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DIREITO CONSTITUCIONAL

1. ORIGEM DO DIREITO CONSTITUCIONAL.

Com a queda da República em Roma, às vésperas do início da


era cristã, o constitucionalismo, como ideia e como prática política,
desapareceria do mundo ocidental. O monumento jurídico representado pelo
direito romano, que atravessou os séculos, foi a matriz imperecível do direito
civil, não do direito constitucional.

Ao final da Idade Média, já avançando no século XVI, consolida-


se a forma política superadora das cidades antigas (pólis grega e civitas
romana) e do modelo feudal (com principados e feudos subordinados a um
Império): o Estado moderno, soberano e absolutista.

O Iluminismo, as teorias contratualistas e a reação ao


absolutismo fazem renascer o ideal constitucionalista, fundado na razão, na
contenção do poder e no respeito ao indivíduo.

Com as revoluções liberais surgem, nos Estados Unidos (1787) e


na França (1791), as primeiras constituições modernas, materializadas em
documentos escritos, aprovados mediante um procedimento formal e solene.

Curiosamente, as primeiras cátedras de direito constitucional


foram criadas em universidades italianas (Ferrara, Pavia e Bolonha), embora
por influência francesa resultante da expansão napoleônica.

Apenas em 1834 a disciplina é introduzida na Universidade de


Paris.

De todo modo, o direito constitucional somente se desenvolve na


Europa como disciplina autônoma nas últimas décadas do século XIX, quando

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regimes constitucionais finalmente se impõem sobre as monarquias absolutas
e os governos oligárquico-aristocráticos.

Com a Revolução Francesa, o direito civil ganha o Código


Napoleônico (1804), que pretendeu ser sua sistematização definitiva, ao passo
que o direito constitucional passa a ter o seu próprio objeto, a Constituição,
cujos estudos se desenvolveriam a partir do século seguinte.

O direito civil dá continuidade a uma tradição milenar, iniciada


com o direito romano.

Já o direito constitucional é de formação muito mais recente,


contando com pouco mais de dois séculos de elaboração teórica.

Em sua história curta, mas intensa, o direito constitucional


conservou a marca da origem liberal: organização do Estado fundada na
separação dos Poderes e definição dos direitos individuais. Um contínuo
processo evolutivo, todavia, agregou-lhe outras funções. O conteúdo dos
direitos ampliou-se para além da mera proteção contra o abuso estatal,
transformando-se na categoria mais abrangente dos direitos fundamentais.

Novos princípios foram desenvolvidos e princípios clássicos


foram redefinidos.

Progressivamente, o direito constitucional foi deixando de ser


um instrumento de proteção da sociedade em face do Estado para se tornar
um meio de atuação da sociedade e de conformação do poder político aos seus
desígnios.

Supera-se, assim, a função puramente conservadora do Direito,


que passa a ser, também, mecanismo de transformação social.

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Em seu estágio atual, o direito constitucional assumiu, na
Europa e no Brasil, uma dimensão claramente normativa. Nos Estados
Unidos, desde sempre, esta fora sua característica essencial.

O direito constitucional demorou a libertar-se das amarras de


outras ciências sociais, como a história, a sociologia, a filosofia, bem como do
próprio varejo da política. Desempenhou, assim, por décadas, mais um papel
programático e de convocação à atuação dos órgãos públicos do que o de um
conjunto de normas imperativas de conduta.

Esse quadro reverteu-se.

O direito constitucional moderno, investido de força normativa,


ordena e conforma a realidade social e política, impondo deveres e assegurando
direitos.

Em resumo:

(1) a origem da expressão Direito Constitucional prende-se ao


triunfo político e doutrinário de alguns princípios ideológicos na organização do
Estado moderno, o chamado Estado liberal, Estado de direito ou Estado
constitucional.

(2) um contínuo processo evolutivo, todavia, agregou-lhe outras


funções. O conteúdo dos direitos ampliou-se para além da mera proteção
contra o abuso estatal, transformando-se na categoria mais abrangente dos
direitos fundamentais.

(3) Em seu estágio atual, o direito constitucional assumiu, na


Europa e no Brasil, uma dimensão claramente normativa, ordenando e
conformando a realidade social e política, impondo deveres e assegurando
direitos.

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2. CONCEITO.

O vocábulo Direito presta-se a acepções amplas e variadas,


designando um conjunto heterogêneo de situações e possibilidades.

