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Henrik Ibsen

JOHN GABRIEL BORKMAN

Tradução do original norueguês Fátima Saadi e Karl Erik Schollhammer

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— TEATRO —

Henrik Ibsen JOHN GABRIEL BORKMAN

Tradução do original norueguês Fátima Saadi e Karl Erik Schallhammer

editoral34

TEATRO —

Henrik Ibsen JOHN GABRIEL BORKMAN


Tradução do original norueguês Fátima Saadi e Karl Erik Schollhammer

editoraH34

EDITORA 34
Distribuição pela Códice Comércio Distribuição e Casa Editorial Ltda. R.
Simões Pinto, 120 CEP 04356-100 Tel. (011) 240-8033 São Paulo-SP

Copyright © Editora 34 Ltda. (desta edição), 1996

Tradução do originai © Fátima Saadi e Karl Erik Schellhammer, 1996

A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL, L


CONFIGURA UMA APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS
INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

Título original:

John Gabriel Borkman

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Bracher & Malta Produção Gráfica

1* Edição -1996 Editora 34 Ltda.

Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 São Paulo-SP Brasil Tel/Fax
(011) 816-6777

Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Fundação Biblioteca


Nacional, RJ, Brasil)

Ibsen, Henrik, 1828 -1906 12lj John Gabriel Borkman / Henrik Ibsen;
tradução

de Fátima Saadi e Karl Erik SchHÜhammer. — São Paulo:

Ed. 34, 1996

96 p. (Coleção Teatro)

Tradução de : John Gabriel Borkman

ISBN 85-85490-49-1

1. Teatro norueguês. I. Saadi, Fátima.

II. SchoUhammer, Karl Erik. III. Título.


Personagens

Primeiro Ato 34

Segundo Ato 63

Terceiro Ato

81

Quarto Ato

John Gabriel Borkman, ex-diretor de banco.

Gunhild Borkman, sua mulher.

Erhart Borkman, filho do casal, estudante.

Ella RENTHEIM, irmã gêmea da Sra. Borkman.

Sra. Fanny Wilton.

VlLHELM Foldal, escrevente.

Frida Foldal, sua filha.

A Criada da Sra. Borkman.

A ação se passa numa noite de inverno, na propriedade dos Rentheim, nos


arredores da capital.

PRIMEIRO ATO

Sala de estar de Gunhild Borkman. A mobília, outrora luxuosa, parece gasta e


fora de moda. Uma porta de correr separa a sala do jardim de inverno. Dali,
através das janelas e da porta envidraçada ao fundo, vemos, lá fora, o crepúsculo
e a neve que cai. À direita, a porta que dá para o vestíbulo.

Mais à frente está acesa uma estufa de ferro, grande e antiga. À esquerda, mais
para o fundo, uma porta pequena. Ainda à esquerda, uma janela com pesadas
cortinas. Entre a janela e a porta, um sofá forrado de pele e diante dele uma mesa
coberta por uma tapeçaria. Sobre a mesa, uma lâmpada. Perto da estufa, uma
poltrona de encosto alto.

A Sra. Borkman está sentada no sofá fazendo crochê. É uma velha empertigada,
de aparência distinta e fria: sua expressão é dura e seus cabelos fartos já estão
bem grisalhos. Suas mãos são finas e muito brancas, quase transparentes. Ela
está usando um vestido de seda escuro e pesado que deve ter sido bonito quando
novo mas que agora parece fora de moda e muito batido. Sobre os ombros, um
xale de lã.

A Sra. Borkman, muito aprumada, fica imóvel por algum tempo, ocupada com o
crochê. Ouve-se então o som das campainhas de um trenó que passa lá fora. Ao
escutar o som das campainhas, seus olhos brilham de contentamento e ela
murmura quase que involuntariamente: “Erhart! Até que enfim!” Depois
levanta-se, olha para fora afastando um pouco as cortinas, senta-se novamente
no sofá e retoma o crochê. Parece

desapontada. Ao cabo de um momento a Criada entra pela porta que dá para o


vestíbulo com um cartão de visitas numa bandeja pequena.

SRA. BORKMAN (Ansiosa.) — O Senhor Erhart chegou finalmente?

A CRIADA — Não, madame. Mas está aí um senhora que...

SRA. BORKMAN (Deixando de lado o crochê.) — E a Sra. Wilton, com


certeza...

A CRIADA (Aproximando-se.) — Não, é uma senhora

que eu não conheço.

SRA. BORKMAN (Pegando o cartão.) — Deixe ver. (Depois de ler, levanta-se


de um salto e olha fixamente para a Criada.) Tem certeza de que é para mim?

A CRIADA — Foi o que eu entendi — que era para a senhora.

SRA. BORKMAN — Ela pediu para falar com a Sra. Borkman?


A CRIADA — Pediu, madame.

SRA. BORKMAN (Secamente, encerrando o assunto.) — Muito bem. Diga que


estou em casa.

(A Criada abre a porta para a desconhecida e se retira. Ella Rentheim entra.


Parece muito com a irmã mas sua expressão denota mais sofrimento que dureza.
Seu rosto ainda conserva traços da beleza de outrora. Seu cabelo cheio e
ondulado está completamente grisalho; penteado para trás, deixa a testa livre.
Ela está vestida de veludo negro com chapéu e capa do mesmo tecido. As duas
irmãs ficam um instante em silêncio, medindo-se. Cada uma espera que a outra
fale primeiro.)

ELLA RENTHEIM (Perto da porta, sem entrar.) — Você parece surpresa de me


ver, Gunhild.

SRA. BORKMAN (Empertigada e imóvel, entre o sofá e a mesa, com as pontas


dos dedos pousadas na toalha.) — Você não errou de porta? O intendente mora
no anexo.

ELLA RENTHEIM — Não é com o intendente que eu quero falar. _-_______

SRA. BORKMAN — Então é comigoF ~ “

ELLA RENTHEIM -\É\ Preciso trocar umas palavras com você.

SRA. BORKMAN (Avançando.) — Nesse caso, sente-se.

ELLA RENTHEIM — Obrigada. Estou bem de pé.

SRA. BORKMAN — Como queira. Mas ao menos tire o abrigo.

ELLA RENTHEIM (Abrindo a capa.) — Claro; está bem quente aqui.

SRA. BORKMAN — Eu sempre sinto frio.

ELLA RENTHEIM (Parando um momento e olhando para ela, os braços no


encosto da poltrona.) — E, Gunhild... Faz quase oito anos que não nos vemos...

SRA. BORKMAN (Friamente.) — Que não nos falamos.


ELLA RENTHEIM — É... que não nos falamos... porque você provavelmente
me vê de tempos em tempos quando eu venho, uma vez por ano, encontrar o
intendente.

SRA. BORKMAN — Acho que a vi uma vez ou duas.

ELLA RENTHEIM — E eu também a vi de relance algumas vezes ali na janela.

SRA. BORKMAN — Só se foi através das cortinas. Você tem olhos de lince.
(Áspera e cortante.) Mas a ultima vez que falamos uma com a outra foi aqui, na
minha sala...

ELLA RENTHEIM (Evasiva.) — Claro, claro, eu sei, Gunhild.

SRA. BORKMAN — Uma semana antes de ele sair...

ELLA RENTHEIM (Recuando.) — Não toque neste assunto!

SRA. BORKMAN (Firme, em voz baixa.) — Uma semana antes que ele... que o
diretor do banco fosse solto.

ELLA RENTHEIM (Vindo à frente.) — Sim, sim, sim! Eu não poderia esquecer
aquele tempo. Mas é tão deprimente pensar nisso. Mesmo que seja só por um
momento. Ah!

SRA. BORKMAN (Em voz surda.) — E, no entanto, não se consegue pensar em


outra coisa. (Enfática, juntando I as mãos.)Não, não posso compreender. Nunca!
Não posso imaginar como uma coisa como essas — como uma coisa tão terrível
pôde se abater sobre uma única família! E logo, imagine, sobre a nossa família!
Uma família tão distinta! pensar que tudo desabou justamente sobre nós

ELLA RENTHEIM — Ah! Gunhild! Além da nossa, muitas, muitas outras


famílias foram atingidas por aquela desgraça.

SRA. BORKMAN — Claro, mas não estou preocupada com os outros. Para eles
foi só uma questão de dinheiro... um punhado de papéis... Mas para nós...! Para
mim! E para Erhart! Ele era ainda uma criança naquela época. (Cada vez mais
exaltada.) Cobertos de vergonha, nós, dois inocentes. Desonrados. Que terrível é
a desonra, tão difícil de carregar.
E ainda por cima arruinados!

ELLA RENTHEIM — E diga-me, Gunhild... como é que ele encara tudo isso ?

SRA. BORKMAN — Quem, Erhart?

ELLA RENTHEIM — Não, ele próprio. Como é que ele tem suportado isso?.

SRA. BORKMAN (Com um muxoxo de desdém.) — E você acha que eu por


acaso perguntei?

ELLA RENTHEIM — Mas você não precisava perguntar para...

SRA. BORKMAN (Olhando-a estupefata.) — Não me diga que você pensa que
eu ainda tenho alguma coisa com ele... que eu o encontro. Eu nem sequer o vejo.

ELLA RENTHEIM — Não? Nunca?

SRA. BORKMAN (No mesmo tom.) — Ele que esteve trancafiado por cinco
anos! (Escondendo o rosto nas mãos.)

Que humilhação, que vergonha! (Com raiva crescente.) E pensar no que outrora
representava o nome de John Gabriel Borkman!... Não, não, não... Nunca mais
quero vê-lo! Nunca mais!

ELLA RENTHEIM (Olhando-a por um momento.) — Você tem um coração


duro, Gunhild.

SRA. BORKMAN — Para ele, tenho.

ELLA RENTHEIM — Mas é seu marido.

SRA. BORKMAN — Ele não disse no tribunal que fui eu que o arruinei? Que
eu gastava demais...

ELLA RENTHEIM (Com cautela.) — Mas não havia um

fundo de verdade nisto?

SRA. BORKMAN — Mas se era ele mesmo que queria que eu gastasse... Tudo
tinha que ser desmedidamente extravagante...
ELLA RENTHEIM — Eu sei. Mas justo por isso é que você deveria ter
resistido. Mas não foi o que você fez.

SRA. BORKMAN — E eu por acaso sabia que o dinheiro que ele me dava para
gastar não era dele? E ele também gastava rios de dinheiro. Dez vezes mais que
eu.

ELLA RENTHEIM (Suavemente.) — Acho que a posição dele exigia, até certo
ponto, essa ostentação.

SRA. BORKMAN (Com desdém.) — É, a desculpa era sempre: “Precisamos


manter as aparências”. E ele mantinha as aparências — não tenha dúvida.
Carruagens puxadas por quatro cavalos — como se ele fosse um rei. (Rindo.) E
de uma ponta a outra do país o conheciam pelo nome de batismo, como os reis:
“John Gabriel... John Gabriel...” Todos sabiam quem era o grande John Gabriel.
E todos viram depois que grande homem era o John Gabriel!...

ELLA RENTHEIM (Calorosa e enfática.) — Naquela época ele era um grande


homem.

SRA. BORKMAN — Ao menos parecia. Mas ele nunca me disse uma palavra a
respeito da situação real dos negócios. Eu nunca poderia imaginar a origem
daquele dinheiro.

ELLA RENTHEIM — Não; nem você nem ninguém mais.

SRA. BORKMAN — Que me importam os outros! A mim ele tinha a obrigação


de dizer a verdade. Mas ele mentiu... mentiu o tempo todo!

ELLA RENTHEIM (Interrompendo.) — Ele não mentiu, Gunhild, ele pode ter
evitado o assunto, mas não mentiu.

SRA. BORKMAN — Chame como quiser: dá no mesmo. No fim, tudo


desmoronou. Tudo. Não restou nada de todo aquele esplendor.

ELLA RENTHEIM (Para si mesma.) — Não restou nada, nem para ele nem para
os outros.

SRA. BORKMAN (Levantando-se exalando ameaçadoramente.) — Mas ouça


bem, Ella, ainda não entreguei os pontos. Hei de encontrar uma forma de me
reerguer! Pode ter certeza!

ELLA RENTHEIM (Ansiosa.) — Reerguer? Como assim?

SRA. BORKMAN — Reerguer meu nome, minha reputação, minha posição.


Isto é: obter uma reparação por minha vida arruinada. Tenho alguém por mim.
Alguém que vai purificar tudo, tudo o que ele conspurcou.

ELLA RENTHEIM — Gunhild! Gunhild!

SRA. BORKMAN (Cada vez mais exaltada.) — Um vingador, pronto a reparar


todo o mal que os crimes de seu pai me causaram!

ELLA RENTHEIM — Então é de Erhart que você está falando? _____

SRA. BORKMAN — Sim, Erhart — meu esplêndido filho .Ele conseguirá


reabilitar a família, a casa, o nome que carrega. Tudo o que pode ser recuperado.
Talvez até mais.

ELLA RENTHEIM — E como é que você imagina que ele vá fazer isso?

SRA. BORKMAN — Não sei ainda como. Mas sei que isto vai, que isto tem que
acontecer algum dia. (Interrogan-

do a irmã com o olhar.) Ella, sinceramente, você também sempre pensou nisso,
desde que ele era criança, não é verdade?

ELLA RENTHEIM — Não, nunca me ocorreu.

SR A. BORKMAN — Não? Então por que você tomou conta de Erhart quando a
tempestade desabou sobre esta casa?

ELLA RENTHEIM — Você não estava em condições de criar o menino,


Gunhild.

SRA. BORKMAN — Não, não estava. E o pai dele tinha uma boa desculpa
legal, para não assumir nenhuma responsabilidade lá onde ele estava... tão bem
guardado...

ELLA RENTHEIM (Indignada.) — Como é que você pode falar assim! Vocêl
' SRA. BORKMAN (Com uma expressão venenosa.) —

E pensar que você não hesitou em tomar conta de... um filho de John Gabriel.
Como se a criança fosse sua. Tomá-la de mim e ir para casa com ele. E mantê-lo
em sua casa até ele ficar crescido. (Olhando-a com desconfiança.) Só queria
saber por que você fez isto. Por que você ficou com ele?

ELLA RENTHEIM — Eu me afeiçoei tanto a ele!

SRA. BORKMAN — Mais do que eu... a mãe dele!

ELLA RENTHEIM (Evasiva.) — Como posso saber? E além disso Erhart era
tão frágil quando menino.

SRA. BORKMAN — Erhart... frágil!

Ella RENTHEIM — Eu achava. Pelo menos naquela época. E você sabe que o
clima na costa oeste é muito mais saudável do que aqui.

SRA. BORKMAN (Com um sorriso amargo.) — Hum.

É mesmo? (Cortante.) Está certo. Você fez muito por Erhart, tenho que
reconhecer. (Mudando de tom.) Mas também você tinha todas as condições.
(Sorrindo.) Você teve muita sorte, Ella. Tudo o que era seu foi preservado.

ELLA RENTHEIM (Ferida.) — Garanto-lhe que não tomei nenhuma


providência neste sentido. Eu não sabia, até muito tempo depois, que a minha
conta no banco... tinha sido preservada.

SR A. BORKMAN—Não sou uma especialista nesses assuntos. Só estou


dizendo que você teve sorte. (Olhando-a de forma inquisitiva.kMas quando você
resolveu, por sua própria conta, criar Erhart no meu lugar... quais eram as suas
intenções?

ELLA RENTHEIM (Olhando-a.) — Minhas intenções?

SRA. BORKMAN — Claro. Não foi à toa que você fez isto. O que é que você
queria dele? Quer dizer, o que é que você queria fazer dele?- - -

ELLA RENTHEIM (Lentamente.) — Eu queria suavizar o caminho de Erhart e


pôr ao alcance dele a felicidade deste mundo. --

SRA. BORKMAN (Com desdém.) -|Ora! Òuem está numa situação como a
nossa tem mais o que fazer... não pode se dar ao luxo de ficar pensando em
felicidade.

ELLA RENTHEIM—Como? Não estou compreendendo.

"SRA. BORKMAN (Olhando-a fixamente, num tom grave.) — Erhart tem por
obrigação, antes de mais nada, brilhar de tal maneira que, por toda a parte, no
país todo, ninguém perceba mais um só vestígio da sombra que o pai dele lançou
sobre mim... e sobre o meu filho. _

ELLA RENTHEIM (Inquisidora.) — Diga-me, Gunhild, é isso o que Erhart quer


da vida?

SRA. BORKMAN (Surpresa.) — Claro! Espero que sim.

ELLA RENTHEIM —... ou é você que quer isso dele?

SRA. BORKMAN (Cortante.) — Erhart e eu estamos jejnpre de acordo.

ELLA RENTHEIM (Lentamente e com tristeza.) — Você confia demais em seu


filho, Gunhild.

SRA. BORKMAN (Com um maldissimulado ar de triunfo.) — Graças a Deus.


Pode acreditar em tudo o que eu disse.

ELLA RENTHEIM — Então você é uma mulher feliz, apesar de tudo.

SRA. BORKMAN — Claro, até certo ponto. Mas tudo o que aconteceu volta
sempre, ameaçador como um temporal que, de vez em quando, desaba sobre
mim.

ELLA RENTHEIM (Mudando de tom.) — Diga-me... bem, é melhor irmos


direto ao assunto porque foi para conversarmos sobre isto que eu vim.

SRA. BORKMAN — De que se trata?

ELLA RENTHEIM — Acho que eu devia falar com você sobre... Diga-me,
Erhart não está morando aqui com... vocês.

SRA. BORKMAN (Numa voz dura.) — Erhart não pode morar aqui comigo. Ele
tem que ficar na cidade.

ELLA RENTHEIM — Foi o que ele me escreveu.

SRA. BORKMAN — Por causa dos estudos. Mas ele passa para me ver todas as
noites.

ELLA RENTHEIM — Então imagino que eu poderia vê-lo e falar logo com ele.

SRA. BORKMAN — Ele ainda não veio mas deve chegar a qualquer momento.

ELLA RENTHEIM — Ele já está em casa, Gunhild. Eu o ouço caminhar no


andar de cima.________

SRA. BORKMAN (Olhando de relance.) — No salão?

ELLA RENTHEIM — É. Estou escutando passos desde que cheguei.


___________

SRA. BORKMAN (Desviando os olhos.) —Não é ele.

ELLA RENTHEIM (Surpresa.) — Não é Erhart? (Adivinhando.) Quem é então?

SRA. BORKMAN — O diretor do banco.

ELLA RENTHEIM (Baixo, reprimindo a dor) Borkman! John Gabriel Borkman!

SRA. BORKMAN — Ele anda o tempo todo assim. De um lado para o outro. Da
manhã à noite. Todo santo dia.

ELLA RENTHEIM — É verdade, eu já tinha ouvido falar que...

SRA. BORKMAN — Acredito. Devem falar muito de nós...

ELLA RENTHEIM —Foi Erhart que me contou. Por carta. Que o pai dele fica,
em geral, lá em cima. E você aqui embaixo.

SRA. BORKMAN — É, tem sido assim, Ella, desde o dia em que o soltaram. E
o mandaram de volta para casa. Para mim. E isto já faz oito longos anos.

ELLA RENTHEIM — Mas eu não acreditei que fosse verdade, que fosse
possível...

SRA. BORKMAN—Mas é. E nunca será de outra forma.

ELLA RENTHEIM (Olhando para a irmã.) — Deve ser uma vida terrível,
Gunhild!

SRA. BORKMAN — Mais que terrível, Ella. Acho que não suportarei isto
muito tempo mais.

ELLA RENTHEIM — Compreendo.

SRA. BORKMAN — Escutar o tempo todo estes passos sobre a minha cabeça.
Desde o amanhecer até tarde da noite. E os passos ressoam como se ele andasse
aqui, nesta sala.

ELLA RENTHEIM — É estranho como daqui se ouve tudo tão nitidamente.

SRA. BORKMAN — Mais de uma vez tive a impressão de que lá em cima,


sobre a minha cabeça, há um lobo doente que mede com os passos a jaula. (Ouve
e sussurra.) Ouça agora. Ouça — é o lobo que anda de um lado para o outro, de
um lado para o outro._

ELLA RENTHEIM (Com jeito.) — Não seria possível fazer alguma coisa,
Gunhild?

SRA. BORKMAN (Encerrando o assunto.) — Ele nunca fez nada.

ELLA RENTHEIM — Mas você não poderia fazer o primeiro gesto?

