal escravidão
deveria ser temporária ou perpétua; e, por fim, se podemos confiar que o
Rei de Portugal e o seu Conselho não permitiriam um comércio injusto.44
Vitória mostra-se bastante direto nas suas respostas. Em relação à
primeira, afirma categoricamente que acha pouco provável que o rei por-
tuguês fosse permitir tamanha desumanidade, que os cavalheiros que
comprarem os escravos na Espanha não deveriam nutrir muitos escrúpulos
sobre isso. Para a segunda dúvida, o autor desonera totalmente os portu-
gueses de perquirir sobre a justiça da guerra entre os “bárbaros”: “basta
que o homem seja escravo de fato ou de direito, que se pode adquiri-lo
sem maiores preocupações”.
Na terceira resposta, Vitória apela para a noção de “mal menor” em face
de práticas legais menos civilizadas. Salienta que, na Espanha, um homem
livre jamais poderia se tornar escravo, mas em locais onde alguém pode
ser escravizado de diversos modos – até mesmo de forma voluntária –, não
haveria problema dessa pessoa acordar livremente em ser escravizada por
aquele que vai resgatá-la. Acrescenta, ainda, que esta escravidão poderia
perdurar por toda a sua vida. Por fim, embora os reis e os seus conselhos
“não consigam ver muito longe”, Vitória repudia qualquer verossimilhança
nessa suspeita.45
Mas a parte mais sugestiva de toda a carta é uma admoestação para
o tratamento digno do escravo:

190 CAFUZO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“Um escrúpulo maior do que qualquer um destes, e é


mais do que um mero escrúpulo, é que em geral eles
[os donos de escravos] tratam os seus escravos de for-
ma desumana, os senhores se esquecem que os seus
escravos são seus semelhantes e olvidam da lição de
São Paulo sobre o fato que tanto senhores como servos
têm um mestre no céu, a quem devem prestar contas
(Col. 4:1). Se tratados com humanidade, é melhor que
como um problema, em razão de uma confiança absoluta
sejam escravos entre cristãos do que livres em suas
na virtude dos envolvidos no tráfico, e conforto no
próprias terras; além disso, é-lhes verdadeira fortuna
consolo que, se tratados com humanidade, os escravos
tornar-se cristãos.”46
se encontrariam em melhor posição depois que se
converteram ao cristianismo do que antes.
O argumento do consolo caritativo de Vieira agora não
parece mais tão original. Vitória não chega a aprovar a es-
AS FORMAS LÍCITAS DE ESCRAVIDÃO SEGUNDO
cravidão, mas mostra que os senhores podem redimir-se,
A ESCOLÁSTICA IBÉRICA
perante o tribunal da consciência eterna, se tratarem os
Então, se Vieira não era nem abolicionista, nem escra-
seus escravos com humanidade, pois ambos compartilham
vocrata, o que defendia? No “Sermão das Tentações”,
da mesma natureza e se encontram sob o dominium de
como visto, ele escandalizou a plateia com a ameaça do
outro Senhor. E, quanto aos escravos, embora não se
inferno, mas ele o fez como um amigo paradoxalmente.
encontrem em condições ideais, devem procurar algum
“Pergunto-vos: qual é o melhor amigo: aquele que vos
conforto de estar na melhor condição que lhes seria possí-
avisa do perigo, ou aquele que por vos não dar pena vos
vel. Para Vitória, seria melhor ser escravo e cristão do que
deixa perecer nele?”48 Então, apresentou uma solução
um homem livre sem o conhecimento da verdadeira fé.
No século XVI, houve vozes dissonantes na escolástica conciliatória: os índios servirão aos colonos se a escravidão
ibérica que condenaram a escravidão africana: Fernão de decorrer de uma guerra justa, ou de um resgate dos “ín-
Oliveira, Tomás de Mercado e Luís de Molina.47 Mas os dios de cordas”49, ou servirão ao reino como “meio livres
e meios cativos” dentro das aldeias.50 Estas escolhas não
seus escritos ou não ressoaram na época, como ocorreu
são aleatórias.
com o primeiro, ou tratam o tema com tantas nuanças
Antes da intervenção de Vieira na legislação indigenista,
que apenas leitores antiescravagistas de séculos seguin-
a escravização ou a liberdade pareciam ser fruto mais da
tes foram capazes de identificar. O primeiro escolástico
pressão política do que de algum critério moral. Ao longo
francamente abolicionista vai ser o português Epifânio
da década de 1630, houve muitas denúncias de violência
de Moirans, que, no fim do século XVII, dedica uma obra
contra os índios; portanto, em 29 de maio de 1640, logo
inteira ao tema, “Servi Liberi seu naturalis mancipiorum
após a Restauração, D. João IV promulgou lei que proibia,
libertatis iusta defensio”. Contudo, visto que este trabalho
por completo, a escravatura dos ameríndios. Mas a vali-
foi provavelmente redigido, em Havana, em 1681-2, mas
dade e a eficácia de uma lei constituem duas coisas bem
publicado somente em 1982, quando foi redescoberto,
diferentes. Então, em 17 de outubro de 1653, a Junta do
parece pouco provável que houvesse sido lido por Vieira.
Conselho Ultramarino redigiu provisão que corrigia a lei
É Vitória quem estabelece a maneira “não fale, não
anterior. Os oficiais das câmaras (que representavam os
pergunte” que prevaleceu nesta época de como lidar
colonos) e os desembargadores (que representavam o Rei)
com o tráfico de africanos. Em síntese, pode dissecar-se
deveriam fiscalizar a legitimidade de cativeiros, de acordo
o pensamento de Vitória em apenas dois argumentos
com os seguintes critérios: os decorrentes de uma guerra
distintos: a escravidão africana como um dado, não
justa, os de resgate dos índios de cordas e como sanção
para os ameríndios que já fossem súditos e cometessem
antropofagia ou evasão fiscal.51
A nova norma, contudo, ainda estava longe do ideal
e Vieira passa a envidar esforços para mudá-la. Em 2 de
abril de 1655, Vieira, entre outros “gravíssimos varões”,
assinou parecer de uma junta do Conselho Ultramarino,

ESPECIAL ABRIL 2023 191


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Aquinate, a investigação sobre a guerra se torna referência


obrigatória para todos os escolásticos. Por esse motivo,
Alfred Vanderpol prefere denominá-la de a “doutrina es-
colástica do direito da guerra”.55
O trabalho de Aquino sobre a guerra encontra-se con-
que se reuniu com o específico intuito de aprimorar a
densado na questão 40 da secunda secundae do Tratado da
provisão de 1653.52 O documento final foi aceito pelo Rei
Caridade, não no Tratado da Lei, nem no Tratado da Justiça
e serviu de projeto para a lei de 9 de abril de 1655. Além
da “Suma Teológica”, pois a guerra, antes de constituir um
de aumentar o poder de fiscalização dos religiosos sobre
problema para o Direito, viola a Caridade. Para haver justiça
os cativeiros e as aldeias – “antes os deixem [os índios]
numa guerra, é necessário preencher três condições:
governar pelos Parochos e principais de sua nação” –,
esta lei eliminou os casos de escravidão em decorrência
“Primeira, a autoridade do príncipe, por cujo mandato
do descumprimento de deveres de súdito (antropofagia e
se permite fazer a guerra. Não cabe à pessoa privada
evasão fiscal) e, em relação à escravização de prisioneiros
declarar guerra, porque pode expor seu direito perante
de uma guerra justa, inseriu cláusula que exige que este
um tribunal superior. (...).
tipo de guerra só poderia ser declarada pelo rei, o que sub-
Requer-se, em segundo lugar, justa causa, a saber: que
traiu das autoridades locais esta prerrogativa, “tirando em
aqueles que são impugnados mereçam, por alguma
todos os Governadores o poder de fazerem a dita guerra
culpa, essa impugnação. (...).
ofensiva por própria autoridade”53. Salienta Ventura que a
Terceiro, requer-se que seja reta a intenção dos com-
falta de menção na lei às entradas no sertão também se
batentes: que se intente ou se promova o bem, ou que
revela significativa, pois estariam compreendidas no âmbito
se evite o mal. (...)”56
das “guerras ofensivas”, que precisariam da declaração
real e se conformar aos demais critérios de guerra justa.54
Essas modalidades lícitas de escravidão provêm (quase)
Uma vez completadas essas condições, se um
todas da escolástica ibérica. A mais importante delas, a es-
combatente se tornasse prisioneiro, seria lícito reduzi-lo
cravização de prisioneiros decorrentes de uma guerra justa,
à escravidão. Neste caso, o cativeiro corresponde a um
era uma tradição medieval bastante antiga. Representa a via
destino melhor do que a morte, e estava de acordo com
mediana entre o repúdio total da guerra, como ocorre em
o direito comum. Mas já nos séculos XVI e XVII, a prática
correntes idealistas, e a aceitação incondicional da violência
da redução do prisioneiro à escravidão se encontrava der-
para o engrandecimento do Estado, segundo concepções
rogada nas guerras entre os europeus. Ainda assim, ela
próprias do realismo político, como se os reis e as potes-
ocorria em guerras que envolvessem europeus e outros
tades não se sujeitassem à moral. A guerra constitui um
povos. Vieira mesmo alude aos cristãos cativos em Argel
mal, mas há males ainda piores, como o assassinato de
por sarracenos.57
entes queridos e a profanação de cemitérios e lugares sa-
grados pelas mãos de soldados invasores. Trata-se de uma
tradição eminentemente cristã, porque ela é desenvolvida
e reelaborada por autores da cristandade europeia. Após a
sua origem com Agostinho, ela é retomada por outros pais
da Igreja, por Isidoro de Sevilha e o Papa Nicolau I. Houve,
então, um hiato, e a guerra justa não recebeu mais atenção
durante a Alta Idade Média. Somente depois de as teses
serem condensadas no “Decreto Gratiano”, na metade
do século XII, o assunto volta a interessar os pensadores.
Escrever sobre a guerra torna-se bastante popular na Baixa
Idade Média. Os canonistas e os teólogos começam a
esmiuçar as ideias até elas adquirirem a sua formulação
clássica em Tomás de Aquino. Em virtude do interesse do

192 CAFUZO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ão há dúvidas de que os juristas oficiais da Espanha e Portugal


procuraram encaixar os ameríndios nesta categoria. Mas esta não
é uma categoria tão elástica. Entre os escolásticos hispânicos,
Francisco de Vitória é quem prescreve, em definitivo, os títulos
lícitos para a guerra contra os índios. Segundo Borges de Mace-
do58, Vitória não era um defensor dos direitos dos índios; apenas
não aceitava as teses do Requerimento de Burgos – segundo o
qual a justiça se dava sobretudo por três motivos: a resistência
dos índios em se converter, em aceitar a autoridade do rei (já que
habitavam terras doadas pelo Papa), além da defesa da doutrina
aristotélica da escravidão natural. Vitória, de fato, não comungava
nenhum desses argumentos. Mas, na terceira seção da “Relectio
de indis”, passa a defender os títulos pelos quais os espanhóis
poderiam conquistar os índios. Entre os quais estava o direito
de visitar e se estabelecer na América, sem sofrer dano, o de
pregar o evangelho e o da proteção dos inocentes contra as leis
inumanas.59
Ademais, havia a escravidão como sanção a um delito. Esta
pena, no século XVII, não era mais admitida na cristandade eu-
ropeia, mas diversos povos ainda a aplicavam, inclusive contra
europeus. Em vários povos ameríndios, existia o costume da pena
de morte como sanção a crimes graves, e, em alguns poucos, o
de sacrifícios humanos e a antropofagia. O resgate dos índios de
cordas nada mais era do que a compra da pessoa que se encontra-
va presa (amarrada em cordas) e aguardando estes destinos. E o
preço seria a liberdade do indivíduo. Em verdade, seria a troca de
uma punição pela outra. A escravização constituiria um mal menor.
ESSAS MODALIDADES O argumento para este tipo de escravidão não foi inventado por
Vieira e se encontra também em Mercado e Molina.60
LÍCITAS DE Por último, a instituição “aldeia” representava ponto central
ESCRAVIDÃO PROVÊM da proposta de Vieira. Ele desejava expandir pelo Maranhão
(QUASE) TODAS DA uma experiência do século anterior que havia fracassado pelas
razões erradas e, por isto, permaneceu como uma possibilidade
ESCOLÁSTICA IBÉRICA. nas mentes de todos os jesuítas. Convém lembrar que, já na
A ESCRAVIZAÇÃO primeira metade do século XVI, o sistema da encomienda havia

DE PRISIONEIROS se espalhado por toda a América Espanhola, mas também entrou


na América Portuguesa: eram índios que serviam aos colonos e
DECORRENTES DE deveriam ser livres, mas eram, de fato, escravos. Vieira consta-
UMA GUERRA JUSTA tou o abismal malogro do instituto: além de não respeitarem a
liberdade, os colonos não cumpriam as suas funções de instrução
ERA UMA TRADIÇÃO nos costumes portugueses, nem de predicação cristã.
MEDIEVAL BASTANTE Em seu lugar, Vieira propõe ressuscitar o plano de outro

ANTIGA jesuíta. Manuel da Nóbrega concebeu a aldeia, um espaço onde


os nativos pudessem viver protegidos dos colonos e livres para
cultivar as suas terras para a própria subsistência. Tudo isso sob

ESPECIAL ABRIL 2023 193


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O final da história é conhecido. Os colonos não per-


ceberam o brilhantismo da proposta, nem aceitaram a
amizade do pregador. Depois que D. João IV faleceu e a
Coroa cessou de proteger Vieira, ele foi expulso do Mara-
a administração dos jesuítas, que instruiriam os índios nos
nhão, em 1661.
costumes portugueses, pregariam o evangelho, realizariam
batismos e demais sacramentos, num regime de ordem,
CONCLUSÃO
trabalho, diversão e religião. As bem-sucedidas reduccio-
Antônio Vieira não era nem um abolicionista frustrado,
nes que os seus colegas da Companhia implantaram no
nem um escravocrata enrustido, mas alguém atento à
Paraguai operavam pelos mesmos princípios das aldeias.
escolástica ibérica. Estes termos “abolicionismo” e “escra-
No Brasil, a experiência deu certo nos primeiros anos, mas
vagismo” constituem antípodas mutuamente excludentes,
erodiu com as investidas armadas dos colonos nos primei-
mas as últimas novidades da Teologia cristã do tempo de
ros anos do século XVII. Tão cedo como 1620, as aldeias
Vieira admitiam “um pouco” de escravidão. Mas isso não
costeiras haviam totalmente desaparecido.61
significava relativismo moral; Vieira quase deu a própria
Nas aldeias, os índios seriam catequizados e viveriam –
vida para reduzir os casos de escravidão indígena. A época
como o próprio Vieira aduziu – “meio cativos e meio livres”.
apenas não concedia valor absoluto à liberdade.
Cativos porque não poderiam deixar as aldeias sem perder
O problema da escravidão africana, porém, para Vieira,
a liberdade; livres porque, nas aldeias, receberiam o mesmo
extrapola o domínio do Direito para a Caridade, e o autor
tratamento de cidadãos plenos. Para Vieira, as aldeias não
faz o que qualquer pessoa deveria em face de um mal que
correspondiam somente a um modo de organização dos
não pode retificar: consolar a vítima. Se ele deveria ter se
nativos da sociedade colonial, uma forma mais humana e
movido mais para corrigir esta escravatura consiste em
legítima pelos padrões morais da época. Elas constituíam
outro problema, o “pecado do tempo”. De fato, não agiu.
condição sine qua non para a integração do índio no corpo
Mas, se o Direito falha, a Caridade não pode faltar, e o
místico do Estado português. Mais do que isso, os nativos
jesuíta desvela aos africanos a grande promessa que Deus
seriam instruídos para se tornarem o modelo de cidadão
fez. Neste tópico, os comentaristas se digladiam sobre se
que a República necessitava neste momento da história do
Vieira acreditava nas suas palavras de conforto ou se elas
império lusitano – uma época que o jesuíta encarava como
seriam hipocrisia. Isto é um erro. Mais do que consolar os
“messiânica”; revela-se significativo que é durante este
escravos, Vieira consolava a si mesmo; o padre precisava
núcleo que Vieira começa a escrever as suas “Esperanças
acreditar naquelas frases para que a sua fé fizesse sentido,
de Portugal”, a primeira obra da sua verve profética. A aldeia
para que Deus fosse bom e tivesse um plano geral de amor
representava um passo em direção a um glorioso futuro
(Caridade) dirigido aos homens.
político do Império e até da humanidade.
Mas o silêncio de Vieira sobre a licitude deste cativeiro
Por reduzir as possibilidades de novas escravizações
é também significativo. Revela que o inaciano se compor-
e concentrar os índios livres fora dos lares dos colonos,
tou como a maioria dos escolásticos do seu tempo: não
a proposta que Vieira envida extingue por completo as
percebeu o problema. O Direito não pode resolver todos
reminiscências das encomiendas. Porém, o que impediria
os males do mundo; somente o daquelas pessoas que se
a história de se repetir, e os colonos invadirem as aldeias
encontram (ou assim se compreende que se encontram)
para capturar os ameríndios novamente? Desde o início,
sob jurisdição nacional. Caso contrário, é uma adversidade
Vieira pensou nesta possibilidade e propôs que os aldea-
alheia. O Direito impõe um mínimo ético, um padrão moral
dos trabalhassem metade do ano nas próprias lavouras
tênue e incompleto, e a Caridade precisa intervir.
e a outra metade nas terras dos portugueses, mediante
uma modesta remuneração.62 Na época de Nóbrega, os
O autor é professor da UERJ e UFRJ.
índios trabalhavam apenas para si mesmos nas aldeias.
vauthierborges@gmail.com
Essa medida reduziria a cobiça dos colonos e ainda seria
economicamente responsável, sem violar as regras exis-
tentes sobre o trabalho livre.

