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Nildo Viana POLITICAS DE SAUDE NO BRASIL E DISCURSO LEGISLATIVO Uma andlise dialética do discurso ff SARAMAGS Copyright 2019 por Nildo Viana Politicas de satide no Brasil e discurso legislativo: Uma anilise dialética do discurso Coordenagao editorial: Rémulo Justen Diagramagao: Antonio Lopes Borges Capa: Ingo Bertelli Dados Internacionais de Catalogacao na Publicago (CIP) Bibliotecdria responsavel: Aline Graziele Benitez CRB1/3129 V668p Viana, Nildo Led. —_Politicas de satide no Brasil e discurso legislative: uma anilise dialética do discurso / Nildo Viana. ~ Led. - Rio de Janeiro: Saramago, 2019. Inclui bibliografia. ISBN: 978-65-7145-094-3 1. Satide no Brasil. 2. Politicas publicas. 3. Legislagao 4. SUS - CNS. 5. Neoliberalismo. 6. Anilise dialética. I CDD 362.10981 ulo. Indice para catalogo sistematico: 1. Lingua inglesa SA | si Paulo Rio de Janeiro Telefone: (11) 2348-5191 Telefone: (21) 3090-2036 RA MA | conj. 101 B cv 3: G e@ Sao Paulo - SP - Rua George Ohm, 206 - Torre B - 10° andar - Av, Rio Branco, 26 - Sobreloja - Centro ~ Cidade Mongies Rio de Janeiro - RJ - CEP: 20090-001 04576-020 Editora Saramago wwweditorasaramago.com.br ANALISE DIALETICA DO DISCURSO LEGISLATIVO Tendo em vista nosso objetivo, que é analisar as politicas estatais de satide no periodo de 1990 até 2012 no discurso legislativo, buscando identificar as representagdes e valores que estao embutidos no seu interior, torna-se fundamental discutir as bases metodolégicas do nosso processo analitico. O corpus a ser analisado é fundamen- talmente os documentos relativos as politicas de satide e so leis e portarias e outras pegas legais. No entanto, é preciso explicitar qual é este corpus a ser analisado. Seria possivel dizer que é “discurso” ou “do- cumento”, mas isto é apenas generalidade, o que importa é saber que tipo de discurso se trata. Alguns o denominam “discurso legal” e outros “discurso legislativo”. No nosso caso, optamos pelo uso do termo “discurso legislativo”. O discurso juridico se baseia em uma dupla isotopia: a primeira se refere ao discurso legislativo e a segunda se refere ao discurso referencial. O discurso legislativo é composto de enunciados performativos e normativos que conferem existéncia juridica a determinados fatos e pessoas que advém do discurso referencial, entendi- do como o préprio mundo social anterior a fala que o articula (MAGRI, 2005, p. 02). No entanto, a nossa conceitua¢ao difere um pouco da acima. Por discurso juridico entendemos o discurso 35 dos agentes da esfera juridica’, ou seja, ligado as ideologias juridicas. A esfera juridica produz um conjunto de discur- sos e por isso é possivel abordar o discurso juridico, bem como outras manifestagdes. O discurso legislativo é aquele contido na legislagao. O discurso de um jurista, um filésofo do direito, etc., é discurso juridico. O discurso legislativo é distinto, esta expresso nas leis, no conjunto da legislacao. O autor do discurso juridico pode ser identificado e pode ser Hans Kelsen ou Rudolph Lhering, enquanto que o “au- tor” do discurso legislativo é oculto e geralmente coletivo. O discurso legislativo é 0 “discurso das leis”. Ele é composto por leis mas também por tudo aquilo que é de- rivado, complementar, regulamentador de leis e todo ato impositivo via documentos escritos no Ambito institucio- nal, tais como decretos, resolugées e portarias. O corpus que sera trabalhado por nds sao as diversas manifestagées de discurso legislativo a respeito da sade no periodo de 1990 a 2012. O objetivo é analisar as representagées e valores manifestos neste discurso legislativo. Isso pode causar estranhamento no sentido de que, aparentemente, as leis e formas assemelhadas seriam isentas de valores e representagées. No entanto, essa concep¢do nao expressa a realidade concreta. Por isso, antes de analisar o discur- so legislativo em questéo, apresentaremos 0 método de andlise e a explicitagéo das manifestagées valorativas e representacionais no seu interior. 9 A esfera juridica é uma das esferas sociais, que sao uma mani- festagdo da divisao do trabalho intelectual na sociedade capitalista (VIANA, 20154). 36 ESPECIFICIDADE DO DISCURSO LEGISLATIVO E METODO DE ANALISE O discurso legislativo pode ser compreendido como algo “dado”, “empirico”, meramente “informativo”, ou como “lei” e formas assemelhadas que dizem 0 que esta dito. Sem duvida, algo esta dito no discurso legislativo. Porém, de acordo com a andlise dialética do discurso, é necessario ultrapassar 0 “dado”, que é um concreto-aparente, para chegar a sua determina¢do fundamental, que lhe é cons- tituinte, e assim o descobrir como concreto-determinado, existente'®. Nesse processo, ha o reconhecimento do que esta escrito na lei, mas também o que nAo esta escrito e esta presente, embora oculto. Isso é semelhante ao que afirmou Demerval Saviani ao afirmar que defende “a tese segundo a qual para se compreender 0 real significado da legislagao nao basta ater-se a letra da lei; é preciso examinar o contexto. Nao basta ler nas linhas, mas nas entrelinhas” (SAVIANI, 2007, p. 177). Desta forma, podemos distinguir no discurso legislativo 0 escrito, o sobrescrito e subscrito. O escrito é 0 texto da lei, ou forma assemelhada, em si. O subscrito é 0 que esta oculto, abaixo do texto. O sobrescrito é 0 que esta acima do texto, suas determinacées externas. Assim, a andlise do discurso legislativo deve levar em consideragao estes trés aspectos inseparaveis. A andlise dialética do discurso contribui com esse processo ao apontar elementos gerais de analise do discurso que apontam para estes elementos. O primeiro ponto é a ideia de sobrescrito que em analise do 10 Esse é um procedimento do método dialético (MARX, 1983) aplicado a anilise do discurso. 