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FUNDAGAO UNIVERSIDADE DE BRASILIA Reitor Lauro Morhy Vice-Reitor ‘Timothy Martin Mulholland Errors UNIVERSIDADE DE Brasilia Diretor Alexandre Lima CoxsetHo Eprroiat, Presidente Henryk Siewierski Alexandre Lima, Clarimar Almeida Valle, Dione Oliveira Moura, Jader Soares Marinho Filho, Ricardo Silveira Bernardes, Suzete Venturelli os, a = Elizabeth Cancelli (Organizadora) Historias de violéncia, crime e lei no Brasil EDITORA UnB Equipe editorial: Rejane de Meneses (Supervisio editorial); Yana Palankof (Acompanhamento editorial); Maria Carla Lisboa Borba e Wilma Gongal- ‘ves Rosas Saltarelli (Preparacio de origirais); Gilvam Joaquim Cosmo, ‘Wilma Gongalves Rosas Saltarelli, Dantizia Queiroz Cruz, Ludimila Barbosa © Yana Palankof (Revisio); Eugenio Felix Braga (Editoragio eletrénica); Fred Lobo (Capa) Copyright © 2004 by Elizabeth Cancelli (Organizadora) Impresso no Brasil Direitos exclusivos para esta edigdo: Editora Universidade de Brasilia SCS Q.02~BlocoC-N°78 Ed. OK -2"andar 70300-500 Brasfis-DF ‘Tek: (0xx61) 226-6874 Fax: (Oxx61) 225-5611 editora@unb.br “Todos os diteitos reservados. Nenhuma parte desta publicago poderd ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizagio por escrito da Editora. Histérias de violéncia, crime ei no Brasil/ Elizabeth Caneelli H673—_(organizadora). — Brasfia : Editora Universidade de Brasfia, 2004. 260p. ISBN 85-230-0753.9 1. Sociologia. 2. Hist6ria social. 3, Historia p 1. Canceli, Elizabeth, DU 301 tts Sumario APRESENTAGAO, 7 Elizabeth Cancelli (Organizadora) ATERRO E FOGO: FORMAS DE VIOLENCIA NO BRASIL COLONIAL, HI Emanuel Aragjo [FUNDAMENTA-SE UM MODERNO PENSAMENTO TURIDICO BRASILEIRO, 41 Ruth Maria Chitté Gauer © Copico Crusavat De 1830 E As DEIAS QUE NAO ESTAO FORA DOLUGAR, 7 Mozart Linhares da Silva (Os cRIMES DE PAIXAOE A PROFILAXIA SOCIAL, 101 Elizabeth Cancelli AGAO DIRETA, GREVES, SABOTAGEM E BOICOTE: VIOLENCIA OPERARIA OU PEDAGOGIA REVOLUCIONARIA? 127 Jacy Alves de Seixas FAZER PALAR: TECNICAS DE INTERROGATORIO DURANTE O REGIME MILITAR, 155 Marion Brepohl de Magalhies HERANGAS DO AUTORITARISMO: REFORMULAGAO DA MEMORIA DE ‘TORTURADORES E ASSASSINOS BRASILEIROS, 173, Martha K. Huggins 72 Marion Brepohi de Magaihses ciosamente nesta relagdo, quem permite a um homem comum, devi- damente protegido pela autoridade da violéncia, a praticar a tortura. (O importante aqui é que o outro dependa de mim, € nao que ele viva tal ou tal experiéncia: esta pode ser aalegria ou o sofrimento, ccontanto que seja eu o responsivel. E verdade que posso encon- ‘war prazer em criar a felicidade do outro. Na realidade, contudo, hi assimetria entre 0s efeitos que abtenho nos dois casos, o descon- tentamento do outro traz para mim uma prova mais segura daeficé- ia do meu poder. Sua alegria tem mais probabilidades de ser, 20 ‘menos parcialmente, 0 efeito de sua propria vontade; seu softi- ‘mento no é geralmente desejado por ele, provém apenas do po- der que exergo sobre seu ser. Ele nflo pode escolher (salvo em .¢as0s absolutamente excepcionais) sua propria tortura fisica, Nesta dirego, existe um absoluto, que é a morte do outro (ao passo que a felicidade nfo conhece 0 absolut). Causar a morte de alguém ¢ ‘uma prova irrefutavel do meu poder sobre ele.”* Assim compreendido, embora 0 trabalho ideol6gico pretendes- se cindir a ago da consciéncia, 0 individuo do senso de responsabi- lidade ¢ incutir a nogo de que se esié téo-somente obedecendo & autoridade, no momento mesmo da tortura, interrogador deixa fluir, secretamente, 0 gozo do tinico poder que Ihe € atribusdo (0 de pro- vocar dor), tendo em vista a fungZo que desempenha na méquina repressiva, Esses fatores, vistos em seu conjunto, tecem, segundo nossa com preensio, uma rede de eventos que pode explicar a interagdo entre instituigio e ago individual: de um lado, a violencia verbal dos divulgadores da “Ideologia da Seguranga Nacional”; de outro, as motivagées subjetivas do perpetrador; e, entre as duas préticas, a garantia do anonimato. 36 Teevan Todorov, Em face do éxiremo, Campinas, Papirus, 1995, p. 220, Herangas do autoritarismo: reformulagéo da memoria de torturadores e assassinos brasileiros* Martha K. Huggins” Nos paises em processo de redemocratizago, como os da Amé- rica Latina, em que a tortura e o assassinato foram préticas sistema- ticas de governo, lembrar e esquecer possuem dimensio politica e pessoal. Dependendo do modo como um passado autoritério seja reconstrufdo por quem o vivenciou de diversas maneiras, antigos tor- turadores e assassinos poderio ser amplamente anistiados, ou sub- metidos a julgamento de que pode resultar punigao civile criminal, ou submetidos a uma Comissio de Verdade e Reconciliagao, ou a algum. ‘outro tipo de reconhecimento piiblico de seus atos. Cada uma dessas linhas de agai faz que os participantes se recuperem pessoal e pol camente de modo diferente. A anistia para os que pertenceram a rgios de seguranga violentos pode ser perturbadora para suas viti- ‘mas, mas, ao mesmo tempo, permitiré uma “negociagao politica” que, pelo menos por algumn tempo, favorecerd uma estabilizagio politica global. Os julgamentos politicos podem promover a recuperago das vitimas, mas prejudicar a transformagao politica dos perpetradores e © reconhecimento piblico dos atos maléficos por eles perpetrados. Encarando os julgamentos como ameagas, os perpetradores podem recusar-se & autocritica e procurar ocultar-se cada vez mais para evitar que eles proprios e suas familias se transformem em “vitimas”, isso pode resultar um impacto sobre a meméria social que impega dugo de Lélio Lourengo. Martha Huggins esereveue apresentou este atigo em reunifo da Universidade de ‘Wisconsin, Madison, sobre Herangas do autoritarismo: produgo cultural, trauma coletivoe justiga global, 3-5 abril de 1998, 7s Martha K. Huggins que informagées sobre 0 cardter dos regimes repressivos se tomem historia publica, 0 que, por sua vez, pode retardar transformagées politicas, uma vez.que, como disse Walter Benjamin (1968), 0 que se torna meméria coletiva pode promover ot inibir a resisténcia coletiva 2 opressio e a transformagao politica rumo & demoeracia. De que modo um pals recorda seu passado violento? Este estudo procura reconstruir essa parte da mem6ria hist6rica brasileira a res- peito das forgas de seguranga do regime militar, mediante entrevistas com policiais a respeito da tortura e do assassinato que cometeram ‘ou presenciaram sistematicamente. Sugerimos que um modo de com- preender o que as entrevistas relatam sobre a violéncia policial é encarar 0 discurso dos policiais como uma tentativa de tornar seu comportamento passado ~ legitimado, num momento anterior, pela ‘guerra que o Brasil travava contra a subversdo intema ~ compativel comas realidades ideol6gicas, legais e organizacionais posteriores a0, perfodo autoritério, Encaradas desse modo, as reflexdes morais dos entrevistados a respeito da violéncia constituem uma tesposta a per- guntas de estranhos (no caso, entrevistadores estrangeiros) ~ feitas durante 0 perfodo de redemocratizagao do Brasil ~a respeito de com- portamento ocorrido ao tempo da ditadura militar. O relato de um entrevistado constitui uma sfntese negociada entre a antiga violencia admitida, a sitiago social e politica que Ihe deu sustentagao e o con- texto sociolegal dentro do qual esse relato provavelmente serd julga- do. O relato é uma declaragdo a respeito das justificagSes culturais ¢ politicas, no presente, para a violencia das foreas de seguranca, pois, como disse Collins, “o modo como alguém conta o passado est (...) diretamente relacionado com o modo como esse alguém imagina a politica no presente”. Ao resumir os relatos de antigos torturadores e assassinos brasi- leiros a respeito da violencia passada, deles préprios e de outros, des- cobrimos que