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IBSEN. John Gabriel Borkman 1
IBSEN. John Gabriel Borkman 1
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— TEATRO —
editoral34
TEATRO —
editoraH34
EDITORA 34
Distribuição pela Códice Comércio Distribuição e Casa Editorial Ltda. R.
Simões Pinto, 120 CEP 04356-100 Tel. (011) 240-8033 São Paulo-SP
Título original:
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Bracher & Malta Produção Gráfica
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 São Paulo-SP Brasil Tel/Fax
(011) 816-6777
Ibsen, Henrik, 1828 -1906 12lj John Gabriel Borkman / Henrik Ibsen;
tradução
96 p. (Coleção Teatro)
ISBN 85-85490-49-1
Primeiro Ato 34
Segundo Ato 63
Terceiro Ato
81
Quarto Ato
PRIMEIRO ATO
Mais à frente está acesa uma estufa de ferro, grande e antiga. À esquerda, mais
para o fundo, uma porta pequena. Ainda à esquerda, uma janela com pesadas
cortinas. Entre a janela e a porta, um sofá forrado de pele e diante dele uma mesa
coberta por uma tapeçaria. Sobre a mesa, uma lâmpada. Perto da estufa, uma
poltrona de encosto alto.
A Sra. Borkman está sentada no sofá fazendo crochê. É uma velha empertigada,
de aparência distinta e fria: sua expressão é dura e seus cabelos fartos já estão
bem grisalhos. Suas mãos são finas e muito brancas, quase transparentes. Ela
está usando um vestido de seda escuro e pesado que deve ter sido bonito quando
novo mas que agora parece fora de moda e muito batido. Sobre os ombros, um
xale de lã.
A Sra. Borkman, muito aprumada, fica imóvel por algum tempo, ocupada com o
crochê. Ouve-se então o som das campainhas de um trenó que passa lá fora. Ao
escutar o som das campainhas, seus olhos brilham de contentamento e ela
murmura quase que involuntariamente: “Erhart! Até que enfim!” Depois
levanta-se, olha para fora afastando um pouco as cortinas, senta-se novamente
no sofá e retoma o crochê. Parece
SRA. BORKMAN — Só se foi através das cortinas. Você tem olhos de lince.
(Áspera e cortante.) Mas a ultima vez que falamos uma com a outra foi aqui, na
minha sala...
SRA. BORKMAN (Firme, em voz baixa.) — Uma semana antes que ele... que o
diretor do banco fosse solto.
ELLA RENTHEIM (Vindo à frente.) — Sim, sim, sim! Eu não poderia esquecer
aquele tempo. Mas é tão deprimente pensar nisso. Mesmo que seja só por um
momento. Ah!
SRA. BORKMAN — Claro, mas não estou preocupada com os outros. Para eles
foi só uma questão de dinheiro... um punhado de papéis... Mas para nós...! Para
mim! E para Erhart! Ele era ainda uma criança naquela época. (Cada vez mais
exaltada.) Cobertos de vergonha, nós, dois inocentes. Desonrados. Que terrível é
a desonra, tão difícil de carregar.
E ainda por cima arruinados!
ELLA RENTHEIM — E diga-me, Gunhild... como é que ele encara tudo isso ?
ELLA RENTHEIM — Não, ele próprio. Como é que ele tem suportado isso?.
SRA. BORKMAN (Olhando-a estupefata.) — Não me diga que você pensa que
eu ainda tenho alguma coisa com ele... que eu o encontro. Eu nem sequer o vejo.
SRA. BORKMAN (No mesmo tom.) — Ele que esteve trancafiado por cinco
anos! (Escondendo o rosto nas mãos.)
Que humilhação, que vergonha! (Com raiva crescente.) E pensar no que outrora
representava o nome de John Gabriel Borkman!... Não, não, não... Nunca mais
quero vê-lo! Nunca mais!
SRA. BORKMAN — Ele não disse no tribunal que fui eu que o arruinei? Que
eu gastava demais...
SRA. BORKMAN — Mas se era ele mesmo que queria que eu gastasse... Tudo
tinha que ser desmedidamente extravagante...
ELLA RENTHEIM — Eu sei. Mas justo por isso é que você deveria ter
resistido. Mas não foi o que você fez.
SRA. BORKMAN — E eu por acaso sabia que o dinheiro que ele me dava para
gastar não era dele? E ele também gastava rios de dinheiro. Dez vezes mais que
eu.
ELLA RENTHEIM (Suavemente.) — Acho que a posição dele exigia, até certo
ponto, essa ostentação.
SRA. BORKMAN — Ao menos parecia. Mas ele nunca me disse uma palavra a
respeito da situação real dos negócios. Eu nunca poderia imaginar a origem
daquele dinheiro.
ELLA RENTHEIM (Interrompendo.) — Ele não mentiu, Gunhild, ele pode ter
evitado o assunto, mas não mentiu.
ELLA RENTHEIM (Para si mesma.) — Não restou nada, nem para ele nem para
os outros.
ELLA RENTHEIM — E como é que você imagina que ele vá fazer isso?
SRA. BORKMAN — Não sei ainda como. Mas sei que isto vai, que isto tem que
acontecer algum dia. (Interrogan-
do a irmã com o olhar.) Ella, sinceramente, você também sempre pensou nisso,
desde que ele era criança, não é verdade?
SR A. BORKMAN — Não? Então por que você tomou conta de Erhart quando a
tempestade desabou sobre esta casa?
SRA. BORKMAN — Não, não estava. E o pai dele tinha uma boa desculpa
legal, para não assumir nenhuma responsabilidade lá onde ele estava... tão bem
guardado...
ELLA RENTHEIM (Indignada.) — Como é que você pode falar assim! Vocêl
' SRA. BORKMAN (Com uma expressão venenosa.) —
E pensar que você não hesitou em tomar conta de... um filho de John Gabriel.
Como se a criança fosse sua. Tomá-la de mim e ir para casa com ele. E mantê-lo
em sua casa até ele ficar crescido. (Olhando-a com desconfiança.) Só queria
saber por que você fez isto. Por que você ficou com ele?
ELLA RENTHEIM (Evasiva.) — Como posso saber? E além disso Erhart era
tão frágil quando menino.
Ella RENTHEIM — Eu achava. Pelo menos naquela época. E você sabe que o
clima na costa oeste é muito mais saudável do que aqui.
É mesmo? (Cortante.) Está certo. Você fez muito por Erhart, tenho que
reconhecer. (Mudando de tom.) Mas também você tinha todas as condições.
(Sorrindo.) Você teve muita sorte, Ella. Tudo o que era seu foi preservado.
SRA. BORKMAN — Claro. Não foi à toa que você fez isto. O que é que você
queria dele? Quer dizer, o que é que você queria fazer dele?- - -
SRA. BORKMAN (Com desdém.) -|Ora! Òuem está numa situação como a
nossa tem mais o que fazer... não pode se dar ao luxo de ficar pensando em
felicidade.
"SRA. BORKMAN (Olhando-a fixamente, num tom grave.) — Erhart tem por
obrigação, antes de mais nada, brilhar de tal maneira que, por toda a parte, no
país todo, ninguém perceba mais um só vestígio da sombra que o pai dele lançou
sobre mim... e sobre o meu filho. _
SRA. BORKMAN — Claro, até certo ponto. Mas tudo o que aconteceu volta
sempre, ameaçador como um temporal que, de vez em quando, desaba sobre
mim.
ELLA RENTHEIM — Acho que eu devia falar com você sobre... Diga-me,
Erhart não está morando aqui com... vocês.
SRA. BORKMAN (Numa voz dura.) — Erhart não pode morar aqui comigo. Ele
tem que ficar na cidade.