37 discurso em geral pode ser entendido como os conceitos de totalidade e determinagao, ou, simplesmente, contexto. O contexto (social, cultural, discursivo) é elemento fundamental para entender o discurso (VIANA, 2009b) como algo concreto, como uma totalidade contendo uma historicidade. Esse procedimento é produto de uma ruptura com a linguistica estruturalista e reinser¢4o do produto discursivo na realidade concreta. O discurso é um produto social e histérico e por isso possui um carater social, tal como enfatizou a “escola francesa de analise do discurso” (PECHEUX, 1997; PECHEUX, 1998; BRANDAO, 1997) e tal como vem sendo desenvolvido pela chamada “analise de discurso critica” (RESENDE e RAMALHO, 2011; MA- GALHAES, 2001). Através de uma sintese entre marxis- mo, psicanalise e linguistica, entre outras contribuicées, essa escola contribui para compreender que o discurso é produzido no quadro das institui¢gées, bem como nas lutas sociais e no interdiscurso (BRANDAO, 1997). Nesse sentido, os conceitos fundamentais para a realizacdo da analise do discurso s4o os oriundos do marxismo (MAL- DIDIER, 1997). No entanto, é necessario esclarecer que existe uma diversidade de discursos, constituindo 0 que Maingueneau denomina “géneros do discurso”, tal como o publicitario, politico, etc. (MAINGUENEAU, 2008; MAINGUENEAU, 2000). O nosso objeto de andlise é fundamentalmente o discurso legislativo, que, assim como todos os géneros, possui sua especificidade. A especificidade desse discurso esta no corpus que ele constitui com suas caracteristicas especificas. O que diferencia o discurso legislativo dos demais discursos (cientificos, politicos, jornalisticos, ju- 38 ridicos, etc.)? Na verdade, existem elementos semelhantes entre o discurso legislativo e outras formas de discurso. O que interessa nao é um procedimento comparativo entre ele e as demais formas discursivas e sim precisar suas ca- racteristicas proprias que lhe fornece sua especificidade. O discurso legislativo é um produto social e histé- rico como qualquer outro discurso, mas é um conjunto de escritos cuja autoria geralmente nao é individual e sim coletiva", possui um carater normativo e prescritivo, ou seja, é impositivo, e possui uma delimitacao tematica circunscrita a uma determinada realidade que busca regularizar, bem como é parte do direito em geral, que é uma forma social de regularizacao das relagées sociais’”. 11 O “projeto de lei” pode ser individual, mas a sua passagem pelo parlamento e aprovacio depende da colaboragéo de inumeras outras pessoas e isso gera um processo de transformag’o do pro- jeto original, sendo que o resultado final raramente é 0 mesmo. Em regimes democratico-burgueses, esse processo é mais coletivo, enquanto que em regimes ditatoriais podem ser mais individuali- zados. 12 Tal como Marx colocou (e muitos reconheceram, embora no te- nham retirado todas as consequéncias desta constatago, tal como é 0 caso de Stucka e Pachukanis) o direito é uma forma de regu- larizacao das relagdes sociais, ou seja, um elemento da “superes- trutura” Portanto ele é, ao mesmo tempo, expresséo das relagées de produgdo e uma das formas existentes de regularizagao destas relagGes e nao sé destas como também de todas as relagées sociais que lhe sao derivadas (VIANA, 2006b, p. 65). “Uma relagio social s6 pode existir através de individuos e grupos que se relacionam. Por conseguinte, para o direito existir é necessario que existam individuos que lhe deem vida e movimento. O direito surge com a expansao da divisao social do trabalho e, consequentemente, a formagao de especialistas que formam um grupo social que forne- ce materialidade a este fenémeno social. Estes especialistas sao os 39 Assim, o discurso legislativo é um discurso regularizador de determinadas relag6es sociais. Essa regularizacio' pode ser reprodutora, punitiva, inibidora e inovadora. Ela é reprodutora por visar reproduzir determinadas re- lagées sociais ao normatizé-las. E por isso que é comum compreender que o discurso legislativo, tal como muitos observaram em relacao ao direito, é normativo, prescri- tivo (SAROTTE, 1972; CORREAS, 1995; LUMIA, 2003; SEMAMA, 1981; LEVY-BRUHL, 1974; AGUIAR, 1987; MIALLE, 1989; VIANA, 2006b). O discurso legislativo é regularizador no sentido de reproduzir relagées sociais existentes, bem como as relagées de produgao capitalistas. O direito comercial, por exemplo, visa a reprodugao das relagées mercantis de nossa sociedade e esta intimamente ligado ao discurso legislativo que regulariza e reproduz tais relacées sociais. Ao produzir tal regularizacao, ele pode e deve assumir também o carater punitivo. O direito penal é a forma mais visivel de regulariza¢4o punitiva, bem como em seu discurso legislativo, onde a infragéo da norma é€ penali- juristas, advogados, promotores, professores da area de direito, etc” (VIANA, 2006b, p. 66). “A regulariza¢ao que ele busca efetivar atra- vés das normas e sentengas é restringida e limitada pelo modo de produgao dominante e por isso se pode dizer que o direito possui uma autonomia relativa e ndo uma autonomia absoluta” (VIANA, 2006b, p. 67); “o direito se caracteriza por ser uma forma de regula- rizagao das relagGes sociais através de normas e sentengas e que por isso possui um cardter normativo que se fundamenta num cédigo escrito” (VIANA, 2006b, p. 67). 13. A regularizagao que ele busca efetivar através das normas e sen- tengas é restringida e limitada pelo modo de produgao dominante e por isso se pode dizer que o direito possui uma autonomia relati- va e ndo uma autonomia absoluta. 