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TCC - Jéssica Cristina Rodrigues
TCC - Jéssica Cristina Rodrigues
Autoras:
Jéssica Cristina Rodrigues1
Júlia Loren dos Santos Rodrigues2
Resumo: Este estudo teve como objetivo compreender, diante de uma perspectiva
fenomenológica-existencial, a experiência de sofrimento atrelado a vivência de
transtornos alimentares de uma influenciadora digital que assume como proposta de
trabalho produzir conteúdo para conscientização e crítica dos padrões idealizados do
corpo feminino. A pesquisa contou com a participação de uma digital influencer. Para
a coleta de dados, utilizou-se como método a entrevista semiestruturada, sendo esta
gravada e posteriormente transcrita. Os resultados dessa pesquisa foram dispostos
em duas categorias: 1 - Ser-mulher na era da técnica e 2 - Do corpo expurgado ao
corpo cuidado. O relato demonstra a influência do imperativo estético feminino que
evidencia o modo de viver contemporâneo técnico e capitalista que, ao limitar os
modos-de-ser, apresenta-se correlacionado com a probabilidade de ocorrência dos
transtornos alimentares em cada sociedade. Sendo assim, através da pesquisa foi
possível demonstrar quais as consequências associadas à busca de uma imagem
pré-determinada imposta e validada culturalmente para atender aos padrões estéticos
e como tais exigências podem trazer sofrimento para as mulheres.
1
Aluna do 10° período do Curso de Psicologia da Fundação Presidente Antônio Carlos de
Conselheiro Lafaiete – MG. E-mail: jessicarodriguees1486@gmail.com
2
Psicóloga, Profa. do curso de Psicologia da Fundação Presidente Antônio Carlos de Conselheiro
Lafaiete – MG. E-mail: julia.santos@unipac.br
1 INTRODUÇÃO
A etapa de entrevista deste estudo foi realizada por meio de uma entrevista
online cedida por uma influenciadora digital, realizada na plataforma de vídeo Google
Meet. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Faculdade de Psicologia da Fundação Presidente Antônio Carlos - FUPAC (Parecer
5.981.788). A participação da comunicadora foi voluntária e formalizada mediante a
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
A discussão e reflexão teórica proposta foi construída através de um estudo
exploratório, justificando-se por seu objetivo de proporcionar uma maior familiaridade
com o problema, aperfeiçoando as ideias e tornando-o mais explícito (GIL, 2017).
Nesse sentido, a pesquisa estruturou-se segundo uma perspectiva qualitativa, na
medida em que se pretendeu compreender o fenômeno no contexto em que ocorre e
do qual faz parte, incluindo atravessamentos culturais, políticos, sociais e físicos,
abrangendo ainda os aspectos subjetivos, isto é, os significados atribuídos
individualmente diante da compreensão das situações e experiências do mundo
social (FIUZ et al., 2011).
A interpretação, discussão e compreensão do objeto em estudo deu-se com
amparo teórico da fenomenologia existencial, fomentando uma compreensão singular
do modo como o homem experiencia e dá sentido ao mundo, valorizando a maneira
idiossincrática de o indivíduo estar no mundo, interagir com ele, afetá-lo e ser afetado.
Sendo assim, diante do enquadre teórico proposto que compreende como fenômeno
tudo aquilo que se desvela ao sujeito, foi possível ir de encontro daquilo que se mostra
oculto à pesquisadora, objetivando não uma explicação causal, mas sim uma
compreensão (MARIUTTI et al., 2003).
A estratégia metodológica utilizada para elaborar o trabalho foi o estudo de
caso único, o qual permite o uso de instrumentos que favorecem a investigação do
tema com maior profundidade e detalhamento. De acordo com a literatura, o estudo
de caso caracteriza-se pelo estudo profundo e extenuante de um ou de poucos
objetos, proporcionando o seu conhecimento amplo, tarefa esta que não é
possibilitada por meio de outros tipos de delineamentos (GIL, 2009).
Nesta pesquisa foi utilizado como instrumento para a coleta de dados a
entrevista semiestruturada, gravada em áudio e posteriormente transcrita. Esse
modelo de entrevista privilegia a obtenção de informações através da fala individual,
permitindo o acesso às condições estruturais, as normas, símbolos e sistema de
valores expressos através de um porta-voz, isto é, um representante de determinado
grupo. Além disso, através da ferramenta selecionada o informante tem a
oportunidade de discorrer sobre suas experiências, a partir de um foco central
selecionado pelo pesquisador, ao mesmo tempo que possibilita respostas
espontâneas e livres do entrevistado (MINAYO,1994).
As questões norteadoras da entrevista semiestruturada foram: 1) De acordo
com sua percepção, quando você acredita que iniciou sua busca por um padrão
estético? E o que significava para você alcançá-lo? 2) Anteriormente, como era sua
relação com seu corpo? Você acredita que existiram influências para a sustentação
dessa forma de se perceber e relacionar-se consigo mesmo? 3) Quais foram as
implicações comportamentais, psicológicas e físicas diante da manutenção de uma
relação puramente estética com o corpo? 4) Você acredita que as mídias sociais
contemporâneas podem impactar a maneira como as mulheres se relacionam com o
próprio corpo e sua saúde mental? De que maneiras? 5) Qual o significado atual da
sua relação com o corpo e como foi possível estabelecê-la? 6) Como foi pra você
transformar um ambiente que aumenta, majoritariamente, o grau de insatisfação
corporal em um espaço de manifestação e conscientização do cuidado com a vida?