194 CAFUZO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ

1. PELOSO, Silvano. “Antônio Vieira e o Império Universal: a Clavis Propheta- 9. VIEIRA, Antônio. Sermão XX do Rosário Maria Rosa Mística. In: “Obra Com-
rum e os documentos inquisitoriais”. Trad. Sônia Salomão. Rio de Janeiro: De pleta”, t. II, v. IX, p. 169 e 177.
Letras, 2007, p. 29.
10. VIEIRA, Antônio. Sermão da Epifania, Lisboa, Capela Real, 1662. In: “Obra
2. Vide os protestos promovidos pelo grupo “Descolonizando” diante da estátua Completa”, t. II, v. I, p. 383-384.
de Antônio Vieira em Lisboa (BARRIO, Javier Martín del. Portugal é forçado a
encarar o seu passado escravagista. Jornal El País, Seção Internacional, Lisboa, 11. Breve de 07 de outubro de 1462 do Papa Pio II que proíbe escravização
20 de outubro de 2017. de africanos já convertidos. BOXER, Charles. “A Igreja e a Expansão Ibérica
Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/10/internacional/ (1440-1770)”. Trad. Maria de Lucena Barros e Sá Contreiras. Lisboa: Edições
1507633783_573708.html. Acesso 21/11/2022, além de trabalhos na mídia tra- 70, s/d., p. 45.
dicional (JOSÉ, Emiliano. “Antônio Vieira e o doce inferno dos negros”. Revista
Carta Capital, Seção Política, São Paulo, 23 de junho de 2012. 12. VIEIRA, Antônio.Sermão da Epifania, Lisboa, Capela Real, 1662. In: “Obra
Disponível em https://www.cartacapital.com.br/politica/antonio-vieira-e-o-doce- Completa”, t. II, v. I, p. 383.
-inferno-dos-negros/. Acesso 21/11/2022 e na mídia contemporânea (PACHECO,
Moreno. Padre Antônio Vieira. “Projeto Salvador Escravista”. 13. RODRIGUES, Ernesto. Introdução. In: “Obra Completa”, t. II, v. IX, p. 11.
Disponível em https://www.salvadorescravista.com/homenagens-controversas/
padre-ant%C3%B4nio-vieira. Acesso 21/11/2022). 14. VIEIRA, Antônio. Sermão XXVII do Rosário Maria Rosa Mística. In: “Obra
Completa”, t. II, v. IX, p. 363.
3. Confira PÉCORA, Alcir. “A escravidão nos sermões do Padre Antônio Vieira.
Estudos Avançados”, v. 33, n. 97, pp. 151-170, 2019 e HANSEN, João Adolfo. 15. VIEIRA, Antônio. Representação da Câmara do Pará ao Padre António Vieira,
Francisco Suárez e Antônio Vieira: metafísica, teologia-política católica e ação 15 de janeiro de 1661. In: “Obra Completa”, t. IV, v. III, pp. 310-312; ______.
missionária no Brasil e no Maranhão e Grão Pará. “Labor Histórico”, Rio de Resposta que deu o Padre António Vieira ao Senado da Câmara do Pará sobre
Janeiro, n. 5, v. 2, pp. 395-410, jul. / dez. 2019. o resgate dos índios do sertão, 12 de fevereiro de 1661. In: “Obra Completa”,
t. IV, v. III, p. 155; ______. Resposta aos capítulos que deu contra os religiosos
4. VIEIRA, Antônio. Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, São Luís do da Companhia o procurador do Maranhão, Jorge de Sampaio. In: “Obra Com-
Maranhão, 1653. In: FRANCO, José Eduardo; CALAFATE, Pedro (direção). pleta”, t. IV, v. III, p. 248; ______. Parecer ao Príncipe Regente sobre o aumento
“Obra Completa Padre António Vieira”. São Paulo: Loyola, 2015, parenética do estado do Maranhão e missões dos índios, 1669, e ______. Informação
t. II, v. II, p. 228, 233, 233 e 235. Doravante, esta obra será referida somente que por ordem do Conselho Ultramarino deu sobre as coisas do Maranhão ao
como “Obra Completa”. mesmo Conselho o Padre António Vieira, 1678. In: “Obra Completa”, t. IV, v.
III, p. 263 e 274.
5. “Esta voz os dice que todos estáis en pecado mortal y en él vivís y morís
por la crueldad y tiranía que usáis con estas inocentes gentes. Decid: ¿Con qué 16. “(...) bem sei que alguns destes cativeiros são justos, os quais só permitem
derecho y con qué justicia tenéis en tan cruel y horrible servidumbre a estos as leis, e que tais se supõem os que no Brasil se compram e vendem, não
indios?”MONTESINOS, Antonio de. Missa do 4º domingo do advento, de 21 dos naturais, senão dos trazidos de outras partes.” VIEIRA, Antônio. Sermão
de Dezembro de 1511, na Isla Espaniola. Dominicos, 2011. XXVII do Rosário Maria Rosa Mística. In: “Obra Completa”, t. II, v. IX, p. 366.
Disponível em https://www2.dominicos.org/kit_upload/file/especial-montesino/ Se alguns cativeiros são justos é porque outros são injustos, e isto condiz com
sermon.pdf. Acesso em julho de 2022. Tradução livre. a ideia de que “entre os homens dominarem os Brancos aos Pretos é força, e
não razão ou natureza”.
6. Segundo o estagirita, o escravo natural emprega menos a razão do que
os homens naturalmente livres, e participa da razão somente até o ponto de 17. VIEIRA, Antônio. Sermão XXVII do Rosário Maria Rosa Mística. In: “Obra
entender que deve se submeter. Demonstra a evidência disso com base na Completa”, t. II, v. IX, p. 340.
existência de pessoas mais fortes e propensas a obedecer e a pertencer a
outrem. ARISTÓTELES. “A Política”. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UNB, 18. VAINFAS, Ronaldo. “Antônio Vieira: jesuíta do rei”. São Paulo: Companhia
1985, I, II, 1254b (p. 19). O que Aristóteles realmente quis dizer ainda hoje é das Letras, 2011, p. 61.
objeto de debate, mas, no século XVI, a tese da escravidão foi reinterpretada
por John Mair, um teólogo escocês, professor da Universidade de Paris, não 19. VIEIRA, Antônio. Carta a Roque Monteiro Paim, carta 718. In: “Obra Com-
como uma tentativa para explicar uma condição social existente na Atenas de pleta”, t. I, v. IV, p. 455.
IV a.C., mas uma classificação, alcançada por dedução, de uma determinada
gente cuja existência havia sido demonstrada somente naquele século. “Populi 20. VIEIRA, Antônio. Carta a Roque Monteiro Paim, carta 718. In: “Obra Com-
ille bestialiter vivit citra utraqueequator sub polis vivit homines feri ut Ptholomei pleta”, t. I, v. IV, p. 455.
Quadripertitodicit: et etiam hoc experientia compertum est quare primus eosoc-
cupansiuste eis imperat: quae natura sunt servi ut primi Politicumtertio quarto 21. VIEIRA, Antônio. Carta a Roque Monteiro Paim, carta 718. In: “Obra Com-
dicit Philosopho qui sunt alii natura servi alii liberimanifestu est in quibusdam pleta”, t. I, v. IV, p. 455.
determinatum est esse tale aliquidquibob id ipsum prodest: iustu est aliuser-
virealiu esse liberu: covenitaliuim perarealiumparereeo império quo innatu est 22. HOORNAERT, Eduardo; AZZI, Riolando; GRIJP, Klaus van der; BROD, Benno.
quare dominari. Proptereadicit Philosopho primo capite illilibriquaobreaiunt poete “História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo”. Primeira
grecos barbarisdominari: oportere ide sit natura barbari servi.” MAIOR, Iohannes. Época. Petrópolis: Vozes, 1977, tomo 2, p. 264.
“In secundum Sententiarum”. Parisii: Venudatur apud eunde Badium, 1519, folio
CLXXXVII direito. Este trecho serviu de base para as teses do Requerimento 23. NÓBREGA, Manuel da. Carta IX a el-Rei D. João III, 1551. In: “Cartas
de Burgos, obra de Lopes Palácios Rubios, e para o famoso e controverso livro Jesuíticas I: Cartas do Brasil do Padre Manuel Da Nóbrega” (1549-1560).
“Democrates Alter”, de Juan Ginés de Sepúlveda, de 1544. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Materiaes e achegas para a História e
Geographia do Brasil publicados por ordem do Ministério da Fazenda, n. 2,
7. VIEIRA, Antônio. Sermão XXVII do Rosário Maria Rosa Mística. In: “Obra dezembro de 1886, p. 92.
Completa”, t. II, v. IX, p. 341 e 344.
24. VALTIERRA, Angel S.J. Apresentação. In: SANDOVAL, Alonso de S.J. De
8. O termo “república” empregado por Vieira não deve ser compreendido como instauranda aethiopum salute: el mundo de la escravitud negra en América.
regime contraposto à monarquia, mas sim como governo misto. Bogotá: Empresa Nacional de Publicaciones, 1956, pp. XXVIII-XXXI.

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25. PINTO, Porfírio José dos Santos. “Choupanas e palácios: a arquitetura camelos, como a Elias, mas aquelas com que vos cobriu ou descobriu a natureza,
teológica vieiriana”. Tese de doutoramento em Literatura e Cultura. Lisboa, expostos aos calores do sol e frios das chuvas. A vossa pobreza é mais pobre
Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2018, p. 172. que a dos menores, e a vossa obediência mais sujeita que a dos que nós cha-
mamos mínimos. As vossas abstinências mais merecem nome de fome, que
26. Estima-se que, durante os séculos XVI e XVII, a médiade vida de um escra- de jejum, e as vossas vigílias não são de uma hora à meia-noite, mas de toda a
vo no engenho de açúcar era de sete anos. SIMONSEN, Roberto. “História noite sem meio. A vossa regra é uma, ou muitas, porque é a vontade e vontades
econômica do Brasil” (1500-1820). 6. ed. São Paulo: Companhia Editora de vossos senhores. Vós estais obrigados a eles, porque não podeis deixar o
Nacional, 1969, p. 134. seu cativeiro, e eles não estão obrigados a vós, porque vos podem vender a
outro quando quiserem. Em uma só religião se acha este contrato, para que
27. VIEIRA, Antônio. Sermão XIV do Rosário Maria Rosa Mística. In: “Obra também a vossa seja nisto singular. Nos nomes do vosso tratamento não falo,
Completa”, t. II, v. VIII, p. 419. porque não são de reverência, nem de caridade, mas de desprezo e afronta.
Enfim, toda a religião tem fim e vocação, e graça particular. A graça da vossa
28. Confira “Catecismo da Igreja Católica”. Edição oficial do Vaticano em são açoites e castigos: Haec est gratia apud Deum; a vocação é a imitação da
Português. Primeira parte, segunda seção, cap. segundo, art. 4º, § 2º, II, 601. paciência de Cristo: In hoc vocati estis, quia et Christus passus est; e o fim é a
herança eterna por prêmio: Scientes quod accipietis retributionem haereditatis.
29. Embora redundante para este artigo, a beleza da retórica de Vieira nesta Domino Christo seivite. E como o estado ou religião do vosso cativeiro, sem
passagem merece reprodução: “Em um engenho sois imitadores de Cristo outras asperezas ou penitências mais que as que ele traz consigo, tem seguro,
crucificado: Imitatoribus Christi crucifixi; porque padeceis em um modo muito por promessa do mesmo Deus, não só o prêmio de bem-aventurados, senão
semelhante ao que o mesmo Senhor padeceu na Sua cruz e em toda a Sua também a herança de filhos, favor e providência muito particular é da Virgem
Paixão. A Sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho Maria que vos conserveis no mesmo estado, e grandes merecimentos dele, para
é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na que por meio do cativeiro temporal consigais, como vos prometi, a liberdade ou
Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez para a esponja alforria eterna.” VIEIRA, Antônio. Sermão XXVII do Rosário Maria Rosa Mística.
em que Lhe deram o fel. A Paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte In: “Obra Completa”, t. II, v. IX, pp. 359-360.
foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo
despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo 36. VIEIRA, Antônio. Sermão XXVII do Rosário Maria Rosa Mística. In: “Obra
maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as Completa”, t. II, v. IX, p. 361.
chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que,
se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio. Só 37. BOSI, Alfredo. Vieira, ou a cruz da desigualdade. “Novos Estudos”. CEBRAP,
lhe faltava a cruz para a inteira e perfeita semelhança o nome de engenho: mas n. 25, outubro de 1989, p. 49. Cumpre salientar que este crítico comete o mesmo
este mesmo lhe deu Cristo, não com outro, senão com o próprio vocábulo. ‘Tor- crime do qual acusa Vieira. Ele simplifica a controversa passagem para “mas é
cular’ se chama o vosso engenho, ou a vossa cruz, e a de Cristo, por boca do particular providência de Deus que vivais de presente escravos e cativos para
mesmo Cristo, se chamou também torcular: Torcular calcavisolus (Is 63: 3). Em que por meio do cativeiro temporal consigais a liberdade, ou alforria eterna”. A
todas as invenções e instrumentos de trabalho parece que não achou o Senhor ideia central ainda é a mesma, mas ao retirar a ciência do pregador acerca da
outro que mais parecido fosse com o Seu que o vosso”. VIEIRA, Antônio. Ser- dureza do fardo (“sem outras asperezas ou penitências mais que as que ele
mão XIV do Rosário Maria Rosa Mística. In: “Obra Completa”, t. II, v. VIII, p. 414. traz consigo”), além da menção da promessa de Deus e de Maria de alcançar
a herança que acompanha o status de filhos (“por promessa do mesmo Deus,
30. VIEIRA, Antônio. Sermão XXVII do Rosário Maria Rosa Mística. In: “Obra não só o prêmio de bem-aventurados, senão também a herança de filhos, favor
Completa”, t. II, v. IX, p. 341. e providência muito particular é da Virgem Maria”), torna o trecho uma simples e
até simplória admoestação de Vieira para a submissão dos africanos; uma versão
31. VIEIRA, Antônio. Sermão XXVII do Rosário Maria Rosa Mística. In: “Obra que se acomoda muito mais do que a original à crítica que ele pretende fazer.
Completa”, t. II, v. IX, p. 343 e 345.
38. Vide, por exemplo, esta afirmação extraída logo no resumo do artigo: “Ao
32. VIEIRA, Antônio. Sermão XXVII do Rosário Maria Rosa Mística. In: Obra mesmo tempo em que combatia a escravidão indígena considerada ilícita, o
Completa, t. II, v. IX, p. 358. pregador jesuíta procurava justificar a escravidão dos negros desafricanizados.
A escravidão dos negros, para Vieira, estava em consonância com os próprios
33. VIEIRA, Antônio. Sermão XXVII do Rosário Maria Rosa Mística. In: Obra interesses professados pela Companhia de Jesus, ou seja, de grande proprietária
Completa, t. II, v. IX, p. 359. de terras e escravos. A postura assumida por Vieira nos seus Sermões aos ‘pre-
tos da Ethyopia’ tomou a forma de uma preleção pedagógica. O jesuíta visava
34. LIU, Yun. “Fratelli Tutti: o humanismo e o discurso de consolação do Pe. inculcar na mente dos escravos a concepção cristã de mundo, buscando torná-los
António Vieira em defesa dos escravos negros”. Dissertação de mestrado em conformistas e contribuindo, indiretamente, para o processo de acumulação
Estudos portugueses e românicos. Lisboa, Universidade de Lisboa, Faculdade primitiva do capital”. FERREIRA JR, Amarilio; BITTAR, Marisa. A pedagogia da
de Letras, 2021, p. 59. escravidão nos Sermões do Padre António Vieira. “Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos”, n. 84, 2019, p. 45.
35. O presente trabalho não requer a passagem completa, mas convém
reproduzi-la aqui, no rodapé, tamanha a beleza e a força das palavras: “Oh! 39. VIEIRA, Antônio. Sermão XXVII do Rosário Maria Rosa Mística. In: “Obra
ditosos vós, outra e mil vezes, como dizia, se assim como Deus vos deu a graça Completa”, t. II, v. IX, p. 366.
do estado, vos der também o conhecimento e bom uso dele! Sabeis qual é o
estado do vosso cativeiro, se usardes bem dos meios que ele traz consigo, sem 40. “Em 1466, o Duque de Viseu gabava-se de que africanos da costa ocidental,
acrescentardes nenhum outro? É um estado, não só de religião, mas uma das de ambos os sexos e todas as idades, eram comprados e vendidos como ‘gado’
religiões mais austeras de toda a Igreja. É religião segundo o instituto apostólico nos mercados de escravos de Lisboa e Porto.” BOXER, Charles. “A Igreja e a
e divino, porque, se fazeis o que sois obrigados, não servis a homens, senão a Expansão Ibérica” (1440-1770). Trad. Maria de Lucena Barros e Sá Contreiras.
Deus, e com título nomeadamente de servos de Cristo: Ut servi Christi, facientes Lisboa: Edições 70, s/d., p. 45.
voluntatem Dei ex animo, cum bonavoluntate servientes, sicut Domino, et non
hominibus. Notai muito aquela palavra cum bonavoluntate servientes. Se servis 41. Em 8 de janeiro de 1455, o Papa Nicolau V promulgou a Bula Romanus
por força, e de má vontade, sois apóstatas da vossa religião; mas, se servis Pontífex, ponto culminante de uma série de bulas emitidas entre 1452 e 1456 a
com boa vontade, conformando a vossa com a divina, sois verdadeiros servos respeito da doação de territórios ultramarinos para Portugal, com a incumbência
de Cristo: Domino Christo servite. Assim como na Igreja há duas religiões da da predicação cristã. A bula concedia ao rei português e aos seus sucessores
redenção de cativos, assim a vossa é de cativos sem redenção, para que também o direito de reduzir “inperpetuum servitutis” os pagãos e sarracenos inimigos
lhe não faltasse a perpetuidade, que é a perfeição do estado. Umas religiões são de Cristo. PORTUGAL. Bula “Romanus Pontifex” do Papa Nicolau V pela qual
de descalços, outras de calçados: a vossa é de descalços e despidos. O vosso concedeu ao Rei D. Afonso V e ao Infante D. Henrique e a todos os reis de Por-
hábito é da vossa mesma cor, porque não vos vestem as peles das ovelhas e tugal e seus sucessores, todas as conquistas de África com as ilhas nos mares