40 zada. Mas isso também ocorre em outras areas do direito, tal como no direito comercial, através de um conjunto de ages, como multas, perda de propriedade, etc. Ele, nesse sentido, visa inibir a infra¢do da norma, ou seja, antecipar a mesma através de uma punic¢ao. A regularizacao inibidora pode ser percebida no sentido que o discurso legislativo nao apenas diz como as rela¢ées sociais devem ser, e pu- nir quando nao sao como devem ser, mas também busca inibir aquilo que vai contra elas antes mesmo de ocorrer, novamente através da punigado. A lei Maria da Penha é um exemplo disso. De acordo com 0 arcabougo legislativo existente, agressao fisica é crime, mas a referida lei visa inibir uma manifestagdo especifica da mesma ao criar uma penalizacao diferenciada. A regularizagao inovadora é aquela que institui novas rela¢ées sociais, instituigdes, etc. Ela inova, mas dentro dos limites do direito, ou seja, nao ultrapassando os marcos das relagées de producgdo capitalistas (VIANA, 2006b). Uma lei que regulariza a criagdo de uma nova universidade esta sendo inovadora, criando relagées sociais. O arcabougo legislativo é mais maleavel no plano do direito civil, referente a vida priva- da, mas é mais rigido onde realmente afeta os interesses do capital, no plano do direito do trabalho e comercial. E por isso que a regularizacao inibidora é mais comum no primeiro do que no segundo caso. Por conseguinte, podemos perceber no discurso legislativo alguns elementos constitutivos: reprodutor, pu- nitivo, inibidor e inovador. No entanto, ele 6 um discurso inserido num contexto. O contexto em que ele emerge é 0 social, mas também o cultural e 0 discursivo, como todo discurso (VIANA, 2009b). O contexto social no caso de 41 outras formas de discurso pode ser analisado sob maneiras distintas. No caso do discurso legislativo, ha 0 contexto social geral, que remete a totalidade da sociedade e a cor- relagdo de forgas instituidas (regime de acumulagao, etc.) e 0 contexto social mais especifico que gera o mesmo. Isso & devido ao fato que, tal como o direito em geral, 0 discurso legislativo é expresso das relagées sociais"*. Isso, obviamente, nao aparece no discurso legisla- tivo, no que esta escrito. Isto esta no sobrescrito, ou seja, no contexto que o gera, nas lutas de classes e processos sociais que s4o 0 seu processo de constituigao. A elabora- ¢4o de uma lei ocorre como expressao de relagées sociais, tanto a nivel geral quanto a nivel mais local que se refere mais diretamente ao aspecto da realidade que ela atinge. Nesse sentido, o discurso legislativo é materializacao de uma determinada correlagao de forcas (de classes e seus derivados, blocos sociais, subdivisées, presses, etc.) e, por conseguinte, valores, representacées. Quando ¢ proposto a tipificagdo de um crime, como 0 “feminicidio”, sendo que ja existe o homicidio, isso ¢ expresso de determinadas re- lagées sociais, materializagao de valores e representagdes. E acorrelagao de forgas que determina se tal tipificagao, que é uma regularizacao inibidora, ao tornar mais grave o crime do que em outras situagées, sera ou nao materializada em lei. Logo, é fundamental analisar no discurso legislativo 0 sobrescrito, ou seja, 0 seu processo de produgao”’. 14 Alguns analisam 0 direito sob o prisma segundo o qual ele é “expressao das relagées sociais” (STUCKA, 1988; PACHUKANIS, 1988, AGUIAR, 1987), 0 que consideramos correto, mas incom- pleto, nao abarcando a totalidade do fenémeno (VIANA, 2006b). 15 Principio, alias, em total concordancia com a anilise dialética do discurso e andlise do discurso que busca tratar das “condigées de 42 Esse contexto social marcado por determinada cor- relacao de forgas entre classes, blocos sociais e outras sub- divis6es da mesma, é também marcado por determinada hegemonia e luta contra essa hegemonia. Isso também ¢ expresso dessa correla¢ao de forgas, mas explica determi- nados aspectos, especialmente formais, que estado presentes e faz parte da luta de classes, sendo sua expressao cultural, e tendo forga de influéncia no processo de constitui¢ao da lei, ou seja, do discurso legislativo. Ao ser produzido, o discurso legislativo materializa valores, representagoes, concepgées, ideologemas, etc. Mas ha um outro contexto que nao pode ser esque- cido e que faz parte do sobrescrito do discurso legislativo. Trata-se do contexto discursivo. O contexto discursivo de um discurso cientifico é a produc¢ao intelectual do autor, um espaco mais amplo, uma totalidade no qual o discurso analisado esta inserido e que facilita a compreensdo do sentido do mesmo. No caso do discurso legislativo, parece que nada existe além dele mesmo, da lei que ele expressa sob a forma escrita. Porém, a realidade é um pouco dife- rente disso. As leis, portarias, resolugées, decretos, etc., nao surgem sem precedentes. Nenhuma lei é criada no vazio legal, com raras exce¢es (um novo regime politico que abole o anterior e institui um conjunto de novas leis, a comecar por uma nova Constituicdo). Todo discurso legislativo esta inserido num conjunto de leis distribuidas hierarquicamente. Assim, existe a lei maior e a lei menor, bem como a proeminéncia da primeira sobre a segunda. A hierarquia legislativa forma 0 contexto discursivo do discurso legislativo. E 0 conjunto de leis, bem como a produgio” do mesmo. lei maior, foi a cristalizagao de um contexto social e cul- tural, ou seja, produto de uma correlagao de forgas em determinado momento que determinou sua producgao. Por conseguinte, 0 conjunto de leis (e, obviamente, a lei maior que compée um discurso legislativo que afeta a lei menor, outro discurso legislativo) é materializagao de uma correlagao de forgas, valores, representacées. Como isso pode ser identificado no discurso legis- lativo? No escrito, no discurso legislativo em si, esta o sobrescrito, suas determinag¢ées, e por isso esta presente e pode ser identificado através da andlise do sobrescrito (a constitui¢ao da lei) e dos signos que expressam