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A IDENTIDADE DAS PESQUISAS

QUALITATIVAS: CONSTRUÇÃO DE UM
QUADRO ANALÍTICO
ANGELA XAVIER DE BRITO
Centro de Pesquisas sobre os Laços Sociais – Cerlis – do Centro Nacional de Pesquisas
Científicas – CNRS. Université René Descartes – Paris V, França
debrito@ext.jussieu.fr

ANA CRISTINA LEONARDOS


Curso de Mestrado em Educação da Universidade Estácio de Sá – Unesa –
Rio de Janeiro. Instituto Internacional de Planejamento Educacional – IIEP – Unesco,
Paris, França
anacl@attglobal.net

RESUMO

O principal argumento deste artigo consiste em sugerir que seria ainda cedo para propor um
novo paradigma para o campo das ciências sociais e humanas. A emergência de abordagens
metodológicas qualitativas veio permitir um novo olhar sobre os fenômenos sociais, que rejeita os
princípios fundamentadores da pesquisa empírico-analítica e, por conseguinte, questiona seus
critérios hegemônicos de qualidade. As tentativas da última década de proclamar um novo
paradigma não só denotam o embate pelo poder no meio científico mas também silenciam
precocemente um debate profícuo sobre pressupostos e princípios estruturantes de um campo
em plena maturação e em busca de seus próprios parâmetros de qualidade. Neste artigo, em
que as experiências anglo-americana e francesa se entrelaçam, propomos um quadro/esquema
de caráter essencialmente descritivo, que pretende contribuir para a melhor compreensão e
análise de diversas práticas de pesquisa qualitativa. O quadro também consiste em mais uma
arena de discussão sobre “qualidade” nas abordagens qualitativas de pesquisa.
PESQUISA EMPÍRICA – METODOLOGIA – CIÊNCIAS SOCIAIS – CIÊNCIAS HUMANAS

Este texto surgiu do encontro das autoras por ocasião do estágio de pós-doutorado de Ana
Cristina Leonardos (bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Supe-
rior – Capes) na equipe de Recherche Associée CNRS Sociologie de l’Éducation, na qual
Angela Xavier de Brito trabalhava. Especial agradecimento a Alda Judith Alves-Mazzotti (Uni-
versidade Estácio de Sá), Eric Plaisance (Université René Descartes) e Helenice Maia Gonçal-
ves (doutoranda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro) pela leitura crítica do texto.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


p. 7-38, julho/ 2001 7
ABSTRACT

THE IDENTITY OF QUALITATIVE RESEARCH: ELEMENTS FOR THE CONSTRUCTION OF A


FRAMEWORK OF ANALYSIS. The main goal of this article consists in suggesting that it is still
early to establish a new paradigm in the social and human sciences. The emergence of the
qualitative methodological approaches has introduced a new way of viewing social phenomena,
which rejects the founding principles of empirical analytical research and, subsequently, their
hegemonic set of quality criteria. The attempts to proclaim a new paradigm has not only surfaced
the fight for power in the scientific community but also prematurely silenced a productive debate
on the inherent assumptions and principles of a field which is in a maturing process and still
searching for its own set of quality parameters. In this article, where the Anglo-American and the
French experience are intertwined, a conceptual framework for description and analysis is set
forth with the intent of improving the understanding of different qualitative research practices.
This conceptual framework also acquires the role of fostering the discussion on “quality” in the
qualitative research approaches.

INTRODUÇÃO
Durante quase quarenta anos (1935-1970)1, e apesar de dispor de um método
destinado a atribuir a suas descobertas uma pretensa objetividade e universalidade,
as ciências humanas e sociais ignoraram que, mais que na área das ciências ditas
exatas, a pesquisa sofria por ser exercida por homens falíveis. Nem mesmo a distância
assegurada por um método científico poderia controlar a influência da subjetividade
própria ao ser humano, que se fazia presente durante todo o processo de pesquisa,
desde a escolha dos objetos, passando pelo estabelecimento das hipóteses, seleção e
recorte do campo de estudo até as análises e interpretações. Acrescentemos a isso o
fato de o objeto de estudo nessa área ser o próprio comportamento humano inserido
em seus contextos, em toda sua riqueza e complexidade inter e transdisciplinar.
Os vinte anos seguintes (1970-1990) assistem à recuperação progressiva da
consciência da extensão da subjetividade, assim como dos vieses que ela provoca. O
questionamento dos critérios objetivos e universais que fundavam essas ciências des-
de sua criação manifesta-se de forma diversa e em épocas diferentes em cada país,
na medida em que “há uma inscrição histórica e sociocultural de todo conhecimen-
to” (Morin,1996, p.26). No entanto, as poucas discussões existentes sobre o assunto
permanecem, com freqüência, encerradas nos limites de cada país, sem que um
verdadeiro debate internacional formador de consenso se tenha podido estabelecer.

1. A data de 1935 corresponde, grosso modo, ao fim do período em que Park e Burgess –
ambos do Departamento de Sociologia da Escola de Chicago nos anos 20 e 30 – desenvol-
veram diversas pesquisas consideradas precursoras da investigação qualitativa na área de so-
ciologia (Bulmer, 1984).

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A crise assim diagnosticada define-se, segundo alguns pesquisadores, por uma
certa estagnação das descobertas de uma sociologia que, segundo seus próprios
adeptos, já teria revelado tudo sobre a maneira de funcionar dos diversos setores
em que ela fragmenta a sociedade para fins analíticos, sem que as conclusões fos-
sem plenamente satisfatórias. Outros autores, como Passeron (1991), atribuíam-na
à ignorância de que tais ciências funcionavam segundo uma lógica própria, não
popperiana. A emergência de abordagens metodológicas qualitativas vem então
permitir um novo olhar sobre os fenômenos sociais, com o questionamento dos
critérios de qualidade em vigor na época: a objetividade, a validade, a fidedignidade,
a universalidade e a possibilidade de generalização por inferência.
Neste artigo, pretendemos mostrar que o desenvolvimento da nova lógica
não ocorreu sem dificuldades, em grande parte devido à complexidade da área das
ciências sociais. O material empírico sobre o qual se fundamenta o presente texto
provém de uma reflexão sobre a prática de pesquisa de suas autoras e reflete suas
respectivas formações acadêmicas na França e nos Estados Unidos – razão pela qual
a maioria das citações serão oriundas de literatura proveniente dos dois países.
Nossa análise não ignora o fato de que, em um mundo em que a comunicação se
torna cada dia mais globalizada, cada comunidade científica permanece encerrada
em seus próprios limites, preservando sua própria história e suas próprias referên-
cias e submetida às oscilações de suas redes de poder. Apesar de pertencerem a
comunidades científicas nacionais, os autores cotejados no texto foram agrupados
segundo suas afinidades de pensamento, o que os remete a uma comunidade cien-
tífica mais ampla, que transcende barreiras lingüísticas, culturais e territoriais. Nossa
intenção última é propor um quadro analítico essencialmente descritivo, fundado
sobre a observação das diversas práticas de pesquisa, que possa levar em conta os
aspectos sociais da ciência.

A EVOLUÇÃO DO PROBLEMA

A rápida disseminação das pesquisas qualitativas dentro de um campo2 domi-


nado por uma outra maneira de fazer ciência provoca um confronto entre
paradigmas, em que os adeptos do paradigma empírico/positivista hegemônico afir-
mam que as pesquisas qualitativas realizadas sob a égide do que se convencionou
chamar paradigma subjetivista/construtivista/interpretativo não passam de uma ver-

2. Quando utilizado isoladamente, o termo “campo” refere-se ao conceito introduzido por Bour-
dieu (1971). A expressão “campo de estudo” concerne ao domínio estudado por uma ciência.

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são mais leve e menos fidedigna da real thing da qual são feitos os bons estudos
quantitativos (Eisner, Peshkin, 1990).
O exemplo da comunidade científica de sociologia na França ilustra bem esta
tensão. Dominada até meados dos anos 80 pelo paradigma estrutural-funcionalista,
os pesquisadores desta área negavam legitimidade às novas formas de fazer pesqui-
sa, recusando-lhes até mesmo o estatuto disciplinar. Além do mais, o fato de a
comunidade considerar apenas as referências francesas dificultava o acesso das ou-
tras tendências a fontes qualitativas oriundas de outros países. Pesquisadores que
constituíam suas comunidades de eleição em torno de correntes como o
interacionismo simbólico ou a abordagem etnográfica tinham muita dificuldade em
conseguir material para fundamentar seus argumentos na comunidade científica mais
ampla. Foi necessário que o paradigma dominante se enfraquecesse e perdesse sua
hegemonia para que as fronteiras se abrissem e a dinâmica interna dessa comunida-
de fosse alterada, permitindo aos grupos de eleição ultrapassar as barreiras nacio-
nais – o que apenas se deu por volta de 1985.
Os argumentos dos adversários não deixavam insensíveis os próprios pesqui-
sadores da linha subjetivista/construtivista/interpretativa. Tendo sido socializados den-
tro do mesmo paradigma positivista que criticam, para eles é muito difícil superar
sua própria formação, parte do imprinting cultural de que fala Morin (1996, p.27).
Como sugerem Howe e Eisenhart (1990), teme-se que, na pressa em legitimar as
práticas e os métodos adotados no “novo paradigma”, os adeptos dessa linha de
pesquisa não forneçam justificativas claras e adequadas para seus métodos, desco-
bertas e interpretações. Cria-se então uma miríade de critérios de rigor e de medi-
das de qualidade, numa tentativa de regulamentar o campo e, assim, controlá-lo de
maneira mais eficaz. A terminologia varia ao longo dos anos e segundo as correntes:
“controle de qualidade” (Goetz, LeCompte, 1984); “padrões de justificação” (Howe,
Eisenhart, 1990); “critérios de virtude” (Guba, 1988). O debate, no entanto, per-
manece o mesmo: a busca de medidas ou de critérios de rigor para a pesquisa
qualitativa. De maneira geral, todos os processos de pesquisa, ainda que reivindi-
quem uma identidade própria, devem justificar as razões que os conduzem a adotar
tais procedimentos. Se as justificativas avançadas forem convincentes e chegarem a
persuadir a comunidade científica, poder-se-á, desse modo, reconhecer e legitimar
uma nova linha de pesquisa. Toda tentativa que não se justifique suficientemente por
alterar esta ordem será rejeitada por seus pares e condenada ao esquecimento.
O processo de legitimação do que se convencionou chamar, primeiramente,
de paradigma “naturalista” (Lincoln, Guba, 1985) e, posteriormente, “construtivista”
(Guba, 1990), nos Estados Unidos, ilustra bem este último ponto. Ao observar a

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tendência convergente de certas metodologias da pesquisa socioeducacional nas
décadas mais recentes, esses autores sentiram a necessidade de legitimar o movi-
mento consensual emergente e tomaram a iniciativa de definir um novo paradigma.
Mas para que ele fosse reconhecido como tal foram obrigados a estabelecer crité-
rios ontológicos, epistemológicos e metodológicos que traçavam as necessárias dis-
tinções entre o novo paradigma e aquele, até então, hegemônico. A iniciativa fez
com que os adeptos das correntes metodológicas alternativas (interpretativistas,
hermenêuticas, compreensivas etc.) assumissem uma identidade diante da comuni-
dade científica mais ampla. No entanto, a reunião, sob a égide do novo paradigma,
das diversas correntes e linhas de pesquisa que se desenvolveram fora do paradigma
empírico/positivista, sofreu por sua precocidade, na medida em que os próprios
critérios de qualidade ainda não haviam atingido o grau de amadurecimento e con-
senso necessários e corriam o risco de deixar-se contaminar pelos já utilizados no
paradigma anteriormente dominante3. O vácuo aí deixado propicia inúmeras críti-
cas às pesquisas pretensamente realizadas dentro do paradigma emergente (natu-
ralista ou construtivista) e suscita um debate paralelo, visando a um novo consenso
sobre os critérios de qualidade e rigor necessários para integrar o novo paradigma.
Mas como a ciência é socialmente construída, os próprios critérios de julga-
mento que regem tais processos foram gradualmente colocados em questão. As
críticas mais difundidas censuram esses critérios pelo fato de terem sido concebidos
e revistos por um pequeno grupo detentor do poder científico, visando legitimar
sua própria visão do mundo. Talvez ainda mais profundas sejam aquelas que suge-
rem que os critérios recentemente criados sofrem a invasão insidiosa da própria
visão positivista tão duramente criticada pelos adeptos do novo paradigma (Smith,
Heshusius, 1986). Schwandt (1995, p.1-2) exprime claramente tal idéia quando
pergunta se “o espírito subjacente às tentativas de estabelecer critérios permanen-
tes e de atualizar um fundamento indiscutível para o conhecimento” não indicaria
antes que os adeptos das abordagens qualitativas ainda não conseguiram ultrapassar
o “sonho cartesiano da certeza” como única maneira de atingir “o conhecimento
objetivo”, pela “aplicação de critérios trans-históricos que possam nos livrar dos
caprichos da perspectiva histórica”. Em consonância com o pensamento de Morin
(1990), uma parte dos pesquisadores da linha qualitativa começa a se perguntar se
a busca de um “conjunto de critérios únicos” para avaliar a qualidade das pesquisas –

3. Assim, a transferibilidade, a consistência, a confirmabilidade e a credibilidade dos dados, adota-


dos atualmente por certas linhas qualitativas, encontram uma correspondência simétrica na
generalização, na validade e na fidedignidade do paradigma empírico positivista.

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ou seja, a necessidade de se apoiar em um novo paradigma – não oculta, em filigrana,
o receio, ou até mesmo a recusa, da complexidade, pelo temor de não saber tradu-
zi-la na prática. Para alcançar uma visão complexa da realidade, “é necessário com-
preender o modo de estruturação dos outros tipos de pensamento diferentes do
nosso, e isto não só de cultura para cultura, mas também no interior de uma mesma
civilização” (Morin, 1996, p.32). Fechar-se em um paradigma significa uma incapaci-
dade de compreender e traduzir corretamente o discurso do adversário, impedin-
do, desta forma, o tão necessário debate de idéias e de teorias.
A tentativa de constituição de um novo paradigma – seja ele construtivista
(Lincoln, Guba, 1985), subjetivista (Noiriel, 1989), ou outro qualquer – faz atual-
mente parte da revisão da sociologia como disciplina. Ela nos parece, entretanto,
ainda prematura: no momento mesmo em que os critérios são repensados, im-
põe-se urgentemente uma reflexão sobre a própria necessidade de continuar a
estabelecer critérios e medidas para a pesquisa qualitativa. Dada a imensa variedade
de modelos de pesquisa existentes, talvez fosse mais útil e mais fecundo trabalhar
no sentido de estabelecer um intenso debate que conduza a uma compreensão
dos parâmetros mais amplos e mais flexíveis dentro dos quais as pesquisas na área
das ciências humanas e sociais parecem se desenvolver atualmente. A definição de
parâmetros que tentariam conceituar o processo de pesquisa de maneira a melhor
descrevê-lo, sem prescrevê-lo, parece-nos, hoje em dia, da maior importância.
Necessitamos de uma visão mais global, que possa contribuir para esclarecer as
práticas já estabelecidas e comprovadas. Um quadro descritivo-analítico – no senti-
do da descrição densa preconizada por Geertz (1990) –, ainda que incompleto,
pode, a nosso ver, ajudar a compreender a complexidade do universo da pesquisa
qualitativa, do qual os pesquisadores e as relações de poder são parte integrante.

A EMERGÊNCIA DA IDÉIA DO TRIÂNGULO

Durante o colóquio Quality in human inquiry, organizado em 1995 na Univer-


sidade de Bath, várias tendências de pesquisa naquelas ciências confrontaram-se em
busca de critérios de qualidade para a pesquisa qualitativa. Pudemos aí constatar
que a luta pela imposição de um paradigma não ocorria apenas entre os que per-
tenciam a campos diferentes. Não há igualmente consenso entre os próprios adep-
tos do campo qualitativo, nem mesmo no seio de cada uma de suas diversas cor-
rentes. Importantes clivagens nacionais, metodológicas e éticas persistem, de tal
maneira que os franceses não se reconhecem nas definições das redes anglo-saxãs,
que há divergências entre os adeptos da pesquisa-ação ou da pesquisa feminista.

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Fatores como a subjetividade do pesquisador, as motivações fundamentais ao exer-
cício da profissão, o tipo de relação estabelecida com a comunidade estudada, a
primazia da produção de conhecimento, o estatuto atribuído ao senso comum, a
necessidade de desconstruir as estruturas metodológicas convencionais de modo a
neutralizar a ação das macroestruturas de poder, entre outros, são temas que pro-
vocam profunda discordância.
Para nós, o evento colocou em evidência a dificuldade da constituição de
critérios, já que as próprias pessoas envolvidas na prática de pesquisa eram incapa-
zes de ter clareza sobre os critérios a propor. Nesse sentido, Smith (1990), repor-
tando-se a Kuhn, lembra que entre as condições para a mudança de paradigma
estariam as mudanças nos padrões dos pressupostos subjacentes à atividade cientí-
fica. Se considerarmos que critérios e pressupostos estão intimamente ligados, com-
preenderemos melhor as dificuldades dos participantes do colóquio. Essas conside-
rações levaram-nos a propor um quadro analítico fundado na descrição das práticas
de pesquisa que pudesse contribuir para um trabalho em direção à formação de um
consenso. Tal quadro baseia-se num triângulo eqüilátero (Fig. 1), em que os princi-
pais elementos constitutivos do processo de pesquisa, no nosso entendimento – o
pesquisador, a literatura científica e o objeto/sujeito de pesquisa –, estão colocados
em cada um dos três vértices, tendo, em princípio, o mesmo valor. As relações
entre eles são expressas nas linhas de força estabelecidas ao longo das três verten-
tes, em que a combinação entre cada par de elementos se inscreve na relação
triangular global e se beneficia de seus próprios elementos de mediação: a comuni-
dade científica, entre o pesquisador e a literatura científica; a oposição senso comum
versus senso científico, entre a literatura científica e o objeto/sujeito da pesquisa; e o
filtro das metodologias de pesquisa, entre o pesquisador e o objeto/sujeito da pes-
quisa4. Esse triângulo eqüilátero está, por sua vez, inscrito em um círculo que repre-
senta o processo de pesquisa em seu conjunto, de cujo centro irradiam as relações
de poder e um feixe de preocupações éticas que inspiram práticas ou interações.
Dessa forma, o mesmo triângulo propicia inúmeras leituras, permitindo tanto a des-
crição da especificidade da prática de cada pesquisador e suas opções metodológicas

4. A visão de Pharo (1992) apresenta afinidades parciais com a nossa: o que ele chama de dados
objetiváveis do social é para nós o objeto/sujeito da pesquisa e a figura do analista se confunde
com a do pesquisador. No entanto, ele embute as metodologias de pesquisa – que, em nossa
concepção, mediam a relação entre pesquisador e objeto/sujeito – no próprio pólo do pes-
quisador, ao incorporar ao analista suas categorias conceituais. Pensamos que o que ele
chama de trabalho de interpretação dos atores aproxima-se da oposição senso comum versus
senso científico, outra das vertentes do nosso triângulo.

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e éticas quanto a síntese das diversas relações de força e dos eixos de tensão pre-
sentes nos diferentes momentos da pesquisa.
A figura geométrica do triângulo – ou seja, a relação triangular – opõe-se ao
fechamento binário como figura de ordenamento e simboliza, ainda, a complexida-
de crescente do conhecimento. Dufour (1989, p.24) vê na resistência ao ternário a
fonte do “mal-estar específico de nosso século (...), dos homens e da civilização” e
preconiza a necessidade de voltar a questionar a dominação exclusiva do pensa-
mento binário na tradição das ciências humanas e sociais. Na França, vários pesqui-
sadores trabalham para um crescente reconhecimento dos processos triangulares.
Segundo Pharo, os níveis de análise que devemos tentar colocar em correlação são
três: os dados objetiváveis do social, o analista com suas categorias conceituais e,
entre os dois, o trabalho de interpretação dos próprios atores (Dosse, 1995, p.144).
Caillé (1989), Godbout (1992), baseados em Mauss, ressaltam, por sua vez, a for-
ma triangular e o caráter indivisível do processo constitutivo da dádiva (dar/receber/
restituir) que, assim concebida, se torna “uma figura de desconstrução que barra a
oposição dentro/fora, verdade/erro” (Derrida, 1991, p.26).
Um tal esquema tem a ambição de facilitar a leitura e a compreensão dos
processos de pesquisa qualitativa nas ciências humanas e sociais, assim como das
relações estabelecidas entre seus elementos constitutivos, cujo aspecto globalizante
não foi ainda bem compreendido. Cada linha de pesquisa estabelecerá um diálogo
específico entre cada uma das partes e a totalidade do triângulo. Cada pesquisador
irá definir-se mediante uma negociação que convenha aos recursos pessoais/mate-
riais de que dispõe, ao seu estilo, à sua abordagem preferida, ao seu objeto de
estudo, à sua inscrição numa corrente etc. Parece-nos razoável sugerir que, pelo
menos no momento atual, a prática da pesquisa teria como objetivo principal e
comum o estabelecimento desse diálogo, no qual o pesquisador negociará, ao mesmo
tempo, consigo mesmo (com sua subjetividade), com a(s) comunidade(s) científica(s)
à(s) qual(is) pertence e com o objeto/sujeito de sua pesquisa.
Desse modo, o conjunto de elementos que compõe a base das pesquisas
deixa de ser prescritivo e passa a ser descritivo. No início desta década, Caillé (1992,
p.31) já indagava “em nome de que impor aos pesquisadores uma norma ideal que
não deve ser outra senão a descrição de suas práticas?” No mesmo sentido,
Feyerabend (1979, p.15) opõe-se firmemente ao fechamento em torno das “pres-
crições epistemológicas” mais surpreendentes e propõe “a rejeição de todo princí-
pio universal e de toda tradição rígida”. Assim, o triângulo, ou quadro analítico, que
propomos aqui, pode ser lido de vários ângulos, permitindo a flexibilidade necessá-
ria à análise na área das ciências humanas e sociais.

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FIGURA 1
ESQUEMA DE DESCRIÇÃO DO PROCESSO DE PESQUISA

PESQUISADOR
Subjetividade

Comunidade Metodologias
Cientifíca de Pesquisa

RELAÇÃO DE PODER
ÉTICA

LITERATURA OBJETO /
CIENTIFÍCA Senso Comun/Senso Cientifíco SUJEITO
DA PESQUISA

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O ESTATUTO DA DESCRIÇÃO EM SOCIOLOGIA

A descrição ainda é freqüentemente considerada como uma arte menor,


oposta aos imperativos da construção teórica. No entanto, vários sociólogos pare-
cem estar de acordo com a idéia de que a descrição deveria reassumir um estatuto
predominante em sociologia (Ackerman et al., 1985). Segundo Caillé (1992), a
descrição é a primeira exigência do trabalho teórico em sociologia e Quéré (1992)
preconiza uma postura “descritivista”, em nome de uma nova epistemologia das
ciências sociais.
Em nossa opinião, na atual conjuntura do desenvolvimento das ciências hu-
manas e sociais, é mais importante compreender a forma pela qual o pesquisador
se comunica com os outros participantes e estabelece a negociação no seio do
processo de pesquisa do que julgar se tal negociação se realizou de maneira correta
ou incorreta, a partir de critérios preestabelecidos, cuja coerência foi determinada
por esta ou aquela corrente específica.

Diante de uma tal diversificação de critérios e de modalidades de excelência científi-


ca – já que todo mundo continua a reivindicar a verdade científica – seria risível
pretender colocar-se na posição de julgar em nome da verdade científica. (Caillé,
1992, p.30, tradução nossa)

Ao preconizar a descrição, procuramos investir a ciência de como ela se faz,


não para importar modelos pré-construídos, mas levando a sério “o que dizem os
atores destas ciências e fazendo um discurso compatível com as descobertas cientí-
ficas” (Dosse, 1995, p.15). Na medida em que “as identidades e os pertencimentos
disciplinares não são evidentes e não gozam de nenhuma forma de naturalidade”
(Caillé, 1992, p.12), a etapa da descrição parece-nos imprescindível. Talvez a maior
aceitação da complexidade do processo de pesquisa nas ciências humanas e sociais
nos faça chegar a maior abertura e tolerância com relação a nossos pares e, con-
seqüentemente, a maior heterodoxia – importantes passos na direção de um con-
senso.
Procuramos assim, ao propor o triângulo como forma de ordenamento da
descrição na área das ciências sociais, insistir na idéia de que toda pesquisa é uma
forma de relação social, que ganha força ao ser analisada dentro do espírito da
teoria da dádiva, como já o fizeram Brito (1994) e Brito e Vasquez (1999). Afinal, a
relação triangular representa “a essência do laço social, porque sem ela não haveria
relação de interlocução, não existiria cultura humana” (Dufour, 1989, p.151). O
triângulo seria uma forma de organizar o campo, em primeiro lugar, porque se

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origina na prática real de pesquisa das diferentes correntes – e não de uma prática
idealizada. Nesse sentido, ele tende a explicar o funcionamento do processo de
pesquisa na área das ciências humanas e sociais a partir desse ponto de interseção:
a própria prática do pesquisador, assim como sua capacidade de descrever pers-
pectivas, posturas ideológicas, relações, conflitos e procedimentos adotados em seu
trabalho. Em segundo lugar, ao partir do que já existe, ele não exclui, como fazem
as listas de critérios de rigor; ao contrário, destina-se a incluir, mediante o debate.
Ao permitir a descrição, ele facilita ao mesmo tempo a explicação mais ampla das
dinâmicas possíveis de pesquisa.
À objeção de Caillé (1992, p.20), de que “hoje em dia se torna cada vez mais
difícil proceder a uma descrição ordenada da produção em ciências sociais, tão
grande se tornou a diversidade, de tal forma que as entradas da grade descritiva
deveriam ser inúmeras”, respondemos que nossa intenção, ao propor os elemen-
tos do triângulo, é analisar sobretudo as relações humanas inerentes ao processo
de pesquisa. Por essa razão, privilegiamos, entre os muitos indicadores possíveis, as
multifacetadas relações entre o pesquisador, os sujeitos da pesquisa e a(s)
comunidade(s) científica(s) de eleição reificada(s) em sua produção.

OS TRÊS VÉRTICES DO TRIÂNGULO


O pesquisador

Dois pontos-chave devem ser observados com relação à figura do pesqui-


sador. O primeiro é sua posição de poder; o segundo, a influência de sua subje-
tividade.
No que se refere à posição de poder, existe um consenso implícito entre
autores das ciências sociais de que, independentemente da corrente metodológica
adotada, o pesquisador detém uma posição de poder no processo de investigação.
Por essa razão – e ainda que nosso esquema se baseie em um triângulo eqüilátero,
que visa ao equilíbrio entre seus componentes – a figura do pesquisador foi coloca-
da em seu ápice. Como dissemos acima, o triângulo busca descrever o que se passa
efetivamente no processo de pesquisa. Neste sentido, não se pode fugir à evidência
de que “o papel do pesquisador é diferente do ator social e geralmente estimado
como mais importante” (Schön, 1996, p.203). Além disso, existe uma hierarquia
estatutária na representação que os próprios objetos/sujeitos de pesquisa têm do
pesquisador. Diante deste último, os participantes da pesquisa agem como se ele
fosse o sujeito de suposto saber – na medida em que é ele quem detém o poder
de atribuir sentido às informações coletadas no campo.

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Não basta ter a intenção de alterar essa realidade para que as mudanças sejam
realizadas. Mas uma outra constatação impõe-se aqui: a de que as diversas corren-
tes de pesquisa tratam o problema com base em pressupostos diferentes, ou mes-
mo divergentes. Embora algumas correntes – entre as quais nos incluímos – esti-
mem que seus compromissos éticos impeçam seus participantes de fazer uso explí-
cito do poder atribuído ao pesquisador e considerem que seus respectivos estatu-
tos devam ser negociados durante o processo de pesquisa, de forma a estabelecer
uma relação de eqüidade que respeite as especificidades de seus papéis, as difi-
culdades para relativizar a posição de poder do pesquisador são inúmeras – entre as
quais a própria representação que os sujeitos da pesquisa têm sobre esse poder.
O paradigma positivista coloca claramente o princípio da legitimidade do es-
tatuto superior do pesquisador, na medida em que é ele quem “toma todas as
decisões sobre as condições na qual se realiza a pesquisa e sobre a natureza das
intervenções realizadas sobre seus objetos” (Dobbert, 1990, p.287). Essa corrente
vê o pesquisador como o único responsável pela atribuição de sentido, inspirando-
se na ruptura epistemológica preconizada por Bachelard. House (1990) sugere ain-
da que o poder do pesquisador advém, entre outras coisas, do tratamento e do uso
que este fará da informação obtida. Os esforços da chamada linha neopositivista
não questionaram tal supremacia.
As correntes qualitativas consideram que assumir e defender essa posição é
uma atitude bastante arrogante. Mas, apesar dos esforços no sentido contrário, a
arrogância não é apanágio dos pesquisadores inscritos no paradigma positivista:
Dobbert identifica, dentro da pesquisa qualitativa, posições que, sob a máscara do
igualitarismo, contêm posturas que conferem implicitamente ao pesquisador uma
posição de força. Segundo a autora,

...somos arrogantes quando recusamos discutir sobre nossos procedimentos de


pesquisa e nossos paradigmas, adotando uma atitude de auto-satisfação que nos faça
apenas querer “ir em frente”; quando não solicitamos perspectivas críticas que con-
tribuam para liberar nosso próprio pensamento, ou não pedimos àqueles que estu-
damos que nos ajudem a liberar-nos; ou ainda, quando decidimos que os pesquisa-
dores podem conferir poder5 aos demais participantes de uma pesquisa. (1990,
p.287, tradução nossa)

Na verdade, as pesquisas que promovem o empowerment reconhecem im-


plicitamente que as interações pesquisador-sujeito são permeadas pelas relações de

5. No original, a palavra empregada é empowerment, que não tem tradução em português.

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poder: nesse contexto, o pesquisador que pretende conferir poder aos demais
participantes da pesquisa se auto-representa como uma figura todo-poderosa, na
medida em que só se pode conferir ao outro o que se detém. Mas os adeptos dessa
corrente ignoram, com freqüência, que, mesmo nas abordagens metodológicas
que não prevêem a “entrega” do poder aos sujeitos, estes sabem tirar partido para
proveito próprio do poder efetivo ou atribuído aos pesquisadores (Brito, 1994;
Leonardos, 1990)6.
Outro ponto fundamental a ser discutido refere-se à questão da objetivida-
de/subjetividade do pesquisador diante do processo de investigação. Tradicional-
mente, o papel do pesquisador definia-se por uma crença em sua capacidade de
investigação isenta e distanciada. Hoje em dia, até mesmo os pesquisadores na área
das ciências exatas reconhecem que a objetividade absoluta e uma ciência livre de
valores são ideais impossíveis de serem atingidos na prática (Lévy-Leblond, Jaubert,
1975; Elias, 1983; Habermas, 1973). Na área das ciências sociais, a influência da
subjetividade pode ser detectada até mesmo na formulação ou na seleção das ques-
tões de um survey – instrumento clássico que remete ao não-envolvimento e à
imparcialidade do pesquisador que o planeja – na medida em que as opções ideo-
lógicas ou filosóficas estão subjacentes à aparente objetividade de um questionário.
Segundo Patton (1990, p.55), os termos objetividade e subjetividade “tornaram-se
munição ideológica para o debate entre os paradigmas”: a palavra subjetividade teria
adquirido uma conotação tão negativa que o pesquisador que defende abertamen-
te o valor da percepção subjetiva na pesquisa corre o risco de prejudicar a
credibilidade do seu próprio trabalho.
No entanto, o reconhecimento da subjetividade do pesquisador como pes-
soa humana historicamente situada, dotada de atributos e interesses provenientes
de sua posição de classe, etnia, gênero, idade e orientação sexual foi, na verdade,
uma preciosa contribuição no sentido de maior objetividade do processo de pes-
quisa. Bourdieu e Passeron (1970) dizem que a ocultação de um fenômeno contri-
bui para redobrar sua força de ação. Pensamos que, ao invés de negar sua subjeti-
vidade, o pesquisador deve procurar ter consciência dela durante todo o processo
de pesquisa, analisando-a como mais um dado desse processo. Na medida em que
a análise da subjetividade não é evidente, vários autores preocuparam-se em suge-
rir maneiras de realizá-la. Por exemplo, LeCompte (1987) sugere que os pesquisa-

6. Estes trabalhos apresentam evidências de como os indivíduos no campo de pesquisa sabem


fazer uso da presença do pesquisador para conseguir contatos, obter informações necessá-
rias, realizar seus próprios objetivos de poder etc.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 19


dores se submetam ao que ela chama de uma “psicanálise intelectual” que lhes
permitiria estar conscientes das influências de sua formação e de seus interesses
antes mesmo de começar a pesquisa. Já Peshkin (1982; 1991) adota uma atitude
cumulativa, que consiste em analisar detalhadamente como sua subjetividade incidiu
em suas pesquisas passadas, para evitar as mesmas armadilhas nas futuras. Brito
(1994) sugere, por sua vez, que essa análise auto-reflexiva da subjetividade seja
constante e integrada no próprio desenho da pesquisa. Uma outra forma de evitar
a influência da subjetividade é a que utiliza a corrente da intervenção sociológica
(Dubet, 1999), preconizando um trabalho conjunto de equipes que estudam o
mesmo objeto e comparam mutuamente os resultados.
Assim, para nós, descrever o vértice do triângulo que cabe ao pesquisador
implicaria, antes de mais nada, descrever como ele lida com a tensão imanente
contida nas relações intrínsecas e complexas de poder que permeiam o ato de
investigação e que estatuto ele se atribui nesse jogo de poder. Implica igualmente
ver como ele se situa no contexto da tensão necessária entre objetividade e subje-
tividade. Nesta parte, caberia, ainda, verificar que meios, estratégias, métodos e
procedimentos ele adota para analisar sua subjetividade, de tal forma que tais recur-
sos possam ser partilhados por outros pesquisadores.

A LITERATURA CIENTÍFICA

Publicar, contribuir para a elaboração e a difusão do conhecimento, é tarefa


essencial de todo pesquisador – a tal ponto que um conhecido artigo americano
coloca a opção de “publicar ou morrer” academicamente (Caplow, McGeer, 1968).
A formação da identidade de um profissional da área das ciências sociais está em
estreita relação com sua produção científica. Não é por acaso que instituições uni-
versitárias e organismos de fomento à pesquisa de vários países, inclusive a Coorde-
nação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior – Capes – e o Conselho
Nacional de Pesquisa – CNPq – no Brasil, tomam como indicador básico de eficiên-
cia de um cientista o número de livros e artigos já publicados. Nos Estados Unidos,
o Citation index tornou-se referência quase obrigatória na avaliação da produção de
um pesquisador. A freqüência e o contexto (de crítica ou de apoio) em que um
autor é citado revelam o grau de penetração de sua obra, pela criação ou pelo
embasamento prestado a idéias e conceitos.
Foi por essa razão que a incluímos em um dos vértices do triângulo, a litera-
tura científica produzida e consultada por um pesquisador. Como indicador rele-
vante de sua área de atuação no seio da comunidade científica disciplinar a que

20 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


pertence, ela pode revelar, ao mesmo tempo, seu grau de poder acadêmico, o
reconhecimento de que é alvo, as comunidades às quais se filia. A literatura científica
se constrói tanto a partir de um desejo de contribuir para a construção do conheci-
mento pela difusão de suas idéias quanto a partir de lutas de poder travadas por
pesquisadores em busca de reconhecimento e notoriedade. Os trabalhos de um
autor refletem sua adesão/exclusão a grupos específicos, chegando a ultrapassar as
barreiras disciplinares – como sugere a noção de “comunidade persuasiva” introduzida
por Allen, Qin, Lancaster (1994).
Pensamos que a análise da literatura científica revela, ainda, sobre um pesqui-
sador :

a. vitalidade de seu pensamento: trata-se de verificar não apenas como ele


lida com os métodos tradicionalmente constituídos, mas também o grau
de inovação teórico-metodológica de sua obra; de que maneira se faz sua
inscrição em uma corrente de pensamento, se apenas como mais um
adepto ou como uma pessoa que trabalha para a ampliação e o
questionamento dos insumos que recebeu em sua formação e prática de
pesquisa. Ou seja, parodiando Sartre (1951), seus textos mostram o que
ele faz do que os outros fizeram dele. Esse ponto pode ainda ilustrar sua
contribuição efetiva para a construção de sua disciplina, assim como sua
reputação nacional ou internacional.
b. visão epistemológica: a organização dos textos de um pesquisador mostra
qual é sua relação com o conhecimento e sua concepção do processo de
pesquisa. Com efeito, se alguns pesquisadores se limitam a apresentar
uma problemática, as escolhas conceituais para compreendê-la e os re-
sultados obtidos, outros vão bem mais longe na explicitação de sua posi-
ção teórico-metodológica: buscam expor como emergiu a questão que
deu origem à pesquisa, ou seja, a gênese da problemática; quais as nego-
ciações necessárias para coletar o material de análise; qual sua relação
com problemas tão fundamentais quanto a descrição ou a explicação.
c. grau de abertura e diálogo a que ele se propõe: este ponto pretende anali-
sar se o pesquisador se fecha em sua comunidade de origem ou se está
aberto ao diálogo com outros pesquisadores e outras comunidades, seus
projetos e ambições em direção à interdisciplinaridade. Como toda a pes-
quisa em ciências sociais, este ponto é fortemente condicionado pela ins-
crição histórico-geográfica de seu trabalho. Com efeito, as comunidades

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 21


científicas dos diferentes países apresentam diferenças quanto à sua forma
de incitar ao diálogo. Se a comunidade intelectual anglo-saxônia estimula a
circulação de textos intermediários expressamente destinados ao debate
e tem o hábito de incluir artigos de crítica e resposta nos suportes de
publicação, a tradição é ainda bastante rara na França. Por exemplo, os
organizadores da mais recente conferência de etnografia de educação da
Universidade de Oxford (setembro de 1999) chegaram a sugerir que os
autores apresentassem textos não completamente trabalhados, with a few
ragged ends7, no sentido de facilitar ainda mais aos colegas a crítica de seus
trabalhos. A análise da bibliografia (ou da ausência de bibliografia) propos-
ta por um pesquisador em seus livros e artigos pode também oferecer
pistas para a compreensão de sua posição. A seleção dos nomes aí men-
cionados aponta para sua comunidade de eleição ou de persuasão. Tam-
bém o cuidado com que referencia suas fontes indica o grau de respeito
para com seus interlocutores e sua disponibilidade para que seus pares
possam verificar a exatidão com que as cita.
d. indicações sobre sua postura ética: se a linguagem utilizada por um pesqui-
sador em sua produção revela, por um lado, sua inscrição em uma cor-
rente de pensamento, a homogeneidade de seu referencial teórico, a
adequação entre idéias e conceitos, por outro lado, ela pode dar precio-
sas pistas quanto à sua relação com os objetos/sujeitos da pesquisa ou
quanto à dimensão ética do seu pensamento, como veremos abaixo.

A leitura cuidadosa da obra de um pesquisador fornece indícios importantes


sobre a relação que ele mantém com os demais participantes do processo de pes-
quisa, em vários níveis. No entanto, não basta apenas ver o que o pesquisador diz
em seus textos. É igualmente necessário verificar o que ele não diz: o que omite em
seus textos, ou seja, o que ele rejeita para a “casa vazia” (Deleuze, 1973), é tão
significativo quanto o que explicita.

O OBJETO/SUJEITO DA PESQUISA

Partindo do pressuposto do papel expressivo da linguagem na revelação do


posicionamento teórico-metodológico e ético do pesquisador, fizemos questão de

7. Esta frase – que significa literalmente “com algumas pontas soltas” – implica que os textos
apresentados não devem ser muito elaborados nem conter um raciocínio fechado.

22 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


deixar essa ambigüidade clara na própria forma de intitular este vértice do triângulo.
Na verdade, a maneira de intitular os participantes da pesquisa – objeto ou sujeito –
é um indicador poderoso do estatuto que lhes é atribuído pelo pesquisador: de um
lado, os que se limitam a estudá-los, objetivando-os para que correspondam ao
arcabouço teórico que os despoja de sua humanidade; de outro, os que aceitam
sua participação no processo de pesquisa em diversos graus. Uma visão apressada
da questão pode reduzir a tensão entre pesquisador e participantes da pesquisa a
duas oposições nocionais – objeto/sujeito, de um lado; e do outro, agente/ator –
como se essas noções se seguissem de maneira paralela e teleológica.
Mas não somente o objeto não se confunde necessariamente com o agente,
como não há uma identificação imediata entre ator e sujeito. Na verdade, o proces-
so de construção das ciências sociais é muito mais complexo. Se o ser humano é,
desde o início, considerado como um “objeto” em sociologia, é, em parte, em
razão do contexto no qual se desenvolveram as idéias dos principais fundadores
dessa disciplina – Comte, Durkheim –, inseridos na corrente positivista da ciência
que dominava sua época. Durkheim, particularmente, preocupou-se em determi-
nar as fronteiras da disciplina no fim do século XIX e início do século XX, em
oposição à filosofia, à psicologia mas também às correntes evolucionistas preponde-
rantes à época, na etnologia (Kauffman, 1999). O que estava em jogo era, de um
lado, a denominação de sujeito própria à filosofia e, de outro, o esclarecimento de
como se dava a relação entre o indivíduo, a cultura e o fato social.
Ainda aqui sente-se a influência da história da disciplina em cada país: nos
Estados Unidos, a Escola de Chicago começa a utilizar a denominação ator nos anos
20/30, enquanto a Europa deve a Max Weber (1956) e à sua sociologia compreen-
siva a utilização do termo. Ainda assim, no contexto francês, dominado pelo paradigma
positivista durante muitos anos, o ator – aquele que age de moto-próprio – cede o
lugar ao agente – aquele que é determinado pelas estruturas sociais. A preponde-
rância do paradigma estrutural-funcionalista manteve, por muito tempo, “a ilusão de
um abismo estático e incomunicável entre duas entidades diferentes, o ‘sujeito’ e o
‘objeto’” (Elias, 1983, p.63) e fez com que certos autores considerados entre “os
pais fundadores da sociologia” (como Weber, Simmel, Mauss) fossem durante longo
tempo relegados ao esquecimento ou apenas utilizados fora do contexto global de
sua obra. A França teve que esperar pelo lançamento do livro de Alain Touraine, Le
Retour à l’acteur, em 1984, para que essa forma de designação fosse difundida. A
tensão entre essas duas formas remete assim à questão fundamental da liberdade
relativa do ser humano. No entanto, intitular o ser humano de ator pode ocultar
outros desígnios. O individualismo metodológico sempre considerou o indivíduo

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 23


em sua posição de ator, recusando o termo agente. No entanto, a liberdade atribuí-
da ao indivíduo no contexto da corrente é apenas teórica, e a figura do ator não é
mais do que uma abstração, na medida mesmo em que se ignora os condicionantes
que limitam essa liberdade.
Por sua vez, a denominação objeto remete à capacidade de distanciamento
entre o pesquisador e o que ele estuda. A visão de que o “objeto” da sociologia é o
homem inserido em seus contextos é relativamente recente. Em seus primórdios,
o objeto desta disciplina era o fato social, o que tornava necessária a objetivação do
ser humano para aceder ao conhecimento, não do indivíduo – abordagem própria
à psicologia – mas das leis sociais que o regiam. Bourdieu, Passeron e Chamboredon
(1973) chegam a dizer, em seu livro Le Métier de sociologue, que “a maldição da
sociologia é ter que lidar com objetos dotados de palavra” – e que, em conseqüên-
cia, resistem mais ao necessário processo de objetivação. O termo sujeito é intro-
duzido bem mais tarde, sob a influência da filosofia humanista – Emmanuel Mounier,
sobretudo Paul Ricœur –, e remete à capacidade reflexiva do ator sobre sua própria
prática.
No que se refere mais precisamente à relação entre os participantes do pro-
cesso de pesquisa, a utilização dos termos objeto ou sujeito remete ao estatuto
conferido pelo pesquisador aos homens cuja prática deseja compreender. Como
objetos de uma pesquisa, os seres humanos investigados estão submetidos à forma
de interpretação do pesquisador, sem que tenham voz ativa nesse processo. Essa
forma de interpretação, que separa radicalmente a vivência do conceito, encontra
oposição nas correntes qualitativas, na medida em que não só percebem e respei-
tam o indivíduo como responsável por suas ações e opiniões, mas consideram-no
capaz de elaborar uma forma de conhecimento sobre a realidade que o circunda.
Mais recentemente, essas correntes passam a aceitar a contribuição dos homens
que estudam na compreensão dos processos analisados e tornam-se capazes de
empreender um processo de co-construção do conhecimento buscado.
Se insistimos em inscrever em um dos vértices do triângulo a dualidade
explícita entre objeto e sujeito da pesquisa, é que a escolha do termo de referência
para qualificar quem se estuda indica já uma diferença entre as correntes quanto à
posição de poder reivindicada pelo pesquisador, assim como uma postura ética e/
ou ideológica. A linguagem adotada pode ser suficientemente polissêmica para es-
conder sentidos diversos. Assim, por exemplo, a denominação de objeto atribuída
aos atores da pesquisa, mesmo em um quadro qualitativo, remete a resquícios de
uma outra epistemologia, em que o fato social era analisado como uma coisa, na
qual “a disjunção entre sujeito (ego cogitans) e objeto (res extensa)” mutila a ativida-

24 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


de científica (Morin, 1996, p.31). Da mesma forma, a denominação ator não é
necessariamente sinônimo de sujeito – como no quadro do individualismo
metodológico. As linhas de pesquisa que continuam a considerar como objetos os
alvos de seus estudos situam-se, evidentemente, mais perto dos cânones de uma
sociologia tradicional: ainda não fizeram uma reflexão sobre os processos de
objetivação como garantia da distância entre pesquisador e pesquisados, como quanto
à propriedade do pesquisador ser o único veículo de atribuição de sentido. É nessa
direção que Luc Boltansky (apud Dosse, 1995) questiona a teoria da reprodução,
que apresenta “um mundo totalmente objetivado, sem sujeito” apesar de preten-
der “levar em conta a experiência dos atores sociais”.
É, assim, extremamente importante “revisitar os recortes clássicos entre
objeto e sujeito” (Dupuy, 1982, p.274). Por isso, o ponto central a descrever aqui é
a maneira pela qual o pesquisador se refere, em sua produção científica, às pessoas
ou às comunidades que estuda – tradução do respeito que lhes manifesta e do
estatuto que atribui ao seu papel na compreensão de suas práticas.

OS TRÊS LADOS DO TRIÂNGULO

Até o momento, discutimos separadamente, para fins analíticos, cada um


dos elementos do processo de pesquisa. No entanto, temos ampla consciência das
limitações desse procedimento. Pensamos, como Elias (1983), que um tal procedi-
mento analítico – que visa conhecer o todo pela decomposição de suas partes – é
inadequado quando temos a ambição de reconstituir configurações complexas. A
simples justaposição dos elementos do triângulo é insuficiente; são os sistemas de
relações entre esses elementos – os quais passamos a analisar agora – que poderão
contribuir de forma mais acurada ao conhecimento do processo de pesquisa.

A RELAÇÃO PESQUISADOR/LITERATURA CIENTÍFICA

Esta seção visa esclarecer a mediação exercida pela comunidade científica na


legitimidade e na difusão do conhecimento.
Como já foi dito na seção dedicada à literatura científica, na descrição do
trabalho de um pesquisador, um dos indicadores obrigatórios é o tipo de literatura
científica por ele consultada, utilizada ou citada em seus trabalhos, as fontes que
informam sua prática científica. A relação estabelecida entre os pesquisadores e a
literatura passa necessariamente pela mediação da comunidade científica, enquanto
esta se define pela própria relação autor/leitor, na qual pessoas lêem os trabalhos

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 25


uns dos outros ou estabelecem comunicações informais (Allen, Qin, Lancaster, 1994).
A literatura selecionada pelo pesquisador está em estreita relação com o tipo de
relações acadêmicas que estabelece, com os círculos por ele freqüentados, com a
linha de pesquisa à qual ele se filia, com as redes de pesquisa às quais pertence etc.
Na verdade, a literatura nada mais é do que uma reificação do conhecimento cien-
tífico produzido por esse grupo de referência. Assim, a mediação principal entre o
pesquisador e o conjunto de referências bibliográficas que ele utiliza passa necessa-
riamente pelas relações sociais que ele seleciona dentro da comunidade científica à
qual pertence, por estar inscrito dentro de uma área disciplinar.
Parece-nos evidente que todo pesquisador está, em princípio, inserido nos
marcos de uma comunidade científica mais ampla, que se inscreve em uma discipli-
na determinada, que define os limites de sua maneira de fazer ciência. Nesse senti-
do, uma das definições de paradigma fornecidas por Kuhn (1990, p.393) está em
ligação estreita com o conceito de comunidade científica: “Um paradigma é o que
compartilham membros de uma comunidade científica e somente eles”. Contudo,
há nessa concepção um risco iminente, na medida em que as regras do campo
podem impedir a emergência de grupos inovadores, sempre que o paradigma glo-
balmente adotado manifesta suficiente coesão. Torna-se assim difícil a formação
desses pequenos grupos de eleição que se constituem, em princípio, pela partilha
de referências e de critérios comuns e pelo exercício de uma prática similar de
pesquisa – uma das maneiras de assegurar a cumulatividade necessária a todo saber
científico – sobretudo quando eles reivindicam referências que colocam em ques-
tão o paradigma global. Com referência a essa comunidade, Popper, segundo Morin,
insiste em dois aspectos muito importantes.

O primeiro, é que haja um consenso não apenas sobre as regras do jogo, mas tam-
bém sobre as aspirações profundas ao saber, à verdade, e até sobre um certo núme-
ro de valores e crenças quanto à missão da ciência. O segundo, é que não basta que
haja o consenso da comunidade – comunidade que é gemeinschaft –, é necessário
que haja também aspectos de sociedade – gesellschaft –, aspectos de rivalidade e de
conflito. É necessário que haja oposições entre as teorias e, por trás das oposições
entre as teorias, a oposição das idéias metafísicas não ditas. É necessário também,
mesmo que isso seja penoso, que haja oposições e conflitos pessoais, que podem
resultar dos humores, das antipatias, das ambições e das frustrações. (1996, p.16)

As relações de poder também estão presentes dentro dessa comunidade


científica de eleição, como estão presentes na comunidade científica mais ampla,
em que cada disciplina científica busca assumir uma posição hegemônica, chegando

26 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


a reduzir ao silêncio as disciplinas minoritárias, como denunciaram Stenghers e
Bensaude-Vincent (1993). O fato de essa comunidade ser escolhida livremente pelo
pesquisador não o deixa imune à influência das regras que, segundo Bourdieu (1971),
definem o funcionamento de todo campo: regras impostas aos recém-chegados,
regras de aceitação, legitimidade e reconhecimento pelos pares, regras éticas e
deontológicas, hierarquias diversas e também, como assinala Caillé (1986), as resis-
tências da comunidade para reconhecer e legitimar abordagens inovadoras.

RELAÇÃO PESQUISADOR-OBJETO/SUJEITO DA PESQUISA

Visamos, aqui, mostrar o papel de mediação exercido pelas opções


metodológicas do pesquisador. Com efeito, o elo que une o pesquisador e seu
campo de pesquisa é a metodologia, entendida neste caso como

...o que se refere às relações das várias partes do estudo com a produção de dados/
informações ( ), que se preocupa com a ordem moral (regras, valores, priorida-
des, dadas às condições sociais e à ação individual) pressuposta na prática das ciên-
cias. É o estudo do que é definido como conhecimento legítimo e de como este
conhecimento é obtido e organizado. (Popkewitz, 1990, p.51-2, tradução nossa)

Na metodologia, o pesquisador “evidencia as opções que fez e de que modo


essas escolhas são adequadas ao problema de pesquisa” (Dobbert, 1990, p.289).
Partimos assim da premissa de que toda escolha do equipamento conceitual e ope-
racional a ser adotado em um estudo ocorre em razão de uma interação entre o
objeto a conhecer e a personalidade do pesquisador e, por isso, mais do que forne-
cer informações, denota “maneiras de se expressar relações no mundo que nos
permitem entender algumas das questões fundamentais subjacentes à ‘moderni-
dade’ do mundo em que vivemos” (Popkewitz, 1990, p. 65). Daí a importância de
explicitar-se e justificar as opções metodológicas contextualmente, mediante descri-
ção dos procedimentos priorizados e das formas pelas quais as informações foram
obtidas e sistematizadas, na medida em que só assim estaríamos praticando ciência
com um “forte senso de epistemologia social, isto é, da inter-relação da ciência com
as condições históricas dentro das quais ela funciona” (Popkewitz, 1990, p.65). O
autor rejeita o registro e a análise de eventos e fatos de maneira isolada das ocorrências
históricas, por meio de técnicas qualitativas ou quantitativas, defendendo a inclusão
da história como parte lógica da organização interna de uma determinada ciência.
Ao mesmo tempo, é mediante suas escolhas metodológicas que um pesqui-
sador delimita formas de construção do conhecimento e possibilidades de interação

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 27


com o objeto/sujeito. O tipo de relação de poder, a hierarquia estabelecida entre o
pesquisador e o objeto/sujeito de pesquisa também decorrem do método adotado
e vão influir diretamente na forma de produção do conhecimento, como já comen-
tamos amplamente. Na França, por exemplo, alguns grupos de pesquisadores incli-
nam-se cada vez mais em direção a uma orientação metodológica que considera o
processo de atribuição de sentidos como uma relação a ser construída entre o
pesquisador e aqueles a quem estuda, na qual o sujeito da pesquisa e o pesquisador
fazem ambos parte de uma relação de interpretação que implica a intersubjetividade –
e não mais como algo outorgado a partir do exterior, dentro da perspectiva meto-
dológica inspirada em Durkheim, que concebia o fato social como uma coisa.
Mas essa relação que leva à co-construção do conhecimento não é simples de
ser obtida. Como vimos acima, as correntes de pesquisa que radicalizam ao máximo
tal posição, chegando a delegar ao objeto/sujeito o poder de escolha do problema a
ser estudado, não conseguem inverter completamente a ordem hierárquica, na me-
dida em que ainda é o pesquisador quem define, quase sempre de cima para baixo,
as necessidades de teoria que têm os atores sociais. A questão é uma das mais
difíceis de resolver para o pesquisador, na medida em que a postura de reconheci-
mento de um estatuto não idêntico, mas justo, ao senso comum, pode dar-lhe a
impressão de que está perdendo o controle sobre o processo de pesquisa. Alguns
pesquisadores já comentaram, em círculos de estudo, como é difícil constituir uma
verdadeira relação de colaboração entre pesquisadores e sujeitos da pesquisa, em
que os dois atores possam considerar que ocupam posições diferentes, mas equiva-
lentes, pois a contribuição do senso comum é ou desvalorizada, ou superestimada.
Há assim necessidade de se repensarem e de se reconstruírem os papéis do
pesquisador e do ator social dentro da prática de pesquisa. De todas as maneiras,
não pretendemos resolver a questão neste artigo; tratamos apenas de indicar que o
lugar atribuído ao senso comum no sistema de pesquisa é um importante indicador
dessa complexa relação entre o pesquisador e o objeto/sujeito da pesquisa. Analisar
a forma pela qual ele é aceito e compreendido pelas diversas correntes torna-se
assim indispensável ao processo de produção do conhecimento.

