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PSI col am ip. 63, jan mar 2009 “Familia é muito sofrimento”: um estudo de casos de “devolugao” de criangas Lidia Levy Ponta Universidade Catlin do Rode Jane, PUC Rio ie deJon rs Patricia Glycerio R. Pinho Marcia Moscon de Faria Yara da Infncia da Juventde edo Idoso da Comarca da Capital, Rio de Janeiro ‘lo de Janeiro, R, Brasil, RESUMO © objetivo deste trabalho é discutiras motivagdes expressas por sujitos que se disponibilizaram a exercera parentalidade através da adoglo, porém retomaram a Justiga com a intengo de entregar as eriangas que jé se encontravam sob sua guarda. Estudos sobre o tema sio escassos, porém revelam as dificuldades encontradas pelos adultos ao conftontarem 8 etianga por eles idealizada com a crianga real, Apés a realizagio de uma pesquisa documental, quando foram consultados dez processos de adogdo, constatamos que, em todos eles, as eriangas foram culpabilizadas pelo fracasso do projeto de adogdo. AS dificuldades apresentadas pelos adultos quanto a lidar com a diferenga e suportar frustragaes, a falta de vinculo, a ineapacidade de conter a agressividade da crianga e dar-The um sentido, destacaram-se entre as caracteristicas presentes nas diversas situagdes analisadas, Palavras-chave: Ado¢do; devolugo de criangas; motivagdo; parentalidade ABSTRACT ‘Family is a great deal of suffering”: a study of cases of children “returned” ‘The goal of this work is to discuss the motivations expressed by individuals who decided to adopt a child but later returned hinvher to the Justice system. Studies on this subject are rare yet reveal the difficulties encountered by adults ‘when confronting the idealized child with the real one. After a research based on court documents, where 10 adoption processes were consulted, we came to the conclusion that, in all of them, the children themselves were blamed for the adoption failure. Inthe different situations analyzed, we highlight the following characteristics: difficulties presented by the adults when dealing with difference, not being able to handle frustrations, the lack of attachment, and the incapacity to contain the child's aggressiveness and give it a meaning, Keywords: Adoption; children retumed; motivation; parenthood. RESUMEN “Familia es mucho sufrimiento”: wn estudio de casos de nifios “devueltos”” El objetivo de este trabajo es discutir las motivaciones expresas por sujetos que se disponibilizaron a ejercer la parentalidad a través de la adopei6n, pero retomaron a la Justicia con la intencién de entregar los nifios que ya se encontraban sobre su guarda, Estudios sobre el tema son escasos, pero revelan las dificultades encontradas por los adultos al confrontaren el nifio por ellos idealizado con el nifio real. Después de la realizacién de una pesquisa documental, cuando fueron consultados diez procesos de adopcién, constatamos que, en todos ellos, los nitios fueron culpabilizados por el fracaso del proyecto de adopcién. Las dificultades presentadas por los adultos cuanto alidiar con Ja diferencia y suportar frustraciones, la falta de vinculo, la incapacidad de contener la agresividad del nifio y dar-le ‘un sentido, se destacaron entre las caracteristicas presentes en las diversas situaciones analizadas. Palabras clave: adopcién, nifios devueltos; motivacién; parentalidad, o de criangas e adolescentes é regida pela de qualquer vinculo com seus pais ¢ parentes bio- lei 8069/90 —Estatuto da Crianga e do Adolescente e _Iégicos, salvo os impedimentos matrimoniais. A ado- atribui a condigdo de filho ao adotado, com os mesmos _¢0 é medida irrevogavel. No entanto, desisténcias direitos e deveres, inclusive sucessérios, desligando-o _posteriores & entrega da crianca a familia adotiva s6 se Familia & mato sofrimento’ tomam juridicamente possiveis caso o proceso ainda esteja em andamento, ou seja, em periodo anterior & sentenca (definitiva) de adogdo, Da mesma forma, podem ocorrer devolugdes nos casos de guarda ou de adogio de fato e nao de direito, quando um longo tempo decorreu antes que uma decisdo de regularizar a seja tomada, ‘A “devolugio de criangas” © suas conseqiiéncias tem sido uma preocupagdo constante para os téenicos que trabalham nas Varas de Infancia ¢ Juventude. Contudo, so poucos os estudos que abordam o tema da entrega de ctiangas e/ou adolescentes ao Juizado por aqueles que