196 CAFUZO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

a ela adjacentes, desde os cabos Bojador e Não e toda a costa da Guiné, e que 55. VANDERPOL, Alfred. La Doctrine Scolastique du Droit de Guerre. Paris: A.
nelas possam mandar edificar igrejas cujos padroados lhe ficarão pertencendo, Pedone, 1919, p. 285. São autores dessa tradição, além de Agostinho de Hipona
1455. Disponível em Arquivo Nacional Torre do Tombo, https://digitarq.arquivos. e Isidoro de Sevilha (560-636), o Papa Nicolau I, com a sua carta aos búlgaros,
pt/details?id=3907997. Acesso em julho de 2022. o bispo Rufin, no tratado Debonopacis (1056), Yves de Chartres (1040-1116)
e Abelardo (1079-1142). Na metade do século XXII, há o decreto do monge
42. Faltam estudos para determinar os motivos dessa ignorância. Jean de Gratian. Então, surgem Tomás de Aquino, Raimundo de Peñaforte
(1180-1275), Inocêncio IV (1243-1254), Hostiensis (Henri de Suse: início do
43. LEITE, Serafim S. I. “História da Companhia de Jesus no Brasil” (século século XXIII-1271), Alexandre de Halès (1170-1245), Henri de Gand (início do
XVI – a obra). Lisboa, Rio de Janeiro: Livraria Portugália, Civilização Brasileira, século XXIII-1293) e São Boaventura (1221-1274). Depois, no século XIV e XV,
1938, t. II, p. 351. passam a surgir obras cujos títulos remetam à guerra: João de Legnano (início
do século XXIV-1383) – De Bello (1360), Henri de Gorychum – De Bello Justo
44. VITÓRIA, Francisco de. Letterto Fray Bernardino de Vique, OP. In: ______. (1420), Santo Antonio de Florença (1389-1459), Alphonse Tostate (1400-1455),
Political Writings. Editado por A. Pagden and J. Lawrance. Cambridge: Cambridge Martin de Lodi – De Bello (século XV), Gabriel Biel (1425-1495), Sivestre Prierias
University Press, 2010, p. 334. (1456-1523), Thomas de Vio (Cajetan: 1468-1534), Guilherme Mathiae – Libellus
de Bello Iustitia Iniustitiave (1533), Josse Clichthove (1472-1543). Depois, com
45. “(…) it is hardly likely the king of Portugal would permit such inhumanity, as Grandes Navegações despontam os nomes de Francisco de Vitória, Francisco
or that there should be no one to inform him of it. At any rate, without further Suárez e Balthasar de Ayala – De Jure et Officiis Bellicis et Disciplina Militari
information, I see no reason why the gentlemen who purchased the slaves (1582). Deste período, são nomes menores: A. Guerrero – Tratactus de Bello
here in Spain should have any scruples.” Adiante: “I see no reason to raise Justo et Injusto (1543), Diego de Covarruvias (1512-1577), Domingos de Soto
great scruples here either, for the Portuguese are not obliged to discover the (1494-1560), F. Martini – De Bello et Duello (1589), Gabriel Vasquez (1551-1604),
justice of wars between barbarians. It suffices that a man is a slave in fact or Domingos Bañez (1528-1604), Roberto Berlarmino (1542-1621), Leonardo Les-
in law, and I shall buy him without a qualm”. Depois: “But in a country where sius (1554-1623), Gregório de Valencia (1561-1603), Luís de Molina (1536-1600),
one can be enslaved in numerous ways, or even sell oneself voluntarily, why P. Belli – De re Militari et Bello (1558), Alberico Gentili – De Jure Belli (1598) e
should not a man voluntarily agree to become the slave of someone who is o próprio Hugo Grócio – De Jure Belli ac Pacis (1625).
prepared to rescue him, especially if by the laws of the same country he would
become a true slave of any native who cared to ransom him? Besides, a Christian 56. “Primo quidem, auctoritas principis, cuius mandato bello est gerendum. Non
could buy him from the person who had ransomed him; why not directly from enim pertinet ad personam privatam bellum movere: quia potest ius suum in
himself? In my view he can be considered a slave for the duration of his life”. iudicio superioris prosequi. (...) Secundo, requiritur causa iusta: ut scilicet illi qui
E, por fim: “Kings often think from hand to mouth, and the members of their impugnantur propter aliquam culpam impugnationem mereantur. (...) Tertio,
councils even more so. But as for a thing so outlandish as the one mentioned requiritur ut sit intentio bellantium recta: qua scillicet intenditur vel ut bonum
in the first article, it lacks the likelihood of truth”. Op. Cit., p. 335. promoveatur, vel ut malum vitetur.” AQUINO, ST. 2-2 q. 40 a.1.

46. “A greater scruple than any of these, and more than a mere scruple, is that 57. VIEIRA, Antônio. Voto do Padre António Vieira sobre as Dúvidas dos
in general they treat their slaves inhumanly, the masters forgetting both that Moradores de São Paulo acerca da Administração dos Índios, 1694. In: “Obra
their slaves are fellow-men, and St Paul’s saying that masters and servants Completa Padre”, t. IV, v. III, p. 276.
both have a Master in heaven to whom they must render account (Col. 4: 1).
If treated humanely, it would be better for them be to slaves among Christians 58. BORGES DE MACEDO, Paulo Emílio. O mito de Francisco de Vitória:
than free in their own lands; in addition, it is the greatest good fortune to become defensor dos índios ou patriota espanhol? “Revista de Direito Internacional”,
Christians.” Op. Cit., p. 335. v.9, 2012, pp. 6-7.

47. Confira: OLIVEIRA, Fernando. Arte da Guerra do Mar. Lisboa: Edições 70, 59. Por último, ressaltava ad argumentandum que, se houvesse mesmo alguma
2008, p. 24; MERCADO, Tomás de. Suma de Tratos y Contratos. s/l.: Editorial comunidade incapaz de se governar, então, por caridade, os espanhóis deve-
del Cardo, Biblioteca Virtual Universal, 2006, II, XXI, s/p. Disponível em https:// riam conduzi-la, ainda que não em proveito próprio, mas dos índios. VITÓRIA,
biblioteca.org.ar/. Acesso em julho de 2022; MOLINA, Luís de. De Iustitia et de Francisco de. De Indis. De titulislegitimis quibus barbari potuerint venire in
Iure Tractatus. Venetiis: Sessas, 1611, II, XXXIII e XXXV. ditionem Hispanorum, [pp. 705-726].In: ______. Obras de Francisco de Vitória.
Relecciones Teologicas. Editadas por Teofilo Urdanoz. Madrid: Biblioteca de
48. VIEIRA, Antônio. Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, São Luís do Autores Cristianos, 1960.
Maranhão, 1653. “Obra Completa”, t. II, v. II, p. 234.
60. MERCADO, Tomás de. Suma de Tratos y Contratos. s/l.: Editorial del Cardo,
49. Assim denominados aqueles que tivessem se tornado reféns de outros Biblioteca Virtual Universal, 2006, II, XXI; MOLINA, Luís de. De Iustitia et de Iure
índios para serem mortos, ou até comidos. Tractatus. Venetiis: Sessas, 1611, II, XXXIII e XXXV.

50. VIEIRA, Antônio. Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, São Luís do 61. EISENBERG, José. António Vieira and the Justification of Indian Slavery.
Maranhão, 1653. In: “Obra Completa”, t. II, v. II, p. 239-240. The Yale Colloquium on Father António Vieira, S.J., Yale University, New Haven,
November 7-8, 1997, p. 7. Até mesmo Bakunin enamorou-se do sistema das
51. PORTUGAL. Provisão sobre a liberdade e captiveiro do gentio no Maranhão. aldeias que os jesuítas procuraram instituir na América do Sul. Numa carta
In: “Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro”, v. 66, 1ª parte, 1948, pp. em que escreveu com Paul Lafargue e Engels, Marx deixa escapar: “(...) se
20-21. Disponível em Biblioteca Nacional Digital Brasil, http://memoria.bn.br/ a sociedade do futuro se organizasse conforme o modelo da Aliança, seção
hdb/periodico.aspx. Acesso em agosto de 2022. russa, sobrepujaria de longe o Paraguai dos reverendos padres jesuítas tão
caros a Bakunin”. MARX, Karl. De L’ Alleance de la Democratie Socialiste et I’
52. PORTUGAL. Consulta original de gravíssimos varões, sobre a forma e casos Association Internacionale des Travailleurs. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.
em que se devem cativar os índios das nossas conquistas. In: “Obra Completa”, “Contribuição para uma História da América Latina”. Organizado por Pedro Sco-
t. IV, v. III, pp. 290-301. ron. Trad. Carlos Alberto Martins. São Paulo: Edições Populares, 1982, p. 140.
Importa observar que os Sete Povos das Missões no sul do Brasil representam
53. PORTUGAL. Ley que se passou pelo Secretário de Estado em 9 de abril a derradeira onda colonizadora dos jesuítas e são posteriores a este período: a
de 655 sobre os índios do Maranhão. In: “Anais da Biblioteca Nacional do primeira missão, São Francisco de Borja, é fundada em 1682. Confira KREUTZ,
Rio de Janeiro”, v. 66, 1ª parte, 1948, pp. 25-28. Disponível em Biblioteca Estanislau Amadeu. “Missões Jesuítico – Guaranis: síntese histórica”. EDIURI,
Nacional Digital Brasil, http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Acesso em Santo Ângelo, 2007.
agosto de 2022.
62. VIEIRA, Antônio. Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, São Luís do
54. VENTURA, Ricardo. Introdução. In: “Obra Completa”, t. IV, v. III, p. 28. Maranhão, 1653. In: “Obra Completa”, t. II, v. II, p. 240.

ESPECIAL ABRIL 2023 197


A ARTE
MUSICAL
e a Casa de
Bragança

Bruno da Silva Antunes de Cerqueira


Historiador e advogado

198 SOLFEJO
ESPECIAL ABRIL 2023 199
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A
tornado muito admirado por bravura tanto pelo jovem rei
como por seus generais, pois não quis voltar para casa,
quando D. Sebastião determinou, e fugiu, retornando ao
campo de batalha. A mãe de D. Theodozio II era a verdadei-
ligação entre a Casa de Bragança e a arte dos ra herdeira do trono português, D. Catharina (1540-1614),
sons, ou “arte sublime”, é muito anterior à melomania de por ser a neta de D. Manoel o Venturoso, filha de seu filho
D. João VI ou à impetuosidade compositória de D. Pedro I. D. Duarte, duque de Guimarães. Mas as maquinações
O primeiro rei português da Casa de Bragança, D. João políticas e militares de D. Felipe II de Espanha impediram
IV de Portugal (1604-1656), que era o oitavo titular desse a ascensão da infanta e o colocaram no trono, iniciando a
ducado português erigido em 1442 para D. Affonso (1377- célebre “União Ibérica” (1580-1640).
1461), o filho natural – também considerado bastardo na O investimento na educação do herdeiro e sucessor de
voga do tempo, mesmo que concebido antes do matrimô- D. Theodozio II foi imenso. Ele acabou por conseguir fazer
nio – de D. João I, iniciador por sua vez da Casa de Aviz, de seu filho um bom cavaleiro, aluno bem versado em
segunda dinastia soberana lusa, foi um “teórico musical” teologia e cânones e nas artes governativas. O que pouca
reconhecido em seu tempo.1 gente sabe é que, graças a seu pai, o futuro D. João IV de
Os Bragança, lembremos, eram a mais rica, poderosa Portugal se tornou um “rei, compositor e musicólogo”,
e influente casa do Reino de Portugal, ramo da dinastia
declarada extinta em 1580 com o desaparecimento de
D. Sebastião e a impossibilidade de geração de herdeiros
pelo Cardeal-Rei D. Henrique. Grande parte da população
portuguesa via os Bragança como os sucessores verdadei-
ros do trono, ao contrário da dinastia filipina, considerada
estrangeira. O ducado bragantino (ou brigantino, como
também se escreve) era um Estado dentro do Estado.
Sua sede era o suntuoso Paço de Vila Viçosa, no Alentejo,
perto de Évora.
Em 1604, nasceu o novo duque de Barcelos, título que
passava a ser o do primogênito da Casa de Bragança, D.
João de Bragança e Velasco. O príncipe foi relativamen-
te devotado aos estudos, mas, como toda criança, em
especial as de sua condição, não abandonava caçadas,
touradas e todo gênero de divertimento. Seu pai, o duque
D. Theodozio II de Bragança (1568-1630), é considerado um
personagem austero pela historiografia, tendo permanecido
viúvo – e, em tese, casto – por mais de trinta anos.2
Quando criança, D. Theodozio, pajem de El-Rei D.
Sebastião, seguiu com ele para Alcácer-Quibir, tendo se

