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PENITENTES E SOLICITANTES: GENERO, ETNIA £ PODER NO BRASIT, COLONIAL Lana Lage da Gama Lima lurropugao \ nes que se delineasse uma Histéria de Género na Historjografia brasileira, ela incorporagio do conceito cunhado, nos anos 70, no bojo do movimento ‘ominista norte-americano (Scott, 1991), 0 debate sobre a condigéo feminina no Nrasil esteve em boa parte atrelado as discussées sobre o modelo familiar patriar- il, no campo que se convencionou chamar de Histéria da Familia. Preocupados em caracterizar a estrutura familiar na sociedade brasileira, os pesquisadores vinculados a esse campo (Dias, 1984; Corréa, 1982; Costa, 1977,1979; Samara, 1981,19832,1983b,1996; Silva, 1982,1984) dirigiram ve- vmentes criticas a autores, como Gilberto Freyre, Anténio CAéndido, Caio Prado Iinior ¢ Sérgio Buarque de Holanda (Freyre, 1975; Holanda, 1971; Prado Junior, 1976; Souza, 1951), por sua énfase, considerada excessiva, no predom{nio da lumilia patriarcal ¢ na conseqiiente posiggo submissa da mulher no periodo colo- nial. Mas € preciso reconhecer que Gilberto Freyre e Anténio Candido, contra quem recaftam as maiores ctiticas, relativizaram suas afirmagées. Assim como Gilberto Freyre ndo negou a existéncia de outras formas de orga- nizacéo familiar,’ Anténio Candido chegou a chamar a atengao exatamente para o fato de varios autores exagerarem a submisséo da mulher na sociedade colonial. Alerta repetido, ao longo do tempo, por outros estudiosos, como Russell-Wood, que chegou a afirmar que “[...] nenhum aspecto da Histéria do Brasil recebeu tratamento mais estercotipado do que a posigio da mulher e a sua contribuigio para a sociedade € a economia da Colénia” (Russel-Wood, 1977, p. 1). Essa visdo estereotipada do papel da mulher na ¢poca colonial esta atrelada iddia da familia patriarcal como “[...} um tipo fixo onde os personagens, uma vez Hisroria, MULHER EPoDER — 199 definidos, apenas se substituem no decorrer das gerag6es, nada ameagainl a hegemonia”, como aponta Mariza Corréa (Corréa, 1982, p. 5). Eni Samant te bém sublinha a permanéncia desse modelo como “[...] exemplo vélido ¢ edi para toda a sociedade brasileira, esquecidas as variagdes que ocorrem na et iuhi) das familias em fungio do tempo, do espago € dos grupos sociais” (Samar, 14h p. 17). E significative que o modelo de familia patriarcal e da mulher reclusa ¢ sul ainda persista, ao menos no senso comum, como representagao do pasado vlad brasileiro, apesar de se mostrar insuficiente para dar conta da diversidade chav 1a gies familiares e de género daquela época. Afinal, as pesquisas tem demonstracla gj nem todas as estruturas familiares foram patriarcais na Colénia, como tambén Ha todas as mulheres viveram em situagdo de reclusio e submissio. Inicialmente, € preciso lembrar que esse modelo foi construfdo a partir du wag me da organizacao familiar da classe dominante, descrita com cores fortes par Ulf berto Freyre. Mas a figura do pater familias nao d4 conta da vida familiar dos 1iahy Thadores livres, forros e escravos, assim como a imagem das sinhds e sinhasinhty recolhidas na casa-grande, néo reflete a vida cotidiana das mulheres pobres. Meng considerando as familias da classe dominante, o modelo acima referido nao tralwp toda a realidade vivida, como jé apontava Anténio Cindido, ao chamar a atenyl também para o que significava cuidar da casa para as senhoras de engenho. Ie cram, na verdade, gerentes de unidades de produgio praticamente auto-sustent veis, que deviam dirigir e vigiar o trabalho de um grande ntimero de escravos, cin} nhadas nos mais diversos servigos voltados para a subsisténcia da propriedade, twtel que exigia considerdvel poder de deciséo. Além disso, muitas mulheres, 20 se Wine rem vitivas, assumiam a frente dos negécios do marido falecido. No entanto, ainda que relativizado pelos seus préprios defensores, ¢ conlene do pelas pesquisas, esse modelo de relacées familiares ¢ de género se mantowt como representago da sociedade colonial, como indica Eni Samara (1996, p) I A.viséo estereotipada da condigio feminina e o quase desconhecimento da sua atuagfo na colanivayie do Brasil, serviram para mistficar por geracées a atmosfera rigida e autoritéria das ‘familias puttin oh ea exclusio das mulheres des processos de tomada de decisio. Ronaldo Vainfas (1989) apresenta uma interessante pista para a discussio dee questo, 20 apontar que, a0 enfatizarem o papel da familia patriarcal na sociedad colonial, Gilberto Freyre ¢ Anténio Cindido estavam preocupados fandamentalinwn te com as relages de poder e nao com a estrutura familiar, Nesse sentido, nenhinma parcela da sociedade colonial, esteve “{...] alheia ao poder ¢ aos valores patriarcan’, inclependente do tipo de familia em que estivesse inserida (Vainfas, 1989, p. 110) Ao desvincular 0 patriarcalismo da estrutura domiciliar, tomando-o comm modelo de relagées de poder e conjunto de valores, Vainfas nos permite compre 200 Giivan Verona pa Stiva + Mania Beatriz, NapeR * SeuasTi40 PIMENTEL FRANCA hi melhor 2 permanéncia da familia patriarcal como modelo de refeséncia para wvligoes de género, que séo as que nos interessam mais particularmente, Essa ivvdle andlise pode