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A busca pelo falo, a subjetivação masculina ou a

heterossexualização como moral homossexual

Felipe Areda
felipe.areda@gmail.com

"Je ne suis jamais. Je deviens."


( Eu não sou jamais. Eu me torno)
André Gide

Se, nas palavras de Simone de Beauvoir, "ninguém nasce mulher" (1980, p. 9),
creio que tampouco alguém nasce homem. Mais do que um papel pronto que os
que nasceram com pintos são obrigados a carregar, o lugar do masculino é um
lugar que deve ser construído e constituído a partir de formas de subjetivação que
têm como fundamento a busca pelo falo. Para deixar de ser esse devir-pinto, ser
que ainda não cumprir o seu lugar destinado de homem, tão logo apresente uma
sexualidade, ele deve confirmar o seu lugar sexual apresentando um desejo pelas
mulheres, que, antes de ser um desejo corporalafetivo, é um desejo político. Para
conquistar o falo, o homem deve se relacionar com esses seres castrados
ratificando assim o seu lugar de poder: agora sim ele é um sujeito, já que pode
tornar o outro um objeto. Ser homem é, acima de tudo, uma prática. É fácil
perceber a necessidade desse movimento de sujeição se observarmos um grupo
de adolescentes do sexo masculino. Uma das maiores ofensas que podem existir
dentro desse grupo é ser chamado de punheteiro, aquele que se mostra incapaz de
conseguir uma mulher para satisfazer seu desejo sexual e tem que recorrer à
masturbação, ou de viado, aquele que desonra o seu devir-pinto se tornando um
objeto, um passivo, uma mulher, nas relações com outros homens.
É intrigante perceber que a sexualidade, antes de ser um movimento de busca
de prazer e satisfação de um desejo, é uma face de uma moral masculina que nos
obriga a apresentar um determinado desejo. A heterossexualidade, então, acaba-se
por se tornar mais uma preocupação política homossexual de afirmação do seu
lugar numa moral viril do que a manifestação de um desejo físico-afetivo. É claro
que pode existir também um movimento de atração, mas provavelmente este é
construído depois e a partir dessa necessidade cultural e moral que obriga esse
devir-homem a apresentar uma preocupação de subjetivação.
Pensando novamente na masturbação, gostaria de especular agora o
movimento cultural que cria a própria lógica do onanismo (ver Foucault, 1988). Por
que a figura da criança onânica é duramente reprimida? Será mesmo para que esta
prática seja eliminada ou será que é para que, pelo contrário, esta seja criada? A
masturbação de fato só passa a existir quando surge um discurso sobre ela. Antes
da repressão acontecer, a criança do sexo masculino que tocava em seu pênis
sentindo prazer simplesmente tocava em seu pênis sentindo prazer, só depois de
denominado e qualificado pela voz pedagógica e moral que o reprimiu é que
realmente passa a se existir o ato de se masturbar. E o mesmo acontece com a
menina que antes se tocava sentindo prazer e que passa então a ser reprimida por
está fazendo um ato que é um simulacro do sexo, de uma penetração. Esse
discurso que reprime tem como justificativa o sexo, o ato sexual: masturbar-se não
é simplesmente tocar numa área proibida, mas estar realizando um ato de uma
aprendizagem sexual que não está na hora certa de acontecer. Com isso, esse foco
repentino aos órgãos sexuais não tem como objetivo evitar uma sexualidade
precoce, mas trazer à criança a consciência que ela tem um órgão sexual e que
este serve para fazer sexo, ela é sexualizada. Mais do que ter confirmado o seu
gênero, essa criança é genitalizada.
Refazendo essa genealogia da descoberta do sexo, ou da criação do próprio
sexo, focando principalmente no sexo masculino - já que numa moral viril o sexo
feminino é simplesmente a conseqüência dele - temos o seguinte processo: a
criança que explorava o seu prazer nas áreas genitais soube que essas áreas eram
genitais e que não deviam ser tocadas por que eram áreas do sexo; essa repressão
fez esse movimento de busca de prazer se tornar algo proibido e assim esse
movimento é banido para o foro íntimo e passa ser realizado ou sozinho, escondido,
longe da presença pública com ares de culpa, ou junto de outros que também se
masturbam escondidos; entrando na adolescência é-se bombardeado por discursos,