A RELAÇÃO ENTRE LITERATURA E OS OBJETOS/SUJEITOS DA


PESQUISA

Nosso objetivo, nesta parte do trabalho, é mostrar como se estabelece a


relação entre ciência (ou senso crítico) e senso comum. A pesquisa qualitativa em
ciências humanas e sociais “exige um acesso particularmente direto ao pensamento

28 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


e à ação dos atores sociais” (Schön, 1996, p.222). É por sua produção científica que
melhor se pode avaliar a posição que um pesquisador estabelece com os objetos/
sujeitos de pesquisa no que se refere à produção do conhecimento. Podem-se
colocar várias questões a este respeito: que estatuto atribui o pesquisador às elabo-
rações que os atores sociais fazem das experiências por eles vivenciadas? Limita-se
a coletá-las como dados “neutros”, cuja análise poderá ser apenas feita por ele
mesmo, como pesquisador, na medida em que se concebe como o único detentor
do saber científico? Considera os demais participantes da pesquisa como também
exercendo o papel de pesquisadores em um contexto prático, na medida em que
sua reflexão apresenta semelhanças com o funcionamento do que se convencionou
chamar “método científico”, ou seja, na medida em que os sujeitos da pesquisa
também elaboram hipóteses para explicar suas ações e testam, na prática, essas
hipóteses? (Schön, 1996). Reconhece, como Pharo (1992, p.180), que “a maior
parte dos conceitos de que dispomos (em sociologia) são conceitos de senso co-
mum, e os que não o são ainda – porque são ou muito técnicos ou muito recentes
– não tardarão a se tornar, uma vez que a vulgarização se efetue”?
No campo das ciências sociais e humanas, levar em conta o senso comum
como um sistema coerente (Geertz, 1975) conduz à emergência de uma terceira
via entre explicação e compreensão na pesquisa, que se situa “entre a prevalência
da vivência e a prioridade à conceitualização” (Dosse, 1995, p.13). Alguns autores
já se engajaram nesta via: por exemplo, todo o trabalho de Boltansky, isolado (1990)
ou em colaboração com Thévenot (1983; 1987), empenha-se em reavaliar a com-
petência reflexiva dos não-especialistas, a capacidade do senso comum em ultrapassar
os casos singulares e atingir uma forma de generalização. Pharo (1992, p.119-30)
justifica amplamente sua visão de que o saber sociológico tem um forte fundamento
de senso comum. Essas correntes consideram que as competências cognitivas so-
bre a realidade não são mais exclusivamente atributo do pesquisador, colocando
em questão a noção de corte epistemológico. Ricœur diz que “não há oposição
entre a vivência e o conceito” (apud Dosse, 1995, p.172-5) e Morin afirma que

...não há corte epistemológico radical. Não há uma ciência pura, não há um pensa-
mento puro, não há uma lógica pura. A vida alimenta-se de impurezas, ou melhor, a
realização e o desenvolvimento da ciência, da lógica, do pensamento, tem necessi-
dade destas impurezas. (1996 , p.34)

O pesquisador é assim convidado a fazer apenas obra de clarificação, a partir


dos dados que lhes são oferecidos pelos atores sociais. A colocação em evidência
das capacidades reflexivas do senso comum é um convite ao questionamento da

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 29


clivagem entre o pesquisador e seu objeto, entre saber científico e senso comum.
Isso leva também a colocar em questão outro grande princípio da sociologia clássi-
ca, a saber, a posição naturalmente crítica, distante, do pesquisador que, apesar de
se preocupar em desvelar a posição normativa do senso comum, nunca deixa claro
seu próprio ponto de vista normativo. A importância atribuída a tais questões no
contexto da obra de um autor mostra o tipo de diálogo que ele estabelece com
seus informantes e o estatuto que lhes atribui no processo de produção do conhe-
cimento.

NO CENTRO DO TRIÂNGULO: RELAÇÕES DE PODER E


PREOCUPAÇÃO ÉTICA

Dois fatores situam-se no centro de nosso triângulo: as relações de poder e


a preocupação com a construção de uma ética do processo de pesquisa. Sua posi-
ção central significa que, no nosso entender, tanto um quanto outro fator permeiam
todos os aspectos e relações estabelecidas nesse processo. Se o primeiro fator já foi
estudado de maneira mais detalhada, o mesmo não se passa com o segundo, que
mereceu apenas considerações parciais. Com efeito, até agora, o estudo da dimen-
são ética no processo de pesquisa “se refere menos às condições de produção do
saber do que às conseqüências de sua produção” (Encyclopédie philosophique
universelle, 1990, p.887).
Como para as outras partes, tratamos aqui apenas de propor uma descrição
do lugar da ética nas diversas práticas de pesquisa, restituindo-lhe assim um princí-
pio de empirismo que se perdeu na forma abstrata sob a qual são geralmente trata-
das as questões éticas. Desejamos ainda restaurar a dimensão histórica e coletiva da
ética, na medida em que o grau de formalismo dos procedimentos de controle
institucional na matéria difere de país para país8 e de grupo para grupo9.
Assim, ao tratarmos a ética como uma preocupação constante do pesquisa-
dor ao longo do processo de investigação, estamos buscando uma definição de
ética que depende essencialmente das negociações que aí se estabelecem em vá-

8. A comunidade científica americana tende, nesse sentido, a ser mais prescritiva do que a
francesa. Não somente os diversos grupos profissionais têm códigos de ética regulamenta-
dos; as universidades americanas instituíram comissões de ética que visam analisar os efeitos
das pesquisas em ciências humanas e sociais sobre os sujeitos estudados.
9. Lembremos que, se os procedimentos de controle institucional são já tradição no campo das
ciências exatas (Elias, 1983), as lutas para sua instauração estão ainda no início no campo das
ciências humanas e sociais.

30 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


rios níveis. Primeiramente, cabe descrever os pressupostos mais amplos que orien-
tam a comunidade científica em seu conjunto – tendo-se em vista que a prática ética
de cada pesquisador encontra sua legitimação na concepção ética prevalente na(s)
comunidade(s) científica(s) à(s) qual(is) pertence. A seguir, no nível da corrente
epistemológica na qual se inscreve, o pesquisador se depara com as definições éti-
cas dos grandes paradigmas, com os comportamentos coletivos de seu grupo, ex-
pressos e legitimados tanto por meio da literatura produzida quanto pelas atividades
científicas promovidas pelo grupo de pares. Em terceiro lugar, temos que conside-
rar a negociação que ocorre na prática de pesquisa per se. Parece-nos oportuno
ressaltar que esses diferentes níveis de negociação não se dão de maneira cronoló-
gica e seqüencial, mas se inter-relacionam a todo momento. O pesquisador vê-se
constantemente questionando princípios preestabelecidos e construindo novos, ao
mesmo tempo em que busca fundamentos teóricos e práticos para as negociações
que desenvolve no processo de investigação.
Deter-nos-emos sobretudo no que se refere à dimensão cotidiana da ética
de pesquisa – ou seja, o que chamamos acima de “prática de pesquisa per se”.
Desenvolvida pelas correntes qualitativas das ciências humanas e sociais, essa refle-
xão centra-se prioritariamente sobre as interações concretas entre o pesquisador e
os sujeitos da pesquisa (instituições, grupos e indivíduos), quando da realização de
estudos de campo. House (1990, p.158), por exemplo, apresenta quatro princípios
éticos básicos para a realização de estudos de campo nessa área: respeito mútuo,
não coerção, não manipulação e suporte aos valores democráticos e às instituições.
Esse autor afirma que uma quantidade ainda considerável de estudos realizados se
mostra deficiente em pelo menos um desses três princípios10, apesar de todo o
debate sobre a posição de poder atribuída ao pesquisador. No entanto, no nosso
entender, um outro ponto-chave na ética das relações entre o pesquisador e o ator
social tem sido sistematicamente ignorado: as formas pelas quais o primeiro deve
devolver aos sujeitos de sua pesquisa a dádiva complexa que estes lhe fazem – de
sua reflexão, palavra, prática e imagem (Brito, Vasquez, 1999). Brito (1994) pensa
que os artigos científicos não bastam para que o pesquisador se desobrigue desse

10. Podem-se imaginar situações práticas em que a subscrição a esses princípios ideais – ainda
que necessária – não seria suficiente para garantir o trânsito do pesquisador de maneira eficaz
no campo. Muitas vezes, o que foi considerado uma invasão desrespeitosa em certos con-
textos não o seria em outros, na mesma época. O que é considerado ético no plano institucional
ou público pode não ser viável no plano comunitário. Assim, a própria experiência do pesqui-
sador tem um efeito retroativo na construção de sua ética no processo de pesquisa e suas
experiências passadas servem de base para futuras negociações.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 31


imperativo (na medida em que são, no mais das vezes, escritos para a comunidade
de pares) e sugere outras formas de fazê-lo, entre as quais uma discussão entre os
dois interlocutores/atores do campo sobre a interpretação dos dados e os resulta-
dos obtidos, que se insere na perspectiva de uma construção intersubjetiva do co-
nhecimento.
Mas a preocupação ética não se esgota na relação entre o pesquisador e os
atores sociais. Na verdade, ela permeia toda e qualquer interação estabelecida du-
rante o processo de investigação. Ela deveria começar por um processo de
objetivação da própria posição do pesquisador, visto que só esse processo permite
“que o pesquisador possa instituir uma distância com relação às dependências que
atuam sobre ele sem que ele tenha consciência” (Chartier, 1983, p.IV): por exem-
plo, as influências das injunções da carreira ou dos ideais e exigências dos grupos
com os quais ele se identifica.

Os pertencimentos, as posições e os interesses respectivos [de cada pesquisador]


organizam não somente as posições ideológicas declaradas mas também – o que é
mais interessante – as práticas científicas mais neutras e as decisões mais técnicas
[como] a escolha e o recorte dos objetos, o modo de constituição e de tratamento
dos dados, as formas de demonstração etc. (Chartier, 1983, p. IV, tradução nossa)

No que se refere à relação com a comunidade científica, a ética pode se


expressar pela maneira como são utilizados os recursos da literatura científica: a
maneira pela qual as idéias são referenciadas e os conceitos definidos, a proteção do
princípio da autoria, a forma de citar suas fontes, entre outros.
As diversas possibilidades de combinação entre os elementos do triângulo –
centro, vértices e lados – permitem compreender melhor a complexidade da di-
mensão ética no processo de pesquisa qualitativa. Nesse sentido, temos alertado,
ao longo deste texto, para a importância das diversas inter-relações que se estabe-
lecem no processo de pesquisa e chamado a atenção para o grau variável de liber-
dade que podem assumir as relações aí estabelecidas.

À GUISA DE CONCLUSÃO

O principal argumento deste artigo é considerar que ainda seria prematuro


propor um novo paradigma para as ciências sociais e humanas. Não se pode falar
de consenso quanto à sua denominação ou quanto às suas formas de legitimação
entre os adeptos das abordagens qualitativas de pesquisa. Pode-se certamente diag-
nosticar algumas convergências entre certas linhas de pesquisa, mas restam ainda

32 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


muitos pontos a sistematizar antes que possamos falar com propriedade em um
novo paradigma, entre os quais o lugar da “parte explícita e refletida da ação” (Dosse,
1995, p.164) no processo de pesquisa, o estatuto da interdisciplinaridade (Morin,
1990; 1996) ou o “ emprego de uma nova terminologia que redefina uma nova
objetividade indissociável da intencionalidade e da subjetividade ” (Dosse, 1995,
p.13). Por isso, preferimos no momento a via da descrição das práticas dos pesqui-
sadores – sabendo que, dada a sua complexidade, a tarefa do conhecimento é
muito mais coletiva do que individual e necessita ainda “do encontro, da troca entre
todos os investigadores e universitários que trabalham nestes domínios disjuntos”
(Morin, 1996, p.33).
A referência constante à necessidade de um paradigma ocultaria talvez, como
sugere Schwandt (1995), o predomínio da visão positivista no seio de uma forma
de pesquisa que visa, ao contrário, combatê-la. Mas seria bom não esquecer que
essa referência oculta também uma luta de poder no interior do campo científico,
na medida em que quem conseguir formalizar o paradigma poderá atribuir-lhe seu
nome. Talvez a noção mesma de paradigma tenha que ser examinada mais de
perto. Para alguns autores, como Gauchet (1988), “a fluidez relativa desta noção
permite relativizar a influência de um modelo de explicação nas ciências humanas,
que não é nem necessariamente uniforme nem utilizado por todos de maneira
unívoca”. Para outros, como Dosse (1995), ela encerra a idéia de momento, de
geração, de uma mesma busca de sentido.
Uma outra questão que emerge no contexto é a função de um esquema –
como o triângulo que apresentamos acima –, dentro de um pensamento que se
propõe a captar a complexidade do processo de pesquisa. O leitor atento poderia
perguntar-se se esse modelo relativamente simplista e bidimensional permite real-
mente alcançar uma descrição densa e complexa.
A resposta à questão comporta pelo menos dois argumentos. O primeiro
apóia-se no fato de que o triângulo é, nesse caso, usado como a simples represen-
tação gráfica dos sistemas de relações entre os elementos do processo de pesquisa.
No decorrer do artigo, podemos perceber que é praticamente impossível falar do
poder do pesquisador sem nos referirmos aos sujeitos da pesquisa, falar de literatu-
ra sem evocar a comunidade científica, e assim por diante. Cada elemento encon-
tra-se em uma relação multifacetada com os demais. É nesse sentido que inscreve-
mos nosso triângulo em um círculo, visando representar o processo de pesquisa
em sua totalidade, que transmita a idéia de que cada um desses elementos está
englobado em um todo maior, que possa ilustrar as relações e reciprocidades entre

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 33


todos os níveis de análise. O triângulo que apresentamos neste texto não tem a
pretensão de ser, como diz Morin, ao referir-se aos seus próprios esquemas, “um
esquema de integração sintético e harmonioso; há nele brechas entre cada instân-
cia... O problema da epistemologia complexa é fazer comunicar estas instâncias
separadas e, de certo modo, fazer o circuito” (1996, p.33). Além disso, ele não é a
única forma gráfica possível de se montar um quadro analítico para a pesquisa quali-
tativa. Nós o escolhemos em razão do consenso existente sobre sua capacidade
simbólica de exemplificar as relações complexas do processo de pesquisa, evitando
o mais possível o reducionismo inerente às representações binárias antes pratica-
das. Talvez a melhor forma para representar essa complexidade, ainda latente em
nossas comunidades científicas, fosse projetar o processo nas três dimensões do
espaço: em vez de um triângulo inscrito em um círculo, poder contar com uma
esfera na qual se inscrevesse uma pirâmide que girasse em todas as direções, de tal
maneira que a alternância da posição de seus vértices pudesse representar a possi-
bilidade de movimento e de atualização constante no seio do processo de pesquisa.
No entanto, nosso desejo, ao abrir a discussão, não é que o leitor se atenha à forma
gráfica de representação escolhida – amplamente justificada ao longo do artigo –
mas, antes, centrar o debate na imbricação existente entre as relações de poder ine-
rentes a todo processo e à postura ética e teórico-metodológica do pesquisador.
O segundo argumento centra-se em nossa própria incapacidade de captar a
complexidade. Nossas pretensões em captá-la não são apenas afetadas pela forma
e pelas dimensões da representação gráfica. As dimensões binárias da folha de papel
atuam aqui como um símbolo de nosso espírito, limitado por nossa inscrição no
sistema binário de fazer ciência no qual fomos socializadas – o que torna extrema-
mente difícil captar esta mesma complexidade a que aspiramos. Por mais que quei-
ramos, como Elias (1983), desaprender as categorias mais habituais e os recortes
mais tradicionais da ciência, somos ainda obrigadas, como Dufour (1989), a utilizar
raciocínios causais, modelos e formas algorítmicas ainda fortemente tingidas de
dualismo, na exposição de nossos trabalhos. Um pensamento verdadeiramente
triangular, que enfatize as relações complexas dos elementos da realidade é “dificil-
mente assimilável no estado atual de nossa racionalidade” (Dufour, 1989, p.134),
mas, segundo Morin (1996, p.20), temos que nos esforçar para construí-lo “com a
consciência de nossos limites e de nossas carências”.
Esperamos que as críticas e sugestões que possam advir da leitura deste
artigo sejam suficientemente construtivas para enriquecer a organização do campo
da pesquisa qualitativa – seja ou não para se construir um novo paradigma.

34 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


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38 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


RELEVÂNCIA E APLICABILIDADE DA
PESQUISA EM EDUCAÇÃO
ALDA JUDITH ALVES-MAZZOTTI
Faculdade de Educação da Universidade Estácio de Sá.
aldamazzotti@imagelink.com.br

RESUMO

Partindo das principais avaliações da qualidade da pesquisa em educação, o artigo sustenta


que todas as deficiências observadas são, ao mesmo tempo, decorrentes e realimentadoras
da pobreza teórico-metodológica apontada nessas pesquisas. A seguir, procura-se demons-
trar a importância da teorização sobre os resultados para favorecer a transferibilidade para
outras pesquisas dos conhecimentos produzidos, o que, por sua vez, facilita sua divulgação e
avaliação pela comunidade científica. Enfatiza-se finalmente que a identificação de padrões,
dimensões e relações, ou mesmo a construção de modelos explicativos, além de não ser
incompatível com o estudo de fenômenos microssociais, constitui etapa essencial à constru-
ção da teoria e à aplicação a outros contextos.
AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO – PESQUISA EDUCACIONAL

ABSTRACT

RELEVANCE AND APPLICABILITY OF EDUCATIONAL RESEARCH. Based on


encompassing evaluations of educational research, the article sustains that all the deficiencies
mentioned are both consequent and determinant of the poor theory/method approach
presented by that research. The importance of theorization is emphasized as a mean of fostering
transferibility of the knowledge produced, which, by its turn, facilitates its diffusion among
practitioners and its evaluation by the scientific community. Finally, it is sustained that the
identification of patterns, dimensions and relations, or even the construction of explicative models,
is not only compatible with the study of micro-social phenomena, but also constitutes an essential
step in the construction of theory and in its application to other contexts.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


p. 39-50, julho/ 2001 39
INTRODUÇÃO

A discussão sobre a qualidade da pesquisa em educação no Brasil já tem uma


longa história. Dentre as análises disponíveis em publicações nacionais, encontra-se
número significativo de avaliações sistemáticas que buscam oferecer um panorama
abrangente da pesquisa nessa área. Exemplos desse tipo de estudo são os trabalhos
de Gouveia (1971, 1976), que examinam a pesquisa educacional desde seu início
como atividade regular, com a criação do Inep em 1938, até a década de 70; o
trabalho de Gatti (1983), que estende a análise até 1982; e as resultantes do projeto
“Avaliação e perspectivas na área de educação” (Associação Nacional de Pós-Gra-
duação e Pesquisa em Educação – ANPEd, 1993), que cobre o período de 1982 a
1991. Outras análises, ainda que se dediquem a aspectos mais específicos, torna-
ram-se referências obrigatórias, como, por exemplo, os de Cunha (1979,1991),
Mello (1983) e Warde (1990).
Tais avaliações têm focalizado aspectos relativos tanto aos processos de produ-
ção das pesquisas quanto aos produtos, incluindo pesquisas docentes e discentes,
com a utilização de abordagens quantitativas e qualitativas. Quanto ao processo de
produção da pesquisa, foram destacados os seguintes problemas: (a) primazia do
ensino sobre a pesquisa no âmbito das universidades, deixando aos docentes pes-
quisadores pouca disponibilidade de tempo para a pesquisa e a orientação; (b) qua-
se ausência de equipes com articulação e continuidade suficientes para o estabeleci-
mento de linhas de investigação que favoreçam a produção de um corpo sólido e
integrado de conhecimentos e confiram um perfil próprio aos diferentes programas
de pós-graduação; e (c) falta de apoio efetivo das universidades e das agências de
fomento ao desenvolvimento de pesquisas.
No que se refere às deficiências apontadas nas pesquisas produzidas, des-
tacam-se: (a) pobreza teórico-metodológica na abordagem dos temas, com um gran-
de número de estudos puramente descritivos e/ou “exploratórios”; (b) pulverização
e irrelevância dos temas escolhidos; (c) adoção acrítica de modismos na seleção de
quadros teórico-metodológicos; (d) preocupação com a aplicabilidade imediata dos
resultados; e (e) divulgação restrita dos resultados e pouco impacto sobre as práticas.
Avaliações, em quantidade e qualidade reconhecidas, portanto, não nos fal-
tam. Infelizmente, porém, não estamos nos beneficiando suficientemente dos re-
sultados desse esforço, uma vez que essas deficiências, reiteradamente apontadas,
persistem até hoje.
Nos comentários que se seguem, examino alguns aspectos que me parecem
favorecer a persistência desses problemas, no que se refere especificamente à pro-

40 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


dução de dissertações e teses, procurando enfatizar o papel dos docentes e
orientadores que atuam nos cursos de pós-graduação. A preocupação com o apri-
moramento das teses e dissertações é justificada, não apenas pelo fato de que delas
se originou a quase totalidade de livros e artigos que constituem a bibliografia recen-
te no campo da educação (Cunha, 1991), mas principalmente porque elas repre-
sentam um importante indicador da qualidade dos pesquisadores que estamos for-
mando. Por outro lado, a ênfase no papel dos docentes que atuam na pós-gradua-
ção se deve ao fato de que nossa responsabilidade nesse processo não tem, no
meu entender, recebido a atenção necessária nessa discussão.

A CENTRALIDADE DA QUESTÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA

Todas as deficiências apontadas pelas avaliações mencionadas estão, a meu


ver, inter-relacionadas. Assim, a pobreza teórico-metodológica identificada nas pes-
quisas parece ser, em grande parte, responsável pela sua pulverização e irrelevância
e, também, pela adesão aos modismos e pela preocupação com a aplicabilidade
imediata dos resultados. Em outras palavras, o desconhecimento das discussões
teórico-metodológicas travadas na área leva muitos pesquisadores iniciantes, princi-
palmente os alunos de mestrado, a permanecerem “colados” em sua própria práti-
ca, dela derivando o seu problema de pesquisa e a ela buscando retornar com
aplicações imediatas dos resultados obtidos1. O fato de que esses estudos costu-
mam ser restritos a uma situação muito específica e de que a teorização se encontra
ausente ou é insuficiente para que possa ser aplicada ao estudo de situações seme-
lhantes resulta na pulverização e na irrelevância desses estudos. Por outro lado, a
pouca atenção dada ao conhecimento acumulado na área, ao não permitir uma
análise mais consistente dos referenciais conceituais disponíveis para a abordagem
do tema de interesse, favorece a adesão acrítica a autores “da moda”. Finalmente, o
pouco interesse que tais estudos despertam, pelas características anteriormente apon-
tadas, explica sua restritíssima divulgação e seu pouco impacto na prática educa-
cional considerada de maneira mais ampla2. Podemos concluir que todas as defi-

1. Não se está aqui criticando o fato de se desenvolver uma pesquisa a partir de dificuldades
encontradas na prática. Na realidade, muitas pesquisas pecam exatamente por seu completo
distanciamento dos problemas com que se defrontam os professores no cotidiano das salas
de aula. Mas se o pesquisador permanece no nível de sua prática específica e de seus interes-
ses individuais, sem uma tentativa de teorização que permita estender suas reflexões a outras
situações, pouco ou nada contribui para a construção de conhecimentos relevantes.
2. Para uma análise do pouco impacto da pesquisa educacional na prática, ver Kennedy (1997).

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 41


ciências mencionadas são, ao mesmo tempo, decorrentes e realimentadoras da
pobreza teórico-metodológica apontada nas pesquisas em educação.

TEORIZAÇÃO E TRANSFERIBILIDADE DO CONHECIMENTO

Decorrida uma década da última avaliação de larga escala mencionada, esses


problemas ainda persistem e alguns deles parecem ter-se agravado. De fato, em con-
gressos dos quais tive a oportunidade de participar e em projetos e relatórios que
analisei como parecerista de agências de fomento, assim como em bancas de disser-
tações e teses de que participei ao longo desta última década, tenho observado que
muitas das pesquisas atuais na área de educação parecem, cada vez mais, desconsiderar
que a produção do conhecimento científico constitui um processo de construção
coletiva. Um indicador bastante concreto disso é a despreocupação, cada vez maior,
nos projetos e relatórios de pesquisa, de situar o problema proposto no contexto
mais amplo da discussão acadêmica sobre o tema focalizado. Isso se verifica tanto pela
falta de uma introdução que proporcione um “pano de fundo” às questões focalizadas
quanto pela ausência de comparações entre os resultados obtidos e aqueles origina-
dos por outros estudos relacionados ao tema, ou, ainda, entre os resultados e as
implicações de alguma teoria. Nesses casos, a impressão que se tem é a de que o
conhecimento sobre o problema começou e terminou com aquela investigação, con-
figurando uma espécie de “narcisismo investigativo” (Alves-Mazzotti, Gewandsznajder,
1999). Ao não situar o problema na discussão mais ampla sobre o tema focalizado, o
pesquisador reduz a questão estudada ao recorte de seu próprio estudo, restringindo,
assim, o número de interessados em seus resultados, o que contribui decisivamente
para dificultar sua divulgação.
Quando enfatizo a importância dessa contextualização do problema por meio
do diálogo com estudos anteriores, não me refiro à “revisão da bibliografia”, que
arrola autores e mais autores, usando a fórmula burocrática “ segundo fulano”, “para
beltrano”, deixando de fora o autor da pesquisa e não evidenciando sua funcionali-
dade na discussão dos resultados. Quando falo em diálogo, refiro-me à compara-
ção e à crítica que explicitam inicialmente a necessidade e pertinência do estudo
proposto, e, ao seu final, apontam corroborações e discordâncias entre os resulta-
dos obtidos e os estudos anteriores. Tais procedimentos não são formalismos aca-
dêmicos, são condições necessárias à cumulatividade e transferibilidade do conheci-
mento, assim como à formulação de teorias.
Sabemos que os paradigmas diferem entre si quanto à utilização de teorias.
Os argumentos usados para defender cada uma das posições são coerentes com

42 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


as raízes epistemológicas dos paradigmas que as propõem. Os construcionistas
sociais, por exemplo, defendem a não-utilização de teorias a priori, preferindo que
a teorização surja da análise dos dados. Argumentam que, dada a natureza idiográ-
fica e holística dos fenômenos sociais, nenhuma teoria previamente selecionada é
capaz de dar conta dos significados dessa realidade tanto do ponto de vista especí-
fico como global. Além disso, consideram que a adoção de um quadro teórico
anteriormente à coleta de dados turva a visão do pesquisador, levando-o a
desconsiderar aspectos importantes que não se encaixam na teoria (Lincoln, Gubba,
1985). Já os pós-positivistas, e também muitos teórico-críticos, valorizam a utiliza-
ção da teoria para a formulação de hipóteses e para a identificação de categorias de
análise. Argumentam que dificilmente um pesquisador inicia sua coleta de dados
sem que alguma teoria esteja orientando seus passos, mesmo que implicitamente,
e, nesse caso, é preferível torná-la pública. Alertam, ainda, que a ausência de
focalização e de critérios na coleta de dados freqüentemente resulta em perda de
tempo, excesso de dados e dificuldade de interpretação (Marshall, Rossman, 1989;
Milles, Huberman, 1984).
Argumentos de ambos os lados podem ser considerados válidos dependen-
do da situação estudada: a não-utilização de teorias a priori justifica-se no estudo de
situações pouco conhecidas. Se, entretanto, o pesquisador está lidando com um
fenômeno sobre o qual já existe conhecimento acumulado por outras pesquisas
realizadas em contexto semelhante, a utilização de um referencial teórico, seja ele
uma teoria mais ampla ou um ou mais constructos teóricos, ajuda a focalizar as
hipóteses e/ou questões a serem investigadas e a analisar os dados, evitando que o
pesquisador se perca em um emaranhado de informações das quais não conseguirá
extrair qualquer significado. Mas, se a teoria pode estar ausente no projeto, nem
mesmo os construcionistas sociais defendem sua ausência no produto final, uma
vez que se espera que o pesquisador construa sua teorização fundamentada nos
dados (grounded theory).
Entretanto, apesar da aparente valorização da teoria, o que temos visto é
que muitas pesquisas, sob a alegação de “dar voz” aos sujeitos ou de valorizar as
práticas, limitam-se a reproduzir falas e falas dos sujeitos, sem qualquer tentativa de
identificar regularidades, relações e categorias e/ou se servir de um instrumental
analítico capaz de organizar e dar sentido aos dados. A crescente valorização da
prática e da subjetividade parece estar levando a uma tendência à reificação da
prática e do sujeito, em prejuízo da construção de conhecimentos relevantes e do
diálogo com os autores que já se ocuparam do tema. Aparentemente, para fugir ao

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 43


equívoco de aceitar a teoria como verdade, cai-se no equívoco de transferir para os
sujeitos a posse da verdade3.
Mas o que me parece mais grave é que esse tipo de pesquisa também não
contribui nem para a transformação da vida dos sujeitos nem para a melhoria das
práticas. De fato, “dar voz” ao sujeitos que foram de alguma forma excluídos do
cenário é de pouca valia se não especulamos sobre como e por que essas vozes
foram antes silenciadas. Da mesma forma, a melhoria de práticas que se têm mos-
trado ineficazes exige a identificação dos aspectos recorrentes, bem como dos fato-
res que os condicionam. A compreensão das subjetividades e das práticas requer
que se busque relacioná-las às condições sociais em que foram produzidas, procu-
rando ir além da mera descrição, contribuindo para o debate mais amplo e para a
produção de conhecimentos que possam ser apropriados por outrem.
Igualmente preocupada com essas questões, Fonseca (1999), tomando es-
pecificamente a pesquisa etnográfica, procura mostrar que é possível chegar do
particular ao geral, pela utilização de modelos4 (que nada mais são do que uma
forma de teorização). Afirma que, na visão antropológica, a ênfase no aspecto social
das condutas, e também dos sentimentos, leva à procura de sistemas, de relações,
que vão além dos casos individuais, o que não significa anular as subjetividades.
Segundo a autora, por envolver um pequeno número de sujeitos e por insistir no
contato pessoal do pesquisador com eles, o método etnográfico propicia o estudo
da subjetividade, sem cair na “sacralização do indivíduo”.
Posição semelhante é defendida por Yin (1984), ao tratar da generalização
dos resultados em estudos de caso. Esse autor esclarece que nesse tipo de pesqui-
sa, como nas abordagens qualitativas em geral, não se trabalha com amostras re-
presentativas segundo as quais se pretende generalizar automaticamente os resulta-
dos para o universo que, teoricamente, aquela amostra representa. Assim, as pos-
sibilidades de transferência ou de utilização das conclusões de um estudo para outro

3 Muitos dos problemas aqui assinalados referem-se à maneira pela qual a perspectiva pós-
moderna foi apropriada pela pesquisa educacional. Constas (1998), em uma extensa revisão
de estudos que adotam essa perspectiva, aponta como características desses trabalhos: a) a
rejeição a grand theories; b) a utilização de um pequeno número de sujeitos; c) o primado da
narrativa; d) a ambigüidade do discurso; e e) a recusa em oferecer conclusões.
4 Os termos teoria e modelo relacionam-se a processos construtivos que nos permitem des-
crever e explicar fenômenos observados. Esses termos, hoje freqüentemente usados como
intercambiáveis, para Dellatre (1992) correspondem a noções distintas, segundo o maior
grau de abstração da teoria, em comparação com o modelo, este geralmente mais específi-
co, representando uma realidade concreta bem determinada.

44 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


repousa sobre o que ele chama de generalização analítica. Yin ilustra essa posição
com um estudo de Jane Jacobs intitulado “Morte e vida das grandes cidades ameri-
canas”. Embora o estudo tome por base a cidade de Nova York, a autora parte
desses dados para discutir aspectos teóricos mais amplos, como o papel das calça-
das e dos parques, a necessidade de quarteirões pequenos, os processos de
favelização e desfavelização, chegando à construção de uma teoria sobre planeja-
mento urbano que pode ser aplicada a outras grandes cidades.

TRANSFERIBILIDADE DO CONHECIMENTO E OBJETIVIDADE

A produção de conhecimentos “transferíveis”, isto é, conhecimentos que


possam ser aplicados a outras realidades, não apenas contribui para a acumulação
do conhecimento, mas também favorece a divulgação das pesquisas, uma questão
que não pode ser minimizada, na medida em que constitui condição necessária à
construção coletiva do conhecimento. Se insisto na responsabilidade do pesquisa-
dor em favorecer essa construção coletiva do conhecimento é porque, nesse pon-
to, concordo com Popper quando afirma que

A objetividade da ciência não é uma questão referente aos cientistas individuais e sim
ao resultado social de sua crítica mútua, da divisão de trabalho hostil-amistosa entre
os cientistas, de sua cooperação e também de sua competição. (1976, p.95)

Em outras palavras, a única objetividade a que podemos aspirar em nossas


pesquisas é aquela que resulta da crítica interpares, uma vez que ela permite expor
as tendenciosidades do pesquisador. Exatamente por ser intersubjetivo, esse pro-
cesso tem condições de minimizar os vieses de cada pesquisador, decorrentes de
sua experiência pessoal, inserção social e história. O uso do termo “objetivo”, no
que se refere a uma investigação, significa que esta atende a certos critérios de
qualidade, a padrões de procedimentos, embora a objetividade não deva ser con-
fundida com certeza ou verdade (Phillips, 1990). Em resumo, o que é crucial para a
objetividade de qualquer pesquisa é a aceitação da “tradição crítica”, isto é, do fato
de que a investigação deve ser o mais possível aberta à análise, à crítica e ao questiona-
mento da comunidade científica para que erros grosseiros e tendenciosidades do
pesquisador possam ser eliminados.
Nesse ponto, gostaria de retomar uma questão levantada por Cunha (1991),
com referência às bancas de teses e dissertações, uma vez que essa está diretamen-
te vinculada àquela que acabamos de mencionar. Cunha atribui grande parte da
responsabilidade pela baixa qualidade de muitos trabalhos desenvolvidos em nossas

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 45


pós-graduações ao que ele denominou “populismo pedagógico” (p.65). Afirma que
a significativa diversidade, em termos de formação, verificada entre os professores
por ocasião da criação desses cursos, e também entre os alunos, transformou disci-
plinas que seriam básicas em meras “introduções, desenvolvidas no nível das res-
pectivas disciplinas de graduação” (p.64), e nem sempre fazendo as devidas
vinculações com a Educação. O fato teria levado a um sistema de “facilitário” que se
evidencia nas bancas de dissertação e tese que, segundo o autor, se tornaram mais
uma “ação entre amigos” (p. 66) do que propriamente bancas examinadoras, apro-
vando trabalhos que não mereceriam a “cidadania acadêmica” (p. 64).
A esta avaliação gostaria de acrescentar alguns comentários. Tenho observa-
do, não apenas em bancas de teses e dissertações, mas em outras discussões aca-
dêmicas entre pesquisadores da educação, que estes parecem evitar a crítica, a
discordância, como se isso fosse uma forma de destruir o conhecimento produzido
e não a forma de construí-lo. Uma evidência dessa atitude pode ser encontrada no
referido texto de Cunha, em uma nota de rodapé, em que o autor declara:

Houve quem me alertasse para os possíveis usos que se poderiam fazer desta aná-
lise, especialmente contra os interesses da área nas agências de fomento. Não ado-
tei tal cautela devido ao fato de que outras áreas também se criticam, além do que,
os problemas aqui expostos não são totalmente desconhecidos fora do nosso âmbi-
to. (p. 64)

Vale aqui acrescentar que as áreas do saber que mais progridem são aquelas
que mais se expõem e que mais naturalmente aceitam a crítica mútua como prática
essencial ao processo de produção de conhecimentos confiáveis. No caso das ban-
cas de teses e dissertações, ao evitar a crítica do documento que supostamente
deveria estar sendo avaliado, desperdiça-se uma oportunidade preciosa de aprimo-
rar um trabalho que consumiu anos de dedicação do aluno e, freqüentemente, uma
soma considerável de recursos públicos.

O NECESSÁRIO RESGATE DA RELEVÂNCIA

Analisando a questão da qualidade das pesquisas realizadas nos programas


de pós-graduação em educação, Warde (1990) afirma que se ampliou tanto o con-
ceito de pesquisa que hoje nele tudo cabe: “os folclores, os sensos comuns, os
relatos de experiência (de preferência, a própria), para não computar os desabafos
emocionais e os cabotinismos” (p. 70). A autora tem razão quando assinala o
esgarçamento do conceito de pesquisa. Entretanto, por não ser esse um problema

46 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


circunscrito ao campo da pesquisa em educação nem ao nosso país, creio ser ne-
cessário analisá-lo no contexto mais amplo ao qual está vinculado.
A dificuldade atual de se definir o que constitui pesquisa está diretamente
vinculada às mudanças verificadas na conceituação de ciência e de método científi-
co, resultantes da crítica do paradigma positivista. A aplicação do modelo positivista
às ciências sociais, foi, como sabemos, questionado por muitos filósofos e pesquisa-
dores, sobretudo aqueles filiados à tradição interpretativista ou hermenêutica e ao
marxismo. Objeções pertinentes, de ordem epistemológica, ética e política, foram,
então, colocadas. Não cabe, aqui, discuti-las, mas apenas lembrar que esses questio-
namentos levaram muitos pesquisadores das ciências sociais a rejeitar a qualificação
de “científicos” para os conhecimentos e métodos produzidos em suas respectivas
áreas, por considerarem que “o método científico” não era adequado ao seu objeto
de estudo.
Entretanto, progressos ocorridos na filosofia da ciência, bem como suas re-
percussões nos debates travados no âmbito específico das ciências e práticas sociais,
modificaram substancialmente os conceitos de ciência e de método científico. Hoje
sabemos que todas as tentativas de estabelecer critérios de demarcação para distin-
guir, inequivocamente, o que pode e o que não pode ser considerado ciência,
falharam. Para complicar mais as coisas, entre as diversas correntes que constituem
a filosofia da ciência contemporânea, não há uma definição consensual do que seja
ciência (Alves-Mazzotti, Gewandsznajder, 1999).
A ausência de critérios de demarcação consensuais e o abandono da falsas
certezas prometidas pelo modelo tradicional de ciência parecem ter trazido uma
considerável desorientação aos pesquisadores, principalmente no campo das ciên-
cias humanas e sociais, o que, freqüentemente, descambou no vale-tudo. Se, de
um lado, essa desorientação parece compreensível, de outro, vemos que o
relativismo, que se alastra em nossa área, não tem contribuído para a construção de
conhecimentos suficientemente relevantes e confiáveis para orientar políticas e prá-
ticas educacionais.
Nada impede, porém, que pesquisas no campo da educação possam ser
rigorosas, atendendo assim aos requisitos da tradição científica. Aqueles que questio-
nam essa posição parecem basear-se em uma definição muito estrita e ultrapassada
de ciência, a qual implica necessariamente quantificação e aplicação do método
hipotético-dedutivo, esquecendo-se que, mesmo nas ciências naturais, nunca hou-
ve um método único que fosse adotado por todos os cientistas, nem mesmo du-
rante o período de hegemonia positivista.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 47


Cabe lembrar, ainda, que as conceituações de pesquisa científica encontra-
das nas ciências naturais, em suas diferentes faces, sempre decorreram da prática
concreta dos cientistas, constituindo-se através de um processo de construção his-
tórica. Assim, em um processo análogo, é perfeitamente legítimo construir, nas ciên-
cias sociais, uma idéia de cientificidade, que pode ser distinta da adotada nas ciências
naturais e mais adequada à natureza dos fenômenos por elas estudados, sem con-
tudo desprezar o rigor, como se este fosse uma seqüela positivista.
De fato, já contamos hoje, no campo das ciências sociais e da educação,
com uma variedade de modelos próprios de investigação, bem como com certos
critérios que servem tanto para orientar o desenvolvimento da pesquisa como para
avaliar a confiabilidade de suas conclusões. Admitir que esses critérios são decor-
rentes de um acordo entre pesquisadores da área, em um dado momento históri-
co, em nada compromete sua utilidade e relevância.

CONCLUSÃO

O grande desafio com que nos defrontamos hoje é conseguir aliar a riqueza
proporcionada pelo estudo em profundidade de fenômenos microssociais,
contextualizados, à possibilidade de transferência de conhecimentos ou à geração
de hipóteses para o estudo de outros contextos semelhantes. Proporcionar uma
“descrição densa” dos contextos e sujeitos da pesquisa, embora seja importante,
não nos parece ser suficiente para favorecer a transferibilidade dos conhecimentos
produzidos. A identificação de padrões, dimensões e relações, ou mesmo a cons-
trução de modelos explicativos, não é incompatível com o estudo de fenômenos
microssociais. Tais formas de elaboração do material empírico constituem etapas
essenciais na construção teórica, favorecendo a transferibilidade e a acumulação do
conhecimento sobre um dado fenômeno.
A aplicabilidade dos conhecimentos na área da educação depende do de-
senvolvimento de teorias próprias, da seleção adequada de procedimentos e ins-
trumentos, da análise interpretativa dos dados, de sua organização em padrões
significativos, da comunicação precisa dos resultados e conclusões e da sua valida-
ção pela análise crítica da comunidade científica.
Os problemas a serem enfrentados no campo da educação, em nosso país,
exigem soluções que precisam ser subsidiadas por um corpo de conhecimentos
significativamente mais amplo e mais confiável do que aquele que estamos produ-
zindo. Não desconhecemos os obstáculos que dificultam o desempenho dessa ta-
refa, dos epistemológicos aos institucionais. Mas nossa responsabilidade como pes-

48 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


quisadores e como professores de programas de pós-graduação não pode ser
minimizada. Não podemos abrir mão do compromisso com a produção de conhe-
cimentos confiáveis, pois só assim estaremos contribuindo, tanto para desenvolver
o instrumental teórico no campo da educação como para favorecer tomadas de
decisão mais eficazes, substituindo as improvisações e os modismos que têm guiado
as ações em nossa área. Nesse sentido, a busca da relevância e do rigor nas pesqui-
sas é também uma meta política.

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50 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


PESQUISA EM EDUCAÇÃO: BUSCANDO
RIGOR E QUALIDADE
MARLI ANDRÉ
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – Feusp
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP
marliandre@hotmail.com

RESUMO

O texto aborda questões relativas à busca de rigor na pesquisa em educação. Mostra que as
mudanças nos referenciais, nos contextos e nas metodologias dos estudos, nos últimos anos,
suscitaram questionamentos sobre a natureza dos conhecimentos produzidos, sobre os cri-
térios de julgamento dos trabalhos científicos e sobre os pressupostos dos métodos e técni-
cas. Além disso, analisa as condições reais que os pesquisadores enfrentam na produção de
conhecimento científico e conclui pela necessidade de lutar pela melhoria dessas condições.
MÉTODOS DE PESQUISA – PESQUISADOR – EDUCAÇÃO

ABSTRACT

EDUCATIONAL RESEARCH: SEEKING RIGOR AND QUALITY. The paper discusses some questions
related to the attempts to safeguard quality of educational research. It shows that it have been
many changes in research concepts, contexts and methodologies in the last years followed by
issues on the nature of scientific knowledge, on the criteria to evaluate scientific work and on
new methodologies assumptions. Further, it analyses real situations of knowledge production and
points out that it is mandatory to improve them.

Texto baseado na Conferência apresentada no III Seminário de Pesquisa em Educação –


Região Sul, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS – Porto Alegre, dez.
2000.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


p. 51-64, julho/ 2001 51
O que se considera uma boa pesquisa em educação? Devem existir padrões
universais dentro desse campo tão amplo e tão diverso de pesquisa? Se vamos
responder positivamente a esta questão, quem deve criar esses padrões? Com que
meios? Se for possível chegar a um acordo sobre quais sejam esses padrões, como
devem ser divulgados e implementados e quem fará isso? Essas questões provo-
caram intenso debate na reunião de 1991 da Academia Nacional de Educação –
NAE – norte-americana e levaram à formação de um grupo de trabalho que ficou
com a tarefa de analisar a situação da pesquisa em educação nos Estados Unidos e
fazer recomendações para o seu aperfeiçoamento.
Composto por seis experientes pesquisadores, como: Charles Bidwell, Ann
Brown, Jerome Bruner, Allan Collins, Ellen Langeman e Lee Shulman, o grupo orga-
nizou um livro, lançado em 1999, que tem o seguinte título: Questões da pesquisa
em educação: problemas e possibilidades. São 16 capítulos, reunidos em quatro par-
tes, que focalizam a pesquisa como um problema na história e na sociologia da
educação, as novas configurações na educação e na pesquisa social, a pesquisa como
vocação e a comunicação da pesquisa educacional. Segundo os editores do livro
(Langeman, Shulman, 1999) essa é apenas a primeira metade da tarefa do grupo,
que deverá se completar nos próximos anos.
Usei essa introdução com duplo objetivo: por um lado, para mostrar que
mesmo em um país com uma longa história de pesquisa e ampla produção há
interesse em rever e analisar criticamente o que vem sendo produzido na área e
em buscar caminhos para seu contínuo aprimoramento. Por outro lado, gostaria de
enfatizar que essa é – ou deve ser – uma tarefa coletiva e de longo prazo, que
precisa envolver todos aqueles que de alguma forma se preocupam com o desen-
volvimento e com os resultados das pesquisas na área de educação.
A conclusão do grupo de estudos anteriormente mencionado, após oito anos
de trabalho, é que, para assegurar a qualidade da pesquisa em educação, é preciso
promover o debate nas universidades, nas escolas, nas agências de fomento, nas
revistas, na internet, de modo a criar meios para que possam emergir concepções
consensuais do que seja uma “boa” ou uma “mᔠpesquisa.
Considerando a experiência norte-americana, em que a formulação de
parâmetros para avaliar a qualidade da pesquisa em educação tornou-se uma emprei-
tada coletiva e de longo prazo, e acreditando que para isso precisamos expor idéias
e pontos de vista, é que me disponho, nesse momento, a trazer algumas questões
que, ao se juntarem a outras apontadas por colegas da área, em publicações e em
eventos científicos, possam vir a fazer parte de um debate cada vez mais amplo e
rico na busca do aperfeiçoamento da pesquisa em educação.

52 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


Para entender as razões que têm levado os pesquisadores, nos últimos anos,
a se preocuparem com a redefinição dos critérios de julgamento dos trabalhos cien-
tíficos, é importante situar as mudanças que ocorreram no campo da pesquisa nas
áreas humanas e sociais.

OS NOVOS RUMOS DA PESQUISA

Nos últimos 20 anos, ao mesmo tempo em que se observa um crescimento


muito grande no número de pesquisas da área de educação no Brasil, oriundo
principalmente da expansão da pós-graduação, observam-se também muitas mu-
danças, seja nas temáticas e problemas, seja nos referenciais teóricos, seja nas abor-
dagens metodológicas e nos contextos de produção dos trabalhos científicos.
Os temas ampliam-se e diversificam. Os estudos que nas décadas de 60-70
se centravam na análise das variáveis de contexto e no seu impacto sobre o produ-
to, nos anos 80 vão sendo substituídos pelos que investigam sobretudo o processo.
Das preocupações com o peso dos fatores extra-escolares no desempenho de
alunos, passa-se a uma maior atenção ao peso dos fatores intra-escolares: é o mo-
mento em que aparecem os estudos que se debruçam sobre o cotidiano escolar,
focalizam o currículo, as interações sociais na escola, as formas de organização do
trabalho pedagógico, a aprendizagem da leitura e da escrita, as relações de sala de
aula, a disciplina e a avaliação. O exame de questões genéricas, quase universais, vai
dando lugar a análises de problemáticas localizadas, cuja investigação é desenvolvida
em seu contexto específico.
Os enfoques também se ampliam e diversificam. Como afirma Gatti (2000),
a propagação da metodologia de pesquisa–ação e da teoria do conflito no início dos
anos 80, ao lado de um certo descrédito de que as soluções técnicas iriam resolver
os problemas da educação brasileira fazem mudar o perfil da pesquisa educacional,
abrindo espaço a abordagens críticas. Recorre-se não mais exclusivamente à psi-
cologia ou à sociologia, mas à antropologia, à história, à lingüística, à filosofia. Constata-
se que para compreender e interpretar grande parte das questões e problemas da
área de educação é preciso lançar mão de enfoques multi/inter/transdisciplinares e
de tratamentos multidimensionais. Pode-se afirmar que há quase um consenso so-
bre os limites que uma única perspectiva ou área de conhecimento apresentam
para a devida exploração e para um conhecimento satisfatório dos problemas edu-
cacionais.
Se os temas e referenciais se diversificam e se tornam mais complexos entre
os anos 80 e 90, as abordagens metodológicas também acompanham essas mu-

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 53


danças. Ganham força os estudos chamados de “qualitativos”, que englobam um
conjunto heterogêneo de perspectivas, de métodos, de técnicas e de análises, com-
preendendo desde estudos do tipo etnográfico, pesquisa participante, estudos de
caso, pesquisa-ação até análises de discurso e de narrativas, estudos de memória,
histórias de vida e história oral.
As duas últimas décadas também assistiram a uma mudança no contexto de
produção dos trabalhos de pesquisa. Ainda que a grande maioria continue sendo
produzida nos programas de pós-graduação stricto sensu, as temáticas privilegiadas
e as formas de desenvolvimentos desses estudos vêm sofrendo modificações. Se
nas décadas de 60 a 70 o interesse se localizava nas situações controladas de expe-
rimentação, do tipo laboratório, nas décadas de 80 a 90 o exame de situações
“reais” do cotidiano da escola e da sala de aula é que constituiu uma das principais
preocupações do pesquisador. Se o papel do pesquisador era sobremaneira o de
um sujeito de “fora”, nos últimos dez anos tem havido uma grande valorização do
olhar “de dentro”, fazendo surgir muitos trabalhos em que se analisa a experiência
do próprio pesquisador ou em que este desenvolve a pesquisa com a colaboração
dos participantes. Essas novas modalidades de investigação suscitam o
questionamento dos instrumentais teórico-metodológicos disponíveis e dos
parâmetros usuais para o julgamento da qualidade do trabalho científico. Extrapolam
o campo da educação, encorajando o diálogo entre especialistas de diferentes áreas
do conhecimento, com diferentes bagagens de experiência e diferentes graus de
inserção na prática profissional.
A variedade de temas, enfoques, abordagens e contextos fez emergir, no
final dos anos 80, um debate salutar sobre o conflito de tendências metodológicas
(Lüdke, 1988; Luna, 1988; Franco, 1988) e sobre diferenças nos pressupostos
epistemológicos das abordagens (Smith, Heshusius, 1986), o que levou os pesqui-
sadores da área a procurarem autores que discutiam o conceito de cientificidade,
como Boaventura de Sousa Santos (1988). No decorrer da década de 90 o interes-
se pelas oposições diminui. Os olhares se voltam, então, para os problemas que
emergem no uso das novas abordagens de pesquisa.

QUESTÕES E QUESTIONAMENTOS

A diversidade de temáticas, enfoques, métodos e contextos trouxe, natural-


mente, questionamentos de diferentes ordens para a pesquisa em educação, entre
os quais podemos destacar:

54 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


a. O que caracteriza um trabalho científico? Qual a relação entre conheci-
mentos científicos e outros tipos de conhecimento? São questões referentes
aos fins da investigação e à natureza dos conhecimentos produzidos.
b. Como julgar o que é uma boa pesquisa? Quem define esses critérios? São
questões relativas aos critérios de avaliação da qualidade dos trabalhos
científicos.
c. Que procedimentos devem ser seguidos para manter o rigor na coleta
e análise dos dados? São questões voltadas aos pressupostos dos mé-
todos e técnicas de investigação, tanto em situações que focalizam proble-
máticas locais quanto nas que abordam um grande número de obser-
vações.

Vamos examinar cada um desses questionamentos:

Fazer ciência ou política de intervenção?

Qual é, ou deve ser, o propósito da pesquisa? Para que ou para quem se


devem produzir os conhecimentos? Essas são questões que têm estado presentes
nos debates acadêmicos e podem ser encontradas em diversas revisões críticas da
pesquisa educacional.
Se, para alguns, a pesquisa objetiva a geração de conhecimentos (novos?)
gerais, organizados, válidos e transmissíveis, para outros, ela busca o questionamento
sistemático, crítico e criativo. Se alguns centram sua atenção no processo de desen-
volvimento da pesquisa e no tipo de conhecimento que está sendo gerado, outros
se preocupam mais com os achados das pesquisas, sua aplicabilidade ou sua utilida-
de social.
Em um balanço recente da pesquisa em educação, Gatti (2000)* nos fala de
uma tendência dos trabalhos da área para um pragmatismo imediatista, tanto na
escolha dos problemas quanto na preocupação com uma aplicabilidade direta dos
resultados. Embora reconhecendo a necessária origem social dos temas e proble-
mas da pesquisa em educação e a importância das questões que no imediato são
carentes de análise e proposições, ela nos alerta para a tendência do recorte exces-
sivamente limitado e para as análises circunscritas aos aspectos aparentes dos pro-

* Trata-se da versão original do texto, apresentada na Terceira Conferência de Pesquisa Sociocul-


tural de Campinas, e está sendo publicada nesta edição de Cadernos de Pesquisa, sob o título:
“Implicações e perspectivas da pesquisa educacional no Brasil contemporâneo” (N.da E.).

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 55


blemas, deixando de lado as perguntas mais de fundo e de espectro mais amplo.
Segundo ela, a pesquisa

...não pode estar a serviço de solucionar pequenos impasses do cotidiano, porque


ela, por sua natureza e processo de construção, parece não se prestar a isso, vez
que o tempo de investigação científica, em geral, não se coaduna com as necessida-
des de decisões mais rápidas. (2000, p.7)

E continua “a busca da pergunta adequada, da questão que não tem resposta


evidente é que constitui o ponto de origem de uma investigação científica”.
Há dez anos, encontramos considerações similares numa revisão de pesqui-
sas da pós-graduação em educação feita por Mirian Warde (1990). Ela afirma que

...apesar dos esforços em superar a visão estreitamente técnica e administrativa que


herdamos dos intelectuais-dirigentes escolanovistas, mantemos em nossa área uma
tônica técnico-administrativa, de um tal jeito que parece-nos estar sempre produ-
zindo com vistas à aplicabilidade. (p.72)

Temos, segundo ela, uma preocupação pragmática que nos leva sempre a
“justificar que, apesar das aparências em contrário, o que estamos produzindo tem,
em última instância, uma utilidade social” (p.72) E ela conclui:

Não é casual que tenhamos substituído, no discurso, o critério de relevância cientí-


fica (em razão de sua dubiedade política e ideológica) pelo ainda mais duvidoso
critério de relevância social. Continuamos pragmatistas, mas agora em nome do
coletivo! (p.72)

Outra pesquisadora que traz posições provocativas e instigantes nessa dis-


cussão é Marília G. Miranda (2000), ao abordar o tema da articulação ensino e
pesquisa, no debate contemporâneo sobre a formação dos professores e, mais
especificamente, ao comentar a literatura recente sobre a formação do professor
reflexivo/pesquisador.
Segundo Miranda, a literatura que focaliza a problemática do professor
reflexivo/pesquisador trata também das relações entre o conhecimento acadê-
mico e o conhecimento dos profissionais práticos, fazendo uma crítica pesada ao
elitismo da universidade. Essa literatura, segundo ela, tem vários méritos: (a) valo-
riza a ação do professor como caminho para sua autonomia e emancipação; (b)
busca propósitos justos e generosos ao dar voz ao professor para melhorar a
prática, combater as desigualdades e a exclusão;(c) faz uma crítica salutar às univer-
sidades e às suas relações com os profissionais práticos. A preocupação da autora,

56 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


no entanto, é com a possível adoção acrítica dessa perspectiva, o que pode cau-
sar sérios problemas, como: (a) converter-se numa retórica legitimadora da reforma
educacional, pondo nos ombros do professor toda responsabilidade pelo seu
insucesso; (b) ao insistir num processo de reflexão orientado para resolver pro-
blemas imediatos da prática pode confirmar uma prática adaptativa aos proble-
mas, e não transformadora; (c) “ao negar a teoria como parte necessária do pro-
cesso de autonomia não estaria reduzindo, em lugar de elevar, as reais possibili-
dades de reflexão crítica do professor”? (d) o pressuposto de que o conhecimen-
to é importante porque útil e imediatamente aplicável à prática não estaria afas-
tando o professor de uma reflexão teórica que não esteja orientada para um fim
imediato? (e) corre-se o risco de desqualificar a universidade como instância for-
madora de professores; (f) “pode-se converter o exercício da pesquisa em ação
esvaziada de significados se não lhe for garantida uma formação teórica sólida,
preocupada não com os aspectos imediatos da vida escolar, mas também com
outras grandes questões da cultura e da sociedade contemporânea” (p.9). Segun-
do ela, “sem teoria não há emancipação” (p.9).
Compartilhamos de muitas das preocupações da autora, pois temos visto
surgir, nos últimos anos, uma tendência de apoio incondicional aos estudos que
envolvem algum tipo de intervenção, aliada a uma crítica veemente ao caráter dis-
tante e acadêmico das pesquisas produzidas na universidade. No fundo dessa polê-
mica está uma supervalorização da prática e um certo desprezo pela teoria.
Com experiência nesse tipo de pesquisa, percebo quão difícil é conciliar os
papéis de ator e de pesquisador, buscando o equilíbrio entre a ação e a investigação,
pois o risco de sucumbir ao fascínio da ação é sempre muito grande, deixando para
o segundo plano a busca do rigor que qualquer tipo de pesquisa requer.
As questões a serem perseguidas na área de educação são ainda tantas e de
tamanha variedade que não podemos nos perder em polêmicas que só nos deixa-
rão cada vez mais distantes da realidade. São tantas as perguntas relevantes que
ainda não foram formuladas, tantas as problemáticas que ainda precisamos conhe-
cer, que sobram espaços para todo tipo de investigação, desde que se cuide da
sistematização e controle dos dados. Que o trabalho de pesquisa seja devidamente
planejado, que os dados sejam coletados mediante procedimentos rigorosos, que a
análise seja densa e fundamentada e que o relatório descreva claramente o proces-
so seguido e os resultados alcançados.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 57


Como julgar a pesquisa?