ser corroborada por uma leitura menos preconceituosa das vs ctiticadas petos pesquisadores vinculados & Hist6ria da Familia, Além de reconhecer a existéncia, na sociedade colonial brasileira, de outras swiss de oxganizagto familiar, que qualifica como “parapatriazcais, semipatriarcais wvuno antipatriarcais”, Gilberto Freyre aponta o fato de que a organizagio fami- v puttiarcal, entendida como elemento fundamental do estilo de vida das mino- dlominantes, constituiu modelo seguido por toda a populagio: + sjneseio nftida desse familismo nos parece a generalizagio, no Brasil patriarcal —hojea desintegrar- ‘ito entre gente moradora de casas de peda e al como entre mozadores de casa de taipa, ce barro * jullsa, isto & entre todas, ou quase todas, as camadas da populagfo, de sentimento de lronra do ‘n-com relagio & mulher (esposa ou companheira) e &s filhas mogas. Sentimento a que se devem uetasas crimes (Freyre, 1975, p. 65). Iissa afirmacao € muito significativa, pois, além de indicar 0 caréter ideotdgico ; as penitentes a denunciar, apresentam outros dados sipltasee epee 554% delas, foram escritas ¢ encaminhadas por clérigos ¢, embora no i a ae eram confessores, pode-se supor que o cram, pois dificilmente matéria to da seria tratada com um padre fora da confissto. r ie nao especificam por quem foram aconselhadas, 40 fo- “ i jiotia homens, ram feitas pelas préprias solicitadas e 21 por pessoas Hips, ana soe homens oe ae - i ra 0 tinico familiar envolvido (Lima, 1990). s entre os quais se encontia 0 tinico f i 9). Meno, ati casos, a acéo de outro confessor podia se fazer sentir. Quando Francisco Félix Hisrowa, Mutmer BPoDER — 205 denunciou, em 1746, no Piaut, o Padre Valentim Tavares de Lima de haver shh tado Joana de Souza, explicou gue a solicitagio ocorrera havia dois anos ¢ que i denunciara antes por inadverténcia, até que “dande conta” ao seu confessor, sit da obrigagio de fazé-lo ([AN/TT/IL. Caderno dos Solicitantes 26; 119). ‘or veres, consegul : 5 dentincias que fornecem essa informagao, 15 foram feitas em mien de um ano apés a solicitagéo; 21 entre 1 € 4 anos; 12 entre 5 ¢ 9 anos; 9 ents e 12 anos; ¢ 3 entre 13 € 16 anos. Ha, ainda, trés dentincias feitas 20 anos aj faro, ¢ mais trés ocorridas 30 anos depois. Em outras duas, as mulheres inleim simplesmente terem sido solicitadas havia muito tempo. imissées proporcionavam &s mulheres a oportut de se confessar a outro sacerdote que no 0 péroco ou capel4o responsivel yl fieguesia em que habitavam, e que as havia solicitado, Entre os anos de 1/1 1765, pelo menos 34 confessores foram denunciades por missiondrios. Um caso interessante, que demonstra o empenho, as vezes exacerbail, th missiondrios nessa tarefa, ¢ 0 de Frei Antonio do Extremo, que percorren, rut 1740 e 1753, os sertées de Golds, Minas, Mato Grosso Sio Paulo, chegamt a Colénia do Sacramento (Hoornaert, Tomo I1/1). Frei Antonio denunciow «ual casos de solicitagao, entre os quais um apresenta um deralhe intrigante, A solv da, apés escrever do proprio punho a carta-dentincia, procurou o comissivie ja dizer que tinh escrito “muitas palavsas que ndo passaram na verdade e s6 iim por satisfazer ks persuasGes do padre missiondrio”. Acusou, entio, 0 fade ded pois de ler a carta original, dizer que “nao estava boa € que acrescentasse”, 1 ef fea, embora no se lembrasse exatamente das palavras que usara. Conlisaulg depois com um tetceito sacerdote, este a repreendera, mandando-a retrain com 0 comissério. Os acréscimos exigidos por frei Antonio do Extremo serviam para cara Wit indiscutivelmente 0 caso como solicitaggo, pois, segundo a moga, o acusails ay nas the dissera na hora da confissio que fosse & sua casa porque queria lle hala Mas, na dentincia, afitmara que ele Ihe fizera declaragées de amor, petguntambte The onde dormia e querendo saber se na sua camarinha tinha janela por wl entrar, Conta ainda a solicitada que, antes de procurar 0 comissétio, reli a suposto solicitante 0 que ocorrera, perguntando-Ihe por que a chamara 8 st + 4a © padre respondeu que era para aconselhé-la a ndo casar com corto mogo ¢ 1H dou-a retratar-se (AN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 26: 352). Fossem ou nao justificadas as desconfiangas do missiondrio acerca dis unten ges do confesson essa complicada histéria mostra como a dindmica da peiqule Gio aos solicitantes abria espago para a reagio feminina. Mas, se, por um li 206 Giuvan Venvurs ba Sitva ¢ Mania Buaratz Naper * SeeasTiéo Piaewrst, Beane 1 mnissionétio incentivava e até agravava as dentincias, por outro, os acusados stent atuavam junto as mulheres, tentando dissuadi-las de denuncis-los, como ut outro caso, também revelado por frei Antonio do Extremo. +) missiondrio comunicou ao comissério do Santo Officio que, em confisséo, nutheres haviam acusado padre Antonio Ribeiro da Cruz: uma delas, de ‘us aos convites que ela propria the fizera na confissio, do que decorreu tezem uno trato Heito durante seis anos; outra de ter sido solicitada por ele. i» dia em que oui essas contfissées, recebendo das mulheres licenga para fazer ‘Iiifucias, frei Antonio do Extremo foi almogar em casa do vigirio Bento de sinqu Freitas, Af encontrou o livro Félie Porestas © pos-se a