Para a definição do que seja direito constitucional, vamos nos


limitar a demarcar três sentidos.

Direito, assim, pode significar:

(1) Um domínio científico, ou seja, o conjunto ordenado de


conhecimentos acerca de determinado objeto: a ciência do Direito. Na língua
inglesa, a Ciência do Direito é designada de “jurisprudence”.

(2) as normas jurídicas vigentes em determinado momento e


lugar: o direito positivo. Na língua inglesa, o direito positivo é designado de
“law”.

(3) as posições jurídicas individuais ou coletivas instituídas pelo


ordenamento e a exigibilidade de sua proteção: os direitos subjetivos. Na
língua inglesa, os direitos subjetivos são designados de “rights”.

O significado conceito de direito constitucional se amolda a essa


classificação conceitual.

2.1. A ciência do direito constitucional.

Como domínio científico, o direito constitucional procura


ordenar elementos e saberes diversos, relacionados a aspectos normativos do
poder político e dos direitos fundamentais, que incluem: as reflexões advindas
da:

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(a) filosofia jurídica, política e moral: filosofia constitucional e
teoria da Constituição.

(b) a produção doutrinária acerca das normas e dos institutos


jurídicos: a dogmática jurídica;

(c) e a atividade de juízes e tribunais na aplicação prática do


Direito: jurisprudência.

Como ciência jurídica, o direito constitucional pode ser definido


como o conjunto sistemático de conhecimentos teóricos e históricos – conceitos
e categorias doutrinárias - que permitem a reflexão acerca da disciplina do
poder no âmbito do Estado, sua organização, limites e finalidades, assim como
da definição dos direitos fundamentais das pessoas sujeitas à sua incidência.

Também se insere no seu campo de estudos a discussão sobre a


realização de determinados fins públicos que são retirados da
discricionariedade política e transformados em obrigações vinculadas do Poder
Público.

2.2. O direito constitucional positivo.

O direito constitucional positivo é composto do conjunto de


normas jurídicas em vigor que têm o status de normas constitucionais, isto é,
que são dotadas de máxima hierarquia dentro do sistema.

A conquista de normatividade foi capítulo decisivo na ascensão


científica e institucional do direito constitucional.

Do ponto de vista formal, todo dispositivo que integre o corpo da


Constituição desfruta da posição especial referida acima.

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O direito constitucional positivo consiste, em primeiro lugar, nas
normas que compõem a Constituição.

Dentre elas se incluem não apenas as que foram editadas com o


texto originário, como também as que venham a ser acrescentadas por
emendas constitucionais, quer figurem diretamente no texto, quer tenham uma
existência autônoma, a ele justaposta.

Mas o Direito não se esgota nas normas legisladas: nele se


inclui, igualmente, o costume, proposição que é válida também no âmbito do
direito constitucional, a despeito das sutilezas que comporta.

No contexto do pós-positivismo contemporâneo, o Direito já não


cabe integralmente no relato da norma, sendo admissíveis construções que
expandem o seu sentido e alcance, com fundamento nos valores
compartilhados pela sociedade e respeitados os limites da legitimidade
democrática da atuação judicial.

Além desse papel renovado atribuído ao intérprete, o Direito


contemporâneo, nos países romano-germânicos, inclusive e destacadamente no
Brasil, vem atribuindo importância crescente à jurisprudência e,
especialmente, à jurisprudência constitucional, que alguns autores já vêm
reconhecendo como fonte formal do Direito.

2.3. O direito constitucional como direito subjetivo.

Direito é, também, em uma terceira acepção, a possibilidade que


o beneficiário de uma norma tem de fazê-la atuar em seu favor, inclusive por
meio de recurso à coação estatal.

Normas jurídicas e normas constitucionais tutelam bens


jurídicos socialmente relevantes e interesses individuais.
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Um direito subjetivo constitucional confere a seu titular a
faculdade de invocar a norma da Constituição para assegurar o desfrute da
situação jurídica nela contemplada.

Direitos subjetivos constitucionais investem os jurisdicionados


no poder de exigir do Estado - ou de outro eventual destinatário da norma
constitucional- prestações positivas ou negativas que proporcionem o desfrute
dos bens e interesses jurídicos nela consagrados. Tais direitos incluem os
individuais, políticos, sociais e coletivos.