SRA. BORKMAN (Empertigando-se.) — Eu! Depois de tudo o que ele me fez!


Não, obrigada. Prefiro deixar o lobo andando na jaula. Ele que ande o quanto
quiser!

ELLA RENTHEIM — Está quente aqui. Posso tirar o casaco?

SRA. BORKMAN — Mas eu já tinha dito a você que tirasse...


(Ella Rcnthcim coloca o casaco e o chapéu numa cadeira perto da porta de
entrada.)

ELLA RENTHEIM — Nunca acontece de você o encontrar fora de casa?

SRA. BORKMAN (Com um sorriso amargo.) — Em sociedade?

ELLA RENTHEIM — Não, aí fora, quando ele sai para tomar ar. No bosque
ou...

SRA. BORKMAN — O diretor nunca sai.

ELLA RENTHEIM — Nem à noite, na penumbra?

SRA. BORKMAN — Não. Nunca.

ELLA RENTHEIM (Comovida.) — Não tem coragem...

SRA. BORKMAN — Parece. O casaco e o chapéu dele estão lá, pendurados no


armário do vestíbulo...

ELLA RENTHEIM (Para si mesma.) — O armário onde nos escondíamos


quando éramos crianças.

SRA. BORKMAN (Assentindo.) — E de vez em quando eu o ouço descer, tarde


da noite, para se aprontar e sair. Mas no meio da escada ele desiste e sobe
novamente para o salão.

ELLA RENTHEIM (Suavemente.) — Mas nenhum dos velhos amigos dele vem
visitá-lo?

SRA. BORKMAN — Ele não tem velhos amigos.

ELLA RENTHEIM— Mas ele tinha tantos... antigamente.

SRA. BORKMAN — Ora, ele escolheu o caminho mais fácil para se livrar de
todos eles. Foi uma amizade muito cara a de John Gabriel.

ELLA RENTHEIM — É verdade, nisso você tem razão, Gunhild.

SRA. BORKMAN (Zangada.) — De qualquer forma, é preciso ser muito


mesquinho, muito baixo, muito medíocre para atribuir tanto valor a uns
centavinhos perdidos. Porque afinal ele só os fez perder dinheiro. Nada mais.

ELLA RENTHEIM (Sem responder.) — Então ele vive lá em cima,


completamente sozinho.

SRA. BORKMAN — Quase completamente. Ouvi dizer que um sujeito, acho


que um antigo escrevente do banco, vai lá vê-lo de vez em quando.

ELLA RENTHEIM — Ah! Com certeza é Foldal. Eram amigos quando jovens.

SRA. BORKMAN — Acho que sim. Mas não sei nada dele. Ele nunca fez parte
do nosso círculo de amigos. No tempo em que tínhamos amigos...

ELLA RENTHEIM — Mas agora ele visita Borkman?

SRA. BORKMAN — Por aí você vê o nível dele. Mas nem é preciso dizer que
ele só vem quando já está escuro.

ELLA RENTHEIM — Esse Foldal... foi um dos que perdeu dinheiro com a
falência do banco.

SRA. BORKMAN (Com pouco caso.) — É, acho que ele perdeu qualquer coisa.
Muito pouco, com certeza.

ELLA RENTHEIM (Com ligeira ênfase.) — Mas era tudo o que ele tinha.

SRA. BORKMAN (Sorrindo.) — Ora, tudo o que ele tinha não era lá grande
coisa. Nada que valha a pena mencionar.

ELLA RENTHEIM — E que certamente não foi sequer mencionado no


processo. Foldal calou-se.

SRA. BORKMAN — Mas posso assegurar-lhe que Erhart indenizou-o de sobra


pela bagatela que ele perdeu.

ELLA RENTHEIM — Erhart! Como?

SRA. BORKMAN — Ele se encarregou da educação da filha caçula de Foldal.


Assim, ela será capaz de se colocar e um dia ganhar o próprio sustento. Isto é
muito, muito mais do que o pai poderia fazer por ela, compreende?

ELLA RENTHEIM — Acredito que o pai não esteja mesmo em boa situação.

SRA. BORKMAN — E Erhart proporcionou-lhe até aulas de música e ela está


indo tão bem que costuma vir tocar para... para ele lá em cima no salão.

ELLA RENTHEIM — Então ele ainda gosta de música?

SRA. BORKMAN — Acho que sim. Ele ficou com o piano que você mandou
quando ele ia voltar...

ELLA RENTHEIM — E é nesse piano que ela toca?

SRA. BORKMAN — É. De vez em quando, à noite. Foi Erhart quem


providenciou isso também.

ELLA RENTHEIM — Mas é muito longe para a pobrezinha vir até aqui e voltar
depois para a cidade...

SRA. BORKMAN — Mas ela não precisa vir e voltar. Erhart arranjou para que
ela ficasse na casa de uma moça que mora aqui bem perto. Uma tal Sra. Wilton...

ELLA RENTHEIM (Interessada.) — Wilton!

SRA. BORKMAN — Uma mulher muito rica.Você não conhece.

ELLA RENTHEIM—Já ouvi esse nome. Fanny Wilton, se não me engano.

SRA. BORKMAN — Isso mesmo.

ELLA RENTHEIM — Erhart me falou dela em várias cartas. Então ela agora
está morando aqui?

SRA. BORKMAN — Ela alugou uma boa casa aqui perto e se mudou da cidade
para cá já faz algum tempo.

ELLA RENTHEIM (Hesitando.) — Dizem que ela se divorciou do marido.

SRA. BORKMAN — O marido dela já morreu há vários anos.


ELLA RENTHEIM — Sei, mas eles já estavam divorciados. Foi ele que pediu o
divórcio.

SRA. BORKMAN — Mas a culpa não foi dela: ele a abandonou, foi isto o que
aconteceu.

ELLA RENTHEIM — Você a conhece bem, Gunhild?

SRA. BORKMAN — Bastante. Como ela mora aqui perto, costuma vir me ver
de vez em quando.

ELLA RENTHEIM — E você gosta dela?

SRA. BORKMAN — Ela é extremamente inteligente. É impressionante a


clareza com que ela avalia as coisas.

ELLA RENTHEIM — As pessoas sobretudo, não é?

SRA. BORKMAN — É. Erhart, por exemplo, tornou-se um verdadeiro objeto de


estudo para ela. Ela o conhece a fundo... em todos os meandros de sua alma... c
naturalmente ela o adora.

ELLA RENTHEIM — Então ela conhece Erhart melhor do que conhece você.

SRA. BORKMAN — É verdade. Erhart costumava encontrá-la com muita


freqüência na cidade... antes de ela se mudar para cá.

ELLA RENTHEIM (Sem pensar.) — Então ela acabou vindo mesmo morar
aqui.

SRA. BORKMAN (Depois de um sobressalto, olhando a de forma inquisitiva.)


— “Vindo mesmo”, como assim?

ELLA RENTHEIM (Evasiva.) — Não, nada.

SRA. BORKMAN — Você falou de um modo tão estranho. Você estava


querendo dizer alguma coisa, Ella.

ELLA RENTHEIM (Olhando-a bem nos olhos.) — Estava sim. Estava querendo
dizer alguma coisa mesmo.
SRA. BORKMAN — Muito bem, então diga logo de uma vez.

ELLA RENTHEIM — Primeiro quero dizer o seguinte: creio que eu também


tenho direitos sobre Erhart. Ou você discorda?

SRA. BORKMAN (Desviando o olhar.) — Depois de todo o dinheiro que você


investiu nele...

ELLA RENTHEIM — Não se trata disso, Gunhild, mas do amor que tenho por
ele.

SRA. BORKMAN (Rindo com desdém.) — Por meu filho? Você? Apesar de
tudo?

ELLA RENTHEIM — Sim, eu. Apesar de tudo. E eu... eu amo... eu amo Erhart
tanto... tanto quanto eu poderia ainda amar alguém, neste momento. Na minha
idade.

SRA. BORKMAN — Está bem, está bem, mas...

ELLA RENTHEIM — E por isso fico inquieta cada vez que o vejo correndo
algum perigo.

SRA. BORKMAN — Perigo? Que perigo ele pode estar correndo no momento?
Quem o ameaça?

ELLA RENTHEIM — Em primeiro lugar, você — a seu modo.

SRA. BORKMAN (Com veemência.) — Eu!

ELLA RENTHEIM — E depois essa Sra. Wilton. Tenho medo dela.

SRA. BORKMAN (Olhando-a atônita por um momento.) — E você pode pensar


uma coisa dessas do meu Erhart! Do meu filho! Que tem uma missão tão
grandiosa a cumprir!

ELLA RENTHEIM (Fazendo pouco.) — Ora “missão”!

SRA. BORKMAN (Indignada.) — Como se atreve a fazer pouco de algo tão


importante?
ELLA RENTHEIM —Você acha que um rapagão como Erhart, inteligente e
cheio de vida, vai sacrificar-se por uma "missão"?...

SRA. BORKMAN (Com firme determinação.) — Acho, não. Tenho certeza.

ELLA RENTHEIM (Balançando a cabeça.) — Você não acha nem tem certeza,
Gunhild.

SRA. BORKMAN — Como não?

ELLA RENTHEIM — É só um sonho. Se você não se agarrasse a isto já teria


mergulhado no mais fundo desespero.

SRA. BORKMAN — É verdade, eu teria caído em desespero. (Zangada.) E era


o que você queria, Ella!

ELLA RENTHEIM (Levantando a cabeça.) — Se disso dependesse a felicidade


de Erhart...

SRA. BORKMAN (Ameaçadora.) — Você quer se meter entre nós! Entre mãe e
filho! Você!

ELLA RENTHEIM — O que eu quero é livrá-lo de você, do seu controle, do seu


poder.

SRA. BORKMAN (Triunfante.) — Tarde demais. Você

o enredou nas suas teias até os quinze anos mas agora eu o tomei de você.

ELLA RENTHEIM — Pois então eu o reconquistarei.

(Com a voz rouca, quase num sussurro.) Por causa de um homem, Gunhild,
travamos outrora uma luta de morte.

SRA. BORKMAN (Olhando exultante para a irmã.) — E eu ganhei.

ELLA RENTHEIM (Sorrindo desdenhosa.) — Você tem certeza de que ganhou


alguma coisa com a vitória?

SRA. BORKMAN (Sombria.) — Não. Nisto você tem razão.


ELLA RENTHEIM — E também não vai ganhar nada desta vez.

SRA. BORKMAN — Não vou ganhar nada mantendo meu poder de mãe sobre
Erhart!

ELLA RENTHEIM — Não, porque é apenas o controle

sobre ele o que você quer.

SRA. BORKMAN — E você?

ELLA RENTHEIM (Afetuosamente.) — Eu quero o carinho, a alma, o coração


dele!

SRA. BORKMAN (Apaixonadamente.) — Você nunca, nunca o conquistará


novamente!

ELLA RENTHEIM (Olhando-a.) —Você o indispôs comigo.

SRA. BORKMAN (Sorrindo.) — Sim, encarreguei-me disto. Você não o


percebeu pelas cartas?

ELLA RENTHEIM (Balançando lentamente a cabeça.) — Sim. Ultimamente eu


ouvia você falar nas cartas dele.

SRA. BORKMAN (Provocando-a.) — Empreguei nisto os oito anos em que o


tive nas mãos.

ELLA RENTHEIM (Controlando-se.) — O que foi que você disse de mim a


Erhart? Alguma coisa que eu possa saber?

SRA. BORKMAN — Ora, claro.

ELLA RENTHEIM — Então faça o favor de contar.

SRA. BORKMAN — Eu lhe disse apenas a verdade.

ELLA RENTHEIM — Vejamos.

SRA. BORKMAN — Eu incuti nele, incansavelmente,


a idéia de que era graças a você que podíamos viver com uma certa
tranqüilidade, que era graças a você que sobrevivíamos.

ELLA RENTHEIM — Só isso?

SRA. BORKMAN — Isso basta. Tiro por mim mesma.

ELLA RENTHEIM — Mas isto Erhart já sabia há muito tempo.

SRA. BORKMAN — Quando ele voltou para minha casa, ele ainda pensava que
você tinha feito tudo aquilo por generosidade. (Olhando com despeito para Ella.)
Agora ele não acredita mais nisso.

ELLA RENTHEIM — E em que é que ele acredita agora?

SRA. BORKMAN — Ele acredita na verdade. Eu lhe perguntei como ele


explicava para si mesmo o fato de Tia Ella nunca vir nos visitar...

ELLA RENTHEIM (Interrompendo.) — Mas ele sempre soube o porquê!

SRA. BORKMAN — Agora ele sabe melhor ainda. Você o tinha feito acreditar
que era para poupar-me... e a ele, lá em cima no salão.

ELLA RENTHEIM — E era mesmo!

SRA. BORKMAN — Agora Erhart não acredita mais em nada disso.

ELLA RENTHEIM — E em que foi que você o fez acreditar a meu respeito?

SRA. BORKMAN — Ele agora acredita, como é fato, que você tem vergonha de
nós e nos despreza. Não é verdade? Não foi por isso que você planejou tomá-lo
de mim naquela época? Pense bem, Ella. Você vai acabar se lembrando.

ELLA RENTHEIM (Com veemência.) — Isso foi no auge do escândalo.


Quando o caso estava nos tribunais. Nunca mais pensei nisso.

SRA. BORKMAN — E nem adiantaria mesmo pensar. Imagine o que seria da


missão dele se...! Não, muito obrigada! É de mim que Erhart precisa, não de
você. Para você ele está morto. E você para ele.

ELLA RENTHEIM (Fria e decidida.) — Veremos. Porque agora eu vou ficar


aqui.

SRA. BORKMAN (Olhando-a fixamente.) — Aqui?

ELLA RENTHEIM — É. Aqui.

SRA. BORKMAN — Você vai passar a noite aqui conosco?

ELLA RENTHEIM — Vou ficar o resto da vida se for preciso.

SRA. BORKMAN (Recobrando-se.) — Muito bem, Ella, claro, a casa é sua.

ELLA RENTHEIM —-Ora, não seja ridícula.

SRA. BORKMAN — É toda sua. a cadeira em que me sento é sua. A cama onde
me deito, insone, lhe pertence. A comida que comemos é você quem paga.

ELLA RENTHEIM — É a única forma de arranjar as coisas. Borkman não pode


ter nada em seu próprio nome.

SRA. BORKMAN — Eu sei. É por isso que temos que nos resignar a viver da
sua caridade.

ELLA RENTHEIM (Friamente.) — Não posso evitar que você pense assim,
Gunhild.

SRA. BORKMAN — Não, não pode. Quando é que devemos nos mudar?

ELLA RENTHEIM (Olhando-a.) — Mudar?

SRA. BORKMAN (Agitada.) — Claro. Você não imagina que eu vou ficar
morando sob o mesmo teto que você! Prefiro ir viver no asilo ou debaixo da
ponte!

ELLA RENTHEIM — Muito bem... Então deixe-me levar Erhart.

SRA. BORKMAN — Erhart! Meu filho! Meu único filho!

ELLA RENTHEIM — Sim. Então eu irei embora imediatamente.

SRA. BORKMAN (Depois de um instante de reflexão, com voz firme.) —


Erhart vai escolher entre nós duas.

ELLA RENTHEIM (Olhando hesitante para a irmã.) —

Ele? Você tem coragem de deixar a escolha nas mãos dele,

Gunhild?

SRA. BORKMAN (Rindo com dureza.) — Se eu tenho coragem de deixar meu


filho escolher entre a mãe dele e você? Claro que tenho!

ELLA RENTHEIM (Escutando.) — Acho que está chegando alguém.

SRA. BORKMAN — Deve ser Erhart.

(Batem levemente à porta que dá para o vestíbulo e logo em seguida entra a Sra.
Wilton em traje de noite e manteau. A Criada, que não teve tempo de anunciá-la,
segue-a um pouco desconcertada. A porta fica entreaberta. A Sra. Wilton é uma
mulher de 30 anos, extremamente bonita e cheia de vida. Seus lábios sorridentes
e sensuais são cor de carmim. Ela tem olhos vivos e cabelos escuros e cheios.)

SRA. WILTON (Para a Sra. Borkman.) — Boa-noite, querida.

SRA. BORKMAN (Num tom seco.) — Boa-noite, Sra. Wilton (Para a Criada,
apontando o jardim de inverno.) Apanhe a lâmpada que está lá e acenda-a.

(A Criada apanha a lâmpada e sai.)

SRA. WILTON (Vendo Ella Rentheim.) — Oh! Perdão! Vejo que está com
visitas...

SRA. BORKMAN — É minha irmã que chegou...

(Erhart Borkman chega pela porta do vestíbulo que tinha ficado entreaberta. É
um jovem muito elegante, de olhos claros, alegres e brilhantes. Está deixando
crescer a barba.)

ERHART BORKMAN (Na soleira, radiante.) — Mas que surpresa! Tia Ella veio
nos visitar! (Indo até a tia e to-

mando-lhe as mãos.) Tia Ella, Tia Ella! Nem acredito! A senhora aqui!
ELLA RENTHEIM (Lançando-lhe os braços ao redor do pescoço.) — Erhart!
Meu querido, meu filho querido! Como você cresceu! Que felicidade vê-lo
novamente!

SRA. BORKMAN (Brusca.) — O que significa isto, Erhart? Você estava


escondido no vestíbulo?

SRA. WILTON (Rapidamente.) — Erhart, o Sr. Borkman, veio comigo.

SRA. BORKMAN (Medindo-o com os olhos.) — É verdade Erhart? Você não


vem mais ver sua mãe primeiro?

ERHART BORKMAN — Eu tive que passar um instante na casa da Sra. Wilto


para apanhar Frida.

SRA. BORKMAN — Essa Senhorita Foldal também veio com vocês?

SRA. WILTON — Ela está esperando na entrada.

ERHART BORKMAN (Falando através da porta.) — Pode subir, Frida.

(Pausa. Ella Rentheim examina Erhart. Ele parece incomodado e um tanto


impaciente, seu rosto fica tenso e sua expressão torna-se mais fria. A Criada leva
a lâmpada acesa para o jardim de inverno, sai e fecha a porta.)

SRA. BORKMAN (Com delicadeza forçada.) — Bem, Sra. Wilton, se quiser dar
o prazer de ficar conosco...

SRA. WILTON — Não, muito obrigada, Sra. Borkman, realmente não posso.
Temos outro compromisso. Fomos convidados esta noite pelo Sr. Hinkel, o
advogado.

SRA. BORKMAN (Olhando-a.) —“Fomos” quem?

SRA. WILTON (Rindo.) — Bem, na verdade, quero dizer que eu mesma fui
convidada, mas as moças da casa me pediram para levar também o jovem
Borkman se por acaso eu conseguisse vê-lo.

SRA. BORKMAN — E, pelo visto, a senhora conseguiu.


SRA. WILTON — Felizmente. Ele teve a gentileza de passar lá em casa para
pegar Frida.

SRA. BORKMAN (Seca.) — Meu caro Erhart, não sabia que você conhecia essa
família — esses Hinkel.

ERHART BORKMAN (Irritado.) — Não, realmente não os conheço. (Com


impaciência.) A senhora sabe exatamente quem são as pessoas que eu conheço e
quem são as que eu não conheço.

SRA. WILTON — Isso não quer dizer nada. É fácil conhecer os Hinkel! Eles são
alegres, animados e hospitaleiros. E há muitas moças na casa.

SRA. BORKMAN (Acentuando as palavras.) — Se conheço bem o meu filho,


Sra. Wilton, estas relações não lhe convêm.

SRA. WILTON — Mas, meu Deus, cara Sra. Borkman, ele é jovem...

SRA. BORKMAN — Felizmente ele é jovem. Se não fosse, não teria serventia
nenhuma.

ERHART BORKMAN (Dissimulando a impaciência.) — Está bem, mãe, nem é


preciso dizer que não vou à casa dos Hinkel esta noite. Vou ficar aqui, claro, com
a senhora e com Tia Ella.

SRA. BORKMAN — Eu tinha certeza, querido Erhart.

ELLA RENTHEIM — Não, Erhart, não se prenda por mim.

ERHART BORKMAN — Não, tia, eu não estava mesmo pensando em ir. (Ele
olha, em dúvida, para a Sra. Wilton.) Mas como me desculpar? Agora ficou
complicado porque, afinal, você já tinha aceito o convite por mim.

SRA. WILTON (Bem-humorada.) — Que bobagem! Isso não é problema


nenhum. Quando, sozinha e abandonada — oh! — eu entrar nos salões
iluminados para a festa, eu direi “não” por você.