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ou, ainda, “o maior músico de entre todos os monarcas de Rebello é considerado um dos grandes nomes da segunda
todos os tempos”, nas palavras abalizadas do compositor geração de compositores ibéricos que escreveram música
e teórico português novecentista Luiz Maria da Costa de policoral e já foi descrito como o mais genial e excêntrico
Freitas Branco (1890-1955).3 autor de música sacra do Seiscentos português.
D. João foi aluno da escola particular de música dos Outro importante professor de D. João II de Bragança
Bragança, o Colégio dos Santos Reis Magos de Vila Viço- e IV de Portugal foi o compositor inglês ou irlandês Robert
sa, criado por seu avô D. João I de Bragança, em 1609, Turner, fugido da perseguição aos católicos na Velha Albion
para servir de aprendizado aos moços de coro da capela e acolhido como mestre de capela em Vila Viçosa. Sobre o
do Paço Ducal. personagem, Freitas Branco lembra que teria sido discípulo
O maior colega de estudos de D. João foi João Lou- do flamengo Ghaugericus de Ghersem, que por sua vez o
renço Rebello (1610-1665), ou João Soares Rebello, o era de Philippe Marie Rogier, ambos representantes finais
“Rebellinho”, um rapaz muito dotado que logo foi colocado da escola franco-flamenga. Outras influências no pensa-
na capela ducal e que em breve se tornou o professor do mento musical de D. João foram as tradições alentejanas
próprio duque-herdeiro. Em 1630, Rebello já era o mestre e a Escola de Sevilha.4
de capela e na década seguinte, com a ascensão de seu Qual o legado de D. João para a música e a musicologia?
“amo” a rei, será reconhecido em nível bem mais alto. Segundo Freitas Branco, que cita os grandes estudiosos

D. JOÃO REUNIU UMA DAS


MAIORES BIBLIOTECAS
MUSICAIS DO MUNDO

ESPECIAL ABRIL 2023 201


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

seus antecessores, e que apesar da simpatia pelo biogra-


fado, está longe do panegírico, D. João reuniu uma das
maiores bibliotecas musicais do mundo e foi um crítico
musical bastante capaz de discutir o que hoje chamamos
“estado da arte”, em determinados temas muito presen-
tes no rebuliço do Renascimento, em especial a polifonia.
Enquanto autor, D. João escreveu:
• “Defensa de la Musica Moderna contra la errada
opinion del Obispo Cyrillo Franco”, publicado em Lisboa
em 1649 e vertido para o italiano;
• “Respuestas a las Dudas que se pusieran a la Misa
Panis quem ego dabo, del Palestrina, impresa en el libro
quinto de sus misas – 25 de setiembre de 1654” respon-
dendo às críticas clericais quanto à música de Giovanni
Pierluigi da Palestrina (1525-1594);

NAQUELA ÉPOCA,
• “Concordancia da Musica e passos dela coligidos dos
mayores professores desta arte”;
• “Principios da Musica, quem foram seus primeiros
autores e os progressos que teve”.
As duas últimas obras, manuscritas, perderam-se, como SE CONSIDERAVA A

A MÚSICA
milhares de livros, partituras, opúsculos e coleções de valor
incalculável, com o incêndio provocado pelo terremoto
que destruiu Lisboa em 1755. Das suas composições, são
conhecidas e reproduzidas até hoje:
• “Crux Fidelis”, cujo original se encontra na Biblioteca

SACRA
de Dresden (Saxônia), mas que Freitas Branco coloca certa
dose de dúvida sobre a autoria;5
• “Adjuva nos Deus”, original na Sé de Lisboa. Moteto a
quatro vozes mistas. Freitas Branco garante a autenticidade;
• “Paixão segundo São João”, original na biblioteca do
Paço de Vila Viçosa. Freitas Branco assevera que a autoria
seria do rei-músico.
Recorrentemente, por desconhecimento, chega-se a
conceder a D. João IV a autoria das notas iniciais de “Ades- COMO A “VERDADEIRA
MÚSICA”
tes Fidelis”, uma das canções natalinas mais famosas do
mundo. Em reportagem recente do portal eletrônico Sapo,
o historiador da música e antigo secretário de Estado de
Cultura de Portugal, Rui Vieira Nery, considera disparatada
a ideia, visto que nenhum biógrafo ou especialista na vida e
obra de D. João IV jamais confirmara a hipótese: “Trata-se
de um disparate musicológico absoluto”, que terá surgido
“já em meados do século XX”.6 Mas o curioso é perceber
que, em vida, Freitas Branco já se deparava com a lenda,
afirmando que a atribuição: “[...] pode ser classificada de
ridícula [...] músico algum, com a noção do que seja estilo,
poderá tomar este trecho, caracterizadamente do baixo-
-cifrado, por obra de um polifonista”.7
Passado o período de beligerância para afirmação da
independência portuguesa frente à Espanha filipina, a

202 SOLFEJO
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sucessão de D. João IV foi penosa, já que seu primogênito, naturalizado português e tornado arquiteto-mor do Reino,
D. Theodozio III de Bragança (1634-1653), morreu aos 19 foi o responsável pelas obras, que duraram mais de vinte
anos, e o segundo filho, que foi rei como D. Affonso VI, anos e empregaram mais de 45 mil operários.
era deficiente físico e mental. Para a igreja foram encomendadas em Flandres dois
Coube ao neto homônimo do “Restaurador”, D. João V carrilhões com 92 sinos – os maiores do tempo. Seis
de Portugal (1689-1750), que passou à história portuguesa órgãos históricos adornam a Basílica de Nossa Senhora
como “o Magnânimo”, grande emulador do “Rei Sol” e Santo Antônio, que possui um dos maiores conjuntos
francês, tornar Lisboa uma corte esplendorosamente mu- de estatuária italiana fora da Itália. A biblioteca de Mafra
sical. Bragança pelo pai e Wittelsbach pela mãe, D. João V conta com mais de 38 mil volumes e há ainda um núcleo
recebeu, com o leite materno, o amor pelas artes.8 conventual, que na origem abrigava os capuchinhos e hoje
está desativado, com um hospital da época. A inauguração
A “ITÁLIA MUSICAL” PORTUGUESA E O PALÁCIO-CONVENTO DE MAFRA solene de Mafra se deu a 22 de outubro de 1730, dia do
Explica o musicólogo André Cardoso que foi em pri- quadragésimo-primeiro aniversário do rei, mas as obras
meiríssimo lugar por motivações religiosas que D. João persistiram. As cerimônias, faustosas, duraram oito dias!12
V produziu uma “invasão” de músicos itálicos na Lisboa Mafra é, desde 2019, patrimônio da humanidade, por de-
setecentista. Copistas portugueses foram encarregados cretação da Unesco.
de anotar todos os repertórios da Basílica de São Pedro
para emular na Capela Real; em 1730, a capela de Lisboa
contaria com 26 cantores da Península Itálica. Para lá igual-

E
mente mandou o rei que fossem estudar Antonio Teixeira,
Joaquim do Valle Mexelim, João Rodrigues Esteves e Fran-
cisco Antonio de Almeida.9 Este último foi, como sabido,
cravista e organista de renome e autor das óperas “Trionfo
d’Amore” e “Sinalba”, até hoje executadas.
Naquela época, aquilo que hoje chamaríamos de política m Mafra a corte joanina assistiu a espetáculos
pública cultural era sobretudo o fomento à música; e nessa estrondosos de música barroca. Basta dizer que o rei e
arte se considerava a música sacra como a “verdadeira a rainha contrataram para professor da infanta D. Maria
música”. Se a música predominante no Portugal joanino Magdalena Barbara (1711-1758), futura rainha espanhola,
era “conservadora” e de “características polifônicas” que o compositor, cravista e organista napolitano Domenico
já teriam desaparecido em outros países europeus,10 a Scarlatti (1685-1757), filho de um célebre musicista da corte
verdade é que a população portuguesa de então era maci- dos Borbone-Napoli e que já havia servido à rainha polonesa
çamente católica. Aliás, o país era uma espécie de Vaticano exilada e à corte papal. Scarlatti mudou-se para Portugal em
maximizado. Não por acaso os viajantes consideravam 1719 e passou a próxima década não somente ensinando
Portugal uma nação atrasada e reacionária, justamente por- a D. Barbara como fazendo do cravo instrumento de maior
que o iluminismo e seu anticlericalismo, que será voraz, já apreço pelas audiências. Com o casamento de D. Barbara
começava a ser entoado, tanto nas sociedades quanto nas com o então herdeiro espanhol, D. Fernando, em 1733,
cortes protestantes e até na “sacratíssima” Mãe Rússia. Scarlatti foi chamado à corte madrilenha para atuar como
Da melomania de D. João V e da opulência que o ouro mestre de capela dos príncipes de Astúrias. Com a subida
e os diamantes das minas da colônia brasílica lhe propicia- ao trono de D. Fernando VI e D. Maria Barbara, em 1746,
ram surgiu a edificação de Mafra, o conjunto barroco de Scarlatti aumentou a projeção; a varíola levou o casal, em
palácio, basílica e convento idealizado como cumprimento 1758-1759, mas Scarlatti permaneceu no país, onde havia
de promessa ao Alto pelos felizes sucessos de sua rainha constituído família. Autor de mais de quinhentas sonatas,
e prima-irmã, D. Maria Anna de Áustria (1683-1754), a qual, de único movimento, pelas quais contribuiu com inovado-
aliás, passou a nomear a nova capital das Minas Geraes, ras abordagens harmônicas, foi grande amigo do castrato
Mariana. Farinelli (Carlo Broschi), cuja história foi filmografada na
Em 1717 iniciou-se a construção do palácio real em década de 2000.
pedra lioz da região, que ocuparia 38 mil metros, com Outro contratado, em 1725, para compositor da corte
1.200 divisões, 4.700 portas e janelas e 156 escadas.11 O e maestro di solfa do Seminário da Patriarcal de Lisboa foi
engenheiro suábio João Frederico Ludovice (1673-1752), Giovani Giorgi, de quem as notícias biográficas são mais

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OS
FILHOS DE D. PEDRO E
D. LEOPOLDINA
RECEBERAM
INSTRUÇÃO
MUSICAL À ALTURA
DE SUA CONDIÇÃO
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escassas, sabendo-se, contudo, que já exercera ofícios si- ve as glórias do maestro, cego nos anos finais de vida e
milares na Basílica de São João de Latrão em Roma. Parece falecido no ano seguinte ao da ascensão (1777) daquela
que Giorgi viveu cerca de trina anos na corte bragantina.13 que, de “a Pia”, passaria depois para a historiografia como
“a Louca”.16
O GÊNIO DAVID PEREZ E A ÓPERA NA CORTE JOSEFINO-POMBALINA
Napolitano de origem hispânica, como milhares de con- A CORTE CARIOCA E OS INFANTES-MÚSICOS
terrâneos seus, David Perez (1711-1778) nasceu em família É geralmente sabido que D. Pedro I do Brasil, IV de
relativamente humilde e foi matriculado no Conservatório Portugal e II de Bragança teve educação musical esmerada
de Música de Nossa Senhora do Loreto, em Nápoles, e que nesse ponto pai, mãe, avó e tias muito influíram para
aos 12 anos, dedicando-se ao estudo do contraponto. o tino musical desse rei-soldado.
Assim que formado, logo foi posto a serviço do príncipe Pouquíssimo comentada é a educação musical de suas
de Aragona, D. Diego Naselli (1727-1809), que se tornará irmãs, que foi a mesma da sua.17 O maestro português
o mordomo-mor – ou Lord Chamberlain, caso se queira – Marcos Portugal foi professor de todas elas e era comum
do rei D. Carlo de Nápoles e da Sicília, que depois seria D. que cantassem em homenagem ao pai, ou por outros
Carlos III de Espanha. motivos, como se lê, por exemplo, na Gazeta do Rio de
Janeiro de 12 de novembro de 1817, quando da chegada
do conde Emmerich de Eltz (1765-1844), novo embaixador

N
do imperador austríaco na corte de D. João VI. Após as
cerimônias de recepção oficial, seguiu-se uma “magnífica
serenata” no palácio da Real Quinta da Boa Vista, em que
D. Pedro cantou uma ária da “symphonia composta por
Ignacio de Freitas”, sendo seguido por suas irmãs D. Maria
o início da década de 1740, Perez já era considera- Tereza e D. Izabel Maria.18
do um profissional maduro. Em fevereiro de 1749, Perez Sobre a instrução de Marcos Portugal aos filhos de D.
competiu com Niccolò Jommelli em um concurso público João VI e D. Carlota Joaquina e a desenvoltura dos alunos
para o cargo de mestre de capela no Vaticano, mas per- no canto, o musicólogo David Cranmer elucida:
deu pelos jogos políticos cardinalícios. Ambos, Jommelli
e Perez, foram contratados pelo governo português em À exceção dos dois tercetos, “Pace, pace, cara Ghitta”,
1752, o primeiro para produzir anualmente uma ópera séria de La donna di genio volubile [...] e “Oh come in questi
e uma bufa, além de música sem acompanhamento para amplessi”, de La Zaira [...] dedicados a “SS. AA. RR.”
a Capela Real; o segundo foi nomeado diretor musical da e do dueto “Per pietà, deh non lascarmi calma”, de
corte josefina. 14 Ginevra di Scozia [...] todos os trechos de ópera têm
Pombal trabalhou para que o “rei seu senhor” fosse dedicatória a uma ou duas de SS. AA. RR.. No caso dos
exalçado pela música e ambos se empenharam muito na duetos, verifica-se que o par é sempre D. Maria Isabel
construção da Ópera do Tejo, teatro magnificente junto ao com D. Pedro de Alcantara (antes da mudança de voz)
Paço da Ribeira, inaugurado em 31 de março de 1755, com ou D. Maria Francisca de Assis com D. Isabel Maria.
o drama “Alessandro nell’Indie”, de Metastasio, adaptado Enquanto as dedicatórias a D. Maria Isabel e a D. Isabel
por Perez. O teatro foi completamente arruinado pelo ter- Maria são frequentes (respetivamente 19 e 21), a D.
remoto/maremoto, sete meses depois. Pedro de Alcantara e a D. Maria Francisca de Assis são
A rainha de D. José era D. Mariana Vitoria de Espanha, relativamente escassas (respetivamente 5 e 7). Pode-se
que, proveniente de corte profunda e igualmente melôma- deduzir, todavia, que as vozes destes últimos eram as
na, nas palavras do historiador Paulo Braga, era ela mesma mais agudas (sobem ambos até sib4, de passagem no
cravista e “cantora” e pessoa sem a qual a música a faria caso de D. Pedro, mais sustentado no caso de D. Maria
sucumbir, conforme relatava nas cartas à mãe, Elisabetta Francisca), que a voz de D. Isabel Maria era a mais grave
de Parma.15 (de sib2 até ré4) e a de D. Maria Isabel entre estes ex-
Tanto o rei como a rainha se empenharam para que as tremos: em termos latos, dois sopranos, um contralto e
infantas filhas do casal, que não conseguiu gerar herdeiro um meio-soprano, embora seja importante salientar, no
varão, fossem plenamente versadas em música. Perez caso das Infantas, que eram bastante novas ainda, com
foi professor da herdeira, a futura D. Maria I, que mante- vozes ainda por desenvolver, especialmente no que diz

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respeito às notas mais agudas e graves da extensão. A visto que sua esposa era outra conhecedora da arte dos sons
falta de datação dos manuscritos dificulta uma avaliação e o aproximou de Sigismund von Neukomm (1778-1858).
de como estas vozes poderiam ter evoluído ao longo Os filhos de D. Pedro e D. Leopoldina que chegaram à
dos anos que duraram as aulas de canto. idade adulta (D. Maria da Gloria, D. Januaria Maria, D. Fran-
Quanto a D. Pedro de Alcantara, a mudança de voz cisca Carolina e D. Pedro d’Alcantara) receberam instrução
permite conjeturar mais. Todas as suas dedicatórias musical à altura de sua condição e foram nominalmente, os
dizem respeito ao período antes da mudança, incluindo mais velhos, alunos de Marcos Portugal, que já era idoso
o único solo, a extensa e difícil ária “Per quel paterno para os padrões do tempo.
amplesso”, de Artaserse, da qual só se pode concluir D. Pedro II do Brasil (1825-1889) não foi um “rei mu-
que terá possuído uma voz de soprano poderosa e sical” e menos ainda um rei-músico como seu pai e seu
resistente. Por vários motivos, contudo, pode-se pro- pentavô, D. João IV. A corte de D. Pedro II foi austera, com
por adicionalmente que, após a mudança, lhe estava um quê de tecnocrática e burocrática, o que não impediu,
destinado o papel de Ariodante, escrito na clave de fá, evidentemente, que florescessem teatros, óperas, escolas
no referido dueto sem dedicatória, “Per pietà, deh non musicais e manifestações folclóricas as mais diversas,
lascarmi calma”, de Ginevra di Scozia. A combinação visto que o monarca era real incentivador das ciências, das
de um âmbito relativamente reduzido, de baixo, de artes e da cultura em geral. Freitas Branco assinala que
sib1 até ré3, com uma nota alternativa proposta, uma D. Pedro II teve “importante lugar na história da música”
oitava mais grave, a única vez que sobe para mib3 pela influência que teria exercido no pensamento e na obra
(compasso 115), em conjunto com uma linha melódica de Richard Wagner (1813-1883), algo que não parece tenha
com algumas dificuldades técnicas, apontam uma voz sido até hoje muito explorado, embora as conexões com
ainda por se desenvolver de um dono tecnicamente Bayreuth sejam bem conhecidas.21
experiente. Vale a pena comparar, por exemplo, o Para efeitos musicais, é possível que o Segundo Reina-
dueto “Vo’ cantar d’una certa contessa”, de Le don- do tenha tido mais relevância por intermédio da imperatriz,
ne cambiate [...], dedicada a D. Maria Francisca de D. Thereza Christina Maria das Duas Sicílias (1822-1889),
Assis, em que há várias passagens para o papel de do que do imperador propriamente. Segundo Aniello Avella,
Contessa Ernesta com alternativas uma oitava mais existiu uma “república italiana das artes” no Rio de Janeiro,
grave (incluindo dó5 quatro vezes, com alternativa de em decorrência da presença da princesa napolitana no
dó4), ou seja, para a voz da aluna há alternativas mais trono brasileiro.22
fáceis propostas. 19