ele, nao somente no escrito, mas no subscrito. O subscrito é 0 ocul- to, onde poderemos identificar os valores e representacdes (nosso foco, mas nado somente isso). Para compreender 0 subscrito, é necessdrio analisar 0 escrito (0 proprio discur- so legislativo) e o sobrescrito (sua constitui¢ao), pois isso permite chegar ao oculto do discurso legislativo. Em sintese, a andlise dialética do discurso legislativo aponta para a compreensao da necessidade de analisar 0 escrito, o sobrescrito e o subscrito, bem como seus elemen- tos (reprodutor, punitivo, inibidor, inovador). No entanto, é preciso ressaltar o carater eminentemente conservador do discurso legislativo. O seu conservadorismo ocorre num nivel mais amplo, ou seja, no sentido de conservar as relacées de producao capitalistas, por mais que expresse concessées aos trabalhadores ou outros grupos sociais. Portanto, a legislacao é expressao e regularizacao das relagGes sociais e devido a estes aspectos ela é fun- damentalmente conservadora, pois expressa as relacées sociais existentes e quando atua sobre elas (demonstrando 44 o seu carter ativo) é para regulariza-las, ou seja, torna- -las regular, manter sua permanéncia e regularidade. E claro que, dependendo do contexto da luta de classes, ela pode beneficiar a classe operaria, porém dentro dos limites do modo de produgao capitalista. O seu carater conservador se expressa na sua impossibilidade de ultrapassar as rela¢Ges sociais capitalistas. Mas a legis- lagao nao pode alterar ou criar relagdes sociais? Pode instaurar relagées sociais especificas que correspondem as necessidades gerais de regularizacao legal das rela- Ges sociais e que esto de acordo com as relagées de produgio capitalistas, tal como uma nova lei de transito que altera a relacdo entre pedestre e motorista ou que cria uma nova instituigdo estatal, o que significa criar novas rela¢ées sociais, tanto internas que surgem na instituicdo estatal quanto externas que expressam as relagées de tal instituicao com a sociedade (VIANA, 2006b, p. 72). O carater conservador do discurso legislativo se insere nas suas determinacées e processo de reprodugao do capitalismo que nao pode ultrapassar. Por mais que a correlagao de forgas seja favoravel ao proletariado, o discurso legislativo nao pode ultrapassar os marcos do capitalismo e mesmo quando faz uma regulariza¢ao ino- vadora, é uma inova¢ao dentro do capitalismo e sob seus limites. O que é considerado “progressista” ou “reformista” é apenas produto de uma correlacao de forcas no qual o capital faz mais concessées ao proletariado e isso s6 ocorre pelo motivo que este (e outros setores aliados) consegue realizar uma maior pressdo, mas que nao constitui nada que se compare a um questionamento das relagées de producao capitalistas. 45 Neste sentido, o processo analitico de um discurso legislativo pressup6e analisar o escrito, o sobrescrito e 0 subscrito, reconstituindo sua produgao e significado, o que revela os valores, representag6es, interesses, etc., presentes no seu interior. No entanto, esse processo analitico ainda se apresenta demasiado abstrato e por isso é importante artir de um caso concreto para explicitar como pode ocorrer sua concretiza¢ao. ESCRITO, SOBRESCRITO E SUBSCRITO O escrito é a unidade de anilise, que, por sua vez, ode possuir diversas outras unidades. Para analisar um determinado discurso legislativo é necessario delimi- ta-lo. Nao se trata de analisar 0 conjunto de leis de um pais, estado, cidade, etc. E possivel analisar a lei maior, a Constituigdo Federal, por exemplo, mas nao 0 conjunto de leis e sua hierarquia, pois a quantidade nao permitiria nenhum pesquisador conseguir realizar tal proeza. E ossivel analisar uma parte delimitada e a delimitagao de qual parte depende de um conjunto de escolhas, objetivos, etc., do pesquisador. No entanto, numa anilise dialética do discurso, a delimitacao nao é isolamento e sim foco. Em tal analise nunca ha isolamento. Por exemplo, é possivel delimitar como discurso legislativo a ser analisado as “medidas socioeducativas” do Estatuto da Crianga e do Adolescente (ECA). E uma parte de um discurso legislativo, uma peca do mesmo. Sendo uma pega, nao é 0 todo. O todo seria, nesse caso, o Estatuto em sua totalidade. Caso o pesqui- sador resolva analisar o ECA como um todo, ele nunca poder isol4-lo, pois ter que remete as leis maiores. Ou 46 seja, a delimita¢ao de unidade de anilise significa escolher a pega no qual o foco analitico se dedicara, qual discurso legislativo sera analisado. O primeiro momento da anilise dialética do discurso legislativo é escolher a unidade, 0 escrito especifico que manifesta uma determinada lei ou semelhante. Tomemos como exemplo uma possivel delimitagao de tema. O ECA pode servir como exemplo para observar a concretiza- cao desse processo analitico. O Estatuto da Crianga e do Adolescente foi aprovado em 1990 e é composto por dois “Livros”, subdivididos em diversos “Titulos” e estes em “Capitulos” e estes, por sua vez, em “Segdes”. A Edicéo impressa sob formato de livreto do mesmo contém 98 paginas. O que esta escrito nele, 0 discurso legislativo, em si, é muito extenso e possui intimeros elementos que poderiam ser analisados. Dificilmente um pesquisador analisaré profundamente sua totalidade. Contudo, o pesquisador pode focalizar os aspectos essenciais e 0 resto pode aparecer apenas quando necessirio. Isso depende nao sé da delimitacao, mas do objetivo do pesquisador. A andlise do ECA tem 0 objetivo de descobrir qual a imagem da crian¢a no mesmo? Se for assim, entaéo alguns itens serao mais importantes que outros. A parte referente aos “adolescentes”, por exemplo, tera menos im- portancia. Assim, apés a delimita¢ao do corpus analitico, é necessario, apés a pesquisa inicial, o que pressupde