O que se considera uma boa pesquisa? Que critérios vêm sendo usados para
julgar a pesquisa em educação? Em que medida certas pesquisas merecem ser fi-
nanciadas e outras não? Essas são questões que povoam o dia-a-dia da academia,
dos orientadores dos programas de pós-graduação e das agências de fomento. Há
pontos a atribuir, notas a dar, recursos a conceder que dependem de respostas a
essas questões.
Os clássicos critérios de validade, fidedignidade, generalização seriam suficien-
tes? Ou se deve recorrer a novos critérios? Quem definiria esses novos critérios?
Seriam apoiados em que concepção de conhecimento? Essas questões começaram
a surgir no final do século XIX, quando os cientistas sociais questionaram o modelo
tradicional de pesquisa, julgando-o insatisfatório para a compreensão dos fenôme-
nos humanos e sociais. As críticas, naquele momento, dirigem-se não só aos pres-
supostos e aos métodos de pesquisa, mas também aos critérios tradicionalmente
utilizados para julgar os trabalhos científicos.
As críticas fazem surgir novas propostas, novos modelos de conceber e rea-
lizar pesquisas – as abordagens qualitativas – que levam à proposição de novos
critérios de julgamento, alguns se contrapondo aos já conhecidos e respeitados,
outros se referindo aos aspectos específicos dos novos tipos de estudo. Para subs-
tituir a validade surge a plausibilidade, no lugar da fidedignidade aparece a credibilidade,
e em vez de generalização fala-se em transferência (Lincoln, Guba, 1985). Além
desses, surgem outros critérios, como: a triangulação de métodos, sujeitos, pers-
pectivas (Denzin, 1978); a validação pelos pares (Dawson, 1982) e a generalização
naturalística (Stake, 1978).
Mas, seriam esses critérios adequados para todos os tipos de pesquisa? Ou
se deveria definir alguns mais gerais e outros que se diversificariam segundo o tipo
de pesquisa?
Tendo a responder positivamente à segunda questão, ou seja, creio que há
alguns pontos básicos a serem observados em qualquer tipo de estudo e outros
mais específicos aos tipos de pesquisa. De qualquer modo, creio que a construção
desses critérios, tanto os mais gerais quanto os mais específicos, é uma tarefa cole-
tiva e de longo prazo.
Para que consigamos evoluir nessa direção é preciso que comecemos a expli-
citar os critérios seguidos para avaliar, por exemplo, os projetos enviados pelos pes-
quisadores ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
CNPq –, à Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior – Ca-

58 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


pes –, à Fundação de Amparo à Pesquisa – Fapesp – e os aspectos levados em conta
ao julgar os trabalhos dos pós-graduandos nas bancas de dissertação e tese.
Dentre esses critérios, destaca-se a importância de que os trabalhos apre-
sentem relevância científica e social, ou seja, estejam inseridos num quadro teórico
em que fiquem evidentes sua contribuição ao conhecimento já disponível e a opção
por temas engajados na prática social.
Há também uma cobrança para que as pesquisas tenham um objeto bem
definido, que os objetivos ou questões sejam claramente formulados, que a meto-
dologia seja adequada aos objetivos e os procedimentos metodológicos suficien-
temente descritos e justificados.
A análise deve ser densa, fundamentada, trazendo as evidências ou as provas
das afirmações e conclusões. Consideramos que deve ficar evidente o avanço do
conhecimento, ou seja, o que cada estudo acrescentou ao já conhecido ou sabido.
Esses seriam os critérios gerais, utilizados para julgar os trabalhos científicos.
Teríamos que pensar, então, nos aspectos mais específicos para avaliar tipos diferen-
tes de pesquisa.
Por exemplo, nos estudos do tipo etnográfico destacam-se: (a) o papel da
teoria na construção das categorias; (b) a necessidade de se respeitar princípios da
etnografia, como a relativização (centrar-se na perspectiva do outro) e o estranha-
mento (esforço deliberado de análise do familiar como se fosse estranho); (c) o
desenvolvimento do trabalho de campo com apoio em observação planejada, e em
instrumentos e registros bem elaborados. Aponta-se a importância de que o relató-
rio apresente vinhetas descritivas, citações literais de falas e de documentos que
comprovem as interpretações feitas e que sejam explicitadas as justificativas de es-
colhas teóricas e metodológicas do pesquisador em cada momento e para cada
finalidade. Temos ressaltado ainda a necessidade de articulação entre o particular e
o geral, entre o micro e o macrossocial (André, 1995).
Na pesquisa-ação há a necessidade de tratamento adequado da subjetivi-
dade; a importância de que se distinga ação e pesquisa; e que as questões relativas
à ética sejam enfrentadas diretamente. Indagamos: quais os mecanismos de con-
trole da subjetividade? Como se dá o processo de participação? Quem decide o
que vai ou não ser publicado? Como são feitos o controle e a sistematização dos
dados?
Outros colegas têm nos acompanhado na busca de parâmetros para julga-
mento da pesquisa-ação. No Brasil, devemos dar destaque especial ao grupo coor-
denado por Corinta Geraldi, Dario Fiorentini e Elisabete Pereira, que após anos de

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 59


estudo organizou a publicação Cartografia do Trabalho Docente (1998), divulgando
o pensamento de diferentes autores e trazendo importantes contribuições ao de-
bate sobre a formação do professor reflexivo/pesquisador.
Um autor que tem nos servido como referência básica nessas questões é
Kenneth Zeichner que recebeu a importante atribuição de escrever, com Susan
Noffke, um capítulo sobre a pesquisa dos “práticos” (em inglês, practitioners) na
quarta edição do Handbook of research on teaching. Nesse capítulo, Zeichner, Noffke
(1998) mostram que a pesquisa-ação tem muitas vertentes, seguindo propósitos
bem diversos. Assim, segundo eles, ao se tentar definir critérios de avaliação para a
pesquisa-ação há que se levar em conta as diferentes vertentes e propósitos. Uma
das autoras que, no seu entender, consegue discutir critérios, dentro dessa pers-
pectiva, é Dadds (1995), ao propor que sejam levados em conta os seguintes ele-
mentos: a) o conhecimento gerado pela pesquisa; b) a qualidade do texto produzi-
do; c) o impacto da pesquisa na prática do pesquisador; d) o impacto da pesquisa no
crescimento e na aprendizagem profissional do pesquisador; e) a qualidade da cola-
boração na pesquisa.
Outra proposta interessante nessa discussão da pesquisa dos “práticos” é a
de Anderson e Herr (1999), que mostram como nos Estados Unidos a onda do
professor reflexivo vem sendo apropriada por algumas faculdades de educação sem
que se preocupem devidamente com manter o rigor. Segundo esses mesmos auto-
res, os programas que objetivam formar o professor reflexivo, por meio da pesqui-
sa-ação, não podem ser julgados pelos mesmos critérios de validade das pesquisas
positivistas nem das pesquisas naturalistas, mas, de qualquer maneira, exigem rigor.
Afirmam que muitas faculdades de educação que os adotam na prática têm pouca
clareza sobre o que significa desenvolver um programa rigoroso, que tenha como
foco principal o conhecimento dos “práticos”. Argumentam que os critérios de jul-
gamento da pesquisa acadêmica tradicional são inadequados para esse tipo de pes-
quisa e propõem, no caso, que se levem em conta: (a) validade externa: ou seja,
que se julgue o valor dos resultados (ou da ação). Segundo eles é preciso verificar se
o projeto culminou em uma ação e de qual natureza; (b) validade de processo: se a
configuração do problema e os procedimentos utilizados permitem chegar aos re-
sultados desejados e se as afirmações foram devidamente sustentadas; (c) validade
democrática: se as múltiplas perspectivas e interesses dos participantes foram con-
templados; (d) validade catalítica: se a pesquisa levou os participantes a conhece-
rem melhor a realidade para transformá-la; (e) validade dialógica: se houve iniciativa
de busca do diálogo com os pares para discussão do problema e dos resultados da
pesquisa.

60 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


Pode-se observar que há pontos comuns nesses critérios de julgamento da
pesquisa-ação: há preocupações epistemológicas referentes ao tipo de conheci-
mento produzido, preocupações metodológicas voltadas ao cuidado com os pro-
cedimentos de coleta e análise dos dados e há preocupações éticas relativas à qua-
lidade da colaboração e às mudanças efetuadas. São pontos importantes e legíti-
mos, que devem ser discutidos pelos pesquisadores da área e quiçá possam vir a se
tornar consensuais.

Falta de domínio dos pressupostos dos métodos e técnicas

Várias revisões de pesquisas (André, 2000; Carvalho, 1999; Gatti, 2000;


Warde, 1993) têm apontado a fragilidade metodológica dos estudos e pesquisas da
área de educação por tomarem porções muito reduzidas da realidade, um número
muito limitado de observações e de sujeitos, por utilizarem instrumentos precários
nos levantamentos de opinião, por realizarem análises pouco fundamentadas e in-
terpretações sem respaldo teórico. Isso é válido para os estudos do tipo levanta-
mento (survey), em que, segundo Gatti:

...verificamos hipóteses mal colocadas, variáveis pouco operacionalizadas ou


operacionalizadas de modo inadequado, quase nenhuma preocupação com a vali-
dade e a fidedignidade dos instrumentos de medida, variáveis tomadas como inde-
pendentes sem o serem, modelos estatísticos aplicados a medidas que não supor-
tam suas exigências básicas, por exemplo de continuidade, intervalaridade,
proporcionalidade... (2000, p.12)

Nos estudos “qualitativos”, a mesma autora indica:

...observações casuísticas, sem parâmetros teóricos, a descrição do óbvio,... análises


de conteúdo realizadas sem metodologia clara, incapacidade de reconstrução do dado
e de percepção crítica dos vieses situacionais, desconhecimento no trato da história
e de estórias, precariedade na documentação e na análise documental. (idem, p. 12)

A esses problemas eu acrescentaria outros que venho detectando numa re-


visão de estudos que abordam o tema da formação docente e usam a pesquisa-
ação: uma certa confusão entre o que seja ação formadora e pesquisa-ação, entre
o papel do pesquisador e o papel dos participantes, entre ensino e pesquisa ou
entre investigação e ação.
O respeito aos pressupostos dos métodos merece séria consideração, prin-
cipalmente por parte dos orientadores dos diversos programas de pós-graduação,
já que os problemas apontados são mais evidentes nos trabalhos dos pós-graduandos.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 61


AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

Ao focalizar a situação atual da pesquisa em educação não podemos deixar


de abordar as condições reais de produção do conhecimento. Afinal, em que con-
dições trabalham os pesquisadores? Com o que contam ou deixam de contar?
Por um lado, precisamos analisar as condições de produção do conhecimen-
to dos discentes. Qual a situação real que enfrentam os pós-graduandos para reali-
zar seus trabalhos?
No caso dos mestrandos, o tempo de formação é curto demais. É possível
formar o pesquisador em dois anos ou dois anos e meio? Não estaríamos compro-
metendo a qualidade da produção científica ao se fixar um tempo tão curto? É
verdade que alguns mestrandos passam pela iniciação científica e aí se nota a grande
diferença, pois isso os faz seguir mais rápido e, em geral, com um nível de qualidade
superior aos que não tiveram a mesma experiência. Mas esse programa abrange
ainda um número muito reduzido de alunos, o que torna seu impacto também
reduzido.
Há necessidade de se repensarem as exigências para uma dissertação de mes-
trado, pois em muitos programas de pós-graduação mantêm-se os mesmos padrões
de 30 anos atrás, quando o mestrado era completado num período de 5 a 10 anos.
Mas também não podemos abrir mão da qualidade, aceitando qualquer produto
pela redução do prazo, sob pena de desmoralizarmos totalmente a pesquisa.
No caso dos doutorandos, o tempo de titulação é maior, o número de disci-
plinas, em geral, menor e todos já têm alguma experiência de pesquisa, ainda que
seja só a do mestrado, o que lhes dá melhores condições (pelo menos aparente-
mente) para produzir bons trabalhos. Entretanto, percebe-se também que encon-
tram dificuldades, seja porque lhes faltam condições concretas, já que muitos man-
têm sua atividade profissional, viajam, não têm bolsa, seja porque os programas de
doutorado não oferecem atividades que os ajudem a realizar trabalhos com densi-
dade teórica e cuidado metodológico. Por exemplo, o envolvimento em grupos de
pesquisa poderia não só trazer uma rica contribuição para a formação do pesquisa-
dor, mas permitir a consolidação de linhas de pesquisa, o que certamente reduziria
as temáticas fragmentadas muito comuns e freqüentemente criticadas na área.
Por outro lado, precisamos considerar as condições de produção de conhe-
cimentos dos docentes/pesquisadores. Houve, sem dúvida, nos últimos dez anos,
uma mudança nas condições de realização da pesquisa em educação. A começar
pelos financiamentos que vêm minguando. Se nos anos 80 a Financiadora Nacional
de Estudos e Projetos – Finep – e o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais –

62 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


Inep – davam apoio a pesquisas da área, nos anos mais recentes esse apoio quase
foi extinto. Temos as fundações estaduais, mas também temos muito mais pesquisa-
dores qualificados para solicitar financiamento.
Mais grave que a redução dos financiamentos foi a subtração acentuada do
nosso tempo crítico, nos últimos anos. Com as aposentadorias e os processos de
enxugamento do quadro de docentes das universidades, estamos cada vez mais
sobrecarregados com aulas, comissões, reuniões, pareceres, trabalhos de alunos
para ler e avaliar, sobrando muito pouco tempo para a produção intelectual, para a
reflexão, para a crítica e para o tão necessário aprofundamento dos trabalhos.
Diante desse quadro, precisamos lutar pela melhoria das condições de pro-
dução do trabalho científico. Assumir muito seriamente, como tarefa coletiva, o
estabelecimento de critérios para avaliar as pesquisas da área, apresentá-los pu-
blicamente, ouvir as críticas e sugestões, mantendo um debate constante sobre
eles. Temos que continuar defendendo a qualidade nos trabalhos científicos e a
busca do rigor.

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64 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


IMPLICAÇÕES E PERSPECTIVAS DA
PESQUISA EDUCACIONAL NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO

BERNARDETE A. GATTI
Fundação Carlos Chagas. Programa de Pós-Graduação e Psicologia da Educação da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP
gatti@fcc.org.br

RESUMO

Este artigo busca recuperar no tempo aspectos do desenvolvimento das pesquisas educacionais
no Brasil, associando-os a conjunturas histórico-sociais. Trabalham-se algumas questões de teo-
rias e métodos, hegemonias de grupos de investigação e questões institucionais. Ressalta-se o
papel da década de 80, na qual vigorosos debates são travados, a partir dos quais vêm à luz
problemas intrínsecos a procedimentos de pesquisa e sua validade. Discute-se em que condições
se pode falar de impacto social das pesquisas educacionais, analisando-se a possível porosidade
dos conhecimentos advindos de pesquisas em educação nas ações de educadores e em políticas
educacionais, perguntando-se também se a consistência metodológica desempenha, nessa
porosidade, algum papel.
PESQUISA EDUCACIONAL – POLÍTICAS EDUCACIONAIS – BRASIL – METODOLOGIA DA
PESQUISA

ABSTRACT

IMPLICATIONS OF AND PERSPECTIVES ON EDUCATIONAL RESEARCH IN CONTEMPORARY


BRAZIL. This article studies the development of educational research in Brazil over time, relating
it to the social and historical context, working on such issues as theory and method, hegemony of
the research groups and institutional questions. The 1980s stand out as a time when vigorous
debates were engaged based on which problems intrinsic to research procedures and their validity
came to light. The article discusses under what conditions we can speak of the social impact of
educational studies on educational action and policy, analyzing the possible fallibility of knowledge
derived from such research and also asking whether methodological consistency plays some role
in this fallibility.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


p. 65-81, julho/ 2001 65
Trabalhos esparsos, reveladores de uma certa preocupação científica com
questões da área educacional, são encontrados no Brasil desde os primórdios do
século XX. Mas é com a criação, no final dos anos 30, do Instituto Nacional de
Pesquisas Educacionais que estudos mais sistemáticos em educação, no país, come-
çam a se desenvolver. Mais tarde, com o desdobramento do Instituto Nacional de
Estudos Pedagógico – Inep – no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e nos
Centros Regionais do Rio Grande do Sul, São Paulo, Bahia e Minas Gerais, a cons-
trução do pensamento educacional brasileiro, mediante pesquisa sistemática, en-
controu um espaço específico de produção, formação e de estímulo. A importância
desses centros no desenvolvimento de bases metodológicas, sobretudo da pesqui-
sa de caráter empírico, no Brasil, pode ser dada pelo contraponto com as institui-
ções de ensino superior e universidades da época nas quais a produção de pesquisa
em educação era rarefeita ou inexistente. O Inep e seus centros constituíram-se em
focos produtores e irradiadores de pesquisas e de formação em métodos e técnicas
de investigação científica em educação, inclusive os de natureza experimental. Seus
pesquisadores atuaram também no ensino superior e, por sua vez, professores de
cursos superiores passaram a trabalhar nesses centros, criando uma fecunda interface,
especialmente com algumas universidades, nas décadas de 40 e 50 dos anos nove-
centos. Com o desenvolvimento de pesquisas no contexto de equipes fixas, publi-
cações regulares, oferecimento de cursos para formação de pesquisadores, inclusi-
ve com a participação de docentes de diversas nacionalidades, especialmente lati-
no-americanos, esses centros contribuíram para uma certa institucionalização da
pesquisa, ao organizar fontes de dados e implantar grupos voltados à pesquisa edu-
cacional em universidades. Mas, foi somente com a implementação de programas
sistemáticos de pós-graduação, mestrados e doutorados, no final da década de 60,
e com base na intensificação dos programas de formação no exterior e a reabsorção
do pessoal aí formado, que se acelerou o desenvolvimento da área de pesquisa no
país, transferindo-se o foco de produção e de formação de quadros para as univer-
sidades. Paralelamente os centros regionais de pesquisa do Inep são fechados e têm
início investimentos dirigidos aos programas de pós-graduação nas instituições de
ensino superior.
No contexto dessa trajetória, e tendo durante algumas décadas uma produ-
ção bastante escassa e em grupos localizados, a pesquisa em educação no Brasil
passou por visíveis convergências temáticas e metodológicas. Segundo Aparecida
Joly Gouveia (1971, 1976), predominaram, inicialmente, um enfoque psicopedagó-
gico e temáticas como desenvolvimento psicológico das crianças e adolescentes,
processos de ensino e instrumentos de medida de aprendizagem. Em meados da

66 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


década de 50, esse foco desloca-se para as condições culturais e tendências de
desenvolvimento da sociedade brasileira. Nesse período o país estava saindo de um
ciclo ditatorial e tentava integrar processos democráticos nas práticas políticas. Vive-
se um momento de uma certa efervescência social e cultural, inclusive com grande
expansão da escolaridade da população nas primeiras séries do nível fundamental,
em razão da ampliação de oportunidades em escolas públicas, comparativamente
ao período anterior (Gatti, Silva, Esposito, 1990). O objeto de atenção mais co-
mum nas pesquisas educacionais passou a ser nesse momento a relação entre o
sistema escolar e certos aspectos da sociedade.
A partir de meados da década de 60, começaram a ganhar fôlego e destaque
os estudos de natureza econômica, com trabalhos sobre a educação como investi-
mento, demanda profissional, formação de recursos humanos, técnicas programa-
das de ensino etc. É o período em que se instalou o governo militar, redirecionando
as perspectivas sociopolíticas do país. Privilegiam-se os enfoques de planejamento,
dos custos, da eficiência e das técnicas e tecnologias no ensino e ensino profissio-
nalizante. A política científica passa a ser definida num contexto de macroplane-
jamento, direcionando os esforços e financiamentos no conjunto da política desen-
volvimentista, não fugindo a pesquisa educacional em sua maior parte deste cenário
e interesses.
Embora tenha predominado essa tônica nas pesquisas durante alguns anos,
especialmente as financiadas por órgãos públicos, as instituições de ensino superior,
ou outras ligadas à produção da pesquisa em educação, mantêm uma formação
diversificada de quadros. Com a necessária expansão do ensino superior e o traba-
lho em alguns cursos de mestrado e doutorado, que começam a se consolidar, em
meados da década de 70, ocorre não só uma ampliação das temáticas de estudo,
mas também um aprimoramento metodológico, especialmente em algumas
subáreas. Levantamentos disponíveis nos mostram que os estudos começam a fo-
calizar mais eqüitativamente diferentes problemáticas: currículos, caracterizações
de redes e recursos educativos, avaliação de programas, relações entre educação e
profissionalização, características de alunos, famílias e ambiente de que provêm,
nutrição e aprendizagem, validação e crítica de instrumentos de diagnóstico e avalia-
ção, estratégias de ensino, entre outros. Não só houve maior diversificação dos
temas, como também dos modos de focalizá-los. Passou-se a utilizar tanto méto-
dos quantitativos mais sofisticados de análise, quanto qualitativos e, no final da déca-
da, um referencial teórico mais crítico, cuja utilização se estende a muitos estudos.
Mas, nesse período, ainda predominaram os enfoques tecnicistas, o apego a
taxonomias e à operacionalização de variáveis e sua mensuração. A despeito de

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 67


algumas críticas aos limites desse tipo de investigação, a propagação do emprego
das metodologias da pesquisa-ação e das teorias do conflito no final dos anos 70 e
começo dos anos 80, ao lado de um certo descrédito de que soluções técnicas
resolveriam problemas de base na educação brasileira, contribuíram para o enri-
quecimento da pesquisa educacional e abertura de espaço a abordagens críticas.
Todo esse processo da década de 70 e início dos anos 80 faz-se num contex-
to político e social em que, num primeiro momento, a sociedade é cerceada em
sua liberdade de manifestação, tendo em vista a vigência da censura, em que se
impõe uma política econômica de acúmulo de capital para uma elite, e em que as
tecnologias de diferentes naturezas passam a ser prioritárias. Em um segundo momen-
to, deparamo-nos com movimentos sociais diversos que emergem e continuam a
crescer, criando espaços mais abertos para manifestações socioculturais e para críti-
ca social, inaugurando-se um período de transição, de lutas sociais e políticas, que
constroem a lenta volta à democracia. A pesquisa educacional, em boa parte, vai
estar integrada a essa crítica social, e, na década de 80, encontramos nas produções
institucionais, especialmente nas dissertações de mestrado e teses de doutorado –
as quais passam a ser a grande fonte de produção da pesquisa educacional – a
hegemonia do tratamento das questões educacionais com base em teorias de inspi-
ração marxista. Do ponto de vista metodológico, no entanto, é um período em que
ocorrem alguns problemas de base na construção das próprias pesquisas. Voltare-
mos a essa questão mais adiante.
Sendo a expansão intensa do ensino superior e da pós-graduação necessária
e inevitável, a formação de quadros no exterior também é grandemente expandida
na segunda metade dos anos 80 e inícios dos 90. O retorno desses quadros traz
para as universidades, no final da década de 80 e durante a década de 90, contribui-
ções que começam a produzir grandes diversificações nos trabalhos, tanto em rela-
ção às temáticas como às formas de abordagem. Concomitantemente a isso, alguns
pesquisadores experientes alimentam a comunidade acadêmica com análises con-
tundentes quanto à consistência e significado do que vem sendo produzido sob o
rótulo de “pesquisa educacional”. É também nesses anos que se consolidam grupos
de pesquisa em algumas subáreas, quer por necessidades institucionais, em razão
das avaliações de órgãos de fomento à pesquisa, quer pela maturação própria de
grupos que durante as duas décadas anteriores vinham desenvolvendo trabalhos
integrados. Descortinam-se, no final desse período, grupos sólidos de investigação,
por exemplo, em alfabetização e linguagem, aprendizagem escolar, formação de
professores, ensino e currículos, educação infantil, fundamental e média, educação
de jovens e adultos, ensino superior, gestão escolar, avaliação educacional, história

68 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


da educação, políticas educacionais, trabalho e educação. Esse movimento pode
ser acompanhado tanto pelas Conferências Brasileiras de Educação, dos anos 80,
como pelas reuniões anuais da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
em Educação – ANPEd. Essa associação teve, a partir do final da década de 70,
papel marcante na integração e intercâmbio de pesquisadores e na disseminação da
pesquisa educacional e questões a ela ligadas. Contando com mais de 20 grupos de
trabalho, que se concentram em temas específicos dos estudos de questões educa-
cionais, a ANPEd sinaliza bem a expansão da pesquisa educacional nas instituições
de ensino superior ou em centros independentes, públicos ou privados. Essa ex-
pansão traduz-se em números expressivos. Em suas reuniões anuais tem contado
com a participação de aproximadamente 2 mil especialistas, entre pesquisadores e
alunos dos mestrados e doutorados, com aumento sistemático de trabalhos que
são submetidos à apreciação de suas comissões científicas.
No entanto, com essa expansão também se evidenciaram problemas de
fundo na própria produção das pesquisas, os quais merecem alguma consideração.

TEORIA E MÉTODO

As novas perspectivas com que se trabalhou na pesquisa educacional, nas


décadas de 80 até meados dos anos 90, assentaram-se em críticas relativas a ques-
tões de teoria e método, que não estão resolvidas, mas deram novo impulso aos
trabalhos e alimentaram alguns grupos de ponta na pesquisa. Assim, a qualidade da
produção vai se revelar muito desigual quanto ao seu embasamento ou elaboração
teórica e quanto à utilização de certos procedimentos de coleta de dados e de
análise.
Estudos apontam a dificuldade de se construir, na área, categorias teóricas
mais consistentes, que não sejam a aplicação ingênua de categorias usadas em ou-
tras áreas de estudo, e que abarquem a complexidade das questões educacionais
em seu instituído e contexto social. Preocupa a compreensão das condições
determinantes dos fatos educacionais, como também preocupam os mecanismos
internos às escolas.
Essa dificuldade fez com que a investigação em educação mostrasse adesões
a sociologismos ou economismos de diferentes inspirações, de um lado, ou a
psicologismos ou psicopedagogismos de outro, especialmente as chamadas teorias
socioconstrutivistas. A consciência do problema a enfrentar, ou seja o do entendi-
mento mais claro da natureza do próprio fenômeno educacional, ou, pelo menos,
das concepções de educação que inspiram as práticas de pesquisa, não foi suficiente

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 69


para o enfrentamento dessas questões de base. A captação da estrutura desse fenô-
meno, bem como de sua dinâmica, não como idéias que delas fazemos, mas a
captação em sua concretude histórico-social, como parece ser a exigência que se
coloca para a pesquisa educacional, traz desafios teóricos e metodológicos que
permanecem em aberto.

DOMINÂNCIAS, PESQUISA E AÇÃO

Se a pesquisa em educação tendeu a se desenvolver com certas convergên-


cias históricas, verifica-se também que ela refletiu, nas décadas assinaladas, modelos
de investigação que vinham sendo propostos nos Estados Unidos, Inglaterra ou
França, tendo impacto aqui com certo retardo, muitas vezes com uma apropriação
simplificada quanto a seus fundamentos. Embora nem toda a produção assim se
caracterize, boa parte dela reflete o que poderíamos chamar de modismos periódi-
cos, provavelmente conseqüência da parca institucionalização e da ausência de uma
tradição de produção científica nessa área de estudos entre nós. Isso pode estar
associado, também, a certas características de desenvolvimento de estruturas de
poder na academia, e, portanto, das lutas por hegemonias, da aceitação por certos
grupos e manutenção de posições nas instituições em que a pesquisa educacional
tem seu curso.
Além desses modismos, que evidentemente se associam a determinadas
condições histórico-conjunturais, outra tendência que parece clara em muitos dos
trabalhos é a do imediatismo quanto à escolha dos problemas de pesquisa. Parece
dominar a preocupação quanto à aplicabilidade direta e imediata das conclusões,
que em geral se completam nos trabalhos por “recomendação”. Embora essa ten-
dência tenha-se atenuado nos últimos anos, ela é presença constante. O sentido
pragmático e de um imediatismo específico observável nos estudos feitos na área
educacional reflete-se na escolha e na forma de tratamento dos problemas. Esses
problemas, oriundos de práticas profissionais, são tratados, em geral, nos limites de
um recorte academicista discutível em seus alcances. Além disso, a relação pesqui-
sa-ação-mudança parece ser encarada de maneira um tanto simplista. Ainda que se
reconheçam a necessária origem social dos temas e problemas na pesquisa em
educação e a necessidade de trabalhos que estejam vinculados mais especificamen-
te a questões que no imediato são carentes de análise e proposições, uma certa
cautela quanto a essa tendência deveria ser tomada. Tal abordagem, na maioria das
vezes, na medida em que facilita a prevalência do aparente e do excessivamente
limitado, deixa de lado questões que são as realmente fundamentais. As perguntas

70 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


mais de fundo e de espectro mais amplo não são trabalhadas. O imediatismo traz
também consigo um grande empobrecimento teórico.
Isso não quer dizer que não devamos nos voltar para os problemas concre-
tos que emergem do cotidiano na história da educação vivida por nós – é aí que os
problemas tomam corpo –, mas a pesquisa não pode estar a serviço de solucionar
pequenos impasses do dia-a-dia, porque ela, por sua natureza e processo de cons-
trução, parece não se prestar a isso, vez que o tempo da investigação científica,
em geral, não se coaduna com as necessidades de decisões mais rápidas. A busca
da pergunta adequada, da questão que não tem resposta evidente, é que constitui
o ponto de origem de uma investigação científica. Nem sempre o esforço de
buscar hipóteses mais consistentes, de colocação de perguntas mais densas, é
encontrado na produção das pesquisas na área educacional, e o fato não ocorre
só em nosso país.
Nesse ponto, a relatividade do impacto dos resultados de investigações, cu-
jas dimensões são sempre difíceis de aquilatar, é um aspecto que deve ser lembra-
do. Acresça-se, ainda, que o levantamento de questões mais de fundo e a capaci-
dade de antecipar hoje problemas que estão se descortinando, mas cuja eclosão
não está visível, são pontos fundamentais na colocação de problemas para pesqui-
sa. Isso só é possível se existe uma certa constância e continuidade no trabalho de
pesquisadores dedicados a temas preferenciais por períodos mais longos, carac-
terizando uma certa especificidade em sua contribuição para um conhecimento
mais sistematizado. Essa condensação de grupos em algumas especialidades ou
temas é uma das dificuldades que encontramos na área da produção da pesquisa
em educação.

AS INSTITUIÇÕES

É necessário considerar que, de modo geral, nas universidades, onde a pes-


quisa educacional se desenvolveu, nem sempre encontramos condições institucionais
que a apóiem, e, nesse quadro, a investigação na área veio revestida de caracterís-
ticas de iniciativa individual. Tais condições atingiram os programas de pós-gradua-
ção stricto sensu, daí decorrendo, em parte, suas dificuldades para consolidar, até
recentemente, de modo fecundo, grupos de pesquisa com produção continuada.
Verificamos que, em alguns poucos programas de mestrado e doutorado, no final
dos anos 80, solidificam-se tendências de trabalho – poderíamos dizer, começavam
a formar tradição – enfrentando, todavia, condições institucionais internas ainda não
tão favoráveis. As universidades brasileiras, com raras exceções, não nasceram con-

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 71


jugando pesquisa e ensino; voltavam-se só para o ensino, para dar um diploma
profissionalizante, tanto as de natureza confessional, como as leigas privadas e algu-
mas das públicas. Elas não foram estruturadas para incorporar a produção de co-
nhecimento de modo sistemático, como parte de sua função, e, sequer, para discu-
tir o conhecimento. Elas se voltaram para a reprodução de um conhecimento que
não produziram, com o qual não trabalharam investigativamente, mas que absorve-
ram e transferiram. O espírito das “horas-aula” das instituições isoladas de ensino
superior igualmente se mostra nas universidades, especialmente as recém-criadas.
Muito pouco espaço abria-se para a pesquisa nessas instituições, a não ser a partir
de pouco tempo para cá, quando outras perspectivas sociopolíticas colocam novos
referenciais para a constituição de universidades. O grande desenvolvimento, no
final da década de 80 e nos anos 90, de programas de mestrado e doutorado, com
estímulos específicos à pesquisa e com avaliações periódicas, a redefinição das exi-
gências para as carreiras docentes universitárias, trazem mudanças substantivas nes-
se quadro institucional.

CONTRAPONTOS IMPORTANTES

Os anos 80 foram fecundos: palco de contrapontos importantes, decisivos


mesmo para o cenário atual da pesquisa em educação. Dois artigos publicados no
final desse período tipificam essas discussões. Refletindo o embate quanto aos
encaminhamentos das questões teórico-metodológicas entre os pesquisadores
em educação no período, Luna (1988) trabalha a idéia de um falso conflito entre
tendências metodológicas, e Franco (1988) argumenta por que o conflito entre
tendências metodológicas não é falso. A argumentação de Luna leva-o a afirmar
que a questão das diferenças metodológicas tem sido formulada em termos im-
precisos e que mesmo o sentido da palavra metodologia tem variado no tempo,
ora aproximando-se do âmbito das técnicas estatísticas, ora da filosofia ou da socio-
logia da ciência.
No entanto, para Luna, se o pesquisador explicita sua pergunta, ou proble-
ma, com clareza, elabora os passos que o levam a obter a informação necessária
para respondê-la e indica o grau de confiabilidade na resposta obtida, é possível
avaliar seu produto dentro do referencial próprio desse pesquisador. Supõe-se, com
isso, que os conflitos metodológicos seriam falsos, pois só poderiam estabelecer-se
no âmbito de crenças de confrarias restritas. Outros vieses sobre a questão adviriam
da consideração das diferentes técnicas como explicitadoras de diferenças
metodológicas, bem como pela tentativa de “confrontar diferentes tendências teó-

72 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


rico-metodológicas como se a verdade de cada uma pudesse ser atestada pela
fragilidade de outra”.
A base de suas análises é dada pela sua concepção de que a “realidade empírica
é complexa mas objetiva. Não traz nela mesma ambigüidades”. Já o indivíduo é
subjetivo, não sendo capaz de separar o objeto de sua representação. Daí o papel
da teoria, pois é mediante ela que se podem integrar os recortes que o homem faz
dos fenômenos.
Ao discutir as idéias de Luna, Franco (1988) adota o ponto de vista de que
não há como separar aquele que conhece do objeto a ser conhecido, ou seja, parte
da perspectiva de que o homem não é um ser meramente especulativo que precisa
controlar sua subjetividade e “sair de si mesmo” para gerar conhecimento científico.
O pensamento humano mantém uma relação dialética na construção das teorias
vinculadas à prática social de seus construtores e dos que as utilizam. Não cabe,
pois, dicotomizar sujeito e objeto nem teoria e prática. Considera a autora que a
formalização dos requisitos que Luna coloca como básicos em qualquer pesquisa,
qualquer que seja a metodologia, não é suficiente para expressar tendências meto-
dológicas e nem explicitar a abordagem teórica, muito menos expor o fio condutor
que dá significado aos procedimentos que adota, quaisquer que sejam, e mesmo à
investigação como um todo. É nesse nível que os conflitos se instalam, ou seja, no
processo em que homens concretos, historicizados, pesquisam uma realidade con-
creta, dinâmica. Enfoque do real, metodologia e teoria são interdeterminantes. Como
há enfoques conflitantes, há posturas metodológicas também conflitantes.
Parte desses confrontos tem a ver com a chamada pesquisa qualitativa, cujo
uso se expandiu pela busca de métodos alternativos aos modelos experimentais e
aos estudos empiristas, cujo poder explicativo sobre os fenômenos educacionais
vinha sendo posto em questão, como ocorreu com os conceitos de objetividade e
neutralidade embutidos nesses modelos. As alternativas apresentadas pelas análises
chamadas qualitativas compõem um universo heterogêneo de métodos e técnicas,
que vão desde a análise de conteúdo com toda sua diversidade de propostas, pas-
sando pelos estudos de caso, pesquisa participante, estudos etnográficos, antropo-
lógicos etc.
O confronto salutar, explicitado em todos esses trabalhos, foi o contexto no
qual se avançou, nos anos 90, nas produções e preocupações com a pesquisa em
educação. Conflitos entre posturas epistemológicas, métodos diversos e formas
específicas de utilização de técnicas, avanços na explicitação do objeto, problemas
de natureza institucional fazem parte da experiência nas lides dos que trabalham
com a investigação científica.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 73


OS PROCEDIMENTOS NA INVESTIGAÇÃO

Alguns problemas ligados ao uso de certos métodos na área educacional são


comuns aqui como na produção de outros países, inclusive nos considerados como
matriz dessa produção.
Questão que não se acha suficientemente discutida e trabalhada pelos pes-
quisadores é a tendência a não se aprofundar nas implicações do uso de certas
técnicas, e mesmo da propriedade e adequação desse uso e de sua apropriação de
forma consistente.
Observamos que, de pesquisas extremamente instrumentalizadas e de me-
didas aparentemente bem definidas, utilizando-se modelos estatísticos mais ou menos
sofisticados, saltamos para o lado oposto, e passamos a fazer a crítica acirrada à
inoperância desse modelo. Mas, devemos reconhecer que se caiu no absoluto de
uma crítica que nem sempre explicitou seus princípios e se deteve no discurso, na
maioria das vezes, vago, porque pouco fundamentado em conhecimentos consis-
tentes sobre o outro modelo, no caso o quantitativo, e, também, porque não ousar
dizer, sobre as alternativas apresentadas como solução, do tipo panacéia, para a
pesquisa em educação.
Aqui se enquadra a questão das opções pelo uso de modelos quantitativos
de coleta e análise de dados ou pelos chamados modelos qualitativos, ou seja,
aquelas metodologias que não se apóiam em medidas operacionais cuja intensidade
é traduzida em números. É preciso considerar que os conceitos de quantidade e
qualidade não são totalmente dissociados, na medida em que de um lado a quanti-
dade é uma interpretação, uma tradução, um significado que é atribuído à grandeza
com que um fenômeno se manifesta (portanto é uma qualificação dessa grandeza)
e, de outro, ela precisa ser interpretada qualitativamente, pois sem relação a algum
referencial não tem significação em si.
De qualquer forma, o conjunto de procedimentos de pesquisa que envolve
a quantificação stricto sensu e sua análise está atrelado às propriedades do conjunto
numérico associado às variáveis em estudo, portanto, à definição destas e à garantia
de que gozam de certas características. Isso impõe um tipo de lógica no tratamento
do problema em exame e o uso de delineamentos específicos para a coleta e aná-
lise dos dados, que nem sempre os pesquisadores dominaram, ou dominam, para
utilização adequada e enriquecedora.
Críticas de diferentes naturezas foram feitas entre nós a esses modelos
quantificadores, sem uma análise mais profunda das suas implicações e os estudos
com dados quantitativos foram praticamente banidos. Nos últimos anos, vemos

74 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


proliferar em nosso meio, bem como em muitos outros países, pesquisas em edu-
cação que se revestem de características bem diferenciadas, do ponto de vista dos
procedimentos, em face das que predominaram em décadas anteriores. Uma des-
sas características é o uso de técnicas não quantitativas de obtenção de dados, como
as de observação cursiva ou participante, análise de conteúdo, análise documental,
histórias de vida, depoimentos etc. Essas abordagens colocam-se como alternativas
novas para o trato de problemas e processos escolares, mas, sobretudo trouxeram
uma salutar revisão dos parâmetros mais comumente utilizados para definir o que é
fazer ciência. Seus fundamentos são outros e se manifestam pelo questionamento
da neutralidade do pesquisador e dos instrumentos de pesquisa, do conceito de
causalidade determinista, da objetividade baseada na idéia da imutabilidade dos fe-
nômenos em si, da repetição estática. Trazem também um grau de exigência alto
para o trato com a realidade e a sua reconstrução, justamente por postularem o
envolvimento historicizado do pesquisador. Em outros modelos, por exemplo nos
experimentais ou quase-experimentais, coloca-se a necessidade de um domínio de
técnicas de construção de instrumentos sofisticadas e compreensão das análises
estatísticas complexas em seus fundamentos. Os estudos de natureza dita “qualitati-
va” não podem significar uma banalização.
A pergunta que nos colocamos ao examinarmos atentamente as vertentes
de pesquisa, a partir do que está produzido na pesquisa educacional no Brasil, é se
há um domínio consistente de métodos e técnicas de investigação, qualquer que
seja a abordagem em que o pesquisador se situa. No exame dos trabalhos consta-
tamos algumas fragilidades sob esta ótica que merecem ser apontadas.
É fundamental o conhecimento dos meandros filosóficos, teóricos, técnicos
e metodológicos da abordagem escolhida. Sob esse ponto, há também alguns pro-
blemas nos trabalhos de pesquisa na área educacional, tanto nos que usaram
quantificação quanto nos que usaram metodologias alternativas. Nas abordagens
quantitativas verificamos hipóteses mal colocadas, variáveis pouco operacionalizadas
ou operacionalizadas de modo inadequado, quase nenhuma preocupação com a
validade e a fidedignidade dos instrumentos de medida, variáveis tomadas como
independentes sem o serem, modelos estatísticos aplicados a medidas que não
suportam suas exigências básicas, por exemplo, de continuidade, intervalo,
proporcionalidade, forma da distribuição dos valores, entre outros. Constata-se
ainda ausência de consciência dos limites impostos pelos dados, pelo modo de
coleta, as possíveis interpretações. E, ainda, interpretações empobrecidas pelo não-
domínio dos fundamentos do método de análise empregado. De outro lado en-
contram-se observações casuísticas, sem parâmetros teóricos, a descrição do ób-

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 75


vio, a elaboração pobre de observações de campo conduzidas com precariedade,
análises de conteúdo realizados sem metodologia clara, incapacidade de reconstru-
ção do dado e de percepção crítica de vieses situacionais, desconhecimento no
trato da história e de estórias, precariedade na documentação e na análise docu-
mental. Os problemas não são poucos, tanto de um lado como de outro, o que nos
leva a pensar na precária formação que tivemos e temos, para uso e crítica tanto dos
métodos ditos quantitativos como dos qualitativos. Nessa direção Warde (1990)
comenta, em estudo detalhado sobre dissertações e teses na área da educação,
que “muitas indicam o manejo amadorístico dos complexos procedimentos nelas
implicados com a derivação de resultados científicos e sociais pouco relevantes”.
Precisa-se considerar o alto grau de maturidade e refinamento subjetivo exi-
gido pelas chamadas metodologias qualitativas para podermos concluir que elas não
são adequadas e oportunamente manipuladas, não só, como em geral se quer fazer
crer, pelas condições adversas em que se realizam as pesquisas, mas porque a for-
mação que está sendo dada não é apropriada nem suficiente. Acrescenta Warde
(1990) que há de se destacar que da utilização crescente das novas metodologias
exploratórias/qualitativas decorre a composição de amostras intencionais ou arbi-
trárias, muito reduzidas e predominantemente constituídas de alguns sujeitos; no
caso das descritivas-narrativas, a “amostra” é o próprio autor que expõe sua “expe-
riência” ou “vivência”. Mesmo utilizadas nas dissertações ou teses que abordam
diferentes assuntos (educação popular, educação e movimentos sociais e outros),
as novas metodologias preponderam entre os estudos relativos aos processos e
práticas intra-escolares, com particular ênfase nos pedagógicos. Nesses estudos,
são produzidas, em regra, propostas de ação (administrativas e/ou pedagógicas)
para instituições ou redes de ensino. Qual a real validade disso?
É preciso reconhecer que não temos nos omitido no enfrentamento desses
problemas, mas que, em contrapartida, nem tudo o que se faz sob o rótulo de
pesquisa educacional pode ser realmente considerado como fundado em princípios
da investigação científica. Ou seja, uma pesquisa que traduza com suficiente clareza
suas condições de generalidade e, simultaneamente, de especialização, de capaci-
dade de teorização, de crítica e de geração de uma problemática própria, transcen-
dendo pelo método não só o senso comum como as racionalizações primárias.

PESQUISA EM EDUCAÇÃO E SEU IMPACTO SOCIAL

Realizamos dois trabalhos cujos objetivos eram os mesmos: analisar como e


em que magnitude pesquisas realizadas nas instituições de ensino superior contri-

76 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


buíram para o desenvolvimento das reformas e inovações realizadas ou em anda-
mento no sistema educacional, nos níveis fundamental e médio (Gatti, 1986, 1994).
Na medida em que entrevistamos tanto pessoal das universidades como pessoal
das secretarias de educação, em diversos pontos do país, e em diferentes níveis da
administração, é-nos possível refletir a respeito dessa relação com base nas falas dos
entrevistados. Os fatores aos quais se atribuem, no geral, a insuficiente participação
das instituições de ensino superior nos projetos de desenvolvimento ou as inova-
ções do sistema educacional, bem como a pouca utilização das pesquisas educacio-
nais, são: desvinculação das universidades brasileiras com os níveis básicos de ensi-
no; distanciamento das universidades em relação aos problemas práticos; visão idea-
lizada e teórica da universidade sobre o ensino; falta de contato dos órgãos gover-
namentais com a universidade; o caráter teórico das pesquisas; a inexistência quase
total de trabalhos conjuntos; a falta de divulgação dos resultados das pesquisas; as
dificuldades dos administradores de ensino de fazer a passagem da teoria para a
prática; a rigidez do sistema educacional na absorção de propostas inovadoras; a
pouca importância atribuída à pesquisa em alguns segmentos governamentais.
Os pesquisadores entrevistados levantam problemas para esta colaboração,
como: falta de hábito dos administradores escolares de recorrer a pesquisas para o
desenvolvimento de seus projetos, falta de mecanismos eficientes de integração
entre órgãos produtores e órgãos potencialmente consumidores de pesquisa edu-
cacional, projetos de pesquisa excessivamente individualizados, com descontinuidade
na produção, problemas de comunicação e difusão.
Todas essas considerações são extremamente relevantes e merecem refle-
xão por parte dos pesquisadores. Porém, é preciso lembrar que na visão do pessoal
que trabalha nas redes de ensino, bem como nas colocações feitas pelos pesquisa-
dores de universidades também entrevistados, observa-se uma perspectiva linear,
revelando uma concepção muito idealista quanto à relação pesquisa versus políticas
versus ações educacionais. Isto não condiz com as perspectivas de produção histó-
rica de relações, seja quanto a objetos da cultura, seja quanto a movimentos políti-
co-sociais. Há inegavelmente uma porosidade entre o que se produz nas instâncias
acadêmicas e o que se passa nas gestões e ações nos sistemas de ensino, mas os
caminhos que medeiam essa inter-relação não são simples nem imediatos. Fazem
parte desse processo de porosidade todas as nuances e ruídos relativos aos proces-
sos de comunicação humana, de disseminação dos conhecimentos, de decodificar
informação e interpretá-las, num dado contexto de forças sociais em conflito. E
estas são muitas. A leitura do produzido, como dizemos no jargão acadêmico, é

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 77


polissêmica e feita no âmbito do processo de alienação histórico-social a que todos
estamos sujeitos.
Agregado a isto há o fator tempo. Os tempos dos caminhos da investigação
científica e da disseminação de sínteses são bem diferentes dos tempos do exercício
“em tempo real” da docência e da gestão educacional. Os estudos, as pesquisas
têm um tempo de maturação e o professor não pode suspender sua ação, nem os
gestores de sistemas em seus diferentes níveis de responsabilidade. Respostas ime-
diatas e continuadas são exigidas destes e não dos pesquisadores. Enquanto a pes-
quisa questiona e tenta compreender cada vez melhor as questões educacionais, os
administradores, técnicos e professores estão atuando a partir dos conceitos e in-
formações que lhe foram disponibilizados em outra oportunidade.
O conhecimento oriundo das reflexões e pesquisas na academia socializa-
se não de imediato mas, em uma temporalidade histórica, e essa história construída
nas relações sociais concretas seleciona aspectos dessa produção no seu proces-
so peculiar de disseminação e apropriação. Exemplo disso foi o impacto dos estu-
dos sobre fracasso escolar e a qualidade do ensino nas políticas dos anos 90, com
base em pesquisas e discussões do final dos anos 70 e 80. É evidente que o
enfoque atualmente dado nas políticas públicas e nas discussões de jornais e revis-
tas, ou em seminários de setores do trabalho em educação, assenta-se em uma
construção lenta de conhecimento que se acumula em muitos anos. Mesmo quan-
do se atualizam dados de demografia educacional, as perspectivas de análise fun-
dam-se comumente em outros dados e em algumas reflexões consolidadas em
um tempo anterior. Para os conhecedores da questão que utilizamos como exem-
plo, esses problemas começaram a ser revelados e abordados de maneira con-
tundente para o público, justamente em pesquisas de porte realizadas e divulgadas
no final dos anos 70 e começo dos 80. Depois desses trabalhos o que se fez foi
desenvolver a mesma trilha e mostrar que o problema só aumentava. Entre lá e
cá alguns reflexos existiram em iniciativas políticas, algumas mais locais, em insti-
tuições específicas, outras mais amplas, em estados ou municípios, como por exem-
plo a implantação do ciclo básico no Estado de São Paulo; aí, também, as “escolas-
padrão”, as diferentes iniciativas de diversos governos para renovação dos pro-
cessos de alfabetização, desenvolvimento da leitura e escrita; os ciclos de ensino
nos municípios de São Paulo e Belo Horizonte, as “classes de aceleração” em
muitos estados, entre outros.
Esse impacto assume as características do possível historicamente determi-
nado, portanto, não assume uma feição do idealizado nas reflexões e nos desejos

78 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


dos pesquisadores, mas a feição do factível, no confronto dos interesses e poderes
que atuam no social, numa dada conjuntura.
A porosidade entre pesquisa e suas aplicações possíveis nas políticas educacio-
nais também é determinada pela formação dos quadros componentes dos sistemas
de ensino. Esses quadros receberam sua formação básica em um determinado tempo
e lugar, tendo acesso a e lendo uma determinada bibliografia, ou sendo orientados
por meio de exposições de seus professores. Ensinou-se a eles alguma coisa em um
certo período histórico durante o qual se formaram concepções, ideais e valores.
As aprendizagens, feitas pelas mediações de cada um, portanto transformadas, te-
rão ressonância nos lugares em que suas ações profissionais se irão desenvolver. As
idéias formuladas pelas pesquisas, estudos, reflexões, ensaios, e que passam para as
gerações que se estão formando, num dado tempo, bem como no contínuo de seu
exercício profissional, são levadas de alguma forma para dentro desse exercício, e
suas marcas fazem-se sentir numa temporalidade diferente daquela em que se for-
mou uma base de conhecimentos e formas de pensar determinadas. Por outro
lado, não deixam de receber novas informações que se confrontam ou se integram
às que já têm. Então, o processo tem aspectos de sucessividade e de simultaneida-
de, num contexto institucional que é histórico, histórico pessoal e social. Alguns
permanecem na escola ensinando, outros vão desempenhar outras funções, técni-
cas ou administrativas, ou normativas, mas portando consigo a base, mesmo que
transformada, com a qual adentraram na seara da educação. Aí, manifestar-se-á em
suas ações aquilo que construíram como conhecimento, a partir de seu próprio
processo educativo e de sua prática social e profissional.

HÁ UM PAPEL SOCIAL PARA A CONSISTÊNCIA METODOLÓGICA?

Os resultados de pesquisa, na sua disseminação pelo social, parecem tam-


bém ter alguma relação com os métodos de trabalho dos pesquisadores na medida
em que podem gerar alguma credibilidade dentro e, depois, fora dos ambientes
acadêmicos. Algo ligado à plausibilidade dos resultados e de sua generalização ou
transformação em ações e práticas. Claro que essa disseminação é seletiva, desigual
e dependente dos jogos de forças sociais em determinado momento. Esse aspecto
mereceria maiores estudos.
É como se houvesse uma sensibilidade social ao que é mais rigoroso, ou
confiável, ao menos frágil metodologicamente, que não se pode demolir facilmente
pelas lacunas nas coletas de dados ou análises, e que, também, não se pode contra-

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 79


argumentar com facilidade. Há, inclusive, nesse processo de impacto social, os con-
seqüentes da aplicação de resultados da investigação científica nos sistemas escola-
res – efetivos, não efetivos – que servem de avaliação para a consistência de seus
resultados.
Historicamente, além das associações com determinados tipos de poder e
conjuntura, para ser tomado como conhecimento relevante e penetrar no social, o
conhecimento advindo das pesquisas parece ter necessidade de carregar em si um
certo tipo de abrangência, nível de consistência e foco de impacto, aderência ao
real, tocando em pontos críticos concretos. Há pesquisas “politicamente interes-
santes” de determinados grupos, mas que mostram fôlego curto diante do experi-
mentado socialmente, devido a suas inconsistências metodológicas. Há muitos exem-
plos históricos a respeito em pesquisas de diferentes áreas, e muitos são os fatores
presentes na tensão e na porosidade entre as pesquisas e as políticas educacionais,
entendidas estas tanto como as que se expressam nos aspectos de sua gestão mais
ampla, como também a que se concretiza nos cotidianos das escolas.