estavam com sua guarda ou pretendiam sua adogao, Na comatea do Rio de Janeiro, a equipe da Divisio de Psicologia na Vara da Infincia, Juventude € do Idoso (VIN), diante do reduzido nimero de devolugdes (aproximadamente duas por ano) que ocorria até entao, buscava entender as razbes de cada caso em sua singularidade, Nos iiltimos cinco meses, porém, um expressivo mimero (dez casos, envolvendo onze criangas) apontou questdes que originaram a elaboragdo do presente trabalho. Partindo da experiencia dos técnicos da Vara, nosso objetivo é levantar e discutir as motivagdes para a devolugao das criangas ocorridas naquele periodo e dar inicio & construgdo de um saber em tomo do tema, Nao foi possivel encontrar uma bibliografia expressiva sobre o assunto a ser aqui tratado. Dentre 05 poucos trabalhos levantados, Rocha (2000), em sua experiéncia como Juiza da I* Vara da Infancia © Juventude de Campo Grande/MS, relata que algumas familias que adotam criangas j4 com 7/8 anos, muitas veres sem qualquer conversa prévia, acabam por devolvé-las, alegando, defensivamente, que dela cuidaram, alimentaram, trataram, ¢ esta nfo soube corresponder a tal dedicagdo, possivelmente pelas tendéncias agressivas herdadas dos genitores. A referida autora especifica algumas causas comu- mente apresentadas para a devolugdo e, entre elas, destacamos uma motivago ndo relacionada ao estabelecimento de vinculos filiais, a falta de preparo € maturidade psicolégica dos guardides ou do ado- tante, € 0 preconceito cultural, que desmerece a crianga, culpando-a pelo fracasso de um projeto que no suportou 0 confronto entre a erianga ideal © a crianga real Com uma proposta semelhante & nossa, Frassio (2000) parte da leitura de processos no Juizado da Infincia e da Juventude da Cidade de Florianépolis! SC para investigar a vivéncia da crianga, quando de sta colocago em familia substituta ea dinamica da fa- milia que devolve. A autora aponta para diversos aspectos que predispdem a devolugo, como os contfitos internos das familias substitutas, o processo de separacao 59 da crianga de sua familia de origem, 0 comportamento da erianga (que nem sempre corresponde is expecta- tivas da familia) © as dificuldades dos profissionais envolvidos diante da crise que se instala no ambito familia. Weber (1999), em pesquisa sobre preconceitos acerca da adogio, constata que 15% de sua amostra consideraram correto devolver 0 filho adotive por questdes de desobediéncia e rebeldia, A autora ressalta a falta de compreensdo ¢ de humanidade diante da crianga, Os estudos realizados durante 0 periodo de habilitagdo dos requerentes t&m por objetivo verificar a capacidade de acolhimento ¢ desejo de exercer a parentalidade. Paiva (2004) comenta que as devolugdes ainda ocorrem por dificuldades de adaptagao de ambas as partes e por conflitos que se revelam na formagao do novo vinculo. A autora relembra a necessidade de um tempo para que os pais adotivos possam elaborar anova condigdo ¢ se adaptar as mudanas que advém com a chegada de uma crianga, principalmente quando se trata de uma adogio tardia; tempo igualmente necessério 20s pais biolgicos. Paiva valoriza a existéncia de um periodo de convivencia antes da adogao ser legalmente deferida, visando permitir que as dificuldades e dividas existentes sejam dirimidas. A pesquisa realizada por Ghirardi (2008) teve por objetivo verificar, através de entrevistas, alguns aspecios da subjetividade de pais adotivos envolvidos com a experiéncia de devolugdo. A autora constatou que a infertilidade pode intensificar conflitos jé existentes e gerar sentimentos de incapacidade devido a ferida aberta no narcisismo parental. Neste sentido, ao reeditar vivencias anteriores ligadas ao desamparo, a devolugdo provoca intenso sofrimento psiquico tanto nas criangas quanto nos adotantes. Segundo Moraes (2001), Juiza da Infiincia de Valinhos/SP, as devolugdes costumam ocorrer quando a crianga, ndo mais um décil bebé, toma-se rebelde © questionadora. Se a familia a acolhcu sob a ale« gago de estarem realizando um ato generoso e so- lidario, sem que um verdadeiro vinculo de filiagao tenha sido formado, a possibilidade de uma devolugio aumenta, E interessante lembrar que a expressio “filhos de criagio” marca uma realidade que foi muito comum entre nés, até meados do século passado. Algumas familias acolhiam criangas que haviam ficado érfs, ou aquelas