Ié-lo, até ser chamado cv mesa, deixando © livro com a folha que estivera lendo marcada com uma 1 tua, Passados oito dias, padre Antonio Ribeiro da Cruz. procurou 9 missiondtio, siulo das cartas er que as mulheres the retitayam a autorizagao para denunclar 1 nome, por intencionarem procutar diretamente 0 comissitio. Hsclarece 0 wnis{tio que, a0 entregarlhe as cartas, disse © acusado que o vigitio Bento de vino Heitas soubera, pela folha dobrada do livro, que o frade estivera lendo sobre ciactia da solicitagio e o alertara para que, se tivesse alguma culpa, “cuidasse de a vocliae”s por isso ele procurara as ditas malheres ¢ hes pedita as cartas. \ histGria causa estranhamento, pois ndo vemos muito sentido no faro de o clo yevelar ao denunciante suas estratégias para inocentar-se. De qualquer “ln, mesmo sem a licenga, que afinel Ihe fora cassada pelas mulheres,” 0 missi- sum procuron o vigésio da vara! — na falta de comissdrio ~ ¢ depés judicialmen- lac 0 que ocorrera (IAN/TT/IL,Caderno dos Solicitantes 26:358). ise caso mostra que, se, por um lado, as mulheres encontrayam apoio no juin clero para denunciasem os solicitantes, por outro tinham que resistir 2 vw dos acusados, que hes dificultavam a reagéo, como se verifica na da hist6- \ vwida pela crioula forra Caterina Alvases Mousinho, que teve a coragem de ‘ aaiciat o vigdtio da vata de Sao Joo d’El Rei, ©) missionario frei Luis Maria de Fulgino, que promoveu a acusagio de cinco he nantes nas Minas Gerais, entre 1746 ¢ 1755, ouvindo Caterina em confissio, vroatu da obrigagéo de denunciar o padre José Bernardo da Costa, vigirie da |p solicitar e perseguir sua filha adolescente, de nome ‘Theodora. Para fazer viinela, a mulher procurou 0 pdroco da Igreja de Santo Antonio de Val da ‘olule, que, imediatamente, percebeu a gravidade da situagdo em que se encon- |v enwolvido, Tanto que, ao esctever, na falta de comisstrio do Santo Oficio no 41 aw vigério-geral"' Lourengo de Queirés Coimbra, deixou claro que tivera a somupagio de advertir vétias vezes a negra de que aquilo “nao era brinquedo de ving; que s6 dissesse a verdade pura’. Mas, acrescentou, o fato & que o caso jd vile dominio piblico. O vigirie da vara, como relatou Caterina, além de solict- vu, cmenina, vivia importunando-a na rua e chegara « oferecer-lhe vinte oitavas de uw pela Bilha. Hisvona, Muisier Epoore — 207 Por outro lado, 2 menina, donzela, vivia sob guarda de seu pai ~ que» branco ¢ tinha titulo de capitio -, 36 saindo de casa para ir A missa em companhie da mie, que nio morava com cles. Em suma: tinha bom crédito ¢ teputagio, 0 que dificultava qualquer argumento em favor do vigitio da vara. ‘Assustado com o fato de ter que incriminar uma autoridade da Igreja, opin co ainda procurou o pai da garota, aconselhando-o a casé-la com certo moye pretendente, pai entendeu o recado e insistiu para que mae e filha retisswm @ queixa, ameagando levar Theodora para umas lavras distantes do arraial, De nada adiantou, Caterina persistiu na acusaciio, o que levou o préprio vigtrio da vita ¢ intervir, chamando as duas & sta casa com ordem de prisio e obrigando a meving a depor judicialmente, longe da presenga da mae, que ficara em outra sal, Segundo o paroco denunciante, Theodora confirmara a solicltaglo, miso wh giro da vara forjara, em sua prépria defesa, wma cercidio falsa, com quatro tae munhas, que permancceram atras de uma cortina na hora do depoimento, A van ido dizia que a menina, a0 depor, acusara 0 paroco de té-la induzido a 1 une falsamente o vigirio da vara, em troca de dois escravos. Como se pode ver, os temores do piroco se confirmavam e a corda puletle arrebentat, como sempre, do lado mais fraco. Garante entio ao vighrio-geral ju isso nfio passava de mentira, ¢ que mie ¢ filha estavam dispostas a escliteet 4 verdade publicamente na hora da missa, Com o agravamento da situagio, o ji Theodora acaba por afasté-la do arraial, enquanto o vigério da vara corria A Marit com a declaragio, supostamente falsa, com a qual, segundo 0 paroco denun: iantt pretendia “fazer-lhe a cama ¢ tiré-lo da igreja” (IAN/T'T/ TL, Caderiww dug Solicitantes 30: 56). ‘A histéria de Caterina € muito significativa, pois mostra uma crioula lum § uma menina mulata, sendo capazes de enfrentar ndo somente as autoridasles the sidsticas, mas também o patrio poder, nesse caso, de um homem branco + We posses, que, mesmo assim, se acovardara em ver. de defender a honra de si tlhe Taiver porque, nesse caso, a menina fosse bastarda ¢ filha de uma negra. Qutra mufher que se mostrou mais corajosa do que o marido na la de enfrentar as afrontas cometidas por um clérigo foi Maria Pereira. Seu inlay crioulo forro como ela, tentou impedi-la de denunciar o Padre Cosme Mette dt Silva, dizendo-lhe “[...] que nao falasse nisso, que nfo era cousa em que Lilse* ‘Ainda assim, por ser mulher casada “[...J e ndo poder sair fora, senio «01 96M marido”, ela pediu em segredo a outro confessor que fizesse a dentincii, nu a submetendo 3s ordens maritais (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 30: 14), Por vezes, os sacerdotes chegavam as vias de fato, no afi de impedir as nulls res de denuncid-los, como fez frei Sysnando Nunes de Quadros, vigdrio «la www