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DICIONÁRIO DA

ESCRAVIDÃO
E LIBERDADE
50 textos críticos

Lilia Morítz Schwarcz


e Flávio dos Santos Gomes
ORGANI ZADORES

fts
Companhia Das Letras
Maria Cristina Cortez Wissenbach
LETRAMENTO
E ESCOLAS
N a Á frica subsaariana , desde os primeiros contatos com

os europeus a partir dos séculos xv e xvi, a arte da


escrita e da leitura, e as habilidades dos brancos no
manejo de canetas, penas, tintas e papel, bem como a
possibilidade de transmitir mensagens por meio deles,
exerceram fascínio entre as sociedades africanas. Ge­
ralmente os africanos associavam tudo isso aos pode­
res mágicos dos recém-chegados, expressos também na
tecnologia de suas caravelas e de suas armas. O fascínio
levou à aproximação, e rapidamente foram surgindo
entre eles homens especializados tanto nas línguas eu­
ropéias quanto na escrita e na leitura, intermediando
mundos e culturas que se conectavam. Em Angola,
ensinados pelos missionários que se estabeleciam no
interior, eram conhecidos como os ambaquistas (natu­
rais de Ambaca), e se tornaram figuras essenciais nas
comunicações entre os governantes africanos e as au­
toridades de Luanda, sede do poder da Coroa na Angola
portuguesa. No reino vizinho do Congo, especialistas
similares colocavam-se em torno dos reis e, apropri­
ando-se das mesmas habilidades, passaram a escrever
cartas dirigidas por estes aos seus pares na Europa e ao

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Vaticano. A mesma dinâmica já havia ocorrido, tempos
antes da chegada dos europeus, nas regiões africanas is-
lamizadas em que o aprendizado da língua e da escrita
árabe fazia parte dos processos culturais e religiosos de
integração ao mundo do Islã. Em muitas das cidades do
Sahel, nas margens do grande deserto e do rio Niger,
junto às mesquitas e aos mercados se instalaram esco­
las e bibliotecas que ajudavam a difundir as crenças e as
leis do Alcorão, e a formar marabutos e imãs africanos.
Quer numa situação quer noutra, se na escrita di­
fundida na África de início prevaleceram os conteú­
dos políticos, rapidamente seus sentidos dispersaram-
se em outras direções: a contabilidade comercial, as
notas de crédito, os recibos e as listas de mercadorias,
os contratos escritos mediando as relações entre pa­
trões e empregados, e as missivas que ofereciam meio
capaz de concretizar o contato à distância entre entes
queridos. Além disso, outras vezes a escrita valia por
si, e seu poder mágico permaneceu imanente. Rezas e
símbolos religiosos, ora desenhados ora escritos no al­
fabeto árabe ou no europeu, eram mantidos no interior
dos gris-gris ou bolsas mandingas, dos patuás e dos
amuletos que africanos homens, mulheres e crianças
portavam, para proteger-se das agruras da vida, da es-
cravização e das longas viagens em direção às Amé­
ricas. A caracterização das sociedades africanas como
ágrafas e a dicotomia entre a oralidade e a escritura têm
sido cada vez mais revistas em razão dessas dimensões.
Diante do quadro histórico africano, não é de estra­
nhar o fascínio e o poder que a linguagem escrita
exerceu entre escravos e forros, africanos e crioulos,
mantidos, por força da lei e das regras que norteavam
o mundo da escravidão no Brasil, distantes das escolas
e da aprendizagem formal das primeiras letras — mas
não da escrita. Também não é preciso supor que fosse
excepcional a existência entre eles de escribas, ou seja.

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dos que se especializavam na escrita e na leitura, com­
petências que, no geral, lhes chegavam por meios não
institucionais. Os pesquisadores têm localizado provas
textuais de uma cultura escrita entre escravizados, da­
tadas dos inícios da colonização e do tráfico atlântico
mas que se avolumam no século xix. No último século
da escravidão brasileira, e ganhando formas distintas
de expressão, a escrita aparece algumas vezes em tra­
tados políticos encomendados pelos escravizados na
busca do reconhecimento de seus direitos; outras, na
correspondência feita de próprio punho por escravos
e forros, geralmente confiscada pela polícia, uma vez
que o letramento era indício de atitudes e práticas sus­
peitas. Outras vezes ainda, surge no formato de listas
de objetos, posses e serviços que os escravizados de­
sempenhavam, ou numa infinidade de outros papéis
associados a situações ordinárias do dia a dia. Têm sido
encontrados também registros de livreiros da corte do
Rio de Janeiro, nos anos 1860, registros sobre a venda
de livros a escravos e a ex-escravos, entre eles o Alcorão
e gramáticas da língua árabe.
Observando-se as condições que propiciaram a alfabe­
tização de escravos e de forros, tal como referida pela
documentação do séctolo xix, alguns aspectos chamam
de imediato atenção. Deve ser considerada de início a
situação das cidades brasileiras em que cresciam expo-
nencialmente os movimentos abolicionistas, com seus
clubes de leitura e jornais, como também a atuação de
defensores e porta-vozes dos escravizados, entre eles
alguns ex-cativos educados pelas elites letradas. É o
caso, por exemplo, de Luís Gama, que, vendido ainda
criança da Bahia para São Paulo, foi ensinado por
estudantes e professores da Faculdade de Direito da
cidade, seus patronos, tornando-se a partir daí escrivão
da polícia, rábula, poeta e escritor. Em outras circuns­
tâncias, verifica-se a difusão dos mesmos hábitos de