SRA. BORKMAN — Por causa dos estudos. Mas ele passa para me ver todas as
noites.
ELLA RENTHEIM — Então imagino que eu poderia vê-lo e falar logo com ele.
SRA. BORKMAN — Ele ainda não veio mas deve chegar a qualquer momento.
SRA. BORKMAN — Ele anda o tempo todo assim. De um lado para o outro. Da
manhã à noite. Todo santo dia.
ELLA RENTHEIM —Foi Erhart que me contou. Por carta. Que o pai dele fica,
em geral, lá em cima. E você aqui embaixo.
SRA. BORKMAN — É, tem sido assim, Ella, desde o dia em que o soltaram. E
o mandaram de volta para casa. Para mim. E isto já faz oito longos anos.
ELLA RENTHEIM — Mas eu não acreditei que fosse verdade, que fosse
possível...
ELLA RENTHEIM (Olhando para a irmã.) — Deve ser uma vida terrível,
Gunhild!
SRA. BORKMAN — Mais que terrível, Ella. Acho que não suportarei isto
muito tempo mais.
SRA. BORKMAN — Escutar o tempo todo estes passos sobre a minha cabeça.
Desde o amanhecer até tarde da noite. E os passos ressoam como se ele andasse
aqui, nesta sala.
ELLA RENTHEIM (Com jeito.) — Não seria possível fazer alguma coisa,
Gunhild?
ELLA RENTHEIM — Não, aí fora, quando ele sai para tomar ar. No bosque
ou...
ELLA RENTHEIM (Suavemente.) — Mas nenhum dos velhos amigos dele vem
visitá-lo?
SRA. BORKMAN — Ora, ele escolheu o caminho mais fácil para se livrar de
todos eles. Foi uma amizade muito cara a de John Gabriel.
ELLA RENTHEIM — Ah! Com certeza é Foldal. Eram amigos quando jovens.
SRA. BORKMAN — Acho que sim. Mas não sei nada dele. Ele nunca fez parte
do nosso círculo de amigos. No tempo em que tínhamos amigos...
SRA. BORKMAN — Por aí você vê o nível dele. Mas nem é preciso dizer que
ele só vem quando já está escuro.
ELLA RENTHEIM — Esse Foldal... foi um dos que perdeu dinheiro com a
falência do banco.
SRA. BORKMAN (Com pouco caso.) — É, acho que ele perdeu qualquer coisa.
Muito pouco, com certeza.
ELLA RENTHEIM (Com ligeira ênfase.) — Mas era tudo o que ele tinha.
SRA. BORKMAN (Sorrindo.) — Ora, tudo o que ele tinha não era lá grande
coisa. Nada que valha a pena mencionar.
ELLA RENTHEIM — Acredito que o pai não esteja mesmo em boa situação.
SRA. BORKMAN — Acho que sim. Ele ficou com o piano que você mandou
quando ele ia voltar...
ELLA RENTHEIM — Mas é muito longe para a pobrezinha vir até aqui e voltar
depois para a cidade...
SRA. BORKMAN — Mas ela não precisa vir e voltar. Erhart arranjou para que
ela ficasse na casa de uma moça que mora aqui bem perto. Uma tal Sra. Wilton...
ELLA RENTHEIM — Erhart me falou dela em várias cartas. Então ela agora
está morando aqui?
SRA. BORKMAN — Ela alugou uma boa casa aqui perto e se mudou da cidade
para cá já faz algum tempo.
SRA. BORKMAN — Mas a culpa não foi dela: ele a abandonou, foi isto o que
aconteceu.
SRA. BORKMAN — Bastante. Como ela mora aqui perto, costuma vir me ver
de vez em quando.
ELLA RENTHEIM — Então ela conhece Erhart melhor do que conhece você.
ELLA RENTHEIM (Sem pensar.) — Então ela acabou vindo mesmo morar
aqui.
ELLA RENTHEIM (Olhando-a bem nos olhos.) — Estava sim. Estava querendo
dizer alguma coisa mesmo.
SRA. BORKMAN — Muito bem, então diga logo de uma vez.
ELLA RENTHEIM — Não se trata disso, Gunhild, mas do amor que tenho por
ele.
SRA. BORKMAN (Rindo com desdém.) — Por meu filho? Você? Apesar de
tudo?
ELLA RENTHEIM — Sim, eu. Apesar de tudo. E eu... eu amo... eu amo Erhart
tanto... tanto quanto eu poderia ainda amar alguém, neste momento. Na minha
idade.
ELLA RENTHEIM — E por isso fico inquieta cada vez que o vejo correndo
algum perigo.
SRA. BORKMAN — Perigo? Que perigo ele pode estar correndo no momento?
Quem o ameaça?
ELLA RENTHEIM (Balançando a cabeça.) — Você não acha nem tem certeza,
Gunhild.
SRA. BORKMAN (Ameaçadora.) — Você quer se meter entre nós! Entre mãe e
filho! Você!
o enredou nas suas teias até os quinze anos mas agora eu o tomei de você.
(Com a voz rouca, quase num sussurro.) Por causa de um homem, Gunhild,
travamos outrora uma luta de morte.
SRA. BORKMAN — Não vou ganhar nada mantendo meu poder de mãe sobre
Erhart!
SRA. BORKMAN — Quando ele voltou para minha casa, ele ainda pensava que
você tinha feito tudo aquilo por generosidade. (Olhando com despeito para Ella.)
Agora ele não acredita mais nisso.
SRA. BORKMAN — Agora ele sabe melhor ainda. Você o tinha feito acreditar
que era para poupar-me... e a ele, lá em cima no salão.
ELLA RENTHEIM — E em que foi que você o fez acreditar a meu respeito?
SRA. BORKMAN — Ele agora acredita, como é fato, que você tem vergonha de
nós e nos despreza. Não é verdade? Não foi por isso que você planejou tomá-lo
de mim naquela época? Pense bem, Ella. Você vai acabar se lembrando.
SRA. BORKMAN — É toda sua. a cadeira em que me sento é sua. A cama onde
me deito, insone, lhe pertence. A comida que comemos é você quem paga.
SRA. BORKMAN — Eu sei. É por isso que temos que nos resignar a viver da
sua caridade.
ELLA RENTHEIM (Friamente.) — Não posso evitar que você pense assim,
Gunhild.
SRA. BORKMAN — Não, não pode. Quando é que devemos nos mudar?
SRA. BORKMAN (Agitada.) — Claro. Você não imagina que eu vou ficar
morando sob o mesmo teto que você! Prefiro ir viver no asilo ou debaixo da
ponte!
Gunhild?
(Batem levemente à porta que dá para o vestíbulo e logo em seguida entra a Sra.
Wilton em traje de noite e manteau. A Criada, que não teve tempo de anunciá-la,
segue-a um pouco desconcertada. A porta fica entreaberta. A Sra. Wilton é uma
mulher de 30 anos, extremamente bonita e cheia de vida. Seus lábios sorridentes
e sensuais são cor de carmim. Ela tem olhos vivos e cabelos escuros e cheios.)
SRA. BORKMAN (Num tom seco.) — Boa-noite, Sra. Wilton (Para a Criada,
apontando o jardim de inverno.) Apanhe a lâmpada que está lá e acenda-a.
SRA. WILTON (Vendo Ella Rentheim.) — Oh! Perdão! Vejo que está com
visitas...
(Erhart Borkman chega pela porta do vestíbulo que tinha ficado entreaberta. É
um jovem muito elegante, de olhos claros, alegres e brilhantes. Está deixando
crescer a barba.)
