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WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Letramento e Escolas. in - Dicionário Da Escravidão e Liberdade (2018)
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Letramento e Escolas. in - Dicionário Da Escravidão e Liberdade (2018)
ESCRAVIDÃO
E LIBERDADE
50 textos críticos
fts
Companhia Das Letras
Maria Cristina Cortez Wissenbach
LETRAMENTO
E ESCOLAS
N a Á frica subsaariana , desde os primeiros contatos com
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Vaticano. A mesma dinâmica já havia ocorrido, tempos
antes da chegada dos europeus, nas regiões africanas is-
lamizadas em que o aprendizado da língua e da escrita
árabe fazia parte dos processos culturais e religiosos de
integração ao mundo do Islã. Em muitas das cidades do
Sahel, nas margens do grande deserto e do rio Niger,
junto às mesquitas e aos mercados se instalaram esco
las e bibliotecas que ajudavam a difundir as crenças e as
leis do Alcorão, e a formar marabutos e imãs africanos.
Quer numa situação quer noutra, se na escrita di
fundida na África de início prevaleceram os conteú
dos políticos, rapidamente seus sentidos dispersaram-
se em outras direções: a contabilidade comercial, as
notas de crédito, os recibos e as listas de mercadorias,
os contratos escritos mediando as relações entre pa
trões e empregados, e as missivas que ofereciam meio
capaz de concretizar o contato à distância entre entes
queridos. Além disso, outras vezes a escrita valia por
si, e seu poder mágico permaneceu imanente. Rezas e
símbolos religiosos, ora desenhados ora escritos no al
fabeto árabe ou no europeu, eram mantidos no interior
dos gris-gris ou bolsas mandingas, dos patuás e dos
amuletos que africanos homens, mulheres e crianças
portavam, para proteger-se das agruras da vida, da es-
cravização e das longas viagens em direção às Amé
ricas. A caracterização das sociedades africanas como
ágrafas e a dicotomia entre a oralidade e a escritura têm
sido cada vez mais revistas em razão dessas dimensões.
Diante do quadro histórico africano, não é de estra
nhar o fascínio e o poder que a linguagem escrita
exerceu entre escravos e forros, africanos e crioulos,
mantidos, por força da lei e das regras que norteavam
o mundo da escravidão no Brasil, distantes das escolas
e da aprendizagem formal das primeiras letras — mas
não da escrita. Também não é preciso supor que fosse
excepcional a existência entre eles de escribas, ou seja.
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dos que se especializavam na escrita e na leitura, com
petências que, no geral, lhes chegavam por meios não
institucionais. Os pesquisadores têm localizado provas
textuais de uma cultura escrita entre escravizados, da
tadas dos inícios da colonização e do tráfico atlântico
mas que se avolumam no século xix. No último século
da escravidão brasileira, e ganhando formas distintas
de expressão, a escrita aparece algumas vezes em tra
tados políticos encomendados pelos escravizados na
busca do reconhecimento de seus direitos; outras, na
correspondência feita de próprio punho por escravos
e forros, geralmente confiscada pela polícia, uma vez
que o letramento era indício de atitudes e práticas sus
peitas. Outras vezes ainda, surge no formato de listas
de objetos, posses e serviços que os escravizados de
sempenhavam, ou numa infinidade de outros papéis
associados a situações ordinárias do dia a dia. Têm sido
encontrados também registros de livreiros da corte do
Rio de Janeiro, nos anos 1860, registros sobre a venda
de livros a escravos e a ex-escravos, entre eles o Alcorão
e gramáticas da língua árabe.
Observando-se as condições que propiciaram a alfabe
tização de escravos e de forros, tal como referida pela
documentação do séctolo xix, alguns aspectos chamam
de imediato atenção. Deve ser considerada de início a
situação das cidades brasileiras em que cresciam expo-
nencialmente os movimentos abolicionistas, com seus
clubes de leitura e jornais, como também a atuação de
defensores e porta-vozes dos escravizados, entre eles
alguns ex-cativos educados pelas elites letradas. É o
caso, por exemplo, de Luís Gama, que, vendido ainda
criança da Bahia para São Paulo, foi ensinado por
estudantes e professores da Faculdade de Direito da
cidade, seus patronos, tornando-se a partir daí escrivão
da polícia, rábula, poeta e escritor. Em outras circuns
tâncias, verifica-se a difusão dos mesmos hábitos de
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letramento entre grupos de escravizados pertencentes
às ordens religiosas e ao clero que, como senhores, de
monstravam relativa preocupação quanto às condições
de vida dos grupos de escravizados, instruindo-os pro
fissionalmente, insistindo na manutenção de famílias
e na educação religiosa. Por fim, é possível associar
a cultura escrita a situações específicas do trabalho
urbano, princípalmente aos ofícios que exigiam dos
cativos um desempenho autônomo. Nesse caso, tanto
a escrita quanto a capacidade de contabilizar estariam
ligadas não só às regalias, como também às exigências
de um mercado de trabalho competitivo no qual os ca
tivos eram obrigados a agenciar os serviços por conta
própria.
Segundo o censo de 1872, somente 15,7% dos habi
tantes do Brasil da época se afirmavam alfabetizados, e,
portanto, considerando-se a sociedade como um todo,
houve certa demora para os códigos do letramento se
implantarem e se generalizarem como hábito cultural.
No entanto, muitos dos segmentos sociais não letra
dos e sem acesso a uma escolaridade formal tinham
consciência do potencial dessa forma de expressão, e
aderiram direta ou indiretamente ao universo da lin
guagem escrita e da leitura. Vivia-se num mundo em
que “uns leem, outros escutam, ou simplesmente veem,
mas todos se aproximam bem ou mal da escrita, todos
a percebem e experimentam sua presença", no dizer de
Fabre.