ERHART BORKMAN (Lentamente.) — Bem, já que você acha que não há


mesmo problema então...
SRA. WILTON (Num tom conciliador.) — Muitas vezes já tive que dizer sim e
não em meu próprio nome. Como é que você poderia deixar sua tia que acabou
de chegar? Ora, ora, seu Erhart, um bom filho não faria um papel desses.

SRA BORKMÀN (Com desagrado.) — Um filho?

SRA. WILTON — Bem, um filho adotivo, se prefere, Sra. Borkman.

SRA. BORKMAN — Prefiro.

SRA. WILTON — Acho que uma boa mãe adotiva merece ainda mais a nossa
gratidão que uma mãe de verdade.

SRA. BORKMAN — Fala por experiência própria?

SRA. WILTON — Infelizmente; conheci muito pouco minha própria mãe. Mas
se eu tivesse tido, como seu filho, uma mãe de criação tão boa, talvez eu não
fosse tão mal-com-portada como dizem que eu sou. (Voltando-se para Erhart.) É,
meu jovem amigo, hoje você vai ficar quietinho em casa, tomando chá com sua
mãe e sua tia. (Para as senhoras.) Até logo, Sra. Borkman; até logo Srta.
Rentheim!

(As senhoras cumprimentam silenciosamente. Fanny Wilton dirige-se para a


porta.)

ERHART BORKMAN (Seguindo-a.) — Eu não deveria acompanhá-la ao menos


até o meio do caminho?

SRA. WILTON (Com um gesto de recusa.) — Nem um passo. Está proibido.


Estou muitíssimo habituada a andar sozinha. (Ela pára na soleira da porta, olha
para ele e diz com um movimento de cabeça.) E a partir de agora, senhor
estudante, muito cuidado.

ERHART BORKMAN — E por quê?

SRA. WILTON (Alegremente.) — Porque à medida que eu for descendo a rua,


só e abandonada, lançarei meus sortilégios sobre você.

ERHART BORKMAN (Rindo.) — Ah, então é isso! Você vai tentar de novo?
SRA. WILTON (Meio a sério.) — Lógico. Portanto, cuidado. Conforme eu for
descendo a ladeira vou repetindo para mim mesma, concentrando toda a força da
minha mente: Er-nart Borkman, apanhe o seu chapéu!”

SRA. BORKMAN — E a senhora acha que ele vai obedecer?

SRA. WILTON (Rindo.) — Claro, ele apanhará imediatamente o chapéu e eu


direi: “Agora seja bonzinho e ponha seu sobretudo, Erhart Borkman! E suas
galochas! Aconteça o que acontecer, nunca se esqueça das galochas! Agora

siga-me. Obedeça, obedeça-me direitinho”.

ERHART BORKMAN (Com alegria forçada.) — Não tenha dúvida.

SRA. WILTON (Com o indicador apontado.) — Obedeça direitinho! Boa-noite!


(Ela ri, acena ainda uma vez para as senhoras e fecha a porta atrás de si.)

SRA. BORKMAN — Ela mexe mesmo com essas coisas?

ERHART BORKMAN — Claro que não, mamãe, que idéia! É tudo brincadeira.
(Mudando de assunto.) Mas não vamos ficar aqui falando a respeito da Sra.
Wilton. (Ele faz com que Ella Rentheim sente na poltrona perto do aquece dor e
fica olhando para ela por um instante.)Tia, a senhora resolveu enfrentar essa
viagem tão longa em pleno inverno...

ELLA RENTHEIM — Não podia mais adiar, Erhart. ERHART BORKMAN —


Por quê, tia?

ELLA RENTHEIM — Algum dia eu precisava me decidir a consultar os


médicos.

ERHART BORKMAN — Ótimo!

ELLA RENTHEIM (Sorrindo.) — Você acha mesmo tão bom assim?

ERHART BORKMAN — Que a senhora tenha decidido procurar o médico?


Claro!

SRA. BORKMAN (Friamente, sentada no sofá.) — Você está doente, Ella?


ELLA RENTHEIM (Com um olhar duro.) — Você sabe muito bem que estou.

SRA. BORKMAN — Adoentada, como sempre...

ERHART — Quando morava com a senhora, eu sempre insistia para que fosse
ver o médico.

ELLA RENTHEIM — Lá por perto não há nenhum médico em quem eu tenha


realmente confiança. E além disso, naquela época, eu ainda não estava me
sentindo tão mal.

ERHART BORKMAN — A senhora piorou, tia?

ELLA RENTHEIM — Sim, querido. Bastante.

ERHART BORKMAN — Mas não é nada grave, não é?

ELLA RENTHEIM — Depende do ponto de vista.

ERHART BORKMAN (Em tom firme.) — Então a senhora não vai voltar para
casa, Tia Ella.

ELLA RENTHEIM — Não, não vou.

ERHART BORKMAN — A senhora tem que ficar na cidade. Aqui estão os


melhores médicos. É só escolher.

ELLA RENTHEIM — Foi isto o que eu pensei quando

saí de casa.

ERHART BORKMAN — A senhora vai procurar um bom lugar para ficar, uma
pensão bem confortável, bem tranqüila.

ELLA RENTHEIM — Aluguei um quarto naquela pensão onde costumava me


hospedar antigamente.

ERHART BORKMAN — Ótimo! Assim a senhora vai ficar bem acomodada.

ELLA RENTHEIM — Mas desisti e não vou mais ficar lá.


ERHART BORKMAN — Não? Por quê?

ELLA RENTHEIM — Mudei de idéia depois que cheguei aqui.

ERHART BORKMAN (Atônito.) — E por quê?

SRA. BORKMAN (Sem levantar os olhos do crochê.) — Sua tia quer ficar aqui
na casa dela, Erhart.

ERHART BORKMAN (Olhando alternadamente para uma e para outra.)—Aqui!


Conosco! Conosco! É verdade, tia?

ELLA RENTHEIM — É. Acabei de decidir.

SRA. BORKMAN (Como antes.) — Como você sabe, Erhart, tudo aqui pertence
à sua tia.

ELLA RENTHEIM — Vou ficar aqui, Erhart. Pelo menos por enquanto. Vou
arrumar as coisas do meu jeito. Na ala do intendente.

ERHART BORKMAN — Boa idéia. Há quartos de sobra daquele lado.


(Repentinamente animado.) Mas escute, tia, a senhora deve estar cansadíssima
depois de um dia tão puxado.

ELLA RENTHEIM — Estou bem cansada.

ERHART — Que tal ir logo deitar?

ELLA RENTHEIM (Olhando-o com um sorriso.) — Era exatamente nisso que


eu estava pensando.

ERHART BORKMAN (Ansioso.) — Poderemos conversar mais amanhã ou


outro dia qualquer. Sobre tudo. Tudo, tudo. A senhora, mamãe e eu. Não é
melhor, tia?

SRA. BORKMAN (Apaixonadamente, levantando-se do sofá.) — Erhart, vejo


no seu rosto que você vai me deixar!

ERHART BORKMAN (Num sobressalto.) — O que a senhora está querendo


dizer?
SRA. BORKMAN — Você vai... você está indo para... para a casa dos Hinkel!

ERHART BORKMAN — Ah, isso! (Recobrando-se.) Bom, a senhora não está


querendo que eu fique entretendo tia Ella até altas horas, não é? Ela está doente,
mamãe. Não se esqueça.

SRA. BORKMAN — Você está indo para a casa dos Hinkel, Erhart!

ERHART BORKMAN (Impaciente.) — Mas, meu Deus, mamãe, não posso


deixar de ir. O que a senhora acha, tia?

ELLA RENTHEIM — Decida você mesmo, Erhart. É melhor.

SRA. BORKMAN (Voltando-se ameaçadoramente para a irmã.) — Você quer


tomá-lo de mim!

ELLA RENTHEIM (Levantando-se.) — Se eu pudesse,

Gunhild!

(Ouve-se música vinda do andar de cima.)"

ERHART BORKMAN (Estremecendo, como se sentisse uma dor profunda.) —


Não suporto isso. (Procurando.) Onde foi que eu pus o meu chapéu? (Para Ella.)
Conhece esta música que ela está tocando no salão?

ELLA RENTHEIM — Não, qual é?

ERHART BORKMAN — É a Dança macabra. A dança da morte. A senhora não


conhece a dança da morte, tia?

ELLA RENTHEIM (Sorrindo com tristeza.) — Ainda não, Erhart.

ERHART BORKMAN (Para a Sra. Borkman.) — Mamãe, eu lhe peço por favor,
deixe-me ir!

SRA. BORKMAN (Olhando-o com dureza.) — Você que abandonar sua mãe, é
isso o que você quer.

ERHART BORKMAN — Eu volto, claro que eu volto, quem sabe amanhã


mesmo!
SRA. BORKMAN (Com apaixonada veemência.) — Você quer me deixar! Você
quer ir para o meio daqueles estranhos com, com... Não! Não permito! Não
consinto nem em pensamento.

ERHART BORKMAN — Lá as luzes brilham. E há muitos jovens felizes. E há


música, mãe!

SRA. BORKMAN (Apontando para o teto.) — Lá em cima também há música,


Erhart.

ERHART BORKMAN — Esta música... é esta música que me faz fugir.

ELLA RENTHEIM — Você não concede a seu pai nem um instante de


esquecimento?

ERHART BORKMAN — Claro que sim. Fico felicíssimo por ele. Só não quero
ter que ouvir isto.

SRA. BORKMAN (Olhando-o de forma autoritária.) —

Seja forte, Erhart! Forte, meu garoto! Não esqueça jamais de sua elevada
missão!

ERHART BORKMAN — Ora, mamãe, chega de frases de efeito! Não nasci


para missionário. Boa-noite, tia. Boa-noite, mãe. (Sai precipitadamente pela
porta do vestíbulo.)

SRA. BORKMAN (Depois de um breve silêncio) — Ele é novamente seu. Foi


rápida a reconquista.

ELLA RENTHEIM — Quem dera que fosse realmente verdade...

SRA. BORKMAN — Mas não se iluda: não vai durar muito.

ELLA RENTHEIM — Você vai tomá-lo de mim. É isso?

SRA. BORKMAN — Eu... ou aquela mulher.

ELLA RENTHEIM — Prefiro que seja ela.

SRA. BORKMAN (Assentindo lentamente.) — Compreendo e digo o mesmo:


antes ela.

ELLA RENTHEIM—Aconteça o que acontecer com ele...

SRA. BORKMAN — Daria tudo no mesmo.

ELLA RENTHEÍM (Apanhando a capa.) — Pela primeira vez na vida as duas


gêmeas estão de acordo. Boa-noite, Gunhild. (Sai pela porta do vestíbulo)

(Ouve-se mais alta a música que vem do salão.)

SRA. BORKMAN (Fica um instante imóvel, depois estremece, começa a


caminhar crispada e sussurra como que involuntariamente.) — O lobo está
uivando novamente. Um lobo ferido. (Fica parada por um momento, depois
atira-se no chão, contorcendo-se e chorando num gemido de dor.) Erhart! Erhart!
Seja fiel a mim! Não me abandone. Volte para casa e ajude sua mãe! Não
suporto mais esta vida!

SEGUNDO ATO

Salão no segundo andar, outrora utilizado para recepções pelos Rentheim. As


paredes estão revestidas de velhas tapeçarias em lã, representando cenas de caça,
pastores e pastoras, em cores já desbotadas pelo tempo.

Na parede da esquerda uma porta de correr e, mais perto, um piano. No canto da


esquerda da parede do fundo, uma porta sem batentes, dissimulada por uma
tapeçaria. Encostada na parede da direita, na sua parte média, uma grande
escrivaninha em carvalho trabalhado, coberta de livros e papéis. Do mesmo lado,
porém mais perto, há um sofá, mesa e cadeiras. A mobília segue o rígido estilo
Império. Lâmpadas acesas sobre a escrivaninha e sobre a mesa.

John Gabriel Borkman está de pé, próximo ao piano, com as mãos atrás das
costas, ouvindo os últimos acordes da Dança macabra, de Saint-Saèns, que Frida
Foldal está tocando.

Borkman é um homem forte, de sólida compleição, estatura mediana, já perto


dos 70 anos. Tem uma aparência distinta, um perfil bem talhado, olhos
penetrantes, cabelo e barba grisalhos e encaracolados. Está com um terno preto
antiquado e usa uma gravata branca.
Frida Foldal é uma mocinha de 15 anos, pálida e bonita, de expressão tensa e
algo cansada; usa um desgracioso vestido de cores claras.

A música chega ao fim. O silêncio toma conta do salão.

BORKMAN — Adivinhe onde foi que eu ouvi, pela primeira vez, estes acordes.

FRIDA (Levantando os olhos para ele.) — Não sei, Senhor Borkman.

BORKMAN — Lá embaixo, nas minas.

FRIDA (Sem entender.) — Nas minas?

BORKMAN — Talvez você não saiba, mas meu pai trabalhava nas minas.

FRIDA — Não, não sabia.

BORKMAN — Sou filho de um minerador. E às vezes meu pai me levava com


ele até lá embaixo: onde o metal canta.

FRIDA — Canta mesmo?

BORKMAN (Enfatizando com um gesto de cabeça.) — Canta quando é


extraído. Os golpes do martelo que o desprendem da rocha são como o sino da
meia-noite que assinala a liberdade. E o metal canta de alegria — a seu modo.

FRIDA — E por que é que ele canta?

BORKMAN — Ele quer vir à luz e servir a humanidade. (Anda de um lado para
o outro do salão, sempre com as mãos atrás das costas.)

FRIDA (Que tinha ficado algum tempo sentada, esperando, olha, de repente,
para o relógio e levanta.) — Desculpe, Sr. Borkman, mas acho que realmente
preciso ir.

BORKMAN (Parando diante dela.) — Já?

FRIDA (Guardando as partituras numa pasta.) — Tenho que ir. (Constrangida.)


Tenho um compromisso esta noite.

BORKMAN — Uma festa?


FRIDA — É.

BORKMAN — E você vai tocar para os convidados?

FRIDA (Mordendo o lábio.) — Não. Vou tocar para eles dançarem.

BORKMAN — Só para eles dançarem?

FRIDA — E. Depois de jantarem, eles vão dançar.

BORKMAN (Parado, olhando-a.) — E você gosta de tocar para as pessoas


dançarem, assim, de casa em casa?

FRIDA (Vestindo o manteau.) — Claro, quando eu consigo um lugar assim para


tocar então... bom, sempre dá para ganhar alguma coisa...

BORKMAN (Insistindo.) — É nisso que você pensa enquanto está sentada


tocando música para dançar?

FRIDA — Não. O que eu penso mesmo é que eu adoraria poder também estar
dançando como eles.

BORKMAN (Assentindo.) — Era isso o que eu queria saber. (Andando sem


parar pelo salão.) Isso: não há nada pior do que não poder participar. (Parando.)
Mas você tem um consolo, Frida.

FRIDA (Olhando-o interrogativamente.) — Qual, Sr. Borkman?

BORKMAN — Há muito mais música em você que em todos os dançarinos


juntos.

FRIDA (Sorrindo, evasiva.) — Não tenho tanta certeza assim...

BORKMAN (Apontando o indicador para ela.) — Nunca faça a besteira de


duvidar de si mesma.

FRIDA — Mas se ninguém sabe...

BORKMAN — Basta que você saiba. Onde é que vai tocar esta noite?

FRIDA — Na casa do Sr. Hinkel, o advogado.


BORKMAN (Subitamente passa a olhá-la com severidade.) — Você disse
Hinkel?

FRIDA — Foi.

BORKMAN (Com um sorriso sarcástico.) — E as pessoas vão à casa dele? Ele


consegue gente que venha visitá-lo?

FRIDA — Muita gente o freqüenta; pelo menos foi o que a Sra. Wilton disse.

BORKMAN (Zangado) — Mas que tipo de gente? Você pode me dizer?

FRIDA (Um pouco ansiosa.) — Não, não estou a par, só sei que o jovem
Borkman também vai estar lá.

BORKMAN (Estremecendo.) — Erhart! Meu filho?

FRIDA — Sim: ele deve ir.

BORKMAN — Como é que você sabe?

FRIDA — Ele mesmo disse, uma hora atrás.

BORKMAN — Então ele está aqui hoje?

FRIDA — Ele passou toda a tarde em casa da Sra. Wilton.

BORKMAN (Inquisitivo.) — Você sabe se ele esteve aqui também? Se ele


esteve conversando com alguém lá embaixo?

FRIDA — Ele passou um instante para ver a senhora.

BORKMAN (Amargamente.) — Claro. Eu deveria ter imaginado

FRIDA — Mas havia uma outra senhora lá com ela.

BORKMAN — É mesmo? Ora, vez por outra deve vir alguém visitá-la.

FRIDA — Devo dizer ao Sr. Erhart, se eu o encontrar mais tarde, que suba
também para vê-lo?
BORKMAN (Secamente.) — Não deve dizer nada. Aliás, você está proibida de
dizer qualquer coisa. Quem quiser subir para me ver, que venha por conta
própria. Eu não peço nada a ninguém.

FRIDA — Claro, claro. Não vou dizer nada. Boa-noite, Sr. Borkman.

BORKMAN (Andando e falando entredentes.) — Boa-noite.

FRIDA — Será que posso descer pela escada em caracol? É mais rápido.

BORKMAN — Desça por onde achar melhor. Para mim dá no mesmo. Boa-
noite!

FRIDA — Boa-noite, Sr. Borkman. (Sai pela porta do fundo, à esquerda, que
está dissimulada por uma tapeçaria.)

(Borkman, absorto em seus pensamentos, caminha até o piano, vai fechá-lo mas
desiste. Olha em volta com o olhar vazio e recomeça a caminhar de um lado para
o outro, do canto do piano ao canto do fundo à direita, para lá e para cá, sem
descanso, o tempo todo tenso e inquieto. Quando está

prestes a sentar-se à escrivaninha, fixa a atenção na porta de correr, apanha


rapidamente um espelhinho, olha-se, ajeita a gravata. Batem. Borkman ouve,
olha naquela direção mas não responde. Logo depois batem novamente, agora
com mais força.)

BORKMAN (De pé, perto da escrivaninha, com a mão esquerda pousada na


mesa e a direita enfiada no casaco, à altura do peito.) — Entre!

(Vilhelm Foldal entra na sala cautelasomente. É um homem encurvado, acabado,


com suaves olhos azuis, cabelo ralo e grisalho caindo-lhe sobre o colarinho. Traz
uma pasta debaixo do braço, um chapéu mole de feltro na mão e usa grandes
óculos de chifre que ajeita sobre o nariz.)

BORKMAN (Mudando de atitude e olhando para o visitante entre desapontado e


satisfeito) — Ah! Então é você!

FOLDAL — Boa-noite, John Gabriel. Sou eu. Por quê?

BORKMAN (Com um olhar severo.) — Já é um pouco tarde, não acha?


FOLDAL — O caminho é um pouco longo, sobretudo quando se vem a pé.

BORKMAN — Mas por que é que você insiste em vir a pé, Vilhelm? A
condução passa na sua porta.

FOLDAL — Andar faz bem. E, além disso, economizo a passagem. Frida tem
vindo tocar para você ultimamente?

BORKMAN — Ela acabou de sair. Não cruzou com ela?

FOLDAL — Faz muito tempo que não a vejo. Desde que ela veio morar com
esta Sra. Wilton.

BORKMAN (Sentando no sofá e apontando uma cadeira.) — Pode sentar


também, Vilhelm.

FOLDAL (Sentando na ponta da cadeira.) — Muito obrigado. (Olhando-o com


ar infeliz.) (Você não imagina como tenho me sentido só desde que Frida saiu de
casa.

BORKMAN — Ora, você tem um monte de outros filhos além dela.

FOLDAL — É verdade: mais cinco. Só que Frida era a única que me


compreendia... ao menos um pouquinho. (Balançando a cabeça com um olhar
triste.) Os outros não me compreendem... não me compreendem.

BORKMAN (Triste, olhando para a frente e tamborilando os dedos sobre a


mesa.) — Esse é o problema. Essa é a maldição que pesa sobre os eleitos, os
homens especiais. A massa, o rebanho de medíocres não nos compreende,
Vilhelm.

FOLDAL (Resignado.) — Você pode viver sem ser compreendido. Com um


pouco de paciência você vai agüentando na esperança de... (Com lágrimas na
voz.) Mas isso não é o pior.