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Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 81


EDUCAÇÃO, CIDADANIA E
COMPETITIVIDADE: QUESTÕES EM
TORNO DE UMA NOVA AGENDA

ALMERINDO JANELA AFONSO


Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho – Portugal.
ajafonso@iep.uminho.pt

FÁTIMA ANTUNES
Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho – Portugal.
fantunes@iep.uminho.pt

RESUMO

Há alguns anos tem-se firmado o debate em torno de uma agenda política e teórica que
procura defender e sustentar uma articulação possível entre a procura de competitividade
das economias e a manutenção e desenvolvimento dos direitos, nomeadamente sociais,
que viabilizam e constituem condições de cidadania. Neste debate, que é atravessado por
distintas posições, argumentos e propostas, a educação e formação são apontadas como
eixos decisivos daquela articulação. A nossa argumentação vai no sentido de mobilizar análi-
ses e investigações em Ciências Sociais, trazendo para o centro da discussão questões e proble-
mas que freqüentemente têm sido omitidos. Defendemos que, pelo contrário, é do confronto
dessas questões e problemas que depende a possibilidade de constituir uma agenda política e
teórica merecedora de crédito para uma via de desenvolvimento humana, social e ecologica-
mente sustentável.
EDUCAÇÃO – CIDADANIA – CIÊNCIAS SOCIAIS

ABSTRACT

EDUCATION, CITIZENSHIP AND COMPETITIVENESS: QUESTIONS AROUND A NEW


AGENDA. It has been growing the debate around a political and theoretical agenda that
argues for the articulation between the search of competitiveness of the economies and the
development of the social rights, which make possible conditions for citizenship. Although
the different positions, arguments and proposals that cross this debate, education and formation
have been pointed as decisive axes of that articulation. Our argumentation aims to call up
Social Sciences analysis and research bringing to the centre of the discussion questions and
problems, which frequently have been neglected. We stand up for that only scrutinising these
questions and problems it will be possible to constitute a consistent political and theoretical
agenda towards a human, social and ecologically sustainable development

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001julho/ 2001


p. 83-112, 83
Passadas quase duas décadas de hegemonia ideológica neoliberal, são hoje
visíveis, nomeadamente pelos indicadores disponíveis relativos às desigualdades e à
exclusão sociais, os efeitos das políticas que promoveram a precariedade do em-
prego e a retração ou aumento da vulnerabilidade de outros direitos sociais. As
interpretações desta situação e os posicionamentos em face das conseqüências re-
feridas são naturalmente muito divergentes. Como seria de esperar, os arautos do
pensamento único não atribuem às políticas neoliberais o aumento da exclusão
social mas parecem concordar que essa questão não pode deixar de ser confronta-
da com alguma urgência desde que isso, evidentemente, não entre em conflito com
as lógicas competitivas de uma economia capitalista cada vez mais globalizada. Por
outro lado, alguns dos atuais governos, nomeadamente de países que integram a
União Européia e que reivindicam o lugar de renovadores da herança trabalhista,
social-democrata ou socialista, adotando pressupostos próximos da chamada ter-
ceira via, têm igualmente inscrito nos seus programas, ou apregoado com alguma
insistência, ser necessário compatibilizar as exigências decorrentes da competitividade
econômica e os direitos sociais e de cidadania. Finalmente, alguns reconhecidos
analistas, pensadores e cientistas sociais, mesmo com percursos intelectuais e políti-
cos diferenciados, embora, quase sempre, tenham afirmado posições ideologicamen-
te identificáveis com a esquerda, defendem a necessidade de encontrar saídas realistas
que (tendo já pouco a ver com aquelas que poderão ter defendido quando acre-
ditavam nas grandes narrativas emancipatórias) constituam, ainda assim, alternativas
merecedoras de crédito que reatualizem valores a elas referenciados ou, pelo menos,
que garantam a manutenção de direitos mínimos como antídoto aos ditames do pen-
samento único, o qual tem-se mostrado altamente eficaz para promover a aceitação
das supostas inevitabilidades do neoliberalismo e de algumas tendências da globalização.
A equação competitividade e cidadania parece assim expressar a única alter-
nativa capaz de constituir ou, pelo menos, de promover a adesão a um novo con-
senso social.
Trata-se, por isso, de uma equação altamente sedutora porque pode criar a
ilusão de que é possível ultrapassar as razões e motivações (completamente antagô-
nicas em muitos casos) que fariam nesse momento convergir, na defesa de um
projeto comum, quer os ideólogos do neoliberalismo quer os seus críticos. O texto
que a seguir se desenvolve procura precisamente enunciar, ainda que de forma
bastante provisória, algumas das linhas de análise que atravessam este debate. Nele,
como se verá, as problemáticas da competitividade e da cidadania são consideradas
dimensões articuláveis por meio de um novo papel que, se supõe, a educação e a
formação deverão necessariamente assumir.

84 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


A ECONOMIA GLOBAL E A HEGEMONIA DO CAPITALISMO
NEOLIBERAL

Tendo em conta o contexto descrito, duas precauções teóricas parecem de


antemão decisivas para pensar de uma forma mais ampla a educação e as políticas
educacionais neste final de século: por um lado, procurar conhecer os efeitos da
transição de uma economia mundial para uma economia global e, por outro, pon-
derar as conseqüências sociais da atual hegemonia do capitalismo neoliberal e dos
seus postulados ideológicos.
Relativamente ao primeiro aspecto, sabemos que as novas tecnologias da
informação e da comunicação permitem agora superar decisivamente os limites de
tempo e de espaço que estruturavam a anterior economia mundial, e que este fato
foi decisivo para iniciar a transição para uma economia global que se distingue justa-
mente pela acrescida “capacidade de funcionar como unidade em tempo real à
escala planetária” (Castells, 1997, p.120). Trata-se, portanto, de uma economia
informacional e global que, na perspectiva de Manuel Castells, apresenta as seguin-
tes características:

É informacional porque a produtividade e competitividade das unidades ou agentes


desta economia (quer sejam empresas, regiões ou nações) dependem fundamen-
talmente da sua capacidade de gerar, processar e aplicar com eficácia a informação
baseada no conhecimento. É global porque a produção, o consumo e a circulação,
assim como os seus componentes (capital, mão-de-obra, matérias-primas, gestão,
informação, tecnologia, mercados) estão organizados à escala global, quer de forma
direta, quer mediante uma rede de vínculos entre os agentes econômicos. É
informacional e global porque, nas novas condições históricas, a produtividade gera-
se e a competitividade exerce-se por intermédio de uma rede global de interação.
( ) O vínculo histórico entre a base de conhecimento-informação da economia, o
seu alcance global e a revolução tecnológica da informação é que dá origem a um
sistema econômico novo e distinto. (Castells, 1997, p. 93, tradução nossa)

Apesar de as novas condições de desenvolvimento do capitalismo estarem


se alterando em ritmos muito distintos, conforme, por exemplo, as especificidades
dos diferentes países no contexto nacional e mundial, a educação tem sido aponta-
da como uma contribuição decisiva, nem sempre problematizada e, por isso, apa-
rentemente consensual, para, nos limites de uma economia globalizada, assentada
no conhecimento e nas tecnologias da informação, levar os indivíduos a perceber a
dimensão das mutações em curso e as suas conseqüências, nomeadamente em
termos do aumento ou da diminuição das probabilidades individuais de incorpora-

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 85


ção em novas formas de organização do trabalho, bem como em termos de indução
ou bloqueio de oportunidades de emprego, e de criação de condições materiais
para definir opções de vida e projetos pessoais e familiares. Sendo, todavia, útil não
sobrepor conceitualmente, e não reduzir unidirecionalmente as diferentes e con-
traditórias conseqüências possíveis do uso e da expansão das tecnologias da infor-
mação, sabe-se que um dos seus efeitos mais prováveis refletir-se-á na maior
hierarquização de algumas formas, ou mesmo de novas formas, de organização do
trabalho. Como esclarece ainda Manuel Castells, a economia informacional/global
conta sobretudo com aqueles trabalhadores que, mediante educação e formação,
tenham incorporado as disposições e competências necessárias para redimensionar
as estruturas do sistema econômico capitalista: a competitividade, decorrente da
flexibilidade, e a produtividade, baseada na inovação:

Neste novo sistema de produção redefine-se e diferencia-se o papel do trabalha-


dor ( ). Uma diferença tem a ver com o que denomino trabalhador genérico
diante do trabalhador autoprogramável. A qualidade crucial para diferenciar estes
dois tipos de trabalhador é a educação e a capacidade de aceder a níveis superiores
de educação; isto é, a incorporação de conhecimento e informação. O conceito de
educação deve distinguir-se do de qualificação. Esta pode tornar-se rapidamente
obsoleta pela mudança tecnológica e organizativa. A educação ( ) é o processo
mediante o qual as pessoas, quer dizer, os trabalhadores, adquirem a capacidade
de redefinir constantemente a qualificação necessária para uma tarefa determinada
e de aceder às fontes e aos métodos para adquirir a referida qualificação. Quem
possui educação, no contexto organizativo adequado, pode reprogramar-se para
as tarefas em mutação constante do processo produtivo. (Castells, 1998, p. 375,
tradução nossa)

No âmbito da União Européia, constituída em grande medida para poder


funcionar e desenvolver-se como um dos pólos mais competitivos no contexto da
economia global, têm sido produzidos relatórios e estudos setoriais que apontam
com insistência para o papel estratégico da educação e da formação. Refira-se, por
exemplo, os Livros Brancos da Comissão Européia (Ensinar e aprender: rumo à
sociedade cognitiva e Crescimento, competitividade, emprego: os desafios e as pistas
para entrar no século XXI) que constituem os dois documentos mais freqüentemente
evocados sobre a problemática em análise. No primeiro documento, ressalvando
que “a educação e a formação não podem por si só resolver a questão do emprego
e, de um modo mais geral, a da competitividade das indústrias e dos serviços” (Co-
missão Européia, 1995, p.5) atribuiu-se-lhes, no entanto, um papel central não
apenas porque são consideradas as pedras angulares da sociedade cognitiva, como

86 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


também porque se espera que contribuam para a coesão social e para a prevenção
da exclusão. Do mesmo modo, o segundo documento referido afirma:

Para o relançamento do crescimento, a renovação da competitividade e o resta-


belecimento de um nível de emprego socialmente aceitável na Comunidade, a edu-
cação e a formação – paralelamente à sua missão fundamental de promoção do
desenvolvimento individual e dos valores da cidadania – são incontestavelmente
chamadas a desempenhar um papel determinante. (Comissão Européia, 1994, p.139)

Observa-se ainda neste mesmo documento que muitas das exigências que
pesam sobre os sistemas de educação e formação são percebidas como contraditó-
rias, porque se espera que tais sistemas

...resolvam os problemas de competitividade das empresas, a crise do emprego, o


drama da exclusão social e da marginalidade, em suma, que ajudem a sociedade a
ultrapassar a suas atuais dificuldades e a controlar as profundas mutações que hoje
em dia atravessa. (Idem, ibidem)

No entanto, apesar de aí se explicitar alguma consciência dessas solicitações


contraditórias, apenas referidas de passagem, as reiterações da importância da edu-
cação e da formação para a resolução dos problemas da competitividade e, sobre-
tudo, do emprego, sobrepõem-se a todos os outros fatores em jogo e, desse modo,
aquelas diferentes solicitações não chegam a ser discutidas nas suas implicações.
Assim, na enumeração dos fatores que supostamente podem contribuir para a melhor
solução dos problemas criados pelas mutações econômicas em curso, as políticas
do Estado e das instâncias européias e a ação dos agentes econômicos parecem
menos decisivas do que a ação dos sistemas educacionais ou a própria iniciativa dos
indivíduos. A estes, aliás, se dirige uma grande parte dos argumentos produzidos
quando se refere, por exemplo, ao “papel central da iniciativa individual na constru-
ção da sociedade cognitiva” ou quando se diz que “o indivíduo torna-se o agente e
principal construtor da sua qualificação” (Comissão Européia, 1995, p. 7 e 18). Este
é, seguramente, um dos pontos mais controversos dos atuais discursos oficiais so-
bre as políticas de educação e formação.
Certamente que ao analisar mais de perto os contextos e os textos em que
a expressão sociedade cognitiva (ou sociedade da aprendizagem) é evocada poder-
se-á constatar que os seus significados não são convergentes, expressando ora a
necessidade de os indivíduos terem uma educação e uma formação permanentes
ou ao longo da vida (lifelong education), ora a necessidade de as organizações pro-
dutivas e de serviços se tornarem elas próprias, cada vez mais, lugares qualificantes

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 87


e promotores de aprendizagens (learning organisations), ora, ainda, a necessidade
de a própria sociedade aprender a desenvolver a sua capacidade reflexiva, num
sentido próximo ao proposto por Ulrich Beck e outros autores1. Entretanto, em
termos de discursos oficiais e de orientações vindas de instâncias como a União
Européia, ao sobrevalorizar-se nomeadamente o pressuposto de que a aprendizagem
que conta é aquela que se guia pela maximização da sua utilidade econômica ime-
diata – utilidade esta justificada em termos de uma racionalidade idêntica à da teoria
do capital humano –, a idéia da sociedade de aprendizagem é instrumental e redutora,
ainda que seja possível, a partir da sua problematização, verificar que poderá cum-
prir outras funções latentes mais amplas2. No que diz respeito, mais concretamen-
te, aos documentos europeus sobre educação e formação, nos quais a mesma idéia
de sociedade cognitiva ou da aprendizagem está presente, algumas leituras mais
críticas dos seus pressupostos têm salientado que neles subjazem nomeadamente

...preocupações de regulação e de controle social que têm por objeto a socialização


dos futuros trabalhadores, de modo a favorecer: i) a estimulação, motivação e dis-
ponibilidade para o emprego; ii) a constituição e reforço de uma ética e identidade
capazes de resistir a uma “vida ativa” estruturada em torno da precariedade, ou da
total ausência, de vínculos ao trabalho; iii) a legitimação e a despolitização do desem-
prego com base nas deficiências individuais; iv) a estratificação da força de trabalho
através da aquisição de distintas “qualificações”. (Antunes, 1996, p. 112)3

1. A este propósito Michael Young et al. escrevem: “Implícita no conceito de uma sociedade de
aprendizagem está, por exemplo, a idéia de que uma sociedade inteiramente humana é aquela
em que toda a vida social envolve aprendizagem. Por outras palavras afirma-se que o que
distingue uma sociedade de aprendizagem moderna de todas as sociedades anteriores é a sua
capacidade para aprender ou para ser reflexiva, como Beck, Giddens e Lash (1994) a interpre-
tam. O conceito de uma sociedade de aprendizagem proporciona-nos, assim, uma base para
comparar as sociedades existentes em termos da sua capacidade reflexiva” (1997, p. 528).
2. Considerando que a sociedade da aprendizagem é, em grande medida, um mito e um conceito
ideológico, Christina Hughes e Malcolm Tight escrevem: “Em suma, podemos concluir que a
função do mito da sociedade de aprendizagem é proporcionar uma fundamentação lógica e um
acondicionamento convenientes e agradáveis para as políticas atuais e futuras de diferentes
grupos de poder da sociedade. Como tal, aquele (mito) tem pouco impacto na natureza, con-
teúdo ou implementação dessas políticas, fazendo, mesmo assim, essas políticas aparecerem
diferentes e mais interessantes, dando a impressão aos leigos interessados de que as coisas
estão a melhorar. Sobretudo podemos compreender a sociedade de aprendizagem como um
conceito ideológico que serve objectivos ideológicos” (Hughes, Tight, 1995, p. 302).
3. Num texto recente em que analisa a vinculação da educação-formação com o emprego, Lucie
Tanguy chama a atenção para os aspectos ideológicos presentes, quando se procuram estabe-
lecer “relações lineares e necessárias” que escondem “ao mesmo tempo funções de integração
social, de legitimação e de dissimulação de uma ordem social existente” (1999, p. 65).

88 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


Se considerada no quadro de uma evolução unidirecional – que, todavia,
não deve ser vista nem aceita como inexorável4 –, essa nova estratificação ou dua-
lização em contexto de trabalho, que se pretende por vezes naturalizar como de-
corrência inevitável dos níveis diferenciados de educação e qualificação suposta-
mente dependentes da exclusiva vontade e capacidade dos trabalhadores, terá ne-
cessariamente amplas implicações não apenas em termos de redefinição de víncu-
los e identidades pessoais e familiares, mas também em termos de ordem e coesão
sociais. Como lembra Manuel Castells, uma das características do capitalismo infor-
macional é a “tendência para aumentar a desigualdade e a polarização sociais” uma
vez que se estabelece uma nova diferenciação entre o “trabalho autoprogramável e
altamente produtivo”, que supõe níveis mais elevados de educação e qualificação, e
o “trabalho genérico” que, embora continue a existir e a ser necessário, se torna
cada vez mais vulnerável, ou mesmo prescindível, porque, ao não exigir os mesmos
níveis de educação e qualificação, permite mais facilmente dispensar (individual-
mente) os trabalhadores. Tudo isso se agrava, acrescenta o autor, não apenas por-
que a individualização do trabalho mina a organização coletiva e a solidariedade
entre os trabalhadores, como também porque a desaparição gradual do Estado-
Providência torna mais difícil apoiar aqueles que acabam por perder o vínculo social
não apenas como trabalhadores/produtores mas também como consumidores (cf.
Castells, 1998, p.378). Acresce a tudo isto que a “responsabilização autoritária dos
trabalhadores”, como refere Emilio Taddei, tem também, em alguns países, uma
tradução específica no campo das políticas sociais. Trata-se, muito sucintamente, de
um novo cerceamento à segunda geração de direitos, que se traduz na obrigação
de os desempregados participarem em programas de formação para o emprego,
ou de aceitarem os empregos que lhe são propostos, sob pena de perderem os
subsídios do Estado5. Esta substituição do welfare pelo agora designado workfare
revela igualmente uma outra dimensão extremamente controversa das atuais políti-
cas de educação e formação. Na nossa perspectiva, este é um espaço para o qual

4. Não aceitando a visão determinista que subentende que o caminho já está traçado pelas
tecnologias da informação, erradamente “entendidas como forças atuantes autônomas do
contexto sociocultural”, Ilona Kovács (1998d) contrapõe, a esse propósito, alguns argumen-
tos interessantes para pensar as alternativas disponíveis.
5. E acrescenta ainda o autor: “O fantasma da perda de direitos sociais (e fundamentalmente da
indenização para o desemprego) é o que obriga os desempregados a terem de aceitar traba-
lhos cada vez mais precários e sub-remunerados, para não perder os magros subsídios. As
políticas de responsabilização autoritária dos trabalhadores funcionam como uma espada de

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 89


confluem algumas conseqüências indesejadas das novas formas de organização do
trabalho decorrentes da expansão e consolidação do capitalismo global/infor-
macional e das conseqüências mais nefastas da ideologia neoliberal que se tornou
hegemônica após a crise do Estado-Providência. Se os discursos oficiais apresentam
a urgência e a inevitabilidade da realização de uma aprendizagem permanente para
atender às exigências decorrentes dessas novas formas de organização e divisão do
trabalho, sob pena de cada um de nós se tornar “incompetente para a competitivi-
dade”6, também os pressupostos do neoliberalismo que, como refere Pierre
Bourdieu (1998), nos são impostos como óbvios mediante um eficaz trabalho de
inculcação simbólica, apontam para o fato de ser impossível resistir às forças econô-
micas que elegem a produtividade e a competitividade como o fim último e único
das ações humanas.

A ENUNCIAÇÃO DE ALTERNATIVAS AO PENSAMENTO ÚNICO

Ao mesmo tempo em que avança a globalização econômica e se desvane-


cem as utopias relativas às grandes narrativas anunciadoras de uma sociedade
mais justa e igualitária (algumas, em grande parte, vinculadas à autonomia relativa
do Estado-Nação e à forma política do Estado-Providência), os próprios críticos
do neoliberalismo (alguns, mesmo, com percursos anteriores relacionados à tra-
dição marxista e neomarxista) começam a aceitar que é pouco provável, a curto
e médio prazos, inverter significativamente o rumo das mudanças em curso ou
fugir das novas condicionantes megaestruturais. Nesse sentido, uma nova agenda
teórica e política decorreria agora da necessidade de considerar de modo realista
as exigências inerentes à competitividade econômica que confrontam países dis-
tintos com um mercado cada vez mais global, mas reafirmando, de forma sincrônica
e politicamente empenhada, as exigências relativas à garantia de direitos sociais e
econômicos fundamentais – aqueles que, por exemplo, as políticas mais radicais
da chamada nova direita tentaram suprimir ou diminuir por serem, nesse quadro

Dâmocles sobre a cabeça dos mesmos. Esta concepção liberal-autoritária da ‘aposta no tra-
balho’ rompe com a visão solidária do desempregado tradicional vigente na Europa, em
função da qual era considerado como uma vítima (e não como responsável), com quem a
sociedade considera ter uma dívida, dado que é incapaz de lhe oferecer um emprego. O
workfare necessita então, para ser legitimado, uma ‘reatualização’ no terreno filosófico, a qual
se leva a cabo redefinindo os conceitos de justiça e de equidade” (Taddei, 1998, p. 349).
6. A expressão é de Gaudêncio Frigotto (s/d) “Cidadania e formação técnico profissional”. Texto
consultado na Internet (http://bve.cibec.inep.gov.br/).

90 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


mais tecnocrático, percebidos como obstáculos para a sustentação das novas van-
tagens competitivas procuradas7.
Nesta nova agenda, a educação e a formação são evocadas como soluções
fundamentais para, por um lado, preparar uma mão-de-obra qualificada que atenda
às exigências da competitividade econômica e às mutações no sistema ocupacional
e, por outro, para preparar indivíduos que, a partir de uma escolaridade básica
bem-sucedida, sejam capazes de continuar a aprender e a incorporar novos conheci-
mentos que os mantenham menos vulneráveis aos processos de exclusão social.
Com nuances importantes, que nem sempre são imediatamente identificáveis, têm
aparecido trabalhos e documentos diversos que parecem convergir na defesa dessa
prioridade; mas ela está longe de significar sempre o mesmo quando se analisam
mais de perto os discursos produzidos, as razões evocadas ou as políticas propostas
para a consecução. Começaremos por referir sucintamente um dos documentos
elaborados por uma importante agência das Nações Unidas que, nessa década e
sobretudo no âmbito dos países da América Central e do Sul, induziu um importan-
te debate precisamente sobre o lugar da educação nas mudanças sociais e econô-
micas em curso, e que contém alguns postulados relativos à problemática em análise.
Desde o início dos anos 90, a Comissão Econômica para a América Latina –
Cepal – tem, em importantes relatórios setoriais, chamado a atenção dos governos
latino-americanos para a urgente necessidade de considerarem a educação e o
conhecimento como articuladores fundamentais do que designa como proposta
para uma “transformação produtiva com eqüidade” (Cepal/Unesco, 1992). A ex-
pressão, de fato, exemplifica bem as articulações híbridas que são anunciadas como
parte de um novo projeto: “a transformação produtiva e a sua compatibilização
com a democratização política e a crescente eqüidade social”. No projeto, a educa-
ção e o conhecimento são também percebidos como fatores essenciais por dois
motivos: um deles diz respeito à pressão da competitividade global que, por uma
razão idêntica à dos países capitalistas mais avançados, atinge também os países capita-
listas menos desenvolvidos da América Latina; o outro é um motivo específico destes
últimos, porque se espera que a educação e o conhecimento constituam igualmente

7. Como assinala o “livro branco” da Comissão Européia, “É necessário raciocinar cada vez mais
em termos de vantagens competitivas e não já em termos de vantagens comparativas. As
vantagens comparativas correspondem às dotações em fatores produtivos, tais como os re-
cursos naturais, sendo por esse motivo algo rígidas. As vantagens competitivas decorrem de
elementos mais qualitativos, sendo por esse fato largamente determinadas pelas estratégias
das empresas e das políticas públicas” (Comissão Européia, 1994, p. 77).

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 91


direitos de cidadania, e que sejam pilares fundamentais da nova fase de consolidação
democrática que veio substituir, há pouco mais de uma década, os governos e regi-
mes militares. Mais ainda, trata-se de procurar que, apesar das tensões que compor-
tam as suas relações, a competitividade e a cidadania sejam condição uma da outra:

Nestas circunstâncias, é fundamental desenhar e pôr em prática uma estratégia para


impulsionar a transformação da educação e da capacitação, e aumentar o potencial
científico-técnico da região, tendo em vista a formação de uma cidadania moderna
vinculada tanto à democracia e à eqüidade como à competitividade internacional
dos países, e que torne possível o crescimento sustentado apoiado na incorporação
e difusão do progresso técnico. Imaginar que a cidadania possa ter plena vigência
sem um esforço efetivo em matéria de competitividade resulta, na década de no-
venta, tão infundado como supor que a competitividade – necessariamente de cará-
ter sistêmico – pode sustentar-se com descompassos importantes no âmbito da
cidadania. (Cepal/Unesco, 1992, p. 18, tradução nossa)

Pressupõem-se ainda, em outras passagens do documento, duas acepções


distintas de competitividade: a “competitividade espúria”, que deve ser rejeitada
porque se baseia na depredação dos recursos naturais e na depreciação dos níveis
salariais, e a “competitividade autêntica”, que, ao contrário daquela, “se baseia na
incorporação do progresso técnico e na elevação da produtividade e das remune-
rações”, e que, “pelo seu caráter sistêmico requer um grau razoável de coesão
social e de eqüidade” . Trata-se assim de uma proposta relativamente otimista que
não deixa, apesar disso, de reconhecer a “existência de tensões entre cidadania e
competitividade” (idem, p. 24, 34, 18), e de ponderar uma série de possíveis entra-
ves à desejada concretização dessas dimensões, tendo em conta, nomeadamente,
as especificidades dos países latino-americanos em face dos países capitalistas mais
avançados, quer em termos de desenvolvimento democrático e educacional, quer
em termos de desenvolvimento do sistema produtivo.
Remetendo mais ou menos diretamente para o documento da Cepal, mui-
tos outros trabalhos discutiram os pressupostos nele enunciados, retirando ilações
diversas para as políticas a implementar em relação à educação básica (ver, entre
outros, Paiva, Warde, 1994; Miranda, 1997; Shiroma, Campos, 1997). A este pro-
pósito, e precisamente num trabalho intitulado Cidadania e competitividade: desafi-
os educacionais do terceiro milênio, embora deixe margem a contestação em ou-
tras passagens, uma conhecida autora brasileira defende:

Na maioria dos países da América Latina, entre eles o Brasil, o modelo educativo
que serviu a uma etapa de desenvolvimento foi o de uma elite altamente educada e

92 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


informada e de uma massa escolarizada apenas para dar conta das tarefas elementa-
res de uma industrialização tardia e dependente. Esse modelo educativo foi abalado,
na medida em que se esgotou o modelo econômico baseado na abundância de
matéria-prima e de mão-de-obra desqualificada e barata, ao qual se associava. Nes-
te sentido, pode-se mesmo afirmar que, dado o padrão desigual de desenvolvimen-
to tanto no continente como um todo, como no interior de cada país, a preparação
do conjunto da sociedade para incorporar os avanços tecnológicos, de modo a utilizá-
los para melhorar a qualidade de vida, é condição para evitar a ação de novos ele-
mentos de seletividade e desigualdade social. (Mello, 1993, p. 28)

Para além da sua referência às especificidades latino-americanas, constata-


se também em muitos outros trabalhos que a evocação simultânea da competiti-
vidade e da cidadania parece sobretudo decorrer da assunção otimista e pouco
problematizada do que se supõe serem os efeitos positivos de uma generaliza-
ção, dada como certa, do sistema de produção pós-fordista. No quadro de um
novo sistema de produção baseado na especialização flexível, muito diferente do
rígido sistema fordista de produção em massa, as empresas necessitariam de indi-
víduos com um novo perfil profissional. Ao contrário do trabalhador taylorista,
sem ou com escassa escolarização e desapropriado da sua subjetividade, criatividade
e autonomia, agora só haveria lugar para o trabalhador escolarizado, educado e
qualificado, preparado para trabalhar em equipe, com capacidade de iniciativa e
espírito crítico. Para alguns o desenvolvimento desses “atributos desejáveis” signi-
fica não apenas “um avanço considerável em relação ao trabalhador ‘alienado’,
incapacitado (impedido, na realidade) de ‘pensar a produção’, característico do
modelo fordista”, mas significa também, mais uma vez, a possibilidade de fazer
convergir as exigências do trabalho e as exigências da cidadania (Villela, Allen,
Café, 1994). Nesse sentido,

...no contexto da reestruturação produtiva [ ] impõe-se o fim da distinção entre


estas duas esferas, principalmente porque a valorização das habilidades intelectuais
implica o desenvolvimento das múltiplas potencialidades do homem, o que o habili-
ta tanto para a cidadania como para o trabalho. (Fogaça, Silva apud Villela, Allen,
Café, 1994, p. 11)

Referindo-se a essas mudanças, escreve também J. Carlos Tedesco:

Deste ponto de vista analítico, as empresas modernas surgem como um paradigma


de funcionamento baseado no pleno desenvolvimento das melhores capacidades
do ser humano. Estaríamos perante uma circunstância história inédita em que as
capacidades para o desempenho do processo produtivo seriam as mesmas que se

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 93


exigem para o papel de cidadão e para o desenvolvimento pessoal. No sistema
capitalista tradicional de produção em massa, pelo contrário, gerava-se um funcio-
namento paralelo, por vezes contraditório, entre, por um lado, as exigências da
formação do cidadão e do desenvolvimento pessoal – em que as qualidades re-
queridas eram a solidariedade, a participação, a criatividade, o pensamento crítico –
e, por outro lado, as exigências da formação para o mercado de trabalho – discipli-
na, obediência, passividade, individualismo. Porém, nos novos modelos de produ-
ção, existe a possibilidade e a necessidade de pôr em jogo as mesmas capacidades
exigidas para ambos os níveis pessoal e social. (1999, p. 58)

Seria possível continuar a enumerar e a citar um já amplo conjunto de traba-


lhos e autores que, a partir de procedências disciplinares e políticas diferentes, têm
abordado a questão da necessária convergência entre objetivos econômicos, como
o da competitividade, e objetivos sociais e políticos, como o da cidadania, discutindo
igualmente a centralidade da educação na articulação de ambos. Alguns desses au-
tores, procurando pensar alternativas que vão além do pensamento único imposto
pelo neoliberalismo econômico, aceitam discutir a validade de uma “terceira via”. A
esse propósito, o conhecido sociólogo Ralf Dahrendorf (1977), considerado um
dos inspiradores das propostas do Partido Trabalhista inglês de Tony Blair (New
Labour), tem defendido que “a competitividade não pode sacrificar a solidariedade”,
e chegou mesmo a escrever um pequeno livro no qual fala da “quadratura do círcu-
lo”, isto é, da possibilidade de “tentar alcançar, na sua totalidade, três objetivos: o
êxito econômico, a solidariedade social e a liberdade política” (Dahrendorf, 1996,
p. 65-6)8. Um outro sociólogo contemporâneo, Alain Touraine, depois de um tra-
balho (Carta aos socialistas) em que já criticava a tradicional “recusa das realidades
econômicas” por parte da esquerda e a sua “indiferença à competitividade econô-
mica”, volta agora a lembrar a responsabilidade dos intelectuais, que não devem
ficar apenas na denúncia, devendo antes pensar e apoiar alternativas para sair do
liberalismo. Nesse sentido, reconhecendo ainda que a política de Tony Blair tem “o
grande mérito de combinar objetivos econômicos e sociais”, Touraine considera
que ela adota, na realidade, como eixo o liberalismo, que corrige através de políti-
cas sociais e que, por isso, não pode ele próprio deixar de propor uma via interme-
diária entre a antiga social-democracia e a terceira via, em que, para além da “prio-

8. Ainda que Ralf Dahrendorf seja também considerado um dos inspiradores das propostas do
Partido Trabalhista inglês de Tony Blair (New Labour), o seu pensamento parece-nos, em
muitos aspectos, claramente distinto do de Anthony Giddens, que é também considerado o
principal ideólogo da chamada terceira via. Ver a este propósito, Giddens (1999) e também
Blair (1998).

94 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


ridade ao trabalho” e da valorização da “comunicação intercultural”, um dos pontos
essenciais é também mostrar que é preciso “devolver prioridade à inovação, à edu-
cação e à solidariedade” (Touraine, 1999, p. 136 e ss.).

EXPLORANDO O CAMINHO: A DISCUSSÃO DE ALGUNS


PRESSUPOSTOS
É sustentável o modelo liberal-produtivista?

Maior aprofundamento de todas as questões aqui levantadas teria também


de passar por outras reflexões, sobretudo aquelas que, vindo de autores igualmente
empenhados em procurar alternativas ao pensamento único, não aceitam todavia
que haja nesse debate postulados intocáveis, como o da competitividade. A esse
propósito, Riccardo Petrella propõe mesmo que seria conveniente “proceder a uma
forte campanha de desvalorização do imperativo da competitividade e dos nume-
rosos indicadores que na hora atual constituem o abc do ‘pensamento econômico’”
(Petrella, 1994, p. 87). Ao contrário daqueles que poderão pensar que a conver-
gência da competitividade e da cidadania, até o momento, todavia, apenas
retoricamente anunciada, já representa um novo consenso capaz de ultrapassar
velhas dicotomias e objetivos inconciliáveis, as perspectivas mais realistas lembram
que “uma das grandes fraquezas da competitividade advém do fato de ser clara-
mente incapaz de reconciliar justiça social, eficiência econômica, preservação
ambiental, democracia política e diversidade cultural, no mundo em que vivemos”.
Por isso, conclui: “Fica claro que temos que procurar uma alternativa mais eficiente,
mais efetiva e mais segura” (Grupo de Lisboa, 1994, p. 156) .
No mesmo sentido, Bourdieu insiste em denunciar a operação de mistifica-
ção que consiste em separar o econômico do social pelo cálculo da eficácia e ren-
tabilidade financeiras, ignorando sistematicamente os custos sociais. Às decisões to-
madas nessa base opõe em alternativa uma economia da felicidade que leve em
conta os ganhos e custos individuais e coletivos associados às opções políticas em
confronto (Bourdieu, 1998, p. 39, 50)9. Mais ainda, se a competitividade, segundo

9. Em consonância com este sociólogo, e valorizando a “competitividade com rosto humano”,


o relatório Para uma Europa dos Direitos Cívicos e Sociais, elaborado pelo Comité de Sábios
presidido por Maria de Lurdes Pintasilgo, acentua a urgência de “introduzir o princípio segun-
do o qual todas as políticas européias devem ser objeto de um estudo de impacto em termos
de coesão social”, bem como refere ser necessário “lançar um programa de trabalho no
domínio da política social européia e evidenciar os custos da não-Europa social” (Comité de
Sábios, 1996, p. 2, 3, 7, 29).

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 95


o modelo liberal-produtivista assente na guerra de todos contra todos, é hostil à
consideração das necessidades e sofrimento humanos, exibe a mesma virulência
agressiva em face do planeta que temporariamente partilhamos. De acordo com
Alain Lipietz o modelo de “flexibilização” que, ao longo dos anos 80, foi adotado por
diversos países do mundo, dispensando os compromissos sociais, ignora qualquer
exigência de responsabilidade ecológica, não constituindo, por isso, uma via de de-
senvolvimento sustentável. Em alternativa, argumenta o autor, há lugar para defen-
der uma via de competitividade assentada na progressiva “unificação das regras so-
ciais e das regras de proteção do ambiente”, a par da unificação dos mercados.
Nesse sentido, a introdução de reformas profundas antitaylorianas na organização
do trabalho, acompanhadas de aumento do tempo livre como contrapartida da
parte dos trabalhadores para o seu maior envolvimento “em prol da qualidade e da
produtividade”, bem como a negociação de compromissos em torno da estabilida-
de de empregos, rendimentos e carreiras, permitiriam fazer esperar “a pacificação
da concorrência de todos contra todos engendrada pelo liberal-produtivismo”, que
a prazo se revela insustentável10. Essa, para além de não ser a única via para a
competitividade, como, segundo o mesmo autor, é evidenciado pelos modelos
seguidos por diferentes países, exclui quer o desenvolvimento da maior parte da
população do planeta, quer a inversão das tendências potenciadoras de uma crise
ecológica global (cf. Lipietz, 1995, p. 47-55).

Questionando a visão pós-fordista: uma nova (e feliz) correspondência?

Uma outra perspectiva que interessa problematizar é se o pressuposto oti-


mista da generalização de um modelo de produção pós-fordista, identificado
freqüentemente como de especialização flexível, traduz a celebração de uma
auspiciosa e, finalmente, realizável oportunidade de fazer da produção e do traba-
lho lugares de exercício e desenvolvimento de capacidades e valores convergentes
com aqueles que animam generosas concepções e avançadas práticas de cidadania
em outros espaços da vida social. Uma resposta positiva tornaria possível, de acor-
do com estas visões do futuro, concretizar pela primeira vez na história uma con-

10. O autor defende que o Ato Único Europeu e o Tratado de Maastricht inauguraram uma nova
era européia em que, pela primeira vez, não ocorreu em simultâneo a unificação dos merca-
dos e das regras sociais, constituindo a fonte de “o dumping social, o dumping ecológico, o
dumping fiscal” (Lipietz, 1995, p. 2). Pierre Bourdieu sublinha igualmente que é a concorrên-
cia entre os trabalhadores europeus, alimentada pela discrepância de regras atrás assinalada,
que constitui a principal arma para “um regresso a um capitalismo selvagem” (1998, p. 45).

96 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


cepção e um projeto de educação em que coincidiriam a formação para a vida de
trabalho, nas suas dimensões pessoal, profissional e organizacional, e para a partici-
pação democrática na vida coletiva. Melhor dizendo, a preparação para o trabalho
assentar-se-ia no desenvolvimento do mesmo conjunto de disposições, orienta-
ções e valores que a educação para o exercício de cidadania. Pelo que a articulação
educação, cidadania e competitividade resultaria, quase naturalmente, de supostas
mudanças profundas e generalizadas no funcionamento da economia e da organiza-
ção da produção e do trabalho.
Na nossa perspectiva, tal assunção torna-se, no entanto, muito problemática
quando atentamos num conjunto muito vasto de estudos e argumentos que defen-
dem e evidenciam o caráter diversificado e muito desigual das tendências em curso
nos domínios referidos. Não só parecem desenhar-se diferentes modos de inser-
ção das economias nacionais na economia global, como tais opções se articulam
com o desenvolvimento de modelos de produção distintos, uns apresentando tra-
ços próximos de modalidades neofordistas, outros suscitando a emergência do que
pode vir a constituir-se como novas configurações produtivas (cf. Boyer, 1997).
Esses trabalhos convergem não apenas para sublinhar a impossibilidade de anteci-
par se um dado modelo de produção virá a tornar-se dominante, como também
chamam a atenção para o caráter infundado (ou mesmo visionário), e, por vezes,
política e ideologicamente suspeito, daquelas leituras da realidade baseadas na pos-
sibilidade de generalização de modalidades predefinidas e predeterminadas de or-
ganização da produção e do trabalho11.
Assim, de acordo com investigações e pontos de vista mais cautelosos e
empiricamente sustentados, a organização da economia, da produção e do traba-
lho apresentam uma complexidade, diversidade e instabilidade tais que abrem es-
paço para a definição de projetos e estratégias de atuação por parte dos diversos
atores sociais, susceptíveis de influenciar decisivamente os processos em curso. Mas

11. Entre nós dispomos já de um apreciável conjunto de trabalhos que sustentam o caráter
infundado de tais avaliações e perspectivas futuristas celebratórias de um (suposto) pós-fordismo
reinante (cf. Kovács, Castillo, 1998; Kovács, 1998; Stoleroff, Casaca, 1996; Stoleroff, Casaca,
1998; Kovács, 1998b). Pelo contrário, salientam Ilona Kovács e Juan José Castillo, “há diver-
sos modelos de produção de acordo com as situações sociais e históricas concretas, poden-
do coexistir diversos modelos num determinado país, setor, região e até numa mesma em-
presa” sublinhando “a urgência de mostrar a distância que separa os discursos e as práticas e
de identificar as tendências de evolução com base na análise de situações e práticas concre-
tas” (Kovács, Castillo, 1998, p. 2; cf. também, na mesma obra, os capítulos 2 e 3 assinados
por Castillo).

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 97


apenas o conhecimento e a prática reflexivos podem contribuir para orientar op-
ções congruentes com os fins desejados.

Equívocos e omissões de um consenso simples


Educação e competitividade: uma equação complexa
Num texto intitulado “Can Education do it alone?” Henry Levin e Carolyn
Kelley defendem que a educação pode contribuir decisivamente para muito daquilo
que lhe é exigido, mas apenas se as condições necessárias para tal forem proporcio-
nadas; isto é, “apenas se a educação se traduzir em oportunidades” poderá efetivar
o seu potencial. Dito de outro modo, “a educação apenas pode contribuir para
aumentar a produtividade se houver oportunidades de emprego para trabalhado-
res mais produtivos”. A perspectiva de que a educação pode, por si mesma, resol-
ver problemas de produtividade e competitividade da economia, ignorando outras
condições necessárias – novos investimentos, novos métodos de organização do
trabalho, novas abordagens de gestão – tem como conseqüência, segundo os mes-
mos autores, que as empresas “são reforçadas nas suas crenças de que o principal
obstáculo ao seu sucesso é a pobre educação da força de trabalho”, distorcendo
assim as políticas nacionais e industriais para direções incapazes de favorecer a pro-
dutividade nacional (cf. Levin, Kelley, 1997, p. 240, 245). Nesse sentido, coloca-se
a questão de se saber em que condições a competitividade das economias pode ser
potencializada pela difusão de elevados níveis de educação e formação. Uma boa
parte da investigação disponível defende a importância decisiva de as políticas eco-
nômicas e industriais serem orientadas para favorecer quer um volume e composi-
ção adequados de investimento, quer alterações profundas na organização da pro-
dução e do trabalho. Ou seja, segundo os autores, a ausência ou subdesenvolvi-
mento de tais processos tornam ilusórias, ou mesmo perversas, as expectativas
criadas acerca dos benefícios decorrentes de uma força de trabalho mais educada.
Argumentando num sentido convergente, Kovács sublinha a relação de mútua sus-
tentação entre as políticas públicas, as estratégias patronais e sindicais, os modos de
organização do trabalho e a educação e formação na criação de condições que
viabilizem o que designa como novo paradigma produtivo, orientado não só para a
competitividade da economia como para a democratização da vida social, nomea-
damente na esfera do trabalho (cf. Kovács, 1998, 1998a, 1998c, 1998d)12.

12. Ilona Kovács propõe uma concepção de novo paradigma produtivo que enfatiza tanto a flexibi-
lidade no que respeita a produtos, mercados, tecnologias e trabalho como à natureza

98 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


Tendo-se consolidada a perspectiva de que as formas de organização do
trabalho condicionam decisivamente as oportunidades de mobilização e desen-
volvimento dos saberes e competências individuais e coletivos dos trabalhadores,
alguns autores defendem que no interior das organizações têm lugar processos
bloqueadores ou propiciadores da aprendizagem que são em grande medida de-
pendentes do tipo de gestão e das características das situações de trabalho. A esse
propósito, por exemplo, são freqüentes, em relação à indústria portuguesa, as
referências a “processos de antiaprendizagem”, a “perdas de investimento em
formação profissional associadas a determinadas formas de organização do traba-
lho mais tradicionais” (Moniz et al., 1998, p. 64-5; cf. também Kovács, 1998d) ou
mesmo a “regressões culturais” ou à dissipação do “potencial humano adquirido
no sistema de ensino” (Pinto, 1994, p. 178, 1997, p. IV; cf. também Afonso,
1999, p. 24-6).
Parece, assim, que a aparente linearidade da ligação entre educação, desen-
volvimento econômico e competitividade apresenta meandros e contornos bem
mais complexos – pelo que, a desvalorização sistemática das mediações e condi-
ções que qualificam aquela relação produz não só um profundo enviesamento da
interpretação da realidade como pode igualmente resultar num equívoco perigoso
do ponto de vista das suas conseqüências sociais.

Educação, empregabilidade e exclusão social


A prioridade à educação e formação tem sido igualmente convocada como
via para contrariar a vulnerabilidade dos indivíduos a processos de exclusão social,
sobretudo mediante a designada promoção da sua empregabilidade.
Apesar de importante, não abordaremos a discussão do(s) sentido(s)
assumido(s) pela temática da exclusão (e inclusão) social – quer no domínio da
investigação, quer no debate e na intervenção políticos –, nem do conjunto de
significados associados ao termo empregabilidade. Tentaremos apenas interrogar os
limites inerentes ao pressuposto de que há uma relação essencial de dependência,
no sentido referido e com caráter unívoco, entre os processos sociais condensados
sob aquelas designações.

das “organizações flexíveis, descentralizadas e participativas com recursos humanos qualifica-


dos e polivalentes”. Defende que os sistemas antropocêntricos de produção constituem “uma
alternativa para a Europa” “quer do ponto de vista da valorização dos recursos humanos e da
melhoria da qualidade de vida (no trabalho e em geral) quer do ponto de vista da melhoria da
competitividade das empresas” (Kovács, 1998b, p. 75, 1998c, p. 93-111).

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 99


(Des)emprego e distribuição de renda
A perspectiva que acabamos de enunciar e os programas de ação nela inspi-
rados não permitem confrontar, entre outros, o problema da distribuição de renda
em sociedades em que o desemprego e/ou a degradação do emprego constituem
opções políticas viabilizadas e apoiadas, quer pelos Estados quer pelas empresas
que lhes dão seqüência, para fomentar o crescimento e a competitividade das eco-
nomias (cf. Rhodes, 1991, 1995; Streeck, 1996; Brown, Lauder, 1997).
Nesse contexto, o funcionamento do mercado de emprego não só exclui
uma parte significativa da população como não proporciona as condições mínimas
de sobrevivência a muitos daqueles que aí estão integrados, nomeadamente em
Portugal e na União Européia, mas também, por exemplo, nos Estados Unidos da
América13.
A consciência dessa prioridade de confrontar o problema da distribuição de
renda nas nossas sociedades – em que a insegurança econômica, efetiva ou potencial
tornou-se um constrangimento decisivo para uma parte significativa da população –
tem conduzido à insistência crescente, por parte de analistas e protagonistas envol-
vidos no debate sobre as políticas sociais no contexto europeu, a favor da
institucionalização de uma renda básica universal que assegure condições de vida dig-
nas, a autonomia e solidariedade inerentes à realização de uma cidadania substantiva
(cf., por exemplo, Brown, Lauder, 1997; Standing, 1997, 2000; Silva, 1999).

Políticas de (des)emprego
Os debates sobre o desemprego, com forte expressão, por exemplo, na
União Européia, a partir dos anos 80, têm desembocado sistematicamente em
propostas orientadas para a intervenção do lado da oferta de mão-de-obra. Neste
sentido, numa primeira fase, as medidas defendidas visaram à alteração das condi-
ções de utilização da força de trabalho, enfraquecendo a capacidade de negocia-
ção dos trabalhadores sobretudo pela desregulação/ flexibilização do mercado de
emprego (cf. Rhodes, 1991; Standing, 1997). Mais recentemente, têm sido preco-
nizadas iniciativas que envolvem a gestão do contingente de desempregados, me-
diante chamadas políticas ativas de emprego, orientadas para determinadas cate-
gorias sociais e centradas na formação e criação de incentivos ao emprego e auto-
emprego.

13. Conferir, entre outros, Almeida et al. (1992, p. 71-5, 104-5), Costa (1998, p. 39-45), Castells
(1997, 1998); consultar também, por exemplo, edições do jornal Público 25 fev. 1999, p.
34; 29 nov. 1999, suplemento Economia, p. 6-7).

100 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


Reconhecendo os efeitos positivos das políticas ativas de emprego – no que
toca, por exemplo, à disseminação de qualificações ou à suspensão temporária do
desemprego para os grupos envolvidos – alguns analistas chamam a atenção para
outras características marcantes da atual situação. Do ponto de vista desses autores,
tais debates e opções têm sido muito eficazes na promoção da aceitação generaliza-
da de altas taxas de desemprego e de insegurança econômica, possuem um eleva-
do potencial para produzir a estigmatização e a coerção de segmentos marginais ou
excluídos do mercado de emprego, bem como para pressionar no sentido da baixa
de salários e condições de trabalho dos empregados. Além disso, a ocorrência de
efeitos de substituição, identificados em relação a algumas dessas medidas em diver-
sos países, sugere que as taxas de colocação verificadas podem repercutir tanto na
redução do desemprego como na alteração das categorias que compõem o contin-
gente de desempregados (cf. Standing, 1997, p. 203-15). Assim, as políticas de
promoção do emprego, seguidas nomeadamente na União Européia – quer aque-
las explicitamente orientadas para a flexibilização da utilização da força de trabalho,
quer as intervenções que visam ao envolvimento de desempregados em modalida-
des de formação ou de atividades remuneradas – parecem merecer um exame
crítico sério, que equacione o seu potencial para distribuir o rendimento ou o de-
semprego, e para promover a justiça ou a desigualdade e exclusão sociais.

Empregabilidade, qualificação e emprego


A ênfase na promoção da empregabilidade dos indivíduos, mormente por
meio da expansão de oportunidades de acesso à educação e formação, assenta-se
no pressuposto de que ao desemprego se encontra associado um déficit de qualifi-
cação que, sendo confrontado e resolvido, se reflete na anulação ou diminuição
desse mesmo desemprego14. Ora, grande parte da investigação na área indica que
a relação entre formação, qualificação e emprego envolve não só os atributos do
trabalhador e as características do posto de trabalho (condicionadas pela organiza-
ção do trabalho) como as relações de poder que se jogam no mercado de emprego
entre assalariados e empregadores, entre grupos de trabalhadores, dependendo
ainda da concorrência entre candidatos ao emprego. Dispomos de um imenso vo-

14. Não estão em causa os esforços, programas e políticas orientados para beneficiar a formação
dos indivíduos e grupos sociais desfavorecidos quanto aos níveis de escolarização e qualifica-
ção de que dispõem, já que, obviamente, se trata de minorar uma fonte de desigualdade a
que estão sujeitos. O que se questiona é a concepção de que o desemprego e a empregabili-
dade podem ser seriamente confrontados mediante respostas educativas.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 101


lume de investigações que reiteradamente evidenciam o significado desta e de ou-
tras mediações e interações (consultar a respeito: Tanguy, 1986, cap. 3, Alaluf, 1986,
Rainbird, 1995, Rosa, 1996, Correia, 1996, p. 36-9, 113-6; 1998, p. 161-3, Grácio,
1997, cap. 6, Letelier, 1999).
Defender uma política de acesso ao emprego assente prioritariamente na
promoção da empregabilidade dos indivíduos, pelo seu envolvimento em mais edu-
cação e formação, significa descurar o fato de que, por exemplo, o nível educacional
dos trabalhadores que acedem a um dado emprego varia, dentro de alguns limites,
conforme o grau de escolarização da população, em particular daqueles que se
constituem como candidatos, efetivos ou potenciais, à categoria ocupacional em
apreço15. Assim sendo, a prioridade à promoção da empregabilidade pela elevação
dos níveis de ensino e formação, sem um esforço equivalente orientado para a
expansão de empregos qualificados, parece ter probabilidades significativas de pro-
duzir, entre outras, duas conseqüências igualmente contraproducentes: o adiamen-
to sine die do acesso ao emprego daqueles que se encontram no final da fila de
espera, qualquer que seja o seu nível de formação, mas também a sobrequalificação
dos empregados, aliada ao desemprego de diplomados, por exemplo, do ensino
secundário e superior (ver a respeito Nunes, 1998, especialmente os capítulos as-
sinados por João Sedas Nunes e por José Machado Pais; OCDE, 1998; Kovács,
1998d). Tais conseqüências evidenciam os limites inerentes à omissão ou insuficiên-
cia de políticas que promovam a empregabilidade também pela criação de empre-
gos que concomitantemente favoreçam a organização da produção e do trabalho

15. Conferir, por exemplo, o estudo de Letelier, comparando dados relativos a Santiago do Chile
e São Paulo, no Brasil, em 1995. A autora analisa os níveis de escolarização que caracterizam
a população economicamente ativa numa e noutra região e aqueles que se verificam em
diversas categorias profissionais (motoristas, telefonistas e operadoras de telecomunicações,
enfermeiras, parteiras, eletricistas, operadores de som, despachantes e carteiros) e setores
como a indústria metalomecânica. Em face da divergência encontrada entre os níveis de
formação dos trabalhadores, em cada uma daquelas regiões, para uma mesma ocupação e/
ou setor de atividade, a socióloga afirma que “a relação entre escolaridade e inserção no
mercado de trabalho está determinada pelo perfil educacional geral alcançado pela socieda-
de, mais do que pela demanda de qualificação oriunda do mercado de trabalho” (Letelier,
1999, p.136-7). Em Portugal, e relativamente ao setor da construção civil, Madureira Pinto
assinala que “mais de 70% do pessoal com estatuto de ‘encarregado, chefe de equipe ou
contramestre’ (...) têm, no máximo, quatro anos de escolaridade. Já na categoria dos ‘prati-
cantes e aprendizes’, e como conseqüência do fenômeno de extensão da escolarização junto
das camadas mais jovens da população portuguesa, tem aumentado regularmente a propor-
ção dos que possuem pelo menos o 6º ano de escolaridade (de 24%, em 1982, passaram
para quase 50%, em 1993)” (Pinto, 1999, p. 28, grifos nossos).

102 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


fundamentada na valorização dos recursos humanos (cf. Kovács, 1998d, p. 76-81;
Pinto, 1999, p. 29, 37)16.
Torna-se, por isso, necessário discutir em que condições a expansão de opor-
tunidades de educação e formação pode contribuir para contrariar o desenvolvi-
mento de novas desigualdades sociais e de processos de exclusão social. O acesso
ao emprego para todos parece não ser viável sem a promoção de políticas de
criação e partilha de empregos. Mas a possibilidade de estas conduzirem a maior
justiça social depende de novos compromissos sociais. Analistas como Lipietz (1995),
Santos (1998) e Castel (1998) convergem na defesa da perspectiva de que a preca-
riedade dos direitos sociais, associada à desregulação do mercado de emprego e à
opção por políticas agressivas de recursos humanos (cf. Kovács, 1998e, p. 72-5),
por parte das empresas, contribui para inviabilizar a construção de uma base alter-
nativa para a solidariedade, justiça e coesão sociais.