3. Ainda o conteúdo científico.

Parte substancial da doutrina, ao debater o conteúdo científico


do direito constitucional em bases metodológicas distintas das que foram
tratadas acima, faz referência a três grandes categorias:

(a) DIREITO CONSTITUCIONAL ESPECIAL, POSITIVO OU


PARTICULAR - trata do Direito de um determinado Estado; a saber, da
organização e funcionamento dos poderes constitucionais. É disciplina de
caráter jurisprudencial, pertencente ao Direito Positivo, e tem por objeto a
análise da Constituição, nacional ou estrangeira, exposta e interpretada de
forma dogmática.

(b) DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO - tem por objeto


não apenas uma Constituição, mas uma pluralidade delas. Resulta do cotejo
das normas constitucionais de diferentes Estados, mediante critérios variáveis.
Um desses critérios consiste em confrontar no tempo as Constituições de um
mesmo Estado. Outro critério é o da comparação do Direito no espaço, com
análise de Constituições de vários Estados, vinculados estes, de preferência, a
áreas geográficas contíguas. O Direito Constitucional comparado não é ciência
normativa, dogmática, mas apenas descritiva. É, antes, um método para

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melhor conhecimento e compreensão das instituições jurídicas constitucionais
e para formulação do Direito Constitucional Geral.

(c) DIREITO CONSTITUCIONAL GERAL – O Direito


Constitucional Geral consiste numa série de princípios, preceitos, institutos,
que aparecem nos vários Direitos Positivos dos diferentes Estados, ou grupos
de Estados, em cuja base poderíamos classificá-los e sistematizá-los, numa
visão unitária. Seria o modo comum e essencial, supranacional, de organização
jurídica estatal no mundo moderno, ou como que patrimônio comum de
organização política e jurídica do mundo civilizado.

Qual é a importância teórica e prática do Direito Constitucional


Geral?

Do ponto de vista teórico, o mesmo da Teoria Geral do Direito:


trazer ao nosso conhecimento aquelas categorias típicas, conceitos, figuras,
princípios, relativamente constantes, senão absolutas e universais, aquela
figura típica do Estado Moderno.

Do ponto de vista prático, o Direito Constitucional Geral


colabora não só nesse conhecimento mais íntimo e perfeito das instituições e
ordenamentos positivos, como ainda oferece ao legislador, já delineados e
precisos, os conceitos e figuras a que este deva recorrer.

Constituem objeto do Direito Constitucional Geral: o próprio


conceito de Direito Constitucional, seu objeto genérico, seu conteúdo, suas
relações com outras disciplinas, suas fontes, a evolução do constitucionalismo,
as categorias gerais do Direito Constitucional, a teoria da Constituição
(conceito, tipos, mudanças, extinção, defesa, estrutura normativa, etc.),
hermenêutica constitucional, interpretação e aplicação das normas
constitucionais, a teoria do poder constituinte, etc...

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4. O DIREITO CONSTITUCIONAL COMO DIREITO PÚBLICO.

4.1. Direito Público e Direito Privado: existe mesmo a


distinção?

O problema da distinção do Direito em Público e Privado se filia


a uma verdadeira especulação filosófica, pois a afirmação da unidade real do
Direito era muitas vezes contraditada, se não reduzida a uma fórmula vazia.

A quem negue essa completa separação entre os dois Direitos.

HANS KELSEN, por exemplo, rejeita a dicotomia.

A teoria de KELSEN vincula-se ao movimento positivista,


tratando do Direito e da Justiça como esferas totalmente antagônicas e
independentes uma da outra. Dessa forma, o objetivo de Kelsen era construir
uma ciência jurídica “pura”, isto é, livre da axiologia e outras ciências sociais.

Para esse autor a clássica distinção entre direito em público e


privado é metajurídica e, como tal, deve ser rejeitada, daí suas palavras:

“...facilmente se compreende que está dominado por um ponto de


vista metajurídico, e que, portanto, não pode realizar uma divisão que resulte
aproveitável para a Teoria do Direito. Querer qualificar juridicamente as normas
de direito com relação ao fim a que aspiram realizar, eqüivaleria a pretender
classificar os quadros de um museu por seu preço.” 1

Para KELSEN, com a “pureza metódica” surgiu o postulado de


unidade do conhecimento jurídico-científico, desaparecendo o dualismo Direito
e Estado.

1KELSEN, Hans. “Teoría general del Estado”. Barcelona: Labor, 1934, p.