uma leitura do material no seu conjunto, se faz a selecao dos elementos essenciais do mesmo. Se 0 objetivo da pesquisa é analisar a representac¢ao sobre crianca no ECA, entéo o Livro I, Titulo I, é o fundamental, constituindo o essencial do corpus de analise. Podemos ler no mesmo: 47 Titulo 1: Das Disposi¢6es Preliminares Art. 1° Esta Lei dispde sobre a protecao integral 4 crianga e ao adolescente. Art. 2° Considera-se crianga, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Pardgrafo unico: Nos casos expressos em lei, apli- ca-se excepcionalmente este Estatuto as pessoas entre dezoito e vinte e um anos. Art. 3° A crianga e 0 adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes 4 pessoa humana, sem prejuizo da protecao integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar 0 desenvolvimento fisico, mental, moral, espiritual e social, em condi¢ées de liberdade e de dignidade. Art. 4° E dever da familia, da comunidade, da sociedade em geral e do poder publico assegurar, com absoluta prioridade, a efetivacao dos direitos referentes 4 vida, a satide, 4 alimentagao, 4 educacao, ao esporte, ao lazer, a profissionalizacao, a cultura, 4 dignidade, ao res- peito, a liberdade e a convivéncia familiar e comunitéria. Pardgrafo unico: A garantia de prioridade compreende: a) Primazia de receber prote¢do e socorro em quaisquer circunstancias; b) Precedéncia de atendimento nos servi¢os pu- blicos ou de relevancia publica; 48 c) Preferéncia na formulagado e na execugdo das politicas sociais publicas; d) Destinagao privilegiada de recursos publicos nas areas relacionadas coma prote¢ao a infancia e a juventude. Art. 5° Nenhuma crianga ou adolescente sera ob- jeto de qualquer forma de negligéncia, discriminagao, explora¢ao, violéncia, crueldade e opressao, punido na forma da lei qualquer atentado, por a¢4o ou omissio, aos seus direitos fundamentais. Art. 6° Na interpreta¢ao dessa Lei, levar-se-Ao em. conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigéncias do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, ea condicao peculiar da crianga e do adolescente como pessoas em desenvolvimento (ECA, 2001, p. 13-14). Esse é 0 corpus de analise. O que esta escrito é que, para efeito de uma determinada lei, presente no ECA, considera-se crianga as pessoas de até doze anos. Aqui encontramos de forma explicita uma representa¢ao sobre crianga. Alguns poderiam dizer que isso nao gera nenhu- ma pesquisa e basta realizar tal afirmagao e ponto final. No entanto, em analise dialética do discurso a coisa nao é tao simples. O ECA afirma, em seu artigo segundo, que crianga sao as pessoas de até 12 anos incompletos. Mas é possivel problematizar diversas questées além do escrito. Por qual motivo até 12 anos incompletos? E por qual motivo, apenas “para os efeitos desta Lei”? Sem duvida, além do escrito se encontra o sobrescrito. O estabeleci- mento do limite de doze anos incompletos é restrito a essa lei, o que significa reconhecer algo além dessa lei. E que algo é esse? Ora, outras possibilidades de delimitacao de 49 idade para o que se considera crianga. E 0 que motivou a ressalva? Uma determinada correlagao de forgas poderia ter garantido a inexisténcia da ressalva e a existéncia de outras delimitagdes de idade para definir o que é crianga mostra 0 nao consenso e que nao é algo inquestionavel. Em certas situagées, dependendo da correlagao de forgas, mesmo existindo outras delimita¢ées, isso nao seria levado em conta. A delimitacdo de doze anos incompletos significa a vitéria de uma delimitacdo sobre outras. No escrito, aparece apenas a delimitacdo vitoriosa. Nao aparecem as delimitacées derrotadas e nem o processo que produziu tal delimitacao. O discurso legislativo em anilise é 0 resul- tado, a materializagao de concepgées, defini¢gées, valores, representa¢ées, processos sociais, lutas, mas sé aparecem as 25 palavras que sao o produto final. A producao esta ausente. Recuperar a producao ausente é descobrir 0 sobrescrito. Analisar 0 processo de produgao desse dis- curso legislativo é descobrir, entre outras coisas, por qual motivo essa delimitagao foi preferida em detrimento de outras, quais os interesses, for¢as, processos de luta, etc., produziram esse resultado final. E descobrir isso remete a analisar quem produziu o discurso, em que contexto, qual correlag4o de forgas, etc. Nao é nosso objetivo aqui analisar tal processo, mas apenas indicar que 0 escrito nao revela, imediatamente, o sobrescrito. Basta lembrar que foi uma determinada correlacao de forgas que permitiu a producao do ECA e teve como antecedentes a disputa entre “menoristas” (adeptos do antigo “Codigo de Menores”, da época do regime militar) e “estatutistas” (defensores de substitui¢gdo de tal codigo por um Estatuto de prote¢ao 50 da crianga), bem como participagdo de diversos setores da sociedade (intelectuais, MNMMR - Movimento Na- cional de Meninos e Meninas de Rua, etc.) que teve na Constitui¢éo Federal de 1988 uma relativa vitoria que abriu caminho para a produgao do ECA. Nesse sentido, 0 contexto da redemocratizagao e articulacao de setores da sociedade civil, bem como o clima eleitoral contrario ao regime militar, o que favorecia a oposi¢ado (até mesmo os politicos profissionais oriundos do antigo regime buscavam renovar suas praticas e discursos para garantir sua sobre- vivéncia eleitoral), entre outras determinagées, ajudaram a constituir uma situa¢do favoravel para a criagéo do ECA. E nao sé isso, mas também uma mudanga de signos e significados. O significado de “crianga” foi atribuido ao signo, uma determinada representacao da crianga. No entanto, a historicidade do discurso legislativo ajuda a entender outras problematicas ainda nao percebidas. Por exemplo, o uso de “crianca” e “adolescente”, no ECA, substitui uma