Outras dimensões sociais e culturais das políticas de educação e formação


Constitui um dado adquirido que os indivíduos e os diferentes grupos sociais
beneficiam-se de modo muito assimétrico da expansão de oportunidades de edu-
cação e formação, dada a desigualdade de condições em que estão colocados para
aproveitar dos bens e recursos culturais e simbólicos. Algumas condicionantes são
por demais conhecidas e podem ser sumariamente consideradas.
Por um lado, a mobilização para a educação e a formação apenas emerge e
se consolida se os indivíduos tiverem garantidas quer a segurança econômica, quer
a satisfação das necessidades e condições básicas de vida (cf. Brown, Lauder, 1997;
Kovács, 1998d). A precariedade, a incerteza e a pobreza dificultam um envolvimento

16. A propósito da Cimeira Extraordinária de Lisboa sobre o Emprego, no âmbito da Presidência


Portuguesa do Conselho Europeu, António Guterres, numa entrevista recente, insistiu sobre
“o problema estrutural que tem a ver com a qualificação das pessoas e a qualidade do empre-
go” bem como a necessidade, em Portugal, de “aumentar a taxa de emprego (...) desenvol-
ver a aprendizagem ao longo da vida (...) modernizar a organização do trabalho para que as
pessoas possam produzir mais e melhor e com mais satisfação” (Guterres, 2000, p. 20-1).
Essa abordagem mais global – se for traduzida, de forma consistente, em políticas e esforços
coletivos dos vários atores envolvidos e incidindo nas diferentes dimensões e vetores assina-
lados – pode apresentar um potencial acrescido para tornar possível a articulação entre a
expansão da educação e a promoção da cidadania, se, simultaneamente, a qualidade for
desenvolvida como cidadania no emprego. Nesse sentido, as perspectivas avançadas por
António Guterres na entrevista permitem confrontar alguns dos limites inerentes às aborda-
gens, mais redutoras e mistificadoras, exclusiva ou principalmente centradas em propostas de
promoção da empregabilidade mediante a qualificação da força de trabalho.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 103


significativo das crianças, jovens e adultos em percursos de formação prolongados e
consistentes, pelo que apenas por inaceitável ingenuidade ou má-fé se podem ali-
mentar expectativas de aqueles retirarem benefícios significativos e generalizados da
expansão de oportunidades de educação e formação sem lhes serem garantidas a
segurança material e condições de vida dignas.
Por outro lado, se “a educação não pode compensar a sociedade” (Bernstein,
1982), a forma e conteúdo que a educação assume são decisivos para que a gene-
ralização do acesso a modalidades e níveis de formação se traduza por uma distri-
buição eqüivalente dos recursos culturais e diplomas a estes associados (cf. Bernstein,
1996, 1998). Nesse sentido, uma política social de expansão das oportunidades
educacionais e de formação terá de ser construída também como uma política cul-
tural de sentido democrático. Nessa persp ectiva, torna-se crucial a definição de
quais os saberes e práticas valorizados ou excluídos e de como estes se relacionam
com as identidades desenvolvidas ou reprimidas por intermédio da educação (cf.,
entre outros, Young, 1982, 1989; 1998; Stoer, 1994; Cortesão, Stoer, 1996). A
produção institucionalizada de uma ampla gama de desigualdades e exclusões cultu-
rais e sociais por intermédio do ensino e formação não autoriza abordagens
voluntaristas e superficiais, ainda que bem-intencionadas, que ignorem as dimen-
sões político-culturais da educação sublinhadas por décadas de experiências e de
investigações.
A prevalência entre nós de um currículo escolar que persiste em vincar fron-
teiras, hierarquias e dicotomias entre formas e áreas de conhecimento, saberes e
práticas sociais, e em desconhecer a pluralidade de universos existenciais e culturais
dos públicos a que se destina constitui-se como exemplo tristemente incontornável
dos limites de uma política de expansão da educação mutilada no seu potencial de
afirmação do pluralismo e dos direitos culturais (cf., entre outros, Stoer, Araújo,
1992; Stoer, Cortesão, 1999).
Assume, ainda, particular importância a natureza posicional dos bens e recur-
sos educativos formalmente certificados, como característica decisiva associada aos
processos de escolarização que não pode deixar de ser enfrentada por qualquer
política orientada para valorizar os efeitos e as dimensões distributivos da expansão
de oportunidades de educação e formação (cf. Dale, 1994, p. 120-2). Com efeito,
desde os trabalhos de Randall Collins (1977, 1979) ou Bourdieu (1979) – para citar
apenas alguns dos mais importantes – que conhecemos o caráter mediado e relati-
vo do valor assumido pelos graus e credenciais escolares. Esse valor não só é defi-
nido no interior de lutas concorrenciais, sobretudo entre grupos sociais com inte-

104 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


resses divergentes quanto à abertura ou restrição da sua distribuição, como é obje-
to de estratégias de distinção que vão no sentido de produzir novos e sutis mecanis-
mos de estratificação dos bens associados à educação e formação (Bourdieu, 1979).
O conhecimento de que os sistemas educativo e formativo se constituem também
como agências de distribuição de recursos culturais e simbólicos cujo valor social
depende de relações de poder entre grupos sociais e da sua capacidade relativa
para influenciar os resultados destes confrontos, obriga a colocar o problema
posicional no centro do debate sobre educação e cidadania (cf. Brown, Lauder,
1997).
A difusão alargada de um dado nível de escolarização e formação apresenta-
rá limites óbvios, quanto à concomitante distribuição dos benefícios sociais e mate-
riais a ele associados, se for acompanhada de formas, mais ou menos sutis ou explí-
citas, de distinção e estratificação entre os seus beneficiários (Bourdieu, 1979;
Bourdieu, Champagne, 1992). Tais mecanismos de diferenciação, dentro de um
mesmo nível de formação generalizadamente difundido, podem decorrer da cria-
ção de percursos, diplomas ou instituições cuja orientação para (ou utilização por)
determinados grupos sociais estabelece discriminações, vantagens e assimetrias en-
tre públicos formalmente beneficiários das mesmas ou de eqüivalentes oportunida-
des de educação e formação.
Não podem, assim, deixar de ser objeto de profunda reflexão os estudos e
análises que chamam a atenção para a incontornável responsabilidade do Estado na
definição das regras que garantam, a todos e a cada um, oportunidades justas e reais
de desenvolver o seu potencial e de se beneficiar dos recursos e bens culturais e
simbólicos proporcionados pelos sistemas de ensino e formação (cf. Brown, Lauder,
1997).
A responsabilização dos indivíduos pela sua formação, independentemente
das condições em que se encontrem, a institucionalização de mecanismos de esco-
lha e de liberalização na educação – que criam novos espaços para o exercício de
estratégias de distinção por parte dos grupos mais poderosos – são alguns dos pro-
cessos sociais freqüentemente associados à produção de novas e profundas desi-
gualdades e exclusões sociais (cf. Kovács, 1998d, p. 78-83; Brown, 1997). Desse
modo, a credibilidade e o sucesso de um programa político que articule a ampliação
de oportunidades de educação e formação e a afirmação da cidadania dependerão
do modo como, em simultâneo, for efetivamente confrontado o problema político
inerente ao valor posicional dos bens educativos.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 105


EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO: NOVO PAPEL NA ARTICULAÇÃO ENTRE
CIDADANIA E COMPETITIVIDADE?

A investigação e análise disponíveis parecem sustentar a perspectiva de que é


possível uma via de desenvolvimento humana, social e ecologicamente sustentável,
distinta do modelo de competitividade liberal-produtivista baseada em novos e mais
vastos compromissos sociais que associem a negociação de regras sociais e de pro-
teção do ambiente à unificação dos mercados.
Por outro lado, a organização da economia, da produção e do trabalho apre-
senta uma complexidade e diversidade de configurações, dinâmicas e tendências
que sugerem estarmos em presença de um processo em que emergem, se con-
frontam e podem vir a consolidar-se diferentes modelos, implicando formas alter-
nativas de mediação dos conflitos e interesses sociais.
Nesse contexto, a prioridade à ampliação das oportunidades e à elevação
dos níveis de educação e formação como via para consolidar e desenvolver os
direitos de cidadania e para fomentar a competitividade das economias parece po-
der constituir-se em agenda política e teórica digna de crédito, se forem igualmente
viabilizadas políticas econômicas, industriais e de emprego assentes na valorização
do trabalho qualificado e na criação e partilha de empregos com base numa nova
articulação de direitos e compromissos sociais.
Do mesmo modo, o conhecimento já consolidado nas Ciências Sociais so-
bre a educação sugere que a realização daquele potencial depende ainda da efetiva
confrontação, por meio de políticas sociais e educacionais, de tensões e problemas
inerentes à distribuição da renda (garantindo as indispensáveis segurança material e
condições de vida dignas), à natureza posicional dos bens e recursos educacionais e
remete para uma dimensão do seu valor que resulta do modo como influencia a
posição social do seu detentor, mais do que da importância instrumental ou material
que tem para ele. Esse valor social dos bens e recursos educacionais é variável,
muitas vezes não coincidente com o seu valor formal, dependendo do modo como
são estratificados entre si; assim, a sua posse posiciona os seus detentores numa
escala hierárquica.

106 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


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112 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


O FUNDEF E OS EQUÍVOCOS NA
LEGISLAÇÃO E DOCUMENTAÇÃO OFICIAL

NICHOLAS DAVIES
Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.
davies@megaline.com.br

RESUMO

O trabalho analisa a legislação bem como documentos produzidos pelo Ministério da Educação
sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério e acerca da remuneração/valorização docente, e conclui que as dificuldades de com-
preensão do tema originam-se, em boa medida, de formulações não uniformes na própria legis-
lação e nos muitos equívocos contidos nos documentos oficiais que pretendem oferecer explica-
ção e orientação.
LEGISLAÇÃO – EDUCAÇÃO – BRASIL. LEIS, DECRETOS ETC. – FUNDEF

ABSTRACT

THE FUNDEF AND THE MISUNDERSTANDINGS IN THE LEGISLATION AND OFFICIAL


DOCUMENTATION. The article examines the legislation as well as documents produced by the
Brazilian Ministry of Education concerning the Fund for Maintenance and Development of the
Compulsory 8-year School Education and Valorization of Teaching Personnel and concerning
teachers valorization and salaries and it concludes that the difficulties in understanding the
subject derives a great deal from non-consistent wording in the legislation itself and from the
many mistakes contained in official documents claiming to provide explanation and guidance.

Texto aprovado pelo Grupo de Trabalho, de Estudo e Política Educacional para a Reunião da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPEd –, realizada em
Caxambu, Minas Gerais, em setembro de 1999, mas não apresentado. Aceito também e
apresentado no Grupo de Trabalho de Financiamento da Educação do Simpósio da Associa-
ção Nacional de Política e Administração da Educação – Anpae –, realizado em Santos, São
Paulo, em novembro de 1999.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 julho/ 2001


p. 113-128, 113
O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de
Valorização do Magistério – Fundef – tem provocado muitas polêmicas e dúvidas que
se devem, em parte, à natureza complexa do tema, mas também, e sobretudo, aos
equívocos contidos na legislação e documentação oficial. As linhas a seguir preten-
dem mostrar a responsabilidade oficial (Ministério da Educação e Cultura – MEC –,
Conselho Nacional de Educação – CNE – e Tribunal de Contas) sobre esta questão,
mediante exame de alguns pontos da Emenda Constitucional n. 14, da Lei Federal
n. 9.424/96, do Parecer n. 10/97 e da Resolução n.3, ambos do CNE, de documen-
tos produzidos pelo MEC, para orientação dos governos, e de documento produzi-
do pelo diretor de instituto ligado ao Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro.
O estudo não segue uma hierarquia analítico-legal e procura apenas apontar os equí-
vocos e contradições que têm gerado tantas dificuldades de compreensão sobre a
questão.

REMUNERAÇÃO OU VALORIZAÇÃO DOS PROFESSORES OU DO


MAGISTÉRIO?

O primeiro problema do Fundef está na própria legislação que lhe deu ori-
gem. A Emenda Constitucional n. 14, que o criou em setembro de 1996, e a Lei
n. 9.424, que o regulamentou em dezembro de 1996, apresentam redações variá-
veis sobre a valorização do magistério que se prestam a interpretações contra-
ditórias. A referida Emenda Constitucional – EC –, por exemplo, estipula que “uma
proporção não inferior a 60% dos recursos de cada fundo” seja “destinada ao paga-
mento dos professores do ensino fundamental em efetivo exercício no ensino fun-
damental”. Já o art. 2º da Lei n. 9.424 estabelece que os recursos do fundo desti-
nam-se à manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental público e à valo-
rização do magistério. Por fim, o art. 7º desta lei destina pelo menos 60% dos
recursos do Fundef para a remuneração dos profissionais do magistério em efetivo
exercício de suas atividades no ensino fundamental público. Os trechos em itálico
(de nossa autoria) apontam inconsistências na legislação que têm originado as mais
variadas interpretações. A primeira contradição está na categoria dos beneficiáveis
com os 60% do Fundef. Enquanto a EC n. 14 se refere a “professores do ensino
fundamental”, os art. 2º e 7º da Lei n. 9.424 ampliam os beneficiáveis para “profis-
sionais do magistério”, categoria muito mais ampla do que professores, pois englo-
ba também “os que oferecem suporte pedagógico direto a tais atividades [de
docência], incluídas as de direção ou administração escolar, planejamento, inspe-

114 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


ção, supervisão e orientação educacional”, segundo a definição dada pela Resolução
n. 3, de outubro de 1997, do CNE. Esta, aliás, estabelece o cálculo da remunera-
ção média apenas para os docentes do ensino fundamental, embora pretenda ofe-
recer diretrizes para a elaboração dos planos de carreira e remuneração dos profis-
sionais do magistério. A confusão quanto aos beneficiáveis com os 60% estaria
levando alguns tribunais de contas a estipularem que este percentual só se destina
aos professores, conforme reconhece o próprio MEC em seu manual de orienta-
ção: “...alguns tribunais... [restringem] os 60% dos recursos do Fundef apenas à
cobertura das despesas com remuneração de professores” (Brasil, 1998, p. 10).
Outros tribunais de contas, no entanto, têm-se baseado na Lei n. 9.424, que se
refere aos profissionais do magistério, não aos professores.
Há outro problema em relação ao destino dos 60% dos recursos do Fundef.
A interpretação oficial tem privilegiado o art. 7º da Lei n. 9.424, porém se o espírito
da lei é de valorização do magistério, e não apenas de remuneração, uma outra
interpretação possível, a nosso ver, seria a baseada no art. 2º da Lei n. 9.424, que as
autoridades muito raramente mencionam. Vez por outra, no entanto, os documen-
tos oficiais fazem referência a tal valorização. O manual do MEC de 1998 explica,
por exemplo, que “os recursos do Fundef devem ser empregados exclusivamente
na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental e, particularmente, na
valorização do seu magistério” (Brasil, 1998, p. 7, grifo nosso). Também o Balanço
do primeiro ano do Fundef, divulgado pelo MEC no final de março de 1999, indica
que “os recursos destinam-se prioritariamente à melhoria dos níveis de remunera-
ção e de qualificação dos professores” (Brasil, 1999, p. 4, grifo nosso). Isso significa,
se nos basearmos no art. 2º, que os recursos do Fundef não se destinam a pagar a
remuneração anterior a sua vigência, mas a elevar a remuneração após a sua im-
plantação.
As formulações destes dispositivos legais tampouco esclarecem se o mínimo
de 60% dos recursos para tal fim é calculado com base na receita ou no ganho (se
houver) que a prefeitura ou o governo estadual tenha com o Fundef. Essa diferença
é essencial porque a receita é tudo que o governo receberia do Fundef com base
no número de matrículas no ensino fundamental (se nos reportarmos à EC n. 14)
ou no ensino fundamental regular presencial da sua rede (se nos referirmos à Lei n.
9.424), enquanto o ganho é a diferença positiva entre o que determinada instância
contribui para o Fundef e o que dele recebe. O problema de se trabalhar com o
conceito de receita – a lei só fala em recursos, não especificando se são brutos
(receita) ou líquidos (ganhos) é que ela não inclui as demais receitas vinculadas à

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 115


educação (os 10% restantes1 que não entram no Fundef e 25% dos demais impos-
tos, isso se o percentual mínimo vinculado for de 25% na Lei Orgânica do Município
ou na Constituição Estadual) e cai quando os governos perdem com o Fundef (20
governos estaduais e cerca de 2.800 municipais perderam, em 1998, segundo o
balanço do MEC). Se os governos vinham realmente aplicando o percentual míni-
mo em educação (o que não é garantido) antes da implantação do Fundef, é pouco
provável que 60% da receita do Fundef traga melhorias salariais, pois não há ne-
nhum cálculo na documentação oficial demonstrando que a aplicação desse
percentual irá necessariamente valorizar o magistério. No Estado do Rio de Janeiro,
por exemplo, algumas prefeituras alegam estar aplicando bem mais de 60% do
Fundef na remuneração, mas isso não tem resultado em melhoria salarial. Na ver-
dade, se calculássemos quanto muitos governos estaduais e municipais gastavam na
remuneração dos docentes ou profissionais do magistério no ensino fundamental
antes da implantação do Fundef, constataríamos que destinavam mais do que o
eqüivalente hoje a 60% da receita do Fundef. Portanto, se destinarem hoje 60% ou
até um percentual maior para a remuneração, isso não resultará necessariamente
em melhoria salarial. O curioso é que alguns governos fluminenses, em 1998, mes-
mo sem ter melhorado a remuneração dos docentes, gabavam-se de aplicar até
mais de 100% do Fundef nela, como se isso fosse uma grande virtude. Esqueciam-
se entretanto de mencionar os demais recursos da educação que, embora não
entrem na constituição do Fundef e não sejam vinculados ao ensino fundamental
(10% de todos os impostos), não têm sido utilizados no desenvolvimento de ou-
tros níveis e modalidades de ensino (educação infantil, ensino supletivo e ensino
médio) e, portanto, poderiam ser empregados na melhoria da remuneração dos
docentes ou profissionais do ensino fundamental.
Por outro lado, o conceito de ganho só possibilita melhoria salarial aos profis-
sionais do magistério ou docentes de estados e municípios que ganham com o
Fundef. De qualquer maneira, essa é uma das debilidades fundamentais do Fundef,
que só apresenta o potencial (pois não há nenhuma garantia de que as autoridades
irão repassar o ganho para os profissionais do magistério) de melhoria salarial se o
governo tiver acréscimo de receita. Se o estado (caso do Rio de Janeiro) ou os
municípios (caso da imensa maioria dos municípios paulistas) perderem recursos, o

1. ICMS: Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços. FPM: Fundo de Participação


dos Municípios. FPE: Fundo de Participação dos Estados. IPI exportação: Imposto sobre
Produtos Industrializados. LC 87/96: Lei Complementar de desoneração do ICMS das
exportações.

116 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


Fundef não possibilitará, se trabalharmos com o conceito de ganho, nenhuma
melhoria salarial, pois 60% de zero é zero.

PARECER CEB/CNE N. 10/97 E DOCUMENTOS DE ORIENTAÇÃO DO


MEC

O Conselho Nacional de Educação também produziu uma série de equívo-


cos no seu parecer CEB n.10/97, que deu origem à Resolução n. 3 e que serviu de
base para vários erros dos documentos Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Fundamental e Valorização do Magistério e Oficina de Elaboração de Plano de
Carreira, produzidos, provavelmente, pouco depois de setembro de 1997, pelo
MEC/FNDE2, para o Encontro pela Melhoria do Ensino Fundamental – MEC/Pre-
feituras (Brasil, 1997c, 1997d). A propósito, o parecer inspira-se fortemente nas
diretrizes para o plano de carreira contidas no guia para operacionalização do Fundef,
encomendado ao Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal –
Cepam –, de São Paulo, pelo FNDE e publicado nos primeiros meses de 1997, o
que sugere a pouca autonomia e talvez um certo atrelamento do CNE em relação
ao MEC (Brasil, 1997c).
Os primeiros equívocos do parecer podem ser encontrados na tentativa de
explicação da EC n.14, que são reproduzidos no item “O Fundo e o salário dos
professores” do documento do MEC. Um deles foi afirmar, no ponto I dos quatro
pontos básicos da EC n. 14, que os “estados e municípios deverão aplicar 15% de
sua arrecadação total no ensino fundamental”, quando o correto é “arrecadação
total de impostos”, muito menos abrangente do que “arrecadação total”, que, além
de impostos, inclui taxas, contribuições e todas as demais receitas.
Outro erro está no ponto II, o qual afirma que “a maior parte destes recur-
sos arrecadados, correspondente ao ICMS, FPM e FPE, será distribuída entre os
estados e os seus respectivos municípios, de acordo com o número de alunos no
ensino fundamental regular”. Ora, os 15% da receita total de impostos (menciona-
dos no ponto I e objeto de uma subvinculação específica na EC n. 14) não devem
ser confundidos com a outra subvinculação estabelecida pela EC n.14, relativa aos
recursos do Fundef. Por isso, é um equívoco a ligação que o ponto II estabelece
com o ponto I, uma vez que os recursos em pauta de cada subvinculação são
distintos. Outro equívoco do ponto II foi afirmar que o critério de redistribuição dos
recursos do Fundef seria apenas o do número de alunos no ensino fundamental

2. FNDE: Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 117


regular. Embora este critério tenha sido estabelecido pela EC n. 14, a Lei n. 9.424,
que regulamentou o Fundef, criou, no § 2º do art. 2º, um novo critério para essa
redistribuição: a diferenciação de custo por aluno conforme os níveis de ensino e
tipos de estabelecimento. Em outras palavras, as matrículas teriam pesos diferencia-
dos conforme os seguintes componentes: 1ª a 4ª séries; 5ª a 8ª séries; estabeleci-
mentos de ensino especial; escolas rurais.
Outro equívoco, encontrado no ponto III, é a não-inclusão dos recursos do
IPI-exportação e da LC 87/96 no conjunto dos impostos que formam o Fundo.
Uma quarta falha está no ponto IV, que diz que “Os estados e os municípios
deverão aplicar 60% dos recursos totais do Fundo, incluídos o ICMS, FPE, FPM, na
remuneração dos professores do ensino fundamental em efetivo exercício.” Mais
uma vez, faltou incluir o IPI-exportação, a LC 87/96 e a complementação federal,
se houver, nos recursos totais do Fundef, e o percentual correto é de pelo menos
60%, e não apenas 60%. No documento do MEC, destinado a orientar prefeitu-
ras, o ponto IV criou mais confusão ao acrescentar “outros impostos locais” após
“FPM”. Ora, a EC n. 14 só estipula que pelo menos 60% dos recursos do Fundef se
destinam ao pagamento dos professores, não incluindo, em nenhum momento, os
tais impostos locais, que, juntamente com os recursos do Fundef, só entram (em
proporção de 15%, ou 60% dos 25%) na composição total do montante necessá-
rio para o cálculo do custo médio aluno/ano, conforme prevê o inciso I do art. 7º,
da Resolução n.3, do Conselho Nacional de Educação. Em outras palavras, o docu-
mento do MEC equivocou-se ao considerar como EC n. 14 o que faz parte da
Resolução, além de incluir erradamente os 15% na base de cálculo dos 60% desti-
nados à remuneração ou valorização do magistério ou professores.
Os equívocos do parecer e do documento prosseguem quando “ensinam”
a calcular o custo médio aluno/ano. Afirmam que o cálculo baseia-se na soma de
três componentes. O primeiro erro está na etapa 1, que manda adicionar os 15%
do ICMS, FPE e FPM, mas se esquece do IPI-exportação, da LC 87/96 e da
complementação federal, se houver. A imprecisão maior desta etapa, no entanto,
está no fato de parecer indicar que o cálculo é feito com base na contribuição dos
estados e municípios para o Fundef (15% do ICMS, FPE ou FPM, IPI-exportação e
LC 87/96, no caso dos estados e dos municípios), e não na sua receita, realizada de
acordo com o número de matrículas no ensino fundamental regular presencial. É
provável que toda essa confusão gerada pela etapa 1 tenha origem na redação
inexata do inciso I do art. 7º do projeto da Resolução n. 3, segundo o qual o “custo
médio aluno/ano será calculado com base nos recursos que integram o Fundo”.
Ora, o montante de recursos que entra na constituição do Fundo (os impostos

118 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


mencionados) não é o mesmo que aquele que integra a receita do Fundef que cabe
ao estado e aos municípios (que só pode ser o sentido pretendido pelo inciso I).
A imprecisão da etapa 1 manifesta-se no roteiro de cálculo do custo médio/
aluno e, portanto, da remuneração média dos docentes contido na Oficina de ela-
boração de plano de carreira, apresentada como suplementar ao documento do
MEC (Brasil, 1997d). Nele, confundiu-se custo médio com valor per capita do Fundef
estadual. Ora, o custo médio baseia-se na soma da receita que o governo tem com
o Fundef (incluída a complementação federal, se houver) com os 15% da receita
dos demais impostos, dividida pelo número de matrículas no ensino fundamental
regular presencial no município ou estado em questão. Já o valor per capita do
Fundef no estado é calculado dividindo-se a previsão da receita do Fundef em todo
o estado e seus municípios pelo total de matrículas no ensino fundamental regular
presencial nas redes do estado e dos municípios.
Outro equívoco desses dois documentos oficiais está na aplicação de um
coeficiente de 0,60 para cálculo da remuneração média dos docentes. Ora, esse
coeficiente só faz sentido quando a referência é apenas a receita do Fundef (Lei
n. 9.424), mas não quando a referência é o custo médio do aluno, que se baseia
nesta receita e em 15% dos demais impostos (Resolução n. 3). O parecer do CNE
e o documento do MEC transpuseram erradamente uma disposição da lei do Fundef
(no mínimo 60% de seus recursos para remuneração ou valorização) para o con-
ceito de custo médio introduzido pela Resolução n. 3.
O equívoco também é repetido pelo documento Fundef e o profissional do
magistério, disponível por algum tempo na home page do Inep, segundo o qual o
montante destinado à remuneração dos profissionais do magistério é no “mínimo
60% dos recursos subvinculados (15% da receita de impostos) para o ensino fun-
damental.” Aliás, o documento comete os mesmos erros do parecer e atribui à
Resolução n. 3 as determinações que na verdade são do parecer, quando diz que

A Resolução n. 3 da CEB/CNE estendeu esse percentual mínimo de 60% para


pagamento do magistério aos outros recursos subvinculados à manutenção e de-
senvolvimento do ensino fundamental, ou seja, a 15% dos impostos próprios e das
transferências que não integram o Fundef. (Brasil, 1998a)

Por fim, nem o parecer, nem o documento mencionam dois outros critérios
que, embora ausentes da EC n. 14, deveriam ser levados em conta na distribuição
dos recursos do Fundef, segundo a Lei n. 9.424. Um, previsto no § 2º do art. 2º, é
a diferenciação do custo por matrícula segundo os níveis de ensino e tipos de esta-
belecimento. Em outras palavras, as matrículas teriam pesos diferenciados confor-

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 119


me os seguintes componentes: 1ª a 4ª séries, 5ª a 8ª séries, estabelecimentos de
ensino especial, escolas rurais. Como em 1997, 1998 e 1999, o MEC não procu-
rou definir tais pesos diferenciados, o que foi aplicado é apenas o critério do núme-
ro de matrículas do ano anterior. Só no final de 1999 o MEC procurou cumprir tais
exigências, se bem que apenas parcialmente, ao atribuir às matrículas de 5ª a 8ª
séries um custo 5% maior. Segundo o MEC, no ano 2000, o valor mínimo nacional
anual por matrícula na 1ª a 4ª série do ensino fundamental seria de R$ 333,00 e de
R$ 349,65, no segundo segmento (5ª a 8ª série). Um outro critério não menciona-
do no parecer e no documento, porém previsto no § 1º do art. 6º da Lei n. 9.424,
é o da estimativa de novas matrículas para o ano seguinte, que não vem sendo
considerado pelo MEC no cálculo do valor mínimo anual por matrícula.

RESOLUÇÃO N. 3: CONSTRUÇÃO EM AREIA MOVEDIÇA

A Resolução n. 3, resultante do projeto de resolução em anexo ao parecer


CNE n.10/97, também contribuiu para confundir o tema, ao cometer a improprie-
dade de fixar diretrizes para planos de carreira e remuneração com base em crité-
rios de natureza finita e instável, como os recursos do Fundef, número de alunos e
docentes. Ora, tais planos pretendem ser permanentes e não podem ser elabora-
dos a partir de itens efêmeros (recursos do Fundef) ou oscilantes (número de alu-
nos e docentes). Por exemplo, segundo o inciso I do art. 7º, “o custo médio aluno/
ano será calculado com base nos recursos que integram o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, aos quais
é adicionado o equivalente a 15% dos demais impostos, tudo dividido pelo número
de alunos do ensino fundamental regular dos respectivos sistemas”. Ora, como o
Fundef é provisório (está previsto para durar até 31 de dezembro de 2006, se não
acabar antes, com uma reforma tributária), um plano de remuneração que se fun-
damente nele é irreal, pois os seus recursos deixarão de existir como tais em 1º de
janeiro de 2007. Essa situação complica-se nos governos que ganham com o Fundef,
ou seja, cuja receita é maior do que a contribuição. Esse dinheiro a mais deixará de
entrar nos cofres da prefeitura ou do governo estadual em 2007 e, portanto, não
poderá mais financiar tais planos de remuneração. Para exemplificar numericamen-
te o impacto do ganho, o Município de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, ganhou
cerca de R$ 15 milhões com o Fundef em 1998, valor não muito inferior ao corres-
pondente aos 25% da receita de impostos (aproximadamente R$ 20 milhões). Em
1998, a prefeitura pôde contar, portanto, com no mínimo R$ 35 milhões para a
educação (R$ 20 milhões relativos aos 25% e R$ 15 milhões equivalentes aos ga-

120 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


nhos com o Fundef). A partir de janeiro de 2007, no entanto, o total de recursos
cairá para o equivalente aos R$ 20 milhões, pois não haverá mais o ganho. Se a
prefeitura fizer planos de remuneração com base na Resolução n. 3, terá grandes
dificuldades em cumpri-los quando o Fundef acabar. O raciocínio vale para todos os
governos que ganham com o Fundef.
Uma situação diversa viverão os governos que perdem com o Fundef, pois
até 2006 seus planos não contarão com recursos que, no entanto, voltarão aos
seus cofres com a extinção do Fundef. Se perderem muito, terão muitas dificulda-
des enquanto durar o Fundef e, por conta disso e da Resolução n. 3 do CNE, seus
planos de remuneração não serão nada atraentes em razão das grandes perdas
para o Fundef. Para piorar a situação, a remuneração média dos profissionais do
magistério do ensino fundamental serve de referência para a remuneração dos que
atuam na educação infantil e na educação média, segundo o inciso V do art. 7º da
Resolução n. 3. O que significa que nos estados e municípios que perdem com o
Fundef a remuneração média de todos os profissionais do magistério (tanto do en-
sino fundamental, quanto da educação infantil e do ensino médio) poderia até cair,
se a Resolução fosse cumprida à risca. Não cairá porque nenhum governo terá a
ousadia de fazer isso. Ou terá? É provável que o MEC e o CNE não estejam preo-
cupados com o que vai acontecer em 2006 porque seus dirigentes e conselheiros
provavelmente não estarão nos cargos que ocupam hoje e, portanto, não poderão
ser responsabilizados pelos erros que cometem hoje.
O plano de remuneração recomendado pela Resolução n. 3 também é
falho porque se baseia em itens bastante variáveis de um ano para outro, como o
número de alunos, o número de docentes e a relação número de alunos/número
de docentes. Ora, um plano que pretende ter caráter permanente ou, pelo menos,
não tão provisório não pode ficar à mercê de itens tão variáveis quanto os citados.
Para exemplificar, segundo os Anuários Estatísticos do Centro de Informações e
Dados do Estado – Cide –, órgão subordinado à Secretaria Estadual de Planejamento,
entre 1994 e 1997 a rede estadual de 1º grau do Rio de Janeiro teve uma involução
no número de matrículas, caindo de 629.349, em 1994, para 608.811, em 1997,
um declínio de 3,3%, enquanto o número de docentes estaduais no ensino funda-
mental teve uma diminuição bem maior, de 33.134, em 1994, para 26.558, em
1997 (Rio de Janeiro, 1996, 1997). Situação parecida, ou para melhor (aumento do
número de matrículas e docentes) ou para pior (sua diminuição), ocorre em todos
os estados e municípios, e os critérios para cálculo da remuneração média previstos
na Resolução n. 3 não dão conta dessa variação e, portanto, só podem ter alguma
validade com base nos dados de hoje, mas não dos anos seguintes.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 121


Outro ponto impreciso da Resolução n. 3 está no modo de conceber o
“custo médio aluno/ano”. Em primeiro lugar, o correto seria dizer “disponibilidade
contábil média por aluno/ano”, uma vez que a existência de recursos consignados
em orçamentos ou lançados em balancetes ou balanços anuais não significa que
venham a ser ou tenham sido efetivamente gastos em benefício do aluno. Para ser
mais preciso, é possível que não tenham sido gastos em atividades e projetos que
podem ser classificados como de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino –
MDE –, conforme prevê o art. 70 da Lei de Diretrizes e Bases (Lei n. 9.394). Como
tenho observado em análise de gastos em educação no Estado do Rio de Janeiro, e
creio que essa situação vale para todo o Brasil3. É comum os governos ou maquiarem
a contabilidade para ocultar a não-aplicação dos recursos devidos em MDE, ou
nem se darem o trabalho de fazer essa ocultação, uma vez que contarão com a
conivência de deputados estaduais e vereadores para aprovar as suas contas, por
mais irregulares que sejam. Outro problema desse conceito está no termo “ano”.
Isso significa que todo ano os governos terão que fazer este cálculo? Ou quer signi-
ficar o ano em que os governos elaborarem o plano de remuneração?
A Resolução n. 3 apresenta também a ambigüidade de pretender fixar dire-
trizes para planos de carreira e remuneração para os profissionais do magistério
mas o tempo todo só se refere aos docentes. O art. 5º, por exemplo, recomenda
que os sistemas de ensino promovam programas de desenvolvimento profissional
dos docentes em exercício, mas não inclui os demais profissionais do magistério. Os
incisos IV (jornada de trabalho), V (remuneração de acordo com os níveis de titulação),
VI (incentivos de progressão por qualificação) do art. 5º referem-se aos docentes,
mas não aos demais profissionais do magistério. Para confundir ainda mais, o art. 7º
estabelece um roteiro para cálculo da remuneração média dos docentes no ensino
fundamental, como se os demais profissionais do magistério não devessem ser com-
putados. Em suma, a Resolução n. 3 é bastante contraditória, pois pretende fixar
diretrizes para planos de carreira do magistério, mas acaba se limitando aos docen-
tes e omitindo-se sobre os demais profissionais do magistério.
Considerando-se os problemas discutidos – o caráter efêmero do Fundef e,
portanto, o seu impacto variável sobre os ganhos e perdas dos estados e municí-
pios, as inevitáveis variações do número de matrículas e docentes no ensino funda-
mental, a ambigüidade da resolução – o plano de remuneração proposto pela reso-

3. O deputado estadual Cesar Callegari (1997), de São Paulo, já denunciou a falta de aplicação
da verba devida em MDE pelo governo estadual paulista.

122 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


lução está fadado a gerar muita confusão enquanto o Fundef existir, e, quando aca-
bar, frustração, para governos ganhadores, e contentamento, para governos
perdedores.

A DESORIENTAÇÃO CAUSADA PELO MEC

Era de se esperar que em 1998, depois de tantos meses decorridos desde a


aprovação da EC n. 14, da Lei n. 9.424 e da Resolução n. 3, os erros não mais
aparecessem em documentos oficiais sobre o tema. Entretanto, o MEC produziu
naquele ano um manual de orientação que gera mais confusão sobre o assunto. Na
p. 10, por exemplo, afirma que parte dos 60% do Fundef pode ser utilizada na
capacitação de professores leigos mediante “cursos de aperfeiçoamento e
reciclagem”. Ora, tais cursos podem contribuir para o aprimoramento profissional,
mas não para a habilitação do professor leigo e, portanto, não pode ser financiada
com parte dos 60% do Fundef, mas sim com parte dos 40% restantes.
Outra série de equívocos da publicação pode ser encontrada na p. 22. Num
momento, o “valor médio aluno/ano” é calculado pela “razão entre os recursos do
Fundef acrescidos dos demais recursos destinados ao ensino fundamental e a matrí-
cula nesse nível de ensino em cada sistema.” Noutro, linhas abaixo, este valor é
“definido a partir do valor mínimo anual por aluno do Fundef no estado e dos de-
mais recursos subvinculados para o ensino fundamental e a matrícula nesse nível de
ensino em cada sistema.” Além de contraditórios, os dois procedimentos contêm
várias falhas. Um é considerar “recursos” como sinônimo de “impostos”. Ora, os
recursos da educação não abrangem apenas os impostos, mas também os oriundos
de convênios e do salário-educação, sendo este último vinculado ao ensino funda-
mental público porém não integrante dos “demais recursos subvinculados para o
ensino fundamental”, que serve de base para o cálculo do custo médio aluno/ano,
conforme o inciso I do art. 7º da Resolução n. 3, que se refere a impostos, não a
recursos. Outra falha desses dois trechos está em se basear nas matrículas do ensi-
no fundamental, quando a legislação determina que as matrículas sejam do ensino
fundamental regular, o que significa que as do supletivo não podem ser computadas.
A confusão maior, no entanto, está no segundo trecho, quando afirma que o valor
médio é “definido a partir do valor mínimo anual por aluno do Fundef”. Ora, ne-
nhuma parte da legislação contém tal orientação. A Resolução n. 3 diz claramente
que esse valor ou custo (o termo utilizado na resolução) é calculado com base nos
recursos do Fundef, não no valor mínimo anual por aluno.
A desorientação do manual prossegue, quando diz que

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 123


...para o cálculo do ponto médio da escola de remuneração do magistério, deve-se
considerar [...] o percentual de, no mínimo, 60% dos recursos, subvinculados para
o ensino fundamental, destinados à remuneração dos profissionais do magistério em
exercício nesse nível de ensino. (p.22)

Ora, a Resolução n. 3, em que o manual alega se basear, estabelece critérios


para a remuneração dos “docentes do ensino fundamental”, não do magistério,
categoria mais ampla do que docentes. A propósito, o manual várias vezes usa o
termo “profissionais do magistério” com o sentido de “professores”. Também é um
equívoco dizer que 60% dos recursos subvinculados para o ensino fundamental
sejam destinados à remuneração dos profissionais do magistério. A redação oficial é
bastante confusa, pois a legislação estipula duas subvinculações com o percentual de
60%. Uma é de 60% dos 25% da receita de impostos (ou seja, 15%) para o ensino
fundamental até o ano 2006 (EC n. 14). Outra é a de 60% dos recursos do Fundef
(altamente variáveis entre municípios e estados, conforme vimos) para a valorização
(se nos basearmos no art. 2º da Lei n. 9.424) dos professores (EC n. 14) ou do
magistério (Lei n. 9.424) ou a remuneração do magistério (art. 7º da Lei n. 9.424).
Ou seja, em nenhum momento a legislação determina a destinação de 60% dos
recursos subvinculados para o ensino fundamental para a remuneração dos profis-
sionais do magistério.
Mais adiante, na p. 24, o manual, sem ter essa intenção, corrige parcialmente
o equívoco da p. 22, quando diz que no “mínimo 60% dos recursos do Fundef”
devem ser aplicados em salário dos profissionais do magistério. É uma correção
parcial porque não inclui uma parte dos 15% dos demais impostos vinculados ao
ensino fundamental que entra no cálculo do custo médio por aluno, o qual, segun-
do a Resolução n. 3, serve de referência para a remuneração dos docentes (não
dos profissionais do magistério) no ensino fundamental.
Outras imprecisões podem ser detectadas na p. 26. Do ponto de vista legal,
ao contrário do que diz o manual, nem os municípios são obrigados a aplicar os
40% dos 25% (ou seja, 10%) da receita de impostos na educação infantil, nem os
estados e o Distrito Federal devem aplicar tal percentual prioritariamente no ensino
médio, pois nem o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (EC
n. 14) nem a LDB contêm essa determinação. A legislação apenas determina um
percentual mínimo no ensino fundamental até 2006, o que significa que os gover-
nos podem, legalmente, aplicar qualquer percentual acima de 15% da receita de
impostos no ensino fundamental e o restante nos níveis de ensino em que devem
atuar além do ensino fundamental (educação infantil, no caso das prefeituras, e en-

124 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


sino médio, no caso dos governos estaduais). Por fim, o procedimento recomenda-
do no manual falhou por não acrescentar as receitas de convênios e de salário-
educação aos demais recursos vinculados à MDE.
Inconsistências também podem ser identificadas entre uma e outra parte do
manual. Enquanto na p. 27 afirma que “nem estados, nem municípios perdem re-
cursos com o Fundef”, na p. 33 são indicadas três situações que advirão da opera-
ção do Fundef: “ganhos de recursos, quando a receita proveniente do fundo for
superior à contribuição do estado ou município para formação desse mesmo fundo
[...] perda de recursos, quando a situação for inversa, e sem alterações” (quando a
contribuição é igual à receita). Obviamente que para o sistema educacional brasilei-
ro como um todo, o ganho é irrisório, pois se limitará a alguns poucos estados e
seus municípios em que o valor mínimo por matrícula no ensino fundamental regu-
lar não alcançar o mínimo nacional e onde, portanto, haverá complementação fe-
deral. Entretanto, nos estados nos quais o valor estadual superar o mínimo nacional,
não haverá nem ganho, nem perda, mas apenas uma redistribuição dos recursos já
existentes entre os estados e seus municípios. Em outras palavras, o Fundef não traz
dinheiro novo para a educação como um todo, apenas para algumas prefeituras e
governos estaduais, o que significa que outras prefeituras e governos estaduais esta-
rão perdendo recursos. A conseqüência óbvia é que os governos que ganham te-
rão condições de manter e desenvolver o ensino fundamental e valorizar o magisté-
rio (qualquer que seja o sentido dado à “valorizar”), o que não significa que o farão.
A outra conseqüência é que os governos perdedores estarão numa situação pior
para manter e desenvolver o ensino fundamental e valorizar o magistério.
Também o Balanço do primeiro ano do Fundef, divulgado pelo MEC em 18 de
março de 1999, deu a sua cota de contribuição para a confusão oficial sobre o
Fundo. Afirma que os 40% do Fundef não usados na remuneração dos profissionais
do magistério “devem ser aplicados em... pagamento de inativos” (Brasil, 1999,
p. 7). Ora, se o Fundef é para manter e desenvolver o ensino fundamental público,
de que modo os inativos contribuem para isso? Além disso, o inciso VI do art. 71 da
LDB diz que “o pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quando em
desvio de função ou em atividade alheia à manutenção e desenvolvimento do ensi-
no”, não constituirão despesas de MDE. Este equívoco de permissão de uso dos
40% do Fundef para pagamento dos inativos foi espertamente apropriado pela
Secretaria Estadual de Fazenda de Santa Catarina, que, na sua prestação de contas
relativa a 1999, utilizou R$ 86,9 milhões do Fundef para pagar inativos. (Santa Catarina,
2000, item 6.8.2.1 do relatório do Tribunal de Contas do Estado). Além disso, a
orientação é contraditória em relação à dada pelo MEC em seu manual de 1998,

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 125


que afirma que os 60% do Fundef “não podem ser utilizados para o pagamento
de... inativos, mesmo que, quando em atividade, tenham atuado no ensino funda-
mental” (Brasil, 1998, p. 15).

TRIBUNAL DE CONTAS DO RIO DE JANEIRO NÃO ACERTA AS


CONTAS

O órgão fiscalizador das contas públicas no Estado do Rio de Janeiro acres-


centou também sua cota de confusão ao tema. No documento sobre o Fundef,
distribuído a autoridades municipais participantes do 3º Seminário Informativo so-
bre Controle da Administração Municipal, em agosto de 1998, em Niterói, Rio de
Janeiro, Domingos Pinto da Rocha, diretor geral do Instituto Serzedello Correa,
vinculado ao Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, afirma, na p. 11, que
“para se chegar ao valor correspondente a aluno/ano no território de um Estado, é
preciso saber quantos alunos estão matriculados no ensino fundamental e na edu-
cação infantil.” Obviamente, é um equívoco a inclusão das matrículas da educação
infantil, as quais não podem ser computadas no cálculo da redistribuição dos recur-
sos do Fundef.
Orientação equivocada também é dada na p. 14, em que o autor diz que as
despesas do Fundef devem ser discriminadas de acordo com as rubricas de pessoal,
material, outros serviços e encargos, não apontando a necessidade de registrar no
mínimo 60% da receita ou ganho (conforme a interpretação que se adote) do
Fundef para o magistério ou professores. Se as prefeituras e governo estadual segui-
rem sua orientação, não será possível verificar nos orçamentos e balancetes o des-
tino do percentual mínimo de 60% dos recursos do Fundef, já que o item “pessoal”
da educação abrange tanto os profissionais do magistério quanto os demais traba-
lhadores em educação não beneficiáveis com os 60% da receita ou ganho do Fundef.

CONCLUSÃO

Diante de tantos equívocos, imprecisões e erros nos documentos oficiais e


na legislação sobre o Fundef, não surpreende que educadores em geral e autorida-
des educacionais dos estados e municípios ainda hoje continuem confusos sobre as
disposições da legislação e normas. Caberia, pois, ao MEC e ao CNE desfazer
urgentemente as impropriedades contidas em seus documentos e legislação, median-
te novo documento e nova legislação.

126 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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cial da União em 13/9/96.

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mento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério e dá outras providên-
cias).

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BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação. Câmara de


Educação Básica. Parecer n. CEB 10/97, de 3 de setembro de 1997.

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação. Câmara de


Educação Básica. Resolução n. 3, de 8 de outubro de 1997a.

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no Fundamental – MEC/Prefeituras).

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. FNDE. Fundo de Manutenção e Desenvolvimento


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Paulo: FPPL-Cepam, 1997c.

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1997d. (Suplemento do documento Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e Valorização do Magistério)

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Disponível em: http://www.inep.gov.br

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estaduais de 1999. Florianópolis, 2000.

128 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


TENDÊNCIAS DA DEMANDA PELO ENSINO
SUPERIOR: ESTUDO DE CASO DA UFMG
MAURO MENDES BRAGA
Instituto de Ciências Exatas da Universidade Federal de Minas Gerais
braga@icex.ufmg.br

MARIA DO CARMO L. PEIXOTO


Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais
mcarmo@fae.ufmg.br

TÂNIA F. BOGUTCHI
Mestranda pelo Instituto de Ciências Exatas da Universidade Federal de Minas Gerais
bogutchi@uai.com.br

RESUMO

O artigo analisa a demanda pelo ensino de graduação da Universidade Federal de Minas


Gerais – UFMG – na década de 90, considerando os seguintes aspectos: perfil socioeconômico
dos candidatos; fatores que influenciaram a demanda e as preferências por áreas e cursos; o
papel da oferta dos cursos noturnos sobre a demanda e as diferenças existentes entre os
cursos que oferecem, ou não, a habilitação licenciatura. A demanda cresceu exponencialmente
a partir de 1995, crescimento este centrado em candidatos da escola pública e pertencentes
a famílias de baixo poder aquisitivo. O aumento mais acentuado da procura ocorreu nos
cursos de mais baixo prestígio social da área biológica e em todos os de licenciatura. Verifi-
cou-se, também, uma nítida seletividade social associada à escolha da carreira: alguns cursos,
de elevado prestígio social, para os quais a aprovação exige notas elevadas, são preferidos
pelos candidatos da classe média alta, enquanto os pertencentes aos estratos sociais menos
favorecidos optam geralmente por outros nos quais a aprovação pode ser alcançada com
desempenho mediano. A abertura de cursos noturnos caracteriza-se como um aspecto da
democratização do acesso ao ensino superior.
ENSINO SUPERIOR – UFMG – ACESSO À EDUCAÇÃO – CONCURSO VESTIBULAR

ABSTRACT

DEMAND TENDENCIES FOR UNIVERSITY EDUCATION: UFMG’S CASE STUDY. This


paper analyzes the demand for undergraduate courses in Federal University of Minas Gerais
during the decade of 90, considering the following aspects: candidates’ social and economic
profile; factors which influenced the student’s demand; the existing differences among courses

Pesquisa financiada pelo Fundo de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG –
e pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais – Fapemig.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 julho/ 2001


p. 129-152, 129
that offer or not teaching licenses. The demand grew exponentially from 1995 on, having this
growth been due to public school and lower income classes students’ demand. The most
pronounced increase in the demand occurred in the courses with lower social prestige of the
biological area and in all those that offer teaching licenses. It also showed the presence of a clear
social selectivity associated with the career choice: some of the courses, of high social prestige, to
which the application test requires higher grades are preferred by the candidates from the high
medium classes while the ones who belong to lower social and economic stratum generally choose
others for which the approval can be achieved with medium results. The offer of evening courses
shows as an aspect of democratic access to the university course.

INTRODUÇÃO

O acesso ao ensino superior permanece como uma questão atual da política


educacional brasileira. No texto da Lei n. 5.540/68, que reformou o ensino supe-
rior no período militar, o vestibular unificado e classificatório tem sido a forma única
de acesso, inserida dentro do conjunto de medidas destinadas a enfrentar o aumen-
to da demanda que se verificou na década de 60, tornando-se, da maneira que está
estabelecido, um mecanismo importante para solucionar o problema dos “exce-
dentes”, que o modelo anterior permitia.
A atual Lei de Diretrizes e Bases, que tem a flexibilidade como um de seus
eixos (Cury, 1997), não estabelece um tipo único de seleção e permite experi-
mentar novos modelos. Em decorrência disso, novas modalidades de seleção estão
sendo propostas, debatidas e praticadas, paralelamente ao questionamento dos
processos antigos ainda em vigor.
A demanda por vagas é, sem dúvida, uma questão crucial no que concerne
ao acesso ao ensino superior, tendo recebido tratamento diferenciado no transcor-
rer da história mais recente. Na década de 60, a expansão da demanda e a escassez
de vagas acarretaram o problema dos “excedentes”, bem como a necessidade do
estabelecimento de critérios para regular a necessária ampliação de vagas. No final
da década de 70 e início dos anos 80, duas questões ganharam relevância: a retração
da procura no setor privado e a existência de considerável número de vagas ociosas
no setor público1.
Na década de 90, o aumento expressivo de estudantes que concluem o
ensino médio e os novos desafios da educação no contexto de economias globalizadas
trazem para o debate a perspectiva de expansão da cobertura do sistema de ensino

1. Foi nesse contexto que o “crédito educativo” foi formulado, como mecanismo destinado a
viabilizar o ensino privado, e que algumas universidades públicas vieram a adotar estratégias
de ocupação das vagas ociosas.

130 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


superior. O objetivo das autoridades é fazer com que o país saia do modesto pata-
mar de 12% de jovens entre 18 e 24 anos que se encontram matriculados nesse
nível de ensino, ampliando-o para além dos 30%, em curto prazo. Assim, vista
como “sintoma de desajuste do nosso sistema de ensino” para atender à necessida-
de de profissionais qualificados nas décadas de 60 e 70 (Franco, 1985, p. 16), a
demanda pelo ensino superior converteu-se, na segunda metade da década de 90,
em componente do projeto educacional do governo, no qual se inclui a reforma da
educação superior (Ministério da Educação e do Desporto – MEC, 1996).
Os autores deste artigo desenvolveram pesquisa relativa à evasão na UFMG
e, nessa ocasião, foram consideradas as características socioeconômicas dos candi-
datos ao vestibular. Os resultados obtidos nessa pesquisa estimularam a realização
de um estudo específico, abordando a demanda pelo ensino superior nessa univer-
sidade, uma das maiores do país, e que está diante da perspectiva de, a curto prazo,
ter uma procura de cem mil candidatos. Uma reflexão sobre o comportamento
dessa demanda na última década torna-se importante, não só para avaliar e reformular
seu processo de seleção, mas também como contribuição ao debate nacional do
tema, buscando encontrar mecanismos que, centrados no exame de mérito dos
candidatos, tenham qualidade técnica e não acentuem as desigualdades sociais.

ASPECTOS METODOLÓGICOS

Consideram-se os concursos vestibulares da década de 90. As informações


necessárias ao estudo foram obtidas na Comissão Permanente de Vestibular. Os
dados socioeconômicos resultam de questionários preenchidos pelos candidatos, à
época em que se inscreveram para o concurso e só estão disponíveis para o pe-
ríodo 92/ 99.
Para descrever o perfil socioeconômico dos candidatos, construiu-se uma
escala de fator socioeconômico – FSE. Essa escala considera os seguintes itens, aos
quais se atribuíram os valores zero, um ou dois, na ordem apresentada: tipo de
escola média freqüentada (pública ou privada), tipo de curso médio freqüentado
(profissionalizante ou colegial), turno no qual estudou na escola média (noturno ou
diurno), situação de trabalho ao inscrever-se no vestibular (trabalhava ou não), ren-
da familiar (inferior a 10 salários mínimos – SM –, entre 10 e 20 SM ou maior do que
20 SM), nível de instrução dos pais (nenhum deles com formação superior, um
deles com formação superior ou ambos com formação superior); e tipo de profis-
são do responsável (típica de classe média baixa/proletariado, típica de classe média
ou típica de classe média alta/burguesia). A escala varia de zero a dez e é discreta

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 131


para cada estudante em particular, sendo tanto melhor a situação socioeconômica
quanto maior o valor de FSE. Os valores médios calculados para grupos de estu-
dantes, no entanto, foram tomados com variação contínua2. A necessidade de se
definir uma escala específica para mensurar o perfil socioeconômico, ao invés de
utilizar modelos já disponíveis, decorre do fato de não se dispor, para todo o perío-
do do estudo, do conjunto completo de informações necessárias para o emprego
de tais modelos. No entanto, os autores verificaram, utilizando dados referentes ao
ano de 1997, que a escala FSE é diretamente proporcional a outra escala
socioeconômica, construída por Soares e Fonseca (1998), usando o sistema de
classificação da Associação Brasileira dos Institutos de Pesquisas de Mercado, com
correlação superior a 0,97. Acredita-se, portanto, que a escala FSE reproduza,
comparativamente, padrões socioeconômicos tecnicamente aceitáveis.
Tendo em vista as diferenças expressivas observadas entre os perfis dos can-
didatos para um mesmo curso, quando ofertado nos turnos diurno e noturno, uti-
lizaram-se os conceitos de carreiras e cursos. Carreira corresponde a uma determi-
nada área do conhecimento que leva a um diploma de graduação, enquanto a de-
nominação de curso identifica o turno de oferecimento, sendo que, quando funcio-
nam em um único turno, curso e carreira se confundem. Assim, por exemplo, a
UFMG oferece a carreira de Administração com dois cursos, o diurno e o noturno,
e oferece a carreira ou curso de Medicina.
Todos os cursos de Engenharia (Controle e Automação; Civil; Elétrica; Me-
cânica; Metalúrgica; Minas e Química), foram englobados em uma única carreira,
denominada “Engenharias”. A razão para isso é que existem grandes similaridades
no perfil dos candidatos e na variação da demanda para esses cursos, independen-
temente de essa demanda ser mais alta ou mais baixa, para esse ou aquele curso de
Engenharia. As diferenças mais significativas observadas foram as seguintes: o valor
médio do FSE para os concorrentes de Engenharia de Minas e Engenharia Metalúrgica
é menor do que para as demais Engenharias; a demanda para Engenharia Química
é equilibrada, em termos de sexo dos candidatos, enquanto nos demais cursos ela
é flagrantemente masculina; a concorrência para Engenharia de Minas oscila bastan-
te, de ano para ano, sem qualquer regularidade, ao contrário do observado nos
demais cursos da área, para os quais se observa uma regularidade bem definida na
variação da demanda.

2. Por exemplo, para um estudante específico o valor de FSE é 4 ou 5, mas para um grupo de
estudantes pode ser 4,3. Para maiores detalhes, ver Peixoto, Braga e Bogutchi, 2000.