por um lado os que consideram a masturbação um movimento natural
de aprendizagem sexual e por outro os que a desqualificam como uma incapacidade
do menino de conseguir alguém para realizar o seu desejo. Em outras palavras: o
tocar o pênis buscando sentir prazer não é entendido como uma descoberta do
corpo, mas é problematizado como um ritual de entrada na vida sexual - a
masturbação como simulacro do outro, da mulher, do objeto. Está criada uma
necessidade política e uma problematização moral, uma ética a respeito do sexo.
Esses seres genitalizados, então, necessitam se subjetivar para assim conseguir
voz nessa moral de homens. Para se subjetivar eles precisam confirmar seu sexo
num movimento de construção pessoal, de prática de si, não há melhor palavra
para isso do que fazer sexo. No ato sexual o homem mostra a sua posição superior
quando come, fode, possui e domina a mulher, ele faz seu sexo, ele confirmar o
seu lugar, um sujeito, e define o lugar do outro, um objeto. O sexo da mulher
então se coloca a mercê do homem, do ato sexual, do momento em que alguém faz
sexo com ela ou que ela é desejada para essa função. Como nasceu culturalmente
castrada, a mulher não pode se tornar um sujeito, então a única maneira dela se
encaixar nessa moral de homens é como um objeto, como um segundo sexo.
Dentro dessa moral, essa é a sua única maneira de ser. Talvez por isso a lésbica
seja a figura que mais se encontra à parte dessa moral masculina, a lésbica é
aquela que não é, é aquela que não têm sexo dentro dessa moral, já que as
lésbicas não são mulheres (Wittig, 1980) embora tenham nascido castradas. Vê-se
isso na própria História e nos seus registros: "não se fala, logo não existe"
(Navarro-Swain, 2000, pg. 19) uma relação lesbiana. "As mulheres homossexuais
não tinham direito a um nome, logo, à existência." (idem). Contudo, tende-se a
moralizar a lésbica. Tanto a enquadrando na lógica heteronormativa a partir da
dualidade butch e femme¹, onde se mantém uma lógica heterossexual mesmo a
butchse tornando um pastiche do lugar homem; como na objetificação das
próprias lésbicas que faz com haja um olhar de desejo para essa relação - o famoso
desejo masculino de transar com duas mulheres. As lésbicas só são, só passam
a ser e a existir dentro dessa moral e desse mundo moral quando existe esse olhar
que as vêem como um pastiche de sujeito ou como um objeto desejável em uma
aventura sexual. Mesmo assim, as lésbicas talvez sejam hoje o ponto mais
subversivo e marginal dessa sexualidade viril. A moral ainda não está
completamente convicta que ser lésbica é uma maneira de ser.
Os gays, ao contrário, não possuem nem um ar de contracultura. São devires-
pintos que se enquadraram perfeitamente nessa moral masculina. Tanto quando se
subjetivam ratificando seu lugar de homens - gays, porém ativos -, como quando
são ratificados no ato sexual com outro homem se igualando ao objeto mulher
como passivos. Obviamente os primeiros são melhores aceitos, já que existe uma
cultura que não condena a relação puramente sexual com outra pessoa do sexo
masculino quando se é ativo. Esses, muitas vezes, nem são considerados gays. Mas
com os passivos, que são visto como seres que desejam ocupar o lugar da mulher,
existe uma manifestação de ódio por eles não honrarem o seu devir-pinto ao não
ocupar o seu lugar de homem. Essa homofobia, porém, é uma conseqüência do
mesmo olhar que menospreza e castra as mulheres. Essa homofobia é uma
manifestação da própria moral homossexual, é uma manifestação da misoginia
dessa moral.
É nítido o quanto essa moral nos engole, moral que além de trazer uma
obrigação política, cria até a nossa preocupação ética. Moral que fundamenta a
nossa relação conosco mesmos e com os outros. Moral que constitui a nossa
identidade, a forma que somos vistos e que nos vemos. Moral que nos faz ser e que
nos faz seres. Como então subverter essa moral? Como se colocar a parte dessa
ordem homossexual que nos obriga a nos heterossexualizar, que nos obriga a
sexualizar e a nos sexualizar, que nos obriga a ser sexo e fazê-lo? Talvez a melhor
forma seja abrir mão desse, abrir mão do gênero, abrir mão do sexo, abrir mão da
identidade, abrir mão da sexualidade e do fazer sexo. Abrir mão das identificações,