BORKMAN (Com veemência.) — Não há nada pior do que isso!

FOLDAL — Há, John Gabriel... Houve uma cena lá em casa, justo antes de eu
vir para cá...
BORKMAN — É mesmo? Por quê?

FOLDAL (Desabafando.) — Minha família me despreza.

BORKMAN (Com um movimento.) — Despreza?

FOLDAL (Enxugando os olhos.) — Faz muito tempo que eu percebi. Mas hoje
isso ficou evidente.

BORKMAN (Depois de um momento de silêncio.) — Acho que você escolheu


mal quando se casou.

FOLDAL — Eu não tinha escolha. E, além disso, à medida que o tempo vai
passando, você começa a pensar em casar. E eu estava tão mal naquela época,
tão sem sorte, metido até o pescoço num atoleiro.

BORKMAN (Levantando-se de um salto, enraivecido.) — Você está se referindo


a mim? Isso é um acusação?

FOLDAL (Nervoso.) —Não, Deus me livre, John Gabriel!

BORKMAN — É, sim! Você está pensando na desgraça que aconteceu com o


banco!

FOLDAL (Acalmando-o.) — Mas eu não culpo você pelo que aconteceu. Deus é
testemunha.

BORKMAN (Senta novamente, resmungando.) — Está bem, está muito bem.

FOLDAL — E não pense que eu estou me queixando da minha mulher. Ela não
teve estudo, coitada, mas é uma boa pessoa. Não, John Gabriel, são as crianças...

BORKMAN — Eu sabia.

FOLDAL—Como eles têm mais instrução, esperam mais da vida.

BORKMAN (Olhando-o com compaixão.) — Quer dizer que seus filhos


desprezam você, Vilhelm.

FOLDAL (Dando de ombros.) — Eu não consegui nada na vida, tenho que


admitir.
BORKMAN (Aproximando-se e pondo a mão no ombro dele.) — Então eles não
sabem que, quando jovem, você escreveu um tragédia?

FOLDAL — Claro que sabem. Mas eles não se impressionam muito com isso.

BORKMAN — Então eles não têm discernimento. Porque ja sua tragédia é boa.
Tenho certeza de que é boa.

FOLDAL (Com um brilho repentino no olhar.) — Você não acha que há ali
algumas coisas boas, John Gabriel? Meu Deus, se eu conseguisse que ela fosse
montada. (Ele abre a pasta e folheia nervosamente os papéis que estão ali.) Olhe!
Quero mostrar-lhe algumas alterações que eu resolvi fazer.

BORKMAN — Você trouxe?

FOLDAL — Trouxe, trouxe. Faz tanto tempo que eu li a peça para você que
pensei que talvez você se distraísse ouvindo um ato ou dois.

BORKMAN (Levantando-se com um gesto de recusa.)

— Não, hoje não. Fica para outra vez.

FOLDAL — Como queira. (Borkman anda de um lado para o outro no salão.


Foldal guarda o manuscrito.)

BORKMAN (Parando diante dele.) — Você tem razão

quando diz que não é ninguém, que não cuidou da sua carreira. Mas eu lhe
prometo o seguinte, Vilhelm, quando soar para mim a hora da reabilitação...

FOLDAL (Começando a levantar-se.) — Oh! Obrigado!

BORKMAN (Faz um gesto com a mão.) — Fique onde está, por favor. (Numa
excitação crescente.) Quando soar a hora da reabilitação — quando eles
compreenderem que não podem prescindir de mim — quando eles vierem até
aqui, até esta sala, humilhar-se e implorar-me que assuma novamente a direção
do banco! O novo banco que eles fundaram mas são incapazes de conduzir.r (Ele
pára, como antes, perto da escrivaninha e assume a mesma postura em que
estava no momento em que Foldal chegou. Batendo no peito. Eu estarei aqui
para recebê-los! E todo o país tomará ciência das condições que John Gabriel
impõe para... (Ele pára de repente e olha Foldal.) Você está me olhando com ar
de dúvida. Você não acredita que eles venham? Eles têm, têm, têm que vir até
mim, mais dia menos dia eles virão. Você não acredita?

FOLDAL — Acredito, por Deus que eu acredito, John Gabriel.

BORKMAN (Sentando novamente no sofá.) — Pois eu tenho certeza. Eu sei que


eles virão — minha convicção é inabalável. Se eu não estivesse persuadido disto
eu já teria metido uma bala na cabeça há muito tempo.

FOLDAL (Nervoso.) — Não, por nada deste mundo...!

BORKMAN (Exultante.) — Mas eles virão! Eles virão, sem dúvida! Você verá!
Eu os espero dia e noite, a qualquer momento eles estarão aqui. E você verá que
eu estou pronto para recebê-los.

FOLDAL (Com um suspiro.) — Se pelo menos eles viessem logo.

BORKMAN (Inquieto.) — É, meu amigo, o tempo, passa, os anos passam; a


vida —não, não ouso pensar nisso! Você sabe como me sinto às vezes?

FOLDAL — Não.

BORKMAN — Como um Napoleão mutilado na primeira batalha.

FOLDAL (Pousando a mão sobre sua pasta.) — Também me sinto assim.

BORKMAN — Ora, não há comparação.

FOLDAL (Suavemente.) — Meu pequeno reino poético é muito precioso para


mim, John Gabriel.

BORKMAN (Excitadíssimo.) — Claro. Mas e eu? Eu que poderia ter ganho


milhões! Eu poderia controlar minas e mais minas e explorá-las a um nível
nunca antes imaginado. Eu, o senhor de cataratas e pedreiras, de novas rotas para
o comércio, de estradas e linhas de navegações pelo mundo inteiro! Eu —
sozinho — poderia ter criado tudo isto!

FOLDAL — Eu sei. Você não recuava diante de nada.


BORKMAN (Torcendo as mãos.) — E agora sou obrigado a ficar aqui como
uma águia ferida, vendo os outros se adiantarem e tomarem tudo o que era meu,
tudo, tudo.

FOLDAL — Comigo acontece a mesma coisa.

BORKMAN (Sem dar-lhe a menor atenção.) — E pensar que... Eu estava tão


perto de conseguir... Se eu tivesse tido oito dias a mais de cobertura. Todos os
depósitos seriam devolvidos. Tudo o que eu arrisquei audaciosamente estaria de
volta no lugar como se nada tivesse acontecido. As gigantescas empresas
financeiras com que sonhei estavam a um passo de tornarem-se realidade.
Ninguém teria perdido um único centavo.

FOLDAL — É verdade, meu Deus. Você estava tão perto!

BORKMAN (Com raiva surda.) — E aí, no momento decisivo! (Olhando


Foldal.) Sabe qual é o crime mais infame que um homem pode cometer?

FOLDAL — Não. Qual?

BORKMAN — Não é o assassinato nem o roubo ou o arrombamento. Não é o


perjúrio, porque estas coisas em geral são praticadas contra pessoas que se odeia
ou que são simplesmente indiferentes e que, portanto, não contam.

FOLDAL—Mas qual é a coisa mais infame, John Gabriel?

BORKMAN (Enfático.) — A coisa mais infame é abusar da confiança de um


amigo.

FOLD AL (Hesitando.) — Sim, mas você sabe...

BORKMAN (Num acesso.) — Pela sua cara já imagino o que você ia dizer. Mas
aqui isso não se aplica. As pessoas que tinham depósitos no banco iam receber
tudo de volta. Até o último vintém. Não, não, meu caro... A coisa mais baixa que
um homem pode fazer é se aproveitar das cartas de um amigo para tomar público
o que tinha sido confiado apenas a ele, um segredo que só os dois conheciam,
como que sussurrado num quarto escuro, vazio e fechado a sete chaves. O
homem que tem coragem de usar tais expedientes está contaminado até os ossos
pela moral do criminoso. Eu tive um amigo assim. E ele me destruiu.
FOLDAL — Acho que sei de quem você está falando.

BORKMAN — Não havia um só detalhe da minha vida que eu não revelasse a


ele. E, quando chegou a hora, ele voltou contra mim as armas que eu mesmo
tinha posto em suas mãos.

FOLDAL — Nunca pude compreender por que ele... Na época havia rumores de
todo tipo.

BORKMAN — Que rumores? Conte-me. Não sei de nada, porque logo depois
eu fui... afastado. O que é que as pessoas comentavam, Vilhelm?

FOLDAL — Que você tinha sido indicado para o Ministério.

BORKMAN — Ofereceram-me o cargo, mas eu recusei.

FOLDAL — Então você não estava no caminho dele?

BORKMAN — Não; não foi por isso que ele me traiu.

FOLDAL — Então eu realmente não entendo.

BORKMAN — Hoje, Vilhelm, já posso contar que... FOLDAL — Sim?

BORKMAN — Que entre nós havia uma história de mulher.

BORKMAN (Interrompendo-o.) — Bom. Agora chega. Não vamos ficar aqui


relembrando velhas histórias sem importância. Nenhum de nós dois se tornou
ministro.

FOLDAL — Mas ele subiu muito.

BORKMAN — E eu mergulhei no abismo.

FOLDAL — Uma verdadeira tragédia...

BORKMAN (Assentindo.) — Quase tão terrível quanto a sua, feitas as contas.

FOLDAL (Com ingenuidade.) — Pelo menos tão terrível quanto.

BORKMAN (Rindo em silêncio.) — Mas, de um outro ponto de vista, uma boa


comédia.

FOLDAL — Uma comédia? Como assim?

BORKMAN — Do jeito que as coisas estão indo... Veja

só...

FOLDAL — O quê?

BORKMAN — Ah, claro, você não encontrou Frida, quando vinha para cá.

FOLDAL — Não, não encontrei.

BORKMAN — Enquanto estamos os dois aqui sentados, ela está tocando para
os convidados do homem que me traiu e me arruinou.

FOLDAL — Meu Deus, eu nunca podia imaginar...

BORKMAN — Pois é, ela levou as partituras e saiu daqui para ir... à mansão.

FOLDAL (Tentando desculpá-la.) —... coitada, ela...

BORKMAN — E você sabe para quem ela está tocando... entre outros...?

FOLDAL — Não.

BORKMAN — Para meu filho, veja só.

FOLDAL — O quê?

BORKMAN — Isso mesmo. Que tal, Vilhelm? Meu filho entre os pares desse
baile. É ou não é uma comédia?

FOLDAL — É. Mas com certeza ele não sabe de nada.

BORKMAN — De nada o quê?

44

Henrik Ibsen
FOLDAL — Claro que ele não sabe, que ele — que esse homem...

BORKMAN — Não precisa evitar o nome dele. Agora eu já não me importo


mais.

FOLDAL — Tenho certeza de que seu filho ignora o que aconteceu.

BORKMAN (Com uma voz triste, sentado tamborilando os dedos sobre a mesa.)
— Ele sabe de tudo, meu caro, tão certo quanto eu estar aqui sentado.

FOLDAL — Mas você acredita que, se ele soubesse, freqüentaria aquela casa?

BORKMAN (Balançando a cabeça.) — Meu filho não vê as coisas da mesma


forma que eu. Eu poderia jurar que ele toma o partido dos meus inimigos. Com
certeza pensa, como eles, que Hinkel não fez mais do que a sua maldita
obrigação ao me trair.

FOLDAL — Mas, meu caro, quem poderia tê-lo feito ver as coisas sob esta
óptica?

BORKMAN — E você ainda pergunta? Você esqueceu quem foi que o educou?
Primeiro a tia — desde que ele tinha seis ou sete anos. E depois a mãe,

FOLDAL — Acho que você está enganado neste ponto.

BORKMAN (Num acesso.) — Eu nunca me engano! Elas o colocaram contra


mim, todas duas.

FOLDAL (Acalmando-o.) — É possível, claro, claro.

BORKMAN (Indignado.) — Ás mulheres! Elas estragam e infernizam a nossa


vida! Empatam nosso caminho e impedem nossa vitória.

FOLDAL — Nem todas, John Gabriel!

BORKMAN — Não? Dê-me o nome de uma que valha alguma coisa.

FOLDAL — Infelizmente as poucas que eu conheço não valem nada mesmo.

BORKMAN (Com desdém.) — E de que adianta existi-


rem essas outras mulheres, se é que existem, se nós não as conhecemos?

FOLDAL (Calorosamente.) — Adianta, sim, John Gabriel É tão doce, é uma


bênção poder pensar que em algum lugar, bem longe daqui, existe a verdadeira
mulher.

BORKMAN (Mexendo-se, impaciente, no sofá.) — Ora, pare com essas lorotas


de poeta.

FOLDAL (Olhando-o profundamente ferido.) — Você está chamando de lorotas


minhas crenças mais sagradas?

BORKMAN (Com dureza.) — Estou. Foi por causa delas que você nunca
avançou na vida. Se você tivesse se livrado disso tudo, eu ainda poderia ajudá-lo
a pôr-se de pé.

FOLDAL (Preso de violenta agitação que tenta a custo reprimir.) — Você não
está mesmo em condições...

BORKMAN — Estarei quando chegar novamente ao poder.

FOLDAL — Falta muito até lá...

BORKMAN (Zangado.) — Você está pensando que esse dia nunca vai chegar?
Responda!

FOLDAL — Não sei o que dizer.

BORKMAN (Levantando-se, frio e imponente, mostra-lhe a porta com um


gesto.) — Então não preciso mais de você.

FOLDAL (Dando um pulo da cadeira.) — Não...?

BORKMAN — Se você não acredita que minha sorte vai mudar...

FOLDAL — Mas eu não posso acreditar contra todas as evidências!... Primeiro


você teria que ser indultado.

BORKMAN — Continue. Continue.

FOLDAL — Eu não cheguei a me formar em direito mas estudei o suficiente


para saber.

BORKMAN (Rapidamente.) — Você acha que é impossível?

FOLDAL — Não há precedentes.

BORKMAN—Os homens excepcionais não precisam de precedentes.

FOLDAL — A lei não leva em conta essas particularidades.

BORKMAN (Num tom duro e definitivo.) — Você não é poeta, Vilhelm.

FOLDAL (Torcendo involuntariamente as mãos.)—Você está falando sério?

BORKMAN (Desembaraçando-se da pergunta sem respondê-la.) — Estamos


aqui perdendo tempo um com o ou-tro. E melhor você não voltar mais.

FOLDAL — Você quer que eu vá embora, é isso?

BORKMAN (Sem olhar para ele.) — Não preciso mais de você.

FOLDAL (Delicadamente, pegando sua pasta.) — Está bem, está bem. Não
falemos mais nisso.

BORKMAN — Você mentiu para mim esse tempo todo.

FOLDAL (Balançando a cabeça.) — Eu nunca menti para você, John Gabriel.

BORKMAN—Você insuflava a esperança em mim com suas mentiras.

FOLDAL — Não eram mentiras enquanto você acreditava na minha vocação.


Enquanto você acreditou em mim, eu acreditei em você.

BORKMAN — Então estivemos todo este tempo enganando um ao outro. E


cada qual enganando a si mesmo.

FOLDAL — Mas não é isso, no fundo, a amizade, John Gabriel?

BORKMAN (Com um sorriso amargo.) — Sim, enganar — é isso a amizade.


Você tem razão. Já me aconteceu antes.
FOLDAL (Olhando para ele.) — Não sou poeta! E você teve a coragem de me
dizer isto de forma tão dura...

BORKMAN (Num tom um pouco mais delicado.) -— Bem, não sou nenhuma
autoridade nesse assunto.

FOLDAL — Talvez mais do que pensa.

BORKMAN — Eu?

FOLDAL (Suavemente.)—Você, meu amigo. Porque eu

também vivi meus momentos de dúvida, a terrível dúvida de ter sacrificado a


vida a uma quimera.

BO RKMAN—Se você duvida, já está perdido de antemão.

FOLDAL—Era por isso que me consolava vir aquL, apoiar-me em você que
acreditava em mim. (Apanhando o chapéu.) Mas agora você não passa de um
estranho.

BORKMAN — Você também.

FOLDAL — Boa-noite, John Gabriel

BORKMAN — Boa-noite, Vilhelm.

(Foldal sai pela esquerda. Borkman fica um momento com os olhos fixos na
porta fechada; faz um movimento como se fosse chamar Foldal de volta mas
pensa melhor e recomeça a andar de um lado para o outro no salão com as mãos
atrás das costas. Pára enfim diante da mesa próxima ao sofá e apaga a lâmpada.
O salão fica na penumbra. Logo depois alguém bate à porta dissimulada pela
tapeçaria.)

BORKMAN (Ao lado da mesa, tem um sobressalto, volta-se e pergunta em voz


alta.) — Quem é?

(Ninguém responde. Batem novamente.)

BORKMAN (Sem se mover.) — Quem e? Entre.


(Ella Rentheim, trazendo uma vela acesa, aparece na porta. Está com a mesma
roupa de antes — um vestido preto e um manteau jogado sobre os ombros.)

BORKMAN (Olhando-a fixamente.) — Quem é você? O que quer?

ELLA RENTHEIM (Fechando a porta e aproximando-se.) — Sou eu, John


Gabriel. (Coloca a vela sobre o piano e fica parada ali, imóvel.)

BORKMAN (Como que fulminado, olhando-a fixamen-

te, sussurra depois de um longo silêncio.) — Ella? Ella Rentheim?

ELLA RENTHEIM — Sim, sua pérola, como você me chamava nos velhos
tempos. Outrora. Há muitos e muitos anos atrás.

BORKMAN (Como antes.) — É você, sim, Ella. Agora estou vendo.

ELLA RENTHEIM — Está me reconhecendo?

BORKMAN — Sim, estou começando a...

ELLA RENTHEIM — O tempo foi cruel comigo, John Gabriel e agora já é


outono, não acha?

BORKMAN (Constrangido.) — Você mudou um pouco. Pelo menos assim, a


um primeiro olhar.

ELLA RENTHEIM — Não tenho mais aquele cabelo longo, escuro e cacheado
com que você gostava tanto de brincar.

BORKMAN (Rapidamente.) — É isso. Agora estou percebendo, Ella: você


mudou o penteado.

ELLA RENTHEIM (Com um sorriso melancólico.) — É. É isso. Foi o penteado


que mudou.

BORKMAN (Mudando de assunto.) — Não sabia que você estava por aqui.

ELLA RENTHEIM — Acabei de chegar.

BORKMAN — E por que é que você decidiu fazer esta viagem no inverno?
ELLA RENTHEIM — Depois eu lhe conto.

BORKMAN — Foi por minha causa?

ELLA RENTHEIM — Entre outras coisas. Mas se vamos falar disto, preciso
começar bem antes.

BORKMAN — Você deve estar cansada.

ELLA RENTHEIM — Estou cansada, sim.

BORKMAN — Não quer sentar ali... no sofá?

ELLA RENTHEIM—Obrigada. É melhor mesmo sentar.

(Vai para a direita e senta-se no sofá do canto, perto da

boca de cena. Borkman continua de pé junto da mesa, com as mãos atrás das
costas, olhando-a. Há um breve silêncio.)

ELLA RENTHEIM — Faz tanto tempo que não nos encontramos assim a sós,
John Gabriel.

BORKMAN (Com uma voz sombria.) — Muito, muito tempo. Aconteceram


tantas coisas horríveis desde aquele dia...

ELLA RENTHEIM — Toda uma vida. Uma vida desperdiçada.

BORKMAN (Com um olhar perscrutador.) — Desperdiçada?

ELLA RENTHEIM — É, desperdiçada. Para nós dois.

BORKMAN (Num tom frio.) — Ainda não considero desperdiçada a minha


vida.

ELLA RENTHEIM — E a minha vida?

BORKMAN — Aí a culpa já é sua.

ELLA RENTHEIM (Num impulso.) — E você tem coragem de me dizer isto!


BORKMAN — Você poderia muito bem ter sido feliz sem mim.

ELLA RENTHEIM — Você acha?

BORKMAN — Era só querer.

ELLA RENTHEIM (Amargamente.) — Sei perfeitamente que havia alguém


pronto a me receber íie braços abertos.

BORKMAN — E você recusou.

ELLA RENTHEIM — Recusei, sim.

BORKMAN — Ano após ano você o recusou. Inúmeras vezes você o recusou.

ELLA (Com desdém.) — Inúmeras vezes eu recusei a felicidade, suponho que é


isso que você está dizendo.

BORKMAN—Você podia muito bem ter sido feliz com ele. E eu estaria salvo.

ELLA RENTHEIM — Você?

BORKMAN — Sim, eu. Salvo por você.