132 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


ANÁLISE DOS DADOS
O comportamento da demanda

A demanda para os cursos de graduação na UFMG dobrou na década de 90,


conforme ilustra a figura 1. O aumento foi gradual, embora tenha ocorrido em
alguns anos uma estabilização e, até mesmo, uma retração da procura. No período
de 90 a 93, a demanda oscilou em torno de 30 mil candidatos, patamar já alcançado
no início da década anterior3. Só a partir de meados dos anos 90 a tendência de
crescimento consolidou-se.
O crescimento da procura reflete, em parte, o aumento no número de
concluintes do ensino médio em Minas Gerais, que, segundo dados fornecidos pelo
Inep, passou de cerca de 50 mil, em 1990, para quase 150 mil, em 1997. Quase
todo esse crescimento ocorreu na rede pública, que formava 25 mil estudantes em
1990 e passou a formar quase 120 mil em 1997. Na rede privada, nesse mesmo
período, o número de concluintes passou de 25 mil para 33 mil, em valores apro-
ximados. Essa característica do crescimento de ensino médio, como será discutido
mais adiante, acarretou uma alteração significativa no perfil da demanda por vagas
na UFMG. Considerando-se as políticas implementadas pelo estado de Minas4 e a
ênfase da União na busca por maior eficiência no ensino fundamental, as tendências
de crescimento da rede pública e de estabilização da rede privada deverão se acen-
tuar mais ainda nos próximos anos5.
Embora o aumento da demanda decorra do crescimento do número de
concluintes do ensino médio, não há proporcionalidade direta entre essas variáveis.
Em geral, a procura cresce a uma taxa bem menor do que o número de estudantes
que conclui o ensino médio. Em alguns anos, observa-se até uma queda no número
de candidatos, mesmo tendo ocorrido acréscimo naquele número de concluintes.
Medidas no âmbito da universidade também se refletem na demanda. A
criação de cursos e o aumento de vagas e de facilidades para a inscrição ou para a

3. No período entre 81 a 85 e no ano de 87, a procura superou 30 mil concorrentes, embora


jamais tenha chegado a 35 mil candidatos, ao longo da década. Por sua vez, o número de
vagas não se alterou na década.
4. Na gestão do Governador Azeredo, por exemplo, implementaram-se várias medidas, visan-
do à redução do tempo de permanência dos alunos no ensino básico, entre eles o programa
Acertando o Passo.
5. Em 1996, estavam matriculados no ensino médio, em Minas Gerais, cerca de 470 mil alunos
na rede pública e 110 mil na rede privada. Em 1998, esses números foram alterados para,
respectivamente, 620 mil e 109 mil, conforme dados obtidos no Inep.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 133


FIGURA 1
NÚMERO DE INSCRITOS NO VESTIBULAR DA UFMG,
SEGUNDO ANO E SEXO
70
Número de candidatos (em milhares)

60 Total Fem. Masc.


50

40

30

20

10

0
90 91 92 93 94 95 96 97 98 99
Ano

realização das provas estimularam a procura. Em 1994, por exemplo, o número de


concluintes do ensino médio cresceu 14%, enquanto a demanda aumentou quase
20% em relação ao ano anterior, em decorrência da abertura de cursos noturnos
de licenciatura. Nos dois anos anteriores e subseqüentes a 1994, ainda que o nú-
mero de concluintes do ensino médio tenha crescido em percentuais não inferiores
a 14%, a demanda por vagas decresceu ou registrou crescimento muito inferior aos
20% daquele ano.

Demanda LAHIKI oferta de vagas


O crescimento da procura não foi acompanhado por aumento correspon-
dente da oferta, conforme mostra a tabela 1. Em conseqüência, a relação candida-
to/vaga cresceu em média de 9 em 1990, para mais de 15 em 1999 (Tab. 2). Além
disso, a maior oferta de vagas nem sempre ocorreu nas áreas onde o crescimento
da procura foi mais significativo. Acentuou-se o desequilíbrio entre demanda e
oferta na área biológica, enquanto na área de exatas a oferta e a demanda cresce-
ram em proporções mais equilibradas. Em conseqüência, a relação média can-
didato/vaga, na primeira área, aumentou mais de 100%, passando de menos de
11 para mais de 23, e na segunda esse aumento foi bem menor, de cerca de 7,5
para 10.
O aumento do interesse pela área de ciências biológicas e o contraponto da
perda de prestígio da área de ciências exatas parecem ser fenômenos universais.
Em entrevista ao Jornal do Brasil (Lagôa, 1999) o Professor Jacob Pallis, talvez o

134 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


matemático de maior prestígio científico do Brasil, apontou a Biologia como a ciên-
cia do próximo século, prognosticando que ela viria a ocupar a posição central que
a Física ocupa há 150 anos.
Além disso, estudos realizados em várias universidades dos Estados Unidos
indicavam, já em 1995, a rejeição de boa parte dos jovens americanos, sobretudo
os do sexo feminino, para as carreiras da área de exatas (Seymour, 1995). Também
na Europa há perda de prestígio das carreiras dessa área e bolsistas de graduação
brasileiros, da área de Engenharia, estão recebendo convites para permanecerem
na Alemanha, após a conclusão do programa de intercâmbio.

TABELA 1
PROCURA E OFERTA DE VAGAS E CURSOS, NA DÉCADA DE 90, POR
ÁREA DO CONHECIMENTO; DADOS PERCENTUAIS, EXCETO
QUANDO INDICADO

composição composição da oferta aumento Número de


da demanda aumento da de vagas da oferta de Cursos
Área
1990 1999 demanda 1990 1999 vagas criados

Artes
Artes 0,4 1,1 468 3,3 3,7 36 1
Biológicas
Biológicas 38,6 41,8 118 31,0 27,3 8 1
Exatas
Exatas 20,8 18,4 79 25,6 28,1 35 6
Humanas
Humanas 40,2 38,7 94 40,1 40,8 25 4
UFMG
UFMG 100,0 100,0 101 100,0 100,0 22 12

Na área de artes, por outro lado, houve um acentuado aumento percentual


da procura, mas este fato deve ser visto com cautela, uma vez que a demanda por
esta área ainda é muito baixa: apenas 1% dos candidatos procuraram seus cursos
em 1999. Por sua vez, a área de ciências humanas acompanhou as mudanças ob-
servadas na universidade como um todo, seja em termos da demanda ou da oferta
de vagas e cursos. A relação média candidato/vaga para esta área, assim como para
a universidade, passou de 9 para 15.

A variação da demanda por carreira

Analisando-se apenas as carreiras que ofereceram vagas em toda a década


(Fig. 2) observa-se, no que se refere à variação da demanda, a presença de três
grupos distintos. O primeiro é composto pelas carreiras cuja procura encontra-se

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 135


em declínio ou vem aumentando em proporção bem inferior à média; o segundo,
por aquelas cujo comportamento tende a reproduzir o padrão mediano observado
para a UFMG; e o terceiro, pelas carreiras cuja demanda cresceu bem acima do
padrão médio6.
O primeiro grupo é constituído basicamente por carreiras da área de exatas,
em particular os cursos de Engenharia, e por aquelas das “ciências gerenciais” (Ad-
ministração, Ciências Contábeis e Ciências Econômicas). Os cursos de Odontolo-
gia e Filosofia são exceções nesse conjunto. O segundo grupo engloba, geralmente,
carreiras tradicionais e/ou de elevado prestígio social. O último grupo é constituído
por carreiras que podem ser englobadas em duas categorias ou mesmo que per-
tencem a ambas as categorias: aquelas vinculadas a cursos da área biológica de
baixo prestígio social e aquelas que se destinam, pelo menos em parte, a formar
profissionais para a educação básica. A exceção é a carreira de Biblioteconomia, que
não se encaixa nem em uma nem em outra dessas categorias.
As carreiras que registraram grande aumento de procura não foram aquelas
de alta relação candidato/vaga, conforme mostra a figura 2. Para todas as carreiras
cuja procura superou duas vezes a média da UFMG, a relação candidato/vaga foi
inferior, e geralmente bem inferior, à média da universidade.
As carreiras para as quais a relação candidato/vaga se aproxima ou supera a
média da UFMG, geralmente, registraram crescimento de demanda próximo à média
da universidade. Para duas delas, Administração e Odontologia, a procura foi nume-
ricamente estável ao longo da década, o que resultou em acentuado decréscimo
relativo da demanda; para uma terceira, Fisioterapia, o aumento da procura foi cer-
ca de duas vezes maior do que a média. No caso das carreiras de Direito, Comu-
nicação, Computação e Medicina, a demanda aumentou em taxas similares à da
UFMG.

A variação da demanda nos cursos que oferecem licenciatura

A tabela 2 compara a evolução do número de cursos, de vagas e da procu-


ra das carreiras que formam professores para o ensino médio com aquela refe-
rente às que não formam estes profissionais. Observa-se a prioridade que vem
sendo dada pela universidade à licenciatura: 2/3 dos novos cursos e mais de 1/3
das novas vagas foram destinadas à essa área. A procura de vagas nessas carreiras,
por sua vez, cresceu 2,5 vezes mais do que nas outras. A relação candidato/vaga

6. Assim classificadas aquelas cuja variação de demanda superou a 200%.

136 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001

FIGURA 2
VARIAÇÃO DA DEMANDA PARA AS DIVERSAS CARREIRAS 8-4575 A RELAÇÃO
CANDIDATO/VAGA CORRESPONDENTE; PERÍODO 1990/1999
500%
% Variação da demanda

Enfermagem

400%

Geografia
Música
300% B.Artes
Biblioteconomia C. Biológicas
Química T. Ocupacional
Matemática Ed. Física Fisioterapia
200%
Letras Pedagogia
Farmácia
Física C.Sociais Direito C.Computação
História Psicologia
UFMG Medicina Comun. Social
100%
Estatística
Veterinária Arquitetura
Geologia
Filosofia Engenharias Administração
C.Contábeis
0%
Odontologia
C.Econômicas

-100%
0 5 10 15 20 25 30

Relação candidato/vaga média


137
média nas carreiras que oferecem licenciatura passou de menos de 4 para mais de
9, enquanto nas outras evoluiu de pouco mais de 12 para cerca de 18,5. Embora
o crescimento da procura tenha sido superior, e na maioria dos casos muito supe-
rior, à média da UFMG, para todas as carreiras que oferecem a habilitação licencia-
tura, a relação candidato/vaga correspondente não aumentou na mesma pro-
porção, uma vez que foi exatamente nessa área que a oferta de cursos e vagas
mais cresceu.
O crescimento da procura pela licenciatura está associado a diversos fa-
tores. Por um lado, o país atravessa uma crise econômica, com aumento das taxas
de desemprego, enquanto a rede pública de ensino tem-se expandido, ofere-
cendo empregos para professores, ainda que com salários relativamente baixos.
Por outro, a própria política educacional enfatiza o papel do professor no atual
contexto, quer seja por meio dos princípios fixados na Lei de Diretrizes e Bases –
LDB –, com relação às novas exigências de titulação docente para o exercício do
magistério, quer seja pelos mecanismos de financiamento, como o Fundo de Ma-
nutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magis-
tério – Fundef. Além desses componentes, específicos do Brasil, o crescimento da
demanda pela área de formação de professores para a escola média parece tam-
bém resultar de uma tendência mundial, conforme observou o Professor Antônio
Nóvoa, da Universidade de Lisboa, em recente entrevista ao jornal O Estado de
Minas (Arce, 2000).

Demanda e perfil socioeconômico

Parte dessa mudança de perfil na procura por vagas pode ser explicada quan-
do se consideram as características socioeconômicas dos candidatos ao vestibular,

TABELA 2
EVOLUÇÃO DA OFERTA E DA PROCURA NA DÉCADA DE 90,
COMPARANDO-SE AS CARREIRAS DE LICENCIATURA E AS
DEMAIS CARREIRAS

cursos VAGAS CANDIDATOS


criados
HABILITAÇÃO 1990 1999 Aumento
aumento 1990 1999 Aumento
% %
LICENCIATURA 8 945 1.220 29 3.594 11.080 208

NÃO LICENCIATURA 4 2.036 2.444 20 24.997 45.267 81

UFMG 12 3.286 4.017 22 30.646 61.749 101

138 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


sintetizadas na escala FSE. Julga-se também conveniente realçar nesta análise uma
das variáveis utilizadas para a construção desta escala: o percentual de candidatos
que concluíram o ensino médio em escola pública.
A tabela 3 coteja, por carreira, a procura por vagas na UFMG nos anos de
1992 e 19997, em relação a estes aspectos. Verifica-se que, para a UFMG, o valor
médio de FSE não se alterou, enquanto o percentual de concorrentes de escolas
públicas cresceu cerca de 10%. O fato de o valor médio de FSE praticamente não
ter se alterado, no entanto, não indica que a proporção dos candidatos pertencen-
tes à classe média baixa tenha sido aproximadamente constante no período. O que
está ocorrendo é que a condição socioeconômica dos candidatos mais privilegiados
está melhorando, compensando, no valor médio de FSE, o aparecimento de uma
maior fração de candidatos oriundos dos estratos inferiores da classe média, como
pode ser observado na figura 3.
A variação da concorrência relativa mostra alguma associação com a da esca-
la FSE. Em geral, o aumento expressivo da concorrência está associado a um de-

FIGURA 3
DISTRIBUIÇÃO DE FREQÜÊNCIA DE FSE PARA OS CONCORRENTES
AO VESTIBULAR DA UFMG
14%

1992 1999
12%
Freqüência percentual

10%

8%

6%

4%

2%

0%

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Valor de FSE

7. Nesse caso, a comparação tem que ser feita com o ano de 1992, uma vez que esse é o
primeiro ano para o qual os dados socioeconômicos estão disponíveis.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 139


créscimo no valor médio de FSE, levando a crer numa democratização da procura.
O inverso, entretanto, não é observado e uma significativa diminuição da concor-
rência pode estar associada tanto a um decréscimo como a um aumento de FSE.
No caso das carreiras ligadas às “ciências gerenciais” e das Engenharias, o decrésci-
mo de procura está geralmente associado a uma diminuição do valor médio de FSE,
ou seja, essas carreiras estão deixando de ser procuradas preferencialmente pelos
concorrentes de melhor perfil socioeconômico. Já para Direito, Odontologia e Ve-
terinária observa-se o inverso: elas estão deixando de ser procuradas pelos candi-
datos menos favorecidos socioeconomicamente8.
Situação similar é observada quando a variação da concorrência relativa é
cotejada com o percentual de candidatos oriundos da escola pública. Aumentos
expressivos de demanda associam-se a maior proporção de concorrentes da escola
pública. É o que ocorre, por exemplo, nas carreiras de Biblioteconomia, Ciências
Biológicas e Enfermagem. Entretanto, uma diminuição da concorrência relativa tan-
to pode se associar a um aumento quanto a um decréscimo no percentual de can-
didatos de escola pública. Para Administração, Ciências Contábeis, Ciências Econô-
micas e Engenharias, carreiras em que a concorrência relativa sofreu pronunciado
decréscimo, observou-se aumento significativo da fração de candidatos oriundos da
escola pública; em Odontologia e Veterinária, carreiras para as quais a concorrência
também decresceu, verificou-se o inverso.
As observações dos últimos parágrafos sinalizam a existência de uma
seletividade social associada à escolha da carreira. Essa suposição é reforçada ao se
compararem os valores médios de FSE para as diversas carreiras, apresentados na
tabela 3. As carreiras de elevado prestígio social registram médias que se aproxi-
mam de seis, enquanto nas de baixo prestígio social, em particular aquelas que
oferecem a habilitação licenciatura, a média chega a ser inferior a três. Essa seletividade
social aguçou-se ao longo da década: em geral as carreiras com maiores médias de
FSE, em 1992, apresentaram aumento desta média em 1999, enquanto para aque-
las com menores valores de FSE observou-se o contrário. Nove das dez carreiras
de maiores médias de FSE em 1992 permaneceram assim em 1999, o mesmo
ocorrendo com as dez carreiras de menores médias de FSE.
Na mesma direção observa-se também que, em muitas carreiras, a deman-
da é essencialmente das escolas públicas, enquanto em outras ocorre o inverso. Em
apenas cinco carreiras – Medicina, Odontologia, Veterinária, Fisioterapia e Comuni-

8. O percentual de candidatos com FSE entre zero e cinco, para o conjunto dessas três carrei-
ras, em média não ponderada, passou de 54% em 92 para 47% em 99.

140 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


cação Social9 – verificou-se um decréscimo do percentual de candidatos oriundos
da escola pública. Em todas elas, a fração de concorrentes da escola pública já era
pequena em 1992, confirmando que a seletividade social na escolha da carreira está
se tornando mais intensa.
Convém realçar que não estamos falando da seletividade social associada ao
sucesso no vestibular, um tema que abordaremos em outro trabalho. Estamos tra-
tando aqui de processo seletivo intrínseco a estudantes que reconhecem não ter
condições de concorrência em cursos de maior prestígio social. Aqueles que desco-
nhecem essa realidade pagam um custo elevado pela falta de informação. A título de
exemplo, mencionamos que, para o período 1992/1999, no curso de Direito, de
cada oito candidatos com FSE maior do que 7, um foi aprovado, enquanto entre os
candidatos com FSE menor do que 3, apenas um em cada cem foi bem-sucedido.
Já no curso de Enfermagem, esses dois grupos de estudantes têm chances de apro-
vação similares e a cada treze concorrentes um foi aprovado.
Ainda como exemplo, é interessante cotejar o que ocorre, em relação a tal
aspecto, com as carreiras de Direito e Medicina, que apresentam, ambas, médias
elevadas de FSE. Entre os candidatos, a diferença do FSE médio alcança quase
20%, enquanto para os aprovados ela não chega a 3%. O que ocorre é que o
percentual de candidatos de Medicina com FSE menor do que 3 é de apenas
10%, enquanto para Direito é de 20%. No entanto, em ambas as carreiras, as
chances de sucesso desses candidatos são muito pequenas: cerca de 1% para
Direito e de 1,4% para Medicina; já para os candidatos com FSE maior do que
sete, esses percentuais são, respectivamente, 13% e 8,5%. Ou seja, os jovens das
classes menos favorecidas cada vez mais compreendem o grau de dificuldade que
têm para lograr aprovação no curso de Medicina e dirigem sua demanda para
outros cursos da área biológica, em especial Enfermagem e Ciências Biológicas,
nos quais a sua chance de sucesso é bem maior; em ambos os cursos, a possibili-
dade de êxito dos concorrentes com FSE menor do que três é de cerca de 7%. Já
em relação ao curso de Direito, parte desses estudantes ainda mantém a esperan-
ça de estudar na UFMG. Como vimos, para 99% deles essa esperança não passa
de uma ilusão.
A seletividade social associada à escolha de carreira é também ilustrada na
figura 4, na qual são comparados os histogramas de FSE para as carreiras de Direito,
Medicina, Matemática e Pedagogia. O quartil 1 corresponde aos candidatos cujas

9. Para três outras carreiras, Belas-Artes, Música e, sobretudo, Direito, o aumento da fração de
candidatos da escola pública foi bem inferior ao observado para o conjunto das carreiras.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 141


TABELA 3
CONFRONTO DO PERFIL SOCIOECONÔMICO MÉDIO DOS
CANDIDATOS AO VESTIBULAR DA UFMG COM A VARIAÇÃO DA
DEMANDA DA CARREIRA; PERÍODO 1992/1999
FSE (média) Escola Pública (%) Demanda Relativa (%)

Carreiras 1992 1999 1992 a 1992 1999 1992 a 1992 1999 1992 a
1999 1999 1999

Administração 4,53 4,58 4,67 41,9 50,1 45,9 5,5 3,6 4,3

Agronomia*
*
— 4,24 4,24 — 50,0 50,0 — 0,6 0,1

Arquitetura 5,92 6,03 6,10 34,3 38,6 34,6 3,0 2,7 2,9

Artes Cênicas*
*
— 4,00 4,00 — 63,8 63,8 — 0,1 0,1

Belas Artes 4,37 4,68 4,44 48,7 53,2 50,6 0,4 0,5 0,5

Biblioteconomia 3.31
, 2,14 2,63 46,9 77,7 67,3 0,7 1,2 0,9

C. Computação 4,92 4,65 4,87 43,7 52,1 49,2 3,0 3,4 3,6

Ciências Biológicas 4,54 4,15 4,17 49,3 61,0 58,9 2,0 3,2 2,6

Ciências Contábeis 2,83 2,45 2,62 59,4 74,6 68,1 3,1 1,6 2,3

C. Econômicas 5,25 4,83 5,03 33,7 48,8 43,6 1,6 1,0 1,4

Ciências Sociais 3,60 3,95 3,75 50,2 56,3 55,7 0,9 1,1 1,1

Comunicação Social 5,16 5,50 5,52 42,9 40,4 41,0 4,1 4,1 3,9

Direito 5,00 5,27 5,08 43,7 44,8 44,2 15,7 13,4 14,4

Educação Física 4,29 4,29 4,23 48,7 57,4 56,4 2,3 3,0 2,4

Enfermagem 4,44 3,43 3,73 47,4 66,7 60,6 1,6 2,9 2,2

Engenharias 5,48 4,86 5,24 45,9 51,9 47,9 10,3 8,2 7,9

Estatística 3,82 3,14 3,52 55,4 69,4 66,4 0,3 0,3 0,4

Farmácia 4,62 4,71 4,73 47,0 51,2 49,6 3,3 3,9 3,7

Filosofia 3,85 3,61 3,56 41,3 56,7 41,3 0,5 0,4 0,5

Física 4,43 3,43 3,58 52,8 67,0 61,9 0,4 0,6 0,6

Fisioterapia 5,32 5,71 5,58 38,5 38,1 38,3 2,3 2,7 2,6

Geografia 3,03 2,67 2,74 56,7 72,9 66,8 0,9 1,1 1,0

(continua)

142 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


(continuação)

FSE (média) Escola Pública (%) Demanda Relativa (%)

Carreiras 1992 1999 1992 a 1992 1999 1992 a 1992 1999 1992 a
1999 1999 1999

Geologia 4,72 4,27 4,43 48,5 55,2 54,7 0,3 0,3 0,3

História 3,20 3,16 3,13 54,6 68,8 63,5 2,0 1,7 1,8

Letras 3,28 2,90 3,02 57,6 69,6 64,3 2,3 3,1 2,7

Matemática 3,46 2,53 2,73 55,5 76,6 73,1 1,0 1,3 1,3

Mat. Computacional ** — 3,65 3,65 — 58,7 58,7 — 0,4 0,1

Medicina 5,66 6,32 5,98 35,8 32,4 34,2 13,9 17,2 16,5

M. Veterinária 5,48 5,80 5,67 40,7 39,7 41,0 3,5 3,1 3,3

Música 5,68 4,89 4,87 42,1 44,7 45,1 0,1 0,2 0,1

Odontologia 5,41 5,86 5,76 40,7 37,1 38,8 7,5 4,5 6,1

Pedagogia 2,79 2,39 2,56 55,3 74,2 68,5 2,0 2,1 2,3

Psicologia 4,20 4,18 4,22 45,6 57,4 54,1 3,9 4,4 4,1

Química 3,84 2,83 2,85 55,1 74,5 70,1 0,6 0,8 0,7

Terapia Ocupacional 4,67 5,05 4,84 41,2 49,8 46,7 1,0 1,3 1,3

UFMG 4,86 4,86 4,87 44,0 49,2 47,2 100 100 100
* Cursos criados em 1999.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 143


famílias pertencem aos estratos sociais menos favorecidos. Os dados apresentados
não deixam dúvidas quanto a essa seletividade.
Em síntese, a alteração do perfil da demanda na década parece estar associa-
da a três fatores principais. O primeiro deles é o aumento da proporção de candida-
tos da classe média baixa. Esses estudantes parecem estar conscientes de que a sua
chance de êxito é pequena, caso escolham carreiras mais tradicionais ou mais bem-
conceituadas quanto às perspectivas de ganhos financeiros. Sendo assim, optam
por carreiras de menor prestígio, como aquelas que oferecem a habilitação licencia-
tura, para as quais concorrem com razoável probabilidade de sucesso. Talvez eles
avaliem que essas carreiras tornarão possível consolidar um processo de mobilida-
de social em relação às suas famílias, hipótese que se mostrou verdadeira em estu-
do anteriormente realizado com os graduados em Química pela UFMG (Peixoto,
Carvalho, Braga, 1999).
O segundo desses fatores refere-se à perda relativa de prestígio de algumas
carreiras, em especial as Engenharias e aquelas associadas às “ciências gerenciais”,
que parecem ser rejeitadas exatamente pelos candidatos de melhor perfil

FIGURA 4
ORIGEM SOCIOECONÔMICA DOS CANDIDATOS A ALGUNS CURSOS,
EM TERMOS DA CLASSIFICAÇÃO EM QUARTIS DOS VALORES DE FSE

FSE : Quartil 1 Quartil 2 Quartil 3 Quartil 4

Pedagogia 9 4
65 22

4
Matemática 57 29 10

22
Direito 20 31 27

33
Medicina 10 26 31

0% 20% 40% 60% 80% 100%

144 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


socioeconômico. Finalmente, no caso das carreiras ou de grande prestígio social
ou que projetam a imagem de possibilitar elevados rendimentos, verifica-se uma
diminuição da fração dos candidatos de situação socioeconômica menos favorecida.
Para as carreiras de Medicina, Fisioterapia, Direito e Comunicação Social, tal fato é
compensado por uma concorrência cada vez maior dos estudantes pertencentes
às famílias de maior poder aquisitivo, de tal forma que elas mantêm um aumento
de procura próximo à média da UFMG. Já no caso de Veterinária e, sobretudo,
Odontologia, essa compensação é apenas parcial, e a melhoria do perfil
socioeconômico dos candidatos é acompanhada por um expressivo decréscimo
da demanda relativa.

As questões de gênero

A figura 1 mostra que as mulheres, maioria entre os concorrentes em 1990,


consolidaram essa prevalência ao longo da década, aumentando a sua proporção
entre os candidatos de 55% para 59%. Em média, o percentual de estudantes do
sexo feminino que no período considerado se inscreveram para o vestibular da
UFMG foi de 58%.
As mulheres concentram a procura nas carreiras das áreas biológicas e de
humanas, sendo geralmente pequeno o seu interesse pela área de exatas. Em todas
as nove carreiras da primeira área (ver tabela 3), a percentagem de candidatos do
sexo feminino ultrapassa 50%, sendo que em seis delas é maior do que 58%. Na
área de humanas, que envolve 13 carreiras, a concorrência feminina supera a mas-
culina em oito delas, sendo que em seis supera também o percentual médio de
mulheres no conjunto da universidade. Nas ciências exatas, do total de dez carrei-
ras, em três a proporção de mulheres é maior do que a de homens, sendo que
somente em uma10 essa proporção ultrapassa 58%.
Ao longo da década, o interesse de homens e mulheres por cursos da área
biológica aumentou, como mostra a figura 5. Em 1999, quase a metade das mulhe-
res optaram por carreiras dessa área, enquanto mais de 40% escolheram carreiras
de humanas, reduzindo-se ainda mais o já pequeno interesse observado em 1990
pela área de exatas. No caso dos homens, a procura foi, em todo período, mais ou
menos equilibrada entre as três áreas, equilíbrio que se tornou mais nítido no final
da década.

10. Arquitetura, aqui classificada como da área de ciências exatas em razão do sistema Conselhos
Federal e Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – Confea/Creas.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 145


FIGURA 5
COMPARAÇÃO DA CONCORRÊNCIA MASCULINA E FEMININA EM
TERMOS DO NÚMERO DE INSCRITOS, POR ÁREA,
NOS ANOS DE 1990 E 1999

Sexo masculino: inscritos 1990 Sexo feminino: inscritos 1990

Artes Biológicas Artes Biológicas


Humanas Humanas
0,3% 31,8% 0,4%
37,2% 42,7% 44,2%

Exatas Exatas
30,8% 12,7%

Sexo masculino: inscritos 1999 Sexo feminino: inscritos 1999

Artes
Artes Biológicas Humanas Biológicas
Humanas 1,0%
1,2% 34,3% 41,7% 47,2%
34,5%

Exatas Exatas
30,0% 10,2%

As questões de turno

Dentre os fatores que contribuíram para o aumento da demanda destaca-se


a abertura de cursos noturnos. Em 1990, a UFMG ofertava apenas três cursos no
período da noite, tendo criado outros oito ao longo da década, contra quatro no
diurno11. O mesmo ocorreu em relação à oferta de vagas: mais de 2/3 do total
criado foi ofertado à noite. Seria, portanto, natural que a universidade passasse a ser

11. Constam da figura apenas dez e não onze cursos, em razão de o curso de Ciências Contábeis
ser ofertado apenas no noturno.

146 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


procurada em maior proporção por aqueles estudantes que não podem freqüentar
aulas durante o dia. Sobretudo, levando-se em consideração que o aumento do
número de concluintes do ensino médio ocorreu principalmente na rede pública e,
muitas vezes, em cursos noturnos. Isso de fato é o que se constata, e enquanto a
procura pelos cursos diurnos cresceu 95%, a dos noturnos aumentou 177%.
A concorrência para os cursos oferecidos no turno da noite, quando compa-
rada àquela dos cursos diurnos correspondentes, apresenta perfil socioeconômico
de estratos menos favorecidos, conforme pode ser verificado nas figuras 6 e 7, nas
quais a comparação é feitaexclusivamente no intervalo de tempo em que as carrei-
ras foram oferecidas em ambos os turnos, estando o período discriminado após o
nome das carreiras. As diferenças são expressivas, podendo-se afirmar, mesmo sem
conhecer a informação correspondente para o conjunto dos candidatos aprova-
dos12, que, pelo menos no caso da UFMG, a abertura de cursos noturnos está
contribuindo para democratizar o acesso ao ensino superior público.
A carreira de Administração é o melhor exemplo disto. A média de FSE para
o curso diurno supera inclusive aquela observada para Arquitetura e Medicina. Quan-
do se consideram cursos e não carreiras, o de Administração diurno é o que apre-
senta o maior valor médio de FSE. No entanto, se os cursos diurno e noturno de
Administração são tomados em conjunto, o valor de FSE para a carreira cai expres-
sivamente – de 6,3 para 4,7 – de tal forma que esta média, em ordem decrescen-
te, é agora apenas a 14a do conjunto das carreiras.
Da mesma forma, o percentual de candidatos de escolas públicas no notur-
no supera a média da universidade, que foi de 47%, enquanto no diurno ele é
inferior ao observado para Medicina.
Quando se compara a concorrência, no início e no final da década, das car-
reiras que oferecem cursos noturnos, há duas situações diversas. No caso das “ciên-
cias gerenciais”, os cursos noturnos já eram ofertados na década passada e a sua
procura, em termos numéricos, praticamente não se alterou em dez anos. Resulta
daí uma queda da concorrência relativa, conforme já observado. Nesse caso, talvez
o fator determinante para essa variação da demanda tenha sido a perda de prestígio
dessas carreiras, ainda que a de Administração mantenha-se como uma das que
apresentam maior relação candidato/vaga, registrando, em 1990, a segunda maior
relação candidato/vaga, baixando para a sétima, em 1999; a carreira de Ciências
Contábeis, só oferecida à noite, era a sexta e passou a ser a 21ª.

12. Esta hipótese se confirma, quando se determinam os valores médios de FSE para os candida-
tos aprovados.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 147


Concorrentes oriundos da escola pública% A valor médio de FSE

148
A dm

0
1
2
3
4
5
6
7
dm in
in is

25
50
75

0
100
is t/9
t/9 2-

*
2- 99
99
B
B ib
ib lio
lio B /9
B /9 io 9
io 9 lo
lo gi
gi a/
a/ 94
94 -9
-9 9
Fí 9 Fí
si
si ca
ca /9
/9 G 4-
G 4-
99
eo 99
eo gr
gr af
af ia
ia /9
/9 2-
2- H 99
H 99 is
is tó
tó ria

Dia
ria /9

FIGURA 7
FIGURA 6

/9 2-
2- 99
99 Le
Le tr

Noite
tr as
as M /9
Dia

Dia
M /9
Dia

at 8-
at 8- em 99
em 99
át
OFERTADOS EM DOIS TURNOS

át ic
Dia Noite

ic a/
Noit

a/ Pe 94
94 -9
Pe -9 da 9

Noite
Noite

da 9 go
go gi
gi a/
a/ 92
92 Q -9
9
Q -9
9

uí m
m ic
ic a/
COMPARAÇÃO DOS VALORES MÉDIOS DE FSE PARA CURSOS

a/ 94
COMPARAÇÃO DO PERCENTUAL DE CANDIDATOS ORIUNDOS
94 -9
-9 9
9
DE ESCOLA PÚBLICA, PARA CURSOS OFERTADOS EM DOIS TURNOS

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


As outras carreiras que oferecem cursos à noite são vinculadas à licencia-
tura e, salvo História e Pedagogia, o curso noturno só passou a ser ofertado na
13

década de 90. Aqui, observou-se grande crescimento na procura, o que parece ter
sido, em parte, conseqüência da abertura do turno da noite, uma vez que a iniciativa
ofereceu novas opções para o estudante que trabalha, em uma área cujo prestígio,
pelas razões expostas, vem aumentando. Resulta daí que, no caso de cursos ofere-
cidos nos dois turnos, a concorrência à noite geralmente supera a do dia.

CONCLUSÕES

Durante a década, ocorreram expressivas alterações na demanda pelos cur-


sos de graduação da UFMG. É possível que essas mudanças, em suas linhas gerais,
apresentem componentes que não sejam específicos dessa universidade ou do Es-
tado de Minas Gerais. Acreditamos que esse processo de mudança forneça subsí-
dios importantes para as políticas de ensino superior no país, em especial no que se
refere à oferta de vagas e às formas de ingresso.
Os dados obtidos neste estudo parecem indicar que se estão delineando, de
forma nítida, as seguintes tendências na procura pelo ensino superior público:

1. Crescimento exponencial da demanda, centrada em candidatos oriundos


da rede pública do ensino médio e pertencentes a famílias com baixo
poder aquisitivo.
2. Aumento da fração de candidatos provenientes de famílias com elevado
poder aquisitivo, o que resulta, naturalmente, numa menor percentagem
de candidatos pertencentes a famílias com situação socioeconômica me-
diana.
3. Aumento mais acentuado da procura está localizado nos cursos da área
biológica, naqueles que oferecem a habilitação licenciatura e nos que fun-
cionam à noite.
4. Perda progressiva de interesse pela área de exatas, excetuados os cursos
de licenciatura, e pelas carreiras da “área gerencial”.
5. Concentração dos candidatos de alto poder aquisitivo em cursos de ele-
vado prestígio social, para os quais só conseguirão ser selecionados os

13. Na prática, a UFMG oferece também Direito no período noturno, mas esta oferta é infor-
mal, não havendo inscrição de candidatos por turno.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 149


que obtiverem excelente rendimento nas provas; preferência dos con-
correntes da classe média baixa por cursos de baixo prestígio social, nos
quais pode-se obter a vaga com desempenho mediano14.
6. Abertura de cursos noturnos, observada sobretudo a partir de 1994 e nas
áreas de licenciatura, acarretou maior democratização no acesso ao ensi-
no superior público.

O cenário enseja algumas reflexões sobre o acesso ao ensino superior públi-


co. O vestibular tem sido visto como um filtro social em si mesmo. Não é raro
atribuir-se a este exame a culpa pela alto grau de seletividade social que, inegavel-
mente, associa-se à admissão de estudantes para o ensino superior público. O que
vimos neste trabalho foi que essa seletividade atua, sobretudo, no momento da
escolha da carreira. São poucos os candidatos que desafiam a hierarquia não escrita
dos cursos e carreiras.
Alternativas têm sido propostas para minimizar essa seletividade social e algu-
mas delas podem ter efeito contrário ao desejado, potencializando a sua ação. Isto
é certamente o que pode ocorrer com o vestibular por áreas, caso a escolha das
áreas não respeite a hierarquia não escrita das carreiras. O vestibular da UFMG de
2000 pode ser tomado como exemplo. Se os cursos de Direito e de Biblioteconomia
estivessem agrupados em uma mesma área, para efeito de seleção, não seria apro-
vado sequer um dos candidatos que optaram por Biblioteconomia, cujo perfil
socioeconômico, ao contrário dos inscritos para Direito, é de classe média baixa.
Situação similar ocorreria com diversos outros cursos, em especial os cursos notur-
nos e os que oferecem a habilitação licenciatura, exatamente aqueles que admitem,
em maior proporção, candidatos oriundos da escola pública.
Pode-se argumentar que o modelo de seleção atualmente adotado pela
UFMG reserva para os candidatos pertencentes às famílias de pior estrato social as
vagas dos cursos que são rejeitados pela classe média alta. É verdade. No entanto,
essa situação é melhor do que a de anos atrás, quando esses estudantes sequer
chegavam a bater às portas da universidade. Isto é também socialmente menos
injusto do que recusar candidatos que desejam cursar Biblioteconomia, admitindo
em seu lugar outros que, em larga escala, usarão a Biblioteconomia apenas como

14. Para ilustrar este aspecto menciona-se que, em 2000, a UFMG ofereceu vagas em 51 cursos.
Para dois deles, Medicina e Fisioterapia, o mínimo necessário para aprovação foi igual ou
superior a 70%; para seis (Engenharia de Minas, Engenharia Metalúrgica, Pedagogia Noturno,
Estatística, Geologia e Biblioteconomia Noturno), foi inferior a 40%.

150 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


um “cursinho”, para facilitar o seu ingresso em Direito. Assim, correr-se-ia o risco
de, além de elitizar ainda mais o acesso ao ensino superior público, diminuir a sua
eficiência, aumentando o custo por aluno formado.
A alternativa de seleção que está sendo cogitada e praticada é a avaliação
seriada, que requer entre três e seis baterias de provas. Para os candidatos de me-
nor poder aquisitivo, trata-se de uma verdadeira corrida de obstáculos, sobretudo
quando necessitam deslocar-se para outra cidade. Esse modelo aumenta as chances
dos que podem se preparar em “cursinhos”15. Reservar uma fração das vagas para
quem pode submeter-se à avaliação seriada talvez seja uma decisão que aguce mais
a seletividade social.
O desafio de tornar socialmente mais justo o acesso ao ensino superior pú-
blico requer medidas de lenta maturação e de significado mais profundo do que
alterações cosméticas aplicadas no processo de seleção. Um pedaço deste caminho
vem sendo percorrido. O substancial aumento de vagas ocorrido no ensino médio
público está contribuindo para minorar a dívida. A abertura de cursos noturnos e o
aumento de vagas nas licenciaturas também. A manutenção de programas adequa-
dos de apoio aos estudantes carentes no ensino superior, para evitar que, após
vencer a barreira do acesso, eles venham a sucumbir às dificuldades da permanên-
cia é outra medida importante. Uma alternativa ainda pouco explorada e que mere-
ce ser levada em conta é a organização de bons cursos pré-vestibulares para candi-
datos de baixa renda ou que provêm de minorias da sociedade, uma vez que exis-
tem fortes indícios de que a freqüência a tais cursos aumenta as chances de sucesso
do estudante16. Essa iniciativa evidentemente não poderia ser das universidades,
mas poderia ser por elas estimuladas (Amaral, 2000).
Todas essas medidas podem reduzir, e estão reduzindo, a interferência dos
fatores socioeconômicos na seleção para o ensino superior público. O seu alcance,
entretanto, é limitado e pode se tornar nulo pela adoção de processos seletivos
equivocados. Enquanto persistirem as enormes desigualdades sociais no nosso país;
enquanto o sistema de ensino acentuar essas desigualdades, oferecendo ensino de
qualidade diferenciada para distintos estratos sociais; enquanto a sociedade estabe-
lecer um sistema estratificado de profissões, que projeta perspectivas desiguais de

15. Registre-se a existência, nos colégios de elite de Belo Horizonte, de “cursinhos” destinados a
preparar, desde o primeiro ano da escola média, os candidatos que desejarem prestar o
exame seriado da Universidade de Brasília – UnB.
16. Conforme indicam resultados preliminares de pesquisa realizada sobre o tema pelos autores
e ainda não publicada.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 151


ganhos na profissão para, por exemplo, médicos e advogados de um lado, e para
bibliotecários e professores, de outro, serão muito poucos os filhos de famílias hu-
mildes que conseguirão tornar-se médicos ou advogados.

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152 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


A DIALÉTICA MICRO/MACRO NA
SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO
ZAIA BRANDÃO
Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
zaia@edu.puc-rio.br

RESUMO

Neste ensaio procuro desenvolver uma argumentação a favor da superação dos monismos
metodológicos no campo da pesquisa em sociologia da educação. Com base no que Jeffrey
Alexander (1987) denominou o “novo movimento teórico”, defendo a necessidade de superar a
divisão do trabalho de pesquisa entre os investigadores que se dedicam à microssociologia e os
que preferem abordagens macrossociais. Nessa perspectiva, as opções teórico-metodológicas
devem-se ancorar nas necessidades da investigação e não numa opção a priori do pesquisador
por qualquer uma das alternativas.
SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO – METODOLOGIA DA PESQUISA – PESQUISADORES

ABSTRACT

THE MICRO/MACRO DIALECTIC IN THE SOCIOLOGY OF EDUCATION. This article is


about the micro-macro debate in sociology. Based upon the new theoretical mouvement
(Alexander,1987) it defends the linkage between those approches in the realm of Sociology of
Education. In my point of view the problem and the subject of research is the anchor for the
theoretical and methodological options.

Trabalho encomendado para o Grupo de Trabalho de Sociologia da Educação da Associação


Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPEd 2000.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 julho/ 2001


p. 153-165, 153
Mas, uma vez alcançada uma visão mais clara dos aspectos da
vida social que se destacam com mais nitidez do fluxo histórico
quando contemplados do alto e numa longa extensão, convém
retornar à outra perspectiva, a que se tem dentro do fluxo. Cada
uma dessas perspectivas, se isolada da outra, apresenta riscos
específicos. Ambas – a visão aérea e a do nadador – mostram o
quadro com certa simplificação. Ambas nos inclinam a depositar
uma ênfase unilateral.
Norbert Elias, 1992

Uma velha polêmica atravessa a pesquisa em sociologia da educação, a di-


vergência sobre qual a perspectiva mais compatível com o estudo dos processos
educacionais: a das relações face a face entre os indivíduos empreendidas pelas
análises microssociais, ou a das relações entre as estruturas (imposições) mais gerais
da vida social sobre as trocas e situações mais específicas, tal como se procura alcan-
çar com o recurso às análises macrossociais. Como problema de fundo está a ques-
tão se a ordem social se impõe como matriz que estrutura os comportamentos, ou
se ela é permanentemente reconstruída pela negociação entre os indivíduos envol-
vidos nas ações ou trocas sociais. Subjacente ao problema está o princípio do
determinismo ou da autonomia da ação social.
Nesse ensaio, tentarei traçar um panorama da constituição das tradições e
escolas que fundamentam essas perspectivas concorrentes na interpretação dos
fenômenos sociais, com o objetivo de defender a necessidade de superar os anta-
gonismos teórico-metodológicos entre as abordagens micro e macrossociológicas,
no campo da pesquisa em sociologia da educação.

INDIVÍDUO E SOCIEDADE, A TENSÃO BÁSICA NA SOCIOLOGIA

Em 1937, Norbert Elias escreveu um brilhante ensaio discorrendo sobre os


limites das perspectivas unilaterais para apreender o fluxo do mundo social. Segun-
do ele, o problema maior estava na ausência de modelos conceituais que permitis-
sem “compreender de que modo um grande número de indivíduos compõe entre
si algo maior e diferente de uma coleção de indivíduos isolados” (o princípio
durkheiminiano), ou seja, como se estabelecem os vínculos entre os indivíduos e a
sociedade de forma a gerarem um resultado que ultrapassa as combinações iniciais.
A teoria da Gestalt já nos oferecera um forte argumento a respeito de como
o todo incorpora princípios que não podem ser delineados pelo exame das partes
isoladamente. Da mesma forma que a melodia representa uma estrutura que vai
além da soma das notas individuais – que há uma relação, ao mesmo tempo que

154 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


um abismo entre os sons e as palavras – as relações entre o todo e a parte no
mundo social representam um permanente desafio à inteligência pois, freqüente-
mente, a mudança de um plano para outro não é meramente uma mudança de
grandeza ou de um ponto de vista, mas de substância ou qualidade. Um conjunto
de jovens em uma sala de aula constitui uma realidade social diferente de um grupo
de jovens em um coral ou em um clube.

A ordem invisível dessa forma de vida comum, que não pode ser diretamente per-
cebida, oferece ao indivíduo uma gama mais ou menos restrita de funções ou mo-
dos de comportamento possíveis. Por nascimento ele está inserido num complexo
funcional de estrutura bem definida; deve-se conformar-se a ele, moldar-se de acor-
do com ele [...] Até sua liberdade de escolha entre as funções preexistentes é bas-
tante limitada. Depende largamente do ponto em que ele nasce e cresce nessa teia
humana, das funções e da situação de seus pais e, em consonância com isso, da
escolarização que recebe. (Elias, 1992, p.21)

Essa questão da interdependência das pessoas na teia social é longamente


tratada por Elias, como uma cadeia ininterrupta de ações que associam os indiví-
duos em uma trama complexa de relações que os ligam a diversos grupos, os quais,
por sua vez, podem ser interdependentes ou não. É esse conjunto de possibilidades
de ligações, significativamente diferentes, que confere flexibilidade às relações so-
ciais que, muitas vezes, dá a ilusão de poderem ser compreendidas na dinâmica,
restrita, das relações face a face, supondo que possuem um grau de autonomia, o
qual, dificilmente, podem alcançar. O comportamento dos alunos em uma turma,
uma escola ou em um sistema escolar certamente pode ser analisado em sua rela-
tiva autonomia em cada uma dessas instâncias; entretanto, nenhuma turma, escola
ou sistema abriga qualquer aluno aleatoriamente: a probabilidade de as turmas de
determinadas escolas serem compostas por qualquer estudante de uma determina-
da faixa etária é decisivamente descartada1 . Crianças e jovens moradores de
Jacarepaguá (município do Rio de Janeiro) só excepcionalmente estudarão em Caxias
(periferia do mesmo município), assim como filhos de grandes empresários dificil-
mente estarão matriculados em uma escola municipal mal equipada. São essas con-
formações mais estruturais – por exemplo, a distribuição demográfica da população
em uma área específica – que indicam o caráter definidor de algumas circunstâncias
macrossociais sobre interações microssociais.

1. O desenvolvimento de modelos multiníveis de análise estatística significou um avanço impor-


tante nas estatísticas educacionais na medida em que permitiram contemplar a característica
estratificada da demografia escolar.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 155


AS BASES EPISTEMOLÓGICAS DAS ORTODOXIAS E SUA SUPERAÇÃO

Qual o melhor observatório do mundo social: a perspectiva próxima e de


“dentro” ou a perspectiva panorâmica, do alto e de “fora da cena”? O mundo pen-
sado como um teatro: o teatro reproduzindo as matrizes de convivência, ou crian-
do permanentemente novas formas de interagir? O mundo social como improviso
permanente, surpreendente e incomensurável, ou como um enredo definido pelas
posições anteriormente ocupadas pelos atores, diretores, fotógrafos e cenaristas?
O cenário enquadrando a cena, ou o enredo exigindo a multiplicidade de cenários?
Vivemos nestas últimas décadas uma desconfiança saudável das ciências so-
ciais como racionalizações sobre o mundo empírico (o da experiência). Tais racio-
nalizações produziram tanto grandes ilusões como admiráveis tomadas de cena. A
pergunta que se mantém pertinente é sobre qual instância privilegiada para a com-
preensão do que somos socialmente, dos sentidos das nossas ações e dos significa-
dos que elas produzem. Eis o permanente dilema epistemológico que nos é apre-
sentado pelas ciências sociais (Alexander, 1987, cap. 3).
O problema teórico da tensão subjetivismo/objetivismo, agentes/estruturas
durante muito tempo esteve ancorado em perspectivas epistemológicas antagôni-
cas. Hoje, as novas sociologias (Corcuff, 1995) ou o novo movimento teórico (Alexander,
1987) tendem a superar essas oposições clássicas e defender que o coletivo é indi-
vidual e que os níveis microssociais constroem gradativamente padrões de ações e
representações que se consubstanciam em estruturas de níveis macrossociais.
Essas novas sociologias propõem perspectivas teóricas que podem elucidar
tanto os processos que vão das estruturas sociais às interações, como os que vão
das interações às estruturas sociais. Entretanto, duas posições epistemológicas pola-

.
res coexistem como permanente desafio à imaginação sociológica:

uma, que privilegia o olhar sobre a reprodução dos papéis e posições


sociais herdadas do passado e presentes no mundo social, sustentando a
pretensão de construir teorias mais gerais sobre as regularidades das rela-
ções sociais. Normalmente focaliza as bases em que se sustentam deter-
minadas práticas sociais que, pela recorrência nas situações cotidianas,
transformam-se em disposições – as quais se situam e agem de acordo
com as posições sociais definidas pelas estruturas sociais (empregados/
empregadores, intelectuais/massa, femininas/masculinas) –, agregando
subconjuntos de agentes, relativamente estáveis, que podem ser recons-
truídos no plano macrossocial;

156 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


. outra que, supondo a incomensurabilidade do social, descarta as tentati-
vas de teorização mais geral sobre a sociedade, e procura construir hipó-
teses, a partir dos fragmentos microssociais, sobre a dinâmica do(s)
mundo(s) social(ais); algumas vezes chega até mesmo a afirmar ser o mundo
social uma permanente ilusão constituída pela recriação de papéis e situa-
ções, a partir das interpretações forjadas nas interações face a face e pela
linguagem. Não haveria pois por que investir em teorias mais gerais sobre
o mundo social. Tudo o que se poderia aspirar é um conjunto de interpre-
tações subjetivas e ilusórias do ponto de vista do mundo da experiência.

O NOVO MOVIMENTO TEÓRICO SEGUNDO JEFFREY C. ALEXANDER

Jeffrey C. Alexander, um dos mais importantes sociólogos americanos da


atualidade, assinala a importância da argumentação na elaboração teórica nas ciên-
cias sociais, pois, em virtude do seu caráter multiparadigmático, elas se encontram
divididas em escolas e tradições, expressando um desacordo teórico-empírico per-
manente. É com base na argumentação que se articulariam as adesões e convicções
a respeito da pertinência de determinadas opções analíticas no âmbito das ciências
sociais.
Depois da Segunda Guerra – em virtude do insucesso da tentativa parsoniana
de compatibilizar o idealismo e o materialismo, a ação voluntária e a determinação
estrutural – instalou-se, segundo o autor, um movimento pendular entre as teorias
da ação e as teorias estruturais. Surgiram, então, reações de raízes fenomenológicas
e estruturalistas indicando os dilemas teóricos sobre a natureza da ação e da ordem.
Sob a inspiração fenomenológica multiplicaram-se as perspectivas micros-

.
sociais:

para a teoria das trocas (Homans) o comportamento individual desenvol-


ve-se independentemente de normas sociais definitivas, pois as condições
sociais objetivas articulam-se à vida cotidiana, produzindo situações a par-

.
tir das quais os atores desenvolvem os seus cálculos e orientam suas ações
no mundo social;
no interacionismo simbólico (Blumer) os significados resultam das rela-
ções sociais que se estabelecem em cada circunstância (em razão das
reações do outro), e o que define as atitudes são as imagens, significados,
sinais e linguagens que interagem na definição das situações em que se
encontram os atores sociais; Goffman, dentro dessa orientação, desen-

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 157


volveu uma abordagem teórico-metodológica de observações diretas e
elaboração de conceitos, inspirado na dramaturgia, que permitiu o desen-
volvimento de uma perspectiva sociológica bastante adequada à interpre-

.
tação de processos de comportamento institucional gerados a partir de
interações face a face;
a etnometodologia (Garfinkel) desenvolveu-se a partir de uma inovação
metodológica (etnometodologia) que se pretendia mais adequada ao co-
nhecimento de como os atores constroem suas próprias normas em situa-
ções (culturais) específicas do cotidiano e com o recurso à linguagem.

Entre os defensores de perspectivas macrossociais estão os “teóricos do con-


flito” – que negam a centralidade da internalização das normas (elo entre ação e
cultura) tal como proposta pelo estrutural-funcionalismo parsoniano – e as perspec-
tivas funcionalistas, sistêmicas e estruturalistas de diferentes extrações teórico-ideo-
lógicas.
Segundo Alexander (1987), um “novo movimento teórico” engloba uma
nova geração, pós-marxista (e pós-funcionalista, acrescentaria eu), que influenciada
pela microteoria norte-americana desenvolveu novos esforços de juntar ação e
estrutura. A consciência da complexidade dos processos envolvidos nas relações e
transformações sociais estimulou, mais recentemente, tentativas de ligar os planos
micro e macrossociais, assim como os processos individuais ao sistema social mais
amplo. A percepção do papel central da cultura na constituição do mundo social
motivou o renascimento dos estudos culturais iniciados nos anos 60 (Birmingham) e
uma ênfase crescente no estudo das estruturas simbólicas e das representações
sociais.

AS TRADIÇÕES NA SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL

Em que pese a já assinalada sociologização do discurso pedagógico, ainda


não contamos com um balanço histórico que nos permita reconstituir, de forma
consistente, as tendências micro e macroteóricas na sociologia da educação no Bra-
sil. Entretanto, um sobrevôo sobre a produção relacionada explicitamente à socio-
logia da educação autoriza-nos a algumas hipóteses que traçaremos a seguir.
A pesquisa em educação recebeu um enorme impulso após a instituciona-
lização da pós-graduação. Como de uma forma geral ocorreu com o desenvolvi-
mento das Ciências Humanas, os parâmetros de cientificidade positivista marcaram
inicialmente a importância da quantificação e das teorizações gerais. Só com o de-

158 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


senvolvimento da autonomia do campo é que, gradativamente, outras referências e
estratégias foram sendo incorporadas à produção de pesquisas em educação.
Uma antologia organizada por Luiz Pereira e Maria Alice Foracchi, no início
nos anos 60 – Educação e sociedade: leituras em sociologia da educação –, coloca
em evidência a hegemonia das perspectivas macrossociais àquela época. A maioria
dos textos da coletânea refere-se aos processos sociais globais, focalizando as fun-
ções sociais da escola – homogeneizadora/diferenciadora, inovadora/conservadora –
assim como os processos de estratificação social, burocratização e planejamento. A
relação entre a educação e a estrutura social é tratada nos estudos das sociedades
tradicionalistas e das sociedades de classes, assim como na análise – atualíssima na
época – das relações entre a educação escolar e o desenvolvimento econômico-
social. Mesmo quando se referem ao estudo sociológico da escola (parte III) os
organizadores assinalam que o tratamento deste tema

...não significa contudo (que) deva ser encarado como uma unidade autônoma, ou
que a análise seja, necessariamente, limitada aos aspectos internos da escola. Pelo
contrário, é da maior importância compreender a dinâmica do grupo escola através
das conexões que estabelece com outros sistemas sociais, de amplitude variável.
(Pereira, Foracchi, 1969, p.101, grifos meus)

A investigação desenvolvida durante quatro anos, sob a minha coordenação,


focalizando a sociologia da educação nos anos 50/60, identificou, no entanto, uma
influência da tradição microssociológica da Escola de Chicago em pesquisas desen-
volvidas no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais – CBPE – e publicadas nos
seis anos de existência (1956/1962) da revista Educação e Ciências Sociais2 . Entre-
tanto, o fechamento do centro e o sucesso dos paradigmas “críticos”3 parecem ter
desmobilizado essa tradição, na pesquisa sociológica no campo da educação, que
parece ter permanecido esquecida4 durante cerca de duas décadas (Brandão, Men-
donça, 1997).

