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CAPITULO IV DA INGERENCIA 1 Introdugio Como exposto, o resultado tipico pode ser imputado a uma omissdo sempre que o omiteate tenha um dever de garante previsto em lei, decortente de assunga0, ou da criago anterior de um tisco. Em todas essas situagdes, 0 garante responde pelo resultado como se o tivesse praticado. Um salva-vidas que deixa de salvar 0 banhista pratica homicide no omissdo de socorro porgue assumis 0 dever de proteger aqueles que usam a praia ou a piscina (CP, art. 13, § 2°, 2) O bombeiro que deixa de socorrer um ferido também pratica homicidio porque a lei exige a conduta de salvamento (CP, art. 13, $2, a) Tontee as hipdiases de dever de garamtia, alver a mais enntraversa sei aquela prevista na alinea ¢ do § 2.°do art. 13 do CP, que identifica como garante aquele que criow o risco anterior do resultado. Trata-se da ingeréncia, objeto do presente Capitulo. O dever de garante derivado da lei esti limitado pelos contornos do texto legal, que desenlha a responsabilidade e as frontciras da ago esperada. Aquele decorrente da axsunedo tem por contorno aquilo que o agente aassumiu materialmente, e seus limites $20 fixados pelo ato de assungio © se ‘mantém enguanto existente 0 cantexto da prategao do bem juridico ou do controle do foco de perigo. Nos casos de ingeréncia, o dever de garante existe quando o omitente, “com. seu comportamento anterior, criou 0 risco da ocorréncia do resultado” (CP, art 13, §2°, c). Aqui nao hd uma lei ou um ato de assunedo que delimitem 0 dever de garante. Qual a natureza do comportamento anterior que transforma alguém em garante? O risco mencionado no texto legal € um risco ndo permitido ou a criagio de qualquer risco impSe um dever de garante? Qual 6 limite € a extensio esse dever? 146 PIERPAOLO CRUZ BOTTINE Como jf exposto, nas hipéteses em que a fonte do dever de agir 6 a lei ‘ou a assungdo, 0 risco que exize a ago do garanie & alheio 2 sua esfera de “organizagio, enquanto no caso da ingeréncia 0 tisco & proprio, € criado pelo préprio garame, integra sua competéncia organizacional. Nessa situaglo, como jg ‘moncionado, nem seria necesséria uma clausula geral de adequacio tipica como a alfnea ¢ do § 2.° do art. 13 do CP, embora a previsio legal seja opoctuna para nfo deixar duvidas sobre o fato de que: “o dever de agirincumbe a quem (..) om sea comportamento anterior criou 0 risco da ocorréncia do resultado”. © termo ingeréncia, que caracteriza 0 dever de garantia em anélise & ambiguo e repleto de definigdes doutringrias, ora complementares, ora contradi {rias. ROXIN indica que a ingezéncia vem do latim ingerere, que significa o ato de meslarse em ago" O AURELIO caacterizn 0 veo igerr como 0 so dd “intervir, intrometer-se”? Ou seja, designa a entrada de alguém na esfera do outro através de um comportamento prévio. Sob uma perspectiva do direito penal, pode-se caracterizar a ingeréncia como a criagto de um risco para terceiros, que fundamenta a responsabilidade pelo resultado diante de certas condigfes.® Nas palavras de JAKOBS, trata-se de situagbes nas quais alguém introduz. um perigo ro ambito de organizagiio alhefo € deixa de revogé-lo ou impedir a produgio do resultado.! As questdes a enfrentar dizem respeito & natureza e &s caracteristicas da ingeréncia, A intengio do legislador, ao indicar a alinea ¢ do § 2.° do art. 13, foi declarar garante aquele que eria qualquer risco, de qualquer natureza, ou limita 0 dever de garantia ’ criagio de certos riscos, com caracteristicas especificas? Quais os contornas desse riseo e quais os elementos para imputar um resultado omissio que segue & sua criaglo fo as indagagOes centrais que se pretender respondidas neste apartado. 