agio de Urubu, na Bahia, no ano de 1750, com Ignécia Duarte, mulher sale que, 20 ser solicitada, retrucou que “[...] se ele néo a confessava por esse mativu ol se levantava e havia de dizer publicamente o que ele estava de todo divewlat, 208 Gavan VENTUna pa SUVA * Maria BEATRIZ NADER * SraassiAe Pimenrret, Eustirs Intimidado, o Frade se recompés, terminando de ouvir a confissio, mas ndo cardou vin vingar-se, mandando que dois negros dessem uma surta na mulher, que ficou uherta de “pisaduras e feridas no rosto, quase cega, doente em uma cama’ (IAN/ 1 TL, Cédice 5670, Caderno dos Solicitantes 31, p. 162-231) ‘Além de correrem riscos desse tipo, as mulheres que resolviam denunciar os sllcitantes viam a sua vida devassada pelo conjunto de inquirigées destinado 2 esta- Inlecer o “crédito da testemunha”, Nesses inquéritos, somente homens eram ouvi- slos,!2 devendo atestar se as denunciantes eram pessoas de bom procedimento, repu- slo e verdade e, portanto, se thes devia dar crédito nas dentincias que faziam. As respostas deixam clatos os critérios usados nessa avaliagio: “[...] sto pessoas « melhor procedimento que tem esta terra, muito honestas e sisudas e de muita conlade pois sendo filhas de pais que as criam com reputagio e recolhimento |.” : “LaJ siio pessoas de crédito e boa reputacéo vivendo com boa opinido, uma sin casa de seu irméo ¢ outta em casa de seu pai com muita modéstia ¢ honestida- lec julga se deve dar inteiro crédito aos seus ditos (..]” Ow ainda: “L...] como ago onhecia nao disse nada do sew bom ou mau procedimento, mas o devia avaliar jlo de seu irmAo Francisco Gomes, que nfo pode deixar de ser bom o da dita ‘atin Gomes” (AN/TTAIL, Cédice 8174). Ou, ao contrario, “[...] sabe de cidn- urcetta que é de mau viver no seu procedimento pois vive fora da companhia de on marido” CAN/TTMIL, Caderno dos Solicitantes 31, p. 162). ‘As oito indias que depuseram contra o padre Ventura de Albuquerque, pro- waado em 1764, foram colocadas sob suspeigio por varios depoentes, apenas ilo fato de no serem brancas. Um deles esclatece que, apesar de nada saber que ‘imabonasse a conduta das mulheres, era de opiniao que ndo se devia dar-lhe tidite em juzo ou fora dele porque, pelo conhecimento que tinha da “hago ulin’, sabia “[.u) serem pessoas de procedimentos vis, de pouco crédito € costu- ula a mentir como também serem muito maldosas, de ma consciéncia, costu- wurlas a faltar a verdade ¢ levantar testemunhos falsos”. Nesse caso, 0 Tribunal se mostrou bem mais coerente ¢ sensato que o depoen- vs, 40 afirmar que + | ow debilidades que as testemunhas opGem ao crédito das indias fundam em uma generalidade idente a toda nagio, 0 que ¢ inadmissivel porque entéo se seguiria que nenhurma poderia depor sa gtiro, 0 que é alheio hs disposigées de direito, por nde serem compreendidos ao élite proibitsrio, e + hicontedtio d praxe, ainda deste eribuneal, que se no as considerasse capazes, nfo mandaria perguntar, sutilicar as testemumas [..] IAN/TTAL, Cédice 5670). Assim, o padre acabou condenado por solicitagao, apesar dos preconceitos loniais. Histoaia, MuLHR EvooEn — 209 As negras ¢ mulatas softiam a mesma sorte. Depondo sobre o crédito de MA nica, parda e escrava, José Mora de Aratijo afismou com desdém: {..J com sens filhos, cujos pais ignora cle testemurha porque nio é casada [..] porém nia sabe mesma soja mentirosa nem levancasse falso testermuntio [..] mas tem ele testemunha para si que a dig Ménica como mulata que é escrava nio falaria verdade por ser semelfante easta de gente sciyo propensa a falar mal de qualquer pessoa sem excegio alums. A concessiio de crédito a mulheres dessa condigao constitufa excegao. A de nunciante do pdroco da freguesia de Parnagua, no Piaus, foi apresentada por lian cisco Xavier da Rocha, que encaminhou sua dentincia, da seguinte maneira: de Souza, casada, com sua casta de parda, porém com estimagio e tida por vena deira”. Sem duivida, contribuiu para esse julgamento o fato de Joana ser casula portanto, inserida nos padrées sociais desejaveis e, sobretudo, apesar de pane, filha do coronel Jodo de Souza (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 26, p. 11) J& Domingos Vianna, 2o denunciar “de ouvida” as solicitagdes de padre Pedi dt Silva, explicou que no o fizera antes porque uma das testemunhas era escrava, “ie pouco ou nenhum crédito”, e da outra nfo se lembrava bem quem fosse, mas estave certo de que “nao foi pessoa de suposigio ou crédito” pois seria “ou indio ou esctavy, gente de muito pouco crédito” (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 27, p. 16M!) As vezes, porém, 0 preconceito abria frestas permitindo que algumas denune! antes fossem acreditadas. Assim, 2 escrava baiana Antonia Barbosa teve sua denin cia considerada verdadeira, apesar de ser “[...] mulher preta mundana, como 0 si as demais negras da terra” ([AN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 19, p. $82) depoimento de Antonia Har considerado verdadciro também por ser cla “[...] muito ladina e com enten dimento com termos que se lhe pode dar crédito a seus ditos’. Algumas mulher reconheciam seus préprios limites para fazer a dentincia nos moldes exigidie Domingas Cardosa, preta escrava, casada com