2. Conferir, a respeito, em especial o capítulo de autoria de Libânia Nacif Xavier “A pesquisa do


CBPE em Revista” (Brandão, Mendonça, 1997).
3. Utilizo o termo de modo impreciso para indicar o conjunto de teorias que criticavam os
desdobramentos sobre a escola das estruturas capitalistas e, sobretudo, para evitar a
categorização equivocada de teorias reprodutivistas englobando autores tão diferentes em
seus fundamentos como Althusser, Bourdieu e Passeron, Bowles e Gintis, Baudelot e Establet.
Ver, a respeito, Cunha (1992)
4. A expressão tradição esquecida, utilizada no título do livro, refere-se ao projeto liderado por
Anísio Teixeira de articular cientistas sociais e educadores com a criação do CBPE, assim
como dos centros regionais a ele articulados.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 159


A sociologia da educação, nas décadas de 60 e 70, no Brasil, caracteriza-se
por uma produção voltada para o espelhamento da estratificação social na estrutura
do sistema escolar. Desde o final da década de 50 Anísio Teixeira, Florestan Fernandes,
J. Roberto Moreira, entre outros, utilizavam-se amplamente de dados demográficos
e indicadores socioeconômicos para interpretar o caráter antidemocrático da esco-
la brasileira, sempre em uma perspectiva macrossocial.
A politização das universidades, provocada pela luta contra o regime militar
implantado pelo golpe de Estado de 1964, foi responsável pela retração da pesquisa
na área da sociologia da educação e pela proliferação de uma produção de caráter
mais ensaístico e teórico, que buscava contrapor-se “à ênfase na administração e no
planejamento educacionais ao lado da supervalorização da tecnologia educacional”
(Cunha, 1992).
No âmbito da sociologia da educação, entretanto, a obra de maior impacto,
na perspectiva macroteórica, foi Educação e Desenvolvimento Social no Brasil (Cu-
nha, 1975). Cunha trabalha simultaneamente dados e indicadores econômicos e
educacionais para contestar a tese de Carlos Langoni de que a concentração de
renda no período militar teria ocorrido por deficiências de escolarização da popula-
ção. Numa análise inspirada, entre outros, na perspectiva de Bourdieu e Passeron,
traça um quadro dos mais completos sobre as características da escola brasileira e da
política educacional implantada pelo regime militar a partir do final da década de 60.
Um dos mais importantes periódicos de pesquisa em educação – Cadernos
de Pesquisa (publicado desde 1971 pelo Departamento de Pesquisas Educacionais
da Fundação Carlos Chagas) – reflete a importância das pesquisas que se utilizavam
de dados quantitativos e das abordagens de caráter macrossocial. Ana Maria Poppovic,
Fúlvia Rosemberg, Bernardete Gatti, Guiomar Namo de Mello, Heraldo Vianna,
entre outros, eram pesquisadores daquela instituição que se utilizavam de dados
sociodemográficos nas investigações sobre educação, numa perspectiva sistêmica e
macrossocial, em suas interpretações sobre os fenômenos da alfabetização, educa-
ção fundamental, marginalidade cultural e da desigualdade escolar em vários níveis.
Em 1982, o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – Inep – encomen-
dou-nos o primeiro estado da arte sobre a evasão e repetência no Brasil (Brandão,
Baeta, Rocha, 1982), no qual ainda utilizamos as famosas pirâmides educacionais na
análise das estatísticas oficiais5 ; entretanto, já nessa ocasião, privilegiamos algumas
poucas pesquisas, de caráter qualitativo, que começavam a ampliar o escopo das

5. O modelo Pró-Fluxo, desenvolvido na década de 80 por Costa Ribeiro e equipe, contestou


os modelos estatísticos utilizados pela Seec/MEC, sobre os quais eram geradas as pirâmides

160 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


análises sobre os problemas de desempenho escolar com base em focalizações
microssociais. Cabe assinalar ainda que, naquele momento, já manifestávamos o
nosso interesse por uma perspectiva que, mesmo mediante estratégias qualitativas
de análise, articulasse aspectos macro aos microssociais:

...um novo prisma de análise, que somente desponta no horizonte da pesquisa edu-
cacional e, ainda assim, com alcance muito restrito: falamos de uma perspectiva de
análise que incorpora o contexto socioeconômico e político de forma menos fatalis-
ta e que procura dentro da escola o que lhe é específico, sem descuidar nem do
indivíduo nem do social, mas procurando incorporar a categoria “totalidade” na aná-
lise da prática escolar. (Idem, p. 12)

Com a chegada da década de 80, portanto, a crítica ao positivismo e ao


caráter demasiadamente genérico das enquetes estatísticas (surveys) – distantes dos
problemas das escolas e das salas de aula – provocou uma virada hegemônica no
campo das estratégias metodológicas na sociologia da educação. Os estudos de
caso, a observação participante e as estratégias de pesquisa qualitativa foram
gradativamente dominando a pesquisa em educação. Essa mudança ocorreu com
tal ênfase nessas duas últimas décadas que, em determinados fóruns, a presença de
estatísticas educacionais passou a ser associada, com boa dose de preconceito, aos
“aparelhos do Estado”6 . As “abordagens etnográficas”, histórias de vida e entrevistas
em profundidade tornaram-se os recursos preferenciais das abordagens microssociais
que, ainda, neste final de década, dominam a pesquisa na sociologia da educação.
Porém diferentemente da expectativa que expressávamos em 82, a proliferação
dessas abordagens indica que o “novo movimento teórico” de articulação entre as
perspectivas macro e micro, a que se referiu Alexander (1987), não encontrou
muitos adeptos entre nós.
Entretanto, rediscutir a avaliação educacional impulsionada quer pelas políti-
cas neoliberais, quer pelas estratégias de aprofundamento das políticas de democrati-
zação – como a institucionalização dos ciclos escolares ou a promoção automática –
trouxe um novo impulso às análises macrossociais e ao recurso às estatísticas para a

educacionais; estas, segundo ele, indicavam taxas de evasão escolar muito superiores às en-
contradas pela nova metodologia. Hoje as pirâmides não fazem mais parte dos gráficos das
estatísticas escolares oficiais.
6. Na última Reunião Anual da ANPEd, de 1999, presenciei um debate com Alceu Ferrari, em
que o interlocutor questionava a análise do pesquisador gaúcho sobre alfabetização, com o
argumento de que ele estaria utilizando estatísticas da Fundação Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística – FIBGE – e, portanto, dados do governo que não mereceriam confiança.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 161


caracterização, análise e interpretação dos sistemas escolares em suas relações in-
ternas (subsistemas estaduais, municipais, privados etc.) e externas (perfis familiares,
características socioculturais dos professores, categorias socioprofissionais das po-
pulações etc.).
Tudo indica que a ligação dos níveis macro e microssocial tem-se tornado um
horizonte cada vez mais atraente para aqueles que tomam consciência da inextrincável
complexidade do mundo social e, nele, da educação. Que ordem de problemas
nos colocam tais ligações?

DA REDUÇÃO À LIGAÇÃO: SUPERANDO OS MONISMOS


METODOLÓGICOS
O problema da ligação (micro macro) está na capacidade de
criação de conceitos teóricos que traduzam ou reinscrevam
variáveis de nível individual em variáveis que caracterizem os
sistemas sociais e vice-versa.
Gerstein, 1987

Os problemas da ligação micro/macro surgem sempre que o menor liga-se


ao maior ou vice-versa; “maior-menor, parte-todo são instrumentos culturais de
pensamento com os quais a sociologia partilha da experiência humana” (Gerstein,

.
1987, p.109). Gerstein propõe “quatro princípios” para entender essas relações:

reconhecer que a ação social é inerentemente dual, ou seja, pode ser


representada por escalas assim como exprimir-se por significados, e que
essas dimensões não funcionam da mesma forma. Uma análise da ação
social deve encontrar o recurso adequado para a sua compreensão, tanto
no plano da estatística, como da interpretação; a distinção micro/macro

.
atravessa a dualidade quantitativo/qualitativo perpendicularmente e não
paralelamente;
a distinção fundamental entre micro/macro deve ser analítica. As designa-

.
ções são sempre de caráter relativo entre os níveis e, em particular, ao
propósito analítico do momento;
a natureza causal da ligação macro/micro não deve ser postulada em
princípio. Deve sempre ser considerada hipotética e incompleta. As posi-
ções que defendem causas inerentemente macro ou micro tendem ao
reducionismo; igualmente equivocadas estariam as alternativas relativistas

162 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


que postulam que os planos micro e macro são inteiramente autônomos.

.
Parece mais adequado postular um potencial interativo entre os níveis
micro e macro com graus variáveis no tempo e sob diferentes condições;
o uso habitual e bem-sucedido de uma das perspectivas pode levar a posi-
ções de fidelidade teórica a determinadas escolas de pensamento ou aborda-
gens teórico-metodológicas; a competição entre opções preferenciais nes-
tes âmbitos pode ser útil à produção do conhecimento, desde que propicie
um debate produtivo, do ponto de vista do aperfeiçoamento ou apro-
fundamento das condições de compreensão dos fenômenos estudados.

As novas sociologias (Corcuff, 1995) rejeitam as perspectivas unilaterais pois


os processos e configurações (estruturas) sociais estão inseparavelmente ligados às

.
dinâmicas micro e macrossociais:

o nível micro envolve normalmente um pequeno número de atores que


têm a possibilidade de observar-se mutuamente. A interação face a face
caracteriza esse nível: pessoas, ações, padrões de comportamento e as-
pectos específicos da situação são passíveis de serem observados em sua

.
totalidade. Na prática de pesquisa, no entanto, os pesquisadores redu-
zem sua atenção a determinados aspectos da cena social;
o nível macro envolve sempre muitos atores que não estão em interação
direta. O pesquisador consegue observar apenas indicadores e represen-
tações do conjunto das ocorrências, que devem ser novamente traduzi-
dos em hipóteses (interpretações) sobre as ações subjacentes a essas re-
ferências (Haferkamp, 1987, p.178).

As ações podem ser significativas ou expressar comportamentos não intencio-


nais; as abordagens qualitativas nem sempre estão alertas para a possibilidade de
que muitas das situações e significados não encontrem, nos atores diretamente envol-
vidos, a melhor referência para a sua interpretação. As posições no espaço social, as
experiências anteriores, os diferentes contextos institucionais etc. podem vir a ser
indicadores mais adequados à compreensão de determinadas práticas e represen-
tações do que os depoimentos ou observações dos agentes sociais envolvidos dire-
tamente nas ações/situações.
As transcrições “fiéis” de depoimentos podem portanto carecer de fidedigni-
dade no processo de construção interpretativa por parte do pesquisador. Elas po-

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 163


dem significar o mesmo equívoco das “transcrições teóricas” no trabalho de campo,
ou seja: da mesma forma que as referências teóricas precisam ser reelaboradas no
processo de investigação (construção do objeto), os depoimentos obtidos por meio
de entrevistas precisam ser novamente situados no contexto geral das circunstân-
cias investigadas – implicados aí tanto o problema que orienta a pesquisa, como as
relações dentro das quais o objeto em estudo vem sendo construído e os contextos
(materiais e simbólicos) em que se desenvolvem. Os significados que os atores
atribuem às suas ações não são autocriados; além de operarem na complexa malha
das representações de sua cultura, estão articulados às conjunturas específicas, às
configurações espaço-temporais que os localizam nas estruturas sociais, aspectos
esses nem sempre imediatamente percebidos pelos atores sociais ou pelos pesqui-
sadores.
O poder, material e simbólico, pode promover padrões de submissão incom-
preensíveis tanto para os que o exercem como para os que a ele são submetidos.
Haferkamp, ao desenvolver uma crítica à atenção exclusiva conferida à definição
verbal da situação, assinala a importância de reconhecer que a ação social é com-
posta de elementos verbais e não verbais, e que eles não são redutíveis um ao
outro; como as situações sociais são complexamente estratificadas e finamente
estruturadas, se focalizarmos apenas a definição verbal da situação, teremos uma
abordagem simplificada da ação (idem, p.182).
É importante ainda destacar que o simples fato de as estruturas não serem
passíveis de observação direta não significa que sejam inacessíveis ao conhecimen-
to. Há, portanto, necessidade de incluir tanto os aspectos subjetivos quanto os pro-
cessos externos na elaboração, análise e interpretação das pesquisas em ciências
sociais.
É uma ilusão imaginar que a multiplicação de análises microssociais permitiria
uma forma mais adequada de reconstrução das configurações sociais gerais (estru-
turais), ou que se poderiam alcançar essas configurações pela reconstrução diver-
sificada e ampliada das configurações particulares. O mundo da experiência tem
uma capacidade inesgotável de recriar e construir novas formas de interações e
padrões coletivos de valores que se desdobram em ações significativas complexas
no plano individual (interações face a face) e no plano macrossocial. A arte do pes-
quisador, ao que nos parece, estaria exatamente em sua capacidade de escolher o
instrumento de análise mais adequado ao problema de pesquisa que o desafia e às
possibilidades empíricas do campo de investigação em que se coloca.

164 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


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Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 165


DOCUMENTAÇÃO OFICIAL E O MITO DA
EDUCADORA NATA NA EDUCAÇÃO
INFANTIL

ALESSANDRA ARCE
Doutoranda pela Faculdade de Ciências e Letras da
Universidade Estadual Paulista – Araraquara
learce@zipmail.com.br

RESUMO

O artigo descreve a trajetória, bem como apresenta as conclusões de pesquisa que resultou em
dissertação de mestrado em educação, defendida em 1997, cujo objeto de estudo é o profissio-
nal que atua na educação infantil em nosso país. As análises levaram à conclusão de que, ao
longo da história, tem-se reforçado a imagem do profissional dessa área como sendo a da mulher
“naturalmente” educadora, passiva, paciente, amorosa, que sabe agir com bom senso, é guiada
pelo coração, em detrimento da formação profissional. A não-valorização salarial, a inferioridade
perante os demais docentes, a vinculação do seu trabalho com o doméstico e a deficiência
articulam-se à difusão da figura mitificada, que não consegue desvincular-se das significações
que interligam a mãe e a criança.
EDUCAÇÃO INFANTIL – PROFISSIONAIS DE EDUCAÇÃO – MULHERES – RELAÇÕES DE
GÊNERO

ABSTRACT

OFFICIAL DOCUMENTATION AND THE MYTH OF THE BORN EDUCATOR IN CHILD


EDUCATION. This work describes the conclusion of the dissertation in Education, finished in
1997. The object of the dissertation was the professional who deals with children under six years
in Brazilian pre-schools. The results of the research presented in this work led to the conclusion
that the image continually reinforced of this professional was naturally a born educator, passive,
patient, loving, who knows how to act with common sense, is guided by heart, to detriment of
professional formation. The undervaluing of this professional in terms of salary, the inferiority in
relation to other colleagues, the links of this work with domestic labour and private life, as well as
the deficiencies of training appear as the results of this image based on widely divulged gender
determinations and mythification of this professional who is unable to free herself from the myths
linking mother and child.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 julho/ 2001


p. 167-184, 167
Este artigo foi elaborado a partir de dissertação de mestrado em educação
(Arce, 1997), cujo objeto de estudo é o profissional que atua na educação infantil.
Nessa pesquisa caracterizei a presença do mito da mulher como educadora nata na
imagem do profissional dessa área, tanto na imagem existente em clássicos da edu-
cação infantil, como naquela existente em documentos oficiais editados pela Funda-
ção Movimento Brasileiro de Alfabetização – Mobral – e pelo Ministério da Educa-
ção e Cultura – MEC –, desde o final da década de 70 até o ano de 1995.
O ponto de partida para a investigação realizada foram questões surgidas de
minha prática como professora do curso de Pedagogia com habilitação para forma-
ção de professores da pré-escola, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Ao iniciar o ano letivo da disciplina Métodos e Técnicas da Educação Pré-Escolar,
realizava sempre uma sondagem com os alunos, buscando saber o que pensavam
sobre o profissional que deve trabalhar com as crianças menores de seis anos. As
respostas, em sua maioria, reforçam a figura desse profissional como sendo mulher,
que não necessita de muita formação. Palavras como “jeitinho” e “gostar” são, se-
gundo essa visão, fundamentais para se exercer o trabalho:

...para ser tia da pré-escola basta somente gostar e ter jeitinho com as crianças, e
entender de psicologia da criança;
...como eu sou homem, para mim, fica difícil tratar destas crianças, a mulher é ideal;
...para mim, ser professora da pré-escola é mais fácil do que das séries iniciais, por-
que só precisa brincar com a criança e entender um pouco de psicologia, além de
ter que gostar muito de crianças.

Várias autoras, como Campos (1981), Cruz (1996) e outras, já apresenta-


ram análises iniciais desse discurso reproduzido por parte dos acadêmicos, no sen-
tido de que a idade da criança e o cuidado com seu corpo seriam fatores importan-
tes de desprestígio do profissional de educação infantil. Cuidado, proximidade com
o corpo da criança e desqualificação são expressões constantes no discurso dos
pesquisadores na área de educação infantil, enquanto “jeitinho” e “gostar” são pala-
vras presentes na fala tanto dos futuros profissionais da área, como também daque-
les que nela já atuam. Existiria um elo entre tais preceitos? Qual seria este elo?
Procurando por ele, percorri um caminho metodológico que envolveu, num
primeiro momento, estudos sobre a história da formação de professores no Brasil.
Dentro desses estudos, dois fatos chamaram a atenção: o primeiro, a ausência de
trabalhos que focalizassem a história da formação de profissionais da educação de
crianças de zero a seis anos no Brasil, e o segundo, os estudos voltados para o

168 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


fenômeno chamado feminização do magistério, que não questionam a existência
de uma ocupação quase absoluta dos cargos de professor de educação infantil por
mulheres, desde o surgimento da modalidade educacional. Isso pode representar
um fator de reforço da naturalidade com a qual o problema é encarado.
A constatação levou-me a buscar os “porquês” dessas ausências. Entendi que
sem estudar as origens do sentimento de infância na sociedade ocidental e a defini-
ção do lugar e papel da mulher não conseguiria desvendar as questões postas para
a pesquisa. Para tanto, voltei-me para os estudos sobre a história da criança e da
mulher na sociedade ocidental nos séculos XV, XVI, XVII e XVIII, utilizando autores
como: Ariès (1988), Oliveira (1989), Casagrande (1990), Perrot (1992, 1991) e
outros. A realização desses estudos evidenciou que, historicamente, foram construídas
imagens idealizadas do ser criança e do ser mulher, que se cristalizaram e ganharam
um status de “sagradas”, determinando, sem que se coloquem em discussão, os
papéis sociais da criança e da mulher. Nesse sentido, tornou-se necessário recor-
rermos à categoria de mito.
A categoria mito neste trabalho foi definida não como algo fabuloso, fantásti-
co, como oposição ao real (mito é ficção) e ao racional (mito é absurdo), mas sim
como algo verdadeiro, uma vez que construído socialmente, história que envolve
entidades e faculdades sagradas, que não pertencem ao nosso cotidiano, mas são
inseridas e respaldadas por esse cotidiano. Sendo sempre produto de uma
coletivização de imagens e vivido ritualmente, o mito traz dentro de si as “origens”
das coisas, dos fatos e das pessoas. O mito, segundo Novaski (1989, p. 37), é muito
mais do que uma mera imagem, é uma expressão simbólica cujos valores são carre-
gados de conotações afetivas, o que caracteriza seu poder de sedução. Abrangendo
uma totalidade dificilmente apreensível de modo direto e imediato pela consciência
discriminatória, o mito sintetiza, recorrendo ao símbolo, conteúdos que se referem
às mais profundas aspirações do ser humano: “sua sede de absoluto e de
transcendência”. Considerando, assim, o mito como uma síntese simbólica de ima-
gens, valores, sentimentos e aspirações coletivas, entendo que ele constitui um
fenômeno sócio-histórico real, que desempenha um papel objetivo na atividade
social, ainda quando o conteúdo do mito inverta, falsifique e deforme aspectos da
realidade humana. A veracidade do mito reside no fato de que ele desempenha o
papel de dirigir as ações dos homens e não no seu conteúdo propriamente dito.
Entretanto, para que o mito desempenhe esse papel, isto é, para que ele tenha o
caráter de mito, é necessário que ele esteja revestido de um caráter sagrado, o que
impede seu questionamento e torna-o mais do que paradigmático, torna-o
impositivo.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 169


Trabalhando com essa acepção de mito, constatei, mediante estudos, que a
constituição histórica da imagem do profissional de educação infantil tem estado
fortemente impregnada do mito da maternidade, da mulher como rainha do lar,
educadora nata, cujo papel educativo associa-se necessariamente ao ambiente do-
méstico, sendo, assim, particularmente importante nos primeiros anos da infância.
O início da educação de todo indivíduo deveria, assim, ser uma extensão natural da
maternidade. Cumpre, entretanto, destacar que esse mito da mulher mãe e educa-
dora nata exerce seu maior poder orientador no período relativo aos anos iniciais
da vida dos indivíduos, não sendo atribuída à mulher a responsabilidade sobre a
educação em geral. Durante o século XVIII o útero e a função de reprodução
referendaram este mito:

O útero define a mulher e determina seu comportamento emocional e moral. Na


época, pensava-se que o sistema reprodutor feminino era particularmente sensível
e que essa sensibilidade era ainda maior devido à debilidade intelectual. As mulheres
tinham músculos menos desenvolvidos e eram sedentárias por opção. A compara-
ção da fraqueza muscular e intelectual e sensibilidade emocional faziam delas os
seres mais aptos para criar e educar os filhos em tenra idade. Desse modo, o útero
definiu o lugar das mulheres na sociedade como mães. (Hunt apud Perrot, Duby,
1990, p.50)

Mitos foram construídos ao longo do tempo e absorvidos pela sociedade,


definindo grande parte das questões que envolvem o ser mulher. Mas como esses
mitos chegaram a ser absorvidos pela educação de crianças menores de seis anos?
De que forma mitos tão antigos perduram até hoje?
Na procura de respostas, voltei meus estudos para a visão que os primeiros
teóricos da educação infantil possuíam da profissional ideal para trabalhar com esta
faixa etária, escolhi os que mais influenciaram essa modalidade de trabalho no Brasil:
Rousseau, Froebel e Montessori.
Rousseau, precursor da educação de crianças menores de seis anos e um
dos definidores do papel da mulher mãe e educadora nata para esta faixa etária,
referendava o exposto por Hunt ao afirmar que:

Da boa constituição das mães depende inicialmente a dos filhos: do seio das mulhe-
res depende a primeira educação dos homens...
A educação primeira é a que mais importa, e essa primeira educação cabe incontes-
tavelmente às mulheres: se o Autor da natureza tivesse querido que pertencesse
aos homens, ter-lhes-ia dado leite para alimentarem as crianças. Falai portanto às
mulheres, de preferência, em vossos tratados de educação; pois além de terem a

170 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


possibilidade de para isso atentar mais de perto que os homens, e de nisso influir
cada vez mais, o êxito as interessa também muito mais... (Rousseau, 1992, p.433-9)

Cabe aqui assinalar, de passagem, que Rousseau complementa a afirmação


de Hunt, de que o lugar da mulher na sociedade, como mãe, foi definido pelo
útero, pois, como mostra a passagem acima, mais do que apenas o ato de dar à luz,
também foi definidor do papel da mulher o ato de amamentar, primeira forma de
interação entre o ser humano recém-nascido e outro ser humano. Isso, para
Rousseau, não só definia o papel de mãe mas também o papel indissociável de
primeiro educador. Para o filósofo, a mulher (este ser considerado débil, sensível,
propício à maledicência, que deveria ser resguardado, no lar, da competitividade da
vida pública) passava automaticamente, graças aos seus atributos naturais para a
maternidade, dos quais os citados anteriormente fazem parte, a dedicar-se à educa-
ção de um outro ser também débil a princípio, frágil e que deve ser protegido no
aconchego do lar: a criança. Seguindo esta linha de raciocínio, Froebel, no século
XIX, funda um ambiente destinado à educação de crianças na faixa etária de zero a
seis anos fora das paredes do lar, mas que traz a figura da rainha do lar substituta,
(aquela que na ausência da mãe exerce suas funções) para a nova instituição deno-
minada por ele não uma escola, mas um Jardim de Infância.
Froebel fornece a esta figura mítica da rainha do lar substituta um outro nome:
jardineira, acrescentando que a mesma deve concentrar-se, em seu trabalho, nos
interesses e necessidades da criança, que deveria ser tratada pela jardineira com
todo amor e carinho sem interferir em seu crescimento, cultivando os germens da
tendência natural que possuiria o ser humano, a de unir-se à natureza e ao criador.

Pois no cultivo da primeira infância efetivado pelo coração feminino está “o funda-
mento e a direção de toda a vida futura do ser humano”, uma vez que assim o
estabeleceu o Criador através da natureza e do homem. Por isso, as Jardineiras
devem ser preparadas como medianeiras entre as naturais qualidades educativas da
mãe e os naturais reclamos da infância. Desse modo, as jardineiras prestam um
auxílio às mães, que se acham impedidas na sua função maternal, porque presas aos
afazeres da vida moderna. (Froebel apud Koch, 1985, p. 62)

Para tanto, a mulher recebia uma formação que mesclava germens de uma
psicologia do desenvolvimento com a religião, por meio de manuais dirigidos às
mães que eram utilizados também como guias para o trabalho das jardineiras. Um
exemplo desses manuais é a obra de Froebel intitulada: Cantos e conversas de mãe,
de 1848. Este livro é constituído em sua primeira parte de sete conversas e canções
de mãe, pelas quais o autor pretendia levar as mães a perceberem as delícias e a

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 171


importância de seu dever maternal, vendo o filho recém-nascido como um presen-
te inefável de Deus, “podendo, por conseguinte, a autora de tal vida melhor
conscientizar-se de sua sublime e divinal dignidade e vocação de mãe” (Froebel
apud Koch, 1985, p. 69). Ao destinar esse manual, indistintamente para mães e
para jardineiras, Froebel começa a definir esta mulher não como uma profissional
mas como uma “meia mãe”, que entende dos interesses e necessidades da criança
mas possui essencialmente um “coração de mãe” a nortear sua conduta.
Montessori, no início do século XX, absorve o mito da maternidade como
fonte da educadora nata da criança de zero a seis anos, acrescentando a esse mito
a psicologia do desenvolvimento, que forneceria a cientificidade necessária para que
esta mulher, de simples jardineira, se elevasse à categoria de mestra, tal como foi
chamada por Montessori (1969, p. 145). Ao mesmo tempo em que operava este
acréscimo, Montessori estabelecia, de forma radical, que a função da mulher não é
a de ensinar, mas apenas orientar e facilitar o processo de aprendizagem e, em
decorrência disso, não caberia dar ênfase à formação teórica desse profissional, pois
o grande condutor do cotidiano escolar seriam os interesses e necessidades das
crianças com as quais a mestra trabalha.

Ela ensina pouco, mas observa muito; além do mais, sua função consiste em dirigir
as atividades psíquicas das crianças bem como seu desenvolvimento fisiológico.
(Montessori, 1969, p. 156)

A autora criou um método de trabalho embasado nas fases de desenvolvimen-


to da criança e suas necessidades. A partir desse pressuposto definiu como deveria
ser a profissional para atuar com seu método e estabeleceu que a sua formação não
deveria caracterizar-se pelo conhecimento teórico, mas por um processo de
autoformação, incluindo o treino e o aperfeiçoamento das seguintes aptidões: ob-
servação, calma, paciência, humildade, autocontrole, praticidade, delicadeza.
Montessori, além de atribuir a esta mulher o caráter de coadjuvante no pro-
cesso educativo e valorizar características pessoais em detrimento da competência
profissional, ainda afirmou que a mesma deveria compartilhar a educação com o
ambiente, constituído de vários materiais que propiciassem a auto-educação da
criança. As virtudes e não as palavras se constituiriam na sua máxima preparação. A
autora insistiu muito que a professora deveria possuir caráter e moral inabaláveis os
quais deveriam fazer parte de sua preparação moral, incluindo fé na criança.
Seguindo o princípio de que esta mestra, ou “professorinha”, como ela é por
vezes chamada no cotidiano das salas de educação infantil, desenvolve um papel
coadjuvante no processo de ensino-aprendizagem, a autora chega a afirmar que a

172 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


professora deveria possuir uma preparação à semelhança de uma evolução espiri-
tual, mediante estágios assim estabelecidos (Montessori, 1989, p. 298-9): primeiro
estágio: a professora dever ser a guardiã e guardadora do ambiente, por isso ela
deve se concentrar no ambiente ao invés de se distrair com as crianças; segundo
estágio: a professora deve seduzir as crianças, atrair sua atenção para a realização
das atividades; terceiro estágio: tão logo inicia-se a concentração nas atividades, a
professora deve organizar as condições ambientais para que a criança possa agir de
forma autônoma. Este terceiro estágio traz para a autora o maior indício do sucesso
do trabalho da professora, que consiste em poder dizer a seguinte frase: “Agora as
crianças trabalham como se eu não existisse”.
Montessori chega ao extremo de indicar o sucesso da professora em uma
frase em que a compara com a empregada doméstica, a serva. Fecha-se, desse
modo, o ciclo, e essa mulher escraviza-se definitivamente perante o ser criança,
seus desejos e necessidades, para não perturbar seu desenvolvimento:

Ainda que a relação entre crianças e professora seja no campo espiritual, a professo-
ra pode, através de seu comportamento, encontrar um bom exemplo na boa do-
méstica. Ela mantém em ordem as vassouras do patrão, porém não lhe diz como
deve usá-las; prepara com cuidado a sua comida, mas não lhe manda comê-la; apre-
senta bem a refeição e depois desaparece. Assim devemos nos comportar com o
espírito em formação da criança: quando esta demonstra desejo, devemos estar
prontos para satisfazê-lo. A empregada não vai incomodar o patrão quando ele está
sozinho; se porém, é chamada por ele, apressa-se em saber o que deseja e respon-
derá: “Sim Senhor”. Admira se lhe pedem para admirar algo e diz: “Como é lindo”,
ainda que não consiga ver beleza alguma. Do mesmo modo, quando uma criança
faz um trabalho com grande concentração, não devemos nos interpor, porém se
mostra desejar a nossa aprovação, devemos dá-la generosamente. (Montessori, 1989,
p. 302)

Froebel e Montessori, em seus trabalhos, transportam e aperfeiçoam a figura


da pessoa que atua com crianças menores de seis anos, agregando um atributo a
mais ao mito da maternidade e da mãe como educadora nata, o fato de que ela
deve conhecer o desenvolvimento infantil, delegando status de cientificidade a este
trabalho ao se utilizar da psicologia do desenvolvimento. Conseqüentemente, tais
autores iniciam o processo de psicologização da formação da profissional/mulher.
A ambigüidade entre o doméstico e o científico chega até os dias de hoje em
que, no cotidiano da educação infantil, predomina a utilização de termos como
“professorinha” ou “tia”, que configuram uma caracterização pouco definida da pro-
fissional, oscilando entre o papel doméstico de mulher/mãe e o trabalho de educar.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 173


Assim, essa mulher/mãe não chega a ser professora devido à proximidade extrema
que seu trabalho possui com o doméstico e o privado (toda mulher teria adorme-
cidos dentro de si os dons da maternidade e de educadora da primeira infância); e
por outro lado não chega a ser mãe, pois, biologicamente, não foi ela a responsável
por todas aquelas crianças que ficam sob seus cuidados. Essa fusão entre mãe e
professora é sintetizada na bastante conhecida utilização do termo “tia”.
Como analisa Novaes (1987), a “tia” é vista como uma substituta da mãe,
pessoa adequada para o trabalho feminino de cuidar de crianças pequenas, de pre-
ferência jovem, solteira e possuidora da moral inabalável pregada por Montessori.
Chamá-la de mãe não seria possível, mas associá-la a outro membro da família
atenuaria o choque da separação da mãe, aliviando, ao mesmo tempo, a culpa
sentida pela mãe de ter que abandonar seu filho nas mãos de uma pessoa estranha.
Ninguém melhor do que a “tia”, que não está relacionada à figura terrível da profes-
sora, pois a tia é boazinha, sendo conhecida da criança e simbolizada na família
como aquela figura secundária, geralmente celibatária, que passa sua vida a exercer,
por meio dos cuidados com os sobrinhos, a maternidade que não pode ter.
Por não ser aquela que dá à luz a criança e que amamenta, essa mulher passa
a ser a que cuida com carinho, paciência, amor e bondade, caracterizando-se como
uma personagem secundária, à qual não cabe, portanto, a tarefa de ensinar, deven-
do evitar a todo custo que a criança sofra por sentir-se separada de seu lar. A sala da
“tia” deve ser um locus que dá continuidade à vida doméstica da criança e junto com
o ambiente e seu mobiliário essa mulher deve-se colocar simplesmente como algo
a mais a auxiliar o desenvolvimento infantil.

A REPRODUÇÃO DO MITO NAS PUBLICAÇÕES OFICIAIS

Galgando o caminho da pesquisa e a busca dos porquês percebi que, parcial-


mente, encontrei algumas respostas após o estudo do exposto neste trabalho, mas
havia ainda a necessidade de, ao menos, caracterizar alguns dos muitos elos media-
dores entre a presença do mito da mãe/mulher como educadora nata nos clássicos
europeus da educação infantil e a constatação da existência desse mito no cotidiano
da educação infantil na atualidade brasileira. Alguns fatos da realidade da educação
infantil no Brasil chamavam minha atenção, como a falta de preocupação em formar
profissionalmente a pessoa que iria atuar nesse campo da educação, a grande quan-
tidade de diagnósticos apontando a desqualificação dos profissionais e a extensiva
gama de programas de educação baseados no trabalho voluntário, principalmente
de mães.

174 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


Esses fatos refletem-se até mesmo no número de cursos em nível de tercei-
ro grau que se destinam à formação deste profissional. Segundo Brzezinski (1996,
p. 9), a análise de dados do Estado de São Paulo indica que, da maioria das univer-
sidades federais e as estaduais do interior paulista, apenas 20% oferecem habilita-
ção específica para a formação do profissional que deve atuar na educação infantil;
em contraposição, 65% dos cursos destinam-se à formação de profissionais para
atuarem nas séries iniciais do primeiro grau. Se formos pensar na formação do
profissional que atua em creches, essa minguada estatística reduz-se a quase zero.
O maior reflexo dos números encontra-se na sala de aula, pois segundo documen-
to resultante de pesquisa realizada pelo MEC/Coed (Brasil, 1994), a maioria (56%)
do pessoal docente que ocupa o cargo de professor na área de educação infantil é
de professores formados apenas pelo magistério, não explicitando o documento se
possuem habilitação específica para tanto. Poucos (15,7%) possuem licenciatura,
sendo que também não se esclarece se essa licenciatura é específica ou não (Brasil,
1994, p. 14). Um outro fator também aparece com muita força:

Há, entretanto, um percentual bastante elevado – 18,9% – de postos docentes


ocupados por professores que não possuem segundo grau completo e que podem
ser considerados leigos, “lato sensu”. (...) Várias unidades da federação mostram
taxas muito elevadas de professores leigos: eles ocupam mais de um terço dos pos-
tos docentes em sete estados (Ceará, Tocantins, Pará, Paraíba, Maranhão, Roraima e
Alagoas), chegando a ultrapassar 74% no Ceará e 56% no Tocantins. (Brasil, 1994,
p. 14)

Esses fatos levaram-me a analisar documentos produzidos pelo Ministério da


Educação e Cultura – MEC – e pela Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetiza-
ção – Mobral –, dirigidos aos profissionais da educação de crianças menores de seis
anos, procurando verificar a existência de um processo de reprodução, nesses do-
cumentos, do mito da mãe/mulher como educadora nata. Com essa finalidade
foram selecionados os seguintes registros: os dois volumes intitulados Atendimento
ao pré-escolar (Brasil, 1977), o manual Vivendo a pré-escola (Mobral, 1982), três
volumes da publicação Tema para reflexão (Mobral, 1983, 1983a, 1983b) –
direcionados aos monitores – e exemplares da revista Criança, desde seu lança-
mento em 1981 até 1988. Esses documentos foram selecionados por conter orien-
tações diretas sobre como deve trabalhar o profissional que atua com crianças me-
nores de seis anos. Para realizar a análise, utilizei os pressupostos esboçados neste
texto, lendo cada documento e identificando as questões relacionadas ao mito da
mulher/mãe como educadora nata. Defini tais documentos como “manuais”, pelo

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 175


fato de apresentarem um conteúdo composto de justaposições de fragmentos ex-
traídos de diversas teorias, redigido de forma simplificadora não só para facilitar a
leitura mas também para dispensar a necessidade de posteriores estudos e
aprofundamentos teóricos. Tais documentos assemelham-se a receituários, isto é,
são seqüências de passos, ou de atitudes, que devem ser seguidas para que o traba-
lho dê certo, estando delas ausente a reflexão teórica a respeito dos motivos e
finalidades que justifiquem o trabalhar de uma determinada forma e não de outra.
Para compreender o discurso oficial nos documentos mencionados, é neces-
sário recordar a função designada a um dos tipos de educação à faixa etária de zero
a seis anos no Brasil na década de 60, isto é, os centros de recreação. Em 1967, o
Departamento Nacional da Criança – DNCr – realiza, no Rio de Janeiro, o Primeiro
Congresso Interamericano de Educação Pré-Escolar, do qual retira as idéias necessá-
rias para elaboração do Plano de Assistência ao Pré-Escolar, documento que apre-
sentou propostas de educação em massa de crianças e que irá marcar as diretrizes
elaboradas pelo MEC durante as décadas de 70 e 80 para a educação pré-escolar.
Rosemberg (1992) aponta que o DNCr justificava a educação de massa pro-
posta porque a formação de escolas maternais e jardins-de-infância traria um ônus
elevadíssimo para o Estado, impedindo que a maior parte da população fosse aten-
dida. A solução encontrada foi a criação dos centros de recreação:

A “solução intermediária oferecida” são os Centros de Recreação que deveriam


apresentar as seguintes características: criação de unidade simples, em forma de
galpão, abrigadas pelas igrejas... visando atender as necessidade físicas e psicossociais
dos pré-escolares... O pessoal para trabalhar nestes centros “sendo o mínimo indis-
pensável, recrutado entre as pessoas de boa vontade, à base do voluntariado, reser-
vando-se o pagamento para alguns técnicos necessários à supervisão e coordenação
dos serviços cujos encargos são de maior responsabilidade”. (Rosemberg, 1992,
p.24, destaques do original)

Utilização de espaços ociosos ou cedidos por outras instituições, uso de pes-


soal voluntário, cujo critério primordial para seleção é a boa vontade, são fatores
que marcarão profundamente a educação infantil no Brasil nas décadas de 70 e 80.
Trabalho voluntário será a tônica dos discursos direcionados ao profissional que
deverá atuar com crianças menores de seis anos, terminando, desse modo, por
caracterizar a sua não-profissionalização.
Nesse ponto o mito da mãe/mulher educadora nata é posto a serviço de
interesses políticos e econômicos governamentais. As décadas de 70 e 80 são
marcadas por uma grande demanda e por lutas em prol da expansão da educação

176 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


pública a crianças menores de seis anos. A ausência, por parte do MEC, de uma
definição sobre o percentual a ser gasto com esse tipo de educação, bem como
sobre a atribuição da responsabilidade, abriu espaço para que a expansão dessa
modalidade educacional fosse realizada da forma mais barata possível. Uma das
estratégias para diminuir custos veio a ser justamente a utilização do trabalho volun-
tário de mães, que foi respaldada pelo mito discutido neste artigo.
Um exemplo dessa modalidade de educação foram os trabalhos do Progra-
ma de Assistência ao Pré-Escolar – Proape –, iniciados em 1977, em Recife, com
apoio do Instituto Nacional de Alimentação. A tônica de sua educação era voltada
para o assistencialismo puro, a educação realizada em espaços ociosos da comuni-
dade, onde mães auxiliavam professoras a cuidarem de cem a duzentas crianças de
uma só vez. A participação voluntária das mães era defendida com veemência pelo
MEC em uma publicação intitulada Textos sobre educação pré-escolar (Brasil, 1981),
sustentando o argumento de que junto de professoras especializadas, preocupadas
com currículos e novas teorias, as crianças perderiam gradativamente a infância, ao
passo que na companhia das mães ocorria o contrário, pois elas, além de conhece-
rem seus filhos, estariam mais preocupadas com o cuidado do que com a educação.

– O que a senhora faz no Proape? – “Eu recreio com eles, lavo as mãos, dou tarefas
aos meninos, recolho o material, limpo o chão quando eles sujam, boto no sanitá-
rio, faço a roda com eles, pulo corda...”. (...) Não precisamos transformar as mães
em professoras. Elas precisam ser e continuar como mães, cumprindo seu papel ma-
ternal, sendo as responsáveis últimas pelos filhos. É importante que elas dotem o
grupo de 100 crianças que se congregam todos os dias nessa área livre, da sensação
de estarem numa família, pais, filhos, muitos irmãos e amigos. (Brasil,1981, p. 45-7)

O Proape reafirma o exposto a respeito do profissional que deveria atuar


com crianças nos centros de recreação, acrescentando que este profissional deveria
ser retirado dentre as mães da comunidade, que não precisariam tornar-se profes-
soras, pois apenas cumprindo seu papel maternal de responsáveis pelos filhos rea-
lizariam perfeitamente a educação. Mães, amadorismo, antiprofissionalismo,
voluntariado, com o Proape, encontram o eco necessário para assumir o lugar co-
mum, dando a impressão de que em toda mãe existe uma educadora nata. A justi-
ficativa para tal método de educação recairá sempre sob a necessidade de expansão
deste, que só seria garantida se os custos fossem os mais baixos possíveis.
Para exemplificar as análises que realizei dos documentos do MEC, apresen-
to a publicação, em dois volumes, intitulada Atendimento ao pré-escolar. Esses vo-
lumes foram lançados com o intuito de capacitar a professora pré-escolar. O pri-

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 177


meiro tem como pontos de discussão os seguintes temas: “A Criança pré-escolar”,
“Educação pré-escolar”, “Acompanhamento e avaliação” e “O Educador”. O segun-
do volume possui como tema: “Higiene, nutrição e saúde ao pré-escolar”. A epígrafe,
no primeiro volume, de uma passagem evangélica, deixa clara a presença do espíri-
to de doação e desprendimento das coisas materiais com o qual este profissional
deveria atuar:

Jesus lhe perguntou sobre o que haviam discutido no caminho. Eles se calaram,
porque no caminho haviam discutido entre si sobre quem seria o maior. Sentando-
se, Ele chamou os doze, e lhes disse: Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o
último de todos e o servidor de todos. E tomando uma criança, colocou-a no meio
deles, e abraçando-a, disse-lhes: Quem recebe uma destas crianças em meu nome,
a mim me recebe, e quem a mim me recebe não é a mim que recebe senão àquele
que me enviou. (Brasil, 1977, p. 9)

Ao colocar o servir em primeiro plano, o documento inicia com uma exaltação


da beleza da alma do professor que coloca a serviço das crianças o seu eu, a dedi-
cação, o carinho, o amor, o sorriso, a força, a atenção e a esperança. Vale registrar
estas palavras:

É bom aprender com você a beleza essencial do seu trabalho junto às crianças.
Quem o observa pode ficar emocionado com a grandeza de alma de um educador
pré-escolar. Onde você vai buscar tanta sensibilidade, tanto jeito? Talvez nos olhos
das crianças... na pureza de sua alma, na simplicidade de sua confiança. Ou talvez na
consciência de que sob corpos enfraquecidos pelas carências ambientais se esconde
uma alma maior do que o mundo. (Brasil, 1977, p. 9)

A exaltação do servir, do desprendimento das coisas materiais, da presença


do espírito de doação, podem ser muito bem entendidas quando se tem um incen-
tivo ao trabalho voluntário de mães, como no caso do Proape, que nada recebiam
para realizá-lo, atuando somente com suas características maternais, sem formação
específica para tanto. Desse ponto de vista, ressaltar características pessoais e associá-
las à divindade convém, quando se pauta a educação no amadorismo e no não-
profissionalismo, calando de imediato qualquer forma de organização dessas mu-
lheres por salários e formação.
Esta citação faz lembrar a imagem propagada por Froebel do papel da educa-
dora pré-escolar baseado no da mãe que, guiada pelo seu instinto maternal, educa.
A jardineira deve possuir as qualidades da mãe para que o trabalho ocorra, qualida-
des que envolvem amor, doação, comportamento servil, sensibilidade. A estas o

178 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


documento atrela ainda o “jeito” para realizar o trabalho, deixando nas entrelinhas
que não é necessário nada mais para obter-se uma formação adequada que levaria
à profissionalização da educação.

Ao longo dos anos, sobre experiências duras e contrastantes, muitas vezes, você vai
alcançando a sabedoria. A sabedoria que você conquista pela dedicação e pelo amor,
pela coragem de doação. (...) Finalmente, parafraseando Maurice Bèjart podemos
dizer: “Se você é capaz de brincar, rir, cantar, extroverter-se com uma criança, você
alcançou a liberdade.” (Brasil, 1977, p.23)

Os dois livros, definidos pelo MEC como manuais (Brasil, 1977, p. 19), são
os primeiros a ser dedicados ao professor, possuindo duas finalidades distintas:
“a) auxiliar os educadores pré-escolares nas suas atividades diárias junto às crianças;
b) servir de apoio nos cursos e treinamento de pessoal”. Durante a apresentação
dos livros as duas finalidades são detalhadas em um item intitulado “Que deseja-
mos que esses livros sejam?”:

Pensamos que esses livros podem ser usados por você como referência ao seu
trabalho diário, como orientação ao planejamento das atividades pré-escolares, como
fonte de estudo, onde você pode ampliar seus conhecimentos, como dispositivo de
experiência, enfim, como material de apoio. (Brasil, 1977, p. 20)

Cabe ressaltar que o documento não possui preocupação alguma em trazer


teorias ao profissional da área, já que a formação proposta deve ser breve. Portan-
to, a linguagem utilizada em todo o documento classifica-o como um manual, um
receituário para o educador pré-escolar:

Não pretendemos teorizar, discutir idéias ou argumentar sobre pontos de vista.


Falamos sobre a situação real de um educador pré-escolar junto às crianças. A expe-
riência nos demonstrou que essa atitude é válida também nos treinamentos de pes-
soal. Os treinamentos geralmente são breves e têm objetivos bem definidos. A
teoria que queira ensinar deve partir de uma dada situação sobre a qual o treina-
mento trabalhe. (Brasil, 1977, p. 21)

Treinar é a palavra-chave do trabalho proposto nos textos. Treinar sem o


mínimo de conhecimentos necessários, apenas prescrições para a prática, fato que
se reforça quando o texto define o profissional como um auxiliar. Quem tem a
função de auxiliar não necessita de conhecimentos profundos, muito menos de
teoria. Mais uma vez a principal função do professor, a de ensinar, está fora das
atribuições desse profissional: “desejamos a você muito êxito na tarefa de auxiliar as

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 179


crianças pré-escolares a fazerem sua educação de modo correto e com a maior
amplitude possível” (Brasil, 1977, p. 23).
Observe-se ainda que o item “A Criança pré-escolar”, no qual são apresen-
tadas de forma esquemática as características de cada fase do desenvolvimento
infantil, apresenta um texto típico de manuais, em que não se definem as matrizes
teóricas. A psicologia do desenvolvimento é descontextualizada, desaparecem os
pesquisadores que vêm construindo-a e ela é reduzida a um mero receituário.
O documento apresenta, ainda, as atividades e os materiais a serem confec-
cionados pelo professor. Mais uma vez o receituário se faz presente, não há nenhu-
ma reflexão a respeito da utilização dessas atividades e sua relação com possíveis
conhecimentos científicos. Ao final sugere-se, com modelos, uma forma de avalia-
ção mediante fichas, medidoras do desenvolvimento infantil, cuja escolha não é
justificada. Tais fichas aparecem divididas por idade e baseadas na descrição do de-
senvolvimento infantil apresentada pelo documento.
Ao final do primeiro livro há um capítulo inteiro dedicado ao profissional da
educação infantil, definido, nesse caso, como educador. São estabelecidas como
funções do educador, além das descritas no documento do MEC (Brasil, 1977,
p.185-6), orientar, facilitar e auxiliar o desenvolvimento infantil. Mais uma vez, são
abertas as portas para o trabalho voluntário quando no mesmo documento justifica-
se que, devido à escassez de recursos humanos especializados, não se deve deixar
de recorrer a paraprofissionais e voluntários, desde que estejam devidamente trei-
nados (Brasil, 1977, p. 186).
Apesar de no documento utilizar-se o termo educador, quando se determina
quem deverá participar destes treinamentos o caráter de ser mulher para atuar na
pré-escola se faz presente:

No recrutamento é aconselhável que se aceitem elementos do sexo masculino para


alguns cargos (administrativos, de serviços gerais e outros), pois considera-se indis-
pensável a presença de homens em programas pré-escolares. Para as atividades que
implicam cuidados diretos e ininterruptos com as crianças, é preferível que se recru-
tem mulheres, visando facilitar a formação de laços afetivos que permitam a melhor
adaptação da criança à unidade pré-escolar, e o seu conseqüente afastamento da
mãe. (Brasil, 1977, p.186)

Segundo o documento, o educador da pré-escola necessita ser uma mulher/


mãe, possuidora de conhecimentos de psicologia do desenvolvimento, nutrição e
saúde e que exerça a função de orientadora,facilitadora e/ou auxiliar,não necessitan-
do ser especializada na área, pois o trabalho voluntário é bem-vindo. Ao final do

180 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


primeiro manual temos um acréscimo de outros atributos necessários a essa educa-
dora:

...ter-se-á que apontar algumas atitudes consideradas importantes para garantir um


bom relacionamento adulto-criança:
- Flexibilidade – capacidade de adaptar-se a diferentes situações e de aceitar idéias e
sugestões dos demais adultos e crianças
- Senso de humor – ao enfrentar as situações por vezes desagradáveis (...)
- Juventude – o educador pré-escolar deve ser jovem (...)
- Curiosidade – que faça do educador um eterno aprendiz pronto para novas des-
cobertas, incutindo nas crianças, pelo exemplo, o entusiasmo pelo saber, pelo
pesquisar, pelo descobrir;
- Capacidade de amar – e de manifestar seu amor através de um profundo respeito
pela criança, pela aceitação da sua individualidade e, principalmente, através da justi-
ça e da imparcialidade. (Brasil, 1977, p.197)

A estas características outras se aliam como: possuir voz agradável, saber rir,
ser bonita (!), ser sincero; em nenhum momento se exige desse profissional que ele
seja um estudioso, um intelectual. O amor e a doação ilustram todo o trabalho.
Tais características, presentes no documento mencionado como exemplo,
são comuns aos demais documentos analisados. Essas características são marcadas
pela não-profissionalização, espontaneidade, utilização de trabalho voluntário, ne-
gação da teoria, exacerbada valorização da imagem de que a mulher é uma educa-
dora nata, valorizando assim seus atributos pessoais em detrimento da formação
acadêmica, além do reforço de que educar e cuidar pertencem ao mundo privado,
doméstico, das mulheres, que são as únicas possuidoras do “coração de mãe”,
definidos nos moldes de Froebel. Gostaria de ressaltar que na história da educação
infantil no Brasil outros autores, que datam do início do século XIX, já salientavam
aspectos defendidos com firmeza pelo documento analisado; um exemplo desse
material pode ser encontrado em Khulmann (1990), que analisa a expansão dessa
proposta educacional no Brasil, ao citar Moutinho, cujo livro sobre a creche apre-
sentava a importância da educadora como figura maternal para a formação dos
corações pequeninos.

Da escolha da educadora das creches depende essencialmente o futuro da socieda-


de. A educadora das creches representa o papel da mãe de milhares de crianças;
tem, como a mãe, de formar milhões de corações. (Moutinho, apud Khulmann,
1990, p. 91)

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 181


As análises realizadas nessa pesquisa e exemplificadas pelo documento apre-
sentado levaram à conclusão de que, a todo momento, tem-se reforçado a imagem
do profissional para a educação infantil por intermédio da mulher “naturalmente”
educadora nata, passiva, paciente, amorosa, que sabe agir com bom senso, é guia-
da pelo coração, em detrimento da formação profissional. A não-valorização sala-
rial, a inferioridade perante os demais docentes, a vinculação do seu trabalho com o
doméstico, o privado e a deficiência na formação aparecem como resultado, entre
outros fatores, dessa imagem, que traz na sua base a divulgação de uma figura
profissional que não consegue desvincular-se dos mitos que interligam a mãe e a
criança.
O mito encontra, no escamoteamento de uma educação ruim, terreno fru-
tífero para reproduzir-se, empurrando a educação de crianças menores para o
amadorismo, a improvisação, o vale-tudo, conduzindo o profissional de campo da
educação a se afastar cada vez mais da condição de professor: que ensina, deve
possuir competência (que supere a improvisação, o amadorismo e a mediocrida-
de), tenha precisão técnica, rigor filosófico e disciplina metodológica, criatividade e
criticidade na forma de entender e trabalhar o conhecimento conforme o contexto
em que foi produzido.
Por fim, destaco que a realização dessa pesquisa mostrou-me a necessidade
de aprofundar a crítica ao processo de naturalização da educação infantil, processo
esse já presente no mito discutido neste artigo, o qual opera a naturalização tanto
do papel de mãe como do papel de professora de educação infantil. O processo de
naturalização da educação infantil, que resulta, entre outras coisas, na descarac-
terização do papel do professor e na secundarização do ensino, tem também ou-
tras origens, como o fato de a psicologia do desenvolvimento, em suas vertentes
organicistas, ter-se tornado o guia central do professor de crianças de zero a seis
anos. Esse é, porém, tema para outro trabalho.

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184 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


TEMAS EM DEBATE

SOBRE O CONCEITO DE “CAPITAL HUMANO”

VANILDA PAIVA
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Estudos da
Cultura e Educação Continuada
vpaiva@montreal.com.br

RESUMO

O artigo aborda a retomada do conceito de capital humano nas últimas décadas no contexto da
hegemonia de organismos multilaterais mais diretamente vinculados ao pensamento e aos inte-
resses norte-americanos na área educacional, e de demandas que resultam da reestruturação
produtiva e sociocultural na Nova Era Capitalista. Ressalta a amplitude das noções metafóricas
dele derivadas (Bourdieu e outros) e indica o trecho dos Grundrisse em que Marx refere-se ao
homem como sendo o próprio capital fixo criado pelo desenvolvimento de suas capacidades no
tempo livre.
CAPITALISMO – EDUCAÇÃO – MARX, KARL – SOCIALISMO

ABSTRACT

ON THE CONCEPT OF “HUMAN CAPITAL”. The article treats the retaking of the concept of
human capital in recent decades in the context of the hegemony of the multilateral organizations
more directly linked to the North American thinking and interests in the educational area and the
demands which have resulted from the productive, social and cultural restructuring of the New
Age of Capitalism. It highlights the breadth of the metaphorical notions derived from it (Bourdieu
and others) and cites the excerpt from the Grundrisse in which Marx refers to humans as fixed
assets created by the development of their abilities in their free time.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 julho/ 2001


p. 185-191, 185
O conceito “capital humano” reaparece nos anos 80 na mesma forma assu-
mida nos anos 40 e 50 – e amplamente difundida no Brasil nos anos 60, em espe-
cial, pelo livro de Theodore Schultz (1962) – no bojo de uma economia da educa-
ção que remete à desenvolvida em razão do “terceiro fator”, supostamente res-
ponsável pelo resíduo de crescimento econômico que não se deixava explicar pelo
capital fixo empregado. Não que a economia da educação tivesse nascido no pós-
guerra. Mas ela ganhou importância em conexão com o peso adquirido pela educa-
ção como fator de desenvolvimento, este transformado no tema central do perío-
do. A educação passou a ser vista, simultaneamente, como o motor das “etapas do
crescimento econômico” e do atendimento aos planos de desenvolvimento socia-
lista. As próprias metodologias entrelaçaram-se porque métodos tipicamente capi-
talistas, como o da demanda social ou da análise custo-benefício, passaram a ser
usados junto com diagnósticos que pretendiam identificar não só a disponibilidade
de força de trabalho qualificada, mas a demanda futura da economia, e projetaram
as características do sistema de educação e seu output, de modo a poder propor
modificações capazes de oferecer a qualificação necessária no tempo devido. Para
tanto, o man-power approach, método gerado nas economias socialistas, pareceu
bastante adequado e não foram poucas as tentativas de combiná-lo aos demais
levados a cabo nos anos 60 e 70 em diversos países capitalistas.
Essas idéias foram perdendo a força, em grande medida porque o crescimento
inercial do sistema de educação, não apenas terminava, bem ou mal, por atender à
demanda, como também devido ao fracasso das tentativas de planejamento no
Ocidente. A partir dos anos 70, dominou a idéia de que elas eram capazes de ter
êxito somente na área socialista, convicção que saiu bastante combalida da percep-
ção mais clara da realidade dos países da Europa Oriental após a queda do Muro de
Berlim. O que se pode dizer como conclusão desta vasta experiência em ambos os
sistemas político-econômicos é que todo e qualquer planejamento possui um nível
de indeterminação elevado e que o balanço final de planos implementados mostra
resultados bastante diversos das intenções iniciais (Offe, 1990).
No entanto, apesar das vicissitudes do planejamento educacional, a econo-
mia da educação foi retomada, nos anos 80, pelo Banco Mundial, e a própria idéia
de planejamento foi ressuscitada muito recentemente pela Universidade de Harvard1

1. Compatível com o pragmatismo norte-americano, a prestigiosa Universidade de Harvard


tornou-se, desde os anos 80, um importante centro de pesquisa e influência sobre a América
Latina na área educacional, por meio de projetos que contam com financiamento da United
States Association for International Development – Usaid.