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Ele chega mesmo a afirmar que “esta irrupção da política na
Teoria do Direito, acha-se favorecida por uma funestíssima distinção que já
constitui hoje um dos princípios mais fundamentais da moderna Ciência
Jurídica. Trata-se da distinção entre direito público e privado.”

A impossibilidade de se estabelecer a distinção do Direito em


Público e Privado, assim, seria consequência da necessidade de separar-se o
jurídico do político.

Confira-se a seguinte passagem:

“A absolutização do contraste entre Direito público e privado cria


também a imprecisão de que só o domínio do Direito público, ou seja, sobretudo,
o Direito constitucional e administrativo, seria o sector de dominação política e
que esta estaria excluída no domínio do Direito privado. (...) Por meio da
distinção de princípio entre uma esfera pública, ou seja, política, e uma esfera
privada, quer dizer, apolítica, pretende evitar-se o reconhecimento de que o
Direito privado (em cujo centro se encontra a instituição da chamada propriedade
privada), criado pela via jurídica negocial do contrato, não é menos palco de
actuação da dominação política do que o Direito público, criado pela legislação e
pela administração” (Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 1979, p. 82).

A proposição kelseniana parte da necessidade de se estabelecer


uma nítida separação entre o jurídico (Direito) e o político (Estado). Propõe ele
limitar a Teoria Geral do Estado ao estudo do Estado “como é”, sem indagar se
ele deve existir, por que, ou como, sendo-lhe vedado também preocupar-se com
a busca do “melhor Estado”.

Todo Estado, no entanto, implica um entrelaçamento de


situações, de relações, de comportamentos, de justificativas, de objetivos, que
compreendem aspectos jurídicos, mas que contém, ao mesmo tempo, um
indissociável conteúdo político. A separação pretendida por KELSEN, portanto,
não é possível.
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O que se verifica, em verdade, é o fracasso de todas as tentativas
modernas para eliminar a distinção, a despeito da forte oposição de KELSEN.

Do mesmo modo, a crítica ideológica (marxista):

“A distinção entre direito público e direito privado não é, pois,


natural: não é lógica em si, traduz uma certa racionalidade, a do estado
burguês. A classificação (...) está ligada à história de uma sociedade que
conheceu gradualmente a dominação do modo de produção capitalista. (...) A
separação entre direito público e privado é exterior ao indivíduo: ela separa-o em
dois elementos distintos e mesmo opostos. O homem como indivíduo burguês e
privado e o homem como cidadão do Estado não é afinal senão outra formulação
da distinção entre direito privado e direito público”. (Michel Miaille. Introdução
crítica ao Direito, 1989, p. 159-60).

Essa crítica, embora fundada em argumentos procedentes,


questiona mais o próprio Direito do que a cisão entre público e privado, cuja
existência não é posta em discussão.

Na vida das pessoas e na prática das instituições existe,


claramente, um regime de direito público e outro de direito privado.

4.2. O direito constitucional como direito público.

O direito constitucional, conjunto de normas fundamentais


instituidoras do Estado e regedoras da sociedade, situa-se no vértice da
pirâmide jurídica é ramo do direito público.

A demarcação conceitual entre direito público e direito privado é


mais típica dos sistemas fundados na tradição romano-germânica do que no
common law. E, sem embargo das resistências ideológicas, dificuldades teóricas
e críticas diversas, tem base científica sustentável e é de utilidade didática.
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É possível formular a distinção levando em conta,
fundamentalmente, três fatores verificáveis na relação jurídica: (i) os sujeitos;
(ii) o objeto; (iii) a sua natureza.

Nenhum deles é suficiente em si, exigindo complementação


recíproca.

Tomando como critério os sujeitos da relação jurídica, tem-se


que, caso ela se estabeleça entre particulares - indivíduos ou pessoas jurídicas
de direito privado -, será naturalmente regida pelo direito privado. Vejam-se
estes exemplos: (i) dois indivíduos firmam um contrato de compra e venda de
um imóvel; (ii) uma pessoa física e uma empresa financeira celebram um
contrato de mútuo, que é uma modalidade de empréstimo. Ambas as hipóteses
situam-se no âmbito do direito privado.