C
Como se vê, os infantes, ao menos o tenorino D. Pedro
e suas irmãs D. Maria Tereza, D. Maria Izabel, D. Izabel Ma-
ria e D. Maria Francisca d’Assis, foram músicos a seu modo,
vindo a se tornar o primeiro um músico completo, posto
que não pudesse ser profissional, por motivos óbvios. Em
continuidade a essa “progênie musical” joanina e carlotina uriosamente, o maior nome da música brasileira ao
tem-se o primeiro neto, filho de D. Maria Tereza e de D. tempo de D. Pedro II, Carlos Gomes (1836-1896), foi um
Pedro Carlos, gestado e nascido no Rio de Janeiro e titulado prodígio do fim do Segundo Reinado e visivelmente com-
infante de Portugal – além de infante de Espanha por direito prometido com o futuro Terceiro Reinado (anos 1880). O
paterno –, D. Sebastião Gabriel de Bourbon e Bragança autor de “Il Guarany” e “Lo Schiavo”, óperas idealizadas
(1811-1875), igualmente aluno de Marcos Portugal, que na Itália, foi abolicionista e isabelista engajado, sendo com-
comporá uma “Melodia per Voce di Tenore trasnportata padre de André Rebouças (1838-1898).
per Baritono con accomp. di Piano Forte”, que se encontra D. Isabel, a filha e sucessora de D. Pedro II, uma “Alteza
no arquivo da Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda.20 particularmente afável e dedicada à música”, nas palavras
de Ambroise Thomas, foi a dedicatária das obras de Carlos
A MÚSICA E OS DESCENDENTES DE D. PEDRO I Gomes.23 A aluna do organista genovês Isidoro Bevilacqua
Casado D. Pedro de Alcantara de Portugal, Brasil e Al- e do maestro ítalo-português Fortunato Mazziotti – que
garves com sua prima Maria Leopoldina da Áustria, Hungria havia regido as exéquias de sua trisavó D. Maria I – se so-
e Bohêmia em 1817, aumentou no rapaz o fulgor musical, bressaiu individualmente mais na arte pictórica do que no

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musical, discípula que foi do próprio Victor Meirelles. Nunca nista austro-húngaro se apresentou em Belém e dedicou
abandonou, contudo, a tradição bragantina de associar a composições à rainha em 1845.27
corte aos saraus, concertos e bailes, alterando o aspecto D. Pedro V de Portugal (1837-1861), que reinou tão
quase lúgubre que era reparado por viajantes no Paço de pouco tempo e deixou imensas saudades nos portugueses,
São Cristóvão. Foi em Laranjeiras, no Paço Isabel, que as foi ele mesmo bom pianista; seu irmão e sucessor, D. Luiz
“partidas da Princesa”, ou seja, as recepções semanais I (1838-1889), era violoncelista e organizou, segundo Freitas
regadas a muita música e dança, tiveram lugar nas déca- Branco, um quarteto de cordas de amadores (Augusto
das de 1870 e 1880. O fato de que essa corte isabelina já Gerschey, conde de Moçâmedes, marquês de Borba e o
existisse no tempo de seu pai, fez com que o historiador rei), que dava sessões regulares no Paço da Ajuda, execu-
da música Odilon Nogueira de Matos considerasse que a tando Mozart, Haydn e Beethoven. De sua lavra deixou D.
segunda metade do XIX brasileiro deveria ser chamada de Luiz I uma valsa para piano.
“Vida cotidiana no Brasil no tempo de Isabel”.24
No período do banimento (1889-1920), quando a partir

O
da morte do imperador, em 1891, a princesa imperial se
tornou imperatriz para os brasileiros que compunham sua
corte exilada em Paris e, depois, no Castelo de Eu (Norman-
dia), D. Isabel I viveu cercada de música por todos os lados.
De algum modo exercia o papel de Hofkapellmeister, como
pudemos apontar em trabalho anterior, o pianista e violinista filho e sucessor de D. Luiz I foi D. Carlos I (1863-
afro-cubano José White y Lafitte, professor dela, que fora 1908), a vítima do Regicídio do Terreiro do Paço. Quando
inserido na corte carioca nos anos 1880, mas que teve de ainda príncipe real, compôs para sua esposa, a Princesa
seguir o rumo dos Bragança do Brasil. D. Isabel chegou a Amélie de Bourbon-Orleans (1865-1951), uma melodia
tentar tanto com a tia britânica (imperatriz-rainha Victoria em sol maior, em compasso de seis por oito, para canto
I), como com a sobrinha portuguesa (rainha D. Amelia) o e piano.
encaixe de White nos anos iniciais e penosos do exílio, mas Por fim, o último dos Bragança a governar Portugal e
embora ele tenha se apresentado nesses salões reais, não Algarves, D. Manuel II (1889-1932), deposto que foi de seu
parece que tenha podido ser nomeado em algum cargo.25 trono em 1910 e exilado na Inglaterra, onde morreu, foi
Em Portugal, D. Maria II foi uma “rainha educadora”, grande conhecedor de música. Estudioso de piano e órgão,
como permaneceu em cognome para a posteridade. Quis chegou a cogitar fazer turnê pelos Estados Unidos a convite
que seus filhos tivessem a mais perfeita educação e que de um empresário. Discípulo de Désiré Pâque (1867-1939),
também o povo português saísse do iletramento. Come- D. Manuel II foi colega do próprio Luiz de Freitas Branco,
çando a reinar ainda adolescente, como ocorrerá com seu que é quem nos comunica todos esses ricos detalhes da
irmão caçula no Brasil, a sucessora de D. Pedro IV reabriu longevidade da “musicância” bragantina.
o “Real Theatro de São Carlos” de Lisboa e convidou os Por entre solfejos, duetos, tercetos, treinos instrumen-
maestros italianos Angelo Frondoni e Pietro Antonio Co- tais incessantes e, sobretudo, ouvindo Te-déuns, Glorias,
polla para regerem; no Porto fez o mesmo com o Teatro Kyries, Magnificats, Réquiens e muito belo canto, os Bra-
São João. Durante o reinado da segunda D. Maria, nasceu gança se familiarizaram de tal modo com a música que se
o movimento impulsionado pelo romantismo de fazer-se tornaram técnicos musicais. É de pensar que a coroação de
ópera de temática plenamente portuguesa, quando Manuel D. Pedro I do Brasil na Capela Real, que agora se tornava
Innocencio Liberato dos Santos Carvalho e Silva (1802- Capela Imperial do Rio de Janeiro, em nenhuma hipótese
1887) compôs “Ignez de Castro”, “O Cerco de Diu” e tenha se dado em 1º de dezembro de 1822 sem que ele
“Os Infantes em Ceuta”, entre outras obras. Liberato dos tivesse em vista seu tetravô, que restaurou simbolicamen-
Santos era o professor de música dos filhos de D. Maria II e te a independência de Portugal no mesmo dia, 182 anos
D. Fernando II e ocupava, ainda, a maestria da Capela Real.26 antes. Uma ópera e tanto!
A presença de Franz Liszt (1811-1886) em Portugal,
lembra André Cardoso, representa a “estética romântica
O autor é indigenista especializado e instrutor da Fundação
que caracteriza as práticas musicais durante o reinado Nacional do Índio (Funai) e fundador, pesquisador e
de Maria II, período que viu surgir o poema sinfônico [...] presidente do Instituto Cultural D. Isabel I.
música descritiva a partir de um roteiro literário”. O pia- brunoantunesdecerqueira@gmail.com

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208 SOLFEJO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ
1. Para uma história bastante resumida, mas didática, sobre as dinastias de Portugal e formações de Garcia-Alarcon, “A música de Giorgi contém muitos traços de polifonia
do Brasil, veja-se o artigo ANTUNES DE CERQUEIRA, Bruno da Silva. Reis de Portugal renascentista, bem como o uso de efeitos madrigais, embora essas técnicas antigas
e do Brasil / Kings of Portugal and of Brazil. Ventura, nº 46, ano 17. Rio de Janeiro/ sejam colocadas a serviço de um novo estilo de música, ricamente imaginativo, com
São Paulo, 2005, pp. 82-106. novas cores harmônicas. Uma missa concertante com solistas e acompanhamento
instrumental, composta para a Capela Real de Lisboa em memória de São Pio V,
2. Para a biografia de D. Theodozio II de Bragança, o primeiro livro a apreciar é o clássico constitui a peça central desta gravação, embora também se incluam alguns motetos
literário e “pré” historiográfico de D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), publicado da extensa obra de Giorgi.”. Acessar: https://youtu.be/ZN9AYX6Arho
em 1648, em castelhano, mas incompleto. A edição que possuímos é organizada por
Augusto Casemiro e saiu na década de 1940. Ver MELO, D. Francisco Manuel de. D. 14. CARDOSO, André. A música na corte de D. João VI. São Paulo: Martins Fontes,
Teodósio II. Trad. e organização Augusto Casemiro. Porto: Livraria Civilização, 1944. 2008, pp. 32-33.
A viuvez casta de D. Theodozio e os pormenores de sua política cultural e de relações
públicas e internacionais são trabalhados em artigo recente da historiadora Mafalda 15. BRAGA, Paulo Drumond. Mariana Vitória de Bourbon. A rainha discreta. Lisboa:
Cunha, da Universidade de Évora. CUNHA, Mafalda Soares da. D. Teodósio II, sétimo Temas e Debates, 2018, pp. 291 e seguintes.
duque de Bragança. Práticas senhoriais como política de reputação. Monumentos.
2007. Disponível em: https://dspace.uevora.pt/rdpc/bitstream/10174/2189/1/2007_ 16. Sobre D. Maria I e sua demonização historiográfica veja-se um artigo de minha
Teod%C3%B3sio%20II%20%28provas%29.pdf. Acesso em: 20 fev. 2022. autoria, de 2015, que colocou em perspectiva a “loucura” de D. Maria, retirando-lhe a
humanidade e a historicidade. ANTUNES DE CERQUEIRA, Bruno da Silva. A primeira
3. Ver FREITAS BRANCO, Luiz de. D. João IV, músico. Lisboa: Fundação da Casa de chefe de Estado do Brasil: D. Maria I, a louca? In: Cadernos Aslegis, nº. 51, jan/abr
Bragança, 1956. Trata-se da notável biografia musical do primeiro rei bragantino de 2014. Brasília: Aslegis, 2015, pp. 151-170. Disponível em: http://bd.camara.gov.br/
Portugal. Todos os elementos aqui referidos são legatários dessa obra. “Rei, compo- bd/handle/bdcamara/27399. O artigo influenciou Mary del Priore a escrever sobre a
sitor e musicólogo” é como Freitas Branco nomeia o quarto capítulo de seu livro. Os “desditosa soberana”, nas palavras de Cecilia Meirelles. Veja-se DEL PRIORE, Mary.
elogios a D. João como o maior monarca-músico de “todos os tempos” estão na p. 17, D. Maria I. As perdas e as glórias da rainha que entrou para a história como “a louca”.
quando narra seu nascimento. O livro todo, em especial a conclusão, indica que entre Rio de Janeiro: Benvirá, 2019.
detratores e bajuladores, não teria havido apreciação científica do papel da musica-
lidade de D. João IV até a pesquisa encetada por Freitas Branco no século XX, vez 17. Para comentários, observações e inferências sobre a educação das filhas de D. João
que o monarca nunca deixou de ser reconhecido por musicólogos estrangeiros como e D. Carlota vejam-se AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Carlota Joaquina na Corte do
importante teórico e prático em música, mas que esse valor tendia a ser negado pelo Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 e DELMAS, Ana Carolina Galante.
que Freitas Branco chamou de tradição “liberal-romântica, que via em todos os reis e D. Maria Teresa e D. Isabel Maria de Bragança. Resgate das trajetórias pessoais e
aristocratas criminosos e imbecis”, em contraposição a uma tradição “reacionária”, políticas das filhas de D. João VI. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação
para a qual “monarcas e fidalgos tinham sempre de ser gênios dotados de todas as em História. Rio de Janeiro: Uerj, 2015.
virtudes morais”. Ver p. 175.
18. Gazeta do Rio de Janeiro, 12.11.1817. Ed. 0091. Hemeroteca Digital da Biblio-
4. FREITAS BRANCO, Luiz de. D. João IV, músico. Lisboa: Fundação da Casa de teca Nacional. Agradeço à querida amiga e colega Juliana Bezerra de Menezes pela
Bragança, 1956, p. 27. indicação.

5. FREITAS BRANCO, Luiz de. D. João IV, músico. Lisboa: Fundação da Casa de 19. CRANMER, David. Marcos Portugal: mestre de música de suas altezas reais.
Bragança, 1956, p. 155. Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, pp. 19-33.

6. Ver “D. João IV foi mesmo o autor de uma das músicas de Natal mais conhecidas 20. Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda. Cota 54-XII-178, n. 48. Partitura para
no mundo?”. Disponível em: https://ionline.sapo.pt/artigo/592603/d-joao-iv-foi-mesmo- canto e piano. Agradeço a José Alberto Ribeiro, diretor do Palácio da Ajuda, por essa
-o-autor-de-uma-das-m-sicas-de-natal-mais-conhecidas-no-mundo e demais gentilezas.