podem ser convenientemente agrupados em quatro categorias de discurso, identificadas na primeira parte deste artigo: ou os entrevistados difundiam a responsabilidade, ou culpavam indivi- duos (eles préprios ou outros), ou mencionavam uma "causa justa”, ou justificavam a violéncia como parte de um louvavel “ profissionalismo”. Na segunda parte do artigo, essas atribuigbes so Herancas do autoritarismo 178 reagrupadas em quatro “vocabulérios de motivo” que “Justificam” “desculpam”, “negam” ou “confessam" a tortura e/ou 0 assassinato. A terceira parte do artigo mostra que um sistema sutil de considera- 40 moral corrobora os vocabulérios de motivo dos torturadores € assassinos; ele considera certas torturas “aceitéveis”, algumas “ina- ceitéveis, mas compreensfveis”, e algumas “inaceitéveis”. Na parte final do artigo, afirmamos que a tendéncia dos entrevistados hoje de jjustificarem a violéncia policial “aceitével” por fundamentar-se no “profissionalismo” representa um desvio em relagdo ao perfodo mili- tar, quando a desculpa primordial para a tortura tinha como funda- mento uma exaltada “causa justa” em defesa da “seguranga nacio- nal” Isso indica que 0s entrevistados forjaram para si uma identidade moral pés-ditadura mais aceitével, reformulando os relatos sobre a violéncia mediante um vocabulério que eles esperam se harmonize ‘melhor com a democracia. A ditadura no Brasil Em 1964, os shilitares brasileitos, apoiados pelos Estados Uni- dos (Black, 1971; Parker, 1978), depuseram 0 presidente Jouio Goulart, dando inicio a 21 anos de regime militar. Os militares con- solidaram seu poder sobre 0 Estado e a sociedade durante muitos ‘anos, mediante decretos executivos (dezessete atos institucionais), uma lei de seguranga nacional e as Leis n® 317 e 667.~ esta tiltima colocando todas as forgas policiais sob controle militar. A ctiagio subseqiiente de organizagbes operacionais ¢ de inteligéncia em associagao entre policias ¢ Forgas Armadas (p. ex., Oban, DCI, DOW Codi) reuniu unidades policiais especializadas em uma guerra de Ambito nacional e centralizadamente orquestrada contra a “subver- sio interna” (Huggins, 1998). Embora a “guerra suja” dos militares brasileiros contra os “‘sub- versivos” no tenha torturado e matado proporcionalmente tantas pessoas quanto nos paises dominados pelos militares do Cone Sul (Chile, Argentina ¢ Uruguai), ou na América Central (Guatemala, Salvador e Honduras), 0 Estado de seguranga nacional do Brasil (1964- 16 Martha K. Huggins 1985) levou a cabo uma repressiio disseminada em que havia bruta- lidade, tortura, assassinato e “desaparecimentos”. Somente “entre 1969 ¢ 1974, (...) a violencia institucional [de tal modo fazia] ( parte da vida do todo dia [no Brasil, que] era dificil encontrar um brasileiro que nao tivesse estado em ccntato direto ou indireto com ‘uma vitima de tortura, ou sido alvo de uma operaco de busca e captura” (Alves, 1985: 125; BNM, 1986; Huggins, 1998), Muitos estudiosos enfocam esse tipo de violéncia como tendo sido levada a cabo exclusivamente pelos militares. Contudo, relativa- ‘mente ao Brasil, isso seria subestimar o papel da policia no Estado de seguranca nacional do governo militar. Com efeito, oficiais das For- ‘gas Armadas brasileiras afirmaram que, até princfpios da década de 1970, as Forgas Armadas estavam muito mais mal equipadas para 0 combate & subversio interna (Fon, 1979) do que os Dops (policia social e politica) das Policias Civis dos estados, que durante longos ‘anos de experiéncia se haviam preparado para levar a cabo a repres- stio politica (Lago e Lagoa, 1979; Mingardi, 1995), Assim sendo, todo estudo sobre a violéncia das forgas de seguranga durante o perfodo militar do Brasil nfo pode deixar de levar em conta a policia. ‘Antes do regime militar, os sistemas policiais municipais ¢ esta- duais eram independentes entre sie co controle federal. A Policia Militar, fardada, que executa o policiamento ostensivo, sempre foi historicamente subordinada ao govemador eleito de cada estado (Ferandes, 1979). A Policia Militar, com varias divisdes ~ entre as ‘quais patrulhas a pé, cavalaria, esquadiées motorizados, unidades de inteligéncia (P-2) e equipes swat e de controle de distirbios -, pos- suia, até 1969, nomes diferentes em cada estado ~ “Forga Pablica”, em So Paulo, e “Brigada Militar”, em Goids, por exemplo. ‘A Policia Civil (“judicial” ou investigativa), & paisana, que realiza as investigagSes post-facto da transgressto da lei, tem, historica- ‘mente, sido subordinada ao Secretério da Seguranga Publica de cada estado, Entre as divis6es da Polfcia Civil encontram-se tradicional- mente a Policia Politica e Social (Dops), uma divistio de investiga- {Ges criminais (p. ex., o Deic de Sao Paulo), esquadrdes motorizados e divisbes de crimes contra o patriménio e de homicfdio. Em 1969, quando as Policias Civil e Militar do Brasil foram su- ordinadas as Forgas Armadas, a policia fardada de cada estado re- Herancas do autoritarismo a7 cebeu o novo nome de Policia Militar.’ Mais ou menos pela mesma época, 0 governo militar brasileiro comegou a criar novos érgios operacionais e de inteligéncia formados pela Policia Civil, Policia Militar e pelas propria Forgas Armadas ~ 0 Grupo de Operacdes Especiais (GOE) do Rio de Janeiro, um grupo para operacdes milita- res € policiais especiais, a Operagdo Bandeirantes (Oban) de Séo Paulo e a Diretoria Central de Informagdes (DCI) do Rio Grande do ‘Sul. Em 1970, os militares institufram uma nova organizagio hibrida policial-militar de ambito nacional, chamada Destacamento de Ope- ragdes/Centro de Operagdes de Defesa Interna (DOI/Codi), com jjurisdigdo em todas as “zonas de seguranca nacional” multiestaduais, recentemente criadas no Brasil. Cada uma dessas zonas possufa uma sucursal do Codi (a sego de coleta e andlise de informagies e de planejamento) e pelo menos um esquadro operacional do DOL? Este ‘ltimo subdividia-se em unidades para “busca e captura”, “interroga- t6rio”, “informagao” e “eliminacao” (Isto, 1978: 32; entrevista G, 8/93; Huggins, 1998), Segundo dizem todos, o DOW/Codi foi o mais violento dos érgios de seguranga interna do Brasil (BNM, 1986). Até parece ironia que se chamasse déi Obtendo uma amostra Para compor nossa amostra, procuramos policiais que tivessem servido durante 0 perfodo militar do Brasil etivessem torturado e/ou assassinado. Mas isso foi dificil: primeiro porque, embora o Brasil hhouvesse concedido anistia a funcionérios (p. ex., militares e policiais) reconhecidamente torturadores ¢ assassinos, a maior parte desse pessoal da seguranca intema no se havia valido do processo de anistia. "A partir de 1985, eduziram-se muito 0s vinculos diretos da Policia Militar com os ‘militares, muito embora ela continue extremamente militarizadaem suaestrutura e fun, Apt de se ome, «Plc itr nada wt ver com Poi do 2 As regides maiorese mais importantes do Brasil, onde se encontram os Estados de ‘Sto Paulo e do Rio de Janeiro, tiveram até tes organizagSes do DOT ligadas a uma entidace Codi de inteligénciae planejamento (Huggins, 1998). ve Martha K. Huggins Isso significa que a maioria dos torturadores e assassins no podia ser identificada por confissfo ou algum outro tipo de revelagao de sua prépria iniciativa. Mesmo antigos agentes anistiatos do Estado de seguranga nacional do Brasil nao tinham qualquer motivo racional para conceder uma entrevista: no s6 queriam deixat para tras aque- la parte de suas vidas, como temniam que grupos de direitos humanos pudessem tomar piiblicos os maus atos passados que admitissem haver cometido, o que poderia tornar a vida dificil para eles esuas familias. ‘Além disso, muitos dos antigos torturadores e matadores nfo confia- vam plenamente nas garantias de anistia do Brasil, suspeitando que algum futuro governo pudesse tomar medidas para responsabilizé-los