Se, todavia, se em um ou em ambos os polos da relação figurar o


Estado ou qualquer outra pessoa jurídica de direito público, estar-se-á, como
regra, diante de uma relação jurídica de direito público. Confiram-se estes
outros exemplos: (i) o Estado desapropria imóvel de um particular para a
construção de uma escola, propondo a ação judicial própria; (ii) o Estado
institui um empréstimo compulsório, que é uma espécie de tributo, mediante
lei regularmente aprovada; (iii) a União e um Município firmam convênio para a
prestação de um serviço específico na área de saúde. Estas são tipicamente
situações regidas pelo direito público.

No tocante ao objeto ou conteúdo da relação jurídica, deve-se


levar em conta o interesse preponderante tutelado pela norma.

Se ela visar, predominantemente, à proteção do bem coletivo, do


interesse social, estará no âmbito do direito público. Quando o Estado, nos
exemplos dados, desapropria um imóvel ou institui um tributo, atua para
satisfazer o interesse público. Ao contrário, encontra-se no domínio do direito
privado a disciplina das situações nas quais avulta o interesse particular,
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individual. Tal será o caso da aquisição de um imóvel para construção de uma
residência ou para sede de uma empresa comercial, bem como a obtenção de
empréstimo junto a instituição financeira para custear a construção.

Por fim, há a questão da natureza jurídica da relação ou, mais


propriamente, da posição dos sujeitos em interação.

O Estado, como regra, atua no exercício de seu poder soberano,


de seu imperium, estabelecendo uma relação de subordinação jurídica com o
particular. O proprietário de um imóvel desapropriado ou o sujeito passivo de
um tributo sujeitam-se a tais imposições independentemente de sua vontade
(desde que elas sejam constitucionais e legais).

Este é um traço comum das relações de direito público.

Já no direito privado, a regra é a igualdade jurídica entre as


partes, sendo que as normas jurídicas desempenham um papel de
coordenação. Se o proprietário de um bem não desejar vendê-lo ao pretendente
à sua compra, ou se a instituição financeira recusar crédito a quem solicitou
empréstimo, a relação jurídica simplesmente não se estabelece. No direito
privado, como regra, exige-se consenso, sem que uma vontade possa impor-se
à outra.

Numa visão esquemática, a distinção direito público e direito


privado pode ser assim representada:

1) Quanto aos sujeitos da relação jurídica:

a) se forem ambos particulares - indivíduos e sociedades civis ou


comerciais: direito privado;

b) se um ou ambos forem o Estado ou outra pessoa jurídica de


direito público: direito público.

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2) Quanto ao objeto da relação jurídica:

a) se o interesse predominante for individual, particular: direito


privado;

b) se o interesse predominante for de natureza geral, da


sociedade como um todo: direito público.

3) Quanto à natureza da relação jurídica:

a) se a posição dos sujeitos se articular em termos de igualdade


jurídica e coordenação: direito privado;

b) se a posição dos sujeitos se articular em termos de


superioridade jurídica e subordinação: direito público.

4.3. Regime jurídico de direito público e de direito privado.

O fato de que o Estado, por vezes, não atuar investido de


superioridade jurídica constitui uma hipótese particular, que não compromete
os fundamentos da diferenciação entre Direito público e Direito privado.

Da mesma forma, a circunstância de que o Direito é


normalmente público na sua origem - porque emanado do Estado - e visa, em
última análise, ao bem-estar de cada pessoa individualmente considerada,
identifica peculiaridades da ciência jurídica, sem infirmar a validade e utilidade
da classificação em público e privado.

No regime jurídico de direito privado, vigoram princípios como


os da livre iniciativa e da autonomia da vontade.

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As pessoas podem desenvolver qualquer atividade ou adotar
qualquer linha de conduta que não lhes seja vedada pela ordem jurídica
(CF/88, art. 5º, II).

O particular tem liberdade de contratar, pautando-se por


preferências pessoais. A propriedade privada investe seu titular no poder de
usar, fruir e dispor do bem. As relações jurídicas dependem do consenso entre
as partes. E a responsabilidade civil, como regra, é subjetiva (art. 186 do
CC/2002).

Violado um direito na esfera privada, seu titular tem a faculdade


de defendê-lo, e para tanto deverá ir a juízo requerer a atuação do Estado no
desempenho de sua função jurisdicional.

Já o regime jurídico de direito público funda-se na soberania


estatal, no princípio da legalidade (CF/88, art. 37, caput) e na supremacia do
interesse público.