2, Propostas dogmiiticas 2.1 Introdugao © desenvolvimento da dogmitica dos crimes de omissdo impréprios se cconfunde com a evolugio do pensamento a respeito da ingeréncia, Ora a inge- réncia se confunde com a propria estrutura da omissdo imprdpria — em especial ‘em parte das propostas causalistas, que veem 0 fundamento exclusivo da respon- sabilidade penal por omissfo na criagdo de um risco anterior (supra, Cap. Ul 1. ROXIN, Derecho Pena, 1p. 899. 2. FERREIRA, Aurélio odiciondrio, p. 292 3. DOPICO GOMEZ-ALLER, Omisidn p. 841 4 JAKOBS, Accidn y omisidn, p. 15. CEADRADO RUIZ, por sua ver, define bem 1 ingerbncia como uma estrtura complexa na gual se envelagam aividades causantes do fesultado com inatividades no independemes dost. Em La pascidn p. 30. IV-DAINGERENCIA 147 2,1), ora.ela 6a origem de uma das categorias do dever de garante, ladeada por outras fontes de dever, como 2 assungdo ou 0 dever legal 2.2 Ingeréncia e causalismo A idein de ingeréncia como fondamento da omissdo iimprdpria emonta a STOBEL, que jé tratava da condute precedente como geradora de responsebi dae pela ndo evitagao posterior do resultado em meados do século XIX (1828)? esse contexto,e sob a perspectivainicial do causatismo, a ingeréncia se destacou como una forma de justifcar 2 imputagdo de um resultado & omissio, como jéexposto anteriormente (supra, Cap. I, 2.1) A relagdo causal estaria, na ‘etdade, nfo na ligagio da onissdo com 0 resultado, mas na conexio da criagiio do risco anterior da conduta precedente, com o resultado io evitado pela omis- Sto Nesso sentido, KRUG entendia como agées antecedentes tanto uma ago petigosa como o ato de assumir a protego de algo que causa sua desprotecto por butros por uma suposta confanca na realizagSo da tarefx* Assim, a0 motorista gue causa um acidentee deixa a vitima sem socomo ser imputado o resultado ‘morte, porque uma relagao causal entre o ato de ditigiro vefculo ~criando um risco ~e a lest, mediada pela omissdo penalmente relevane. A inlraglo, nesse caso, seria @ uma norma de proibedo ~ no criar 0 isco ~ ¢ nfo a uma norma ‘mandamental {A proposta eausal com fundamento na conduta precedente no prosperou pelos motives j6 indicados (Supra, Cap. I, 2.1). Em primeiro lugar, fundar a tquivaléacia agfo/omissio na ago precedente dificultaaimputagio nos casos de ‘assungio, uma vez que sera sempre necessfria a demonstragio de uma relagao causal entre 0 ato de assunir 0 controle ou a protegao e alguma desprotegéo do ‘Bem jurfdicodiamte desta assungfo © mesmo ocorreria nos casos em que 0 dever: ddeagir decorte de ei, Assim, a condita precedente poderia fundamentar a impu- tagio da omissfo apenas nos casos de riscos préprios, mas nia tem condigoes de ‘embasar a imputagio quando o dover de gaantia fr referente a riscosalhicios. 5, ‘Também indicada por KRUG (1855) 6 GLASER (1858) no mesmo séeulo. Em GIMBERNAT ORDEIG, Estudio, pp-64 141; DOPICO GOMEZ-ALLER, Omisién, p40; ‘© VON LISZT, Trad, p. 210, BACIGALUPO ZAPATER, Delios, p. 26, CUADRADO RUIZ, La posicin, p30. 6. Nesta linha, MERKEL, Derecto Ponal, p. 39. Ver, ainda, sobre o tema, TAVARES, Teor, p. 332. “Sobre o tema, ver ARMIN KAUFMANN, Dogudtica, p-254; VON LISZT, Tratado, P-210; e TAVARES, Teoria p. 150. . Em VON LISZI, Tratao,p. 211, ¢ om DOPICO GOMEZ-ALLER, Onision, p. 59. Na mesma linha, GLASER, tibém em VON LISZT, Trarado, p. 210, ‘9. DOFICO GOMEZ-ALLER, Omisién,p. 70. 143 PIERPAOLO CRUZ BOTTINI ‘Mas mesmo em relagio a0 rscos prépros hé problemas, if cits, rela cionados 20 doo subsequente, que nto si resolvdos de forma satistatria.® ‘Ainda que @ causlidade estzja vinculada 4 condta precedente de criagio do tisco, 0 elemento subjeivelevado em consideragao para fins de imputscio, por estas propostas, seria o presente-no momento da omissdo." Aquele que cause um acidente por impradénciaresponderia por homicidi dolaso se, ap6s tal fto, deixasse de socorer a viima com intengao de vé-la morte. A nosso sent, a supervenigncia do dalo io impede a imputagao do resultado a esse ttlo; no entanlo, seré necessrio conferr algum papel & omissdo posterior para que tl operacio nao impligue «admissao do dolo subsequente. Ou bem a omisszo tem algum relevo para aimputagio, ou bem deve ser descarada completamente para fins de responsabilidade,fxindo-se unieamente na ago precedente os limites das cconsequéncias penais. 