retroativamente por atos passados. Por exemplo, o prazo de prescri- clo penal para assassinato € de vinte anos, ¢ muitos deles haviam cometido assassinatos apenas dez ou quinze anos antes. Em virtude da dificuldade para localizar torturadores e matado- res reconhecidos entre os policiais brasileiros do perfodo militar na ativa ou aposentados, inventamos um método para encontrar indire- tamente tais pessoas. Buscamos conseguir entrevistas especialmen- te com quem estivesse em unidades que se houvessemenvolvido em violencia substancial, até mesmo tortura e assassinato, durante 0 pe- rfodo militar. Entre essas unidades estavam a policia social e politica (Dops),as unidades de investigagdo criminal da PoliciaCivil (como o Deic de Sao Paulo) e as divisdes de homicidio e de crimes contra 0 patrimdnio, Querfamos entrevistar policiais civis ¢ militares oriundos de patrulhas motorizadas e equipes swat e de controle de distirbios ¢ da divisto de inteligencia da Policia Militar (P-2). A maioria dos pro- ccurados eram policiais oriundos dos esquadrées de operaces espe- ciais e de inteligencia, que reuniam Policia Civil, Policia Militar e mem- bros das Forgas Armadas (GOE, Oban, DOW/Codi). Nossa idéia era de que alguém que houvesse pertencido a um desses érgdos de segu- ranga interna teria ele préprio cometido violéncia contra suspeitos, ou estado presente quando esse tipo de violencia houvesse ocorrido ~ ‘em outras palavras, teria, pelo menos, sido participante omisso ou testemunha de brutalidade, tortura e/ou assassinato. Como diz Robert Jay Lifton (1986: 425), organizagdes desse tipo sdo “situagdes produ- toras de atrocidades... estruturadas... istitucionalmente, de sorte que Horancas do autoritarismo a9 ‘a pessoa que habitualmente ali ingressa... cometerd atrocidades, ou estard associada a elas”. Para garantir ainda mais entrevistados que houvessem torturado ou assassinado, buscamos os que fossem originétios de regides que houvessem experimentado a maior repressio politica, em particular das cidades de Sao Paulo e do Rio de Janeiro, no Sudeste do Bras de Porto Alegre, no Sul; do Recife, no Nordeste; da capital federal, Brasflia, na regio central Finalmente, supondo que os policiais que estivessem presos por ‘haver cometido crinies poderiam falar mais francamente a respeito cde aspectos da vida policial habitualmente mantidos em segredo, pro- curamos entrevistados numa prisio do Rio de Janeiro especial para policiais militares e civis condenados. Dentro de nossos parmetros de amostragem, conseguimos 27 entrevistadés mediante uma técnica de amostragem “bola de neve” no aleatéria, Em cada cidade-alvo, a “bola de neve” comegava com a primeira entrevista, que, em geral, era conseguida por meio de con- tatos anteriores da pesquisadora brasilianista com policiais locais ou por referéncia de algum entrevistado em algum outro lugar. Assim que a entrevistadora conseguia um entrevistado que atendia aos parametros de amostragem, solicitava-se que essa pessoa indicasse um colega. Tsso propiciava & entrevistadora uma apresentagio a outro policial que podia concordar em ser entrevistado, ainda que preservando os segredos pessoais ¢ institucionais mais fntimos. ‘A maneira como 0 estudo era apresentado aos entrevistados ppotenciais tinha, sem divida, influéncia sobre a obtencdo de uma en- trevista. Dizfamos aos entrevistados que estévamos realizando um estudo comparativo sobre policiais que houvessem atuado em perfo- dos de conflito e de crise, explicando que pretendiamos estudar as vidas, as carreiras e o trabalho dos policiais brasileiros durante 0 pe- rfodo militar no Brasil. De fato, isso era correto, uma vez que nosso estudo demandava informagées sobre as experiéncias de formacao, trabalho didrio, vida pessoal e mudangas de carreira dos entrevista- dos. Somente apés se estabelecer uma boa relago, em geral depois de umas duas horas de entrevista, € que a entrevistadora perguntava diretamente ao entrevistado a respeito do envolvimento dele com a bbrutalidade, a tortura e/ou 0 assassinato. reo Martha K. Hugging Cada entrevista levou pelo menos trés horas de interagio face a face. Em dois casos, 0 entrevistado concordou em conceder uma segunda entrevista, que também durou umas trés horas. As entrevis- tas foram realizadas em portugués gravadas em fita. A seguir, um lingiista antropélogo e tradutor profissional transcreveu as fitasetra- duziu-as para o inglés. Essas tradugGes foram depois conferidas pela pesquisadora que falava portugués. Para cada entrevistado isso re- sultou em um volume de trinta a quarenta paginas de texto, Cerca de citocentas paginas foram traduzidas por ocasiio dessa andlise. Dos 27 policiais entrevistados, 28 haviam sido traduzidos por ocasido desse estudo: catorze deles apresentavam indicios claros de haver torturado e/ou assassinado.' A subamostra de catorze pessoas ccontém nove policiais civis —entre 0s quais, um do Dops, um ex-carce: reiro e dois de esquadrées policiais especiais. Entre os cinco policiais militares da subamostra, um fora do DOMCodi, dois de um esquadrao ‘da morte ¢ um do servigo de inteligéncia da Policia Militar (P-2). Indicadores para torturadores Muito embora o processo de amostragem fosse estruturado para garantir alta probabilidade de se conseguirem ex-torturadores © as- sassinos, no se tinha certeza do éxito até que nossas narrativas de entrevistas transcritas tivessem sido examinadas. Dada a relutancia de alguns entrevistados em falar diretamente a respeito da tortura © do assassinato por policiais, desenvolvemos indieadores alternativos de seu envolvimento. possivel que os demais nove entrevistados entre os jf traduzidos tenham stad envolvidos em tortura e/ou assassinato, mas isso no pode ser estabele- ido nem a partir das narrativas das entrevistas nem de evidénciassuplementares. Uma vez que esta andlise ir centrar-se apenas nos torturadores ¢ assassinos revonhecidos, nfo incluimos aqui aqueles outros nove entrevistados. Sobre os ‘quatro ainda nfo completamente traduzidos,sabe-se que nfo estiveram envol- ‘Yidos em tortura e/ou assassinate. Herangas do autoritarismo 184 primeiro indicador de tortura e assassinato era se 0 nome do policial aparecia em lista de torturadores reconhecidos feita por algum ‘grupo brasileiro de direitos humanos (Quadro 1). O nome de um indi- ‘viduo podia constar de uma dessas listas por ter sido réu em julga- ‘mento militar interno contra ele (BNM, 1986), ou por ter sido identifi- ‘cad publicamente por ex-vitimas ou suas familias. Apenas trés nomes de entrevistados (B, Porto Alegre, 11/93); F, Rio de Janeiro, 8/93; S, Sao Paulo, 8/93), entre os catorze aqui estudados, constavam de tais listas. Contudo, essas listas cobrem apenas parte de todos os tortura~ dores e assassinos do perfodo militar do Brasil. Quanro | Numa lista de torturadores conhecidos Nome. Orgio policial Especialidade S. (So Paulo) Policia Civil ‘Agente policial B.