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como ferramenta ainda importante para os países periféricos, visando racionalizar a
alocação de recursos no sistema educacional. Por um lado, a retomada da eco-
nomia da educação ocorre dentro dos parâmetros clássicos, mesmo que se enfa-
tizem as noções de “investimento individual” e a formação de um “capital social”
(Haucap, Wey, 2000). Por outro, porém, modificou-se o quadro dentro do qual a
educação continua sendo importante para o bem-estar dos povos e para responder
às novas demandas da economia, modificando as equações clássicas entre educa-
ção e vida econômica (Paiva, 1999). Já existia, nos anos 80, clareza a respeito da
necessidade de elevados níveis de escolaridade (efetiva, eficiente) para possibilitar
um enfrentamento adequado das novas características que o capitalismo estava ad-
quirindo. À proporção que se avança nos anos 90, trata-se menos de medir a con-
tribuição da educação para o crescimento econômico, mas de pensar como tornar
a aprendizagem adequada para responder a um mundo cada vez mais complexo.
A educação básica torna-se o cerne do problema porque de sua eficiência
dependerá toda a formação futura, além de constituir um patamar mínimo necessá-
rio à vida contemporânea. Do ponto de vista do trabalho (assalariado ou não) níveis for-
mais mais elevados de escolaridade começam a ser exigidos, seja do ponto de vista
da diplomação, seja do ponto de vista de conteúdos. Ao mesmo tempo, num mun-
do em que o diploma deixou de constituir um bem raro, seu valor caiu, estabele-
cendo-se muitas vezes a competição na área não escolar por parâmetros não educa-
cionais, mas práticos – que dizem respeito a ser capaz de desempenhar melhor tal
ou qual tarefa, essa ou aquela função. O papel socializador da escola e das próprias
famílias adquiriu outro peso, uma vez que as características pessoais dos indivíduos,
o lado subjetivo da qualificação, bem como as qualidades individuais tornaram-se
mais clara e visivelmente decisivos ao bom andamento dos negócios. Assim, a nova
economia da educação remete à antiga, mas lida com situações bastante diferentes.
Em tal contexto é que se situa a recuperação do conceito de “capital huma-
no” – forjado a partir dos conceito de “capital fixo” (maquinaria) e “capital variável”
(salários). A simples idéia de aplicar a palavra “capital” a seres humanos, supondo
que eles se transformavam em “capital humano” para as empresas, feria profunda-
mente o humanismo que marcou o pensamento de esquerda no pós-guerra. O ser
humano não poderia ser nunca visto como portador de capital em si mesmo; me-
nos ainda ser ele mesmo, simultaneamente, capital (remunerado com salários) e
força de trabalho comprada no mercado pelo verdadeiro capital. Entre os
marginalistas, porém, o “capital humano” (capital incorporado aos seres humanos,
especialmente na forma de saúde e educação) seria o componente explicativo fun-
damental da black box (do desenvolvimento suplementar).

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 187


Ao longo dos anos 70, porém, as “espécies de capital” multiplicaram-se na
literatura de todos os coloridos. Para além da área estritamente econômica, da qual
provêm os conceitos básicos de “capital produtivo” (capital industrial ou agrícola) ou
“capital financeiro”, difundiram-se noções metafóricas como “capital de força física”
dos Estados, capital cultural, capital informacional, capital simbólico, como encon-
tramos na obra de Bourdieu (2000). As três últimas formas estariam incorporadas
ao capital humano que, cada vez mais, passou a depender não somente da educa-
ção formal mas de virtudes pessoais, competências diversas nem sempre depen-
dentes de aprendizagem sistemática, atitudes e disposições sociomotivacionais. A
medição de seu valor, tal como proposta em meados do século XX, mediante os
salários, perdeu muito do seu sentido. De um lado, pela conjunção: abundância de
diplomas mais contração do assalariamento. De outro, pela crescente importância
do lado intangível, formado por virtudes pessoais e características de personalidade,
bem como pela capacidade de aplicar, de maneira efetiva e original, no capitalismo
da era da informação, conhecimentos que antes eram assimilados de forma auto-
mática e sem conexão com o mundo real. A forma mais importante da força de
trabalho, o maior “capital humano” hoje é o intelecto.
Vale a pena citar extensamente, neste contexto, J. Gerschuny:

O conceito central empregado pelo modelo de Bourdieu é uma metáfora. Ou seja,


do mesmo modo que o comportamento de uma empresa é determinado pela
natureza e localização de sua planta física ou “capital”, o do indivíduo é determinado
pelo seu “capital humano”. Trata-se de um conjunto fixo de habilidades, experiência
e posição social (e geográfica) que... determina a ação individual. Mas, como no caso
das empresas, este “conjunto fixo” só é fixo num momento no tempo. O capital
atual de uma empresa é conseqüência de seu comportamento prévio. A pesquisa, o
marketing, o investimento, as conexões sociais, determinam o estado atual da fir-
ma... O mesmo vale para os indivíduos. Habilidades atuais, experiência, qualifica-
ções e conexões sociais constituem o capital humano economicamente relevante
do indivíduo e determinam suas opções de atividade econômica. Estas são, elas
mesmas, conseqüência do comportamento anterior. Conseguir um emprego, pas-
sar numa prova, dá acesso a um leque de oportunidades e o comportamento pré-
vio é conseqüência de detenção de capital econômico (um emprego anterior) ou
social (ex. rede pessoal de amigos e conhecidos), cultural (informações culturais
absorvidas ao longo da vida) ou ainda educacional, adquirido pela escolaridade...
aqui o termo “capital” não é mais uma metáfora... enquanto o capital perde valor
com o uso, o “capital humano” ganha; além disso, o investimento em “capital huma-
no” pode ocorrer de forma simultânea com o consumo e mesmo com o consumo
agradável. (2000, p. 85-6, tradução nossa)

188 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


Tais especificações geram, em si mesmas, um enquadramento da discussão
diverso daquele que dominou a rejeição humanística do conceito de “capital huma-
no”. Devemos, no entanto, a André Gorz (1997) a recuperação de algumas fórmu-
las da área marxista que abalam o preconceito contra a expressão capital humano.
E ele não se limita apenas a relembrar a anti-humanista “fórmula de Stalin” de que “o
homem é o capital mais precioso” (idem, p.18). Também recupera, da página 599
dos Grundrisse (atribuindo o grifo a Marx, que escreveu a expressão em inglês) a
seguinte citação:

...o tempo livre...pode ser considerado, do ponto de vista do processo de produção


imediata, como produção de capital fixo, sendo este capital fixo o próprio homem.
... o tempo livre permite ao indivíduo desenvolver suas capacidades (de invenção,
de criação, concepção e intelecção), as quais lhe conferem uma produtividade qua-
se ilimitada. A diferença entre o homen e o capital fixo está no fato de que seu
objetivo é enriquecer sua vida e não fazer crescer a capacidade produtiva, mas uma
leva cada vez mais à outra. (Idem, p. 151, tradução nossa)

O trecho original de Marx, na edição da Europäische Verlagsanstalt2, não


contém o grifo que aparece na citação de Gorz.
O que Gorz quer demonstrar é que o próprio Marx aceita a idéia de que o
homem pode ser visto como capital fixo encarnado, ou seja, em sua forma humana.
Com tal argumentação ele quer chegar aos dias de hoje, quando o conceito de
capital humano vinculado à educação foi, praticamente, ultrapassado por duas ra-
zões já aventadas neste texto: a disponibilidade de força de trabalho educada propi-
ciada pela revolução educacional da segunda metade do século XX e as caracterís-
ticas da Nova Era Capitalista3. Nesta Nova Era está à venda “toda a pessoa” (Gorz,

2. A edição da Europäische Verlagsanstalt – EVA –, uma conceituada editora alemã, não traz o
ano da reedição porque sua nota introdutória indica que se trata de uma cópia fotomecânica
da edição em dois volumes, preparada pelo Marx Engels Lenin Institut e impressa em Mos-
cou em 1939 e 1941. A EVA reuniu os dois num só volume de 1.102 páginas, composto do
Rohentwurf (Manuscrito) e do Anhang (Anexo). Integram o Anexo não apenas fragmentos,
plano da obra, anotações, mas também partes comentadas da principal obra de Ricardo.
3. O conceito de Nova Era Capitalista (Paiva, Calheiros, 2001) foi forjado como alternativa aos
conceitos de Era informacional (Castells, 1998), Era global (Albrow, 1997), Era do acesso
(Rifkin, 2000), os quais colocam num segundo plano a sobrevivência do capitalismo, seja por
uma opção teórica culturalista seja pela ênfase dada a mecanismos de funcionamento ou ao
tipo de base tecnológica dominante. O conceito de Nova Era Capitalista acentua o caráter
capitalista da transformação, sem dar por suposta a sobrevivência ou não do modo de produ-
ção capitalista com o seu desdobramento, e permite reconhecer a profundidade das mudan-
ças, capazes de levar a uma nova forma de produzir e de organizar a estrutura social.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 189


1997, p. 75), ou seja, há um “mercado da personalidade”, uma “mercadoria que
trabalha” e que se precisa saber vender. Vende-se, além disso, “um estado de espí-
rito, a disponibilidade ilimitada aos ajustes, mutações, imprevistos etc.” (idem, p.77).
O utopismo de Gorz é desde há muito conhecido; surpreende, portanto,
seu realismo recente. Realismo que o leva a rejeitar a idéia de que, nos dias que
correm, o trabalhador deixaria de se submeter a constrangimentos de ordem exte-
rior, seguindo a autodeterminação interna que passaria a definir as possibilidades e
as razões da ação produtiva. Diz ele:

Na base deste delírio teórico, cuja influência no meio marxista não é negligenciável,
encontramos sempre o postulado implícito de que a autonomia do trabalho engen-
dra ela mesma a exigência e a capacidade do trabalhador... a exercer a sua autono-
mia. Isto, evidentemente, não é nada: a autonomia no trabalho é muito pouco na
ausência de uma autonomia cultural, moral e política que a prolonga e que não
nasce da própria cooperação produtiva, mas da atividade militante e da cultura da
insubmissão, da rebelião, da fraternidade, do livre debate, da colocação radical em
questão e da dissidência que ela produz. (Idem, p.72, tradução nossa)

No seu conjunto, concluímos que entre preconceitos e “delírios teóricos”


oscila boa parte da vida intelectual, tratados, neste caso, no que concerne à relação
entre educação e economia. Se o preconceito contra o conceito de “capital huma-
no” – que, como demonstrado, não era compartido pelo próprio Marx – permeia
o pensamento à esquerda, este também se vê penetrado por razoável dose de
utopismo quanto ao futuro do trabalho, da educação e da vida dos homens. Mas, é
preciso reconhecer que poucos escapamos de alguns desses pecados em algum
momento da vida intelectual, nem mesmo Gorz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBROW, M. The Global age. Stanford: Stanford University Press, 1997.

BOURDIEU, P. Les Estructures sociales de l’économie. Paris: Seuil, 2000.

CASTELLS, M. The Information age. Oxford: Blackwell, 1998.

HAUCAP, J.; WEY, C. Social capital and economic development. In: ADJIBOLOSOO, S.
Shaping the course of history and development. Lanham: University Press of America, 2000. p.
21-42.

GERSCHUNY, J. Changing times: work and leisure in postindustrial society. Oxford: Oxford
University Press, 2000.

190 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


GORZ, A. Misères du présent: richesse du possible. Paris: Éditions Galilée, 1997.

MARX, K. Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie: Rohentwurf 1857-58 e Anhang
1850-57. Frankfurt: Europäische Verlagsanstalt, s/d.

OFFE, C. Sistema educacional, sistema ocupacional e política da educação: contribuição


à determinação das funções sociais do sistema educacional. Educação e Sociedade, n. 35,
p. 9-59, abr. 1990.

PAIVA, V. Nova relação entre educação, economia e sociedade. Contemporaneidade e Edu-


cação, v. 4, n. 6, 2º sem. 1999.

PAIVA, V.; CALHEIROS, V. Nova era capitalista e percursos identitários alternativos.


Contemporaneidade e Educação. Rio de Janeiro, n. 9, 1º sem. 2001.

RIFKIN, I. L’Era dell’acesso: la rivoluzione della new economy. Milano, Mondadori, 2000.

SCHULTZ, T. O Valor econômico da educação. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 191


RESENHAS

TEMPOS E LUGARES DE GÊNERO riados de diferentes arquivos, analisando as for-


Cristina Bruschini e Céli Regina Pinto (orgs.) mas das relações familiares e sociais à época, no
São Paulo: FCC, Editora 34, 2001, 325p. arraial do Tejuco, em Diamantina, o escravismo e
os poderes, os filhos e sua educação, e as formas
Esta coletânea reúne trabalhos seleciona- de superação de convencionalismos em uma so-
dos do VIII Concurso de Dotações para Pesquisa ciedade hierárquica. Ana Lídia debruça-se sobre
sobre Mulheres e Relações de Gênero realizado os trabalhos de mulheres e homens, no período
em 1998 pela Fundação Carlos Chagas, com apoio 1890-1910. Pergunta: “Quem eram afinal essas
financeiro da Fundação Ford. Os textos publica- mulheres anônimas que se dedicavam às ativida-
dos exprimem a maturidade de tratamento dessa des improvisadas, flutuantes e precárias, pelas ruas,
temática que, com certeza, foi marcada pela se- praças e mercados...?” Procurou, mediante os dis-
qüência de concursos, o primeiro tendo sido rea- cursos das diversas fontes utilizadas, dar visibilida-
lizado em 1978. Por intermédio deles não só fo- de às práticas de trabalho dessas personagens num
ram financiados centenas de projetos de pesquisa cenário de contrastes na Belém do final do século
ao longo desses 22 anos, como se ofereceram XIX e início do XX.
apoio e acompanhamento teórico e metodológico Dois outros textos tomam como base pes-
a tais projetos, a partir dos membros das comis- quisas realizadas por autores homens e se refe-
sões organizadoras compostas por especialistas de rem às interfaces sociais e suas implicações diver-
expressão nacional e internacional. sas, de mulheres e homens. Em “Homens e rela-
Os dez textos apresentados focalizam com ções de gênero entre sindicalistas de esquerda em
acuidade e fundamento questões de ponta para a Florianópolis”, Ari José Sartori começa por obser-
investigação científica nesse campo, trazendo pro- var que a participação de mulheres nas direções
blemas teóricos nas mais diferentes abordagens, de organizações sindicais tem sido, em geral, ra-
propiciando com isso uma contribuição sólida para refeita e descontinuada. Esse quadro, porém, tem
as discussões, análises e interpretações relativas a mudado, e isso o estimulou a estudar as relações
temas relevantes. Todos se referem a pesquisas e de gênero nesse espaço, procurando verificar se
trazem ricos aportes analíticos. Os autores pro- ocorrem alterações substanciais. Deixa claro com
vêm de diversificadas áreas de formação e atua- que conceito de gênero trabalha e com que pers-
ção profissional, sinalizando o caráter multidisci- pectiva de masculinidade aborda a questão, enve-
plinar das questões investigadas e de suas aborda- redando por uma análise de trajetórias de homens
gens. e mulheres no movimento sindical, trazendo à luz
Em “Chica da Silva: o avesso do mito”, de o significado da participação para homens e mu-
Júnia Ferreira Furtado, e no texto de Ana Lídia lheres nesse movimento em suas relações/ten-
Nauar Pantoja, “Trabalho de negras e mestiças nas sões. Já o trabalho de Marco Antonio Gonçalves,
ruas de Belém do Pará (1890 – 1910)”, a aborda- “Uma mulher entre dois homens e um homem
gem historiográfica sustenta reflexões densas e ri- entre duas mulheres:gênero na sociedade Paresi”,
cas inferências. No primeiro trabalho a autora pro- é parte de um projeto de pesquisa mais amplo
cura “conhecer Chica da Silva não como curiosi- sobre a produção e significado da diferença, em
dade, como exceção, mas, por meio dela, lançar termos de gênero e dismorfismo sexual, na socie-
luz sobre as demais mulheres de seu tempo, in- dade Paresi, e contém uma abordagem antropo-
serindo-as na história”. Percorre documentos va- lógica. A partir de reflexões sobre seu ideal de

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p. 193-203,
2001 julho/ 2001 193
endogamia, o fechamento dos grupos locais, a indi- to rural propostas para o Terceiro Mundo. O tex-
ferenciação interna, as questões de igualdade e to “Mulheres nas políticas de desenvolvimento
equilíbrio das relações na aldeia, a diferença e hos- sustentável” é denso em suas proposições teóri-
tilidade ao “outro distante”, analisa, mediante sua cas e permite à autora, realmente, como se pro-
mitologia, qual a origem da diferença no mundo e põe, “fugir das armadilhas de uma visão
o ciúme, trazendo à tona interessantes aspectos reducionista que polariza a condição da mulher
do tema pela problematização de cadeias de opo- rural, por um lado, vendo-a, no interior de um
sições tidas como naturais. Com isso desvela um modelo de desenvolvimento produtivista, irreme-
sistema simbólico intrincado, contribuindo para a diavelmente dominada, enquanto, dentro de um
compreensão do processo de construção do idên- modelo alternativo de desenvolvimento, ela teria
tico e do diferente entre os Paresi. a possibilidade de emancipação completa em re-
Em “Tecendo o fio e segurando as pontas: lação às suas fontes de opressão”. A tessitura que
mulheres chefes de família em Salvador”, Márcia faz entre teoria e dados obtidos em sua investiga-
dos Santos Macêdo traz estudo realizado com 26 ção sustenta robustamente suas considerações fi-
mulheres chefes de família em Salvador, de dife- nais, permitindo-lhe questionar elementos bási-
rentes características demográficas. O objetivo foi cos das duas perspectivas polarizadoras pelas quais
deslindar como a chefia familiar por mulheres acha- as mulheres têm sido enquadradas nas propostas
se interconectada com outros fatores como raça/ de desenvolvimento sustentável.
etnia, classe social, idade/geração. Realizou para Os avanços das mulheres no trabalho em
tanto entrevistas em profundidade e reconstrução diferentes espaços ocupacionais vêm sendo anali-
de histórias de vida, como também observações sados em inúmeros estudos, especialmente sob
do cotidiano de uma subamostra das entrevista- o ângulo da sua discriminação em certas áreas.
das. Este último procedimento agregou ao estudo Porém ainda há muito o que conhecer quanto a
dados mais densos, permitindo ir além de um ní- certos nichos em profissões nas quais, aparente-
vel apenas discursivo. O suporte teórico que utili- mente, a mulher não é mais tão discriminada. O
za para a análise dos dados está muito bem expos- artigo “Mulheres advogadas: espaços ocupados”,
to e é utilizado com rara acuidade. Sua opção por de Eliane Botelho Junqueira, adentra no mundo
“um ângulo plural de leitura da realidade” mostra- dos grandes escritórios de advocacia societária/
se fecundo, permitindo entender a heteroge- cível e de advocacia criminal, buscando conhecer
neidade do grupo de mulheres e compreender a mais a fundo o que ocorre na advocacia privada
diversidade de situações em que exercem a chefia na relação entre profissionais homens e mulhe-
de família, mesmo num contexto de um bairro de res. Para ela importou analisar não só as repre-
classe trabalhadora, sem esvaziar a dimensão polí- sentações das advogadas que já atuam nesse mun-
tica da questão em seus determinantes estruturais. do masculino, mas também as estagiárias. Entre-
Resta clara a importância de se compreender a di- vistas com essas permitiram perceber como as
versidade das experiências na dinâmica da consti- mulheres são socializadas na profissão. Amplia suas
tuição das mulheres em chefes de família. análises tentando verificar se o processo de parti-
Em outro contexto – o da zona rural – Ana cipação de mulheres, na perspectiva das relações
Louise de Carvalho Fiúza pesquisa a mulher rural de gênero, em grandes escritórios de advocacia
entre os pequenos agricultores familiares, objeti- aqui, assemelha-se ou não com o que acontece
vando elaborar uma ecocrítica desmistificadora de em outros países como os Estados Unidos, Aus-
perspectivas dominantes quanto à responsabilida- trália, Inglaterra e Canadá. As análises exploram
de pela degradação do meio ambiente, e desvestir muito bem vários dos fatores associados a esse
o fetiche que recobre a percepção da mulher e processo relacional, utilizando-se das entrevistas
sua representação nas políticas de desenvolvimen- e com aportes teóricos seguros. Termina seu tra-

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balho com uma esperança, “que esta pesquisa teiras da intimidade: uso de preservativo entre
contribua para a ruptura da cultura do silêncio. prostitutas de rua” apresenta um estudo compa-
Um silêncio que cala as discriminações e ignora as rativo de dois universos culturais, Porto Alegre e
diferenças”. São Paulo, que, segundo a autora, foi um trabalho
Tendo em vista que homens e mulheres realizado como uma pesquisa única, “na medida
têm sido atingidos diferencialmente pelo desem- em que cada um desses contextos ou universos
prego, Liliana Rolfsen Petrilli Segnini pesquisou tra- foi analisado como se estivesse formulando per-
jetórias e práticas sociais de trabalhadores em si- guntas ao outro e respondendo às questões por
tuação de desemprego ou de retorno ao mer- aquele formuladas”. O estudo, inserido no con-
cado de trabalho por intermédio de formas pre- texto das questões de prevenção de doenças se-
cárias de reintegração. No artigo “Constantes xualmente transmissíveis – DSTs-Aids –, entre
recomeços: desemprego no setor bancário”, bus- prostitutas de rua, traz instigantes análises quanto
ca caracterizar o significado social das experiên- a representações de doença e saúde, sentimen-
cias vividas por bancários(as), com escolarização tos diferenciados para com os clientes, demarca-
alta em sua maioria, que participaram de progra- ção entre vida profissional e vida pessoal, entre
ma de demissão voluntária em um banco estatal outros aspectos que entram em jogo nas suas ló-
em processo de privatização. Fazendo uma análi- gicas de uso de preservativo. Com isso aprofunda
se acurada sobre o crescimento do desemprego o estudo em aspectos de valores, emoções, con-
e da precariedade social no país, discute as carac- cepção de corpo e relações de gênero, contribuin-
terísticas do desemprego no setor bancário e do do para uma compreensão maior de fatores que
processo de perda de filiação do setor, conceito se podem tornar barreiras ou facilitadores para a
que toma como base de suas interpretações para assimilação de conteúdos de campanhas de pre-
os dados levantados em seu trabalho, quer sejam venção de DSTs-Aids.
dados estatísticos, quer sejam os conteúdos das O texto de Carmen Hein Campos discute
entrevistas. Discute as dificuldades do processo a “Violência doméstica no espaço da lei”. A partir
de adesão, as tensões e racionalizações contradi- de análise do espaço legal em que essa questão
tórias e a questão do voluntário/obrigatório. Em se situa, acompanhamos o exercício de decisões
suas considerações finais, amplamente sustenta- de juízes impactando pessoas, inclusive em sua
das por suas análises, continua problematizando a auto-estima. Tendo, em sua experiência profissio-
questão numa perspectiva de gênero, das rela- nal, trabalhado como advogada com casos jurídi-
ções escolarização/oportunidade de trabalho, da cos ligados a esse tipo de violência, a autora pas-
filiação/desfiliação, opressão e rotina/liberdade e sou a questionar a “solução insistente dada pelos
aleatoriedade situacional. Traz-nos reflexões críti- juízes nos casos de violência praticada contra a
cas quanto aos diferenciados aspectos do proble- mulher, isto é, a conciliação do conflito com a con-
ma, contribuindo para a compreensão de que seqüente renúncia do direito da vítima de repre-
explicações simplistas não dão conta da questão. sentar e de ver seguir o processo até uma solu-
Os dois últimos artigos tratam de questões ção efetiva...” Em seu estudo, acompanhou o caso
ligadas à intimidade doméstica ou de pessoas. No de seis mulheres que não desistiram dos proces-
artigo de Eliane Pasini, adentramos em fronteiras sos e que tinham mais de uma ocorrência policial,
de intimidades, ao sermos conduzidos pela pes- e, posteriormente, realizou entrevistas com essas
quisadora aos meandros pelos quais prostitutas de- mulheres e com juízes e promotores de justiça
cidem pelo uso de preservativos ou não nas suas dos Juizados Especiais Criminais de Porto Alegre.
relações, propiciando-nos uma reflexão sobre os Faz uma pertinente apresentação e exegese da
valores socioculturais que orientam de modo ge- legislação para esses casos e traz à análise “mu-
ral as relações sociais dessas mulheres. “As fron- lheres de carne e osso”, contrapondo com o que

Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001 195


pensavam os juízes sobre a violência com que se uma maneira mais geral e a educação popular de
deparavam todos os dias, trazendo o entendimen- maneira mais específica, bem como a crescente
to de que a conciliação induzida pelos magistra- escolarização do social na segunda metade do
dos coloca o conflito novamente na esfera priva- século XIX e no início do século XX, a partir das
da, devolvendo-o à vítima e redistribuindo o po- exposições ocorridas entre os anos de 1862 e
der em favor do réu. Conclui que sua pesquisa 1922. Nesse período, ocorreram 17 exposições
“permite dizer que o Juizado Especial Criminal não internacionais em diferentes países (inclusive no
oferece a solução de que as mulheres necessi- Brasil), sete exposições nacionais e inúmeros con-
tam... Quando a mulher resolve, para restabele- gressos dos mais variados temas, pelos quais o
cer o equilíbrio da relação, acionar o Poder Judiciá- autor procura mostrar a intenção didática dessas
rio, este a mantém no mesmo patamar em que exposições e sua repercussão, o lugar privilegiado
ela se encontrava”. As conseqüências dessa situa- que a educação aí ocupa como produtora de civi-
ção são problematizadas, uma vez que represen- lização e progresso e a participação do Brasil nes-
tam, para as mulheres vítimas de violência domés- se processo, levando em conta as especificidades
tica, um fator de alto risco. de nossa situação política e social. Tomadas como
Problemáticas pertinentes e visão crítica, verdadeiras festas didáticas pelo autor, essas ex-
tratamento teórico consistente, convite à reflexão posições tinham a pretensão de mostrar, de dar a
com enfoques diferenciados sobre aspectos rele- ver, e, desse modo, construir o Brasil como uma
vantes nas relações de gênero na sociedade bra- Nação próspera e ordeira. Transformadas numa
sileira são as características que dão valor a esta escola de civismo, essas exposições e as ativida-
coletânea. des que giravam em sua órbita estavam imbuídas
de uma pedagogia do progresso: progresso a ser
Bernardete Angelina Gatti cultuado, exibido, representado. Daí sua dimen-
Fundação Carlos Chagas são de templo, vitrine e de teatro.
Programa de Pós-Graduação e Psicologia Ao longo de mais de 250 páginas, Moysés
da Educação da Pontifícia Universidade faz desfilar diante de nossos olhos personagens,
Católica de São Paulo tramas, objetos, imagens de uma história ainda
gatti@fcc.org.br hoje muito pouco conhecida no campo da edu-
cação e, mesmo, da história da educação. O au-
tor, com maestria e sensibilidade, vai nos mos-
AS GRANDES FESTAS DIDÁTICAS: A trando como as exposições internacionais, que ti-
EDUCAÇÃO BRASILEIRA E AS EXPOSI- nham por objetivo celebrar o progresso humano
ÇÕES INTERNACIONAIS (1862-1922) e as riquezas das nações, eram projetadas, tam-
Moysés Kuhlmann Júnior bém, como espetáculos a serem oferecidos a pla-
São Paulo:USF/CDAPH, 2001, 262p. téias ávidas por novidades e acontecimentos. Nelas
as vitrinas do progresso exibiam os atributos da
Templo, vitrine, teatro... e agora, escola. As- modernidade: objetos, conhecimentos, produtos
sim, evocando grandes metáforas da moderni- e tudo aquilo que denotasse, segundo o espírito
dade, começa a conclusão do livro de Moysés da época, a arte e o engenho humano; nelas a
Kuhlmann Júnior, pedagogo e historiador da edu- ciência era exposta, ao mesmo tempo, como rea-
cação que tem contribuído significativamente para lidade, realização e única possibilidade para o pro-
a renovação dos estudos da história da infância e gresso das nações e para a felicidade dos seres
da educação infantil no país. Só que, desta vez, o humanos.
objeto de preocupação não é diretamente a in- Apesar das diferenças entre a Primeira Ex-
fância ou a educação infantil, mas a educação de posição Internacional, ocorrida em Londres, em

196 Cadernos de Pesquisa, n. 113, julho/ 2001


1851, e a do Rio de Janeiro, em 1922, é possível tro dos limites de seu trabalho, uma notável revi-
perceber uma grande continuidade em vários de são da historiografia brasileira em relação à atua-
seus aspectos. Tais continuidades são marcantes ção dos grupos profissionais no campo da educa-
no plano discursivo, mas não apenas neste. Com ção e, mesmo, na sociedade como um todo. Ao
ligeiras diferenças, todas elas são assinaladas pela analisar as articulações entre esses grupos, o au-
crença no progresso advinda das ciências, na su- tor discute a capacidade de composição que eles
perioridade dos países do hemisfério norte sobre apresentavam. Afirma, com propriedade, que a
os demais, na educação e na escola como única defesa empreendida por médicos, engenheiros e
possibilidade de participação dos países do nosso advogados, cada um a seu modo, da primazia de
continente no concerto das nações civilizadas, den- seus saberes profissionais na proposição de teo-
tre muito outros elementos retóricos e ideológi- rias e práticas cujo objetivo era garantir a ordem e
cos que marcaram o período analisado. o progresso da/na sociedade brasileira, não signi-
Ponto central da discussão sobre a educa- ficava, em momento algum, que eles dispensas-
ção no interior das exposições e congressos, é a sem o concurso de outros saberes, mesmo que
análise que o autor realiza da construção da im- de forma subsidiária, na definição e realização de
portância da educação e da escola no imaginário tais tarefas.
moderno como signo de civilização e progresso. Outro ponto alto do livro são as fontes a
Esse eixo percorre todo o livro. A partir dele, o partir das quais o autor constrói seu trabalho. Ape-
autor aborda a articulação entre os diferentes gru- sar de uma crítica um tanto quanto apressada à
pos implicados na questão educacional e sua for- utilização da legislação e de documentos oficiais
mulação de propostas para a educação, a atuação no âmbito da história da educação, Moysés reali-
da Igreja Católica, a influência norte-americana za uma exaustiva e muito bem-feita pesquisa com
como padrão de modernidade, os principais te- fontes documentais até então praticamente igno-
mas educacionais em debate, a ênfase na criança, radas pelos trabalhos na área. Trata-se não ape-
além da base material e “científica” das novidades nas da documentação diretamente relativa à par-
pedagógicas que povoavam as exposições e con- ticipação brasileira nas exposições, o que por si só
gressos investigados. constitui um acervo dos mais interessantes e intri-
Na maior parte dessas exposições a escola gantes, mas um número invejável de documen-
era focalizada, demonstrando-se a superioridade tos relacionados aos eventos nacionais derivados
deste ou daquele método de ensino, a necessida- ou preparatórios para aquelas. A partir de tais fon-
de de um ou outro material didático, o adianta- tes, diligentemente indicadas pelo pesquisador, e
mento ou, no mais das vezes, o atraso dos países das questões apontadas pelo seu estudo, muitas
no que se refere à instrução, a premência de se outras investigações poderão ser feitas.
investir na educação do povo, dentre outros as- A leitura provoca-nos, no entanto, uma
pectos. No entanto, transformando o público em questão: o que são as festas analisadas por Moysés?
espectador, tais empreendimentos não apenas dis- A impressão que fica é que as exposições eram
cutiam diretamente as experiências e os rumos festas apenas para serem vistas. Se pensa, como
da educação e da escola nos diversos países, mas já o indicava Jorge Coli1, que o século XIX vê nas-
faziam-se escola, travestindo o espectador em cer uma verdadeira pedagogia do olhar, parece-
aprendiz. Daí a face didática, e quase catequética, nos que o trabalho é coroado de êxito. Imagens,
que assumiam as exposições e as representações objetos, relações... tudo é dado a ver, numa es-
que os seus idealizadores produziam. pécie de grande aula de lições de coisas, aspecto,
Lançando mão do conceito de formações,
cunhado pelo historiador, crítico literário e escri- 1 COLI, J. Manet: o enigma do olhar. In: NOVAIS, A.
(org.), O Olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
tor inglês R. Williams, Moysés empreende, den-

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aliás, para o qual o autor, com muita propriedade, um conhecimento e para o desenvolvimento de
chama a atenção. No entanto, seria a festa ape- pesquisas acerca da trajetória histórica, dos sujei-
nas isto? Talvez fosse preciso um olhar menos tos e das formações, das estratégias e das repre-
pedagógico para acentuar outras características das sentações que importam decisivamente na pro-
festas que não a de espetáculo a ser visto. A dução e na configuração atual da educação brasi-
vivência das exposições, as experiências dos su- leira. De diferente formas, direta ou indiretamen-
jeitos, com certeza, ultrapassavam aquilo que es- te, o trabalho chama a nossa atenção para que
tava organizado e, muitas vezes, autorizados aos nos conscientizemos de um passado que teima
visitantes. Sobre isso praticamente não se fala. Mas em não passar, que se esforça para fazer-se pre-
não podemos deixar de apontar para o fato de sente, e nos alerta para a fato de que, como dizia
que, com a afirmação da escola como instituição Benjamim, se os vencedores continuarem a ven-
social responsável pela instrução e pela educação cer, nem os mortos descansarão em paz. Somente
das novas gerações, há uma crescente por isso, se não pelas inúmeras outras razões, o
escolarização do conjunto das atividades sociais, livro merecer ser lido e recomendado.
entre elas as festas. Daí, talvez, também tenha-
mos que olhar nas duas direções: a escola sendo Luciano Mendes de Faria Filho
conformada pela práticas sociais e, ao mesmo tem- Faculdade de Educação da Universidade
po, conformando-as. Federal de Minas Gerais
Uma outra questão que o trabalho de lucianom@fae.ufmg.br
Moysés traz à tona refere-se à produção de dis-
cursos dissonantes. Qual o contraponto à essa fé Carla Simone Chamon
acrítica no progresso e na ciência que as exposi- Centro Federal de Educação Tecnológica
ções celebravam? Quais críticas diferentes grupos Doutoranda pela Faculdade de Educação
sociais dirigiram a essas exposições e seus “pro- da Universidade Federal de Minas Gerais
dutos”? Como é possível desconstruir sua eficácia carlachamon@brfree.com.br
pedagógica? Se o autor não se detém sobre esse
ponto, nem por isso deixa de indicar uma via para
a desconstrução da lógica e das representações DA FALA PARA A ESCRITA: ATIVIDADES
presente nessas exposições, ao apontar para as DE RETEXTUALIZAÇÃO
ambigüidades dentro desse processo e para a Luiz Antônio Marcuschi
questão da luta de classes – e, no caso brasileiro, São Paulo: Cortez, 2000, 133p.
da flagrante exclusão social – sempre ausente nes-
sas vitrinas do progresso. Opor dois termos – dizer sim a um ou di-
A qualidade de um trabalho mede-se pelas zer não ao outro –, apesar de todas as revolu-
questões que nos possibilita formular, tanto quan- ções epistemológicas, é um procedimento lógico
to pelas hipóteses que levanta e pretende demons- crucial e maciçamente presente em nosso cotidia-
trar. Nesse sentido, o trabalho de Moysés, aqui no. Pensar para além de uma dicotomia, de uma
analisado, está entre os grandes trabalhos que, lógica alética, é travar uma luta no campo da ava-
ultimamente, têm sido produzidos no âmbito ou reza de nosso imaginário, tão habituado a mode-
sobre a história da educação brasileira: ele torna los que cultuam a aristocrática atitude da exclu-
possível e inteligível inúmeras questões que antes são. No campo das ciências da linguagem, poucas
não sabíamos ou não ousávamos elaborar. E se é são as obras que enfrentam o desafio da comple-
a partir de questões que se realiza pesquisa, se é a xidade, de tomar um objeto e não submetê-lo às
partir do conhecido que importa descortinar o facilidades dos dois róis de características contrá-
novo, este trabalho contribui decisivamente para rias. Mesmo obras que pugnam por um ensino

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não aristocrático nem sempre conseguem ir além de enviesada e recortada por tantas diferenças,
do isso versus aquilo (norma culta versus norma que vai da fala para a escrita ou vice-versa. Apesar
popular; cultura erudita versus cultura popular; al- de os modelos ainda constituírem expressões
fabetização versus letramento etc.) bidimensionais1, conseguem ser didáticos e ex-
O novo livro de Luís Antônio Marcuschi, pressam muito bem a complexidade de um con-
Da fala para a escrita: atividade de retextualização, tínuo entre fala e escrita que aceita as ambigüida-
é uma dessas boas tentativas de tematizar fenô- des que se instauram entre a uni e a bidimensio-
menos que se dão no contínuo entre escrita e nalidade.
fala, sem se acomodar à prática das duas listagens No segundo (e último) capítulo, frisando ain-
de características contrárias. da mais seu princípio norteador – que o campo da
Do título do livro, já podemos inferir uma fala não se opõe ao da escrita por meio de um
ênfase na prática, no uso da língua, embora, in- percurso do tipo “do menos... para o mais...” –
cautos, possamos até imaginar que o campo se Marcuschi apresenta um modelo promissor para a
estruture por polarizações: um percurso a ser fei- observação de fenômenos que ocorrem nos usos
to entre dois pólos; de um lado a fala, de outro a cotidianos da língua, quando as práticas sociais in-
escrita; do mais concreto para o mais abstrato; do tentam transpor um texto do falado para o escrito.
menos formal para o mais formal. Tomando essas passagens entre as duas
Contrariando essas expectativas, o primei- modalidades, mais precisamente a passagem do
ro capítulo já nos põe de sobreaviso quanto à es- texto oral para o escrito, como um processo de
sas facilitações. Traça um breve histórico das li- retextualização, o autor propõe um conjunto de
nhas teóricas que tratam o oral por oposição ao operações analíticas na tentativa de captar os fe-
escrito, das concepções que procuram afirmar a nômenos responsáveis pelas diferenças entre o
superioridade de uma modalidade sobre a outra, texto original e o retextualizado. Propõe um con-
sobretudo da escrita em relação ao oral. Reco- junto de nove operações textuais e discursivas que,
nhecendo a importância das contribuições recen- apesar de constituídas num diagrama e evidencia-
tes no campo da linguagem e deixando claro seu das num fluxo que revela uma certa consciência
compromisso sociointeracionista, Marcuschi apre- do “retextualizador” (quanto às diferenças entre
senta o campo entre o oral e o escrito como um fala e escrita), o autor adverte que não se trata de
contínuo complexo que, apesar de apresentar dis- uma hierarquia ou de uma seqüência rígida do
tinções marcantes, paradoxalmente, não se cons- processo. Esse conjunto de operações prevê ocor-
titui na forma de dois sistemas ou dois pólos es- rências de estratégias básicas (de eliminação, de
tanques. Mesmo levando em consideração as di- inserção, de reformulação etc.) que, podemos
ferenças de meio (sonoro e gráfico) e de concep- supor, ocorrem quando falantes lançam mão (em
ção discursiva (oral e escrita), o contínuo dos gê- diversas funções sociais: jurídicas, jornalísticas, in-
neros textuais evidencia, além de uma zona telectuais, pedagógicas etc.) da fala do outro, para
prototípica em que cada modalidade tem seu dela constituir um outro texto sob o pretexto de
acontecimento, seu processo, marcado por tra- que, substancialmente, não alteraria significativa-
ços mais distintivos; é igualmente possível isolar mente o que foi dito, apenas aplicaria operações
zonas de indistinção em que oral e escrito se con- formais para tornar o texto apropriado à escrita
fundem (por exemplo, o telejornalismo é um gê- ou ao registro escrito.
nero oral, escrito ou misto?).
Há, ainda no capítulo 1, algumas boas mos-
1 Salvo engano, para ilustrar esses paradoxos, ve-
tras de uma teorização forte, que tem o propósi-
mos aí também as possibilidades da Topologia, mais
to de extrapolar a dicotomia: os gráficos comple- precisamente da faixa de Moëbius que, por si, po-
xos (p. 38-9, 41) que expressam essa continuida- deria evidenciar os paradoxos desta unidimensão.

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O autor, além de apresentar um diagrama da ignorância por parte daquele que tem seu direi-
(p. 75) dessas operações, detalha cada uma delas to violado, que pede desculpas por não cumprir
e exemplifica as estratégias, muitas vezes, utilizan- seu “dever”. Essas situações lembram-nos de que
do textos orais retextualizados. Ao entrar em con- estamos muito longe do exercício pleno da cida-
tato com esses exemplos, o leitor perceberá a dania, quiçá saibamos o que esta palavra significa.
importância do modelo e a relevância do trata- Certamente, este não é um tema novo.
mento teórico dado pelo autor em diversos cam- Desde pelo menos as discussões entre liberais e
pos: na pesquisa acadêmica (etnologia, lingüística socialistas do século XVII ele é atual. O que pare-
etc.), jornalismo, direito etc. ce diferente é incluir a educação – que desde sem-
Para o campo do ensino de língua mater- pre pareceu pertencer ao campo do consenso –
na, esse combate à dicotomia é mais do que opor- entre aqueles direitos de cidadania e, mais, que
tuno. A escola brasileira, em sua absurda fidelida- como tal deve ser conquistado, muitas vezes a
de a um modelo lusófono de ensino de língua duras penas.
materna, dá as costas às possibilidades da língua Trabalhando este tema hoje, muitos têm
oral brasileira, ao conclamar a superioridade de considerado que o mundo atual, no qual antes do
uma certa fala culta tida como mais próxima da sujeito vem o consumidor e cujo principal cami-
língua escrita dos grandes mestres, ou seja, ainda nho de desenvolvimento para os países tem sido
se escuda nessas dicotomias. Contra esse elitismo, o neoliberalismo, a educação constitui, senão a
o livro nos dá um contribuição crítica significativa única, pelo menos a principal alternativa de ma-
ao ensino de língua materna. nutenção da igualdade nas desigualdades. Esta é,
Ampliar e sofisticar as relações entre fala e por exemplo, a visão de Göran Therborn, que
escrita, nos moldes dessas atividades de retex- defende a educação como uma das únicas fontes,
tualização apresentadas no livro, são objetivos de ao mesmo tempo, de resistência e participação
pesquisa que caem como uma luva nesse com- no mundo global.
plexo contexto contemporâneo em que, a cada Educação e cultura insere-se exatamente
dia, juntam-se novas profissões e atividades que nesse debate, mostrando a intersecção entre con-
deverão lidar cada vez mais com essas imbricações quista de direitos, compreensão da cidadania e
entre produção oral e escrita, sobretudo se levar- educação, principalmente dos que sempre foram
mos em conta o amplo e interessante campo das considerados excluídos. Para isto, reúne um con-
comunicações, mediado por redes e tecnologias, junto de artigos de professores preocupados com
o qual a obra recobre. a questão no país. São profissionais oriundos das
ciências humanas e que têm em comum a preo-
Claudemir Belintane cupação de educar para o exercício consciente
Faculdade de Educação da dos direitos, objetivando a constituição e consoli-
Universidade de São Paulo dação de um país democrático.
bntane@usp.br No artigo “Brasil, meu Brasil brasileiro: no-
tas sobre a construção da identidade nacional”, a
organizadora do livro, Maria Alice Rezende Gon-
EDUCAÇÃO E CULTURA: PENSANDO EM çalves, discute o mito de fundação do “ser brasi-
CIDADANIA leiro” utilizando, para isto, as teorias de Anderson
Maria Alice Resende Gonçalves (org.) e Hobsbawm, segundo as quais pensar em nacio-
Rio de Janeiro: Edições Quartet, 1999, 148p. nalidade é pensar em uma invenção. No Brasil,
diz a autora, a história da sociedade, forjada a par-
A todo momento vemos referências nos vá- tir da Independência, em 1822, confunde-se com
rios media a respeito da violação de direitos e, pior, o paradigma das três raças, segundo o qual ser

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brasileiro é ser uma “mistura”, um “composto carga de branqueamento”. Portanto, mesmo re-
químico” a partir da fusão dos seres “puros” bran- conhecendo o progresso, avalia-se no artigo que
co, negro e índio. Conforme a autora, ao aparen- ainda é preciso construir a democracia racial, que
temente nivelar as três raças, este mito-paradigma por ora é apenas um discurso, mas não uma ex-
encobre o preconceito e as condições reais que periência de todos os cidadãos, tanto é que as
constroem a sociedade, uma sociedade profun- estatísticas continuam a mostrar que são os ne-
damente hierarquizada e desigual. gros os grandes excluídos do sistema educacio-
A partir dessa análise, e estabelecendo com- nal. Não basta, ensina, pregar o multiculturalismo
parações com o mito-fundador da sociedade ame- e a diversidade. É preciso formar os educadores
ricana, a autora aponta para a instituição escolar com base em valores novos, que levem ao res-
como uma das grandes responsáveis não só pela peito das diferenças.
manutenção do estatuto do mito-fundador, mas Em “Cidadania: uma trajetória de longo
também pela sua reprodução, acompanhando curso”, Cláudio de Carvalho Silveira propõe-se a
esse processo por todo o século XX, mostrando discutir a relação entre política (realização da cida-
o progresso do mito-fundador e sua relação com dania) e educação (vetor de construção da cida-
os vários projetos embutidos em muitos dos nos- dania). Ao estabelecer um objetivo tão largo, o
sos movimentos socioculturais (como o Moder- autor não descuida de informar que seu texto tem
nismo da Semana de 22). Afirma, assim, que mes- apenas um caráter introdutório. Silveira passa, en-
mo negando formalmente (legalmente) a discri- tão, a avaliar como a política se apropriou da edu-
minação racial, a escola tem sido reprodutora desta cação, como foram, ao longo da história, cons-
desigualdade. truindo-se políticas públicas que respondiam às
Se o texto é claro e didático ao apresentar necessidades de cada modo de produção.
como as sociedades constituem-se a partir de Ao analisar a questão para o Brasil, Silveira
mitos, o mesmo não acontece ao expor as con- mostra que aqui se destrói o mito da sociedade
clusões. Neste caso, Gonçalves aparta-se da ques- moderna, aquele segundo o qual a educação é
tão inicial, da construção da identidade nacional e mecanismo de acesso ao mundo do trabalho.
da contribuição da escola para tanto, e divaga a Pelo contrário, a educação, tomada como política
respeito da desigualdade social sem, no entanto, pública, é apropriada de modo desigual pelas clas-
apresentar dados que permitam compreender a ses sociais, desvinculando, assim, identidade de ci-
relação entre os três fatores. E mais, apresenta dadania. Isso porque, ainda que o Estado tenha
uma nova questão que em nada lembra os objeti- promovido a extensão do ensino público para to-
vos iniciais do artigo: “qual o futuro do Estado- das as camadas sociais, o fez segundo interesses
Nação num mundo globalizado?” (p. 37). das elites, privilegiando e subsidiando a escola pri-
Diferente da discussão do mito-fundador, vada.
mas tratando igualmente do problema racial, Ahyas Embora a análise pareça pessimista, passan-
Siss focaliza em “A educação e os afro-brasileiros: do em revista as discussões recentes, principal-
algumas considerações”, a democracia racial a mente aquelas em torno da Lei de Diretrizes e
partir da educação como vetor de ascensão social Bases e dos Parâmetros Curriculares, o autor
dos negros no Brasil. A despeito de experiências aponta para o grau de tolerância às diferenças e
datadas do início do século, o autor avalia que a estímulo à pluralidade presente nesses códigos, o
educação somente é apropriada pelos negros que oferece uma luz para que a cidadania seja cada
como espaço de reconhecimento e construção vez mais o exercício do dever e direito de exigir
de uma identidade cultural própria a partir da dé- transparência e cobrar eficiência daqueles que
cada de 70 e, mesmo assim, a escola continua a decidem sobre as políticas públicas a serem
ser o local no qual os negros recebem “a maior adotadas.

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Baseando-se em uma pesquisa empírica, escolar, pode contribuir para melhorar a qualidade
Maria de Lourdes Tura discute a experiência de de vida das pessoas e ajudar na construção de um
uma escola pública de periferia com a diversidade cidadão renovado. A despeito da indiscutível rele-
cultural. O artigo aponta, seguindo de perto uma vância e da preocupação mundial com o tema –
tradição inaugurada por Durkheim, que para rea- conforme são exemplos as diversas conferências
lizar o processo de escolarização em massa, ne- internacionais inauguradas com a ECO-Rio-92 –,
cessário à reprodução do sistema capitalista, tudo a educação ambiental ainda não ganhou espaço nas
na escola, desde a disposição do mobiliário até a escolas, mormente nas públicas, e tem sido enca-
formulação dos currículos, é pensado para “criar minhada pelas organizações não governamentais.
consensos e homogeneizar ritmos” (p. 98) e, as- A “escola renovada”, isto é, aquele espaço
sim, a simples idéia do diverso, do diferente é de educação que se destina, em primeiro lugar, a
abolida deste espaço de convivência. criar cidadãos conscientes, precisa superar essa de-
Para romper o isolamento em que vive a ficiência da educação tradicional adotando conteú-
escola, e até porque a lei exige que o diverso seja dos curriculares que tenham aporte na realidade
parte da educação formal, é preciso que a escola social na qual a escola está inserida. Dessa forma,
se abra para a comunidade, que deixe de se preo- em primeiro plano, deve figurar a educação am-
cupar apenas com o aprendizado (adestramen- biental, pois só assim os cidadãos de amanhã te-
to?) do educando e passe a encará-lo como um rão um futuro promissor.
ser completo. Porém, a despeito de conhecer o Para completar o artigo, a autora fornece
caminho, a experiência cotidiana das escolas con- um exemplo empírico da importância da educa-
tinua a ser a de negar o diverso e educar de forma ção ambiental para a qualidade de vida desta e das
homogênea. futuras gerações. Trata-se de um estudo sobre o
Interessante observar que esta é a forma impacto da industrialização na região do Médio
de igualdade encontrada pelos educadores. Isto Paraíba (Rio de Janeiro) e da relação entre esta e
é, a escola real confunde homogeneização com o atendimento escolar da população. A conclu-
igualdade de tratamento e por isso é muito difícil são da autora é que o sistema de ensino e sua
construir uma educação multicultural. O caminho, distribuição conforme adotado na região está pro-
reforça a autora, existe e é conhecido: educar a fundamente relacionado com o modelo de de-
partir da experiência do aluno, dos valores e prá- senvolvimento industrial, não prevendo alternati-
ticas da comunidade. vas nem para a formação de mão-de-obra e nem
Embora o texto não focalize os problemas para solucionar os problemas ambientais gerados
que envolvem a educação formal como, por a partir da concentração de indústrias na região.
exemplo, a repetência e o abandono, é possível, No que talvez seja o mais interessante arti-
a partir dos próprios dados apresentados, verifi- go do livro, Marco Silva apresenta o conceito de
car que essa escola que constrói o “cidadão” ho- interatividade. A sua prática é vista como funda-
mogêneo, em nome da identidade nacional, é a mental para transformar a relação de ensino-
responsável pelo fracasso escolar que aumenta a aprendizagem dentro da sala de aula, pois repre-
cada dia. Assim, aproximar-se da comunidade pa- senta uma nova forma de comunicação, não mais
rece ser a única alternativa para salvar a própria concebendo o ato de aprender como transmis-
educação. são de conhecimento ou informação de um emis-
Como indica o próprio título, e desviando- sor para um receptor, mas entendendo conheci-
se do tema central do livro, Maria do Carmo mento como uma construção que se efetua como
Maccariello argumenta, em “Educação ambiental e co-criação.
cidadania”, que tomar o meio ambiente não só Silva apresenta a própria construção de sig-
como objeto de nossas ações, mas como tema nificado de interatividade como algo histórico que

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somente se coloca na “pós-modernidade” e que escrito – o que, por outro lado, facilita a leitura do
nasce pari passu com as tecnologias informáticas público em geral, diferente do comum herme-
e virtuais. De fato, apesar da aparência de passivi- tismo que define os textos acadêmicos.
dade representada pelo trabalho informacional, as Talvez a principal característica do livro seja
novas tecnologias dependem da interação com o o otimismo que perpassa todos os artigos. Dife-
usuário, deixando este de ser um simples consu- rentemente do que se costuma ver nas análises
midor de algo para ser também “co-autor”, sobre educação brasileira, neste volume os auto-
“conceptor” do produto ou projeto. res têm em comum a visão de que, embora a
Levar a interatividade para a sala de aula, educação, principalmente pública, esteja longe de
vivenciá-la em cada momento do aprendizado é corresponder ao papel que lhe cabe em uma so-
o desafio para esta época de crise da educação. ciedade com pretensões democráticas e esteja
Cabe ao professor compreender que seu novo mesmo mergulhada em uma crise profunda, há
papel é encarar este desafio, criando, junto com alternativas. Elas podem redundar em uma gran-
os alunos e a comunidade, uma nova escola, em de reforma no ensino que inevitavelmente leva a
que a participação em sala de aula signifique não um modelo de escola que formará cidadãos para
mais realizar a comunicação como emissão-re- o exercício consciente da democracia, não só
cepção, mas como interação. Somente assim a política, mas principalmente social.
escola acompanhará o novo mundo, este que está O livro traça um perfil bastante completo
pedindo uma nova forma de pensamento. e, o mais importante, acessível, sobre a relação
Como é corrente, no conjunto do livro há entre cidadania e educação. As diferentes abor-
diversas lacunas que poderiam ser mencionadas, dagens – política, pedagógica, sociológica, antro-
como temas não analisados e avaliações de ou- pológica – convivem harmoniosamente para mos-
tros de forma apressada. Um exemplo é apre- trar o quanto caminhamos e ainda falta caminhar
sentação das pesquisas empíricas, que deixam o na construção de uma sociedade verdadeiramen-
leitor em suspenso, pois o espaço parece peque- te democrática.
no para explicar o que de fato foi feito. Também
os resultados parecem não corresponder ao tema
proposto nos artigos, dando-nos a impressão de Suzeley Kalil Mathias
um certo descolamento entre realidade e análise. Faculdade de História da Universidade
Do ponto de vista formal, o leitor sofre também Estadual Paulista – Franca
com a falta de uma revisão mais detalhada dos Núcleo de Estudos Estratégicos da
artigos, o que os deixa muitas vezes repetitivos e Universidade de Campinas
contendo expressões muito coloquiais para o texto suze@obelix.unicamp.br

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