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letramento entre grupos de escravizados pertencentes
às ordens religiosas e ao clero que, como senhores, de­
monstravam relativa preocupação quanto às condições
de vida dos grupos de escravizados, instruindo-os pro­
fissionalmente, insistindo na manutenção de famílias
e na educação religiosa. Por fim, é possível associar
a cultura escrita a situações específicas do trabalho
urbano, princípalmente aos ofícios que exigiam dos
cativos um desempenho autônomo. Nesse caso, tanto
a escrita quanto a capacidade de contabilizar estariam
ligadas não só às regalias, como também às exigências
de um mercado de trabalho competitivo no qual os ca­
tivos eram obrigados a agenciar os serviços por conta
própria.
Segundo o censo de 1872, somente 15,7% dos habi­
tantes do Brasil da época se afirmavam alfabetizados, e,
portanto, considerando-se a sociedade como um todo,
houve certa demora para os códigos do letramento se
implantarem e se generalizarem como hábito cultural.
No entanto, muitos dos segmentos sociais não letra­
dos e sem acesso a uma escolaridade formal tinham
consciência do potencial dessa forma de expressão, e
aderiram direta ou indiretamente ao universo da lin­
guagem escrita e da leitura. Vivia-se num mundo em
que “uns leem, outros escutam, ou simplesmente veem,
mas todos se aproximam bem ou mal da escrita, todos
a percebem e experimentam sua presença", no dizer de
Fabre.
Um costume presente entre os setores mais pobres da
sociedade brasileira, e aqui incluídos os escravizados,
era o de pagar para alguém escrever missivas endereça­
das a parentes ou conhecidos. Em São Paulo, na década
de 1860, Teodora Dias da Cunha, africana natural do
Congo e escrava doméstica, encomendou pelo menos
cinco delas ao escravo pedreiro Claro, crioulo, bus­
cando informações sobre seu marido e seu filho, cujo

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destino ela desconhecia, e procurando assim recompor
a unidade familiar rompida pela venda em separado.
Nos conteúdos ditados ao escravo e transformados em
palavras escritas, a africana expressava sua visão do
mundo, profundamente religiosa, e seus maiores de­
sejos: a promessa que fazia aos santos católicos e às
entidades africanas e atlânticas no sentido de obter a
liberdade e voltar para a África. Na mesma época, no
Rio de Janeiro, o africano livre Ciro não só integrava pe­
tições de liberdade dirigidas e intermediadas pelas au­
toridades judiciárias, como escrevia textos de próprio
punho endereçados ao senhor, nos quais denunciava
a ilegalidade de sua escravização e clamava por seu
direito em manter os filhos próximos a si, apelando
para uma linguagem ameaçadora como recurso para re­
verter as injustiças que recaíam sobre ele. Já Leocádia,
filha de uma africana livre, escravizada ilegalmente,
manifestava também em cartas sua intenção de perma­
necer na cidade do Rio de Janeiro e não ser devolvida
à mãe. São esses alguns exemplos de fontes que foram
caracterizadas pela historiografia da escravidão como
"escritas de si”, nas quais homens e mulheres, cativos e
forros, deixavam claros sentidos próprios atribuídos às
suas vivências e às dinâmicas das relações sociais em
j

que foram envolvidos.


É importante ressaltar que a maioria das peças relata­
das acima foi apreendida pelas autoridades policiais e
mantida silenciada durante muito tempo no interior de
autos judiciários. A prática da escrita, quando exercida
por escravos e escravas, libertos e libertas, principal­
mente na atmosfera de sublevacões sociais das décadas
d e l 8 7 0 e l8 8 0 , não só levantava suspeita, como deno­
tava uma atitude de arrogância, uma vez que, na visão
da sociedade hegemônica, pressupunha o uso de um
código que se mantinha privilégio exclusivo da elite e
que não fazia parte dos atributos pensados para a classe