Qual o seu propósito? 7) Como você percebe o impacto da utilização das mídias
sociais contemporâneas diante do seu propósito?
Participou deste estudo de caso uma influenciadora digital que utiliza das redes
sociais como um ambiente de manifestação do cuidado com a vida e não somente
com a estética do corpo. A participante foi selecionada visto que sua história pessoal
perpassa a vivência de transtornos alimentares que impactaram sua saúde mental e
física. Desse modo, acredita-se que a participante apresenta uma oportunidade de
compreensão da implicação dos padrões estéticos à saúde da mulher, ademais
através do caso será possível a compreensão a respeito da ambivalência do uso das
redes sociais.
Para analisar os dados coletados na entrevista, utilizou-se a análise de
conteúdo que se caracteriza como uma coleção de técnicas de análise das
comunicações, com o propósito de alcançar por meio de procedimentos sistemáticos
e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que possibilitem a
inferência de conhecimentos alusivos às condições de recepção e produção das
mesmas. Desse modo, através da análise de conteúdo objetivou-se a busca da
compreensão do pensamento do sujeito por meio do conteúdo expresso no texto, isto
é, fixa-se no conteúdo, sem fazer relações além deste, estabelecendo uma
concepção transparente de linguagem (BARDIN,1977).
O projeto de pesquisa contou com a avaliação do Comitê de Ética ligado ao
Centro Universitário Presidente Antônio Carlos (UNIPAC), que analisou os projetos
visando proteger os seres humanos sujeitos da pesquisa, especialmente da sua
integridade e dignidade. A participação da entrevistada foi voluntária e teve como
garantia a liberdade sem restrições de se recusar a participar, ou retirar seu
consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem que disso resultem quaisquer
tipos de consequências, além disso, o sigilo foi resguardado. A participante assinou o
Termo De Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), manifestando sua
concordância clara com a participação no estudo. Dentre os riscos pertinentes à
pesquisa, destaca-se o possível desconforto ao participar de uma entrevista que
rememora temas sensíveis vivenciados pela participante. Ademais, no que se refere
aos ganhos provenientes da participação na pesquisa salienta-se a contribuição
social e acadêmica acerca dos conhecimentos que serão gerados, possibilitando
futuros projetos de pesquisa e de intervenções relacionados ao tema.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Isso levou ela a ser uma pessoa que falava muito nesse tema e que era muito
preocupada com isso. Então assim, eles tinham a metodologia deles, era de
comer de cinco em cinco horas e não comer entre as refeições, e aí era meio
que uma coisa assim de: ‘olha como eu sou forte, olha como eu suporto’.
Tipo ‘não, não, eu não como nada entre as refeições’, e isso era uma medida
de sucesso na minha casa. Tudo isso aconteceu ao mesmo tempo, ali na
minha pré-adolescência. Mais tarde, eu fui entender essa relação da minha
mãe com o corpo dela e como tinha me afetado, então acho que foi um fator
também muito importante no desenvolvimento do transtorno alimentar.
Em outra fala de Jhenifer é possível perceber de uma forma ainda mais nítida
como a entrevistada significou todos esses acontecimentos ao longo de sua pré-
adolescência:
Lembro de ter escrito, sei lá pra escola, na aula de redação onde eu tinha
que escrever uma história de sucesso, e eu escrevi a história da minha mãe,
da aluna que emagreceu e virou professora. Então assim, por mais que na
minha casa até fosse valorizado o estudo, enfim, a inteligência e o esforço,
os afetos são muito fortes quando a gente fala da estética.
Jhenifer relata ainda sobre a necessidade percebida por ela, por vezes, de ter
consigo um observador externo que a alerte quando sua relação com o corpo tende
a dar indícios da época quando vivenciava os transtornos alimentares:
Até hoje é uma coisa que, obviamente, já é muito diferente, né? Mas que às
vezes eu me pego fazendo. Assim, por exemplo, eu tenho que prestar muita
atenção pra, tipo se eu erro, sei lá, se eu faço uma coisa que eu não gostaria
de ter feito, não deveria ter feito assim. É de falar: ‘mas que burra que eu sou
sabe’ e o meu marido, ele pega muito mais isso do que eu, assim eu, porque
às vezes, eu falo no automático, e ele fala: “Para... porque você tá falando
isso? Você não é burra, é um erro normal, acontece”. Mas é uma coisa que
as vezes, eu ainda preciso de uma voz externa, um observador externo para
me olhar e falar, porque essa relação foi assim durante mais da metade da
minha vida.
Para a maioria das pessoas, seu valor pessoal resulta da maneira como
compreendem o seu desempenho em diversas áreas que consideram importantes.