2.3 Ingeréncia e a teoria dos deveres formais : A teoria dos deveres formais, que, como visto, buscot substitu a expli «ago causal da omissio por elementos normativos, jogou sombra sobre a ideia dda ingeréncia. A omissio penalmence relevante passou a ser aquel que viola deveres formats, independentemente da existéncia de wma conduta precedente. esse sentido, MEZGER, embora meneione a conduta precedente como fonte do dlever de garantia, fu aimputaso depender da identificago de um deverjuridico violado por esse comportamento. Para o anor, caberd ao intérprete buscar algo ‘mais que ume simples relagéo causal ene o agit precedente € 0 resultado, © e38e algo mais seré 2 violagao de um dever formal.” Tal assertiva significa, a n0380 ‘er, um importante passo em directo fixagfo dos contomos do risco precedente ‘que caracteriza a ingerEnci, uma vez que apenas a condute antecedente que viola tum dever, uma norma de cvddado, eria uma abrigacda de agir. de impedir & producto do resultado ou de um curso causal lesivo. No entanto, na forma jéassinalada (supra, Cap. Il, 2.2), a teoria dos deveres formais peca por se eximir de identificar elementos materiais que permitam eq ‘para a ago 2 omissao,” encontrando ainda difculdades de explicar aimputacio «em casos em que 0 omitentenio descumpriu qualquer dever legal, mas assum © compromisso de eviter 0 resultado, como nes hipéteses prevstas na linea & 10, Por todos, MERKEL, Derecho Penal, p39. M1, DOPICO GOMEZ: ALLER, Onision . 60. 12. MEZGER, Traiado, p. 314, sem, no entanto, oferecer parimetros claros para identifiear tal dever, undando-o na equitava consideraglo dos inereses prépcios do ‘brigade a evitaro resultado antjuridico. 13. Segundo TAVARES, a concepcio do dever de garante como derivada da mera Violagto dos deveres formais situa 8 omissio em um plano puramente normative, sem ‘qualquer elemento empiricamente demonsivel. TAVARES, Teoria, p. 159. Na mesma linha, DOPICO GOMEZ-ALLER, Onision, p. 20 1V -DAINGERENCIA 149 do § 2° do art. 13 do Cédigo Penal." No que se refere & inger@ncia, 0 lastro no simples descumprimento de um dever, ainda que oferega um elemento normativo ‘importante para sua estrotura, no indica nada além, de forma que nao restam claras os contornos desse dever, sua qualidade, ou sua relago com o resuliado {gue tome a onrissdo posterior relevanto, Ademais, no supera por completo © problema do dolo subsequente. Se 0 desvalor reside unicamente na condata ‘anterior, ou a inatividade posterior é irrelevante para fins de apreciagio subjetiva, =o gue esvazia 0 proprio conceito de omissiia imprépria nesses casos ~ ou sexi necessirio recorrer 20 doto subsequente, atribuindo relevancia subjetiva a.um ato nio constitutive do injusto, 24 Ingeréncia ¢ teorias do dever de garante A substituigio das teorias do dever formal pelas \eorias do dever de garante, como jé apontado, foi progressive, nem sempre caracterizando uma contcadiga0 a assungdo destas com a aceitagio das bases daquelas. A ideia de usar 0 dever de garantia como elemento central da omissdo imprépria teve por norte a manutengo de seu caniter normativo, néo derivado de um ilfeito formal, mas sustentado em elementos materiais — quais sejam, a funcio de garantia atribuida «a determinadas pessoas, seja por sua relago com o foco de perigo, seja por sua proximidade com a vulnerabilidade da vitima." Aqui, a ingeréncia deixa de derivar de uma relago causal entre resultado e ago precedente e passa a decorrer de uma condigo normativa que coloca o indi- ‘viduo em posigdo de garantia, a0 lado de outras situagGes identificadas de formas vvariadas pelos diversos autores." A primeira proposta de sistematizagao destes deveres, apresentada por NAGLER, dispde como fontes da pasigdo