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André P. Paula - A Lírica Do Desespero
André P. Paula - A Lírica Do Desespero
FACULDADE DE LETRAS
LETA10 – INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS
FERNANDA RODRIGUES DE MIRANDA
A LÍRICA DO DESESPERO
SALVADOR-BA
2023
“Sou um depressivo unipolar descendente de depressivos unipolares. Daí que vem eu escrever
tão bem.”
– Kurt Vonnegut
Existem poucos estados mentais capazes de consumir tudo dentro de nós com tanta
voracidade que nem o desespero absoluto por vezes suscitado pela depressão. Uma dor invisível
porém tão debilitante, que se usa de sua própria imaterialidade para nos culpar por deixá-la criar
raízes, e ao mesmo tempo nunca se estabiliza por completo, atormentando o próprio estado da
vida que, por instinto, insiste em reagir e prolongar um conflito torturante que em seu cerne
guarda, segundo Camus, o único problema realmente sério da filosofia.
Não surpreende a quantidade imensa de poesia já redigida a partir desse estado de
arrebatamento emocional tão interiorizado, devido à própria subjetividade experiencial do gênero
lírico que lhe faz excepcional em expressar aquilo que não podemos descrever. Talvez apenas a
potência do amor romântico consiga se equiparar ao monstro do desespero no que se refere à sua
capacidade de inspirar os poetas. De todos os aspectos deste processo mordaz já se fizeram
versos: desde a turbulência resultante da vida que insiste em se negar até a apatia das almas já tão
surradas por tal conflito que negam qualquer tipo de emoção na tentativa de se poupar da dor.
Claro, a depressão é uma condição de saúde complexa e variada, e não nos cabe aqui
diagnosticar quaisquer autores dentro de qualquer quadro clínico (e no que se refere a seus
eus-líricos, estes já o fazem por si só). Mas através dos aspectos narrativos da lírica, tão
proficientes em transferir estados emocionais, é praticamente impossível não encontrar algum
veio de identificação entre vários exemplos da arte e certas complicações mentais já bastante
reconhecidas pelo campo da psicologia, mais ainda quando tais complicações também nos são
familiares em um nível pessoal. Além disso, não deixa de ser recorrente no imaginário cultural a
própria associação dessas condições ao fazer artístico em si, em níveis praticamente
estereotípicos: muito se apresenta a figura do artista depressivo e problemático, da arte
verdadeira sendo apenas aquela que expressa a persona de tal entidade, e muito também a
carapuça encontra-se servindo (vide a citação que abre este ensaio). Em uma carta para um
amigo, Kafka escreve:
Eu acho que devemos ler apenas o tipo de livros que nos ferem e apunhalam. Se
o livro que estamos lendo não nos acorda com um golpe na cabeça, para que
estamos lendo? Para que nos faça felizes, como você escreve? Bom Deus,
seríamos felizes precisamente se não tivéssemos livros, e o tipo de livro que nos
faz felizes é o tipo de livro que poderíamos escrever nós mesmos se assim
tivéssemos. Mas precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que
nos aflijam profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a
nós mesmos, como ser banido para florestas longe de todo mundo, como um
suicídio. Um livro deve ser o machado para o mar congelado dentro de nós. Essa
é a minha crença. (KAFKA, 1904. Trad. livre)
people so tired
mutilated
either by love or no love.
A terceira parte expressará as mensagens depreciativas que a nossa própria mente dispara
contra nós:
III
(...)
Por fim, nas oito estrofes finais que compõem a parte IV do poema, a crise depressiva se
mostra no ápice da sua turbulência. Agora, a reflexão quase que totalmente abandonada, o
eu-lírico sofre e maldiz a tudo, encarcerado no estado em que a própria consciência da existência
é fonte de uma dor agonizante à qual as próprias chamas do inferno seriam preferíveis, mas
também em que a própria condição de ser vivente, ludibriado pela natureza a assim continuar,
não lhe permite nenhum desfecho derradeiro a respeito dessa dor.
Todo este passeio pelos diversos componentes do desespero e as várias formas nas quais
ele se manifesta em uma mente debilitada lhe exprimem da forma mais compreensiva e
relacionável das quais já observei na lírica. Além desse aspecto, o próprio conflito entre a
vontade de morrer e sua negação é apresentado por Augusto dos Anjos não como uma forma de
resistência ante o horror do nada mas como uma manipulação da nossa própria natureza que
insiste em nos controlar mesmo se isso não nos fizer mais sentido, e, ao meu ver, é nessa
abjuração terminal de qualquer possível felicidade na subsistência que se encontra a expressão
mais verdadeira do sentimento do desespero depressivo.
Referências bibliográficas:
ANJOS, Augusto dos. Eu (poesisas completas). Paraíba do Norte: Orris Soares, 1920.
BUKOWSKI, Charles. “The Crunch” In: Love is a dog from hell. HarperCollins e-books, 2009.
KAFKA, Franz. To Oskar Pollak [January 27, 1904]. In: Letters to Family, Friends and Editors.
Londres: John Calder, 1977.
ROSENFELD, Anatol. “Os gêneros épico e lírico e seus traços estilísticos fundamentais” In: O
Teatro Épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985.