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Cidade e Patrimônio - o Tombamento Na Percepção Dos Proprietários de Imóveis em Belo Horizonte
Cidade e Patrimônio - o Tombamento Na Percepção Dos Proprietários de Imóveis em Belo Horizonte
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BOTELHO, T. R.; ANDRADE, L. T. DE. Cidade e patrimônio: o tombamento...
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interesses dos proprietários e as políticas do mentação original da Gephu para tentar comple-
conselho, permitindo que se abrissem algumas tar as informações. Nesse caso, surgiram
exceções, como a de altimetria, em troca de uma problemas de outra ordem. Primeiramente, as
contrapartida pelo proprietário, que poderia ser informações encontravam-se bastante dispersas,
a restauração de um bem tombado.1 Embora o que prolongou o tempo de trabalho. Em
esse tipo de abordagem tenha significado um segundo lugar, estavam desatualizadas, o que
avanço na dinâmica de proteção ao patrimônio, dificultou a identificação dos proprietários dos
ele encontrou muita resistência e foi alvo de imóveis. Posteriormente, descobrimos que mui-
polêmicas, sendo progressivamente abandonado tos dos imóveis listados pela Gephu já não eram
pelo CDPCMBH. mais tombados, pois o próprio CDPCMBH
Como se pode ver, essa nova concepção deliberou favoravelmente ao “destombamento”
de patrimônio e da sua gestão abre espaço para de alguns imóveis, em geral pela forte pressão
a participação de diferentes atores sociais e é dos grupos interessados.2
sobre essa experiência que se pretende refletir. Apesar das dificuldades, conseguimos rela-
O instituto do tombamento não tem se estabe- cionar 618 imóveis tombados pelo CDPCMBH.
lecido sem polêmicas. Os proprietários, o mais Vê-se, pelo relato anterior, que estes eram
das vezes, sentem-se “usurpados” em seu direito números aproximados, pois as dificuldades com
de propriedade e não vêem nas medidas com- a obtenção dos dados não permitem afirmar
pensatórias uma saída conveniente. Por outro cabalmente qual era o universo desses imóveis
lado, ainda não existe uma visão de conjunto à época. Além disso, a dinâmica dos tomba-
acerca do impacto da ação do conselho na mentos introduz constantes mudanças nesse
paisagem urbana de Belo Horizonte. Assim, número, incluindo-se alguns e excluindo-se
pretende-se adiante discutir a prática de proteção outros em quase todas as reuniões do conselho.
ao patrimônio cultural em Belo Horizonte, rela- Assumimos que esse número aqui utilizado é
cionando-a com a recepção da política patrimo- uma aproximação bastante confiável do que era
nial local por parte dos proprietários de bens o conjunto de bens imóveis tombados pelo
imóveis tombados. Procura-se mostrar os avan- conselho até fevereiro de 2001.
ços e os impasses de tais políticas, sobretudo no Com base nas informações coletadas na
que diz respeito à relação dos proprietários com Gephu, foi possível traçar um perfil dos imóveis
a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. tombados e da evolução do tombamento desde
que se iniciou tal política pela Prefeitura
O perfil dos imóveis tombados pelo Municipal de Belo Horizonte. Dos 618 imóveis
CDPCMBH identificados, a maioria pertencia ao Conjunto
Urbano do Bairro Floresta (30%), seguida do
Em 2000, iniciamos uma pesquisa para Conjunto Urbano com Tipologia de Influência
definir o perfil dos imóveis tombados pelo da Comissão Construtora (15%). Também a
CDPCMBH. Uma primeira dificuldade foi obter Praça da Liberdade, a Rua dos Caetés e a
informações sobre imóveis tombados. Em prin- Avenida Afonso Pena apresentavam uma certa
cípios de 2001, data de referência da pesquisa, concentração, com cada um desses conjuntos
os dados não se encontravam consolidados pela aproximando-se de 10% do total de imóveis
Gerência de Patrimônio Histórico Urbano tombados. Somando-se os conjuntos Praça da
(Gephu) – antigo Departamento de Memória e Liberdade, Praça da Boa Viagem, Rua da Bahia,
Patrimônio Cultural (DMPC). Recorremos Avenida Álvares Cabral, Avenida Afonso Pena,
inicialmente à base de dados que vinha sendo Praça Rui Barbosa e Rua dos Caetés, pode-se
montada pela Secretaria Municipal de Cultura, dizer que pelo menos 40% dos imóveis tombados
que nos foi gentilmente cedida. Entretanto, essa encontravam-se na área central de Belo Hori-
base incluía até então cerca de metade dos
imóveis tombados. Tivemos de voltar à docu- 2. Ressalte-se que hoje essas informações encontram-se