7. FREITAS BRANCO, Luiz de. D. João IV, músico. Lisboa: Fundação da Casa de 21. FREITAS BRANCO, Luiz de. A música e a Casa de Bragança. Conferência
Bragança, 1956, p. 157. pronunciada no Paço Ducal de Vila Viçosa na tarde de 10 de junho de 1952. Caxias:
Fundação da Casa de Bragança, 1953, pp. 26-27. Agradeço à amiga e colega Fátima
8. A mãe de D. João V era a Rainha D. Maria Sophia (1666-1699), nascida Condessa Argon a reprodução do original.
Principesca Marie Sophie Elisabeth de Neuburgo, filha do Eleitor Palatino Philipp
Wilhelm (1615-1690), soberano de Jüllich, Berg, Neuburgo e, depois, do Palatinado, 22. AVELLA, Aniello Angelo. Teresa Cristina de Bourbon. Uma imperatriz napolitana
que se destacou pelo mecenato no Sacro Império Romano-Germânico. nos trópicos. 1843-1889. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014. Ver sobremaneira o cap. III:
“Teresa Cristina, D. Pedro e a ‘república italiana das artes’ na corte do Rio de Janeiro”
9. CARDOSO, André. A música na corte de D. João VI. São Paulo: Martins Fontes, (pp. 71-102).
2008, pp. 31-32.
23. Ver ANTUNES DE CERQUEIRA, Bruno da Silva; ARGON, Maria de Fátima Mo-
10. Idem, p. 32. raes. Alegrias e Tristezas. Estudos sobre a autobiografia de D. Isabel do Brasil. São
Paulo: Linotipo Digital e Instituto Cultural D. Isabel I, 2019, pp. 494, 670 e segundo
11. Palácio Nacional de Mafra. Direção-Geral do Patrimônio Cultural. Governo de Portu- caderno de ilustrações.
gal. Disponível em: http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/museus-e-monumentos/
rede-portuguesa/m/palacio-nacional-de-mafra/. Acesso em: 11 fev. 2022. 24. MATOS, Odilon Nogueira de. A Princesa Isabel e a sociedade brasileira de seu
tempo. Anuário do Museu Imperial. Vol. 32. 1973. (pp. 71-86).
12. D. João V foi sempre demonizado pela historiografia liberalista e republicanista de
Portugal nos séculos XIX e XX. Valendo-se da crônica política de seus adversários, ainda 25. ANTUNES DE CERQUEIRA, Bruno da Silva; ARGON, Maria de Fátima Moraes.
no tempo de seu reinado, que o retratava como perdulário, “freirático”, no sentido de Alegrias e Tristezas. Estudos sobre a autobiografia de D. Isabel do Brasil. São Paulo:
tarado a se meter até com monjas, e outras adjetivações, hoje cabe aos historiadores Linotipo Digital e Instituto Cultural D. Isabel I, 2019, pp. 269, 539, 682.
o distanciamento em relação a essas narrativas. Mesmo sem perder a luneta crítica,
como enfatiza Maria de Fátima Reis no capítulo a ele dedicado na reedição da obra 26. Ver CARDOSO, André. A dinastia dos Bragança e a música luso-brasileira em
genealógica de D. Antonio Caetano de Sousa, é necessário entender de modo acurado tempos de D. Maria II de Portugal. In: FERREIRA JÚNIOR, Mauricio Vicente. (org.) D.
a época joanina, retirando as camadas de enviesamento. Ver REIS, Fátima. D. João V. Maria da Glória. Princesa nos Trópicos, Rainha na Europa. Petrópolis: Museu Imperial,
In: SOUSA, D. Antonio Caetano de. História Genealógica da Casa Real Portuguesa. Vol. 2020, pp. 47-55 e FREITAS BRANCO, Luiz de. A música e a Casa de Bragança. Con-
XV. Lisboa: QuidNovi e Academia Portuguesa da História, 2008, pp. 13-40. De outro ferência pronunciada no Paço Ducal de Vila Viçosa na tarde de 10 de junho de 1952.
lado, houve sempre tentativas de reabilitação do monarca por parte da historiografia Caxias: Fundação da Casa de Bragança, 1953.
que em Portugal é conhecida como “integralista”, como é o caso dos livros de Antonio
Sardinha, João Ameal ou Rodrigues Cavalheiro. Veja-se AMEAL, João; RODRIGUES 27. CARDOSO, André. A dinastia dos Bragança e a música luso-brasileira em tempos
CAVALHEIRO, Antonio. De D. João V a D. Miguel. Porto: Tavares Martins, 1939. de D. Maria II de Portugal. In: FERREIRA JÚNIOR, Mauricio Vicente. (org.) D. Maria
da Glória. Princesa nos Trópicos, Rainha na Europa. Petrópolis: Museu Imperial,
13. Há um vídeo com a execução de uma “Ave Maria” de sua autoria, descoberta 2020, p. 54.
pelo músico argentino Leonardo Garcia-Alarcon e gravada para CD. Segundo as in-

ESPECIAL ABRIL 2023 209


O PRECARIADO
SOBRE
DUAS RODAS
Benizete Ramos de Medeiros
Luana Cássia do Carmo Filgueiras
Advogadas trabalhistas

N
a década de 80 houve a popularização do serviço tal razão, as empresas que outrora faziam a contratação
de entregas no Brasil, tão utilizado pelas pizzarias à sob a condição de emprego formal entenderam que outra
época. A edição da revista Veja São Paulo, publica- podia ser a lógica dessa relação, passando a utilizar-se das
da na semana de 5 de maio de 1986, trazia em sua matéria plataformas digitais disponíveis para realização do delivery.
uma tendência que se popularizava na cena gastronômica Tal realidade faz parte da GigEconomy, também conhecida
paulistana e, mais tarde, nacional: o delivery de comidas.1 como economia dos bicos, na qual prevalece contratos
Ao longo dos anos, o serviço de entregas de comidas autônomos, de curta duração, flexíveis, distintos dos con-
se difundiu, se expandindo para diversas áreas, sendo tratos rígidos e com obrigações legais.
amplamente utilizado no ramo alimentício. Até os primei- No Brasil, atualmente os dois maiores aplicativos de
ros anos deste século, tais entregadores costumavam ser entrega são o iFood e a Rappi. O iFood foi fundado no
contratados como empregados diretos dos próprios estabe- Brasil em 15/05/2011 e utilizava um guia impresso de car-
lecimentos. Entretanto, por essa época, já se anunciavam dápios, no qual os consumidores faziam seus pedidos por
mudanças nessa relação. Com a inovação tecnológica e uma central telefônica, serviço denominado Disk Cook.
desenvolvimento dos aplicativos de entrega, a dinâmica Contudo, já em 2012, a empresa lançou o site iFood e
de contratação dos entregadores pelos próprios estabe- seu aplicativo para Android e iOS, passando de 12 mil
lecimentos, bem como as compras pelos consumidores, pedidos por mês em 2011 para 73 mil pedidos por mês
passaram a ser intermediadas também pelas plataformas em 2012. A partir de então sua projeção de pedidos ao
digitais, por meio de aplicativos que permitiam a filiação mês só aumentou, chegando a 20 milhões de pedidos
de qualquer entregador, sem vínculo empregatício. Por ao mês em 2019.2

210 ACOSTAMENTO
ESPECIAL ABRIL 2023 211
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A Rappi teve início em 2015, na Colômbia. O aplicativo


era visto inicialmente como uma despensa digital. Seu
grande diferencial foi incluir o botão “Rappi Antojo”, e,
com essa opção, qualquer pessoa com o aplicativo pode-
ria pedir qualquer produto.3 Em 2016 a empresa lançou
O algoritmo e sua
seu aplicativo com serviço de entregas para restaurantes, capacidade de controle
não devem ser tratados
mercados, entre outros, e hoje opera em nove países da
América Latina, com mais de 100 milhões de downloads
desde 2015. como um elemento
Embora a Uber Eats tenha sido até 2021 a terceira maior
plataforma de serviço de delivery de comidas no Brasil, o autônomo e alheio às
serviço foi descontinuado em janeiro de 2022, seguindo empresas, posto que
apenas com o serviço Cornershop, que prioriza o delivery
de lojas de conveniência, mercados e farmácias. nada mais são que
Como se pode perceber, ao longo da história, a im-
plementação de novas tecnologias modificou a forma de
uma programação bem
produção e circulação de bens e serviços, desencadeando definida para controlar e
profunda alteração nas relações de trabalho.
gerenciar determinadas
DAS PLATAFORMAS DIGITAIS operações
Com o desenvolvimento da economia 4.0, também
chamada de indústria 4.0, houve a reconfiguração da
forma de produção e prestação de serviços, com intensa
incorporação de novas tecnologias da informação, tele-

212 ACOSTAMENTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

comunicações, inteligência artificial, em que o mundo de labor no primeiro trimestre de 2016 para média de 40
digital e o mundo físico real se misturam e ressignificam horas semanais no quarto trimestre de 2021.
o cotidiano de forma indissociável, a vida das vidas e, no Assim, em 2016, tais entregadores trabalhavam 34
campo do trabalho, alterando a sua morfologia. Com essa horas semanais para renda mensal média de R$ 1.000,00,
reconfiguração das formas de trabalho, diversos setores e hoje trabalham 40 horas semanais para renda mensal
econômicos mudaram radicalmente o modus operandi; média de R$ 900,00. Logo, houve perda da renda, que caiu
entre eles o trabalho de delivery, hoje mais flexível e reali- de R$ 11,2 por hora de trabalho em 2016 para R$ 9,4 por
zado através das plataformas digitais. hora de trabalho em 2021, desconsiderada ainda a perda
Tais plataformas são modelos de negócios que ope- financeira de vida à alta da inflação.
ram conectando empresas e usuários, mediante uso de As plataformas estabelecem, de modo unilateral e por
recursos tecnológicos, com grande fluxo de dados e uso adesão, os valores a serem recebidos, e os pagamentos
da internet. Elas operam na dinâmica do capitalismo de são manipulados para dirigir os comportamentos de seus
plataforma, que consiste numa nova fase da economia trabalhadores. Os algoritmos são programas, comandados
mundial, onde despontam grandes empresas por meio da pelas corporações para processar grande volume de infor-
tecnologia e novos modelos de negócio pelas plataformas mações, as quais permitem direcionar a força de trabalho
digitais, que atuam com ampla utilização da exploração de segundo a demanda.6
dados (SRNICEK, 2017).4 O algoritmo e sua capacidade de controle não devem
É importante destacar que, ao contrário das teorias ser tratados como um elemento autônomo e alheio às
indicando que as inovações tecnológicas implicariam empresas, posto que nada mais são que uma programa-
trabalho menos pesado, menos horas de ocupação, mais ção bem definida para controlar e gerenciar determinadas
lazer e qualidade de vida, o que se vê constante na prática operações, e, no caso, todas as suas programações são
cotidiana é o contrário disso. O capitalismo utiliza-se das ino- encomendadas pela empresa que o utiliza, por óbvio, para
vações tecnológicas para o aumento do potencial gerador atingir os resultados esperados.
de mais-valia. Nesse contexto, as empresas de tecnologia Portanto, a tecnologia desenvolvida sob o sistema
do ramo delivery utilizam-se do controle de sua operação capitalista não é neutra, ela surge em contextos sociais
através do gerenciamento algorítmico, potencializando e econômicos específicos para servir aos interesses
suas operações. de uma classe que detém o capital e o controle. Nessa
Veja que no caso abordado do iFood, entre o uso de perspectiva, o gerenciamento algorítmico é projetado para
central telefônica em 2011 para o uso de aplicativos em aumentar a exploração da mão de obra, gerando maior
2012, houve um salto de 12 mil pedidos por mês para 73 lucro e vantagem competitiva àqueles que investirem
mil pedidos por mês, em período de apenas um ano de nessa tecnologia.7
diferença, o que se constata que o uso do aplicativo teve O setor de delivery de comidas no Brasil não difere,
um papel fundamental nessa escalada. com o despontar das empresas iFood e Rappi. Inobstante
Os algoritmos não só controlam a dinâmica de ampliação tais empresas detenham estratégias mercantis e geren-
comercial, mas também definem rotas a serem seguidas ciais distintas, há um ponto crucial de convergência: o de
nas entregas, preços, tempo de delivery etc. relacionar o estabelecimento vendedor com o consumi-
No entanto, se essa nova forma de relação comercial dor, controlando o serviço de entrega, porém sem garantia
traz mudanças no modo de consumo, facilitando a vida; de de direitos trabalhistas aos entregadores, ditos parceiros.
outro lado, precariza o trabalhador entregador, pois, confor- Esse trabalho on-line e por aplicativos não só torna invisí-
me a Nota de Conjuntura nº 14, realizada no 2º trimestre vel o poder controlador das plataformas, mas também o
de 2022 pelo IPEA,5entre o primeiro trimestre de 2016 e o próprio valor do trabalho realizado nelas, corroborando o
quarto trimestre de 2021, a renda dos entregadores de mer- processo de precarização desse grupo de trabalhadores.
cadorias via moto caiu de um pouco mais de R$ 1.000,00/
mês em 2016 para aproximadamente R$ 900,00/mês em CENÁRIO DE DESEMPREGO E AUMENTO DE TRABALHADORES
2021, o que, num primeiro momento, poderia parecer “PARCEIROS” VIA APP
pouca variação. Entretanto, ao comparar a quantidade de Segundo dados do IBGE, a taxa de desemprego no
horas trabalhadas por esses mesmos entregadores de mer- Brasil no 2º trimestre de 2021 alcançou o patamar de
cadorias via moto nesse mesmo período de 2016 a 2021, 14,1%, continuando em 11,1%8 no 1º trimestre de 2022,
o IPEA apurou a evolução da média de 34 horas semanais enquanto a taxa de informalidade chegou a 40,1%9 de

ESPECIAL ABRIL 2023 213


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

março a maio/2022. Pelos indicadores, é possível notar a Até a Lei 14.297/2022,14 que garante direitos mínimos,
continuidade dos altos índices de desemprego e do traba- como o de utilização de banheiro, fornecimento de água
lho informal que, embora tenham sofrido grande aumento potável, seguro a acidentes e assistência financeira por
nos últimos anos, principalmente com o início da pandemia afastamento por infecção pela covid-19, até então inexis-
da covid-19, já vinha em crescimento, se comparado com tente, pois não havia nenhuma regulação específica mínima
dados históricos. a esse grupo de entregadores não empregados, tampouco
Mesmo antes da covid-19, o uso das plataformas digi- garantia de seguro contra acidentes ou assistência aos
tais em delivery era uma realidade em ascensão. Nesse entregadores infectados por covid-19.
contexto, o número de entregadores de mercadorias via
moto passou de 25 mil no início de 2016 para 322 mil no DIFERENÇA ENTRE ENTREGADORES DE MOTO EMPREGADOS E
quarto trimestre de 2021.10 PLATAFORMIZADOS: RETROCESSO DE DIREITOS
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra Para melhor mapeamento dos problemas que envolvem
de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), elaborada esses trabalhadores foram feitas pesquisas diretas com
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) depoimentos de alguns desses trabalhadores.
e IPEA, no primeiro trimestre de 2016 a porcentagem André, 38 anos, motoboy, trabalha desde os 19 anos.
de participação dos entregadores via moto na Gig Eco- Em depoimento (ao vivo) para o Movimento dos Trabalha-
nomy era de 3,3%; de 8,7% no último trimestre de 2019 dores Sem Direitos, em 18/05/2022, exibida pela rede so-
(período pré-pandemia da covid-19); quase duplicou em cial Facebook – gravava enquanto dirigia sua moto – disse:
período pandêmico, passando para 16,6% no último
trimestre de 2020; e 20,9% último trimestre de 2021. "Eu já era motoboy, eu tinha direitos. Com a entrada dos
Houve um crescimento de 1.072%para os profissionais aplicativos, eles pagam pouco ou não dão direito algum,
de entrega de mercadoria via moto, em comparação com e isso acabou com as empresas de moto-entregas.
o início de 2016. Resisti por muito tempo para entrar nos aplicativos,
O aumento da utilização do delivery durante a pan- mas não teve jeito, não tive opção. Já passei por todos
demia, associado às restrições de trabalho e lockdowns, os aplicativos, e é tudo igual, só querem explorar o
bem como altas taxas de desemprego, impulsionaram o trabalhador."
crescimento mais acelerado dos serviços de entrega em
domicílio, passando ao patamar de serviço essencial. Em depoimento semelhante, Paulo Roberto da S. Lima,
No curso da pandemia de covid-19, o próprio Legisla- 31 anos, conhecido como “Galo”, integra o movimento
tivo brasileiro reconheceu os serviços de entrega como Entregadores Antifascistas, em entrevista à Folha de S.
essenciais, conforme Decreto 10.282/2020,11 que regu- Paulo, declarou:
lamentou a Lei 13.979/2020.12Contudo, esse reconheci-
mento à época não trouxe mais acolhimento à categoria, "Quando minha filha nasceu, em 2017, me mandaram
tampouco regulou sua prática. Pelo contrário: a situação embora e me desesperei. Decidi voltar a trabalhar com
de vulnerabilidade social, trabalhista e humanitária desses moto. Mas, quando fui ver, não tinha mais trampo de
entregadores ficou evidente. Tanto que houve no Brasil moto, o que tinha era aplicativo. (...) No dia 21 de março,
em 1 e 25 de julho de 2020 paralisação do uso dos apps meu aniversário, eu tava numa neurose, porque queria
de entrega e marchas de motos e bicicletas pelas ruas do descansar, ficar com a minha família. Só que já era a
país, movimento chamado “Breque dos Apps”. A mobili- terceira [conta de] água atrasada, a segunda luz atrasada
zação teve como objetivo ser um freio coletivo na forma e a geladeira vazia.
como esse modo de controle, chamado “uberização” se Saí bravo de casa. Quando deu 23 horas, meu pneu
organiza, controla os trabalhadores usuários da plataforma, furou e eu estava com o pedido de um cliente. Liguei
aprofundando cada vez mais os meios de degradação e para a Uber e informei para mandarem outro entregador,
exploração do trabalho. porque eu não ia dar conta. A Uber disse que não tinha
O aumento do desemprego contribuiu também para entregador perto e que eu podia cancelar o pedido. Eu
o crescimento da oferta de trabalho na “economia do disse que, se fizesse isso, me bloqueariam, porque
bico”, e, com isso, as plataformas dos aplicativos pude- isso já tinha acontecido outras vezes. Garantiram que
ram degradar ainda mais as condições de trabalho dos não. No outro dia arrumei o pneu e, na hora que liguei
entregadores.13 o aplicativo para ir trabalhar, eu estava bloqueado!"15