ELLA RENTHEIM — Como assim?

BORKMAN — Ele achou que eu estava por trás das suas recusas, das suas
obstinadas recusas. E um belo dia resolveu vingar-se. Era fácil demais: ele tinha
nas mãos as cartas em que eu me abria sem nenhuma reserva. Decidiu usá-las
contra mim. Fui apanhado. Mas as coisas não vão ficar assim... Gomo vê, Ella, a
culpa é toda sua.

ELLA RENTHEIM — É mesmo, John Gabriel? Feitas as contas, parece que eu é


que sou culpada e tenho uma dívida a saldar com você.

BORKMAN—Depende do ponto de vista. Sei muito bem tudo o que lhe devo.
Você comprou esta propriedade quando ela foi a leilão. Preparou a casa para
receber-nos, a mim e à... sua irmã. Você se encarregou de Erhart em todos os
sentidos...

ELLA RENTHEIM — ... enquanto me permitiram.


BORKMAN —... enquanto sua irmã permitiu. Nunca me meti nos assuntos
domésticos. Como eu ia dizendo, sei o quanto você se sacrificou por mim e por
sua irmã. Mas você tinha condições de fazê-lo. E você não pode esquecer que fui
eu que lhe possibilitei isto.

ELLA RENTHEIM (Indignada.) — Você está muitíssimo enganado, John


Gabriel! Foi o meu amor, o meu carinho por Erhart — e por vocês dois também
— foi isto o que me levou a fazer o que...

BORKMAN (Interrompendo.) — Minha cara, não vamos ficar aqui discutindo


sentimentos e outras coisas do gênero. O que eu estou dizendo é que se você fez
tudo o que fez foi graças a mim que lhe dei os meios para isto.

ELLA RENTHEIM (Sorrindo.) — Hum, os meios...

BORKMAN (Com entusiasmo.) — Os meios, sim! Quando chegou a hora da


grande cartada, quando eu não poderia poupar nem família nem amigos, quanto
tive que lançar mão — como lancei — dos milhões que me tinham sido
confiados, eu abri uma exceção para os seus bens: não toquei em nada do que era
seu, embora pudesse ter tomado de empréstimo e usado tudo, tudo como fiz com
o resto.

ELLA RENTHEIM (Fria e calma.) — É a mais pura verdade, John Gabriel.

BORKMAN — É sim. Foi por isto que quando eles vieram e me levaram,
encontraram todo o seu dinheiro intacto nos cofres do banco.

ELLA RENTHEIM (Olhando-o fixamente.) — Sempre me perguntei por que, no


meio daquilo tudo, você preservou justamente o que era meu.

BORKMAN — Por quê?

_ELLA RENTHEIM — Sim, Por quê? Diga.

BORKMAN (Duro e sarcástico.) — Você deve achar que foi para me garantir no
caso de alguma coisa dar errado, não é?

ELLA RENTHEIM — Ah não! Tenho certeza de que você nunca pensaria nisso
naquela época.
BORKMAN — Nunca! Eu estava completamente certo da vitória.

ELLA RENTHEIM — Então por que foi?

BORKMAN (Dando de ombros.) — Ora, meu Deus, Ella. Não é muito fácil
recordar motivos de vinte anos atrás. Só me lembro que, sozinho, ruminando em
silêncio todas as grandes iniciativas que eu poria em ação, eu me sentia como o
comandante de uma aeronave. Lá estava eu, naquelas noites insones, inflando
um gigantesco balão para navegar por sobre oceanos desconhecidos e perigosos.

ELLA RENTHEIM (Sorrindo.) — E diz que nunca duvidou da vitória!

BORKMAN (Impaciente.) — Os homens são assim, Ella. Ao mesmo tempo


acreditam e não acreditam nas coisas. (Olhando para frente.) E acho que era por
isso que eu não queria ter nem você nem o que pertencia a você comigo no
balão.

ELLA RENTHEIM (Ansiosa.) — Mas por quê? Eu quero saber! Diga porquê!

BORKMAN (Sem olhá-la.) — Ninguém leva o que tem de mais precioso numa
viagem como essa.

ELLA RENTHEIM — Mas você levou a bordo o que você tinha de mais
precioso: o seu futuro, a sua vida.

BORKMAN — Nem sempre a vida é o que se tem de mais precioso.

ELLA RENTHEIM (A respiração suspensa.) — Era isso o que você pensava


naquela época?

BORKMAN — Acho que sim.

ELLA RENTHEIM — Eu era a coisa mais preciosa que você tinha?

BORKMAN — É, acho que me recordo de alguma coisa mais ou menos assim.

ELLA RENTHEIM — Mas já fazia anos e anos que você tinha me abandonado
para... se casar com outra.

BORKMAN — Abandonado Você sabe muito bem que eu fui premido por
razões mais elevadas — quer dizer, por razões de outra natureza. Sem o apoio
dele eu não poderia fazer nada.

ELLA RENTHEIM (Controlando-se.) — Abandonada, portanto, devido a razões


de ordem superior.

BORKMAN — Eu não podia prescindir da ajuda dele.

E você foi o preço.

ELLA RENTHEIM — Que você pagou à vista, sem regatear.

BORKMAN — Eu não tinha escolha. Era pegar ou largar.

ELLA RENTHEIM (Com a voz trêmula, olhando para ele) — É verdade mesmo
o que você disse, que naquela épo-ía eu era, para você, a coisa mais preciosa do
mundo?

BORKMAN — Naquela época e depois — muito, muito depois.

ELLA RENTHEIM — E ainda assim você me vendeu. Barganhou com um outro


homem o direito de me amar. Vendeu meu amor por um... por um cargo de
diretor no banco!

BORKMAN (Melancólico, a cabeça baixa.) — Uma necessidade imperiosa


obrigou-me a isso, Ella.

ELLA RENTHEIM (Levantando-se num salto, tremendo de raiva.) —


Criminoso!

BORKMAN (Num sobressalto, mas controlando-se.) — Não é a primeira vez


que me dizem isto.

ELLA RENTHEIM — Não pense que estou me referindo a algum crime contra
as leis do país. Pouco me importa o uso que você fez das ações, dos bônus e de
não sei mais que papéis. Se, ao menos, eu tivesse tido o direito de ficar ao seu
lado quando tudo veio abaixo!

BORKMAN (Tenso.) — E o que você teria feito, Ella?


ELLA RENTHEIM — Creia-me, eu teria suportado tudo com alegria. A
desgraça, a ruína, tudo. Eu o teria ajudado a suportar tudo.

BORKMAN — Você queria? Você poderia?

ELLA RENTHEIM — Eu queria e podia. Porque então eu não teria conhecido o


seu crime mais perverso, o seu maior crime.

BORKMAN — Qual? De que crime você está falando?

ELLA RENTHEIM—De um crime que não tem perdão.

BORKMAN (Olhando-a fixamente.) —Você deve estar fora de si.

ELLA RENTHEIM (Aproximando-se.) — Assassino! Você cometeu um pecado


mortal!

BORKMAN (Recuando ria direção do piano.) — Você está tomada pelo ódio.

ELLA RENTHEIM—Você matou em mim a capacidade de amar. Você percebe


o que isso significa? A Bíblia fala de um pecado misterioso para o qual não há
perdão. Eu nunca tinha conseguido compreender de que se tratava. Mas hoje eu
compreendi: o maior pecado, o pecado para o qual não há misericórdia, é
cometido por aquele que mata a capacidade de amar num outro ser humano.

BORKMAN — É disto que você me acusa?

ELLA RENTHEIM — Sim. Até esta noite eu não tinha percebido exatamente o
que me aconteceu. Abandonar-me

para ficar com Gunhild — isso eu considerei simples inconstância de sua parte, e
o resultado das artimanhas de uma mulher sem coração. E, no fundo, acho que
eu o desprezava um pouco por causa disto. Mas agora eu vejo claro: você
abandonou a mulher que amava! Eu, eu, eu! Você estava pronto a sacrificar à sua
ambição a coisa mais preciosa que você tinha no mundo. Este foi o duplo crime
do qual você se tornou culpado. O assassinato da sua alma e da minha.

BORKMAN (Frio e controlado.) — Como reconheço aí, Ella, sua natureza


passional e indisciplinada. É natural que você encare as coisas assim. Você é
mulher e como todas as mulheres só reconhece e só dá valor a...
ELLA RENTHEIM — Não é verdade.

BORKMAN — Só o seu coração importa.

ELLA RENTHEIM — Só isso! Só isso mesmo! Você tem razão.

BORKMAN — Mas você não pode esquecer que eu sou homem. Como mulher,
você era a coisa mais preciosa do mundo para mim. Mas, no fim das contas, se
for preciso, uma mulher pode ser substituída por outra...

ELLA RENTHEIM (Olhando-o com um sorriso.) — Foi isso o que seu


casamento com Gunhild lhe ensinou?

BORKMAN — Não. Mas a missão que eu tinha de cumprir ajudou-me a


suportar jsso também. Eu queria submeter à minha autoridade todas as fontes de
poder deste país, todas as riquezas da terra, do mar, das montanhas e das
florestas. Eu queria conquistar tudo isso e criar um império para mim e assim
beneficiar milhares e milhares de pessoas.

ELLA RENTHEIM (Mergulhada em recordações.) — Lembro tão bem de tudo


isso... Quantas e quantas noites falamos dos seus projetos.

BORKMAN — Com você eu podia falar, Ella.

ELLA RENTHEIM — Eu ria dos seus planos e perguntava se você pretendia


despertar os sonolentos espíritos do ouro.

BORKMAN (Assentindo.) — Lembro desta frase. (Lentamente.) “Os sonolentos


espíritos do ouro...”

ELLA RENTHEIM — Mas você levou a sério o que eu disse e respondeu: “É


isso, Ella, é exatamente isso o que eu quero.”

BORKMAN — E era mesmo. Se eu conseguisse pôr o pé no estribo, aí... E isto


dependia de um único homem. Ele podia e queria pôr-me na direção do banco
desde que eu...

ELLA RENTHEIM — Desde que você renunciasse à mulher que amava — e


que o amava apaixonadamente.
BORKMAN — Eu sabia que ele era louco por você e que esta era a única
condição...

ELLA RENTHEIM — E então você fechou o negócio.

BORKMAN (Com veemência.) — Isso mesmo, Ella: fechei negócio. Eu tinha


uma tal sede de poder que concordei.

Eu tinha que concordar. E graças a ele fui subindo, até o meio do caminho, em
direção às alturas com que sonhava. Eu subia, subia. A cada ano queimava uma
etapa...

ELLA RENTHEIM — E eu fui riscada de sua vida.

BORKMAN — E no fim ele me atirou novamente no abismo. Por sua causa,


Ella.

ELLA RENTHEIM (Depois de refletir um momento.) — John Gabriel, você não


acha que pairava sobre nosso amor uma espécie de maldição?

BORKMAN (Olhando-a.) — De maldição?

ELLA RENTHEIM — É, você não acha?

BORKMAN (Impaciente.) — Acho, mas por quê? (Num ímpeto.) Ah, Ella, já
não sei mais qual de nós dois tem razão — você ou eu!

ELLA RENTHEIM—Você é o culpado. Você matou em mim a alegria de viver.

BORKMAN (Ansioso.) — Não diga isso, Ella!

ELLA RENTHEIM — Toda a alegria de ser mulher; é o mínimo que posso dizer.
A partir do momento em que sua imagem começou a se apagar em mim, vivi
como num eclipse. Ao longo destes anos foi se tomando cada vez mais difícil
para mim

— e por último quase impossível — amar qualquer ser vivo — nem as pessoas,
nem os animais, nem as plantas. Só havia uma exceção.

BORKMAN — Qual?
ELLA RENTHEIM — Erhart — seu... seu filho, John Gabriel.

BORKMAN — verdade? Você o amava tanto assim?

ELLA RENTHEIM — Se não fosse por isto, por què o teria levado comigo?
Fiquei com ele o mais que pude. Por que você acha que eu fiz isso?

BORKMAN — Por caridade, como tudo o mais.

ELLA RENTHEIM (Presa de intensa emoção.) — Por

caridade! Ha, ha! Desde que você me abandonou, nunca mais senti piedade por
ninguém. Nunca mais. Se uma criança, morrendo de fome e de frio, viesse,
chorando, à minha porta pedir um prato de comida, eu mandaria a cozinheira
cuidar dela.

Nunca mais desejei cuidar de alguém, sentar por exemplo, esta criança comigo
perto da lareira e olhá-la comer. Eu não era assim quando moça, me lembro tão
bem! Foi você que criou este vazio, este frio em mim — e em tomo de mim.

BORKMAN — Com exceção de Erhart.

ELLA RENTHEIM — Só Erhart escapou a este deserto. Nenhum outro ser vivo.
Você me privou das alegrias e da felicidade de ser mãe. E me privou também dos
sofrimentos e das lágrimas de toda mãe. Talvez esta tenha sido a perda mais
dolorosa para mim, John Gabriel.

BORKMAN — Você acha, Ella?

ELLA RENTHEIM — Quem sabe? Talvez eu precisasse sobretudo dos


sofrimentos e das lágrimas da maternidade. (Profundamente sentida.) Eu não
podia me conformar com esta perda. Foi por isto que resolvi criar Erhart,
conquistá-lo completamente, conquistar seu coração temo e confiante até... oh!

BORKMAN — Até o quê?

ELLA RENTHEIM — Até a mãe dele — a mãe de sangue — tomá-lo de mim.

BORKMAN — Mais cedo ou mais tarde ele tinha mesmo que deixar você e vir
para a cidade estudar.
ELLA RENTHEIM (Torcendo as mãos.) — Sim, mas eu não suporto a solidão,
John Gabriel. O vazio! Perder o coração de Erhart!

BORKMAN (Com um expressão ruim no olhar.) — Hum. Não creio que você
tenha perdido o coração de Erhart, Ella. Lá embaixo não sabem conquistar
corações.

ELLA RENTHEIM — Eu perdi Erhart. E ela o reconquistou. Ou, talvez, uma


outra pessoa... Isto fica evidente nas cartas que ele me escreve de vez em
quando.

BORKMAN — Então foi para buscá-lo que você veio?

ELLA RENTHEIM — Se pelo menos eu conseguisse,

eu...

BORKMAN — Deve ser possível, se você quer tanto. Porque você tem sobre ele
mais direitos que qualquer outra.

ELLA RENTHEIM — Direitos, direitos! De que valem os direitos? Se ele não


me acompanhar de livre e espontânea vontade, eu não terei conseguido nada. É o
coração do meu menino que eu quero todo para mim agora. É isto o que eu tenho
que conseguir!

BORKMAN — Não se esqueça de que Erhart tem vinte anos. Você não
conseguirá ser a única no coração dele por muito tempo.

ELLA RENTHEIM (Com um sorriso triste.) — Não preciso mesmo de muito


tempo.

BORKMAN — Não? Pensei que você persistisse no que deseja até o fim dos
seus dias.

ELLA RENTHEIM — Claro. Mas isto não significa que eu precise de muito
tempo.

BORKMAN (Com um movimento brusco.) — O que você está querendo dizer?

ELLA RENTHEIM — Você sabe que eu tenho estado bastante doente estes
últimos anos.

BORKMAN — Doente?

ELLA RENTHEIM — Você não sabia?

BORKMAN — Não, na verdade...

ELLA RENTHEIM (Olhando-o surpresa.) — Erhart não lhe contou?

BORKMAN — Não me recordo.

ELLA RENTHEIM — Talvez ele nunca tenha falado a meu respeito com você...

BORKMAN — Sim, acho que falou a seu respeito, sim.

Mas a verdade é que o vejo raramente. Quase nunca. Há alguém lá embaixo que
se encarrega de mantê-lo longe de mim. Bem longe, você compreende.

ELLA RENTHEIM — Tem certeza, John Gabriel?

BORKMAN — Tenho. (Mudando de tom.) Quer dizer que você tem andado
doente, Ella.

ELLA RENTHEIM — É. E piorei tanto este outono que tive que vir para a
cidade ouvir a opinião de médicos mais experientes.

BORKMAN — E você já os consultou?

ELLA RENTHEIM — Hoje de manhã.

BORKMAN — E que foi que eles disseram?

ELLA RENTHEIM — Confirmaram o que eu já imaginava há muito tempo.

BORKMAN — O quê?

ELLA RENTHEIM (Calma e serena.) — Meu mal não tem cura, John Gabriel.

BORKMAN — Ora, não acredite nisso!


ELLA RENTHEIM — É uma doença que não tem remédio. Só me resta esperar.
Os médicos acham que não há nada a fazer: eles podem, no máximo, aliviar-me
um pouco o sofrimento. O que já é uma bênção.

BORKMAN — Mas pode ter certeza de que as coisas não evoluem assim tão
rápido.

ELLA RENTHEIM — Resta-me, talvez, este inverno.

BORKMAN (Sem pensar.) — Meu Deus... mas o inverno é longo.

ELLA RENTHEIM (Docemente.) — Longo o bastante para mim, de toda forma.

BORKMAN (Com energia, para mudar de tom.) — Mas de onde veio esta
doença? Você sempre levou uma vida tão saudável, tão regrada?

ELLA RENTHEIM (Olhando para ele.) — Os médicos acham que eu devo ter
sofrido desgostos muito profundos.

BORKMAN (Num lampejo.) — Desgostos! Ah! Compreendo! Então eu é que


sou causa de tudo!

ÉLLA RENTHEIM (Numa agitação crescente.) — Tarde demais para falar disto.
Mas, antes de partir eu preciso do filho do meu coração, meu único filho. É tão
triste pensar que deixo para trás a vida — o sol, a luz, o ar — sem deixar uma
única pessoa que pense em mim e guarde de mim uma recordação suave e triste
— como são as recordações dos filhos que perdem a mãe.

BORKMAN (Depois de um silêncio.) — Leve-o, Ella. Se você conseguir.

ELLA RENTHEIM (Nervosa.) — Você permite?

BORKMAN (Sombrio.) — Permito. E não é um sacrifício tão grande assim.


Porque ele não é meu mesmo.

ELLA RENTHEIM — Obrigada. Mesmo assim, obrigada. Mas quero pedir


ainda outra coisa a você. Uma coisa que tem um valor imenso para mim, John
Gabriel.

BORKMAN — Peça.
ELLÃ RENTHEIM — Talvez você ache que é infantilidade minha não ser capaz
de compreender...

BORKMAN — Diga o que é.

ELLA RENTHEIM — Quando eu morrer, e este dia não está longe, eu queria
que tudo o que é meu — e não é pouco —

BORKMAN — Não é mesmo.

ELLA RENTHEIM — Eu queria que tudo ficasse para Erhart.

BORKMAN — Sim, ele é a pessoa mais próxima que você tem.

ELLA RENTHEIM (Com carinho.) — Ele é a pessoa mais próxima que eu


tenho.

BORKMAN — Você é a última da sua família.

ELLA RENTHEIM (Balançando lentamente a cabeça num gesto de


assentimento.) — Sou a última. Quando eu morrer, o nome Rentheim morrerá
comigo. E é muito doloroso para mim pensar nisto. Desaparecerei tão
completamente que não restará nem meu nome.

BORKMAN (Num lampejo.) — Agora compreendo aonde você queria chegar.

ELLA RENTHEIM (Com paixão.) — Não permita que isto aconteça. Deixe que
Erhart assuma meu nome depois da minha morte.

BORKMAN (Com dureza.) — Sei. Você quer preservar meu filho do fardo de
carregar o nome do pai dele. Essa é a verdade.

ELLA RENTHEIM — Nunca! Eu teria usado este nome com orgulho e alegria
junto de você! Mas uma mãe que vai morrer em breve... Um nome, John
Gabriel, é um laço mais forte do que você pensa.

BORKMAN (Friamente, com orgulho.) — Muito bem, Ella. Sou homem o


bastante para carregar sozinho o meu nome.

ELLA RENTHEIM (Tomando-lhe as mãos que aperta entre as suas.) —


Obrigada! Obrigada! Agora não há mais dívidas entre nós. Sim, sim. Você fez
tudo o que estava em seu poder para reparar o mal que me causou. Quando eu
tiver deixado esta vida, Erhart Rentheim viverá por mim!

(Abre-se a porta que a tapeçaria dissimula e a Sra. Borkman aparece na soleira,


com a cabeça envolta em seu xale negro)

SRA. BORKMAN (Presa de violenta agitação.) — Jamais! Jamais Erhart usará


este nome!