Entretanto, no caso particular dos indivíduos que vivenciam os transtornos
alimentares, o sucesso em outras áreas é menosprezado (FAIRBURN, 1985),
Jhenifer relata:
Se tudo tivesse mal, mas eu conseguisse ficar magra, eu ficava bem. Sabe,
era assim: “Ah, o resto eu resolvo”, mas se as duas estivessem ruins e ainda
por cima eu tivesse engordando, aí era: “Eu sou um lixo mesmo! Nossa, não
presto para nada. Nossa, eu não consigo, nem pra isso eu não presto, nem
pra controlar minha boca”.
Desse modo, é possível perceber que as diversas áreas da vida de Jhenifer
eram desvalorizadas em detrimento de uma autoavaliação pessoal que tinha como
base a capacidade de controlar os comportamentos relacionados à manutenção do
corpo magro e de uma dieta restritiva. Ademais, é possível perceber no relato de
Jhenifer a tentativa da busca de um controle e uma interpretação de saúde advinda da
era da técnica: Já que eu não posso controlar nada, o meu corpo eu posso controlar,
eu vou fazer o que eu posso que é: “Eu vou ficar magra”.
Na sociedade contemporânea a compreensão de saúde se dá por uma
interpretação associada à ideia de adequação social. Além disso, percebe-se na
atualidade uma emergência que afirma o modo calculante do projeto de vida. O
indivíduo calcula, mede, domina e determina, não refletindo sobre o sentido
estabelecido a tudo que existe no mundo (DANTES et al., 2013).
Além disso, diante da fala de Jhenifer é possível perceber o uso da
possibilidade de modelar o corpo, diante da impossibilidade de controlar os outros
aspectos que a atravessavam. Tais ilusões de controle limitam a condição do indivíduo
em modos de abertura, isto é, na condição de estar aberto às possibilidades de ser.
Dessa forma, o impessoal desponta como fonte de facilitação e familiarização.
O ser vê-se desobrigado do peso de sua própria existência. Todavia, embora o mundo
ofereça tutela à vida e às decisões, o indivíduo é sempre responsável pela sua própria
existência. Portanto, o impessoal uniformiza as relações de forma fechada e
simplificada, sendo que a surpresa e o estranhamento não encontram espaço,
concedendo a ideia de que algo “é de todo mundo”, mas que ao mesmo tempo “não é
ninguém” (DANTES et al., 2013).
Ao longo da entrevista Jhenifer expôs como era a relação que ela mantinha
com o próprio corpo e os inúmeros sofrimentos vivenciados:
Acho que era uma relação abusiva, né? Me levava a tomar atitudes
autodestrutivas e nocivas. Eu fui uma pessoa que, além do transtorno
alimentar e de assim, de privar muito meu corpo, de tomar muito diurético,
laxante, tudo isso, né? Enfim, meu corpo estava todo descompensado. Sem
vitaminas, fiquei sem menstruar por mais de 2 anos, eu também usei muitas
drogas na adolescência, né? Então assim, eu levei o meu corpo muito ao
extremo. Eu comecei a perceber que não bastava, eu achava que eu queria
chegar naquele corpo, aí eu cheguei naquele corpo, e aí, tipo, eu não estava
feliz. Eu estava mais insegura ainda.
Olha, tudo que eu passei e eu não morri e sinceramente, eu não sei como,
eu levei o meu corpo muito ao extremo. Então, uma coisa que eu penso é,
caraca, tipo, a gente é feito para sobreviver, sabe? Assim como esse corpo
deu conta de tudo que eu fiz com ele, sabe, assim como ele aguentou firme
lá, até que eu conseguisse melhorar e me tratar.
É válido salientar que, ainda que diante de um mundo que parece estar
garantido pelo controle técnico, a angústia emerge e através dela a possibilidade de
ser autêntico surge. Dessa forma, a existência se constrói diante do horizonte de
possibilidades que se mostra ao homem, evidenciando que todo homem é um projeto
de vir-a-ser. Diante disso, é possível perceber que Jhenifer busca atribuir um novo
sentido a sua relação com o corpo, compreendendo que a relação anteriormente
mantida tornava-se insustentável, no sentido em que ao destruir seu corpo, destruía
sua própria existência. A vista disso, Jhenifer aponta como foi seu processo de
ressignificação:
Foi outro processo orgânico, eu nunca tinha pensado em criar o perfil para
falar disso, aquele era o meu perfil pessoal e o que aconteceu foi que durante
o meu processo de terapia foram surgindo reflexões e eu comecei a falar,
sem nenhuma intenção a não ser parar de viver sozinha com isso, e aí eu
recebi muitas mensagens de pessoas falando que se identificavam e que
também passavam por isso.
Então, assim, coisas que eu achava que eram muito minhas, que eu achava
que era bizarro e que eu era muito louca, e que eu era muito bizarra, você
começa a falar com outras pessoas e percebe que as pessoas fazem igual.
Descobri que não é que você está sendo super bizarra, me fez muito bem.
Eu também comecei a tratar isso de uma forma natural e contar para as
pessoas como era.
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Participante Pesquisador Auxiliar
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Pesquisador Responsável
Conselheiro Lafaiete/MG, ________ de ____________________________ de 2023.