ERHART BORKMAN (Na soleira, radiante.) — Mas que surpresa! Tia Ella veio
nos visitar! (Indo até a tia e to-
mando-lhe as mãos.) Tia Ella, Tia Ella! Nem acredito! A senhora aqui!
ELLA RENTHEIM (Lançando-lhe os braços ao redor do pescoço.) — Erhart!
Meu querido, meu filho querido! Como você cresceu! Que felicidade vê-lo
novamente!
SRA. BORKMAN (Com delicadeza forçada.) — Bem, Sra. Wilton, se quiser dar
o prazer de ficar conosco...
SRA. WILTON — Não, muito obrigada, Sra. Borkman, realmente não posso.
Temos outro compromisso. Fomos convidados esta noite pelo Sr. Hinkel, o
advogado.
SRA. WILTON (Rindo.) — Bem, na verdade, quero dizer que eu mesma fui
convidada, mas as moças da casa me pediram para levar também o jovem
Borkman se por acaso eu conseguisse vê-lo.
SRA. BORKMAN (Seca.) — Meu caro Erhart, não sabia que você conhecia essa
família — esses Hinkel.
SRA. WILTON — Isso não quer dizer nada. É fácil conhecer os Hinkel! Eles são
alegres, animados e hospitaleiros. E há muitas moças na casa.
SRA. WILTON — Mas, meu Deus, cara Sra. Borkman, ele é jovem...
SRA. BORKMAN — Felizmente ele é jovem. Se não fosse, não teria serventia
nenhuma.
ERHART BORKMAN — Não, tia, eu não estava mesmo pensando em ir. (Ele
olha, em dúvida, para a Sra. Wilton.) Mas como me desculpar? Agora ficou
complicado porque, afinal, você já tinha aceito o convite por mim.
SRA. WILTON — Acho que uma boa mãe adotiva merece ainda mais a nossa
gratidão que uma mãe de verdade.
SRA. WILTON — Infelizmente; conheci muito pouco minha própria mãe. Mas
se eu tivesse tido, como seu filho, uma mãe de criação tão boa, talvez eu não
fosse tão mal-com-portada como dizem que eu sou. (Voltando-se para Erhart.) É,
meu jovem amigo, hoje você vai ficar quietinho em casa, tomando chá com sua
mãe e sua tia. (Para as senhoras.) Até logo, Sra. Borkman; até logo Srta.
Rentheim!
ERHART BORKMAN (Rindo.) — Ah, então é isso! Você vai tentar de novo?
SRA. WILTON (Meio a sério.) — Lógico. Portanto, cuidado. Conforme eu for
descendo a ladeira vou repetindo para mim mesma, concentrando toda a força da
minha mente: Er-nart Borkman, apanhe o seu chapéu!”
ERHART BORKMAN — Claro que não, mamãe, que idéia! É tudo brincadeira.
(Mudando de assunto.) Mas não vamos ficar aqui falando a respeito da Sra.
Wilton. (Ele faz com que Ella Rentheim sente na poltrona perto do aquece dor e
fica olhando para ela por um instante.)Tia, a senhora resolveu enfrentar essa
viagem tão longa em pleno inverno...
ERHART — Quando morava com a senhora, eu sempre insistia para que fosse
ver o médico.
ERHART BORKMAN (Em tom firme.) — Então a senhora não vai voltar para
casa, Tia Ella.
saí de casa.
ERHART BORKMAN — A senhora vai procurar um bom lugar para ficar, uma
pensão bem confortável, bem tranqüila.
SRA. BORKMAN (Sem levantar os olhos do crochê.) — Sua tia quer ficar aqui
na casa dela, Erhart.
SRA. BORKMAN (Como antes.) — Como você sabe, Erhart, tudo aqui pertence
à sua tia.
ELLA RENTHEIM — Vou ficar aqui, Erhart. Pelo menos por enquanto. Vou
arrumar as coisas do meu jeito. Na ala do intendente.
SRA. BORKMAN — Você está indo para a casa dos Hinkel, Erhart!
Gunhild!
ERHART BORKMAN (Para a Sra. Borkman.) — Mamãe, eu lhe peço por favor,
deixe-me ir!
SRA. BORKMAN (Olhando-o com dureza.) — Você que abandonar sua mãe, é
isso o que você quer.
ERHART BORKMAN — Claro que sim. Fico felicíssimo por ele. Só não quero
ter que ouvir isto.
Seja forte, Erhart! Forte, meu garoto! Não esqueça jamais de sua elevada
missão!
SEGUNDO ATO
John Gabriel Borkman está de pé, próximo ao piano, com as mãos atrás das
costas, ouvindo os últimos acordes da Dança macabra, de Saint-Saèns, que Frida
Foldal está tocando.
BORKMAN — Adivinhe onde foi que eu ouvi, pela primeira vez, estes acordes.
BORKMAN — Talvez você não saiba, mas meu pai trabalhava nas minas.
BORKMAN — Ele quer vir à luz e servir a humanidade. (Anda de um lado para
o outro do salão, sempre com as mãos atrás das costas.)
FRIDA (Que tinha ficado algum tempo sentada, esperando, olha, de repente,
para o relógio e levanta.) — Desculpe, Sr. Borkman, mas acho que realmente
preciso ir.
FRIDA — Não. O que eu penso mesmo é que eu adoraria poder também estar
dançando como eles.
BORKMAN — Basta que você saiba. Onde é que vai tocar esta noite?
FRIDA — Foi.
FRIDA — Muita gente o freqüenta; pelo menos foi o que a Sra. Wilton disse.
FRIDA (Um pouco ansiosa.) — Não, não estou a par, só sei que o jovem
Borkman também vai estar lá.
BORKMAN — É mesmo? Ora, vez por outra deve vir alguém visitá-la.
FRIDA — Devo dizer ao Sr. Erhart, se eu o encontrar mais tarde, que suba
também para vê-lo?
BORKMAN (Secamente.) — Não deve dizer nada. Aliás, você está proibida de
dizer qualquer coisa. Quem quiser subir para me ver, que venha por conta
própria. Eu não peço nada a ninguém.
FRIDA — Claro, claro. Não vou dizer nada. Boa-noite, Sr. Borkman.
FRIDA — Será que posso descer pela escada em caracol? É mais rápido.
BORKMAN — Desça por onde achar melhor. Para mim dá no mesmo. Boa-
noite!
FRIDA — Boa-noite, Sr. Borkman. (Sai pela porta do fundo, à esquerda, que
está dissimulada por uma tapeçaria.)
(Borkman, absorto em seus pensamentos, caminha até o piano, vai fechá-lo mas
desiste. Olha em volta com o olhar vazio e recomeça a caminhar de um lado para
o outro, do canto do piano ao canto do fundo à direita, para lá e para cá, sem
descanso, o tempo todo tenso e inquieto. Quando está
BORKMAN — Mas por que é que você insiste em vir a pé, Vilhelm? A
condução passa na sua porta.
FOLDAL — Andar faz bem. E, além disso, economizo a passagem. Frida tem
vindo tocar para você ultimamente?
FOLDAL — Faz muito tempo que não a vejo. Desde que ela veio morar com
esta Sra. Wilton.
FOLDAL — Há, John Gabriel... Houve uma cena lá em casa, justo antes de eu
vir para cá...
BORKMAN — É mesmo? Por quê?
FOLDAL (Enxugando os olhos.) — Faz muito tempo que eu percebi. Mas hoje
isso ficou evidente.
FOLDAL — Eu não tinha escolha. E, além disso, à medida que o tempo vai
passando, você começa a pensar em casar. E eu estava tão mal naquela época,
tão sem sorte, metido até o pescoço num atoleiro.