um mulato forro, ao denunciat lt Euzébio dos Anjos, mercedario do Maranhfo, desculpou-se por ndo saber precisir « data em que isso aconteceu “[...] por ser uma preta, que ndo atende com tania cuidado a eras e a tempo” (IAN/TT/IL Caderno dos Solicitantes 19, p. 582). Mas, se as diferengas culturais dificultavam a determinacio da data da solivt taco, nio impediram, contudo, que as negras soubessem que os confessores, 11 solicitarem-nas, estavam infringindo cédigos morais ¢ religiosos, e algumas cheya vam a repreendé-los abertamente, A mesma Domingas Cardoso, que se atrapallia va com as datas, ao denunciar outro confessor, padre Thomaz Lourengo de Aguisl, contou o seguinte: na véspera da desobriga, & noite, o pajem do vigatio viera A sua casa com um recado para que fosse & igreja, pois o padre queria falar-Ihe. A negra nao foi, comparecendo apenas na manhé seguinte, para desobrigar-se. © padre a ouviu de confissio sentado em um banco ¢ como ela acabasse de contar os pecan, 210 Gavan Verrusa pa Sitva + Mania Beatniz Naper * Sepastiso PIMENTEL FRANCO | imuintou se nao tinha mais, Bla respondeu que era s6, ¢ ele atalhou: “Tu niio ve iulras da pega que me fizeste, na0?”, dando-lhe em seguida as peniténcias ¢ 2 sonlvigio. Acabada a missa, apés ter comungado, Domingas foi para o rancho em que somaya com 0 marido ¢, para sua surpresa, naquele mesmo dia, recebeu a visita do sitio. No meio da conversa, ela perguntou que histéria cra aquela de pega, tra- unlo os dois o seguinte didlogo: lic mandei chamas, por que nio fostes? Porque ia me confessar © no havia de ira semnelhante chamado. Nio subias para que eta - Sin, Aquelas horas, que pedia ser mandar chamar uma mulher casada, que nao tinh a seu mario? T's muito escrupulosa [replicou 0 padre como fizendo admiragie ou desprezo irénico). Ainda que state algun ato desonesto isso nao importa antes da confisaos leva- para a confisséo (LAN/TTAL, } stun dos Solicitantes 27, p. 188). Maria das Neves, preta casada com Carlos da Silva, branco, morador no Arrai- | ilo Boqucitio, freguesia de Francisco das Chagas em Pernambuco, 20 denunciar ine padse Manoel Lopes da Costa a havia solicitado, pegando-the “nos peitos ¢ | beigos convidando-a para atos desonestos”, conta que 0 repreendeu por ser wpuele lugar impréprio para tais maldades”. A explicagio dada por Luzia, escrava uola do capitio Hierdnimo de Albuquerque, para o comportamento pouco re- smendavel do padze Manoel Cardoso de Andrade, foi ainda mais reveladora da suusciéneia critica das mulheres, a respeito dos solicitantes. Inquirida como uma Iv mulheres solicitadas pelo capeléo do Engenho do Cunhati, Luzia afirmou que ajava ndo ter 0 dito padre “[.u] muito assento no miolo pela freqiiéncia que tuba de solicitagées no confessiondrio” (AN/TT/IL, IAN/TT/LL., Caderno dos wnlicitantes 27, p. 167 € Caderno dos Solicitantes 31, p. 16). v. brancas de boa condigio socia ; im a batreira do siléncio e denunciar os agtessores significava colocar em isco a wit prdpria reputacio. aeanta cavinda ao comissrio do Santo Oficio, em 1792, por padre José Cor wit de Queirés, da Capitania de Golds, mostra como os solicitantes costumavam defender acusando suas vitimas, O padre fora denunciado de haver solicitado Maria Francisca, filha de Antonio Francisco de Barros, que assim relata o aconteci- lu: *“Resistindo-the a penitente ele a quis violentas, com desosdenado ¢ furioso uupeto de que resultou grande escindalo as pessoas que o presenciaram”. Com Isito, a0 ouvitem os gritos de Matia Francisca, que se achava a sés com o padre, Historia, Muther eroper 211 num dos cémodos da casa, as pesso: al ila, - 8 Ci s da casa, as pessoas correram a acudi-la, deparando-se cum @ confessor “atracado na moga com tio cega fiiria, e rasgou a sala”. ” a ‘ga fiiria, que lhe rasgou a . Pege flagrante, o sacerdote defendeu-se da seguinte forma: Sendo vigitio ia is a do ghia Eegu ce tio cs ahi, ¢ pela disedncia de alguns moradores fui desobrigat im mab a ond sachaea una llr coda guava om bstte asied nes estas cont cada glide humans com alguna inadverténciasucedeu fazer en na gto desoncet val suns pate pndendaseendo-sconfea, de que logo cave en mit ive stan pest eat en we anode de me aeusr «con paragem ¢ sent bstancameate: ono pute ogo Fae por cao ie is queria saber, que os som %s fais tccaments, © dito padre Ihe fez com 0 dedo ages isinuativn mo se faziam”. Nao satisfeito. hs . 0 sacerdote perguntou-lhe, ai i -lhe, ainda, se tinha pensamentos torpes com os confesso a ; res ¢ se néo tivera alguns com ele prdpti ver que cla ia levantar-se, disse-lhe “ elierenalar , disse-lhe “[...] que no estea a pa anhasse o fazer-lhe ths ver que ¢ ; semelhan- perguntas, pois o fazia, por saber que as mulheres so vergonhosas em explicat naceot Ba ae ha na confisstio aquelas matérias”, Em sua dentincia, a moga obsetvava que 0 pad ‘estava sortindo nestas cousas ¢ perguntas". aes Comprecnsivelmente, a moga fica: ‘turbada com 0 ontecel e impr mente, a moga ficara per om © que aconteceta, o que fer com que © confessor que encaminhou a dentincia, frei Manoel de Sao Diogo, do cia, frei Manoel de Sao Di Convento de Santo Anté: tase a essa ragaio e ela estaya sendo nio, jun a essa a observ: s de que ela esta