ELLA RENTHEIM (Recuando.) — Gunhild!


ELLA RENTHEIM (Recuando.) — Gunhild!

BORKMAN (Áspero, num tom ameaçador.) — Ninguém tem permissão de subir


até aqui!

SRA. BORKMAN (Avançando um passo.) — Eu concedi a mim mesma a


devida permissão.

BORKMAN (Indo em direção a ela.) — O que é que você quer comigo?

SRA. BORKMAN — Lutar por você, defendê-lo, protegê-lo das forças do mal.

ELLA RENTHEIM — As forças do mal estão em você mesma, Gunhild.

SRA. BORKMAN (Com dureza.) — Admito. (Com o braço estendido no ar,


ameaçadora.) Mas ele carregará o nome do pai! Ele o salvará, ele o redimirá. E
eu serei sua única mãe! Eu! Só eu! Eu possuirei o coração de meu filho. Eu!
Ninguém mais. (Sai pela mesma porta, fechando-a atrás de si.)

ELLA RENTHEIM (Transtornada.) — John Gabriel Erhart será destruído em


meio a esta tempestade. É preciso que um acordo seja feito entre você e Gunhild.
Vamos descer agora e falar com ela.

BORKMAN (Olhando-a.) — Vamos? Eu também?

ELLA RENTHEIM — Nós dois.

BORKMAN (Balançando a cabeça.) — Ela é dura... Dura como o ferro que


outrora sonhei arrancar das montanhas.

ELLA RENTHEIM — Tente agora! É o momento.

(Borkman olha-a, imóvel, indeciso, sem responder.)

TERCEIRO ATO

Sala de estar da Sra. Borkman. A lâmpada ainda está acesa na mesa do sofá,
perto da boca de cena. O jardim de inverno está às escuras. A Sra. Borkman, a
cabeça coberta pelo xale, entra pela porta do vestíbulo, extremamente alterada.
Cruza a sala em direção à janela, entreabre ligeiramente a cortina, indo em
seguida sentar perto da estufa, mas logo salta da cadeira e toca a campainha
chamando a Criada. Espera um pouco de pé, perto do sofá; como ninguém
aparece, toca novamente, desta vez com mais força. Logo entra pelo vestíbulo a
Criada; está sonolenta e vê-se que se vestiu às pressas.

SRA. BORKMAN (Impaciente.) — Onde é que você andava, Maleine? Tive que
chamar duas vezes.

A CRIADA — Eu ouvi...

SRA. BORKMAN—Mas nem por isso veio ver o que era.

A CRIADA (Abespinhada.) — Tinha que vestir algo primeiro, a senhora não


acha?

SRA. BORKMAN — Claro. Vista-se adequadamente e depois vá correndo


buscar meu filho.

A CRIADA (Olhando-a muito espantada.) — É pra eu ir buscar o Sr. Erhart?

SRA. BORKMAN — Isso mesmo. Diga-lhe que volte imediatamente para casa
porque quero falar com ele.

A CRIADA (Lentamente.) — Então acho que é melhor acordar o cocheiro.

SRA. BORKMAN — Para quê?

A CRIADA — Para arrear o coche. Está nevando horrivelmente lá fora esta


noite.

SRA. BORKMAN — E o que tem isso? Ande, ande depressa! É logo ali na
esquina.

A CRIADA — Mas, madame, não é mesmo ali na esquina.

SRA. BORKMAN — Claro que é. Você não sabe onde é a casa dos Hinkel?

A CRIADA (Com desdém.) — Lógico que sei. Mas é lá que o Sr. Erhart está
hoje?

SRA. BORKMAN (Surpresa.) — É; onde mais ele poderia estar?


A CRIADA (Dissimulando um sorriso.) — É que eu pensei que ele estivesse
onde costuma estar.

SRA. BORKMAN — Estivesse onde?

A CRIADA — Na casa dessa tal de Madame Wilton, como chamam.

SRA. BORKMAN — Na casa da Sra. Wilton? Meu filho não vai lá tanto assim.

A CRIADA (Resmungando para si mesma.) — Dizem por aí que ele vai lá todo
santo dia.

SRA. BORKMAN — Isso não faz o menor sentido, Maleine. Dê um pulo até a
casa do Sr. Hinkel e trate de trazer Erhart de volta.

A CRIADA (Balançando a cabeça.) — Está certo. Já estou indo (Está para sair
quando a porta do vestíbulo se abre e aparecem Ella Rentheim e Borkman.)

SRA. BORKMAN (Recuando.) — O que significa isso?

A CRIADA (Assustada, torcendo as mãos instintivamente.) — Misericórdia!

SRA. BORKMAN (Sussurrando para a Criada.) — Vá dizer-lhe que venha


imediatamente.

A CRIADA (Em voz baixa.) — Sim senhora.

(Ella Rentheim entra na sala. Borkman segue-a. A Criada esgueira-se por trás
deles.)

SRA. BORKMAN (Recobrando o autodomínio, volta-se para a irmã.) — O que


é que ele quer aqui embaixo... na minha casa?

ELLA RENTHEIM — Ele quer tentar chegar a um acordo com você, Gunhild.

SRA. BORKMAN — Ele nunca tentou nada disso antes.

ELLA RENTHEIM — Mas esta noite ele quer tentar.

SRA. BORKMAN — A ultima vez que estivemos Frente a frente foi no tribunal,
quando fui chamada para prestar esclarecimentos.
BORKMAN (Aproximando-se.) — Mas esta noite eu é que vou esclarecer certas
coisas.

SRA. BORKMAN (Olhando-o.) — Você?

BORKMAN — Não vou falar sobre os meus erros. São todos notórios.

SRA. BORKMAN (Com um sorriso amargo.) — É verdade. Todo mundo os


conhece.

BORKMAN — Mas ninguém sabe por que fiz o que fiz. Por que e que eu tinha
que fazer o que fiz. Ninguém compreende que eu tinha que agir daquela forma
porque eu era eu, porque eu era John Gabriel Borkman — e não um outro
qualquer. E é isto que eu quero tentar explicar a você.

SRA. BORKMAN (Balançando a cabeça.) — É inútil... Impulsos não absolvem


ninguém. Nem fantasias.

BORKMAN — Mas podem absolver-nos aos nossos próprios olhos.

SRA. BORKMAN (Fazendo com a mão um gesto de protesto.) — Chega de


falar nisso! Já remoí o suficiente esses seus negócios excusos.

BORKMAN — Eu também. Tive tempo de sobra naqueles cinco anos


intermináveis de prisão. E nos oito anos que passei aqui em cima no salão tive
mais tempo ainda. Reabri

o caso por minha própria conta para novas investigações. Refiz todo o processo:
fui meu acusador, meu advogado de defesa e meu único juiz. Fui mais imparcial
que qualquer outra pessoa. Enquanto caminhava incansavelmente aqui em cima,
considerei e reconsiderei cada uma das minhas ações. Examinei-as sob todos os
aspectos, sem concessões, tão severamente quanto o promotor. E o veredito a
que cheguei todas as vezes foi o seguinte: sou culpado apenas para comigo
mesmo. SRA. BORKMAN — E eu então? E seu filho?

BORKMAN — Você e ele estão incluídos no que eu chamo de “eu mesmo”.

SRA. BORKMAN — E as outras centenas de pessoas?

Aquelas que dizem que você arruinou?


BORKMAN (Com mais veemência.) — Eu tinha o poder! E dentro de mim
ecoava um chamado irresistível. A fortuna que jazia enterrada nas montanhas do
país inteiro clamava por mim! Gritava para que eu a libertasse. E ninguém

mais ouvia este clamor. Só eu.

SRA. BORKMAN — Para vergonha do nome Borkman.

BORKMAN — Como saber se os outros, dispondo do poder de que eu


dispunha, não teriam agido exatamente como eu?

SRA. BORKMAN — Ninguém mais, ninguém a não ser você, teria agido assim.

BORKMAN — Talvez não, porque eles não tinham as j minhas qualidades. E,


mesmo que tivessem feito o que fiz, não teriam o mesmo objetivo que eu diante
dos olhos e, portanto, seu ato teria tido um significado muito diferente. Em
resumo: pronunciei minha própria absolvição.

ELLA RENTHEIM (Delicadamente, num tom de súplica.) — Você acredita


mesmo nisso, John Gabriel?

BORKMAN (Com um movimento de cabeça.)—A absolvição dizia respeito


apenas a este ponto. Mas agora vem a maior acusação, a mais pesada, a mais
pesada, a mais angustiante.

SRA. BORKMAN — Qual?

BORKMAN — Desperdicei, aqui em cima no salão, oito

preciosos anos de minha vida. No dia mesmo em que fui solto, deveria ter-me
lançado na realidade — na dura e fria realidade que não admite sonhos. Eu
deveria ter recomeçado de baixo e ter subido novamente até as alturas — mais
alto ainda do que antes, apesar de tudo o que tinha acontecido. SRA.
BORKMAN — Você apenas viveria novamente a

mesma vida, pode ter certeza.

BORKMAN (Balançando a cabeça e olhando-a com um ar professoral.) — Nada


de novo acontece. Mas aquilo que já aconteceu também não se repete. É o olhar
que transforma as ações. Um novo olhar transmuda antigos atos.
(Interrompendo-se.) Mas você não compreende nada disso.

SRA. BORKMAN (Cortante.) — Não mesmo.

BORKMAN — Não. E é esta a minha maldição: não ter nunca encontrado uma
única alma que me compreendesse.

ELLA RENTHEIM (Olhando-o.) — Nenhuma, John Gabriel?

BORKMAN — Talvez uma. Mas há muito, muito tempo atrás. Numa época em
que eu não imaginava um dia precisar de compreensão. Depois, mais ninguém.
Ninguém atento o suficiente para, estando de vigília, despertar-me — para soar
como o sino da manhã fazendo-me renascer alegremente para o trabalho duro e
necessário e convencendo-me de que eu não tinha feito nada de irreparável.

SRA. BORKMAN (Rindo desdenhosa.) — Então você precisa, apesar de tudo,


de que alguém o convença disto.

BORKMAN (Com raiva crescente.) — Claro. Quando o mundo inteiro, em


uníssono, sopra nos meus ouvidos que eu nunca me levantarei, sou levado, por
momentos, quase a acreditar que os outros têm razão. (Levantando a cabeça.)
Mas logo a voz da minha consciência se ergue e minha certeza triunfa: estou
perdoado.

SRA. BORKMAN (Olhando-o com uma expressão dura.) — Por que você
nunca veio até mim pedir-me o que você chama de “compreensão”?

John Gabriel Borkman 67

BORKMAN — E se eu tivesse vindo, teria adiantado de alguma coisa?

SRA. BORKMAN (Com um gesto.) — Você nunca teve amor por nada — este é
o nó da questão.

BORKMAN (Com orgulho.) — Eu amei o poder...

SRA. BORKMAN — O poder, claro!

BORKMAN —... o poder de criar a felicidade à minha volta!


SRA. BORKMAN — Você um dia teve nas mãos o poder de me fazer feliz. E o
que foi que você fez?

BORKMAN (Sem olhá-la.) — Não há naufrágio sem vítimas.

SRA BORKMAN —E seu filho? Você usou seu poder... você pensou, por um
instante que fosse, em fazê-lo feliz?

BORKMAN — Meu filho? Eu mal o conheço.

SRA. BORKMAN — É verdade. Você não o conhece.

BORKMAN (Duro.) — Você se encarregou disto — você, a mãe dele.

SRA. BORKMAN (Olhando-o com um ar de superioridade.) — Você não sabe


do que foi que eu me encarreguei.

BORKMAN — Você?

SRA. BORKMAN — É. Eu mesma. Por minha conta.

BORKMAN--Do quê? Diga.

SRA. BORKMAN — Eu me encarreguei de cuidar do nome que você deixará


para os que vierem depois.

BORKMAN (Com um riso curto, seco.) —... para os que vierem depois. Ora,
ora! E quase como se eu já estivesse morto.

SRA. BORKMAN (Com ênfase.) — E está.

BORKMAN (Lentamente.) — Talvez você tenha razão. (Num ímpeto.) Mas


não! Ainda não! Estive muito perto, muito perto da morte, mas agora despertei.
Renovado. Há muita vida ainda diante de mim. E eu posso ver esta vida nova,
radiosa, latejando enquanto aguarda. E você também vai vê-la...

SRA. BORKMAN (Elevando a mão) — Não sonhe mais com a vida! Continue
enterrado onde estava.

ELLA RENTHEIM (Indignada.) — Gunhild! Gunhild! Como é que você tem


coragem...
SRA. BORKMAN (Sem ouvi-la.) — Eu vou levantar um monumento sobre a
sua sepultura.

BORKMAN — Um pelourinho, com certeza.

SRA. BORKMAN (Com emoção crescente.) — Não, não vai ser um


monumento construído em pedra ou metal. E ninguém terá permissão para
gravar dizeres infamantes no monumento que eu levantarei. Será como um anel,
uma cerca viva de árvores e plantas, espessa, muito espessa, em torno da sua
vida sepultada. Todas as coisas escusas que um dia se passaram serão cobertas.
John Gabriel Borkman cairá assim no esquecimento, escondido dos olhos dos
homens.

BORKMAN (Com uma voz rouca e cortante.) — E é você quem vai realizar este
ato de amor?

SRA. BORKMAN — Não com minhas próprias forças. Eu não seria capaz. Mas
criei um aliado que dedicará sua vida a este único objetivo. Ele viverá uma vida
tão pura e nobre, tão luminosa, que a sua vida subterrânea será esquecida aqui na
terra.

BORKMAN (Sombrio e ameaçador.) — Se é a Erhart que você está se referindo,


diga logo de uma vez.

SRA. BORKMAN (Olhando-o nos olhos.) — Sim, Erhart. Meu filho. Ele que
você quer sacrificar como preço dos seus crimes.

BORKMAN (Olhando de relance para Ella.) — Como preço do meu crime mais
grave.

SRA. BORKMAN (Empertigando-se.) — Ora, um crime contra uma estranha.


Lembre-se do crime que cometeu contra mim! (Olhando triunfalmente para os
dois.) Mas ele não vai ouvi-los. Quando eu o chamar em meu auxílio, ele virá!
Porque é comigo que ele vai ficar! Comigo e com ninguém mais. (Prestando,
subitamente, atenção.) Estou ouvindo! É ele! É ele! Erhart!

(Erhart Borkman abre violentamente a porta da entrada e precipita-se para a sala.


Está de sobretudo e chapéu.)

ERHART BORKMAN (Pálido e ansioso.) — Mãe, por que cargas d’água... (Ele
vê Borkman que está perto da porta que dá para o jardim de inverno, tem um
sobressalto e tira o chapéu. Fica em silêncio por alguns instantes e então
pergunta.) O que é que a senhora quer de mim, mãe? O que foi que houve?

SRA. BORKMAN (Estendendo os braços para ele.) — Eu queria ver você,


Erhart. Eu quero ter você sempre comigo — sempre.

ERHART BORKMAN (Gaguejando.) — Me ter?... Sempre! O que a senhora


quer dizer com isso?

SRA. BORKMAN — Eu quero ter você, ter você, só isto! Há alguém que quer
tomar você de mim!

ERHART BORKMAN (Recuando um passo.) — Ah, então a senhora sabe?

SRA. BORKMAN — Sim. Você também sabe?

ERHART BORKMAN (Num sobressalto, olhando para ela.) — Se eu sei? Bem,


claro...

SRA. BORKMAN — Ah! um complô! Nas minhas costas! Erhart! Erhart!

ERHART BORKMAN (Rapidamente.) — Mamãe, diga-me o que é que a


senhora sabe!

SRA. BORKMAN — Eu sei de tudo. Sei que sua tia veio até aqui para roubá-lo
de mim.

ERHART BORKMAN — Minha tia!

ELLA RENTHEIM— Oh, ouça-me por um instante primeiro, Erhart!

SRA. BORKMAN (Continuando.) — Ela quer que eu dê você para ela! Ela quer
tomar o lugar da sua mãe, Erhart! Ela quer que daqui para frente você seja filho
dela e não meu. Ela quer que você herde todos os bens dela, que você abandone
seu próprio nome e assuma o nome dela.

ERHART BORKMAN — Tia, é verdade?

ELLA RENTHEIM — É. É verdade.


ERHART BORKMAN — Eu não sabia de nada disso. Por que a senhora quer
que eu volte para sua companhia?

ELLA RENTHEIM — Porque eu sinto que se você ficar aqui eu vou acabar por
perdê-lo.

SRA. BORKMAN (Áspera.) — É para mim que você o está perdendo — é isso
mesmo. E é assim que deve ser.

ELLA RENTHEIM (Olhando-o numa súplica.) — Erhart, eu não suportarei


perder você. Porque eu sou sozinha e estou morrendo.

ERHART BORKMAN — Morrendo?

ELLA RENTHEIM — Sim, morrendo. Você ficará comigo até o fim? Você se
dedicará a mim completamente, como se fosse meu próprio filho?

SRA. BORKMAN (Interrompendo.) — Você vai abandonar sua mãe e a missão


de sua vida? É isto o que você quer fazer, Erhart?

ELLA RENTHEIM — Eu estou desenganada. Responda, Erhart.

ERHART BORKMAN (Muito emocionado.) — Tia, a senhora foi


maravilhosamente boa comigo. Em sua casa pude crescer longe dos problemas e
tão feliz como acho que toda criança deve ser na infância...

SRA. BORKMAN — Erhart, Erhart!

ELLA RENTHEIM — Que bom você ter guardado essa recordação!

ERHART — ... mas eu não posso sacrificar minha vida pela senhora neste
momento. Não posso prometer-lhe fazer as vezes de um filho.

SRA. BORKMAN (Triunfante.) — Ah! Eu sabia! Você não vai levá-lo. Não vai!

ELLA RENTHEIM (Triste.) — Estou vendo. Você o conquistou novamente.

SRA. BORKMAN — Claro, claro — ele é meu e meu

sempre será, não é verdade, Erhart? Nós dois temos ainda um bom caminho a
percorrer juntos.
ERHART BORKMAN (Lutando consigo mesmo.) — Mãe, tenho também que
dizer-lhe de uma vez...

SRA. BORKMAN (Em suspenso.) — O quê?

ERHART BORKMAN — Só percorreremos juntos, mãe, um pequeno trecho...

SRA. BORKMAN (Como que petrificada.) — O que é que você está querendo
dizer?

ERHART BORKMAN (Tomando-se de coragem.) — Meu Deus, mamãe, eu sou


muito jovem! Este ar sufocante, este cheiro de guardado vão acabar me
asfixiando!

SRÀ. BORKMAN — Aqui... comigo...!

ERHART BORKMAN — Sim, aqui com a senhora, mãe!

ELLA RENTHEIM — Então venha comigo, Erhart!

ERHART BORKMAN — Oh, tia, não será melhor com a senhora. Será apenas
um pouco diferente, mas não melhor. Rosas e lavanda... e o mesmo ar abafado,
tão sufocante quanto aqui.

SRÀ. BORKMÀN (Chocada, mas recomposta.) — Ar sufocante na casa de sua


própria mãe!

ERHART BORKMAN (Com impaciência crescente.) —. É, não conheço


expressão melhor para descrever isto: toda esta mórbida solicitude e — e
idolatria — ou seja lá o que for. Para mim, chega!

SRA. BORKMAN (Olhando para ele séria e solene.) — Você se esqueceu da


causa à qual devotou sua vida, Erhart?

ERHART BORKMAN (Explodindo.) — A causa a que a senhora devotou a


minha vida! A senhora, a senhora impôs sua vontade. Eu nunca tive o direito de
ter meus próprios desejos. Mas agora não vou mais tolerar esta escravidão. Sou
jovem! Lembre-se disso, mãe! (Com um olhar polido e respeitoso para
Borkman.) Não posso dedicar minha vida a reparar os erros de um outro. Seja
ele quem for.
SRA. BORKMAN (Tomada de um terror crescente.) — Quem foi que fez você
mudar assim?

ERHART BORKMAN (Desconcertado.) — Quem? Ora, eu mesmo.

SRABORKMAN — Não, não, não. Você caiu sob a influência de poderes


estranhos. Você não está mais sob a influência de sua mãe. Nem sob a de sua...
sua mãe adotiva.

ERHART BORKMAN (Num desafio forçado.) — Eu só obedeço à minha


própria vontade e estou sob a influência de mim mesmo.

BORKMAN (Indo em direção a Erhart.) — Agora chegou a minha vez.