(Porto Alegre ) _| Policia Civil Intelig éncia /earcereiro F (Rio de Janeiro) | Policia Militar Oficial! Intelig éncia Buscamos ainda outros meios de descobrir a relago de nossos entrevistados com a tortura e/ou o assassinato. Assim, um segundo indicador (Quadro 2) era a afirmaco de um colega do entrevistado de que ele havia participado de tortura e/ou assassinato. Isso em ¢geral assumia a forma da afirmacao de um entrevistado de que seu amigo — um outro dos entrevistados — havia estado envolvido na “repressao politica” - e6digo, no Brasil, para haver participado de violencia, até mesmo tortura e assassinato. Sete dos catorze entre- vistados foram identificados desse modo, entre 08 quais dois dos ‘que jé haviam sido identificados como torturadores por grupos de direitos humanos. ssagSeftago sens: 2p oxadurasop ou ,eaiss90x8,, BIougjora opraxdte 32) assip (6=) apg fean0) wIaI090 opuenb ajuasaid opeiso ALY NOWwTeT (=U) Eh fwavutssesse no/a eavmuo) anb odnxB wn v oprouawed 1eAey, nnrtupe (p=u) 9462 feutssesse noje eamuo1 anb odd wn opepuewos FaARY a8sIp (L=U) 4505 !oreUISseSse OpHaUIOD 49} assIp (L=U) OS sopvanuio1 seavy nnmupe souafns ezxo1e> op exsoUre wssoU ap (get %LS “Ch ompend) oqeo ¥ opeday a1 eNTUpE OpEIstvanue oLdosd o-anb ‘BIoug[OLA ap odn 0 9 soIu9IOIA sone ap osUINU o BIa CJEUTSSESsL NO otanuioy wre owouafonus 2po}aNp syeUrO 9 TopEOIPUT OLED sopSezquvdio ens no opioayu -ooa4 Jopeinyi0} wn Wadsas 9 “eBajod 2 OUTIL OBtUME Nas Jos 910 ‘soja ered zeyeqen no soy-puoistatadns apsap — muajora opSeztuv310 ‘wun woo no/a soutssesse no/a SazopeiniionUioD own CINOLUTAfOALD tumqun sopassiaonuo 921039 sop ozu0 “(¢ oxpeng) apa ap astiput vssou opundag ‘oSture eavsopisuos o 2 eavsiuupe o e198 wa (opSeZ -tuv10 ens te no) optooyosas ropesms0) win wos vseyreqen on opmisiaonua wn suiesosndosgos 9$ yeia8 wo satopesipul sgn sos -s9 “eanyio} eu sostayuedutoo ap opeyost o1unfuoo win arznposd onb op steyy “Te}oqod aiuae outoo vossad je sod owodsar a2 zessaudxa (9 oa opjoayuosai ouIssusse no Jopesnyso) WN ,,oStwIe,, ap IwUIEYD 219 ap ony 0 (q nova opSezzteax0 no vossad [ei ¥ ‘opeULpsOgns NO 101 -edins ‘eBajoo owoo opeyfeqen 10 9p opersaante op opbexeyoop & (e opSejo0sse ap a]ud9so199p W9pIO Uta ‘Toy OTEUISSESsE LOD BPIATOA “uo opSeziuv8i0 wurn & no operounuap oussesse no JopesMoN win & oppistaanuo win senoura ered 0210] o1vaurepuny © ‘ojndupEn win od ‘oyeutssessepemnzo} 9p opbeziuv®i0 vuln tasdyj2 wun rod ‘opisoyuoo at oufssesse no Jopemnpio} Wn ‘opespenb wm 1od opeyuasardes 9 op -oystaaniua win “(¢ ospend) apai ap wures@eip ossou tg ‘soressesse W109 septAfoauia sogSeziue810 woo noya sopetounuap soutssusse 0 $01 opeantioy woo sopeisiaariua Sop win epe9 ap oupoqea op 2 sivossed segbufar op opad up asifyue wun nooxidwtt zopeotpur o1t20121 © ter ‘ousseysoIe op seduce \I SEGRE TEST El g PEER 52 @ dee Me 5 = ae ERP RT RAT \ eouaeeces wUSS Bees ae aE aes ce ae z i nt os — E = 5 e{aUQIOLA ap of>IpuE a9ax9J0 opEstAaNUD O2NE Zouavnd, 194 Quapro3 Anélise da rede Martha K. Huggins Organizacto de Tormrafascasinato Tornrador denunciado (ito. cenevistado) B Entreistado—> Tonos Revers reps Respeinve Respir Coes Relagdo com vortrado conocido Herances do autoritarismo 128 Quapro4 Indicagio pelo entrevistado de violencia cometida Violéncia Pessoa % envolvid 1,8, Eu, Ma, El, PV, 1, Tortura ae 37 2. Assassinato ‘GMa, J, El, PY, V, Ju 50 3. Uso de violencia S,F, Eu, Ma, Bl, PV, “a excessiva BIB 4, Presenciar tortura 3,S, Eu, Ma, El, K a 5. Pertencer a grupo que assassinavatorturava | O47 V a ‘6. Comandar grupo que torturava/assassinava | M&S.) F, 1B, A, Eu a * Nao totaliza 100% porque virios entrevistads caem em mais de uma categoria, Nove policiais da amostra de 23 homens (Lu, LO, Air, M, Lue, Mes, O, P18 ‘apresentaram qualquer indcio que indicasse envolvimento pessoal com tortura e/ ou assassinate. © discurso dos violentos Constatando que catorze entrevistados pareciam ter participado de tortura e/ou assassinato, examinamos de que modo o envolvimento deles se refletia em seu discurso sobre a violencia, sem necessaria- ‘mente esperar que admitissem haver participado quer de tortura quer de assassinato. Uma andlise de contetido da narrativa das entrevistas revelou dez explicagdes para que uma pessoa houvesse cometido esses, tipos de violencia, Essas explicagdes foram, por sua vez, agrupadas ‘em quatro categorias: difundir responsabilidades; culpar individuos; ‘como vitimas ou perpetradores; mencionar uma “causa justa” e identi- ficar imperativos e pressdes “profissionais”. Algumas dessas expli- cages foram mais comumente apresentadas do que outras. 186 Martha K. Huggins Difundir responsabilidades. Um primeiro conjunio de explica- ges para a tortura e/ou o assassinato atribui a responsabilidade por esse tipo de violéncia quer a colegas e/ou a algum érgio de seguran- a interna que ndo o do entrevistado, ou ainda a algum contexto sociocultural mais amplo, nfo reconhecendo pois nenhuma fonte cla- ra de responsabilidade por tal violéncia ¢, de fato, negando toda ¢ qualquer responsabilidade pessoal por ela, Oito dos catorze entrevis- tados apresentaram argumentos tipo difusio de responsabilidade. Nove deles chegaram realmente a negar categoricamente que a vio- lencia sequer houvesse ocorrido em sua presenga enquanto estive- ram na policia. Alguns deles localizaram as rafzes da tortura e/ou do assassinato no comportamento de um grupo de colegas,ou no interior de uma unidade policial que nio a do entrevistado — ainda que, em muitos casos, o entrevistado tenha estado presente quando ocorria a violencia. “Foi chocante... ver pela primeira vez alguém pendurado no ‘pau-de-arara’ com uma mangueira de 4gua enfiada na boca. Eu no concordava com aquilo, mas estava na sala e 0s caras estavam {torturando-o}” (Entrevista J, Brasflia, 9/93). Alguns entrevistados indicavam situagdes socioculturais especi- ficas ou genéricas que haviam levado alguns policiais a torturar e/ou assassinar, “Viver num ambiente agressivo afeta voc’, contamina vvocé pouco a pouco, sem que voce perceba” (Entrevista EL, Rio de Janeiro, 8/93). "O Brasil é um pafs catélico. No Brasil, esto acostu- ‘mados com esse tipo de comportamento ~ como a tortura, por exem- plo — porque as igrejas catdlicas torturaram as pessoas durante mui- tos anos, durante muitos séculos” (Entrevista J, Brasilia, 9/93). ‘Alguns entrevistados difundiam a responsabilidade mencionando fontes obscuras que seriam responséveis pela tortura e/ou assassi- rato, “A primeira vez que troquei tiros com alguém... foi como quan- do vocé adormece na dirego de um carro, Vocé esté ali e aquilo 0 amedronta tanto que espanta 0 sono por minutos” (Entrevista K, Brasilia, 10/93). “Alguns caras morreram, mas no sei quem os ma- tou, Havia muitos caras atirando... no sei quem acertou 0 cara e quem {no}. Voc s6 sabe que morreu gente. Felizmente foi do outro lado” Entrevista J, Brasilia, 9/93). Herangas do autoritarismo 187 Culpar individyos como vitimas ou perpetradores. Utilizado por dez dos eatorze entrevistados, localizava as raizes da tortura e/ou assassinato ou nas “més” vitimas, ou nos “maus” perpetradores. Os {que supunham que a tortura e/ou assassinato aconteciam por causa das més vitimas, achavam que esses individuos haviam atrafdo para si aquele tipo de violencia por deixar de cooperar, ou por sua “burri- ce” ou comportamento anti-social. “Eram torturados porque eram burros... [Dissemos] que vocé tinha a oportunidade de falar sem ser torturado, mas voce preferi ndo falar. Se ela confessasse, continua ria presa, mas sem qualquer tortura” (Entrevista J, Brasilia, 9/93). [A tortura] é usada em ladrées ¢ assaltantes porque eles sto ho- ‘mens... com lagrimas de crocodilo e as vezes os indfcios sio tio Sbvios eeles negam coisas tao cinicamente que se um policial que esteja trabalhando com eles nfo tem um certo equilfbrio iré cespancé-lo um pouco [isto é, torturé-lo}: “Ah, quer dizer que voce ‘quer me fazer de bobo!” Nés vamos rodé-lo [no pau-de-arara). (Entrevista K, Brasilia, 10/93), ‘Uma explicagdo que punha a culpa nos perpetradores pela tortu- ra e/ou assassinato encarava esse tipo de violéncia como tendo sido levada a cabo por policiais que ou eram permanentemente maus (quase sempre alguém que nfo o entrevistado) ou apenas temporariamente descontrolado (0 que, as vezes, inclufa implicitamente o entrevista- do). Uma das explicagées que culpava, mas parcialmente absolvia 0 perpetrador, era que temporariamente os maus policiais haviam sido evados por emoges de ocasido e julgamento errado, Nesses casos, ‘a tortura e/ou assassinato provinha da “burrice”, da juventude, da falta de preparo profissional - p. ex., tempo insuficiente de formago~ ou da cegueira temporéria causada pela paixio. “Aquele traficante que ccausou minha pristo..., eu ia maté-lo [ele] assaltara minha casa, Eu decidira maté-lo... eu estava cego de édio” (Entrevista EL, Rio de Janeiro, 8/93). “[Os torturadores] eram um monte de caras fazendo coisas burras,.. caras que no sabiam o que estavam fazendo... Em sua maioria aqueles caras no eram bem preparados; (86] queriam parecer” (Entrevista J, Brasilia, 9/93). 