cl “ vexadla emai eco! la a muito y pelo deménio". E, mesmo reconhecendo a seriedade da vitima, nao deixou de abrir uma possibilidade para a defesa do acusado, alegando que “[...] bem poderia ser ilusdo do mesmo [deménio] o referido na de inda Igasse 0 iio] 9 re! na dendncia, ainda qi i a ue jul contr: re ve m ; pre ‘ivio por sempre achar Joana cm seu juizo perfeito todas as vezes em que preci sou falar com ela” (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 30, p. 356) Outros s s, ai 0, - . itros sacerdotes, além do padre Joao Cordeiro, se excediam nas pergun: ‘as, confiantes de que o e¢ mada ia as rome r eee ian que 0 recato do impediriam as mulhei denuncid. arda Estacia Pinta Caldeira, casada co: branco Caetano Pacheco, mo rano m4 ‘CO, neiou padre Alexandre de Almeida por dizer no confessiondrio palavras Guyay Vere . van VeNEURA Da SILVA * Manta Bravaiz Naber * Seuasrtio PIMENTEI, ERANCO | quais desconfiara, “[..] a5 quais palavras era perguntar-lhe por cousas dos wun sextiais que licitamente ela tinha cometido com seu marido, mas que estas hengantas eram com tal miudeza que @ envergonhavam, ¢ estranhava por iho this haver nunca perguntado outro confessor, ¢ flava pelos préprios nomes nos sutrumentos feminil ¢ visi” (AN/TTVIL, Caderno dos Solicitantes 30, p. 79). Também era comum que os padres ratassem com ironia, desprezo ¢ violéncia mulheres que se negam a satisfazer-lhes os desejos. Quando gece re ed repeliu as propostas de padre Bento de Souza Alvares, alegando favar-se dos scus pecados dos quais se artependia”, o confessor vrtracott que "Lu debeasse 0 azrependimento para a hora da morte ¢ que ela nha hutiores culpas e contude continuava nelas deixando o atrependimento pata a lira da morte”, Em sepuida, “se animou a querer-the levantar a saia” aproveitan- ilo-se de que a igreja estava vazia. Desvencilhando-se, a mulher saiu para a rua € 0 pndte seguiu-a, tornando a pegar cla ¢ tentar levancar-lhe a sala, quando ainda lluscia a ladeita do convento de Séo Francisco do Rio de Janeiro, em que ficava a vapela dos terceiros, onde Ana Maria fora se confessar (IAN/TT/ TL, Caderno dos Solicitantes 31, p. 208). Mas essas situagaes de violgncia nfo aconteciam apenas com as mulheres po- hes, pardas ou negras, como demonstra « historia de Quivéria Machada, mulher asada, de 34 anos, motadora do Brumado de Ibituruna, em Minas Gerais. No ino de 1754, Quitéria contou ao vigario da vara de Sto Jodo D'EI Rei que, depois ‘le confessar-se com padre Caetano, ela lhe oferecera uma esmola para que lhe rezasse uma missa, Quando ja levantar-se do confessiondrio, o padre dissera: “Tem- ine agradado tanto V.Mee. que somente por amor a V. Me, venho ser capelio dessa [bituruna’, Quitéria estranhou, retrucando: “De que sorte tenho agradado te nfo ihe conheco?” © confessor mudou entéo de assunto, perguntando quando the daria a esmola e, a0 saber que cla a entregaria a seu marido para Ihe dar, objerou que havia “de set pela sua mao porque ela que a prometera’. “Acabada a missa, Quitéria voltow para casa, situada perto da capela. A chegar, seu marido dissera que se prepatasse para item para a Fazenda do Brumado, partin- do na frente. Fazia, entio, os preparativos necessérios para a viagem, quando vit aproximar-se umn valto encapuzado. Era padre Caetano, que viera buscar « esmola. © confessor perguntou-lhe logo pelo marido e, 20 saber que safra, sentara-se 20 lado dela no banco da varanda, Quitéria fer mengdo de levantar-se para buscar o dinhei- ro, mas o padre disse que tinha tempo, pegando-the na cenda da camisa, Assustada, ‘mulher desvencilhou-se e entrou. Q confessor, sem se importar com @ presenga de seus filhos e de uma negrinha escrava, a perseguin, “[...] encostando-a na parede da casa para the fazer a vontade, sem embargo dela estar prenha ¢ Ihe pedir pelas cinco chagas de Cristo que a deixasse”, Padre Caetano, que j& perdera totalmente o contro- Jee rettucou que “[.u) pelas mesmas chagas Ihe havia de fazer a yontade ¢ descobrin- do suas vergonhas com forga pusera nelas as mios da denunciante dizendo que seu Hisrorta, Munker #popen — 243 marido j& era velho”, Debatendo-se, Quitéria conseguin escapulir, fagindo para 0 quintal, enquanto o padre, inconformado, gtitava: “Ainda apanho V.Mce. quand vier & missa”, Obviamente, a mulher deixou de ir a igreja ¢, com acentuado cinisme, o capelio chegara a perguntar a Anténio, seu filho, “[...] porque razao sua mae nia yinha 4 missa, que ele [...] nao era onsa’. “Dafa 3 ou 4 meses, adoecendo ela em tazio da prenhez”, deixara a fazendae voltara para a sua casa junto a capela e “engravecendo a doenca por razio de estat a ctianga no vencre morta, como se viu ao depois”, a familia, temendo que Quitéria morresse sem confissto, chamou Padre Caetano para assisti-la, Mas, nem diante do estado grave da mulher, 0 confessor conseguiu refrear stn luxitia ¢ cinismo. Sentando-se junto & cama, esperou-a persignar-se dizendo ene to: “[..] sebe porque voce estd dessa sorte, porque V.Mce. néo me fez 2 vontade", mais outras torpezas, Quitéria, indignada, perguntou se vinha confessd-la ou falar semelhantes coisas? Calmamente, 0 padre respondeu que nio era pecada algum e pds-se a ouvir sua confissie, como se