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dos escravizados. Vivendo numa sociedade discricioná­
ria e racista, dessa arrogância e de ser “negro desaver­
gonhado” era também acusado o escritor Luís Gama
quando andava pelas ruas de São Paulo.
Ouvir as notícias da imprensa lidas em voz alta em es­
paços públicos era outro meio de contornar a situação
de não letramento, e permaneceu como hábito ciiltu-
ral entre muitos segmentos sociais, difundidos tanto
em clubes literários quanto informalmente em praças
de pequenas cidades do interior. Nas zonas rurais do
Sudeste brasileiro, documentos dos últimos tempos da
escravidão flagraram grupos de escravos do eito ou­
vindo notícias que eram trazidas pelos jornais abolicio­
nistas e que em seguida se espalhavam como rastilhos
de pólvora pelas comunidades escravas das fazendas
vizinhas. Já tempos mais tarde, lá pelos idos dos anos
1920, antes de ingressar na escola, Bitita, nome pelo
qual era conhecida a menina e depois escritora Carolina
Maria de Jesus, era levada por seu avô para ouvir o Es­
tado de S. Paulo ser lido por um oficial de justiça negro,
conhecendo com isso as opiniões de Rui Barbosa sobre
a distribuição de terras aos ex-escravos, ou as últimas
novidades sobre a guerra na Europa dos anos 1914-18.
No universo da oralidade que dominava o ambiente da
cidade do interior onde ela morava, e podendo usufruir
das experiências em que se davam as interfaces entre o
oral e a cultura impressa, a memória prodigiosa da es­
critora levou-a, anos mais tarde, a elaborar seu diário de
infância e apontar nele os momentos significativos de
sua formação.
)

Em Minas Gerais, ainda menina, Bitita frequentou


uma escola patrocinada por um intelectual espírita,
num período em que os estabelecimentos escolares não
poderiam mais discriminar alunos negros, devendo
aceitar a todos sem excecão. Até então a educacão
formal tinha sido regalia de poucos, seu acesso proi­

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bido aos escravos de acordo com legislações adotadas
a partir de 1869, e direito relativo atribuído aos seus
descendentes. Nos tempos do Império não existiam de
fato interdições expressas aos de condição livre, nem
mesmo nos regimentos provinciais que normatizavam
a instrução pública, havendo registros de matrículas
de alunos não brancos nas escolas públicas, entre eles
"ingênuos" libertados pela lei de 1871. No entanto,
as posições em relação à educacão das criancas ne-
gras eram ambíguas, e permaneceram assim por muito
tempo: por vezes a instrução foi vista como estratégia
para educar e civilizar os jovens egressos do mundo da
escravidão; outras vezes sua presença nos bancos esco­
lares foi considerada com aversão, pois eles poderíam
se tornar parcerias perniciosas e contaminar com seus
vícios os alunos brancos. Os depoimentos de mestres e
professores quase sempre denotavam incerteza e reite-
radamente insistiam em querer saber o que dizia a lei,
"se podiam ou não aceitar cativos libertos”.
A educação das populações negras no Império, de
livres e de escravos, acontecia também em institui­
ções privadas promovidas por patronos. As pesquisas
recentes sobre a história da educacão no Brasil têm re-
velado várias dessas iniciativas: a escola de Pretextato
dos Passos Silva, formada na corte imperial em 1853 e
destinada a meninos pardos e negros; a escola noturna
destinada a adultos fundada em Curitiba pelo mestre
de primeiras letras José Miguel Schleder, disposto a
ensinar imigrantes e negros livres e escravos a ler e
escrever; ou ainda a proliferação de instituições edu­
cacionais promovidas pelos movimentos emancipacio-
nistas, em diversas localidades do Brasil. A instrução
elementar estava presente também nos programas de
estabelecimentos asilares e profissionais criados com o
intuito de formar menores artesãos, adestrados e disci­
plinados, ou assistir meninos jornaleiros, como ocorria

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na escola noturna a eles destinada em São Paulo nos
fins do XIX.
Desde as últimas décadas do mtmdo da escravidão
brasileira, entre as falas dos abolicionistas e as pau­
tas das associações negras dos inícios da República, a
instrução era entendida como meio de afirmação social
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e de acesso à cidadania pelos setores negros da socie­


dade. Nos ditos e nas trovas populares, a ida dos recém-
libertados à escola era uma das grandes regalias obtidas
com a emancipação de 1888. Já entre os movimentos
sociais do século xx, da Frente Negra Brasileira aos jor­
nais da imprensa negra, a inclusão dos negros na escola
pública e o acesso à educação em todos os seus níveis
eram reivindicações feitas ao Estado republicano, e apa­
reciam igualmente como conselhos dirigidos às famí­
lias negras que pretendiam se afirmar numa sociedade
recém-egressa da escravidão. Além disso, apostavam na
centralidade da formação intelectual para o processo de
reversão da posição de inferioridade atribuída aos ne­
gros pelas ideologias que dominaram grande parte do
pensamento social brasileiro e justificaram os séculos
da escravizacão.

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