FOLDAL (Acalmando-o.) — Mas eu não culpo você pelo que aconteceu. Deus é
testemunha.
FOLDAL — E não pense que eu estou me queixando da minha mulher. Ela não
teve estudo, coitada, mas é uma boa pessoa. Não, John Gabriel, são as crianças...
BORKMAN — Eu sabia.
FOLDAL — Claro que sabem. Mas eles não se impressionam muito com isso.
BORKMAN — Então eles não têm discernimento. Porque ja sua tragédia é boa.
Tenho certeza de que é boa.
FOLDAL (Com um brilho repentino no olhar.) — Você não acha que há ali
algumas coisas boas, John Gabriel? Meu Deus, se eu conseguisse que ela fosse
montada. (Ele abre a pasta e folheia nervosamente os papéis que estão ali.) Olhe!
Quero mostrar-lhe algumas alterações que eu resolvi fazer.
FOLDAL — Trouxe, trouxe. Faz tanto tempo que eu li a peça para você que
pensei que talvez você se distraísse ouvindo um ato ou dois.
quando diz que não é ninguém, que não cuidou da sua carreira. Mas eu lhe
prometo o seguinte, Vilhelm, quando soar para mim a hora da reabilitação...
BORKMAN (Faz um gesto com a mão.) — Fique onde está, por favor. (Numa
excitação crescente.) Quando soar a hora da reabilitação — quando eles
compreenderem que não podem prescindir de mim — quando eles vierem até
aqui, até esta sala, humilhar-se e implorar-me que assuma novamente a direção
do banco! O novo banco que eles fundaram mas são incapazes de conduzir.r (Ele
pára, como antes, perto da escrivaninha e assume a mesma postura em que
estava no momento em que Foldal chegou. Batendo no peito. Eu estarei aqui
para recebê-los! E todo o país tomará ciência das condições que John Gabriel
impõe para... (Ele pára de repente e olha Foldal.) Você está me olhando com ar
de dúvida. Você não acredita que eles venham? Eles têm, têm, têm que vir até
mim, mais dia menos dia eles virão. Você não acredita?
BORKMAN (Exultante.) — Mas eles virão! Eles virão, sem dúvida! Você verá!
Eu os espero dia e noite, a qualquer momento eles estarão aqui. E você verá que
eu estou pronto para recebê-los.
FOLDAL — Não.
BORKMAN (Num acesso.) — Pela sua cara já imagino o que você ia dizer. Mas
aqui isso não se aplica. As pessoas que tinham depósitos no banco iam receber
tudo de volta. Até o último vintém. Não, não, meu caro... A coisa mais baixa que
um homem pode fazer é se aproveitar das cartas de um amigo para tomar público
o que tinha sido confiado apenas a ele, um segredo que só os dois conheciam,
como que sussurrado num quarto escuro, vazio e fechado a sete chaves. O
homem que tem coragem de usar tais expedientes está contaminado até os ossos
pela moral do criminoso. Eu tive um amigo assim. E ele me destruiu.
FOLDAL — Acho que sei de quem você está falando.
FOLDAL — Nunca pude compreender por que ele... Na época havia rumores de
todo tipo.
BORKMAN — Que rumores? Conte-me. Não sei de nada, porque logo depois
eu fui... afastado. O que é que as pessoas comentavam, Vilhelm?
só...
FOLDAL — O quê?
BORKMAN — Ah, claro, você não encontrou Frida, quando vinha para cá.
BORKMAN — Enquanto estamos os dois aqui sentados, ela está tocando para
os convidados do homem que me traiu e me arruinou.
BORKMAN — Pois é, ela levou as partituras e saiu daqui para ir... à mansão.
BORKMAN — E você sabe para quem ela está tocando... entre outros...?
FOLDAL — Não.
FOLDAL — O quê?
BORKMAN — Isso mesmo. Que tal, Vilhelm? Meu filho entre os pares desse
baile. É ou não é uma comédia?
44
Henrik Ibsen
FOLDAL — Claro que ele não sabe, que ele — que esse homem...
BORKMAN (Com uma voz triste, sentado tamborilando os dedos sobre a mesa.)
— Ele sabe de tudo, meu caro, tão certo quanto eu estar aqui sentado.
FOLDAL — Mas você acredita que, se ele soubesse, freqüentaria aquela casa?
FOLDAL — Mas, meu caro, quem poderia tê-lo feito ver as coisas sob esta
óptica?
BORKMAN — E você ainda pergunta? Você esqueceu quem foi que o educou?
Primeiro a tia — desde que ele tinha seis ou sete anos. E depois a mãe,
BORKMAN (Com dureza.) — Estou. Foi por causa delas que você nunca
avançou na vida. Se você tivesse se livrado disso tudo, eu ainda poderia ajudá-lo
a pôr-se de pé.
FOLDAL (Preso de violenta agitação que tenta a custo reprimir.) — Você não
está mesmo em condições...
BORKMAN (Zangado.) — Você está pensando que esse dia nunca vai chegar?
Responda!
FOLDAL (Delicadamente, pegando sua pasta.) — Está bem, está bem. Não
falemos mais nisso.
BORKMAN (Num tom um pouco mais delicado.) -— Bem, não sou nenhuma
autoridade nesse assunto.
BORKMAN — Eu?
FOLDAL—Era por isso que me consolava vir aquL, apoiar-me em você que
acreditava em mim. (Apanhando o chapéu.) Mas agora você não passa de um
estranho.
(Foldal sai pela esquerda. Borkman fica um momento com os olhos fixos na
porta fechada; faz um movimento como se fosse chamar Foldal de volta mas
pensa melhor e recomeça a andar de um lado para o outro no salão com as mãos
atrás das costas. Pára enfim diante da mesa próxima ao sofá e apaga a lâmpada.
O salão fica na penumbra. Logo depois alguém bate à porta dissimulada pela
tapeçaria.)
ELLA RENTHEIM — Sim, sua pérola, como você me chamava nos velhos
tempos. Outrora. Há muitos e muitos anos atrás.
ELLA RENTHEIM — Não tenho mais aquele cabelo longo, escuro e cacheado
com que você gostava tanto de brincar.
BORKMAN (Mudando de assunto.) — Não sabia que você estava por aqui.
BORKMAN — E por que é que você decidiu fazer esta viagem no inverno?
ELLA RENTHEIM — Depois eu lhe conto.
ELLA RENTHEIM — Entre outras coisas. Mas se vamos falar disto, preciso
começar bem antes.
boca de cena. Borkman continua de pé junto da mesa, com as mãos atrás das
costas, olhando-a. Há um breve silêncio.)
ELLA RENTHEIM — Faz tanto tempo que não nos encontramos assim a sós,
John Gabriel.
BORKMAN — Ano após ano você o recusou. Inúmeras vezes você o recusou.
BORKMAN—Você podia muito bem ter sido feliz com ele. E eu estaria salvo.
BORKMAN — Ele achou que eu estava por trás das suas recusas, das suas
obstinadas recusas. E um belo dia resolveu vingar-se. Era fácil demais: ele tinha
nas mãos as cartas em que eu me abria sem nenhuma reserva. Decidiu usá-las
contra mim. Fui apanhado. Mas as coisas não vão ficar assim... Gomo vê, Ella, a
culpa é toda sua.
BORKMAN—Depende do ponto de vista. Sei muito bem tudo o que lhe devo.
Você comprou esta propriedade quando ela foi a leilão. Preparou a casa para
receber-nos, a mim e à... sua irmã. Você se encarregou de Erhart em todos os
sentidos...
BORKMAN — É sim. Foi por isto que quando eles vieram e me levaram,
encontraram todo o seu dinheiro intacto nos cofres do banco.