A autoridade pública só pode adotar, legitimamente, as condutas


determinadas ou autorizadas pela ordem jurídica. Os bens públicos são, em
linha de princípio, indisponíveis e, por essa razão, inalienáveis. A atuação do
Estado na prática de atos de império independe da concordância do
administrado, que apenas suportará as suas consequências, como ocorre na
desapropriação.

Os entes públicos, como regra, somente poderão firmar


contratos mediante licitação e admitir pessoal mediante concurso público
(CF/88, art. 37, I, II e XXVII).

E a responsabilidade civil do Estado é objetiva (CF/88, art. 37, §


6º).

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Violada uma norma de direito público, o Estado tem o poder-
dever - não a faculdade - de restabelecer a ordem jurídica vulnerada. Além
disso, normalmente os atos do Poder Público são auto executáveis,
independendo de intervenção judicial.

Os atos públicos sujeitam-se a controles específicos, tanto por


parte do próprio Poder que o praticou como dos demais (CF/88, art. 5º, LXIX e
LXXIII).

4.4. Expansão do Direito Público (e do Direito


constitucional) sobre o Direito privado.

O direito privado, especialmente o direito civil, atravessou os


tempos sob o signo da livre iniciativa e da autonomia da vontade.

As doutrinas individualistas voluntarista, consagradas pelo


Código Napoleônico (1804) e incorporadas pelas codificações do século XIX,
repercutiram sobre o Código Civil brasileiro de 1916.

A liberdade de contratar e o direito de propriedade fundiam-se


para formar o centro de gravidade do sistema privado.

Ao longo do século XX, todavia, esse quadro se alterou.

A progressiva superação do liberalismo puro pelo


intervencionismo estatal trouxe para o domínio do direito privado diversos
princípios limitadores da liberdade individual e do primado da vontade,
denominados princípios de ordem pública.

Em domínios como o direito de família - em que, desde sempre,


vigoraram limitações decorrentes da religião e da moral -, de propriedade e do
trabalho ainda subsiste a influência decisiva da vontade e do consenso na

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formação das relações jurídicas, mas seus efeitos são comumente
determinados pela lei, e não pelas partes.

Alguns exemplos:

(a) O casamento tem natureza consensual (sua celebração


depende da vontade das partes), mas os deveres do casamento não são
determinados pelas partes, mas pela lei. Não é possível aos cônjuges dispensar
o dever de fidelidade ou de assistência aos filhos.

(b) O contrato de trabalho, do mesmo modo, é fruto de um


acordo de vontades entre empregador e empregado, mas regras como salário
mínimo, jornada máxima e outras não podem ser afastadas pela vontade dos
contratantes.

A proliferação de Normas cogentes, indisponíveis pelos


contratantes, assinala a denominada publicização do direito privado.

Já mais próximo da virada do século, esse processo se


aprofunda, dando lugar a um novo desenvolvimento dogmático, referido pela
doutrina como constitucionalização do direito civil.

Na primeira parte do século, afirmava-se que o Código Civil era a


Constituição do direito privado.

De fato, a divisão era clara: de um lado, o direito privado, no qual


os protagonistas eram o contratante e o proprietário, e a questão central, a
autonomia da vontade; de outro, o direito público, em que os atores eram o
Estado e o cidadão, e a questão central o exercício do poder e os limites
decorrentes dos direitos individuais.

Ao longo do século, todavia, as novas demandas da sociedade


tecnológica e a crescente consciência social em relação aos direitos
fundamentais promoveram a superposição entre o público e o privado.
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No curso desse movimento, opera-se a despatrimonialização do
direito civil, ao qual se incorporam fenômenos como o dirigismo contratual e a
relativização do direito de propriedade.

No quarto final do século, o Código Civil perde definitivamente o


seu papel central no âmbito do próprio setor privado, cedendo passo para a
crescente influência da Constituição.

No caso brasileiro específico, a Carta de 1988 contém normas


acerca da família (art. 226), da criança e adolescente (art. 227), da proteção do
consumidor (art. 5º, XXXII), da função social da propriedade (art. 5º, XXIII).

Além disso, os princípios constitucionais passam a condicionar a


própria leitura e interpretação dos institutos de direito privado.

A Dignidade da pessoa humana assume sua dimensão


transcendental e normativa.

A Constituição já não é apenas o documento maior do direito


público, mas o centro de todo o sistema jurídico, irradiando seus valores e
conferindo-lhe unidade.