13 Martha K. Huggins No entanto, os policiais “permanentemente maus” ou extrafam da violencia um prazer proibido, ou tinham o habito de exagerar na bebida ou no uso de drogas, ou eram declaradamente agressivos € “perigosos” por causa de um “disturbio de caréter”, ou simplesmente inerentemente desonestos. Na maioria dos casos, porém, esses poli- ciais que, porexemplo, assassinavam “pelo simples prazer de matar” (Entrevista FV, Rio de Janeiro, 8/93), ou que torturavam por serem fundamentalmente “muito cruéis” (Entrevista J, Brastlia, 9/93) — foram descritos como excegdes € niio como a regra. [Havia] certos homens na policia que sentiam prazer em matar— em minha equipe conheci um [ummalfeitor]. Néo eraem legitima ddefesa e nem se poderia dizer: "Vamos nos livrar desse cara [o prisioneito}, ele é mau”. Nao, ele queria mesmo era matar ~ «quando uma ou duas balas bastavan para mata alguén ele atrava mais cinco vezes— pum, pum, pum... Ele] matava gente to friamen- te quanto se mata uma galinha (Entrevista S, So Paulo, 8/93).. (© {mau} torturador quer torturar para descobrir provas ¢ extor~ Gquir...outras pessoas. Ele pega um ladrio, espanca-o... ée modo {que 0 ladrio The conta a quem vendeu suas coisas. Ele [entdo). ‘ai até aquelas pessoas... e toma dinheiro [delas para ficarquieto] (Entrevista Ma, Sto Paulo, 893). ‘Argumento mais sutil nessa categoria foi o de que policiais que se tomnam torturadores e assassinos eram originalmente mais agres- sivos e/ou “frios” do que outros colegas ~ qualidade que os entrevis- tados nfo consideram necessariamente ruim, Altos funciondrios da policia de mé fama € que reconheciam essas caracterfsticas ¢ sele cionavame treinavam policiais agressivos para fazer o trabalho mais sujo da instituigdo, resultado nem sempre aprovado pelos entrevista- dos, porque em geral os policiais € que “leva” pelo que os altos funcionérios os obrigam a fazer. {As pessoas que mais se identificam com... [a tortura ¢ 0 assassi- rato sio) muito frias pela propria natureza.... muito agressivas.. [ssas qualidades sio] percebidas... [pelos superiores}.. Certas pessoas que tém essa qualidade para trabalhar de determinado Horancas do autoritarismo 189 ‘modo [violento] realmente stio exploradas por seus chefes, por aqueles que querem que o trabalho seja feito com rapidez (Entre vista JB, Brasilia, 9/93). Mencionar uma “causa justa”. Um terceiro conjunto de argu- mentos era 0 dos que mencionavam uma “causa justa” para a tortura fou assassinato, Estes afirmavam que os policiais que cometiam esse tipo de violéncia estavam reagindo a uma situagio genérica de guer- ra declarada, estado de sitio, guerra intema, guerra ao tréfico de dro- gas, guerra contra o crime, ow na qual a vida de um “‘cidadao de bem” estava em perigo. Seis dos catorze entrevistados apresentaram uma cou outra explicagao tipo “causa justa” para o ato de torturar e/ou assassinar, .."Se prendo alguém que sequestrou uma menininha que pode ser morta dentro de quatro horas, no vou perder tempo em interrogé-lo durante dois ou trés dias apenas para vencé-lo pelo can- ssago. Entdo... penduro esse cara [no pau-de-araral, trabalho nele cle me conta em cinco minutos” (Entrevista S, Sao Paulo, 8/93). {A gente trabalhava como se estivesse em guerra. Eramos patrio- tas, defendiamos nosso pais, tihamos orgulho disso, de modo aque eles eram adversérios, eram o inimigo. Tinhamos orgulho do que faziamos... trabalhando no Dops... aquele orgulho de livrar 0 pafs de uma ameaga, dé um regime comunista... ramos] gente fazendo ur trabalho patritico, um grande trabalho, um trabatho importante... Eramos gente religiosa, gente crit... (Entrevista Eu, Brasilia, 993). Identificar imperatives e pressdes “profissionais”. A quarta categoria de discurso, que menciona “imperativos e pressGes profis- sionais” como causas da tortura e/ou assassinato, foi apresentada por todos os entrevistados, dois tergos dos quais apresentaram pelo menos dois argumentos de “profissionalismo”. Suposigto bésica des- ses relatos era a de que, por vezes, a tortura e/ou assassinato eram necessérios ¢ aceitéveis para desempenhar suas fung6es e obedecer ordens, ¢ os que levavam a cabo esse tipo de violencia no eram 180 Martha K. Huggins ‘moralmente nem bons nem maus ~ apenas profissionalmente afina- dos, em maior ou menor medida, com as politicas e priticas das res- pectivas organizagGes. “[Esses policiais] nao so desequilibrados.. demonstram boa conduta na policia, chegam até a aposentadoria e ‘no tém problemas disciplinares, [O fato de torturarem] niio significa ‘que sejam monstros” (Entrevista Eu, Brasilia, 9/93). ‘Na verdade, muitos entrevistados tinham como suposigio basica que o “profissionalismo” mediava a conduta policial, ajudando até ‘mesmo a indicar o uso apropriado da violencia, Como explicou um ‘membro da Policia Militar: “Quando o homem ndo se sente um pro- fissional estd sujeito a se deixar corromper, a abandonar seu posto... ‘ser morto... a pér outros em risco, Durante o primeiro tiroteio, iré atirar para todo lado e... matard alguém que ndo tem nada a ver com nada” (Entrevista F, Rio de Janeiro, 8/93). Segundo esse argumento, a violencia ¢ “normal” (isto é, natural ¢ aceitivel) desde que levada a cabo nas circunstancias “adequa- das” por profissionais da polfcia que sabem quando e como empregé- la. Se a violéncia é aceitdvel ou nao decorte, no profissionalismo, de ‘um céleulo “racional”: ‘Voce nio pode [apenas] reagir, matar adequadamente}; vocé deve agir com arazio. O trabalho policialé ser inteligerte, 6 raciocfnio, técnica, informagio... Voo8 s6 mata quando no hé outro jeito, ‘quando ou voc mata, ou outra pessoa morre. Fors isso, voe® no ‘mata, em minha opinifo... Voc® nfo pode reagir {matando]; vocé tem que agir com a razfo (Entrevista EL, Rio de Janciro, 8/93). [O esquadrio da morte que eu chefiava ndo] matava gente inocen- te; esperava as estatisticas... procurava os fatos, de modo que sabfamos quem era e quem nao era [criminoso]. Voce percebe quem um trabalhador, quem é um estudante; vocé percebe quem uma pessoa de bem, quem é um bandido; vocé tem que saber tude, ‘Voce mira apessoa certa (Entrevista FV, Rio de Janeiro, 8/93). discurso do “profissionalismo” encara a violéncia policial acei- tavel como um equilibrio entre 0 célculo racional ¢ as pressdes € os Herangas do autoritarismo 191 imperativos organizacionais possivelmente destruidores. Como explicou um membro da Policia Civil, ao indicar as raizes organiza- mnais da violéncia policial, “a tortura é 0 zelo na tentativa de des~ cobrir, de desvendar um crime. (0 policial] lida com um monte de trabalho. Nao temos os recursos para trabalhar numa investig fo... fentdo] o caminho mais curto é através da tortura’ (Entrevis- taEu, Brasflia, 9/93). Varios entrevistados assinalaram que policiais que obedeceram corretamente ordens de altos funciondrios foram posteriormente de- rnunciados por seus superiores pela violéncia que “profissionalmente” haviam levado a cabo. Nesse processo, tornaram-se “vitimas de sua profissio". Nas palavras de um membro da Policia Ci Muitos ipolicais} que conhezoficaram frustrados porque. na épo- ca, areditavam... estar prestando um servigo relevante [que 08 {que estavam no governo queriam que fosse feito] ¢ dele se bene- ficiavam, E agora foram relegados a segundo plano. Sentem-se entio extremament frustrados (Entrevista JB, Brasilia, 9/93). [0s policiais} envolvem-se numa luta pela sociedade e sfio conde rnados por isso. Se cometem excessos — ultrapassam os limites do