BORKMAN (Duro e sarcástico.) — Você deve achar que foi para me garantir no
caso de alguma coisa dar errado, não é?
ELLA RENTHEIM — Ah não! Tenho certeza de que você nunca pensaria nisso
naquela época.
BORKMAN — Nunca! Eu estava completamente certo da vitória.
BORKMAN (Dando de ombros.) — Ora, meu Deus, Ella. Não é muito fácil
recordar motivos de vinte anos atrás. Só me lembro que, sozinho, ruminando em
silêncio todas as grandes iniciativas que eu poria em ação, eu me sentia como o
comandante de uma aeronave. Lá estava eu, naquelas noites insones, inflando
um gigantesco balão para navegar por sobre oceanos desconhecidos e perigosos.
ELLA RENTHEIM (Ansiosa.) — Mas por quê? Eu quero saber! Diga porquê!
BORKMAN (Sem olhá-la.) — Ninguém leva o que tem de mais precioso numa
viagem como essa.
ELLA RENTHEIM — Mas você levou a bordo o que você tinha de mais
precioso: o seu futuro, a sua vida.
ELLA RENTHEIM — Mas já fazia anos e anos que você tinha me abandonado
para... se casar com outra.
BORKMAN — Abandonado Você sabe muito bem que eu fui premido por
razões mais elevadas — quer dizer, por razões de outra natureza. Sem o apoio
dele eu não poderia fazer nada.
ELLA RENTHEIM (Com a voz trêmula, olhando para ele) — É verdade mesmo
o que você disse, que naquela épo-ía eu era, para você, a coisa mais preciosa do
mundo?
ELLA RENTHEIM — Não pense que estou me referindo a algum crime contra
as leis do país. Pouco me importa o uso que você fez das ações, dos bônus e de
não sei mais que papéis. Se, ao menos, eu tivesse tido o direito de ficar ao seu
lado quando tudo veio abaixo!
BORKMAN (Recuando ria direção do piano.) — Você está tomada pelo ódio.
ELLA RENTHEIM — Sim. Até esta noite eu não tinha percebido exatamente o
que me aconteceu. Abandonar-me
para ficar com Gunhild — isso eu considerei simples inconstância de sua parte, e
o resultado das artimanhas de uma mulher sem coração. E, no fundo, acho que
eu o desprezava um pouco por causa disto. Mas agora eu vejo claro: você
abandonou a mulher que amava! Eu, eu, eu! Você estava pronto a sacrificar à sua
ambição a coisa mais preciosa que você tinha no mundo. Este foi o duplo crime
do qual você se tornou culpado. O assassinato da sua alma e da minha.
BORKMAN — Mas você não pode esquecer que eu sou homem. Como mulher,
você era a coisa mais preciosa do mundo para mim. Mas, no fim das contas, se
for preciso, uma mulher pode ser substituída por outra...
Eu tinha que concordar. E graças a ele fui subindo, até o meio do caminho, em
direção às alturas com que sonhava. Eu subia, subia. A cada ano queimava uma
etapa...
BORKMAN (Impaciente.) — Acho, mas por quê? (Num ímpeto.) Ah, Ella, já
não sei mais qual de nós dois tem razão — você ou eu!
ELLA RENTHEIM — Toda a alegria de ser mulher; é o mínimo que posso dizer.
A partir do momento em que sua imagem começou a se apagar em mim, vivi
como num eclipse. Ao longo destes anos foi se tomando cada vez mais difícil
para mim
— e por último quase impossível — amar qualquer ser vivo — nem as pessoas,
nem os animais, nem as plantas. Só havia uma exceção.
BORKMAN — Qual?
ELLA RENTHEIM — Erhart — seu... seu filho, John Gabriel.
ELLA RENTHEIM — Se não fosse por isto, por què o teria levado comigo?
Fiquei com ele o mais que pude. Por que você acha que eu fiz isso?
caridade! Ha, ha! Desde que você me abandonou, nunca mais senti piedade por
ninguém. Nunca mais. Se uma criança, morrendo de fome e de frio, viesse,
chorando, à minha porta pedir um prato de comida, eu mandaria a cozinheira
cuidar dela.
Nunca mais desejei cuidar de alguém, sentar por exemplo, esta criança comigo
perto da lareira e olhá-la comer. Eu não era assim quando moça, me lembro tão
bem! Foi você que criou este vazio, este frio em mim — e em tomo de mim.
ELLA RENTHEIM — Só Erhart escapou a este deserto. Nenhum outro ser vivo.
Você me privou das alegrias e da felicidade de ser mãe. E me privou também dos
sofrimentos e das lágrimas de toda mãe. Talvez esta tenha sido a perda mais
dolorosa para mim, John Gabriel.
BORKMAN — Mais cedo ou mais tarde ele tinha mesmo que deixar você e vir
para a cidade estudar.
ELLA RENTHEIM (Torcendo as mãos.) — Sim, mas eu não suporto a solidão,
John Gabriel. O vazio! Perder o coração de Erhart!
BORKMAN (Com um expressão ruim no olhar.) — Hum. Não creio que você
tenha perdido o coração de Erhart, Ella. Lá embaixo não sabem conquistar
corações.
eu...
BORKMAN — Deve ser possível, se você quer tanto. Porque você tem sobre ele
mais direitos que qualquer outra.
BORKMAN — Não se esqueça de que Erhart tem vinte anos. Você não
conseguirá ser a única no coração dele por muito tempo.
BORKMAN — Não? Pensei que você persistisse no que deseja até o fim dos
seus dias.
ELLA RENTHEIM — Claro. Mas isto não significa que eu precise de muito
tempo.
ELLA RENTHEIM — Você sabe que eu tenho estado bastante doente estes
últimos anos.
BORKMAN — Doente?
ELLA RENTHEIM — Talvez ele nunca tenha falado a meu respeito com você...
Mas a verdade é que o vejo raramente. Quase nunca. Há alguém lá embaixo que
se encarrega de mantê-lo longe de mim. Bem longe, você compreende.
BORKMAN — Tenho. (Mudando de tom.) Quer dizer que você tem andado
doente, Ella.
ELLA RENTHEIM — É. E piorei tanto este outono que tive que vir para a
cidade ouvir a opinião de médicos mais experientes.
BORKMAN — O quê?
ELLA RENTHEIM (Calma e serena.) — Meu mal não tem cura, John Gabriel.
BORKMAN — Mas pode ter certeza de que as coisas não evoluem assim tão
rápido.
BORKMAN (Com energia, para mudar de tom.) — Mas de onde veio esta
doença? Você sempre levou uma vida tão saudável, tão regrada?
ELLA RENTHEIM (Olhando para ele.) — Os médicos acham que eu devo ter
sofrido desgostos muito profundos.
ÉLLA RENTHEIM (Numa agitação crescente.) — Tarde demais para falar disto.
Mas, antes de partir eu preciso do filho do meu coração, meu único filho. É tão
triste pensar que deixo para trás a vida — o sol, a luz, o ar — sem deixar uma
única pessoa que pense em mim e guarde de mim uma recordação suave e triste
— como são as recordações dos filhos que perdem a mãe.
BORKMAN — Peça.
ELLÃ RENTHEIM — Talvez você ache que é infantilidade minha não ser capaz
de compreender...
ELLA RENTHEIM — Quando eu morrer, e este dia não está longe, eu queria
que tudo o que é meu — e não é pouco —
ELLA RENTHEIM (Com paixão.) — Não permita que isto aconteça. Deixe que
Erhart assuma meu nome depois da minha morte.