ERHART BORKMAN (Com uma polidez distante e medida.) — Como? O que


o senhor quer dizer?

SRA. BORKMAN (Sarcástica e desdenhosa.) — É exatamente o que eu gostaria


de saber.

BORKMAN (Continuando, imperturbável.) — Ouça, Erhart... você não gostaria


de seguir seu pai? Ninguém pode ser reabilitado por outra pessoa. São quimeras,
histórias que lhe contaram aqui embaixo, neste ar sufocante. Mesmo que você
vivesse uma vida mais exemplar que a de todos os santos do paraíso isso não me
ajudaria em nada.

ERHART BORKMAN (Formal e respeitoso.)— É a pura verdade.

BORKMAN — É. E também não adiantaria nada eu me entregar à penitência e


ao arrenpendimento. Vivi estes anos todos de sonhos e esperanças. Mas isto não
é para mim. Chega de sonhar.

ERHART BORKMAN (Inclinando-se ligeiramente.) — E, nesse caso, o que o


senhor pretende fazer?

BORKMAN — Reerguer-me, é isto o que pretendo fazer. Recomeçar de baixo.


É pelo presente e pelo futuro que um homem pode redimir-se de seu passado.
Pelo trabalho. Pelo trabalho incessante, por tudo que contava para mim quando
eu era jovem, pela própria vida, enfim, que me importa hoje mil vezes mais que
outrora. Erhart, quer juntar-se a mim e ajudar-me nesta nova vida?
SRA. BORKMAN (Levantando a mão num gesto de advertência.) — Não,
Erhart!

ELLA RENTHEIM (Calorosa.) — Sim, Erhart, sim. Ajude-o!

SRA. BORKMAN — E é este o conselho que você dá! Você, a solitária... à beira
da morte.

ELLA RENTHEIM — Isto não vem ao caso agora.

SRA. BORKMAN — Claro, desde que não seja eu quem o tome de você.

ELLA RENTHEIM — Exatamente, Gunhild.

BORKMAN — Você acredita, Erhart?

ERHART BORKMAN (Preso de uma angústia dolorosa.) — Pai, neste momento


eu não posso. É completamente impossível.

BORKMAN — Mas, afinal, o que é você pretende fazer?

ERHART BORKMAN (Inflamando-se.) — Sou jovem! Quero viver como todo


mundo ao menos uma vez! Quero viver minha própria vida!

ELLA RENTHEIM — E não pode sacrificar alguns breves meses para trazer um
pouco de luz a uma vida que logo mergulhará no vazio e nas trevas?

ERHART BORKMAN—Tia, eu gostaria mas não posso me sacrificar assim.

ELLA RENTHEIM — Nem por alguém que o ama tão profundamente?

ERHART BORKMAN—Pela minha vida, tia, não posso.

SRA. BORKMAN (Olhando-o com severidade.) — E nada mais o prende à sua


mãe?

ERHART BORKMAN — Eu a amarei sempre. Mas não posso viver só para a


senhora. Isso não é vida para mim.

BORKMAN — Então venha comigo! Porque viver, viver é trabalhar, Erhart.


Venha e nós dois iremos embora juntos, em busca da vida e do trabalho!
ERHART BORKMAN (Apaixonadamente.) — Sim, mas não quero trabalhar
agora! Porque sou jovem e ainda não

tinha percebido! Mas agora isto me corre nas veias e me queima. Eu não quero
trabalhar. Só viver, viver, viver!

SRA. BORKMAN (Com um grito que mostra que ela adivinhou.) — Em nome
de quê, Erhart?

ERHART BORKMAN (Os olhos brilhando.) — Da felicidade, mãe.

SRA. BORKMAN — E onde você pretende encontrar a felicidade?

ERHART BORKMAN — Já a encontrei!

SRA. BORKMAN (Num grito.) — Erhart!

(Erhart Borkman, decidido, atravessa a sala e abre a porta do vestíbulo.)

ERHART BORKMAN (Chamando.) — Fanny, agora você pode entrar!

(A Sra. Wilton, de manteau, aparece na soleira da porta.)

SRA. BORKMAN (Levantando os braços.) — A Sra/ Wilton!

SRA. WILTON (Um pouco tímida, interroga Erhart com o olhar.) — Posso
mesmo entrar?

ERHART BORKMAN — Pode, pode entrar. Já falei tudo.

(A Sra. Wilton vem até a sala. Erhart fecha a porta por onde ela entrou. Ela se
inclina educadamente diante de Borkman, que retribui o cumprimento. Faz-se
um curto silêncio.)

SRA. WILTON (Numa voz calma e firme.) — Agora já sabem. E imagino que
vocês acreditam que eu trouxe a infe-licidade a esta casa._

SRA. BORKMAN (Devagar, olhando-a fixamente) A senhora destruiu os


últimos laços que ainda me prendiam

à vida. (Explodindo.) Mas isto não tem cabimento, é absolutamente impossível!


SRA. WILTON — Posso compreender que a senhora pense assim.

SRA. BORKMAN — A senhora deve ser capaz de ver por si mesma que isto
não é possível.

SRA. WILTON — Eu diria que é improvável, mas mesmo assim aconteceu.

SRA. BORKMAN (Voltando-se para Erhart.) — Erhart, isto não é sério?

ERHART BORKMAN — Para mim, é a felicidade. Toda a imensa e


indescritível felicidade que ilumina a vida. Não posso dizer nada mais que isto.

SRA. BORKMAN (Para a Sra. Wilton, torcendo as mãos.)

— A senhora enfeitiçou e seduziu meu pobre filho!

SRA. WILTON (Erguendo com orgulho a cabeça.) — Eu não fiz nada disto.

SRA. BORKMAN — E tem a coragem de dizer que não o fez!

SRA. WILTON — Eu não o enfeiticei nem seduzi. Erhart veio até mim por
vontade própria. E eu, de bom grado, fui encontrá-lo a meio caminho.

SRA. BORKMAN (Olhando-a de alto a baixo com desprezo.) — Não duvido


nada.

SRA. WILTON (Controlando-se.) — Sra. Borkman, há forças na vida que a


senhora parece não conhecer muito bem.

SRA. BORKMAN — Que forças, se mal lhe pergunto?

SRA. WILTON — As forças que levam duas pessoas a unir para sempre seus
destinos, sem medo.

SRA. BORKMAN (Sorrindo.) — Acho que a senhora já se uniu “para sempre” a


um outro. )

SRA. WILTON (Cortante.) — Este outro me deixou.

SRA. BORKMAN — Mas ele é vivo ainda, pelo que dizem.


SRA. WILTON — Para mim, ele morreu.

ERHART BORKMAN (Intervindo.) — É isto mesmo, mamãe. Para Fanny ele


está morto. E, de toda forma, este homem não me diz minimamente respeito.

SRA. BORKMAN (Olhando-o com severidade.) — Então você sabe da


existência deste outro homem?

ERHART BORKMAN — Sei, mãe, perfeitamente. Eu sei de tudo.

SRA. BORKMAN — E isto não o perturba, pelo que você disse.

ERHART BORKMAN (Encerrando o assunto de forma petulante.) — A única


coisa que posso dizer é que esta é a felicidade que eu quero. Sou jovem e quero
viver. Viver! Viver!

SRA. BORKMAN — Realmente. Você é jovem, Erhart. Jovem demais para tudo
isso.

SRA. WILTON (Firme e séria.) — Não pense, Sra. Borkman, que eu não lhe
disse a mesma coisa. Contei-lhe tudo a respeito do meu passado, lembrei-lhe
insistentemente que sou mais velha que ele sete anos...

ERHART BORKMAN (Interrompendo.) — Ora, Fanny, eu sempre soube disto.

SRA. WILTON — Mas foi tudo em vão.

SRA. BORKMAN — É mesmo? Não diga. Então por que a senhora não o
dispensou sem mais aquela? Por que não lhe fechou a porta no nariz? Era isto o
que a senhora deveria ter feito enquanto era tempo!

SRA. WILTON (Olhando-a e falando em voz baixa.) — Porque isto eu não


podia fazer.

SRA. BORKMAN — E por que não?

SRA. WILTON — Porque ele é a felicidade também para mim.

SRA. BORKMAN (Em tom de pouco caso.) — Hum, felicidade, felicidade...

SRA. WILTON — Eu ainda não sabia o que a felicidade significava. E não


posso obrigar-me a abandoná-la só porque ela chegou tão tarde.

SRA. BORKMAN — E quanto tempo a senhora acha que a felicidade vai durar?

ERHART BORKMAN (Interrompendo-a.) — Muito ou pouco, mãe, não


importa!

SRA. BORKMAN (Com raiva.) — Cego! Não vê aonde tudo isto vai levar
você?

ERHART BORKMAN — Não estou preocupado com o futuro. E também não


quero olhar em tomo. Só quero que me deixem viver minha próprio vida por
uma vez ao menos!

SRA. BORKMAN (Com profunda dor.) — E você chama isto de vida, Erhart!

ERHART BORKMAN — A senhora é que não vê como ela é linda!

SRA. BORKMAN (Torcendo as mãos.) — Vou ter que suportar mais esta
vergonha!

BORKMAN (Do fundo, num tom duro e mordaz.) — Ora, Gunhild, você já
devia estar habituada...

ELLA RENTHEIM (Implorando.) — John Gabriel!

ERHART BORKMAN (No mesmo tom.) — Pai!

SRA. BORKMAN — Ter que suportar ver meu filho, diante de mim, dia após
dia, ligado a uma... uma...

ERHART BORKMAN (Interrompendo com rapidez.) — A senhora não vai ter


que ver nada, mãe. Pode ter certeza! Não vou ficar aqui muito tempo mais.

SRA. WILTON (Firme e controlada.) — Estamos de partida, Sra. Borkman,


tanto ele quanto eu.

SRA. BORKMAN (Empalidecendo.) — Ah! Ainda por cima estão de partida.


Juntos, talvez?

SRA. WILTON (Assentindo com um gesto de cabeça.) — Sim. Para o


estrangeiro. Vou para o sul. Acompanho uma jovem. E Erhart vai conosco.

SRA. BORKMAN — Com a senhora... e uma jovem?

SRA., WILTON—Sim. É a jovem Frida Foldal que está morando comigo. Quero
que ela viaje para se aperfeiçoar no piano.

SRA. BORKMAN — Então a senhora vai levá-la consigo?

SRA. WILTON — Sim, não posso mandá-la para fora sozinha.

SRA. BORKMAN (Disfarçando um sorriso.) — O que você diz a isto, Erhart?

ERHART BORKMAN (Um pouco embaraçado, dando de ombros.) — Ora,


mãe, se Fanny faz realmente questão...

SRA. BORKMAN (Friamente.) — E a partida está marcada para quando? Se é


que posso perguntar.

SRA. WILTON — Já estamos indo. Esta noite mesmo. Minha carruagem está
preparada, esperando, na porta dos Hinkel.

SRA. BORKMAN (Olhando-a de cima abaixo.) — Ah!.. Então essa era a festa
desta noite!

SRA. WILTON (Sorrindo.) — É verdade, não havia ninguém lá a não ser Erhart
e eu. E Frida, claro.

SRA. BORKMAN — E onde é que ela está agora?

SRA. WILTON — Na carruagem, esperando por nós.

ERHART BORKMAN (Numa angústia dolorosa.) — Mãe, a senhora


compreende, não? Eu queria poupá-la de tudo isso. Poupar a senhora e todo o
mundo.

SRA. BORKMAN (Olhando-o profundamente ferida.) — Você pretendia me


abandonar sem sequer se despedir?

ERHART BORKMAN — Achei que era o melhor. Melhor para nós dois. Tudo
estava acertado, as malas feitas. Mas quando a senhora mandou me chamar,
claro que... (Tentando pegar-lhe a mão.) Adeus, mãe.

SRA. BORKMAN (Virando-se e repetindo-o.) Não me toque!

ERHART BORKMAN (Delicadamente.) — É sua última palavra?

SRA. BORKMAN (Com dureza.) — É.

ERHART BORKMAN (Voltando-se.) — Adeus, tia.

ELLA RENTHEIM (Apertando-lhe as mãos.) — Adeus, Erhart. Viva sua vida e


seja feliz — o mais feliz que puder!

ERHART BORKMAN — Obrigado, tia. (Ele se inclina

diante de Borkman.) Adeus, pai. (Baixo, para a Sra. Wilton.) Vamos embora,
quanto mais depressa, melhor.

SRA. WILTON (Em voz baixa.) — Vamos.

SRA. BORKMAN (Com um sorriso mau.) —Sra. Wilton, acha prudente de sua
parte levar essa mocinha com vocês?

SRA. WILTON (Devolvendo o sorriso, entre irônica e séria.) — Os homens são


volúveis, Sra. Borkman. E as mulheres também. Quando Erhart estiver farto de
mim — e eu dele — será melhor para nós dois se ele, coitado, tiver alguém para
ampará-lo.

SRA. BORKMAN — E a senhora?

SRA. WILTON — Ora, eu saberei me virar, pode ter certeza. Boa-noite a todos.
(Inclina-se e sai pela porta do vestíbulo. Erhart fica ainda um momento como
que hesitando, depois segue-a.)

SRA. BORKMAN (Deixando cair as mãos entrelaçadas.)

— Não tenho mais filho.

BORKMAN (Tomado por uma resolução súbita.) — E hora de enfrentar a


tormenta. Sozinho. Meu chapéu! Meu capote! (Dirige-se rapidamente para a
porta.)
ELLA RENTHEIM (Impedindo-lhe o caminho, presa de grande ansiedade.) —
John Gabriel, onde é que você vai?

BORKMAN — Para a tempestade da vida lá fora. Deixe-me ir, Ella!

ELLA RENTHEIM (Segurando-o com firmeza.) — Não, não deixarei! Você está
doente! Estou vendo que está doente!

BORKMAN — Deixe-me ir, estou dizendo. (Consegue livrar-se dela e sai pelo
vestíbulo.)

ELLA RENTHEIM (Na porta.) — Ajude-me, Gunhild!

SRA. BORKMAN (Fria e dura, parada no meio da sala.)

— Não quero prender ninguém. Deixe que me abandonem, todos. Um depois do


outro. Que vão para onde quiserem! (De repente, num grito lancinante.) Erhart,
não vá! (Começa a andar para a frente, com os braços estendidos em direção à
porta. Ella Rentheim barra-lhe o caminho.)

QUARTO ATO

Uma área aberta, na frente da propriedade. À direita, vê-se uma parte da casa,
com a porta de entrada no alto de alguns degraus de pedra. No fundo e quase
alcançando a casa, uma encosta íngreme, coberta de abetos. À esquerda, um
bosque esparso. A tempestade passou, mas o chão e as árvores estão sob uma
espessa camada de neve. A noite está sombria e cheia de nuvens por entre as
quais a lua, às vezes, lança seu brilho desmaiado. É, na verdade, o reflexo da
neve que ilumina tenuamente a paisagem. Borkman, a Sra. Borkman e Ella
Rentheim estão de pé no patamar da escada. Borkman, exausto, apóia-se na
parede da casa. Usa um capote antiquado sobre os ombros; segura, com uma das
mãos, um chapéu mole de feltro cinza e, com a outra, um bastão de madeira
grossa e cheia de nós. Ella Rentheim traz no braço sua capa. O xale da Sra.
Borkman caiu-lhe sobre os ombros, deixando sua cabeça descoberta.

ELLA RENTHEIM (Que se interpôs no caminho da Sra. Borkman.) — Não vá


atrás dele, Gunhild!

SRA. BORKMAN (Fora de si.) — Deixe-me! Ele não pode me abandonar!


ELLA RENTHEIM — É completamente inútil, ouça o que eu digo. Você não o
alcançará!

SRA. BORKMAN — Mas eu quero ir assim mesmo, Ella! Vou gritando pela
estrada e ele ouvirá o grito de sua mãe.

ELLA RENTHEIM — Ele não pode escutar você de dentro de uma carruagem.

SRA. BORKMAN — Não, não, ele ainda não está na carruagem.

ELLA RENTHEIM — Ele já está na carruagem há muito tempo, acredite-me.

SRA. BORKMAN (Em desespero.) — Se ele já tomou a carruagem então ele


está com ela, com ela, com ela!

BORKMAN (Com um riso lúgubre.) — E então, com certeza, ele não ouvirá o
grito de sua mãe.

SRA. BORKMAN — Não. Ele não ouvirá. (Prestando atenção.) Psiu! O que é
isto?

ELLA RENTHEIM (Prestando atenção também.) — Parece o tilintar de


campainhas.

SRA. BORKMAN (Abafando um grito.) — É a carruagem dela!

ELLA RENTHEIM — Ou de outra pessoa qualquer.

SRA. BORKMAN — Não, não, é a carruagem da Sra. Wilton. Eu conheço o


som das campainhas de prata! Ouçam! Eles estão passando aqui embaixo,
contornando a colina!

ELLA RENTHEIM (Rápida.) — Gunhild, se você quer chamar por ele tem que
ser agora. Quem sabe ele... (O tilintar das campainhas é ouvido bem perto, no
bosque.) Depressa, Gunhild. Eles já estão aqui embaixo.

SRA. BORKMAN (Hesita um momento, depois empertiga-se e diz num tom


duro e frio.) — Não. Não vou chamar por ele. Deixe Erhart Borkman abandonar-
me, se é isso o que ele quer. Ele que vá para longe, bem longe, em busca do que
ele agora chama de vida e felicidade.
(O som se perde na distância.)

ELLA RENTHEIM (Depois de um instante.) — Agora não se pode mais ouvir o


som das campainhas.

SRA. BORKMAN — Para mim, soavam como dobres fúnebres.

BORKMAN (Com um riso silencioso.) — Ah! Dessa vez ainda não foi para
mim que eles soaram.

SRA. BORKMAN — Foi para mim. E para ele que me abandonou.

ELLA RENTHEIM (Balançando a cabeça, pensativa.) — Quem sabe se, no final


das contas, eles não estão anuncianl do vida e felicidade para ele, Gunhild?

SRA. BORKMAN (Sobressaltando-se e olhando para ela de forma dura.) —


Vida e felicidade?

ELLA RENTHEIM — Por um breve período que seja.

SRA. BORKMAN — Você admitiria que ele vivesse feliz... com ela?

ELLA RENTHEIM (Sinceramente calorosa.) — Do fundo do coração!

SRA. BORKMAN (Friamente.) — Então sua capacidade de amar deve ser maior
que a minha.

ELLA RENTHEIM (Os olhos perdidos na distância.) — Viver à míngua de amor


talvez preserve a capacidade de amar.

SRA. BORKMAN (Fixando nela os olhos.) — Se isto for verdade, logo logo
minha capacidade de amar vai ser tão grande quanto a sua, Ella.(vira-se e entra
em casa.)

ELLA RENTHEIM (Fica um instante imóvel, olhando preocupada para


Borkman. Depois, cautelosamente, coloca a mão no ombro dele.) — John, agora
vamos entrar. Venha.

BORKMAN (Como que acordando.) — Eu?

ELLA RENTHEIM — É. Você não pode ficar aqui nesse vento gelado. Tenho
certeza que não pode, John. Venha, entre comigo. Lá dentro está quente.

BORKMAN (Aborrecido.) — Lá em cima, no salão, não

é?

ELLA RENTHEIM — Não, na sala, embaixo.

BORKMAN (Num ímpeto de fúria.) — Nunca mais ria vida porei os pés
novamente sob aquele teto!

LLLA RENTHEIM — E para onde você vai? Tão tarde

já...

BORKMAN (Pondo o chapéu.) — Primeiro e antes de mais nada vou sair para
ver meus tesouros escondidos.

ELLA RENTHEIM (Olhando-o ansiosa.) — Não estou entendendo, John.

BORKMAN (Com uma risada, interrompida por um acesso de tosse.) — Não


estou me referindo a coisas alheias que eu tivesse roubado e escondido. Não
precisa ficar preocupada, Ella. (Parando e apontando.) Olhe só para aquele
homem ali! Quem é?

(Vilhelm Foldal, com o velho capote coberto de neve, o chapéu enterrado na


cabeça e um enorme guarda-chuva na mão, aparece pelo canto da casa,
avançando com dificuldade por causa da neve. Manca muito do pé esquerdo.)

BORKMAN — Vilhelm! Voltou para quê?

FOLDAL (Levantando a cabeça.) — Meu Deus! Você aqui fora, John Gabriel?
(Cumprimentando.) E a Sra. Borkman também!