outra terminologia anterior. A linguagem técnico-juridica que conforma um género especifico de discurso dessa atividade humana, comporta altera¢ées ao longo do tempo (historicidade). Outro exemplo destacavel diz respeito a antiga referéncia genérica que se fazia a ‘menores’, transformada em um género do qual emergem duas espécies (criangas - de zero a 12 anos incompletos; e adolescentes - de 12 anos completos a 18 anos incompletos), de acordo com o disposto atualmente no artigo 2° da Lei 8.069/90 (ECA). Doravante, para o falante ou aquele que escreve uma pega juridica ou um texto técnico-juridico a expressio ‘menor’ deverd ser devidamente qualificada, sob pena 51 de tornar-se indeterminada, o que antes nao ocorria (CABETTE, 2014, p. 4). O pesquisador teria, portanto, que reconstituir esses embates e processos, bem como analisar como e quem efetivamente redigiu as propostas do ECA e quais foram as alteragées realizadas apés a versao original, entre diver- sos outros aspectos que mostram o sobrescrito, incluindo também, os discursos mais influentes na época sobre de- fini¢gdo de crianga e as leis internacionais. Assim, poderia reconstituir o contexto social, cultural e discursivo. O passo seguinte é analisar o subscrito. Esse pode revelar muitas coisas. O primeiro aspecto é a tentativa de nao confronto com outras defini¢ées de crianga, ou seja, com discursos cientificos (biolégico, médico, sociolégico, etc.), pois a defini¢do vale apenas para os efeitos dessa lei, © que nao anula os conflitos, apenas delimita instancias de legitimacao. Essa definicao se autodeclara legitima para essa lei, o que nao deslegitima outras definigées, embora as anule no seu discurso e na pratica que ele gera (sendo lei, regulariza relacées e se aplica a todos que cabem na defini¢ao). As outras definigées podem ser legitimas em outras instancias. Portanto, a andlise do subscrito deve remeter a fonte dessa limitacao de idade (e se a pesquisa fosse mais ampla em seus objetivos, analisar também a delimitacao de idade do adolescente e 0 préprio uso desse termo). Outro elemento subscrito, o que é comum em todo discurso legislativo, é que se trata de um discurso que tem. determinados destinatdrios. Os destinatarios do ECA sao criangas e adolescentes, em suas relacgées com o restante da sociedade. O artigo segundo regulariza as relagGes sociais 52 dos destinatarios com o restante da sociedade’*, tal como com a familia, governo, etc. Os destinatarios sao defini- dos e 0 elemento de definicgdo é a idade. Os destinatarios sempre sao seres abstratos, os que se relacionam com eles. No fundo, o promulgador da lei, 0 aparato estatal, é quem define quem é 0 destinatdrio, revelando uma relagao social entre promulgador e destinatarios que, por sua vez, regu- lariza as relagées sociais entre ambos e entre os ultimos e 0 conjunto da populacao. Por qual motivo os destinatarios sao sempre “seres abstratos”? Marx (2009) ja havia explicado que a lei é uma regra geral (igual) que se aplica a individuos diferentes (desiguais). O discurso legislativo nao pode versar sobre 0 caso individual de Maria Madalena Ferreira Oliveira. Ele pode tratar das mulheres em geral. Maria Madalena Ferreira Oliveira nao é contemplada pela lei enquanto tal, mas sim enquanto mulher, tal como definida pela lei. A ECA nao trata do “Joaozinho” e sim da “crianga”, em geral, que é, segundo a lei, aquela pessoa de até doze anos incompletos. Jodozinho s6 esta presente na lei por se en- quadrar na defini¢ao de crianga. Isso é uma generaliza¢ao e se, portanto, Joaozinho é um individuo excepcional e que quer um tratamento diferenciado, isso nao é possivel nos termos da lei, a nao ser que um jurista usando outras leis e toda uma argumentagao juridica tente estabelecer 16 O contexto discursivo demonstra isso, tal como se 1é no artigo quarto: “é dever da familia, da comunidade, da sociedade em geral e do poder publico assegurar, com absoluta prioridade, a efetivacao dos direitos referentes a vida, 4 satide, 4 alimentagao, a educagao, ao esporte, ao lazer, 4 profissionalizacao, a cultura, 4 dignidade, ao respeito, a liberdade e 4 convivéncia familiar e comunitaria” (ECA, 2001, p. 13). 53 uma exce¢do, que sera exclusivamente para Joaozinho. No entanto, como a lei é para “todos”, entao abre precedente para outros casos individuais. Outro elemento subscrito é 0 papel do promulgador, que nao sé pode definir o que é crianga, “nos termos dessa lei”, como criar um conjunto de disposi¢ées para a prote- 40 de todos os individuos de até doze anos incompletos. No seu artigo primeiro diz que, “esta Lei dispde sobre a protecao integral a crianga e ao adolescente”. Obviamente que nAo se trata apenas de “prote¢ao”, uma regularizacao inibidora e inovadora, mas também punitiva, e nao apenas para aqueles outros seres abstratos que podem entrar em conflito com as criangas e adolescentes, mas também para eles mesmos (as “medidas socioeducativas”, que sio uma forma relativamente “suave” de punicao). Em sintese, o discurso legislativo trata de seres abs- tratos, mas tem aplicagdo concreta. Tais seres abstratos sao, no fundo, classes ou grupos sociais. A relacao de contrato de trabalho coloca em evidéncia a relag4o entre empre- gadores e empregados, o ECA entre adultos (a “sociedade em geral”) e criangas, etc., mediados pelo promulgador e executor da lei, o Estado. Este, inclusive, nao s6 promove e executa a lei, mas possui um status supostamente neutro e superior. O discurso legislativo é autolegitimador e que realiza a autovaloracao. E por isso que “lei” aparece com letras maiusculas, como as citagées textuais anteriores comprovam”’. O arbitro supremo é¢ o aparato estatal. Isto 17 Para os agentes da esfera juridica isso é uma obviedade e algo natural, de acordo com suas representagées