BORKMAN (Com dureza.) — Sei. Você quer preservar meu filho do fardo de
carregar o nome do pai dele. Essa é a verdade.
ELLA RENTHEIM — Nunca! Eu teria usado este nome com orgulho e alegria
junto de você! Mas uma mãe que vai morrer em breve... Um nome, John
Gabriel, é um laço mais forte do que você pensa.
SRA. BORKMAN — Lutar por você, defendê-lo, protegê-lo das forças do mal.
TERCEIRO ATO
Sala de estar da Sra. Borkman. A lâmpada ainda está acesa na mesa do sofá,
perto da boca de cena. O jardim de inverno está às escuras. A Sra. Borkman, a
cabeça coberta pelo xale, entra pela porta do vestíbulo, extremamente alterada.
Cruza a sala em direção à janela, entreabre ligeiramente a cortina, indo em
seguida sentar perto da estufa, mas logo salta da cadeira e toca a campainha
chamando a Criada. Espera um pouco de pé, perto do sofá; como ninguém
aparece, toca novamente, desta vez com mais força. Logo entra pelo vestíbulo a
Criada; está sonolenta e vê-se que se vestiu às pressas.
SRA. BORKMAN (Impaciente.) — Onde é que você andava, Maleine? Tive que
chamar duas vezes.
A CRIADA — Eu ouvi...
SRA. BORKMAN — Isso mesmo. Diga-lhe que volte imediatamente para casa
porque quero falar com ele.
SRA. BORKMAN — E o que tem isso? Ande, ande depressa! É logo ali na
esquina.
SRA. BORKMAN — Claro que é. Você não sabe onde é a casa dos Hinkel?
A CRIADA (Com desdém.) — Lógico que sei. Mas é lá que o Sr. Erhart está
hoje?
SRA. BORKMAN — Na casa da Sra. Wilton? Meu filho não vai lá tanto assim.
A CRIADA (Resmungando para si mesma.) — Dizem por aí que ele vai lá todo
santo dia.
SRA. BORKMAN — Isso não faz o menor sentido, Maleine. Dê um pulo até a
casa do Sr. Hinkel e trate de trazer Erhart de volta.
A CRIADA (Balançando a cabeça.) — Está certo. Já estou indo (Está para sair
quando a porta do vestíbulo se abre e aparecem Ella Rentheim e Borkman.)
(Ella Rentheim entra na sala. Borkman segue-a. A Criada esgueira-se por trás
deles.)
ELLA RENTHEIM — Ele quer tentar chegar a um acordo com você, Gunhild.
SRA. BORKMAN — A ultima vez que estivemos Frente a frente foi no tribunal,
quando fui chamada para prestar esclarecimentos.
BORKMAN (Aproximando-se.) — Mas esta noite eu é que vou esclarecer certas
coisas.
BORKMAN — Não vou falar sobre os meus erros. São todos notórios.
BORKMAN — Mas ninguém sabe por que fiz o que fiz. Por que e que eu tinha
que fazer o que fiz. Ninguém compreende que eu tinha que agir daquela forma
porque eu era eu, porque eu era John Gabriel Borkman — e não um outro
qualquer. E é isto que eu quero tentar explicar a você.
o caso por minha própria conta para novas investigações. Refiz todo o processo:
fui meu acusador, meu advogado de defesa e meu único juiz. Fui mais imparcial
que qualquer outra pessoa. Enquanto caminhava incansavelmente aqui em cima,
considerei e reconsiderei cada uma das minhas ações. Examinei-as sob todos os
aspectos, sem concessões, tão severamente quanto o promotor. E o veredito a
que cheguei todas as vezes foi o seguinte: sou culpado apenas para comigo
mesmo. SRA. BORKMAN — E eu então? E seu filho?
SRA. BORKMAN — Ninguém mais, ninguém a não ser você, teria agido assim.
preciosos anos de minha vida. No dia mesmo em que fui solto, deveria ter-me
lançado na realidade — na dura e fria realidade que não admite sonhos. Eu
deveria ter recomeçado de baixo e ter subido novamente até as alturas — mais
alto ainda do que antes, apesar de tudo o que tinha acontecido. SRA.
BORKMAN — Você apenas viveria novamente a
BORKMAN — Não. E é esta a minha maldição: não ter nunca encontrado uma
única alma que me compreendesse.
BORKMAN — Talvez uma. Mas há muito, muito tempo atrás. Numa época em
que eu não imaginava um dia precisar de compreensão. Depois, mais ninguém.
Ninguém atento o suficiente para, estando de vigília, despertar-me — para soar
como o sino da manhã fazendo-me renascer alegremente para o trabalho duro e
necessário e convencendo-me de que eu não tinha feito nada de irreparável.
SRA. BORKMAN (Olhando-o com uma expressão dura.) — Por que você
nunca veio até mim pedir-me o que você chama de “compreensão”?
SRA. BORKMAN (Com um gesto.) — Você nunca teve amor por nada — este é
o nó da questão.
SRA BORKMAN —E seu filho? Você usou seu poder... você pensou, por um
instante que fosse, em fazê-lo feliz?
BORKMAN — Você?
BORKMAN (Com um riso curto, seco.) —... para os que vierem depois. Ora,
ora! E quase como se eu já estivesse morto.
SRA. BORKMAN (Elevando a mão) — Não sonhe mais com a vida! Continue
enterrado onde estava.
BORKMAN (Com uma voz rouca e cortante.) — E é você quem vai realizar este
ato de amor?
SRA. BORKMAN — Não com minhas próprias forças. Eu não seria capaz. Mas
criei um aliado que dedicará sua vida a este único objetivo. Ele viverá uma vida
tão pura e nobre, tão luminosa, que a sua vida subterrânea será esquecida aqui na
terra.
SRA. BORKMAN (Olhando-o nos olhos.) — Sim, Erhart. Meu filho. Ele que
você quer sacrificar como preço dos seus crimes.
BORKMAN (Olhando de relance para Ella.) — Como preço do meu crime mais
grave.
ERHART BORKMAN (Pálido e ansioso.) — Mãe, por que cargas d’água... (Ele
vê Borkman que está perto da porta que dá para o jardim de inverno, tem um
sobressalto e tira o chapéu. Fica em silêncio por alguns instantes e então
pergunta.) O que é que a senhora quer de mim, mãe? O que foi que houve?
SRA. BORKMAN — Eu quero ter você, ter você, só isto! Há alguém que quer
tomar você de mim!
SRA. BORKMAN — Eu sei de tudo. Sei que sua tia veio até aqui para roubá-lo
de mim.
SRA. BORKMAN (Continuando.) — Ela quer que eu dê você para ela! Ela quer
tomar o lugar da sua mãe, Erhart! Ela quer que daqui para frente você seja filho
dela e não meu. Ela quer que você herde todos os bens dela, que você abandone
seu próprio nome e assuma o nome dela.
ELLA RENTHEIM — Porque eu sinto que se você ficar aqui eu vou acabar por
perdê-lo.
SRA. BORKMAN (Áspera.) — É para mim que você o está perdendo — é isso
mesmo. E é assim que deve ser.
ELLA RENTHEIM — Sim, morrendo. Você ficará comigo até o fim? Você se
dedicará a mim completamente, como se fosse meu próprio filho?
ERHART — ... mas eu não posso sacrificar minha vida pela senhora neste
momento. Não posso prometer-lhe fazer as vezes de um filho.
SRA. BORKMAN (Triunfante.) — Ah! Eu sabia! Você não vai levá-lo. Não vai!
sempre será, não é verdade, Erhart? Nós dois temos ainda um bom caminho a
percorrer juntos.