cujos genitores ndo tinham condigdes de manter sua prole numerosa. A crianga/adolescente passava a conviver na casa de seus “benfeitores”, sem que houvesse qualquer demanda de guarda legal ou adogao. Outta situagdo préxima a anteriormente descrita é a de guarda judicialmente concedida a parentes, vizinhos, ¢ PSICO, Posto Alegre, PUCRS,» 40,1, pp. $8453, jan mar. 2009, 60 padrinhos, entre outras possibilidades, quando, muitas vezes, a crianga ainda é um bebe. A filiago e a adogao funcionam como uma fiegio legal estruturante, inaugurando para a crianga a via da sua identidade. © desejo do adulto de exercer a parentalidade & fundamental para que se instale uma reciprocidade nas relagdes construidas. Um projeto de adogao revela, paralelamente ao desejo explicitado de ter um filho, necessidades especificas de cada requerente, reflexos de suas histérias psiquicas, que repercutirdo na relagao a ser estabelecida com a crianga (Levy-Alvarenga, 1997) Quando a demanda de adogao é feita em fungao da esterilidade de um ou de ambos os requerentes, faz-se necessirio substituir 0 desejo de gerar pelo desejo de ser ‘mae ou pai, de modo a poder acolher uma crianga como filho. A adogo de uma crianga ou de um adolescente exige capacidade de adaptagdo e a realizagao de um trabalho de luto, assim como um descolamento da crianga real em relagdo a crianga imagindria. Veremos, neste trabalho, como a dificuldade de legalizara situagdo da crianga sob guarda ou do “filho de criagdo”, ja € um. indicio de que uma filiagdo nao foi construida. Se a crianga for integrada & familia como filho, qualquer crise nfo sera diferente daquelas vividas em familias com filhos biologicos. As devolugdes apontam para um fracasso que atinge a todos os envolvidos no processo, principalmente as criangas que, na maior parte das vezes, acabam sendo responsabilizadas pela decisio tomada pelos adultos. 1 Ls ino, PG. & Fata, MM, de METODO. Procedimento Realizamos uma pesquisa documental (Lakatos € Marconi, 1985) que possibilita uma anélise qualita- tiva do contetido dos processos, sem a exigéncia de contato direto com os sujeitos, constituindo-se em rica fonte de dados. A consulta aos processos, que nos forneceu o material necessério para o presente estudo, foi autorizada pelo Juiz Titular da Vara da Infancia, Juventude e do Idoso da Comarca da Capital — RU. Os dez processos correspondem ao universo dos casos onde ocorreu devolugao no periodo de novembro de 2007 a margo de 2008. Trata-se, portanto, de uma amostra intencional, dentro de uma pesquisa com fins exploratérios, através da qual buscamos compreender a questio da devolucio a partir dos registros dos depoimentos das criangas e dos adotantes. Apés uma leitura flutuante do material, 0 pro- cedimento de coleta de dados foi orientado pelos seguintes critérios organizadores: habilitacdo, idade da ctianga quando acolhida, tempo de acolhimento © |justificativa apresentada como motivo da devolugdo. © foco principal deste trabalho é realizar um estudo das queixas registradas nos processos como justificativa para as devolugdes. Para tanto, faz-se necessério compreender sua articulago com os demais dados obtidos, principalmente com a existéncia ou no de habilitago e com o tempo de permanéncia da crianga na familia substituta, TABELAI Caracteristicas dos casos de devolugdo de criangas Cases Requerete Preparacdo Crianea Tempo de Justfcaivas de Devolugio a par ia Acobhimento a Twat Tiabiagio ening, 3 anoe TO dias Menina "domonlaea, faz "bias, io aceita ser contariada 2 Muthersolteirs —Habiltago Mening, 3 anos W0dias _Difieuldade de lidar com o comportamnen 4a cranga sexualidadeprecoce maleiada fom a ato, 0 que nio seria admis 3 Casal abiltasso ‘Menino, 5 nos Y6meses Problems de comporamento da crianga 4 Casal Habiltagio Iimios: meses Menina“mensrasa e doen” © Menino, 6 anos Menino “hipeative” ‘Meni, 9 anos 5S Casal Hbiltagio Menins, 8 anos ‘meses —_Difcuhades no relcionameato com sriangs 6 Casal Sem habiiagto, Menino, poveos Samos Menino muito levado ‘Arequeronte er madtinha de meses de vide tatisme de erianga 7 Casal Sem habla Menino, anos Menino ats, ram guudides da crianga cémnascdo “Nunes houve deseo de adot-o" 8 Casal Sem habiliagi, Menino, umanoe Sanat Menino “mit desobedicnee hineatve ram guaddes da crianga dois meses 9 Casal Sem habits Menins, 9 anos meses ifculdades no relasionamento com sriangs 