214 ACOSTAMENTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Tais depoimentos demonstram a diminuição trabalho


formal para os entregadores de mercadorias com moto,
que tiveram seus empregos substituídos pelos contratos
nos aplicativos de entregas. Por falta de opção, posto não
haver mais vagas nas empresas para esses contratos dire-
tos, então aceitam filiarem-se às plataformas de entrega e
se submetem aos seus termos de adesão, ou ficam sem
trabalho.
No Brasil, a Lei 12.009/2009, ainda vigente, regula-
mentou o exercício das atividades dos profissionais em
transporte de entrega de mercadorias com o uso de motos,
bicicletas, entre outros, dispondo de regras de segurança
dos serviços de transporte remunerado e regulação desse
"Quando minha filha
serviço.16 Tal lei é aplicável aos entregadores de mercado- nasceu, em 2017, me
rias via moto, empregados ou contratados para prestação
continuada de serviços.
mandaram embora e
me desesperei. Decidi
voltar a trabalhar
com moto. Mas,
quando fui ver, não
tinha mais trampo de
moto, o que tinha era
aplicativo"

ESPECIAL ABRIL 2023 215


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O art. 2º determina que, para o exercício da atividade No âmbito nacional, segundo informações do seguro
de transporte de mercadorias por moto, é necessário (I) DPVAT, a teor dos anos anteriores, em 2020 as motoci-
ter 21 anos; (II) possuir habilitação, por pelo menos 2 (dois) cletas continuaram a ser o veículo com maior número em
anos, na categoria; (III) ser aprovado em curso especializa- indenizações. Embora as motos representem apenas 29%
do, nos termos da regulamentação do Contran; (IV) estar da frota nacional, concentrou 79% dos pagamentos das
vestido com colete de segurança dotado de dispositivos indenizações.20
retrorrefletivos, nos termos da regulamentação do Contran. Na edição especial temática do boletim Radar de nú-
E a Lei 12.997/201417 estabeleceu serem consideradas mero 67, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica
perigosas as atividades de trabalhador em motocicleta, para Aplicada (Ipea), foi apurado que o Brasil ocupa a 5ª posição
fins do art. 193 §1ºda CLT18 que atribui compensação no ranking mundial de vítimas do trânsito, e que mais de
financeira decorrente a exposição ao perigo, ou seja, para 1/3 dessas mortes envolvem motociclistas.21
a classificação de atividades perigosas e pagamento do Face a tais índices alarmantes, é justificável que ao
adicional de periculosidade de 30% sobre o salário. longo dos anos o Brasil tenha promovido esforços para
Pela análise, diante da realidade dos serviços de en- melhoria do ambiente de trabalho desse seguimento,
trega via moto, o governo percebeu a necessidade de com promoção do trabalho decente e seguro. Entretanto,
estabelecer requisitos mínimos para aumentar a seguran- com a disseminação das plataformas de entrega, o que
ça desses trabalhadores motociclistas em seu ambiente se constata é que todos os esforços de outrora se diluem.
laboral. Essas garantias mínimas se compatibilizam com a Tomando-se como referência do presente estudo as
defesa do meio ambiente laboral digno e equilibrado, tal plataformas iFood e Rappi, os contratos dessas empresas
qual a Constituição Federal resguarda em seus arts. 170, tratam os entregadores como distantes de qualquer vínculo
VI; 200, VIII; e 225, caput.19 laboral. O iFood trata o entregador como “profissional inde-

216 ACOSTAMENTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

pendente”,22 enquanto a Rappi diz tratar-se de contrato de e pelo art.1º, nos incisos III e IV, ambos da Constituição
mandato entre o consumidor e o entregador, por intermédio Federal, fundamentando a dignidade da pessoa humana e
da plataforma, administrada pela Operadora Rappi Brasil.23 os valores sociais do trabalho, respectivamente, além do
Os contratos dos paradigmas iFood e Rapi só caput do próprio art. 7º acerca da melhoria das condições
estabelecem deveres dos entregadores, mas não sociais do trabalho. No entanto, somente é possível se
estabelecem deveres das plataformas, e ambos se eximem concretizarem se for efetivamente cumprido o direito à
do dever e responsabilidades em fiscalizar os entregadores saúde e à segurança do trabalhador, independente da sua
que utilizam o aplicativo, inclusive sobre questões de forma de contratação ou modalidade de trabalho, ou seja,
saúde e segurança do trabalho, que envolvem a proteção basta que exista trabalho, e não a relação de emprego para
do meio ambiente laboral, descumprindo assim ordem da o garantismo constitucional.
Constituição Federal, que dita ser dever de todos defendê- Assim, não há nenhuma preocupação das platafor-
lo e preservá-lo. mas em seguirem as mesmas medidas protetivas da Lei
Nota-se ainda que ambas as plataformas permitem 12.997/2014 aos entregadores via motocicletas, ainda
filiação de entregadores em idade a partir dos 18 anos, que o número de acidentes de trânsito envolvendo os
sem tempo mínimo de carteira de habilitação. As empresas motociclistas seja cada vez mais expressivo e crescente.
“intermediadoras” também não exigem que os entrega- Conforme medição do IPEA, as estimativas também
dores tenham aprovação em curso de especialização do indicam que os motoristas de aplicativos e taxistas possuem
Contran, tampouco exigem coletes de segurança dotados maior rendimento que entregadores via moto. No último
de dispositivos retrorrefletivos. trimestre de 2021, os motoristas de aplicativo e taxistas
Frise-se que o meio ambiente laboral digno e equilibrado tinham um rendimento médio de R$ 1.900,00/mês, enquan-
é garantido a todo trabalhador pelo disposto no art. 7º, XXII to os entregadores tinham a renda média de R$ 1.000,00/
mês. Segundo comparação entre as medições de 2016
e 2021, os motoristas de aplicativo e taxistas tiveram um
decréscimo de renda de R$ 16,01 do primeiro trimestre de
2016 para R$ 11,01 no último trimestre de 2021, enquanto
os entregadores via moto tiveram um decréscimo de renda
de R$ 11,2 do primeiro trimestre de 2016 para R$ 9,4 no
último trimestre de 2021.

Não há nenhuma Assim, embora a variação da queda de renda dos


entregadores via moto seja menor que dos motoristas
preocupação das de aplicativos e taxistas, percebe-se que os motoristas e

plataformas em taxistas sempre ganharam mais que os entregadores via


moto, e continuam a ganhar mais, mesmo que as atividades
seguirem as mesmas dos motoristas de aplicativos e táxis não seja considerada
perigosa tal qual dos entregadores via moto.
medidas protetivas Assim, os entregadores via moto que trabalham pelas
da Lei 12.997/2014 plataformas de entrega recebem menos que os entrega-
dores de moto empregados, bem como que os motoristas
aos entregadores via de carros das próprias plataformas, ainda que as atividades
motocicletas, ainda que de entregadores de mercadorias via motos sejam reconhe-
cidamente perigosas pela Lei 12.997/2014, o que em tese
o número de acidentes justificaria que os motoentregadores fossem mais bem
de trânsito envolvendo remunerados que os trabalhadores que não trabalham sob
tal risco, o que não ocorre.
os motociclistas Assim, a realidade enfrentada pelos entregadores de

seja cada vez mais aplicativos é de trabalharem cotidianamente expostos a


risco de vida, mas ainda assim, com menor remuneração
expressivo e crescente que outros trabalhadores por plataformas, exacerbando a
discriminação. Além disso, os entregadores via motocicleta

ESPECIAL ABRIL 2023 217


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

que trabalham para os aplicativos têm hoje menos direitos


sociais, sobretudo relativos à saúde que outrora possuíam.
A realização de suas atividades não tem a mesma proteção
que os entregadores empregados ou contratados para
prestação de serviços continuada, inobstante seja a mes- A jornada laborativa
ma atividade e tenha ritmo de execução mais acelerado,
inclusive com aumento do índice de acidentes urbanos
é longa e extenuante e
envolvendo motocondutores. não observa as pausas
necessárias para
A Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da
Reforma Trabalhista (Remir)24 apurou recentemente que en-
tregadores plataformizados mantinham intensas jornadas fins de segurança e
de trabalho antes da pandemia, e tiveram majoradas suas
cargas horárias a partir da pandemia da covid-19. Compa- medicina do trabalho,
rando o período pré-pandemia com o período pandêmico, aumentando o desgaste
houve a elevação de 57% para 62% dos entregadores que
afirmaram trabalhar mais de 9 horas diárias, sendo apurado físico e psicológico
que 51,9% dos entrevistados afirmaram trabalhar 7 (sete) desse trabalhador
dias da semana (sem folga), enquanto 26,3% declararam
trabalhar 6 (seis) dias da semana.
Veja que um empregado celetista tem 44 horas de
labor semanal, com o limite diário de 8 horas,25 e essa era a
jornada regular do entregador de mercadorias empregado.
Já segundo levantamento da Remir, houve uma elevação
de 8,89% para 11,48% dos trabalhadores de entregas
por aplicativos que laboram entre 13 e 14 horas diárias
especificamente, volume esse muito superior ao de um
empregado celetista.
A jornada laborativa é longa e extenuante e não observa
as pausas necessárias para fins de segurança e medicina
do trabalho, aumentando o desgaste físico e psicológico

218 ACOSTAMENTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

desse trabalhador, favorecendo acidentes de trabalho, o Quanto à contraprestatividade e condições de segu-


que, segundo medições do DPVAT, continua em alta. rança, enquanto o motoentregador tem garantido maior
Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) salário com adicionais pelo exercício de trabalho perigoso,
apurou que mais mortes decorrentes de acidentes de trân- tendo como condições de contratação ser maior de 21 anos
sito foram registradas no período da pandemia, sobretudo e aprovado em curso de especialização junto ao Contran,
com motociclistas, inobstante tenha ocorrido diminuição além de ter que comprovar dois anos de habilitação e usar
dos veículos no trânsito em 2020 e 2021, devido ao isola- colete refletor de segurança; o motorista informal vincu-
mento social e aumento do labor em home office. Ao todo, lado aos aplicativos de entrega deve comprovar ter idade
54% dos acidentes no trânsito em 2021 ocorreram com mínima de 18 anos e somente declarar que cumprirá as
motos, totalizando 167 mil eventos.26 normas de trânsito.
O estudo do IPEA evidencia um crescimento no número Portanto, não existem maiores esforços das platafor-
de pessoas trabalhando por conta própria no transporte mas em garantir condições mais seguras e saudáveis para
de mercadorias, o que fica claro no período de início da prestação desse trabalho, tampouco há ainda legislação
pandemia da covid-19. Em 2019 (4º trimestre), o resultado brasileira infraconstitucional que regule tais atividades,
era 400% superior ao observado em 2016 (1º trimestre); embora haja alguns projetos em tramitação. Isso contribui
entretanto, ao final de 2020, esse patamar estava 750% para o aumento de acidentes de trânsito com motos.
maior e seguiu crescendo em 2021. 27 Assim, diante da ausência de amparo legislativo, é
Dar efetividade a direitos dos trabalhadores sempre forçoso concluir pela precarização desses trabalhadores
foi uma questão social a ser resolvida, entretanto, no capi- informais, notadamente em razão dos altos índices de
talismo de plataformas, tal problema se torna ainda mais acidentes, desafiando uma urgente norma que melhor
emergencial. Sob o discurso da modernidade e necessi- regule e estabeleça, minimamente, as condições de maior
dade de flexibilização das normas trabalhistas, se permite segurança.
precarizar ainda mais grupos que outrora tinham algum O aumento do desemprego e a diminuição dos postos
direito. Esse cenário cria inclusive dicotomias de direitos ao de trabalho formais vêm contribuindo para a ocupação
nível de segurança do ambiente laboral entre trabalhadores desses espaços informais, em especial por meio de pla-
empregados e plataformizados, em contrariedade à garan- taformas, face à redução dos custos para as empresas,
tia geral da constituição de um meio ambiente protegido, forçando os motoentregadores a aceitarem as regras
digno e saudável. impostas pelos aplicativos, mesmo que isso lhes restrinja
Como explica Ricardo Antunes, talvez nunca tenha sido direitos e condições de segurança, revelando, portanto,
tão difícil impor normas de proteção ao trabalhador para uma mera adesão.
limitar a compulsão do capital. Vivemos uma conjuntura Embora deva ser aplicado aos empregados e informais
de grande ofensiva do capital sobre o trabalho, uma ver- a estrutura protetiva constitucional de proteção ao meio
dadeira contrarrevolução preventiva de amplitude global, ambiente do trabalho, da dignidade, da valorização do
sustentada por uma forte ideologia neoliberal em fase de trabalho e da melhoria das condições sociais, essa não
crise estrutural do trabalho.28 é a realidade, ainda, para os trabalhadores entregadores
plataformizados, que se utilizam da motocicleta. Não é
CONCLUSÃO uma equação fácil de ser resolvida, pois muitos desses
A plataformização dos entregadores de mercadorias, trabalhadores não têm interesse numa regulamentação
estabelecendo-se como “profissionais independentes”, que restrinja sua liberdade. No entanto, as condições de
“mandatários”, “parceiros”, “autônomos”, ou nomen- segurança devem ser minimante amparadas
clatura que o valha para designar informalidade, cria uma
dicotomia de direitos entre os entregadores de mercadorias Benizete Ramos de Medeiros é professora de graduação
sob a condição de motoempregados e os trabalhadores e pós-graduação stricto sensu (PPGD/UVA); professora
informais. convidada da Universidad Ibero Americana da Ciudad del
México: UNINI; diretora da Escola Superior da Advocacia
É possível perceber que essa diferença não atinge Trabalhista Nacional da ABRAT.
somente direitos trabalhistas, mas também se apresenta benizete.medeiros@uva.br
precária na própria estrutura e na forma como as condições
Luana Cássia do Carmo Filgueiras é especialista em Direito
de trabalho se desenvolve, inclusive quanto ao alto índice de do Consumidor e mestranda em Direito na UVA.
acidentes de trânsito, com reflexos em toda a sociedade. luanaccf.adv@gmail.com

ESPECIAL ABRIL 2023 219


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ

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-da-imprensa.shtml>. Acesso em: 18 jul.2022.
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especialmente através de la creación de aplicaciones de entrega. Este texto lei/l12009.htm>. Acesso em: 18 jul.2022.
pretende abordar las diferentes formas de protección otorgadas a los trabaja-
dores por cuenta ajena y de plataforma, especialmente por la dicotomía entre 17. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/
la Ley 12.009/2009 y la Ley 12.997/2014, que en la práctica no se aplican a Lei/L12997.htm>. Acesso em: 18 jul.2022.
los mensajeros a través de aplicaciones, aunque ejercen efectivamente la el
mismo trabajo. También aborda el aumento del número de repartidores y la 18. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.
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220 ACOSTAMENTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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5.452, de 1º de maio de 1943, para considerar perigosas as atividades de
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enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional SRNICEK, N. Platform capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.
decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Disponível em:
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ESPECIAL ABRIL 2023 221


222 ROTATIVA
O VELHO
JORNALISMO
ESTÁ MORRENDO
E O NOVO AINDA
NÃO NASCEU
Janio de Freitas
Jornalista

UMA CÓPIA DO JORNALISMO IMPRESSO


Até agora, o jornalismo de internet não criou nada que pode ser chamado “o jornalismo de
internet”. Até pela apresentação das páginas iniciais de um site, é possível perceber a cópia do
jornalismo impresso. As diagramações dos veículos online, em sua essência, são muito pareci-
das com o jornalismo impresso: o uso de imagem, fotografia, os blocos, os títulos, quase tudo
exatamente como é no jornal. A tendência, ao menos espero, é que eles venham a encontrar
suas próprias criações, como aconteceu com o jornalismo impresso. Eu vivi essa experiência na
reforma jornalística e gráfica do Jornal do Brasil, em 1959, e, anos depois, no Correio da Manhã,
quando fizemos algo semelhante. Muito provavelmente essas experiências que eu tive se repe-
tirão na internet, na mídia digital, em número até maior do que ocorreu no impresso.