dever ~ é porque querem ser bons policiais (Entrevista S, Sio Paulo, 893). Corporificando e descorporificando a violencia Os quatro relatos representam implicitamente diferentes modos de incorporar 0 corpo e a mente no discurso sobre a violéncia. As trés primeiras explicagdes ~ difusdo de responsabilidade, responsabilidade individual e causa justa — contém mais comumente referéncias 20 corpo de uma vitima e/ou a alguém ou a alguma coisa que age explici- tamente sobre o corpo de uma vitima. Essas explicagGes "corporificam’'a vvioléncia, vinculando-a especificamente & fisicalidade humana, Em contraposigdo, o discurso do “profissionalismo” “descorporifica’”a vio~ Tencia mediante a substituigao da agao e da fisicalidade humanas por agentes organizacionais nao humanos e mediante a justificagdo da violencia por meio de um célculo mental desapaixonado. Martha K. Huggins Porém, além da presenga ou da auséncia da fisicalidade no dis- curso dos entrevistados, outro padriio dos dados implica que os entre- vvistados componham um discurso que faca que sua violéncia passa da se tome compativel com o clima ideal de direitos humanos no Brasil p6s-ditadura, que é contrério a esse tipo de violencia. Um qua- dro conceptual desenvolvido por Stokes ¢ Hewitt descreve esse tipo de “ages de alinhamento” como um processo conceptual que leva 0 comportamento discordante a se sincronizar com as expectativas cculturais idealizadas. (Scully e Marolla, 1984: 264). ‘Ages de alinhamento Em estudo sobre estupradores condenados, Scully e Marolla (1984) descobriram que os entrevistados reconstrufam seu desvio vvalendo-se de um “vocabulirio de motives” culturalmente dispontvel (Mills, 1940), que antecipava avaliag6es negativas do comportamen- to passado e oferecia “relatos” culturalmente aceitaveis para explic4- lo. Por exemplo, alguns estupradores cordenados negociaram “uma [nova] identidade moral para si, mediame a apresentag&o dos estu- pros [que praticaram] como [tendo sido] idiossincréticos, e nfo um comportamento tipico” ~ por exemplo, o estupro estava fora de sew controle, Outros estupradores condenados colocaram seu desvio pas- sado de acordo com expectativas culturais, descrevendo sua violén- ccia como “controvertida” — seu comportamento, ainda que nao intei- ‘amente correto, foi adequado & situago: uma mulher “ma” recebera co que merecia (Seully e Marolla, 1984: 274-275). Em ambos os ca~ 0s, 08 estereétipos culturais patriarcais comuns sobre mulheres for- neceram aos estupradores 0 vocabuléric para 0 discurso post-facto a respeito do estupro. Isso alinha o comportamento passado ao clima ‘moral atual. Procurando sistematizar os diversos vocabulérios de motivos que alinham passado e presente, Scott e Lyman (1968: 61) classificam os “relatos” sobre a infragdo de regras em “éesculpas” e “justificagdes”. Quando os relatos — discurso que é “padronizado dentro das cultu- ras... fe] rotineiramente esperado” ~ assumem a forma de “descul- Her 193 pas", hi a suposigdo de que “umato... [é] mau, errado ou inadequado [com uma negativa de] plena responsabilidade” por ele. Essas “des- cculpas” relatam o desvio como um “acidente”, ou como resultado de 1m “estado mental especial” ou de impulsos biol6gicos incontroléveis, ‘ou como uma “maldade” da vitima, Entretanto, relatos que assumem a forma ret6rica de “justificagdes” reconhecem ndo ser permisstivel 0 comportamento desviante, “mas afirmam... [que uma] ocasigo espe- cial o permitfia] ou exiglia}” (Scott e Lyman, 1968: 51). Mais comumente, as “justificagdes” neutralizam o desvio (Sykes e Matza, 1957) ou negando qualquer dano e/ou violencia as vitimas, ou conde- nando os que condenam, ou recorrendo a uma lealdade mais elevada. Cohen (1993) argumenta que esse tipo de neutralizagao passa “a existir quando vocé reconhece (admite) que algo aconteceu, mas ou se recusa a aceitar a categoria de atos em que isso é incluido crime’ ou ‘massacre"), ou 0 apresenta como moralmente justifi- cado” (p. 107). Nem a tipologia de Scott e Lyman (1960) nem a de Scully Marolla cobrem, por si s6, toda a amplitude dos padrées discursivos de nossos dados de entrevistas. Além de “justificar” ou “desculpar” sua violencia, os entrevistados também a “confessavam” ou a “nega- vam". Levando em conta essas duas categorias adicionais, criou-se uma taxonomia para captar os diversos vocabuléios de motivos dos entrevistados. Utilizando essa taxonomia “explicativa da violencia” T Rplicando ao dicuso rbuivo de notso entrvistados as ctegoris neualizagto de Sykes e Maan 19S, deseaeince qu a rar eetfeva Ioralmene eda) anegaro de quel ese cara quale pein "ose Cegntvad ano “0 Dl um pistes sane rst dos ete po de comportaneno como a forara's®) a afc de aoe ni houera ima da voenia que ose digas e considera neat i nas da vléni) tot Cempregadaemn nese ssa pou eso homens..com Karina de rose") a nega da responsbldae pessoal pela violéncia negative de rerponsaildad”) "Quando se peencea una mg ta, poles fzer ovat fae esas colar assassin), confrme quem, nos esta diigind; ) acondenag dos que conden: strands “envol sei ate nintendo i” por sper ou gor etanese) > eeu a uma ledade ei: bor conn fon g ene pidge pb Ciesramor sven, oinimige” 194 Martha K. Huggins para recodificar nossos dados de entrevista, descobrimos que todos 0s entrevistados ofereceram um ou outro relato (n=14) que “justifi- cava” a violencia policial - negando a qualidade pejorativa da tortura ¢e/ou do assassinato, ao mesmo tempo que admitindo responsabilidade por ela. Entre as duas justificagdes mais comuns paraa tortura e/ou © assassinato, as explicagdes por “causa justa” apresentaram apenas a metade da freqiiéncia (n=6) dos argumentos de “profissionalismo” (n=14) para a explicagio da tortura e/ou do assassinato do passado, Os relatos mais freqilentes a seguir “desculpavam” a violéncia (n=9), reconhecendo que a tortura e/ou o assassinato haviam sido um erro, ‘a0 mesmo tempo que negava a responsabilidade pessoal por esse tipo de violéncia em geral culpando as vitimas, os perpetradores, ou os superiores dos perpetradores. Menos comuns ainda foram as “negativas” (n=7), as quais difundiam a responsabilidade pela violén- cia e rejeitavam tanto a natureza desviante da tortura e/ou do assassinato quanto a responsabilidade pessoal dos perpetradores por haver levado a cabo essa violencia, Finalmente, as “confissBes” — fem que uma pessoa confessou francamente tanto a natureza vio- lenta de seus atos quanto sua responsabilidade por eles ~ foram de fato muito raras (n=1), Somente um dos entrevistados (Entrevista G, Rio de Janeiro, 8/93) confessou de maneira franca completa seu papel na violén- cia, admitindo haver sistematicamente assassinado em nome do Estado, Contudo, fez ressalvas & sua confissio, dizendo que a violén- cia que praticara era preferivel & da cometida por colegas seus, pois, rmatara mas nio torturara suas vitimas. Numa descrigio de um dos “véos da morte” de sua equipe (Verbitsky, 1997) na regio amazOnica, Geexplicou que 0 objetivo do grupo era regressar da missfo assassina “sem nenhum [dos prisioneiros] a bordo”, No v6o de volta, os prisio- neiros foram submetidos a “todo tipo de tortura... as mulheres feram] estupradas... e [a seguir] jogadas vivas para fora do helicéptero"” G sentiu-se to “mal” ao presenciar a tortura e 0 estupro de uma prisioneira por seus colegas, que “teve que maté-la",explicando que, enguanto seus colegas haviam langado suas vitimas ainda vivas para fora do helic6ptero, ele “pelo menos” matara sua vitima antes de langar seu corpo para fora do helicéptero. Herancas do autoritarismo 198 Violéncia policial “aceitavel” e “inaceitdvel” ‘Acscala de moralidade implicita na confissio desse entrevistado indica a existéncia de distingGes avaliativas feitas por todos os entre- vistados a respeito da relativa permissibilidade da tortura e/ou do as- sassinato, Os