BORKMAN (Cortante.) — Não é a Sra. Borkman.

FOLDAL — Oh! Desculpem! Para dizer a verdade, perdi meus óculos na neve.
Você aqui fora, você, que nunca sai de casa!...

BORKMAN (Num tom leve e despreocupado.) — Preciso me habituar


novamente à vida ao ar livre. Quase três anos de prisão preventiva, mais cinco
anos de detenção e oito anos lá em cima...

ELLA RENTHEIM (Perturbada.) — John Gabriel, por favor!

FOLDAL — Claro, claro, claro...

BORKMAN — Mas eu quero saber o que é que você veio fazer aqui.

FOLDAL (Ainda nos primeiros degraus da escada.) —

Eu queria subir, John Gabriel. Sinto como se eu tivesse que subir ate o salão.
Pelo amor de Deus... aquele salão!

BORKMAN — Eu pus você porta afora e você tem coragem de voltar?

FOLDAL — Tenho, tenho sim; aquilo não tem importância.

BORKMAN — O que há com seu pé? Por que é que você está mancando?

FOLDAL — Imagine, fui atropelado.

ELLA RENTHEIM — Atropelado!

FOLDAL — Por uma carruagem.

BORKMAN — Ah!

FOLDAL—Puxada por dois cavalos. Eles desceram a colina como loucos. Não
tive tempo de sair do caminho, então...

ELLA RENTHEIM —... então eles o atropelaram?

FOLDAL — Eles vieram direto para cima de mim, senhora... senhorita. Bem
para cima de mim, então eu rolei na neve, perdi meus óculos, quebrei meu
guarda-chuva (Esfregando o joelho.) e machuquei um pouco o pé.

BORKMAN (Com um riso abafado.) — Sabe quem estava naquela carruagem,


Vilhelm?

FOLDAL — Não. Como é que eu ia saber? Era uma carruagem fechada, as


cortinas estavam abaixadas e o cocheiro nem parou quando eu caí. Mas isto não
tem a menor importância porque... (Interrompendo-se.) Eu estou felicíssimo,
sabe?

BORKMAN — É mesmo?

FOLDAL — Não sei bem como chamar isto, mas acho que é felicidade.
Aconteceu algo maravilhoso! E eu não po- i dia fazer outra coisa: eu tinha que
vir compartilhar minha felicidade com você, John Gabriel.

BORKMAN (Num tom grosseiro.) — Pois bem, compartilhe logo.

ELLA RENTHEIM — Faça seu amigo entrar, John Gabriel!

BORKMAN (Asperamente.) — Não ponho mais os pés nesta casa, já disse!

ELLA RENTHEIM — Mas ele foi atropelado!

BORKMAN — Ora, todos nós somos atropelados pelo menos uma vez na vida.
Mas é preciso levantar e fingir que não foi nada.

FOLDAL — É muito profundo o que você está dizendo, John Gabriel. Posso
perfeitamente contar-lhe aqui fora mesmo.

BORKMAN (Um pouco mais gentil.) — Pois então conte, Vilhelm.

FOLDAL — Vou contar: imagine... quando cheguei em casa hoje, depois de ter
vindo visitar você, encontrei uma carta. Adivinhe de quem?

BORKMAN — De Frida, talvez?

FOLDAL — Exatamente! Como é que você acertou logo de primeira? Era uma
carta enorme de Frida que um criado tinha vindo entregar. E você sabe o que
dizia a carta?

BORKMAN — Talvez fosse uma carta de despedida.

FOLDAL — Exatamente. E impressionante como voce consegue adivinhar. Ela


diz que aquela Sra. Wilton apegou-se tanto a ela que resolveu viajar para o
estrangeiro e levá-la também. Assim, Frida vai aprender mais sobre música, foi o
que ela escreveu. E a Sra. Wilton arranjou um excelente professor que vai viajar
com elas. E vai ensinar muita coisa a Frida porque, infelizmente, ela tem muitas
deficiências, você sabe.

BORKMAN (Abafando o riso.) — Claro, claro, claro que sei, sei até demais,
Vilhelm.

FOLDAL (Continuando, entusiasmado.) — E, imagine, ela só soube da viagem


hoje à noite. Foi naquela festa. Hum! E ela ainda encontrou tempo para escrever.
E a carta é tão carinhosa, tão bonita, tão bem escrita. É sim. Nem sombra de
desprezo pelo pai. E uma idéia tão delicada: despedir-se de nós com uma carta...
(Rindo.) Mas não é de nada disso que se trata.

BORKMAN (Interrogando-o com o olhar.) — Como assim?

FOLDAL — Ela escreveu que vão partir amanhã de manhã. Bem cedo.

BORKMAN — É mesmo? Amanhã? Ela escreveu isso?

FOLDAL (Rindo e esfregando as mãos.) — Mas eu sou esperto! Vou direto para
a casa da Sra. Wilton agora...

BORKMAN — No meio da noite?

FOLDAL — Claro! Ainda não é tão tarde assim. E se a casa já estiver fechada
vou tocar. E agora chega de conversa. Tenho que ver Frida antes que ela vá
embora. E vou vê-la custe o que custar! Boa noite! Boa noite! (Vai saindo.)

BORKMAN — Ouça, meu pobre Vilhelm, poupe-se da caminhada.

FOLDAL — Você está preocupado com o meu pé?

BORKMAN — É, e além do mais você não vai mesmo poder entrar na casa da
Sra. Wilton.

FOLDAL — Claro que vou. Nem que eu tenha que me pendurar na campainha
até alguém abrir a porta. Eu tenho que ver Frida.

ELLA RENTHEIM — Sua filha já partiu, Sr. Foldal.


FOLDAL (Petrificado.) — Frida já foi embora? Tem certeza? Quem lhe disse?

BORKMAN — O futuro professor dela.

FOLDAL — Oh! E quem é ele, afinal?

BORKMAN — Um certo Sr. Erhart Borkman.

FOLDAL (Radiante.) — Seu filho, John Gabriel! Ele foi com elas, então?

BORKMAN — Foi. É ele que vai ajudar a Sra. Wilton a educar Frida.

FOLDAL — Deus seja louvado! A menina não podia estar em melhores mãos.
Mas é certo que eles já partiram?

BORKMAN — Ela foi com eles na carruagem que atropelou você na estrada.

FOLDAL (Torcendo as mãos.) — Meus Deus, era minha pequena Frida naquela
carruagem maravilhosa!

BORKMAN (Assentindo.) — É, Vilhelm, sua filha já

deve estar longe agora. E o nosso jovem Erhart também. Reparou nas
campainhas de prata?

FOLDAL— Claro. De prata, não ? Eram de prata mesmo? Autênticas?

BORKMAN — Pode ter certeza. Tudo ali era muito autêntico.

FOLDAL (Enternecido.) — É extraordinário como as coisas boas acontecem...


Meu talento poético, meu insignificante talento poético transformou-se em
música para Frida. Quer dizer que não fui poeta em vão, porque agora ela vai
conhecer o mundo — este vasto mundo que eu desejei tão ardentemente
conhecer. Minha pequena Frida viajando numa carruagem fechada com
campainhas de prata...

BORKMAN —... e atropelando o próprio pai...

FOLDAL (Alegremente.) — Ora, o que aconteceu comigo não tem a menor


importância desde que minha menina... Quer dizer que cheguei tarde demais...
Então vou logo para casa consolar a mãe dela que está chorando na cozinha.
BORKMAN — Chorando?

FOLDAL (Com um leve sorriso.) — Chorando aos prantos, imagine.

BORKMAN — Enquanto você está rindo, Vilhelm.

FOLDAL — Claro, claro. Mas, ela, coitada, não sabe fazer nada melhor. Até
logo. Que sorte a condução parar bem na minha porta! Até logo, John Gabriel.
Até logo, senhorita. (Cumprimenta e, com dificuldade, retoma o caminho por
onde veio.)

BORKMAN (Fica um instante imóvel olhanto para frente.) — Até logo,


Vilhelm. Não é a primeira vez que passam por cima de você, meu amigo.

ELLA RENTHEIM (Olhando-o com angústia dissimulada. — Você está tão


pálido, John, tão pálido...

BORKMAN — É por causa da prisão lá em cima.

ELLA RENTHEIM — Mas eu nunca vi você assim...

BORKMAISL— É que certamente você nunca viu um prisioneiro evadido

ELLA RENTHEIM (Persuasiva.) — Vamos, John, venha comigo para dentro.

BORKMAN — Pare com esse tom! Já lhe disse que...

ELLA RENTHEIM — Por favor, estou pedindo! É para o seu próprio bem!

(A criada aparece na soleira da porta.)

A CRIADA — Desculpem, mas a patroa me mandou trancar a porta.

BORKMAN (Em voz baixa, para Ella.) — Está vendo, agora querem me trancar
novamente.

ELLA RENTHEIM (Para a Criada.) — O patrão não está se sentindo bem e quer
tomar um pouco de ar aqui fora.
A CRIADA—Está certo, mas é que a patroa me mandou...

ELLA RENTHEIM — Pode deixar que eu tranco a porta. Deixe a chave na


fechadura que eu —

A CRLAD A — Então está bem. Vou deixar a chave. (Entra em casa.)

BORKMAN (Fica um instante imóvel, escutando, depois desce


precipitadamente a escada.) — Agora estou livre, Ella; Nunca mais me
prenderão.

ELLA RENTHEIM (Descendo até ele.) — Mas você é livre lá dentro também,
John. Você pode ir e vir o quanto quiser.

BORKMAN (Em voz baixa, aterrorizado.) — Nunca mais entrarei naquela casa!
É tão bom estar aqui fora, de noite.

Se eu subisse agora para o salão, o teto e as paredes desmoronariam para me


soterrar, me esmagar como a uma mosca.

ELLA RENTHEIM — E para onde você vai?

BORKMAN — Vou em frente, sempre em frente, ver se ainda consigo retomar a


liberdade, a vida, o contato com as pessoas. Quer vir comigo?

ELLA RENTHEIM — Eu? Agora?

BORKMAN — Neste instante.

ELLA RENTHEIM — Mas até onde?

BORKMAN — Tão longe quanto eu pude.

ELLA RENTHEIM — Pense melhor. Uma noite e fria como esta, em meio da
neve...

BORKMAN (Numa voz rouco, estrangulada) — Minha dama está saúde com a
própria saúde? Saúde delicada, claro, um pouco abalada.

ELLA RENTHEIM — Eu estou preocupada é com a sua saúde.


BORKMAN — Ha, Ha, Ha! A saúde um homem morto! Tenho que rir de você,
Ella. (avança alguns passos.)

ELLA RENTHEIM (seguindo-o e segurando-o.) — O que foi que você disse que
era?

BORKMAN — Um homem morto. Não lembra das palavras de Gunhild?:


"Continue enterrado onde estava"

ELLA RENTHEIM (decidida, vestindo o manteau) — Vou com você, John.

BORKMAN — Nós pertencemos um ao outro, Ella. (Caminhando) Vamos.

(Aproximando-se do bosque a esquerda e vão desaparecendo entre as árvores.


Não se mais nem o pátio nem a casa a paisagem se transforma lentamente torna-
se íngreme, acidentada e cada vez mais selvagem.)

VOZ DE ELLA RENTHEIM (Vinda do bosque a direita) — Onde estamos


afinal John, não estou reconhecendo isso aqui.

VOZ DE BORKMAN (De um ponto mais elevado.) — Basta seguir meus


passos.

VOZ DE ELLA RENTHEIM — Mas que necessidade nós temos de subir tão
alto?

VOZ DE BORKMAN —Temos que passar por este atalho tortuoso.

ELLA RENTHEIM (Ainda escondida pela vegetação do bosque.) — Mas eu já


não estou mais agüentando.

BORKMAN (À direita, no limiar do bosque.) — Venha! Não estamos muito


longe do mirante. Antigamente havia um banco lá...

ELLA RENTHEIM (Aparecendo entre as árvores.) — Você ainda lembra?

BORKMAN — Lá você vai poder descansar.

(Chegam a um pequeno descampado, no alto do bosque. Ao fundo, uma escarpa.


À esquerda, ao pé das montanhas, uma ampla vista sobre o fiorde e, mais ao
longe, uma sucessão de cordilheiras. À esquerda, um banco sob uma árvore
morta. Uma grossa camada de neve cobre o chão. Borkman e depois Ella
Rentheim aparecem pela direita, caminhando com dificuldade.)

BORKMAN (Na beira da escarpa, à esquerda.) — Venha ver, Ella.

ELLA RENTHEIM (Indo ao encontro dele.) — O quê, John?

BORKMAN (Apontando.) — Está vendo como a terra se abre diante de nós—


livre, distante, imensa?

ELLA RENTHEIM — Nós costumávamos sentar neste banco, antigamente, e


olhar para longe, oh, tão longe.

BORKMAN — Para o país dos sonhos.

ELLA RENTHEIM (Assentindo tristemente.) — Dos sonhos da nossa vida. E


hoje a neve cobre tudo. E a velha árvore morreu.

BORKMAN (Sem ouvi-la.) — Está vendo a fumaça dos barcos a vapor no


fiorde?

ELLA RENTHEIM — Não.

BORKMAN — Pois eu vejo. Eles chegam e partem. Estreitam laços entre os


povos. Espalham a luz e o calor no coração de milhares de casas. Era isto o que
eu sonhava criar.

ELLA RENTHEIM (Suavemente.) — Não passou de um sonho.

BORKMAN — Não passou de um sonho, é verdade. (Ouvindo.) Está ouvindo o


barulho que vem do rio? São as fábricas trabalhando! Minhas fábricas! Todas as
fábricas que eu teria construído! Ouça: elas estão trabalhando. É o turno da
noite. Elas trabalham noite e dia. Ouça! Ouça! As rodas giram e os cilindros
brilham sempre, sempre. Você não consegue ouvir, Ella?

ELLA RENTHEIM — Não.

BORKMAN — Pois eu consigo.


ELLA RENTHEIM (Inquieta.) — Acho que você está enganado, John.

BORKMAN (Cada vez mais exaltado.) — Mas tudo isto é apenas o que está em
torno do reino, sabe?

ELLA RENTHEIM — Do reino? Que reino?

BORKMAN — O meu reino, claro. O reino que eu estava prestes a conquistar


quando — quando eu morri.

ELLA RENTHEIM (Imóvel e comovida.) — Oh, John, John!

BORKMAN — E agora ele está lá — sem defesa, sem dono — abandonado aos
salteadores, à pilhagem, Ella. Está vendo a cadeia de montanhas lá, bem longe?
Uma atrás da outra. Elas se elevam, sobem, se justapõem. Aquele era o meu
reino profundo, inesgotável, infinito!

ELLA RENTHEIM — Sim, John, mas sobe daquele reino um hálito gelado!

BORKMAN — Para mim é o sopro da vida que vem até aqui como uma
saudação dos espíritos cativos. Posso vê-los, aos milhões, aprisionados. Sinto
que os veios de metal me estendem os braços retorcidos e se ramificam e me
seduzem. Eu os vi diante de mim, como fantasmas, na noite que passei nos
cofres do banco, com uma lâmpada na mão. Vocês me imploravam a liberdade e
eu tentei libertá-los. Mas não fui forte o suficiente. O tesouro naufragou
novamente no abismo. (Estendendo os braços.) Mas eu sussurro, na calma da
noite: eu os amo, tesouros que repousam como mortos nas pro-fundezas e na
escuridão! Eu amo os tesouros que clamam pela vida e amo os esplendores, o
poder e a glória que eles proporcionam. Eu amo os tesouros! Amo, amo!

ELLA RENTHEIM (Com emoção crescente.) — Sim, o seu amor, John, está lá
embaixo. Sempre esteve. Mas aqui no alto, à luz do dia, meu caro, batia por você
um coração cálido e ardente. E você estilhaçou este coração. Mais que isso! Dez
vezes pior: você o vendeu, por... por...

BORKMAN (Estremecendo como que atravessado por um arrepio.) — Pelo


reino — o poder e a glória. E isso o que você quer dizer?

ELLA RENTHEIM — É. Exatamente isso. Repito o que disse ainda esta noite:
você matou o poder de amar na mulher que o amou. E que você também amava.
A seu modo, claro. (Com um braço levantado.) E é por isto que eu predigo que
você, John Gabriel Borkman, jamais receberá o produto do seu crime, jamais
entrará triunfante no seu reino de frio e trevas!

BORKMAN (Recua até o banco e senta pesadamente.)

— Tenho medo de que se cumpra esta profecia, Ella.

ELLA RENTHEIM (Muito perto dele.) — Não tenha medo, John. Não poderia
lhe acontecer nada melhor.

BORKMAN (Com um grito, a mão crispada no peito.)

— Ah! (Com voz fraca.) Agora ela me largou.

ELLA RENTHEIM (Sacudindo-o.) — O que foi, John?

BORKMAN (Abandonando-se contra o encosto do banco.) — Uma mão de gelo


apertou meu coração.

ELLA RENTHEIM — John, você sentiu a mão de gelo?

BORKMAN (Murmurando.) — Não, de gelo, não. De ferro. (Ele se deixa


escorregar no banco.)

ELLA RENTHEIM (Tirando rapidamente a capa e cobrindo Borkman com ela.)


— Fique quieto aqui. Vou buscar ajuda.

(Dá alguns passos para a direita, depois pára, volta, toma o pulso de Borkman e
põe a mão sobre o rosto dele.)

ELLA RENTHEIM (Calma e segura.) — Não. É melhor assim, John Borkman.


Melhor para você. (Estende a capa sobre ele e senta-se sobre a neve)

(Breve silêncio) A Sra. Borkman, de manteau, vem do bosque, à direitá. Na


frente vem a Criada, com uma lâmpada.)

A CRIADA (Iluminando a neve.) — Sim senhora, sim senhora, estou vendo as


pegadas deles na neve.

SRA. BORKMAN (Procurando com os olhos.) — Eles estão ali sentados no


banco. (Chamando.) Ella!

ELLA RENTHEIM (Levantando-se.) — Está procurando por nós?

SRA. BORKMAN (Dura.) — É minha obrigação.

ELLA RENTHEIM (Apontando.) — Olhe, Gunhild, ele está ali.

SRA. BORKMAN — Dormindo!

ELLA RENTHEIM (Assentindo.) — Profundamente. E acho que por muito


tempo.

SRA. BORKMAN (Num grito.) — Ella! (Controlando-se e perguntando em voz


baixa.) Foi por decisão dele?

ELLA RENTHEIM — Não.

SRA. BORKMAN (Aliviada.) — Então não foi pelas próprias mãos?

ELLA RENTHEIM — Não. Uma mão de ferro e gelo esmagou-lhe o coração.

SRA. BORKMAN (Para a Criada.) — Vá buscar ajuda. Chame os empregados.

A CRIADA — Sim senhora. (Em voz baixa.) Misericórdia! (Sai pelo bosque à
direita.)

SRA. BORKMAN (De pé, atrás do banco.) — Então o vento da noite o matou.

ELLA RENTHEIM — Provavelmente.

SRA. BORKMAN — Ele... o homem forte.

ELLA RENTHEIM (Colocando-se diante do banco.) — Não quer vê-lo,


Gunhild?

SRA. BORKMAN (Recusando com um gesto.) — Não, não, não. (Baixando a


voz.) Ele era um filho das minas, o diretor do banco. Não poderia mesmo
suportar o ar da noite.

ELLA RENTHEIM — Foi o frio que o matou.


SRA. BORKMAN (Balançando a cabeça.) — O frio?... O frio matou-o há muito
tempo.

ELLA RENTHEIM (Olha-a, assentindo.) — E transformou-nos em sombras.

SRA. BORKMAN — Tem razão.

ELLA RENTHEIM (Com um sorriso triste.) — Um morto e duas sombras —


por obra do frio.

SRA. BORKMAN — Do frio do coração. Agora podemos nos dar as mãos, Ella.

ELLA RENTHEIM — Acho que sim.

SRA. BORKMAN — Duas gêmeas estendem-se as mãos sobre o corpo do


homem que amaram.

ELLA RENTHEIM — Duas sombras sobre um cadáver.

(A Sra. Borkman e Ella Rentheim estendem as mãos uma para a outra por sobre
o banco.)

— FIM —

Este livro foi composto em Sa&on pela Bracher & Malta, com fotolitos do
Bureau 34 e impresso pela Prol Editora Gráfica em papel Pólen 80 c/m2 da Cia.
Suzano de Papel e Celulose para a Editora 34, em dezembro de 1996.

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