nade tivesse havido. No enyanto, 9 comportamento do padre fez Quitéria duvidar da eficdcia de sua absolvigio. O confessor, consciente das normas candnicas sobre a validade do sacramento," res pondeu que nao se preocupasse que estava confessada, perguntando, em seguida, “LJ se Ihe prometia fazer a vontade quando estivesse boa, ao que’ eta respondeu que nfo era do seu gosto e que cle era anti-Cristo que a ia tentar”. O padre, entéo, absolveu-a notmalmente, recomendando-Ihe que nao confessasse com outro erque, se o fizesse, nZo contasse nada do que se passara entre eles (IAN/T'THL, Caderno dos Solicitantes 28, p. 27). - , Considerando esse quadro, é bastante significative que muitas riulheres, mese mo assim, tenham tido coragem de denunciar seus agressores, cuja Ousattla por vezes nfo tinha limites, inclusive aquelas que nao levavam vida téo exemplar, nem pertenciam As camadas dominantes da sociedade, como Quitéria, E 0 caso de Faustina de Oliveira, “mulher solteira ¢ dama”, isto ¢, prostituta, a quem padre Francisco Mendes, vigétio de Mogy, perguntou se nao “[...] queria se estar por sua conta, ¢ que lhe assistitia com todo o necessério”. Além de repreendé-lo por falar tais coisas em lugar sagrado ¢ posteriormente denuncid-lo ao Santo Oficio, Faustina disse-Ihe, ofendida, que “(...] nunca fora, nem pretendia ser amiga de clérigo” (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 26, p. 88). Histéria surpreendente também é a de Desidéria, crioula escrava do coronel Gon- calo Freire de Amorim, que, solicitada pelo padre Manoel Cardoso de Andrade, que intentava defloré-la em troca de algumas “dédivas’, resistiu aos seus desejos para, mais tarde, quando ja estava “desonestada”, entregar-se a ele. Depois da cépula, o capelao, decepcionado, queixou-se por ela sé ter consentido quando “jé estava corrupta” (LAN/ TTIL, Caderno dos Solicitantes 31, p. 143; Caderno dos solicitantes 31, p. 16). Outra mulher que, apesar de sua pobreza, resistiu as ofertas comumente feitas pelos sacerdotes em croca de favores sexuais, foi Luzia Caetana da Rocha. Em 214 — Giivan Venrurs pa Sitva + Mania Bearez Naver + Semas''tAo PIMENTEL Franco: Iernambuco, na quaresma de 1761, lastimou-se, no confessiondrio, da miséria em «quem vivia, “[..] earregada de filhos e sem sett marido, nem outzo algum atrimo”. ( vigitio, padre Joao Francisco Xavier Luis Paiva, pés-se, enréo, a consoli-le, chamando-a para it a0 riacho do Santo Cristo onde Ihe daria uma esmola, Des- vonfiada, Luzia fez-se acompanhar da filha Eufrdsia, jf mulher. Ao chegar, porém, lecebera um recado, de um moleque, para que fosse a outro sitio perto dali, onde « padre acabou solicitando-a “com rogos pata pecar com ela”, Ao denunciar 0 jude a0 comissério do Santo Oficio, Antonio Alvares Guerra, Luzia acrescentou «que °{..] no consentitia, nom levada do interesse do dinheiro que the oferecera jnusa querer 0 pecado” (LAN/TTL, Caderno dos Solicitantes 31, p. 84). Esses casos demonstram que CoNncLusio Esse conjunto de histérias, reveladas pela documentagio inquisitorial relativa + solicitagao, evidencia que, mesmo em situacéo de desfavordvel, numa sociedade inachista e misdgina como a do Brasit Colonial, as mulheres nao se submeteram totalmente & dominagio masculina, vinculada ao patriarcalismo, entendido como inodelo ideolégico que perpassava todas as classes sociais, a despeito de sua estru- uma vez conhecidos, certamente servirio para que, ainda hoje, constitui referencia para as relagées de género na sociedade leira e legitima, pela tradigio, a submissio feminina. Servirio também para est inular as mulheres a denunciar os casos de assédio e violéncia sexual de que conti- nuam a ser vitimas, ¢ que petmanecem subnotificados, apesar dos inegaveis avan- (os que a condigio feminina tem tido na sociedade brasileira contemporinea. Hisroria, MuLHER Feoper = 215, NOTAS 1. Gilberto Freyte admite, 20 fado do patriarcado dominante e formalmente ortodoxo, 3 val téncia de Familias “parapatriatcais, semipatciarcais ¢ mesmo antipacsiarcais”, apontando que dg ponto de vista catélico romano, essas formas nfo sio nem mesmo consideradas como organizayQgy familiares. Mas adverte que essa nfo pode ser a perspectiva do socidlogo, que deve reconhecer iil) formas diferentes de organizagio familiar, sem confunsdi-tas com promiscuidade (Freyre, 1978, 65). Caio Prado Jiinior também menciona a existéncia de um grande néimero de familias unio ndo era legalizada, alertando para que esse fato nao seja simplesmente atribuitdo & indiscipling sexual, mas seja entendido como fiuto, em grande parte, das dificuldaces para se concraic mattis rio na Colénis. Chama, ainds, a atengZo para 0 faro de que esses tnides, pela sua abundlviiy acabaram accitas na sociedade colonial brasileita (Prado finior, 1976, p. 352-353). 