entrevistados inclufam esse tipo de violéncia em uma ‘ou outra de trés categorias morais —podia ser “aceitével”, “desculpd- vel, mas néo inteiramente aceitével” ou “inaceitivel” -, dependendo de set contexto situacional. Ao situar a violéncia passada dentro de tum contexto social reconstrufdo que levava em conta as moralidades atuais, 0 entrevistado conseguia “alinhar” suas agdes passadas de sorte que negociava uma identidade moral apatentemente mais acei- tavel do ponto de vista social. Embora nem todos os entrevistados tenham inclufdo as tr8s ca- tegorias de julgamento moral em seu discurso sobre a violéncia, os discursos deles compartilhavam varios tragos comuns: eles possufam ‘uma idéia clara de quando esse tipo de violencia era aceitével e quar do ndo era; possufam critérios notavelmente semelhantes para incluir a violéncia do passado em uma ou outra categoria moral; 0 céleulo moral de cada entrevistado era suficientemente flexivel para encarar a violéncia como “aceitével” numa dada situagio, “desculpavel” em outra e totalmente “inaceitavel” numa terceira, embora apenas ‘nuancas sutis da lingua portuguesa distinguissem essas classificagdes morais. Fundamentagio interessante para a maiotia dos eéleulos morais dos entrevistados era a de que a tortura devia ser mantida operacio- nalmente distinta do assassinato: os torturadores que executavam adequadamente seu trabalho nao deviam matar, € 08 assassinos nfio deviam maculat-se com a tortura, como vimos na citago acima. In- corporando esse raciocinio em sua explicagio, G afirmou que “era muito mais facil matar, porque (em contraposigao) o torturador tinha que ter um compromisso com sua vitima”, esperavarse conseguir © que precisava. No caso do assassinato, todavia, “ndo havia compro- rmisso” com as vitimas; elas eram mortas antes que se pudesse esta- belecer qualquer relacionamento que comprometesse a execugao da tarefa pelo assassino profissional (Entrevista G, Rio de Janeiro, 8/93). 196 Martha K. Huggins Essa tendéncia dos entrevistados de separar operacionalmente a tor- tura do assassinato leva-nos a centrar esta parte da anélise exclusi- -vamente nas afirmagoes sobre a tortura, A consideragio moral dos torturadores Os policiais torturadores “bons” foram descritos mediante rela tos que “justificaram" sua violencia: policais treinados e “racionais", que haviam torturado de maneira aceitével, possufam clara nogio de seus limites e/ou estavam sob as ordens de um superior “racional”. Em tais circunstancias, a tortura legitimava-se por combater por uma “causa justa” e por interrogar “profissicnalmente” suspeitos “maus", {A violéncia dos torturadores “bons” era “descorporificada”, arraiga- da numa “mente” politica, ou orientada por uma “mente” racional. Os policiais torturadores “maus” haviam empregado a violéncia por prazer - eram deliberadamente sddicos, permanentemente descontrolados, ou haviam torturado sob a influéncia temporéria de drogas ou de élcool e/ou com finalidades econdmicas desonestas. Esse tipo “inaceitvel” de tortura era “corporificado” como biologi- camente impulsionado, resultante da fisicalidade humana “irracional”. (0s torturadores no terreno moral mediano ~ em que a tortura era “nfo totalmente aceitivel, mas ainda compreensivel” ~ foram descritos por um discurso misto: a tortura podia resultar de uma perda temporiria de controle emocional, ou quando “o sistema” houvesse selecionado um policial declaradamente agressivo para executar a violencia pretendida, No terreno moral mediano, os torturadores era freqllentemente corporificados como perpetradores tomados vitimas, fisicamente compelidos. Esse tipo de tortura inaceitével era usual- mente “desculpado” como moralmente errado, com a ressalva de que esses torturadores no eram pleramente responséveis por seu comportamento desviante: press6es biolégicas ou sociais os haviam levado a comportar-se de maneira inadequada, . Herancas do autoritarismo 197 Relatos em transformagio: explicagdo do passado pelo presente Uma vez que agora a democracia oficial do Brasil condena for- ‘malmente a tortura - muito embora ela ainda seja habitualmente prati- cada contra os pobres ~, pode-se esperar que 0s relatos atuais expli- quem o passado mediante um "vocabulério de motivos” que neutraliza © passado de violéncia de um entrevistado, Além disso, se, como diz Cohen (1993), os relatos motivacionais so “preparados previamente a partir do conjunto cultural de... vocabulérios [atualmente] disponf- veis para atores ¢ observadores” (p. 107), entdo os mesmos relatos que “legitimamente” motivaram, justificaram ¢ desculparam a tortura e/ou o assassinato durante o perfodo militar brasileiro no sero hoje to aceitéveis, social e politicamente, quanto no pasado. Relatos motivacionais alterar-se-Ao para abranger as realidades culturais, sociais e politicas em mudanga. Discutindo a relagdo entre 0 contetido discursivo e as condigoes ‘e mudangas societais, Foucault (1979) (ver também Sheridan, 1980) sugere que, para serem levados a sério, os relatos motivacionais devem hoje se fundamentar numa “vontade de verdade” contemporanea que tem sua base num corpus de textos cientificamente fundamentados que contém as regras, as técnicas e os instrumentos para estabelecer a“*vertlade”. De fato, na maior parte do mundo industrializado, rela- tos “acreditéveis” siio agora expressos em termos cientificos, racio- nais, pragméticos e organizacionalmente instrumentalistas. Expres- sando-se diferentemente, C, Wright Mills (1940: 910) escreveu que uma sociedade em que motivos religiosos foram desmascarados em escala bastante ampla, certos pensadores so céticos quanto aos que comumente gs proclamam”, Em outras palavras, com a passa- gem da hegemonia ideol6gica da religigo e do sagrado para a supre- macia da ciéncia e do secular, as explicagdes que se baseiam naquela no posstuem mais a credibilidade das baseadas nesta. Reconhecen- do que 0s ususrios da linguagem incorporam essas expectativas cul- turais a seus discursos, Cohen (1993) assinala que no bojo dos relatos de um individuo “esté 0 conhecimento de que alguns deles sero [mais 198 Marthe K. Huggins prontamente] aceitos [e} serio homenageados pelo sistema legal pelo piblico mais amplo” (p. 108). Apliquemos esse argumento aos varidveis padres de discurso de nossos entrevistados. Da seguranca nacional a0 profissionalismo Grande niimero de pesquisas sobre o periodo militar do Brasil (Black, 1977; Langguth, 1978; Lemoux, 1980; Pinheiro, 1991; Huggins, 1998) demonstra que, naquela época, era comum invocar-se a idéia de seguranga nacional da Guerra Fria para justificar a repressio es- tatal. As forgas de seguranca dividiam a populacdo do Brasil em “sub- versivos” e “cidadaos de bem”, estando as forcas de seguranca numa “guerra justa” total contra a “subversio” (Black, 1977: Alves, 1985; Lemoux, 1979; Weschler, 1987; Skidmore, 1988; Huggins, 1998). Apelando para 0 argumento da “guerra justa”, o presidente Emesto Geisel (1974-1979) — para justificar o envolvimento de seu governo com a tortura ~ explicou, no infcio da década de 1990, que “ha cir- cunstncias em que uma pessoa ¢ forgada a envolver-se em [tortura] para obter confissdes e, desse modo, evitar maior dano [para a socie- dade]” (FGV, 1997).5 Neste caso, o discurso pés-ditadura da “guerra justa” do general é congruente com o que teria sido uma justificagio “aceitével” durante o perfodo militar do Brasil. Com a expectativa de que nossos entrevistados apresentassem predominantemente um relato desse tipo, ficamos surpresos quando apenas seis deles realmente o fizeram, Na verdade, entre os poucos que forneceram um relato de “causa justa” para a tortura e/ou 0 assassinato, somente quatro recorreram especificamente & “segu- + Bimeressant notar que o nics entevistados que presentaramcomoexpicagio paraa ortra lou ssssnatoa“causajusa da