de garantia lei, 0 contrato ou imposicto similar, e a ago precedente.” Assim, forma-se 4 trlade incorporada em diversoe ordenamentor penais, como no brasileiro © 1 espanhol, integrada pela ingeréncia como categoria da omissio imprépria. RUDOLPHI, também ja citado, observa na ingeréncia uma posigio secundaria e protegio de bens juridicos derivada de uma perturbagdo social decorrente de uma conduta prévia do sujeito,* que pode advir de um ato prévio de desativacto cde uma instancia de protecao pré-existente (ou pela criagio de riscos que no podem ser manejados pela instincia de controle existente).” 14, GIMBERNAT ORDEIG, Eamdios pp. 159s 15, 0 teono "gana", como jt expo, fi ultado por BINDING em 1926, segundo GIMBERNAT ORDEIG, Estudios, p 12, e TAVARES, Teora, p. 132 16, Sobre 0 tema, vec TAVARES, Teoria, p. 133 11. Bm DOPICO GOMEZ ALLER. Onistin,p. 204, e TAVARES, Juare, Teoria, p 13, Ts, Cid por DOPICO GOMEZ-ALLER, Onis, p. 275. 1B. Gitado por DOPICO GOMEZ: ALLER! Omisn, p. 276. 150 PIERPAOLO CRUZ BOTTINE Tais propostas permitem identificar na prépria omisstio 0 desvalor do ccomportamento, aqui fomado como um tedo, como um conjunto que incorpora um atuar precedente que cria um dever de garante, posteriormente descumprido pela omissio, Abre-se aqui uma porta para a superaca0 do dolo subsequente Se a omissio ¢ justamente a conduta que descumpre 0 dever criado pela ago precedente, ela carregard um elemento proprio de desvalor que permite qualificar subjetivamente 0 todo, ainda que o dolo surja apenas no instante omissivo, inexis- tindo no momento anterior. Dentro das propostasidentificadas como teorias do dever de garante, aquela apresentada por ARMIN KAUFMANN merece destague. Como jé exposto (Cap. IL, 2.3.3), 0 autor divide os deveres de garantia entre aqueles atinentes 40 conirole de feces de perigo e aqueles relacionados & protec de bens juridicos, {if exbocando — ainda que sem nitidez ~ as hipéteses de deveres de controle € deveres de salvamento, que posteriormente serio retomadas nas discusses sobre aingeréncia.® No entanto,o instituto da ingeréncia em si 6 afastado como funds mento do dever de agir por proceder de uma perspectiva eminentemente causal, rechagada polo autor. 2.5 A negacao da ingeréncia A ideia da ingeréncia como fonte do dever de garante 6 rechagada por ‘agueles que propéem um retorno & natureza das coisas para identificar a estru- {ara da omissdo imprépria. SCHONEMANN, como jd exposto (supra, Cap. Tl, 2.4.1), sustenta a equiparapio entre ago © omissio ~diferentemente de ARMIN KAUFMANN o-as pelo dominio sobre a causa ou 0 fandamento do resultado Ai so serd equivalente& ago quando o omitente dominar 2 causa essencial do resultado ~espécie de dominio sobre afonte do perigo —ou a udnerabilidade’o desamparo da via? Nese contexto, nlo hi espago para a ingeréncia, Ou bem o omitente tem © dominio atual 6a causa do resultado ou sobre 0 desamparo da vtima, ou m0 © tem, pouco importando o fato de ter eriao 0 riseo com o comportamento antecedente. SCHONEMANN afirma que na maioria dos casos de relagao de 20, Nese semido, ARMIN KAUFMANN, pp. 289s. emborasjapossvl antver os devres de conte una posse ign de selvaments posterior not de prayzo ut ineent dever de controler pesigos que postam expor a peig o bem ttlad plo att, ono sugare DOPICO GOMEZ: ALLER, Onsion. p. 236. 121.” Como visio, o ator dfende que os mesma rpos penis Sk vidos pra geese omisades,enbora para as primeira sla posivel uma alequagao descrtvae para a8 mss dma adequagto nonmaitva, em SCHONEMANN, Fudaments 33. 12. SCHONEMANN, Fundanentos, . 383. Posigse smiles, como jf expose, € a de GIMBERNAT ORDEIG ¢ de GRACIA MARTIN, com algumas dvergéntas guano $s eontonos do domino. GIMBERNAT ORDEIG, Estullos, pp. 506 ¢ st GRACIA MARTIN La comin, p, 708 8. 1V-DAINGERENCIA 151 dominio existe uma agfo prévia do omitente, mas é aguela endo esta o elemento

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