5. AS RELAÇÕES DO DIREITO CONSTITUCIONAL COM


OUTRAS CIÊNCIAS.

Divide-se o Direito Público em duas partes fundamentais: O


Direito Público externo (Direito Internacional) e o Direito Público interno.

O primeiro regula relações entre Estados, o segundo marca a


extensão da ordem jurídica relativamente a um determinado Estado.

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A disciplina básica do Direito Público interno é o Direito
Constitucional, que fixa as normas fundamentais de organização jurídica e
condiciona, debaixo de seus princípios, os demais ramos do Direito Público.

O Direito Constitucional ocupa-se do que é fundamental, na


organização, na estrutura, funcionamento e deveres recíprocos entre Estado e
cidadão.

Quanto ao critério para saber o que é fundamental,


responde-se que é tudo quanto dá ao Estado a sua fisionomia, a sua estrutura
essencial, o seu modo próprio de ser, de existir.

5.1. O Direito Constitucional e o Direito Administrativo.

Das Ciências do Direito Público, aquela que mais afim se


apresenta com o Direito Constitucional é o Direito Administrativo.

Os laços são tão íntimos que alguns doutrinadores chegam a


afirmar que o Direito Administrativo faz parte do Direito Constitucional.

No entanto, existe uma clara distinção entre as duas Ciências.

O Direito Constitucional disciplina a estrutura e as regras gerais


que regulam a função do Estado, enquanto o Direito Administrativo trata dos
detalhes da função.

Os órgãos fundamentais do Estado são matéria da Constituição


e os órgãos secundários são matéria de uma lei (Direito Administrativo).

As Constituições, em geral, trazem os princípios básicos do


Direito Administrativo. A Constituição brasileira de 1988, por exemplo, contém
disposições de Direito Administrativo, como as concernentes a:

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(a) Desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou
interesse social (arts. 182, 184 e 185).

(b) Competência do Presidente da República e dos Ministros de


Estado (arts. 84 e 87, parágrafo único);

(c) à Administração Pública, como o regime jurídico dos


servidores públicos civis e militares (arts. 37 a 43)

(d) competência tributária dos Municípios e a disciplina da vida


municipal (arts. 30 e 31), entre outras.

5.2. O Direito Constitucional e o Direito Penal.

Com o Direito penal, no caso da Constituição Federal de 1988, a


relação manifesta-se diante das garantias penais de natureza constitucional
que se estendem do inciso XXXVI (37) a LXVII (67) do artigo 5º.

5.3. O Direito Constitucional e o Direito Processual.

Vários princípios da Constituição Federal de 1988 vinculam os


dois ramos do processo ao Direito Constitucional.

As garantias da inafastabilidade da prestação jurisdicional (art.


5º, XXXV); do juiz natural (art. 5º, XXXVI); do devido processo legal (art. 5º,
LIV); do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV), entre outras.

Em relação ao Direito Processual Civil, esse vínculo se


caracteriza através das seguintes disposições: (a) concessão de assistência
judiciária aos necessitados (art. 5º, inciso LXXIV); (b) na garantia do mandado
de segurança para proteção de direito líquido e certo (art. 5º, inciso LXIX); (c)
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no direito à ação popular em defesa do patrimônio de entidades públicas
contra atos que lhe sejam lesivos (art. 5º, inciso LXXIII ), entre outros.

Em relação ao Direito Processual Penal esse vínculo se


caracteriza através das seguintes disposições: (a) a garantia do habeas corpus
para coibir o constrangimento ilegal à liberdade de locomoção (art. 5º, inciso
LXVIII) entre outras.

5.4. O Direito Constitucional e o Direito do Trabalho.

São numerosos os dispositivos constitucionais que inserem


princípios de proteção aos trabalhadores, consagrando admiráveis conquistas
da classe trabalhadora, como: a) sindicato livre, direito de greve, direito ao
salário mínimo, direito ao repouso semanal remunerado, na participação
obrigatória no lucro das empresas, etc. (arts. 6º, 7º, 8º e 9º).

5.5. O Direito Constitucional e o Direito Tributário.

A Constituição Federal de 1988 contém disposições básicas de


administração das finanças e distribuição da competência tributária entre os
entes estatais (vide arts. 145 a 169).

A tal ponto este vínculo se faz presente que há doutrinadores


afirmando que as novas Constituições são verdadeiros planos de política
econômica.