organizadas na Gephu, tendo sido resolvidos os problemas
1. Sobre o tema, ver Andrade e Esteves (2002). aqui apontados.
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zonte, dentro de um raio relativamente pequeno Do total de imóveis tombados, três quartos
de distância (Tabela 1). eram de propriedade particular enquanto apenas
10% pertenciam ao Estado e 3,4%, a grupos
Ta b e la 1 - Be ns imó ve is t o mb a d o s s e gund o religiosos (sobretudo a Igreja Católica) (Tabela
o c o nj unt o ur b a no 2). Esse perfil é bastante distinto do que se
Co njunt o urba no N % observa entre os imóveis tombados pelo Iphan,
P r a ç a Rui Ba r b o s a 26 4,21
em que predominam os bens públicos ou perten-
centes à Igreja (Rubino, 1996). Já é uma primeira
P r a ç a d a Lib e r d a d e 61 9,87
indicação de como políticas locais de proteção
P r a ç a Hugo We r ne c k 14 2,27
ao patrimônio histórico podem assumir perfil
P r a ç a F lo r ia no P e ixo t o 15 2,43
bastante distinto das políticas nacionais e esta-
Ba ir r o F lo r e s t a 185 29,94
duais. Por outro lado, evidencia o potencial de
C o mis s ã o C o ns t r ut o r a 93 15,05
conflitos que tais políticas carregam, já que são
Ave nid a s C a r a nd a í /
42 6,80 implementadas pelo poder local, portanto mais
Alfr e d o Ba le na
próximo daqueles atingidos.3
Rua d o s C a e t é s 59 9,55
A distribuição dos bens tombados pelos
P r a ç a d a Bo a Via ge m 11 1,78
conjuntos mostra que tal ênfase nos bens parti-
Rua d a Ba hia 13 2,10
culares se expressa com mais veemência em
Ave nid a Álva r e s C a b r a l 21 3,40
alguns conjuntos. Assim, os conjuntos do Bairro
Ave nid a Afo ns o P e na 57 9,22
Floresta, da Comissão Construtora e da Avenida
To mb a me nt o s is o la d o s 21 3,40
Afonso Pena são aqueles em que essa tendência
To t a l 618 100,00 é mais forte, apresentando entre 82% (Floresta)
3. Um exemplo desse potencial de conflito pode ser visto de dos tombamentos iniciais. Uma análise desse caso pode
no caso do tombamento do Conjunto Urbano do Bairro da ser encontrada no relatório de pesquisa Direito à memória
Floresta, em que uma enorme reação dos proprietários atin- e gestão do patrimônio (2003), financiada pela Fapemig e
gidos levou ao acatamento da impugnação de mais da meta- coordenada por Luciana Teixeira de Andrade.
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e 92% (Rua dos Caetés) de seus imóveis de revisar todos os conjuntos tombados e a corrigir
propriedade particular. Em contraposição, os muitos dos erros cometidos nos anos iniciais da
conjuntos da Praça Rui Barbosa e da Praça da política municipal de patrimônio. Como conse-
Liberdade são aqueles com maior concentração qüência, os tombamentos realizados resultaram
de bens estatais, reflexo das funções desem- da extensão da medida a novos imóveis que já
penhadas por tais espaços: o primeiro deles faziam parte dos conjuntos urbanos definidos
abriga imóveis da Rede Ferroviária Federal e para proteção. Em segundo lugar, parece haver
da UFMG, enquanto o segundo é sede do um certo arrefecimento da disposição em tom-
governo estadual. Entretanto, somente no da bar, advinda da certeza de que o principal já foi
Praça Rui Barbosa os imóveis públicos superam feito em termos de proteção à memória arqui-
os imóveis de propriedade particular Outros tetônica da cidade, mas também dos receios
conjuntos de destaque no que diz respeito à quanto às reações negativas que o tombamento
presença de imóveis públicos são: Praça Floriano gera nos proprietários dos imóveis atingidos pela
Peixoto, Rua da Bahia e Avenida Afonso Pena. medida.4
Os tombamentos também conheceram um Quando distribuímos os imóveis segundo o
ritmo peculiar. Embora existam problemas com ano do tombamento e o conjunto ao qual
os dados, pois não obtivemos a informação sobre pertencem, fica evidente que esse ritmo é
a data de tombamento para todos os imóveis, diferenciado conforme o conjunto. Aqueles que
pode-se dizer que a maior parte deles foi reali- conheceram de maneira intensa o tombamento
zada entre 1994 e 1996, anos em que há uma ainda nos anos iniciais da sua disseminação no
estruturação mais eficiente do Departamento de município foram a Avenida Álvares Cabral, a
Memória e Patrimônio Cultural (DMPC), ainda Avenida Afonso Pena, a Praça da Boa Viagem,
dentro da Secretaria Municipal de Cultura a Rua dos Caetés e a Praça Hugo Werneck.