cotidianas. No entanto, © que é natural para os agentes desta esfera nao deve ser para um pesquisador que quer romper com a naturalizac4o. Um pesquisa- 54 esta subscrito. No entanto, isso é geral em todo discurso legislativo. A pesquisa hipotética aqui relatada trata de um caso concreto, a da crianga e sua imagem. Desse elemento comum a todos os discursos legislativos podemos derivar, no entanto, a abstratificagao da crianga. O ECA garante sua inser¢4o numa categoria ainda mais abstrata, a “pessoa humana”*. Quem institui a abstra¢gdo (crianga) e sua delimitacao (idade) é 0 promulgador e 0 faz de forma especifica (até doze anos incompletos). Ao delimitar, ele cria. Se tivesse delimitado dez, quatorze ou vinte anos, seria diferente. Isso significa que o promulgador cria a abstracao, delimita quem faz parte de qual grupo: até doze anos incompletos é crianga, depois disso, até os dezoito anos, é adolescente. A analise do subscrito se encontra com a do sobrescrito, pois o promulgador produ- ziu o discurso legislativo num contexto social, cultural e discursivo. A andlise do escrito é descritiva: crianga é toda dor nao fica como um peixe no aquério, sem questionar ou ir além do mesmo e sim busca realizar uma andlise critica e observar 0 que estd além dele. Esse procedimento de autovalorago e autolegiti- maco é muito comum na esfera juridica, que inclusive impée for- mas de tratamento legitimadores e fornecedores de status superior. Esse € 0 caso da Lei 12.830/2013 (CABETTE, 2014), que afirma que o delegado de policia, sendo bacharel em direito, deve receber © mesmo tratamento protocolar que recebe advogados, promoto- res publicos, etc., ou seja, “vossa exceléncia” A autovaloragio e a autolegitimacao andam juntas nesse caso. 18 “A crianga e o adolescente gozam de todos os direitos fundamen- tais inerentes 4 pessoa humana, sem prejuizo da protegao integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar 0 desenvolvimento fisico, mental, moral, espiritual e social, em con- diges de liberdade e dignidade” (ECA, 1991, p. 13). 55 pessoa até doze anos incompletos. A analise do sobrescrito diz por qual motivo é assim e a andlise do subscrito explica © signo, ou seja, revela que valores, representagées, etc., esto manifestos, materializados no discurso legislativo. Quais sao estes valores, representa¢ées, interesses, materializados no discurso acima citado? O discurso afir- ma a prote¢ao das criangas no seu primeiro artigo, mas também apresenta sua punic¢do em outros momentos, tal como a “prestacao de servigos 4 comunidade”. Os interesses manifestos sao os daqueles que podem ser atingidos por criangas e adolescentes, 0 que leva a puni¢ao, o dos des- tinatarios principais, o que leva a protec4o. Mas também manifesta os interesses do promulgador, isto é, do Estado”. 19 O Estado é composto pelos poderes legislativo, executivo e judi- cidrio. Sem dtivida, a primeira verso e a iniciativa podem partir do poder executivo ou legislativo. Alguns defendem a primazia do poder executivo no processo de elaboracao das leis: “Utilizam essa técnica [de elaborasao das leis - NV] nao sé 0 poder deliberativo como ainda o préprio governo que possui, em concorréncia com o Parlamento, a iniciativa das leis, quando nao é ele sozinho que as faz. A maioria das leis que o Parlamento vota foram-lhe submeti- das pelo governo. Esta preponderncia do poder executivo, que é poder de iniciativa e de a¢ao, é o verdadeiro nucleo do Estado. De resto, as leis fundamentais sao, em regra, iniciativa governamental, a maioria das propostas que os deputados apresentam respeitam a reformas parciais ou a assuntos de limitado interesse, salvo algu- mas excegdes” (SAROTTE, 1972, p. 232). A questao é complexa, pois a elaboracio das leis também conta com 0 partido ou conjunto de partidos do governo no parlamento, pressdes governamentais (inclusive casos de corrup¢io, como o chamado “mensalio”, no caso brasileiro), mas também lobbies extraparlamentares e outras determinagées. Também nao é possivel esquecer os casos nacio- nais concretos e mudangas histéricas, que podem alterar a tendén- cia geral. 56 Se os interesses das criangas e adolescentes e daqueles que s4o atingidos por eles podem ser vistos no proprio escrito, pois trata-se de sua prote¢ao, existem interesses que ficam ocultos, expresso na puni¢do, interesse do Estado. Qual é 0 interesse do Estado nessa regulariza¢ao dos destinatarios? O interesse do Estado ¢ 0 interesse do capital e, portanto, de reprodugao das relacdes de produgao capitalistas, o que significa que a puni¢do deve existir e é por isso que se trata de “atos infracionais” e “crimes”. Quais sao estes “atos infracionais” e “crimes”? Sdo os mesmos de toda a jurisprudéncia, incluindo os chamados “crimes contra a vida” e “crimes contra 0 patriménio”. A regularizacao da relagao de criangas e adolescentes com 0 resto da sociedade, inclusive com 0 préprio aparato es- tatal, visa garantir a reproducao das relagées de producao capitalistas, nado apenas por condenar os “crimes contra 0 patriménio”, mas por tentar amortecer os conflitos sociais e garantir sua autolegitimagao e autovaloracao. A anilise do subscrito poderia avangar no sentido de demonstrar quais os valores materializados no discurso legislativo presente no ECA. Um dos valores explicitados, nao enquanto valor”, é a crianga (bem como 0 adoles- cente), pois sdo estes que sao “protegidos”. E nao somente protegidos, mas “privilegiados”, possuindo “primazia”, etc. Outros valores explicitos no ECA, e que ajuda a com- preender o artigo em questao, é a “pessoa humana” e a 20 Ou seja, no ECA nao se diz que a crianca é um valor, ou qualquer outro, mas ao priorizar, conceder privilégios, primazia, etc., revela que é um valor explicitado. E 0 que ocorre quando alguém profere a frase “o dinheiro é fundamental’, pois nao se afirmou que o di- nheiro é um valor, mas ao dizer que é fundamental, explicita que éum valor. 