5.6. O Direito Constitucional e o Direito Internacional.

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Há duas tendências modernas no campo institucional: a
primeira é a internacionalização do Direito Constitucional e a
constitucionalização do Direito Internacional.

A primeira tendência afirma-se na recepção de preceitos do


Direito Internacional por algumas Constituições modernas, como, por exemplo,
a Constituição brasileira de 1946 que proclama o princípio de renúncia a todas
as guerras de conquista e estabelecem o recurso ao arbitramento (artigo 4º).
Ou da Constituição brasileira de 1988, que abre o catálogo dos direitos
fundamentais para recepção de outros direitos decorrentes de tratados
internacionais (art. 5º, §§ 2º e 3º).

A segunda tendência é mais recente ainda. Manifesta-se através


da ideia de implantação de uma comunidade universal de Estados,
devidamente institucionalizada, imitando o modelo constitucional (a Carta da
Organização das Nações Unidas propõe a criação de três órgãos básicos: a
Assembleia Geral, o Conselho de Segurança e a Corte de Justiça).

A Constituição Federal de 1988 estabelece dez princípios a


serem observados nas relações do Estado brasileiro com outros Estados (artigo
4º, incisos I a X).

5.7. O Direito Constitucional e a Teoria Geral do Estado e a


Ciência Política.

Com a Teoria Geral do Estado: Esta ciência, cujo objeto é a


unificação do conhecimento sobre o Estado, inspira necessariamente qualquer
Constituição que pretenda viabilidade. A Teoria do Estado fornece ao Direito
Constitucional os dados sobre problemas capitais como o reflexo dos ideais
políticos sobre o funcionamento e os regimes de governo.

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Com a Ciência Política: Esta é a ciência do poder e o Direito
Constitucional é a ciência de organização política do poder.

6. AS FONTES DO DIREITO CONSTITUCIONAL.

A expressão fontes do Direito constitucional é empregada em


três acepções principais:

(a) Na primeira, designa-se “fonte do Direito” a causa eficiente


de sua existência, a que lhe explica a própria origem e o fundamento.

Nesse sentido, o Direito resultaria pura e simplesmente da


vontade do Estado, cuja expressão típica é a lei (positivismo); para outros, dos
fatos sociais, da evolução histórica, manifestando-se pelos costumes, até
atingir a fase final representada pela lei (sociologismo); para outros, resultaria
de um contrato tácito entre os membros da coletividade (contratualismo);
para outros, é o Direito Natural, certos princípios imutáveis e supremos,
resultante da natureza do homem (jusnaturalismo), etc.

(b) Na segunda, por “fonte do Direito” entenderíamos os órgãos


do Estado, de que dimanam as normas jurídicas (Poder Legislativo, Poder
Executivo, etc.).

(c) Na terceira, podemos designar “fontes do Direito” os modos


ou formas de elaboração ou revelação da norma jurídica. É nesse sentido que
nos interessa indagar quais sejam as fontes do Direito Constitucional.

Vamos estudar os modos de elaboração, as formas de elaboração


ou revelação das normas, dos princípios deste ramo do Direito Positivo.

Primeira classificação:

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FONTES IMEDIATAS – são as fontes diretas, primárias,
positivas. São aquelas que revelam imediatamente o direito. São fontes
imediatas do Direito Constitucional: a constituição, as leis, decretos e
regulamentos de conteúdo constitucional, tratados internacionais.

A Constituição escrita é a fonte máxima, suprema, do Direito


Constitucional.

As leis (complementares e ordinárias) também revelam de modo


imediato o Direito Constitucional.

As decisões judiciais (vide art. 102, § 2º, 103-A, da Constituição


Federal).

FONTES MEDIATAS - são as fontes indiretas, secundárias.

São fontes mediatas: costumes, jurisprudência (civil law),


doutrina, etc.

Costumes - forma-se quando a prática repetida de certos atos


induz uma determinada coletividade à crença ou convicção de que esses atos
são necessários e indispensáveis. Sua importância é maior nos países
desprovidos de Constituição escrita ou que a possuem em textos sumários
(como exemplo, a dissolução dos Comuns, a convocação do Parlamento, na
Inglaterra, e algumas práticas de funcionamento do Poder Executivo, nos
Estados Unidos).

Jurisprudência – em países que seguem a tradição da common


law ela é fonte primária.

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