das predestinações, das práticas que nos nomeiam e das máscaras com as quais
somos obrigados a fazer coreografadas performaces. Abrir mão de ser, enfim.
Ser, talvez, seja a melhor forma de compactuar com essa moral. Ser feito, ser
fazendo, fazendo ser e até mesmo sendo diferente. O não-ser talvez seja o que
possa existir de singular. Não ser, estar à margem desse engessamento moral,
estar à parte dessa cultura de lugares. Não ser e só não sendo poder agir contra
essa cultural, criando cultura, mas não mais a sendo. Não ser nada, um não-ser
que pode ser tudo, um tudo indefinido e longe das máscaras prontas, uma cultura
nova, uma cultura à parte e não identificada. O não-ser que é máscara fluida, que é
performance inédita, que é manifestação do não-dito e do indizível. É difícil
imaginar, porém, que, depois de já subjetivados, os sujeitos dessa moral
queiram deixar de ser. Quando já sujeitos, torna-se culturalmente fácil manter
essas práticas do sexo, essas práticas políticas de manutenção da voz moral,
manter a heterossexualidade continuando a fazer mais objetos e permanecendo,
assim, com a moral homossexual intacta. Se a lógica da subjetivação masculina é
regida pela violência, pela objetivação do outro e pela criação de femininos, já que
tornar-se homem é tornar outros indivíduos mulheres, por que razão se esperaria
que os homens, os sujeitos, se incomodassem com a violência e a objetivação do
outro? Por que se esperaria que eles abrissem mão de suas formas de ser? Por
piedade, por culpa, por comiseração? Nenhuma resposta ainda me parece clara.
Abrir mão da identidade sexual talvez seja um caminho interessante
para desconstruir essa moral sexualizadora. Esse caminho, porém, também é um
caminho viril; pois, como se se torna homem enquanto se é tornada mulher, esse
caminho só é possível para homens. Não cabe ao feminino escolher se terá ou não
uma identidade, a identidade o engole. Só os homens, depois de devidamente
subjetivados, podem abrir mão da identidade.
Talvez o caminho então esteja na especulação dessa moral. Analisar remexe
as verdades, expõe o sólido e, com ele, as fissuras. Criticar as práticas sexuais,
buscar as origens do sexo e desmentir as essências talvez seja se colocar à
margem desse moral, à margem dessa forma de ser que é entregue os indivíduos
de forma tão clara. Mostrar as construções desconstruindo o que já parece ter
nascido feito, pois ser é uma prática, uma construção de si. Desconfiar dessa moral
e de si mesmo como integrante dela pode abrir espaço para uma nova ética, para
uma nova forma de se ver dentro desse moralismo sexual engessado, dessa cultura
sexual e sexualizadora. Só assim parece nascer uma nova problematização de si
que possibilitaria a mudança das práticas, a mudança das funções, a mudança das
performances e mudança dos tornar-se. Só assim deixaríamos de ser, de ter que
ser e de se ver tendo sido feito e, assim, não mais seres, poderíamos buscar
novas formas de viver não mais sendo apenas sujeitos ou objetos de uma moral
engessada. Mais do que buscar ser de outra forma, buscar formas novas de ser.
Descontruir as opções que nos foram dadas, estar à parte delas e criar novas
opções. Novos caminho e talvez uma nova busca.
Nota: 1 As expressões “butch” e “femme” correspondem, respectivamente, aos
papéis “masculinos” e “femininos” em uma imagem binária e heteronormativa da
relação lesbiana.

Referências bibliográficas
DE BEAUVOIR, Simone. O segundo Sexo. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1980, vol
2.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2 - O uso dos prazeres. Rio de Janeiro :
Graal, 1984.
____. História da Sexualidade 1 - A vontade de saber. Rio de Janeiro : Graal,
1988.
NAVARRO-SWAIN, Tania. O que é Lesbianismo. São Paulo : Brasiliense, 2000.
WITTIG, Monique (1980). The Straight Mind and other Essays, Boston: Beacon,
1992 - Discurso Intitulado "Pensamento Hétero" proferido em 1980. Publicado em
português em http://www.geocities.com/girl_ilga/textos/pensamentohetero.htm,
acessado em 10/12/2004.
buscado em: http://e-groups.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/art13.pdf

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