(Cunha, 1997). Esse período concentra 80% dos Uma segunda leva ocorreu em 1995, quando
tombamentos, com uma queda vertiginosa no foram intensamente atingidos os conjuntos
ano de 1997. Em 1998, há um crescimento do Avenidas Carandaí/Alfredo Balena, Floriano
número de tombamentos, mas nos anos seguin- Peixoto, Avenida Afonso Pena e Praça da
tes o ritmo é decrescente (Tabela 3). Esse Liberdade, com tombamentos significativos
decréscimo dos tombamentos deve-se a dois também na Avenida Álvares Cabral e na Rua
fatores. De um lado, o DMPC dedicou-se a da Bahia. Em 1996, é promovido o tombamento
Ta b e la 3 - Be ns imó ve is t o mb a d o s s e gund o o a no d o t o mb a me nt o e o t ip o d e p r o p r ie d a d e
A no do C l ube o u Se m To t a l
Pa rt i c ul a r Es t a do R e lig io s o
t o mba me nt o a s s o c ia ç ã o i nf o rma ç ã o N %
1994 64,6 20,4 4,4 5,3 5,3 11 3 28,0
1995 84,2 0,0 2,5 0,0 13,3 120 29,7
1996 67,8 5,6 5,6 0,0 21,1 90 22,3
1997 75,0 0,0 0,0 25,0 0,0 4 1,0
1998 29,2 41,7 8,3 6,3 14,6 48 11 , 9
1999 76,5 0,0 5,9 0,0 17,6 17 4,2
2000 75,0 16,7 8,3 0,0 0,0 12 3,0
% 67,8 12,4 4,7 2,5 12,6 100,0
To t a l
N 274 50 19 10 51 404
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landscape caused by the actions taken by the Cultural BRASIL, Flávia de Paula Duque. Parecer: relatório
Heritage Deliberative Council of Belo Horizonte. The de Revisão do Conjunto Urbano da Avenida Afonso
data collected (by questionnaires and archival research) Pena. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de
point to different sources of conflict. The owners Cultura, 1996. [Mimeo.]
expressed deep dissatisfaction especially with: 1) the way
the listing of their property was communicated to them, CASTRIOTA, Leonardo Barci. Algumas conside-
2) the means made available for them to have their fair rações sobre o patrimônio. In: Arquiamérica: I Pan-
share of the incentives offered, 3) the fact that the American Congress of Architectural Heritage. Ouro
incentives were not duly divulged as is the case with Preto, set., 1992.
Transferência do Direito de Construir (TDC) – CUNHA, Flávio Saliba. Patrimônio cultural e gestão
Transference of the Right to Build and Imposto Predial e democrática em Belo Horizonte. Varia História. Belo
Territorial Urbano (IPTU) – local public service rates.
Horizonte, 1997.
Key-words: cultural heritage; listing practices; urban MENICONI, Evelyn Maria de Almeida. Monumento
policies. para quem? A preservação do patrimônio nacional
e o ordenamento do espaço urbano de Ouro Preto
(1937-1967). Belo Horizonte, 2004. Dissertação
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PBH. Patrimônio cultural: carta de princípios. Belo
ANDRADE, Luciana Teixeira de. Direito à memória Horizonte: s./d. [Mimeo.]
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das cidades: uma análise da Lei do ICMS Cultural percepções do conflito na prática da preservação
de Minas Gerais. Paper apresentado ao XII do patrimônio cultural edificado em Espírito Santo
Congresso Brasileiro de Sociologia, Belo Horizonte, do Pinhal. Brasília, 1998. Dissertação (Mestrado em
maio/jun., 2005. Antropologia Social) – PPGAS/UnB.
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