ESPECIAL ABRIL 2023 223


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

No caso do Jornal do Brasil, criamos um modelo de


noticiário, com textos alinhados por tamanho, páginas
sem fios, enfim uma diagramação quase gestáltica. Entre
outras mudanças, o próprio cabeçalho com o título Jornal
do Brasil não era fixo, até então um padrão da imprensa. A saídas para os nós da atividade. Eles seriam ou deveriam ser
logomarca do jornal se movimentava e mudava de posição os recriadores do jornalismo. No caso das redações, há uma
na primeira página, ora de um lado, ora de outro, às vezes explicação pouco singela para essa resistência à mudança.
no meio da página. Eu queria que o leitor chegasse na banca A maior parte das redações tem sido preenchida em seus
e não dependesse de olhar a logo marca para identificar o cargos por pessoas que se conduzem nos seus postos para
jornal. Nossa pretensão era de que ele batesse o olho na preservar o salário. O salário de redator para baixo voltou
primeira página e dissesse “Esse aqui é o Jornal do Brasil”. a ser muito reduzido, mas a remuneração dos comandos
Ou seja: ele saberia por uma captação automática, senso- das redações é muito alta. A preocupação em manter esse
rial. Há incontáveis outros exemplos na mídia internacional. status quo virou prioridade, o que traz um efeito nocivo ao
Nos Estados Unidos, a Life mudou a cara inteira da revista jornalismo. O comando da redação se torna um cumpridor
na década de 30. Na França, a Paris Match transformou e transferidor de ordens não provenientes do jornalismo,
completamente a técnica de revista ilustrada, de maneira mas dos interesses que margeiam e se valem do jornalis-
fantástica e corajosa. Em algum momento, essas mudan- mo. E há também a resistência ao novo por parte do que
ças também terão de ocorrer na internet. A tendência é deveriam ser os maiores interessados em mudar, os donos
que esse meio encontre a sua própria forma e deixe de de jornais, cujas publicações estão entrando em colapso.
ser uma réplica visual da mídia impressa. Do ponto de vista da leitura, da audiência, do consumo,
a empresas de mídia já perderam espaço e importância.
Outros meios ocuparam esse lugar. O que ainda sobrevive
é o seu poder. Por ora, ele não se esvaiu com a extinção

A MANUTENÇÃO DO
das revistas e de tantos jornais. Mas quem usufrui disso é
necessariamente um número menor, correspondente ao

STATUS QUO
que sobrou no setor.

Há uma resistência à mudança no próprio meio. Isso


existiu no impresso e se repete na internet. Essa resistência
está nos jornalistas, que vão ter de aprender uma coisa
nova e terão muito mais trabalho no início até as coisas
engrenarem perfeitamente. Eu percebo essa resistência
em detalhes mínimos, como, por exemplo, em certos
formalismos na menção a nomes de instituições. Ter de
escrever Supremo Tribunal Federal por extenso fica até
ridículo. Os leitores sabem o que é Supremo. Sabem que
Jair Bolsonaro é ex-presidente. Não é necessário apresentá-
-lo sempre como ex-presidente. É uma cópia dos manuais
de redação, que já são velhíssimos. São vícios que tornam
os jornais e agora as publicações na internet muito chatos.
E não pensem que o leitor não percebe isso não! E quando
não percebe, há uma coisa ainda pior: ele sente! Há uma
retração sensorial, intelectual. O público se afasta e o
jornalismo não consegue encontrar soluções. Os jornais
deveriam estar hoje nas mãos de profissionais interessados
e dedicados a estudar o jornalismo e refletir sobre fórmulas,

224 ROTATIVA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

SÍNDROME DE WALL
STREET JOURNAL do inteiro! Essa fixação com a economia está nas próprias
redações. Tem que fazer um comentário na TV ao meio-dia.
Quem é que se escolhe? O jornalista de economia. Tem de
Há um fenômeno na imprensa brasileira que, de certa fazer um caderno especial sobre água. Entregam ao editor
forma, vem desde o Plano Real: a ascensão do noticiário de economia. A imprensa brasileira hoje tem complexo de
econômico. É uma inversão, porque é mundial a consta- Wall Street Journal. E essa primazia do noticiário econômico
tação de que o tema menos procurado pelo ouvinte, pelo traz a reboque outro fenômeno maléfico: a cobertura jorna-
leitor ou pelo telespectador é exatamente a economia. lística de economia é praticamente ditada por uma corrente
Nenhum outro é tão pouco interessante, merece tão pouca única de pensamento. A mídia reproduz e verbaliza a voz
atenção. E os leitores – assim considerados porque são do mercado. Diz o que o mercado diz e, principalmente,
capazes de dizer se os juros deverão subir ou cair – são o que ele quer ouvir, com baixa capacidade crítica e de
apenas leitores de títulos. A cota dos leitores de economia interpretação dos fatos. E se grande parte da imprensa
que leem alguns textos é ridícula, tão ridícula que chega a realça o que mercado quer, naturalmente esmaece o que
ser caricatural. E, na verdade, não é que o leitor não leia; ele não quer. Dou um exemplo: o BNDES realizou, em
ele simplesmente não entende o que está sendo publicado. março, um seminário com economistas proeminentes no
Ainda assim, a frequência de manchetes de economia nos mundo. Gente que gostaríamos de ouvir em qualquer situ-
jornais brasileiros é de uma proporção sem paralelo no mun- ação, e que os jornalistas usariam para transmitir aos seus
leitores, com o maior empenho, com a maior satisfação.
A maioria dos jornais deu um espaço ínfimo ao assunto;
alguns sequer fizeram menção ao evento.

ESPECIAL ABRIL 2023 225


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A ERA DO
DESIMPORTANTE
A mídia se tornou especialista em transformar o
irrelevante em relevante. Em dar importância ao que é
desimportante. O supérfluo capturou as manchetes. Isso
é parte fundamental da transformação e, mais do que a

REGULAÇÃO DA MÍDIA transformação, da perda de qualidade geral do jornalismo.


Em uma sociedade tão numerosa e diversa como é a nossa,
tem leitor para tudo, tem ouvinte para tudo, tem telespec-
O trabalho coordenado dos jornais e televisões duran- tador para tudo. Em última linha, há demanda para tudo.
te a Lava Jato foi uma salada de verdades e mentiras, e Existe, sim, um público que quer consumir o relevante.
coisas sérias e canalhices. Eu acho que serve para todo o Só que ele é insuficiente. Uma parcela cada vez maior da
sempre como uma resposta a um tema que surge recor- sociedade quer o irrelevante. Há algo curioso nesse fenô-
rentemente: a necessidade ou não de regulação da mídia. meno: os jornalistas, pouco preparados para olhar a socie-
Ainda não saiu – e eu duvido que saia – uma história “no dade, o país, a realidade brasileira e o próprio jornalismo,
duro” sobre o que se passou e como eram feitos os no- percebem, dolorosamente, o que está se passando com o
ticiários daquela época. Fora quem viveu aquilo, ninguém jornalismo. Eles identificam a queda brutal das assinaturas
sabe. É uma coisa horrorosa. Mesmo o tratamento dado e da venda avulsa dos veículos impressos. Mais do que
a denúncias de acusações verdadeiras foi de uma imora- saber, o profissional sente que isso está acontecendo.
lidade completa. Só possível, por falta total de regulação. Os comentaristas e articulistas, por exemplo, percebem
Não é censura, são normas éticas. Eu acho necessário, a queda de repercussão do que dizem e escrevem. Mas
mas é evidente que a gente precisa de uma regulação parece haver uma inércia geral.
que seja inteligente. Então, vai depender da forma dada a
essa regulação. Se for inteligente, honesta e correta, acho
muito importante ter. Até porque hoje não estamos falando
só das grandes empresas de mídias, estamos falando de
todo esse ecossistema, da internet, dos novos veículos
digitais, das redes sociais propagadoras de informação que
não são produtores de conteúdo primário, mas replicam
conteúdo de terceiros. Essas empresas estão à margem
de qualquer regulação. Existe uma assimetria em relação
às empresas de mídia, que, mesmo não reguladas, ainda
respeitam, muitas delas, códigos éticos.

226 ROTATIVA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O JORNALISMO ESTÁ
MORTO?
O futuro é incerto e não sabido. Se eu quiser negar a
mim mesmo, digo que o jornalismo, como conhecemos,
morreu. Mas ainda acredito que, entre os profissionais da
imprensa, há sobreviventes imensamente inconformados
e capazes de manter uma certa lembrança daquele jor-
nalismo. De vez em quando se encontram pessoas que
ainda o exercem. Há profissionais mesmo de gerações
mais recentes que tiveram a sorte de viver uma cadeia
de formação do jornalista que se extinguiu. Então, minha
impressão é de que aquele jornalismo, morto exatamente
não está, mas está assim em um processo muito avançado
de extinção. É difícil imaginar uma saída para isso, porque os
NADA DE NOVO
hábitos negativos da imprensa brasileira como instituição,
como atividade empresarial, se mantêm. Esse é o grande
NO FRONT
impedimento para que se faça um jornalismo mais próximo
Não sei dizer por onde o bom jornalismo sobreviverá.
do que é o jornalismo. Ou ao menos do que deveria ser.
Há quem diga que estamos vivendo uma fase de inovação
Esse processo de tornar o desimportante em algo impor-
em termos de jornalismo com a mídia digital. Eu acho exa-
tante está na essência da reverberação da informação ruim.
tamente o oposto. Estamos vivendo um processo de des-
Essa informação deformada, ou essa desinformação está
truição inclusive pela mídia digital. Destruição do jornalismo
cumprindo na mídia digital o papel que o sensacionalismo,
e da comunicação. E a tendência é que, no velho processo
particularmente o sensacionalismo policial, cumpriu na im-
dialético, isso venha lá adiante a provocar uma sucessão
prensa convencional. A ausência desse sensacionalismo,
de tentativas criadoras, ou pretensamente criadoras de
que não se transferiu para a internet, se deve ao fato de
novas formas de comunicação, coisas mais desligadas do
que o lugar dele foi suprido por essa irresponsabilidade,
que se fez até agora. Isso é bastante possível. Vai aparecer
pelas fake news, pelos comentários levianos. E ainda
quem crie algo interessante como resposta ao que está se
temos as redes sociais. Não sigo nenhumas delas. Acho
fazendo hoje no jornalismo. Há uma queda, menos intensa
quase impossível alguém considerar que essas mídias
em certa área da Ásia e da Europa, mas bastante intensa
passam perto de ser jornalismo. As redes sociais são
nos EUA de interesse por informação propriamente dita.
manifestações de um público desejoso de incluir sua voz
Então, há também um problema social envolvido nisso, há
na opinião pública, e não mais do que isso. Essas pessoas
uma descultura em curso. Aqui no Brasil, esse processo é
se veem diante da oportunidade de usar sua própria voz e
muito perceptível mesmo nas áreas que não exigem certa
expô-la da maneira como quiserem, o que já por definição
sofisticação intelectual e cultural, como música popular.
não é jornalismo. Essa liberdade de se fazer o que bem
Antigamente tinha três ou quatro músicas disputando a
se quer não é jornalismo, Jornalismo tem compromissos
primazia da audiência no país inteiro. Hoje em dia, não
rigorosos para quem se submete a eles exatamente por
tem nenhuma
querer fazer jornalismo.

Depoimento a Claudio Fernandez e João Pedro Faro

ESPECIAL ABRIL 2023 227


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O ASSASSINATO DE JÚLIO CÉSAR


A conspiração forjada contra Júlio César englobou mais da aos senadores, que se achavam reunidos e o esperavam,
de 60 cidadãos, à testa dos quais se encontravam Caio Cás- desde muito já, dispôs-se afinal a sair, às cinco horas. Certa
sio, Marco e Décimo Bruto. A princípio, vacilaram os cons- pessoa, à sua passagem, entregou-lhe um bilhete em que lhe
piradores sobre se escolheriam o Campo de Marte no mo- denunciava a conjura. Ele o misturou, entretanto, com outros
mento em que, durante os comícios, César estivesse a con- papéis que tinha na mão esquerda […]. A seguir, […] entrou
clamar os tribunos – para que alguns daqueles pudessem na Cúria, desdenhoso da religião, a zombar de Spurina e a
jogá-lo do alto da ponte e outros, em baixo, trucidá-lo –, tratá-lo de mentiroso, pois para ele os idos de março haviam
ou se o atacariam na Via Sagrada, ou, ainda, à entrada do chegado sem nenhum acidente. A isso, responderam-lhe
teatro. Ao ter sido convocado o Senado, na Cúria de Pom- “que tinham chegado, mas não tinham passado ainda”.
peu, para os idos de março, encontraram eles, então, o mo- Assim que se assentou, rodearam-no, logo, os conjura-
mento e o local preferíveis. dos, no aparente intuito de lhe mostrarem solicitude, quando
Sem embargo, prodígios ruidosos anunciaram a César Címber Túlio, a quem fora distribuído o primeiro papel, dele
a morte que lhe preparavam. Poucos meses antes, na colô- se aproximou como para lhe pedir qualquer coisa. À recusa
nia de Cápua, vários colonos para ali conduzidos, em virtu- de César, que, com um gesto, deu a entender que lhe falasse
de da lei Júlia, procediam à destruição de antigas sepultu- noutra oportunidade, ele o segurou pela toga, impetuosa-
ras para, em seus lugares, construírem casas. […] No monu- mente. César gritou: “Mas isto é uma violência!” Então, um
mento em que Cápis, fundador de Cápua, passava por ter dos Cássios fere-o pelas costas, um pouco abaixo do pesco-
sido sepultado, descobriram eles uma inscrição em carac- ço. César, por sua vez, tomando-lhe do braço, atravessou-o
teres e língua grega, assim concebida: “Quando os ossos de com um buril. Quis, ainda, arremeter: outro ferimento, po-
Cápis forem desenterrados, um descendente de Júlio pere- rém, o deteve. Mas, ao ver levantados sobre ele punhais de
cerá pela mão de seus semelhantes, mas logo será vingado todas as direções, enrolou a cabeça na toga. Ao mesmo tem-
por grandes calamidades na Itália.” […] po, com a mão esquerda abaixou-lhe as dobras até às per-
Nos últimos dias da sua vida, César teve notícia de que nas, a fim de que pudesse tombar mais decentemente, vis-
as quadrilhas de cavalos que ele consagrara ao passar o Ru- to que a parte inferior estava toda desnuda.
bicão, e postas a pastarem em liberdade e sem guardadores, Aí, então, transpassaram-no com 23 punhaladas. Ao pri-
abstiveram-se de toda alimentação […]. Advertiu-o o arús- meiro golpe, soltou apenas um gemido sem pronunciar pa-
pice Spurina de que se cuidasse de um perigo que lhe não lavra, embora relatem alguns que ele exclamara, arremes-
adviria senão depois dos idos de março. Nas vésperas destes sando-se contra Marco Bruto: “Tu, também, meu filho!” Ao
mesmos idos, pássaros de diferentes espécies, saídos de um vê-lo sem vida, todos fugiram. Seu corpo ficou por algum
bosque vizinho, perseguiram e fizeram debandar dali uma tempo estendido no solo. Finalmente, três escravos puse-
pomba que poisara, com um ramo de loureiro, na Cúria de ram-no numa liteira, da qual pendia-lhe um dos braços, e o
Pompeu. Na noite que precedeu o dia do assassínio, pare- levaram para casa. No entender do seu médico Antístio, de
ceu-lhe, durante o sono, que ora voava por sobre as nuvens, tantos ferimentos só um era mortal: o segundo golpe desfe-
ora apertava a mão de Júpiter. Calpúrnia, sua mulher, so- rido no peito. Tencionavam os conspiradores arrastar o ca-
nhou, também, que a cumeeira da casa se abatia e que seu dáver para o Tibre; confiscar-lhe os bens e cassar-lhe todas
marido estava trespassado de golpes no peito. E, de repen- as decisões. Porém, como temessem o cônsul Marco Antô-
te, abriram-se, por si sós, as portas do seu quarto de dormir. nio e o chefe da cavalaria, Lépido, desistiram da empresa.
Estes presságios todos, ligados ao mau estado da sua
saúde, fizeram-no hesitar por muito tempo sobre se devia
(Suetônio, ca. 69-ca. 122. As vidas dos doze Césares: Julio César, Augusto, Tibério,
ficar em casa e adiar a sua tarefa no Senado. Como, porém, Calígula, Cláudio, Nero, Galba, Óton, Vitélio, Vespasiano, Tito, Domiciano /
Décimo Bruto o exortasse a não faltar à palavra empenha- Suetônio. – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012, pp. 46-48).

228 PITACO
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