ERHART BORKMAN (Lutando consigo mesmo.) — Mãe, tenho também que
dizer-lhe de uma vez...
SRA. BORKMAN (Como que petrificada.) — O que é que você está querendo
dizer?
ERHART BORKMAN — Oh, tia, não será melhor com a senhora. Será apenas
um pouco diferente, mas não melhor. Rosas e lavanda... e o mesmo ar abafado,
tão sufocante quanto aqui.
SRA. BORKMAN — E é este o conselho que você dá! Você, a solitária... à beira
da morte.
SRA. BORKMAN — Claro, desde que não seja eu quem o tome de você.
ELLA RENTHEIM — E não pode sacrificar alguns breves meses para trazer um
pouco de luz a uma vida que logo mergulhará no vazio e nas trevas?
tinha percebido! Mas agora isto me corre nas veias e me queima. Eu não quero
trabalhar. Só viver, viver, viver!
SRA. BORKMAN (Com um grito que mostra que ela adivinhou.) — Em nome
de quê, Erhart?
SRA. WILTON (Um pouco tímida, interroga Erhart com o olhar.) — Posso
mesmo entrar?
(A Sra. Wilton vem até a sala. Erhart fecha a porta por onde ela entrou. Ela se
inclina educadamente diante de Borkman, que retribui o cumprimento. Faz-se
um curto silêncio.)
SRA. WILTON (Numa voz calma e firme.) — Agora já sabem. E imagino que
vocês acreditam que eu trouxe a infe-licidade a esta casa._
SRA. BORKMAN — A senhora deve ser capaz de ver por si mesma que isto
não é possível.
SRA. WILTON (Erguendo com orgulho a cabeça.) — Eu não fiz nada disto.
SRA. WILTON — Eu não o enfeiticei nem seduzi. Erhart veio até mim por
vontade própria. E eu, de bom grado, fui encontrá-lo a meio caminho.
SRA. WILTON — As forças que levam duas pessoas a unir para sempre seus
destinos, sem medo.
SRA. BORKMAN — Realmente. Você é jovem, Erhart. Jovem demais para tudo
isso.
SRA. WILTON (Firme e séria.) — Não pense, Sra. Borkman, que eu não lhe
disse a mesma coisa. Contei-lhe tudo a respeito do meu passado, lembrei-lhe
insistentemente que sou mais velha que ele sete anos...
SRA. BORKMAN — É mesmo? Não diga. Então por que a senhora não o
dispensou sem mais aquela? Por que não lhe fechou a porta no nariz? Era isto o
que a senhora deveria ter feito enquanto era tempo!
SRA. BORKMAN — E quanto tempo a senhora acha que a felicidade vai durar?
SRA. BORKMAN (Com raiva.) — Cego! Não vê aonde tudo isto vai levar
você?
SRA. BORKMAN (Com profunda dor.) — E você chama isto de vida, Erhart!
SRA. BORKMAN (Torcendo as mãos.) — Vou ter que suportar mais esta
vergonha!
BORKMAN (Do fundo, num tom duro e mordaz.) — Ora, Gunhild, você já
devia estar habituada...
SRA. BORKMAN — Ter que suportar ver meu filho, diante de mim, dia após
dia, ligado a uma... uma...
SRA., WILTON—Sim. É a jovem Frida Foldal que está morando comigo. Quero
que ela viaje para se aperfeiçoar no piano.
SRA. WILTON — Já estamos indo. Esta noite mesmo. Minha carruagem está
preparada, esperando, na porta dos Hinkel.
SRA. BORKMAN (Olhando-a de cima abaixo.) — Ah!.. Então essa era a festa
desta noite!
SRA. WILTON (Sorrindo.) — É verdade, não havia ninguém lá a não ser Erhart
e eu. E Frida, claro.
ERHART BORKMAN — Achei que era o melhor. Melhor para nós dois. Tudo
estava acertado, as malas feitas. Mas quando a senhora mandou me chamar,
claro que... (Tentando pegar-lhe a mão.) Adeus, mãe.
diante de Borkman.) Adeus, pai. (Baixo, para a Sra. Wilton.) Vamos embora,
quanto mais depressa, melhor.
SRA. BORKMAN (Com um sorriso mau.) —Sra. Wilton, acha prudente de sua
parte levar essa mocinha com vocês?
SRA. WILTON — Ora, eu saberei me virar, pode ter certeza. Boa-noite a todos.
(Inclina-se e sai pela porta do vestíbulo. Erhart fica ainda um momento como
que hesitando, depois segue-a.)
ELLA RENTHEIM (Segurando-o com firmeza.) — Não, não deixarei! Você está
doente! Estou vendo que está doente!
BORKMAN — Deixe-me ir, estou dizendo. (Consegue livrar-se dela e sai pelo
vestíbulo.)
QUARTO ATO
Uma área aberta, na frente da propriedade. À direita, vê-se uma parte da casa,
com a porta de entrada no alto de alguns degraus de pedra. No fundo e quase
alcançando a casa, uma encosta íngreme, coberta de abetos. À esquerda, um
bosque esparso. A tempestade passou, mas o chão e as árvores estão sob uma
espessa camada de neve. A noite está sombria e cheia de nuvens por entre as
quais a lua, às vezes, lança seu brilho desmaiado. É, na verdade, o reflexo da
neve que ilumina tenuamente a paisagem. Borkman, a Sra. Borkman e Ella
Rentheim estão de pé no patamar da escada. Borkman, exausto, apóia-se na
parede da casa. Usa um capote antiquado sobre os ombros; segura, com uma das
mãos, um chapéu mole de feltro cinza e, com a outra, um bastão de madeira
grossa e cheia de nós. Ella Rentheim traz no braço sua capa. O xale da Sra.
Borkman caiu-lhe sobre os ombros, deixando sua cabeça descoberta.
SRA. BORKMAN — Mas eu quero ir assim mesmo, Ella! Vou gritando pela
estrada e ele ouvirá o grito de sua mãe.
ELLA RENTHEIM — Ele não pode escutar você de dentro de uma carruagem.
BORKMAN (Com um riso lúgubre.) — E então, com certeza, ele não ouvirá o
grito de sua mãe.
SRA. BORKMAN — Não. Ele não ouvirá. (Prestando atenção.) Psiu! O que é
isto?
ELLA RENTHEIM (Rápida.) — Gunhild, se você quer chamar por ele tem que
ser agora. Quem sabe ele... (O tilintar das campainhas é ouvido bem perto, no
bosque.) Depressa, Gunhild. Eles já estão aqui embaixo.
BORKMAN (Com um riso silencioso.) — Ah! Dessa vez ainda não foi para
mim que eles soaram.
SRA. BORKMAN — Você admitiria que ele vivesse feliz... com ela?
SRA. BORKMAN (Friamente.) — Então sua capacidade de amar deve ser maior
que a minha.
SRA. BORKMAN (Fixando nela os olhos.) — Se isto for verdade, logo logo
minha capacidade de amar vai ser tão grande quanto a sua, Ella.(vira-se e entra
em casa.)
ELLA RENTHEIM — É. Você não pode ficar aqui nesse vento gelado. Tenho
certeza que não pode, John. Venha, entre comigo. Lá dentro está quente.
é?
BORKMAN (Num ímpeto de fúria.) — Nunca mais ria vida porei os pés
novamente sob aquele teto!
já...
BORKMAN (Pondo o chapéu.) — Primeiro e antes de mais nada vou sair para
ver meus tesouros escondidos.
FOLDAL (Levantando a cabeça.) — Meu Deus! Você aqui fora, John Gabriel?
(Cumprimentando.) E a Sra. Borkman também!