2, Bssa discusséo originou-se da alirmagto da cordialidade como trago caracteristico do bravilals fo, feita por Sérgio Buarque de Holanda, em Ratses do Brasil, a qual deu margem a intimeras debates (Holanda, 1971} 3. Encontramos apenas cinco sacerdotes acusados de solicitat homens, todos em meados da século XVII Essa baixa incidéncia talvez.se explique pelo fato de que eta mais fécil para os padiet terem encontros reservados com pessoas de seu prdprio sexo do que com mulheres, fazendo cam que niio precisassem arriscaz-se, cometendo um delite de foro inquisitorial; ou talvez porque centcie sem reagées escandalosas dos homens, comportamento mais diffcil de acontecer, tratando-se de mulheres, que tinham, como até hoje tém, maiores restrigées quanto a expor publicamente fata desse tipo, aré pelo medo de serem colucaclas sob suspeiggo de havé-los provocado, 4, O Cédigo Penal Brasilcito define, no art, 216-A, “assédio sexual” como: Constranger alguém com o intuico de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da s:ta condie gio de superior hicrérquico ou ascendéncia inetentes ao exercicio de emprego, cargo ou funcia, Pena derengio, de um a dois anos. Dispesitivo introduzido pela Lei n. 10.224, de 15.5.2001. 0 Projeto de Lei original previa um parigrafo tinico ao art. 216-A. Por meio dele, também cometeria © crime quem agisse: “I - prevalecendo se de relagées domésticas, de coabitagio ou de hospitalida- de: I com abuso ox violagia de dever inerente a ofleto ou ministério” [grifo nosso). Esse pardgrafo foi vetado com a justificativa de que descrevia situages que i estavam provistas, como causas especial de aumento de pena, no att, 226 do CP (se 0 agente de crime contra os costumes for ascendente, padrasto ou madrasta, tio, immo, cOnjuge, companheiro, tucor, curador, preceptor ou empregador da vitima ou por qualquer ourro titulo tem autoridade sobre cla). Essa justificativa néo é aceita por Damésio E, de Jesus, por considerar que, sem o veto, poderiam ser punidas todas as espécies de assédio sexual, “inclusive of provenientes do abuso de dever inerente a ministério religioss” (grifo nosso), considerado como assédio arfpico. Julgamos, portanto, poder assemelhar a solicitati ad turpia 20 crime de assédio sexual (Disponivel em: htep:/fwww.jus.com,br/doutrina/texto.asptid-2386). 5. Até entio, 0 Cédigo Penal atual (Decrcto Lei 2.848, de 7.121940) definia ‘posse sexual mediante fraude” coma “...] ter conjungio carnal com mulher honesta mediante fraude (Art. 215) ¢ “atentado ao pudor mediante fraude”, como “[..] induzir mulher honesta mediante fraude, 2 praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjungio carnal” (Art. 216). 6. Os neimeros absolutos sio: no século XVI ~ 610 dentincias, 35 oriundas do Brasil; no XVIML ~ 1.539 demincias, 427 do Brasil (AN/TT/ IL, Cédice 775} 216 Gitvan Vewrura pa Sitva + Manta Beatriz Naoer « Senastiao Pimenrel. Franco + ncontsamos mais 26 casos de solicitagio na Coldnia que desam efetivamente orice 3 «uitsjudicas levados a ofivo por comissirios locas, sepundo inseugées dos inquisidores de Iie mais cinco casos em que o promotor do Santo Oficio, em visa das dentncias registra sons tadetnos dos solicitantes, requeren A Mesa que mandasse fazor judiciais as acusagbes, pelts in fai deferido. Se esses casos tiverem, efetivamente, originado processos, subiriam para 47 0 sumero de solicitantes processados, oriundos do Brasil. 4. Estudos quantitativos mais recentes poclem modificar esses ndimesos, mas acredicamos, ser e-sorter as tendéncias (Lima, 1990). E preciso nio esquecer que a obrigatoriedade do sigilo sobre as matésias conhecidas em f dentincias fossem encaminha- sfissio tornava necessivia a permissio das penitentes, para que as slay. ao Santo Oficio em seu nome. 10. O vigitio da vara eta representante do bispo em sua diocese, condo, entre ouras, as fungSes Ir promover devassas ¢ inquirir pessoas, encaminhando 0s sunxirios 20 vigdtio-geral, e dar senten- juivem causas sumécias (Salgado, 1985). 11. O vigitio-geral tinha, entre suas atsibuigies, conhecer todas as causts crimes ¢ iis e jneeder contra todos que fossem contra o Diteito Candnico ¢ 2s Constituigbes do arcebispado ‘Salgado, 1985). 12. Encontramos apenas um dnico caso de mulher chamada para depor: Rosa Maciel que eps no proceso de padre Ansénio Alvares Pugas, preso em 1742, acusado de sect mo ret tno Recothimento das Macaibas, em Minas Gersis (AN/TIVIL, Mago 26, n° 256). Nao encon tcamos nenhuma mulher como depoente nos inquétitos sobre a “opiniéo do delato”, em que (estemunhas eram inguitidas sobre a vida © os costumes do acusado. 13. Inicialmente resttito 40s bispos ¢ concedido 2os padres, sob licenga episcopal, et vl do século Xs poder das chaves, ou poder de absolver os pocados susetouivimeras contovénias no scio do Cristianismo. Uma dessas questies dizia justamente respeito &s qualidades ceils Wo confessor para sua eficicia, prevalecendo a conviego de que a absolvigio independia da condura de quem administrava 0 sacramento (Lea, 1968). REFERENCIAS ALGRANTI, Leila Mezan, Honradas e devotar: mulheres da Coldnia, Condigo ferinion nos conventos ¢ recolhimentos do Sudeste do Brasil (1750-1822). Rio de Janciro: José Olympio, Brasilia: Edumb, 1993. CORRPA, Mariza, Repensando a familia patrisrcal brasileira. In; BRUSCHINI, M.C.As ROSEMBERG, F (Ong) Vivbucias: Histéria, sertalidade, imagens femininas, Si0 Paulos Brasiliense, 1982. COSTA, Iraci Del Nero da. A estrutuna familiar e doraicilidria em Vila Rica no alvorecer do stewta XIX, ‘So Paulo: IEB, 1977. Hisvoria, muukere ropex — 217 -——. 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