10 Muther sora Sem haiitag, Menino, 10 anos S.anos _Difieuldadot no elacionamento com Era guard da cringe actanca PSICO, Port Alegre PUCRS, » 40,2, pp 58-63, jan mar. 2009 Faia & mato sofimento’ ANALISE E DISCUSSAO DOS RESULTADOS Nos dez processos pesquisados, sio observadas diferengas quanto ao tempo de permanéncia com a ctianga, sua idade quando do inicio da convivéncia com a familia substituta, ea existéncia ou ndo de habilitagao dos envolvidos, Considerando a categoria habilitago, observamos, que em metade dos casos (50%) os requerentes (quatro casais ¢ uma mulher solteira) haviam passado por processo de habilitagdo, enquanto que na outra metade as pessoas (igualmente quatro casais ¢ uma mulher solteira), que estavam com a guarda da crianga, nao haviam participado do procedimento de habilitagao. AAs idades das onze criangas, quando da entrada na familia substituta, variaram de recém nascidas até nove anos, verificando-se que 70% tinham mais de 2 anos de idade. No que diz respeito ao tempo de acolhimento, este variou de 10 dias até 5 anos, sendo que, em metade dos casos (50%), esse periodo foi inferior a 12 meses, a0 passo que nos demais casos o periodo se estendeu de 16 meses a 5 anos. Quanto a justificativa alegada para a devolugo, duas, categorias emergiram, independentemente do fato dos requerentes terem ou ndo passado por um procedimento de habilitagdo: 0 comportamento da crianga (60%) € 0s problemas no relacionamento com ela (40%). Apesar da diversidade das situagdes, em todas elas esti presente uma “coisificago” da crianga, que perde sua dimensio de sujeito, transformando-se em produto descartavel. Procuramos destacar 0s motivos apresentados pelos requerentes para a desisténcia da adogao, pois parecem apontar numa mesma dirego. Assim é que observamos, em todos os casos, uma dificuldade de formar um lago de filiagio. Nossa hipétese & que as criangas foram recusadas por ndo corresponderem a um. modelo de relagdo que os candidatos a pais pretendiam estabelecer. Ressalte-se que as queixas apresentadas referiam-se a comportamentos esperados para criangas nas respectivas faixas etérias ¢ nas circunstincias de uma histéria de abandono/adogao. A andlise articulada do tempo de convivéncia com a passagem pelo procedimento de habilitago revela dados interessantes. Entre os requerentes que passaram. pela habilitagio, a devolugio esté associada ora a um longo periodo de convivéncia, ora, e em estreita maioria, a uma curta convivéncia. F ilustrativo de uma devolugdo apés curta convivéncia, o caso do casal que iniciou aproximagdo gradual com uma erianga de 1rés anos, visitando-a no abrigo. Como € de praxe em situagdes de adogdes tardias, enquanto pretendentes a uma adogio, comecaram a sair com ela nos finais de 61 semana e, posteriormente, demandaram autorizagao para pemoite, Apés quatro meses, ajuizaram o pedido de adogao, Nos dez primeiros dias, porém, procuraram. a VII alegando dificuldades no relacionamento com a menina, que ja os chamava por pai e mée, alegando que “ndo aceitava ser contrariada” Considerando os pretendentes que niio passaram por procedimento de habilitacdo, destacamos o longo periodo de convivéncia na familia substituta antes da devolugio. Esta, na maioria dos casos, ocorreu diante da possibilidade de transformar uma guarda, assumida hé muito tempo, em adogo. Convocados a posicionarem-se sobre seu comprometimento de pais diante dos filhos, recuaram ¢ demonstraram © quanto aquela crianga nao havia sido por eles integrada em um processo de filiagdo. A questdo é ilustrada por um. casal que devolveu a crianga, que havia recebido desde seu nascimento de quem a requerente era madrinha de batismo, quando esta ja estava com quatro anos, sob a alegagao de que “o menino era muito levado” ‘A requerente exemplificou seu ponto de vista, mencionando que “ele ndo permanecia quieto durante o culto’ De forma anéloge, um meninorecém-nascido, irmao de uma menina adotada anteriormente e diagnosticado como autista aos 2 anos, & acolhido por um casal © devolvido quando estava para completar 6 anos. 0 casal, diante da necessidade de mudanga geogrifica, optou por devolvé-lo, alegando que tinha tal dreito por o ter acolhido sob a forma de guarda e nio de adogao, Jé a alegagio de que o menino era “muito desobediente € hiperativo” também fundamentou a

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