FOLDAL — Oh! Desculpem! Para dizer a verdade, perdi meus óculos na neve.
Você aqui fora, você, que nunca sai de casa!...
BORKMAN — Mas eu quero saber o que é que você veio fazer aqui.
Eu queria subir, John Gabriel. Sinto como se eu tivesse que subir ate o salão.
Pelo amor de Deus... aquele salão!
BORKMAN — O que há com seu pé? Por que é que você está mancando?
BORKMAN — Ah!
FOLDAL—Puxada por dois cavalos. Eles desceram a colina como loucos. Não
tive tempo de sair do caminho, então...
FOLDAL — Eles vieram direto para cima de mim, senhora... senhorita. Bem
para cima de mim, então eu rolei na neve, perdi meus óculos, quebrei meu
guarda-chuva (Esfregando o joelho.) e machuquei um pouco o pé.
BORKMAN — É mesmo?
FOLDAL — Não sei bem como chamar isto, mas acho que é felicidade.
Aconteceu algo maravilhoso! E eu não po- i dia fazer outra coisa: eu tinha que
vir compartilhar minha felicidade com você, John Gabriel.
BORKMAN — Ora, todos nós somos atropelados pelo menos uma vez na vida.
Mas é preciso levantar e fingir que não foi nada.
FOLDAL — É muito profundo o que você está dizendo, John Gabriel. Posso
perfeitamente contar-lhe aqui fora mesmo.
FOLDAL — Vou contar: imagine... quando cheguei em casa hoje, depois de ter
vindo visitar você, encontrei uma carta. Adivinhe de quem?
FOLDAL — Exatamente! Como é que você acertou logo de primeira? Era uma
carta enorme de Frida que um criado tinha vindo entregar. E você sabe o que
dizia a carta?
BORKMAN (Abafando o riso.) — Claro, claro, claro que sei, sei até demais,
Vilhelm.
FOLDAL — Ela escreveu que vão partir amanhã de manhã. Bem cedo.
FOLDAL (Rindo e esfregando as mãos.) — Mas eu sou esperto! Vou direto para
a casa da Sra. Wilton agora...
FOLDAL — Claro! Ainda não é tão tarde assim. E se a casa já estiver fechada
vou tocar. E agora chega de conversa. Tenho que ver Frida antes que ela vá
embora. E vou vê-la custe o que custar! Boa noite! Boa noite! (Vai saindo.)
BORKMAN — É, e além do mais você não vai mesmo poder entrar na casa da
Sra. Wilton.
FOLDAL — Claro que vou. Nem que eu tenha que me pendurar na campainha
até alguém abrir a porta. Eu tenho que ver Frida.
FOLDAL (Radiante.) — Seu filho, John Gabriel! Ele foi com elas, então?
BORKMAN — Foi. É ele que vai ajudar a Sra. Wilton a educar Frida.
FOLDAL — Deus seja louvado! A menina não podia estar em melhores mãos.
Mas é certo que eles já partiram?
BORKMAN — Ela foi com eles na carruagem que atropelou você na estrada.
FOLDAL (Torcendo as mãos.) — Meus Deus, era minha pequena Frida naquela
carruagem maravilhosa!
deve estar longe agora. E o nosso jovem Erhart também. Reparou nas
campainhas de prata?
FOLDAL — Claro, claro. Mas, ela, coitada, não sabe fazer nada melhor. Até
logo. Que sorte a condução parar bem na minha porta! Até logo, John Gabriel.
Até logo, senhorita. (Cumprimenta e, com dificuldade, retoma o caminho por
onde veio.)
ELLA RENTHEIM — Por favor, estou pedindo! É para o seu próprio bem!
BORKMAN (Em voz baixa, para Ella.) — Está vendo, agora querem me trancar
novamente.
ELLA RENTHEIM (Para a Criada.) — O patrão não está se sentindo bem e quer
tomar um pouco de ar aqui fora.
A CRIADA—Está certo, mas é que a patroa me mandou...
ELLA RENTHEIM (Descendo até ele.) — Mas você é livre lá dentro também,
John. Você pode ir e vir o quanto quiser.
BORKMAN (Em voz baixa, aterrorizado.) — Nunca mais entrarei naquela casa!
É tão bom estar aqui fora, de noite.
ELLA RENTHEIM — Pense melhor. Uma noite e fria como esta, em meio da
neve...
BORKMAN (Numa voz rouco, estrangulada) — Minha dama está saúde com a
própria saúde? Saúde delicada, claro, um pouco abalada.
ELLA RENTHEIM (seguindo-o e segurando-o.) — O que foi que você disse que
era?
VOZ DE ELLA RENTHEIM — Mas que necessidade nós temos de subir tão
alto?
BORKMAN (Cada vez mais exaltado.) — Mas tudo isto é apenas o que está em
torno do reino, sabe?
BORKMAN — E agora ele está lá — sem defesa, sem dono — abandonado aos
salteadores, à pilhagem, Ella. Está vendo a cadeia de montanhas lá, bem longe?
Uma atrás da outra. Elas se elevam, sobem, se justapõem. Aquele era o meu
reino profundo, inesgotável, infinito!
ELLA RENTHEIM — Sim, John, mas sobe daquele reino um hálito gelado!
BORKMAN — Para mim é o sopro da vida que vem até aqui como uma
saudação dos espíritos cativos. Posso vê-los, aos milhões, aprisionados. Sinto
que os veios de metal me estendem os braços retorcidos e se ramificam e me
seduzem. Eu os vi diante de mim, como fantasmas, na noite que passei nos
cofres do banco, com uma lâmpada na mão. Vocês me imploravam a liberdade e
eu tentei libertá-los. Mas não fui forte o suficiente. O tesouro naufragou
novamente no abismo. (Estendendo os braços.) Mas eu sussurro, na calma da
noite: eu os amo, tesouros que repousam como mortos nas pro-fundezas e na
escuridão! Eu amo os tesouros que clamam pela vida e amo os esplendores, o
poder e a glória que eles proporcionam. Eu amo os tesouros! Amo, amo!
ELLA RENTHEIM (Com emoção crescente.) — Sim, o seu amor, John, está lá
embaixo. Sempre esteve. Mas aqui no alto, à luz do dia, meu caro, batia por você
um coração cálido e ardente. E você estilhaçou este coração. Mais que isso! Dez
vezes pior: você o vendeu, por... por...
ELLA RENTHEIM — É. Exatamente isso. Repito o que disse ainda esta noite:
você matou o poder de amar na mulher que o amou. E que você também amava.
A seu modo, claro. (Com um braço levantado.) E é por isto que eu predigo que
você, John Gabriel Borkman, jamais receberá o produto do seu crime, jamais
entrará triunfante no seu reino de frio e trevas!
ELLA RENTHEIM (Muito perto dele.) — Não tenha medo, John. Não poderia
lhe acontecer nada melhor.
(Dá alguns passos para a direita, depois pára, volta, toma o pulso de Borkman e
põe a mão sobre o rosto dele.)
A CRIADA — Sim senhora. (Em voz baixa.) Misericórdia! (Sai pelo bosque à
direita.)
SRA. BORKMAN (De pé, atrás do banco.) — Então o vento da noite o matou.
SRA. BORKMAN — Do frio do coração. Agora podemos nos dar as mãos, Ella.
(A Sra. Borkman e Ella Rentheim estendem as mãos uma para a outra por sobre
o banco.)
— FIM —
Este livro foi composto em Sa&on pela Bracher & Malta, com fotolitos do
Bureau 34 e impresso pela Prol Editora Gráfica em papel Pólen 80 c/m2 da Cia.
Suzano de Papel e Celulose para a Editora 34, em dezembro de 1996.