Um costume presente entre os setores mais pobres da
sociedade brasileira, e aqui incluídos os escravizados,
era o de pagar para alguém escrever missivas endereça
das a parentes ou conhecidos. Em São Paulo, na década
de 1860, Teodora Dias da Cunha, africana natural do
Congo e escrava doméstica, encomendou pelo menos
cinco delas ao escravo pedreiro Claro, crioulo, bus
cando informações sobre seu marido e seu filho, cujo
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destino ela desconhecia, e procurando assim recompor
a unidade familiar rompida pela venda em separado.
Nos conteúdos ditados ao escravo e transformados em
palavras escritas, a africana expressava sua visão do
mundo, profundamente religiosa, e seus maiores de
sejos: a promessa que fazia aos santos católicos e às
entidades africanas e atlânticas no sentido de obter a
liberdade e voltar para a África. Na mesma época, no
Rio de Janeiro, o africano livre Ciro não só integrava pe
tições de liberdade dirigidas e intermediadas pelas au
toridades judiciárias, como escrevia textos de próprio
punho endereçados ao senhor, nos quais denunciava
a ilegalidade de sua escravização e clamava por seu
direito em manter os filhos próximos a si, apelando
para uma linguagem ameaçadora como recurso para re
verter as injustiças que recaíam sobre ele. Já Leocádia,
filha de uma africana livre, escravizada ilegalmente,
manifestava também em cartas sua intenção de perma
necer na cidade do Rio de Janeiro e não ser devolvida
à mãe. São esses alguns exemplos de fontes que foram
caracterizadas pela historiografia da escravidão como
"escritas de si”, nas quais homens e mulheres, cativos e
forros, deixavam claros sentidos próprios atribuídos às
suas vivências e às dinâmicas das relações sociais em
j
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dos escravizados. Vivendo numa sociedade discricioná
ria e racista, dessa arrogância e de ser “negro desaver
gonhado” era também acusado o escritor Luís Gama
quando andava pelas ruas de São Paulo.
Ouvir as notícias da imprensa lidas em voz alta em es
paços públicos era outro meio de contornar a situação
de não letramento, e permaneceu como hábito ciiltu-
ral entre muitos segmentos sociais, difundidos tanto
em clubes literários quanto informalmente em praças
de pequenas cidades do interior. Nas zonas rurais do
Sudeste brasileiro, documentos dos últimos tempos da
escravidão flagraram grupos de escravos do eito ou
vindo notícias que eram trazidas pelos jornais abolicio
nistas e que em seguida se espalhavam como rastilhos
de pólvora pelas comunidades escravas das fazendas
vizinhas. Já tempos mais tarde, lá pelos idos dos anos
1920, antes de ingressar na escola, Bitita, nome pelo
qual era conhecida a menina e depois escritora Carolina
Maria de Jesus, era levada por seu avô para ouvir o Es
tado de S. Paulo ser lido por um oficial de justiça negro,
conhecendo com isso as opiniões de Rui Barbosa sobre
a distribuição de terras aos ex-escravos, ou as últimas
novidades sobre a guerra na Europa dos anos 1914-18.
No universo da oralidade que dominava o ambiente da
cidade do interior onde ela morava, e podendo usufruir
das experiências em que se davam as interfaces entre o
oral e a cultura impressa, a memória prodigiosa da es
critora levou-a, anos mais tarde, a elaborar seu diário de
infância e apontar nele os momentos significativos de
sua formação.
)
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bido aos escravos de acordo com legislações adotadas
a partir de 1869, e direito relativo atribuído aos seus
descendentes. Nos tempos do Império não existiam de
fato interdições expressas aos de condição livre, nem
mesmo nos regimentos provinciais que normatizavam
a instrução pública, havendo registros de matrículas
de alunos não brancos nas escolas públicas, entre eles
"ingênuos" libertados pela lei de 1871. No entanto,
as posições em relação à educacão das criancas ne-
gras eram ambíguas, e permaneceram assim por muito
tempo: por vezes a instrução foi vista como estratégia
para educar e civilizar os jovens egressos do mundo da
escravidão; outras vezes sua presença nos bancos esco
lares foi considerada com aversão, pois eles poderíam
se tornar parcerias perniciosas e contaminar com seus
vícios os alunos brancos. Os depoimentos de mestres e
professores quase sempre denotavam incerteza e reite-
radamente insistiam em querer saber o que dizia a lei,
"se podiam ou não aceitar cativos libertos”.
A educação das populações negras no Império, de
livres e de escravos, acontecia também em institui
ções privadas promovidas por patronos. As pesquisas
recentes sobre a história da educacão no Brasil têm re-
velado várias dessas iniciativas: a escola de Pretextato
dos Passos Silva, formada na corte imperial em 1853 e
destinada a meninos pardos e negros; a escola noturna
destinada a adultos fundada em Curitiba pelo mestre
de primeiras letras José Miguel Schleder, disposto a
ensinar imigrantes e negros livres e escravos a ler e
escrever; ou ainda a proliferação de instituições edu
cacionais promovidas pelos movimentos emancipacio-
nistas, em diversas localidades do Brasil. A instrução
elementar estava presente também nos programas de
estabelecimentos asilares e profissionais criados com o
intuito de formar menores artesãos, adestrados e disci
plinados, ou assistir meninos jornaleiros, como ocorria
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na escola noturna a eles destinada em São Paulo nos
fins do XIX.
Desde as últimas décadas do mtmdo da escravidão
brasileira, entre as falas dos abolicionistas e as pau
tas das associações negras dos inícios da República, a
instrução era entendida como meio de afirmação social
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