57 propria “Lei”, que deve ser respeitada, inclusive em outras manifestag6es sociais, pois o ECA remete e respeita as demais leis instituidas. O dever da familia e da sociedade em geral, assegurado pelo Estado, é a efetivacao dos di- reitos 4 vida, educa¢o, etc., o que revela que os direitos sao valores e todos os elencados sao outros valores, como vida, educacao, etc. Contudo, a andlise dos valores aponta para perceber que geralmente o valor vem acompanhado com o desvalor (VIANA, 2007a). No discurso legislativo isso se manifesta sob varias formas e é possivel, inclusive, dividir entre parte do direito que focaliza os desvalores e a parte que focaliza os valores. O direito criminal focaliza mais os desvalores, eo direito comercial mais os valores. Voltando ao caso do ECA, sea liberdade é um valor, a nao liberdade ou qualquer coisa contra ela é considerada um desvalor. Nesse sentido, a liberdade é um valor. Ela aparece como valor explicito. No entanto, resta saber 0 que é liberdade, pois assim podemos descobrir um valor implicito, inserido em determinada axiologia, ou seja, em determinada con- figura¢ao de valores dominantes (VIANA, 2007a). Aquia andlise do subscrito pode avangar para entender 0 que se entende por “liberdade” e valores implicitos. Esse signo aparece como valor e como direito, mas nao é definido. Essa “liberdade”, que é valor para tal lei, é definida adiante, no Titulo 02, sobre os “Direitos Fundamentais”, o que mostra novamente sua valoracao, pois nao sé é um direito, como é fundamental. No Capitulo 02, intitulado “Do Direito 4 Liberdade, ao Respeito e a Dignidade”, Art. 16, entendemos a concep¢ao de liberdade constante no ECA: 58 Art. 16. O direito a liberdade compreende os se- guintes aspectos: I-ir, vir e estar nos logradouros publicos e espagos comunitérios, ressalvadas as restricdes legais; II - opiniao e expressao; III - crenga e culto religioso; IV - brincar, praticar esportes e divertir-se; V - participar da vida familiar e comunitdria, sem discriminagao; VI - participar da vida politica, na forma da lei; VII - buscar refugio, auxilio e orientagao. A concep¢io de liberdade aqui expressa a liberdade civil burguesa e alguns elementos mais especificos para criangas e adolescentes. Isso significa que a nao-liberdade é um desvalor. Outros signos que aparecem no discurso legislativo sao dificeis de entender, pois aparecem soltos endo possuem maior explicacdo, ao contrario do caso da “liberdade”. No entanto, analisando o subscrito é possivel compreender 0 signo isolado e nao definido. Quando no Titulo 01, nas disposi¢ées preliminares, artigo terceiro ci- tado antes, se coloca que é direito da crianga e adolescente o desenvolvimento “espiritual”, tal palavra aparece solta e nao possui definicao e nem se retorna a ela. Sem duvida, ela é uma palavra que pode assumir varios sentidos, entre eles os de “carater” ou “cultura”. No entanto, a presenga das palavras “mental” e “moral” no mesmo contexto descarta tal interpretagdo. O espiritual, nesse caso, apesar de nao estar explicitado, remete ao religioso. A referéncia posterior a liberdade de culto religioso, fortalece essa interpretagao. Isso expressa um elemento do subscrito no discurso legislativo, um signo isolado pode ter significado ambi- guo, impreciso, etc., mas sua origem remete a uma outra concep¢ao ou representagao. O signo inserido isolada- mente dificulta o reconhecimento do seu significado. Isso da margem para diversas interpretagdes e somente uma analise mais ampla pode resgatar seu significado. O artigo 16, acima citado, facilita tal compreensao. Assim, 0 uso de certos signos permite observar elementos subscritos, tal como concepgées, ideologias, representagées, que se manifestam através deles”'. Nesse caso, a compreensiao do subscrito remete a andlise do so- brescrito. A analise dos novos signos ou novos significados para velhos signos remente ao sobrescrito no ambito da anilise historica, social e cultural, para descobrir a origem do termo, seu significado e contexto discursivo original. Apés esse processo analitico, é preciso recompor 0 discurso legislativo como um todo e avaliar seu significado geral. Em alguns casos, isso é relativamente facil quando o corpus de anilise é relativamente restrito e é dificil se for 21 “Frise-se que nao é somente a existéncia de uma linguagem tipica da atividade juridica que se demonstra aqui, nem mesmo apenas sua maleabilidade histérico-social, mas também outra assertiva bakhtiniana anteriormente abordada neste texto, qual seja, a de que todo enunciado é carregado e marcado por valores, por uma tomada de posicao frente a algo ou alguém’ (CABETTE, 2014, p. 66). A concepgio de valores em Bakhtin (1990) tem alguns ele- mentos interessantes, principalmente o vinculo que estabelece com a linguagem, mas, no entanto, também expressa alguns elementos problematicos, dos quais nao poderemos abordar aqui. Indepen- dente disso, o signo é carregado de valor e essa é uma contribuicdo interessante para se pensar 0 discurso legislativo. 60 muito extenso. No primeiro caso, isso facilita uma maior profundidade analitica do proprio corpus, no segundo caso gera a necessidade de selegao das partes mais importantes para realizar 0 processo analitico de maior profundidade. Uma vez que apresentamos a questdo do discurso legislativo e seu processo analitico, o passo seguinte é realizar uma analise do corpus que delimitamos, ou seja, o discurso legislativo relacionado 4s politicas estatais de satide entre 1990 até 2012, visando descobrir quais valores e representagées estdo materializados nele. 61

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