seguranca nacional erm policis de posts mais elevads, O de hererguia inferior jamais deram essa expliagto. Talver como exresidente do Brasil EmestoGeise, os etevisados qe haviem sido fii da poi ainda se sentam frtementecompromeids coma ideoiogia anticomunistada seguranga nacional, Iso havin outrorsustificad ato de have- rem ondenado,supervsionad e, em alguns casos, até mesmo execulado graves lage ds dietos humans. Herancas do autoriterismo 199 ranga nacional”. Em contraposicgao, como ja mostramos, todos os catorze entrevistados apresentaram um ou mais relatos de “profissionalismo” relativamente a tortura e/ou ao assassinato. Tal- vez a predominancia desse tipo de discurso reflita uma redugdo da legitimidade cultural e politica dos relatos de “guerra justa” sobre a vviolénciae um aumento da aceitabilidade cultural do “profissionalismo” para justificar os abusos de poder dos policiais. Como jé afirmamos, ssa alterago pode indicar uma mudanga cultural mais profunda no ‘mundo em processo de industrializagiio no sentido do recurso a ideo- logias que se enraizam na racionalidade, no instrumentalismo e na ciéncia (p. ex., “profissionalismo”) contra as que recorrem & paix e ‘A emogio (p. ex., “guerra justa”). Esses relatos que recorrem desa- paixonadamente a valores instrumentais talvez sejam nos dias de hoje culturalmente mais vlidos do que os que indicam um compromisso ‘emocional profundo a um valor expressivo extremo — a “causa jus- ta”, Se isso é verdadeiro, quais so as conseqiiéncias de basear-se no “profissionalismo” para legitimar a violéncia policial? Profissionalizagio da violéncia pol ‘Tomado como uma ago racional cientificamente orientada, en- tende-se que 0 “profissionalismo” inclui formagio especializada em determinado corpo de conhecimentos, rigida divisio de trabalho, hie- rarquia na tomada de decisdes, padres ocupacionais que se aplicam automaticamente e regras impessoais e universais de nomeagao, pro- ‘mogio, demissdo ¢ remuneragao. Relativamente & ago policial no Brasil, o profissionalismo foi operacionalizado por meio de ideologias de controle do crime e militarizagio técnica (Chevigny, 1995; Huggins, 1998a e b; relativamente aos EEUU, Skolnick e Fyafe, 1993). Por sua vez, 0 profissionalismo militarizado justifica a criagdo de uma policia cada vez mais hierarquizada, fortalecida por esquadrées téc- nicos de combate ao crime e pelo material militarizado para o comba- teaum “inimigo” generalizado. Ao dividir a populagdo em “cidadaos de bem” e “criminosos”, a orientagio militar do controle do crime ‘mantém a antiga divisdo maniquefsta da populagdo do Brasil feita 200 Marthe K. Huggins pelos militares brasileiros: “cidadaos de tem" e “subversivos”, estes transformados nos “criminosos marginais” transgressores das regras, a ser legitimamente tratados por meio de repressio policial pesada e generalizada, ‘Considerado 0 oposto da “falta de razio” e da imprevisibilidade, considera-se que o profissionalismo reduziré a violencia policial pelo aumento da agio policial “racional”. Na verdade, porém, 0 profissionalismo militarizado ao mesmo tempo aumenta (Chevigny, 1995; Skolnick e Fufe, 1993) e dissimula avioléncia policial (Huggins, 1992). O pressuposto de que os métodos profissionais “racionais- legais” orientam o comportamento dos policiais elimina ipso facto a possibilidade de que “verdadeiros profissionais” possam agir de modo ‘“inadequadamente” violento, relegando cs policiais que violam esses padrées profissionais ao status de excepeionais. Eles seriam “macs podires” dentro de uma instituigZo policisl que quanto ao mais é har- ‘moniosa, bem pensante e profissional. ‘Quanto ac modo como a profissionalizagio militarizada fortalece 1 violéncia policial, as esferas “profissionais” concedem ampla auto- nomia aos que ali trabalham, permitindo que os profissionais da poli- cia definam e avaliem por si sés 0 que é ¢ 0 que nao é violencia “excessiva”. Uma vez que uma ideologia secular de profissionalismo define os profissionais como os mais qualificados para ajudar clientes aeliminar, estabilizar ou aprimorar um dado problema ou situago, as decisdes profissionais so separadas das opinides altemnativas exter- nas, Isso significa que os clientes dependentes — quer a sociedade ‘mais ampla, quer supostos transgressores da lei - “devem respeitar a ‘utoridade moral daqueles cuja reivindicago de poder” repousa em seu conhecimento e suas habilidades especializados (Bledstein, 1976: 87). Essa autonomia, ¢ 0 relativo isolamento concedido ao policial “profissional”, institui um clima propfcio aos abusos de poder pelos policiais, Como explicou um dos entrevistados ~ que teve a seu cargo © comando de um esquadrio da morte que matara uma centena de pessoas -, “ele jamais matara alguém fora do servigo”, seus assassina- tos foram todos em servigo e no cumprimento do dever... fsendo sua adequago) corroborada por testemunhas ou por... [seus] parceiros.. Herancas do autoritarismo 201 Herangas do regime militar: 0 autoritarismo em transigbes democraticas Escrevendo sobre as causas da tortura, Crelinsten (1993: 5) afir- ma que seu emprego rotineiro sistemético “6 & possivel dentro de um mundo fechado imbufdo de uma realidade alternativa distinta da- quela da moralidade convencional”. Embora Crelinsten esteja certo quanto a tortura ocorrer em isolamento e com ele se favorecer, seria equivocado encarar a tortura como uma moralidade “convencional” externa, Um tipo de moralidade convencional —o profissionalismo - constitui um etos moral moderno, secular, que envolve um conjunto de principios sobre 0 “certo” e 0 “errado”, no qual a ciéncia e a razio supostamente orientam atitudes e condutas. O etos do “profissiona- lismo” permite que policiais “profissionais” relativamente autonomos decidam sobre a “accitabilidade”, a “desculpabilidade” ou a “inaceitabi- lidade” de graves violagGes de direitos humanos. Encarada como um padrio de base cientifica para a avaliagdo da adequago da tortura e/ou do assassinato, a moralidade secularizada e tautolégica do “profissionalismo” fomece uma justficativa legitima para a violéncia policial: se for executada por policiais “profissionais” agindo “‘pro- fissionalmente”, a violéncia policial € aceitével. Ou, como explicou um dos policiais, “Eu ndo emprego... violéncia fora do padréo de minha consciéncia como ser humano. Sou um profissional cons- iencioso, Sei o que fazer ¢ quando fazé-lo”. (Entrevista A, Rio de Janeiro, 8/93). Explicando de que modo a linguagem motiva a ago futura, C. ‘Wright Mills (1940: 907) afirma que esses vocabulérios de motivos “profissionalizados” fornecem novas “raz6es para 0 comportamento corrente; medi[am] motivfam] a ago futura”. Na verdade, os vo- cabuldrios ideolsgicos que supdem que a agio policial “profissionalizada"e a violéncia so oxfmoros ajudam a justificar ea Perpetuar 0 abuso de poder pela policia. Assim, embora o discurso dos policiais sobre a tortura e o assassinato tenha mudado~na medida ‘em que Brasil autortério foi substituido pela redemocratizacio formal ea “guerra contra a subversdo” por uma “guerra contra o crime” =, a autonomia dos policiais continua a permitir que “profissionais” da 202 Martha K. Huggins policia no Brasil cometam graves violagdes dos direitos humanos. Em outras palavras, a violéncia policial de um perfodo anterior nao perdeu o vigor nem mesmo durante a redemocratizagao do Brasil. Na verdade, nas maiores cidades do Brasil ela aumento vertical- mente (Dudley, 1998; Huggins, 1998), 5 Referéncias bibliogréficas ALVES, M. H. State and opposition in military Brazil. Austin University of Texas Press, 1985. BENJAMIN, Walter. Illuminations. Nova York: Schocken Books, 1968, BLACK, Jan K. United States penetration of Brazil. Manchester: Manchester University Press, 1977. BLEDSTEIN, Burton J. 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