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¢ ROBERTO S. LOPEZ ¥ A CIDADE MEDIEVAL Batrevisiacondozide por ‘MARINO BERENGO. organizar também auténticos reinos sabditos, primeiro Candia emnis tarde Chipre. Af, estabeleceu nao apenas portos de escala mercantis, mas também um sistema de drenagem dos recursos agricolas e de colaboragdo com as aristocracias locais. Quando, no curso das guerras dos viscondes, conquistar a Terrafirme, estard jd fortalecida e amadurecida por essa experiéncia levada a cabo no Levante. Génova tentou por muito tempo, mas com escasso éxito, uma politica semelhante na Corsega © na Sardenha, mas de preferéneia continuow a fazer finca-pé noutros sitios em’ cabegas-de-ponte restritas, com uma economia de esforgos que se ajustava 20 temperamento dos seus cidadaios. Estas mindsculas «outras Génovas» alargaram-se prudentemente nos sitios onde existiam ou chegavam géneros comercializiveis particularmente desejados, ¢ tentaram mais que os Venezianos compensar a escussez das suas disponibilidades demograficas admitindo colonos de outras ccidades italianas ¢ concedendo cidadania limitada aos nativos das suas col6nias. A derrocada do poderio mongol ¢ 0 éxito do ayango turco facilmente os convenceram a transferir para 0 Ocidenteos seus investimentos, mais limitados nas coléniasque ‘os dos Venezianos, os quais nio puderam nem quiseram proceder a uma reconversio semelhante. P. No entanto, hd testemunhos de investimentos agricolas genoveses na Crimeia e em Quio, para onde os Genoveses exportaram as laranjas, R._ Sim, mas as laranjas eram depois reexportadas; Génova, colhendo os ensinamentos do escasso rendimento da sua regitio interior, preferiu resolver os problemas alimentares através das importagdes. Em resumo, Veneza foi também uma capital face as suas colénias; Génova nio, procurou governar © menos possivel, dando assim rédea solta ao individualismo dos seus homens de negécios. 80 —————— 6 CIDADE E CAMPO P. A cidade do meio e do final da Idade Média coloca-se como termo de oposigdo ao campo e erige muralhas para se separar dele; mas depois assimila-o gradualmente, assume o seu controlo, estabelece com ele uma intrincada rede de relagdes, e também’ de conflitos. Porém, nem todas as civilizagées, € decerto ndo as germénicas e as setentrionais, viram as cidades desempenkar esse papel de centros animadores, de pélos vitais dos seus territérios, que & uma caracteristica inconfundivel da histéria italiana centro-setentrional. R. A intensidade das relagdes ¢ dos conflitos, ea propria exten- silo do territério controlado, variam muito de pats para pais: caso de Inglaterra, pode dizer-se, como Postan, que as cidades medievais sao «ilhas nfo feudais em mares feudais»; na Italia centro-setentrional so soberanos politicos, centros econ6micos e polos intelectuais e sociais para todo o territério queas circunda. Mas emambos os casos a historia da cidade nfio pode prescindir da historia do campo e dos camponeses. De resto, a minha breve historia da Revoluedo comercial da Idade Média comega ¢ termina com dois capitulos dedicados 4 agricultura: sem os novos progressosnos campos, anova cidade dos mercadores teria morrido de fome. Mas, como sabes, eu nasci e cresci na cidade; a minha investigagio pessoal voltou-se em grande parte para a hist6ria da burguesia; o campo é-me menos familiar. Deixa-me porém comegar com uma generalizaco que nada tem de novo, mas, em minha opinio, 6 fundamental: apesar das suas injusticas e da sua miopia (queme livro de contestar), e nfo por generosidade mas por proveito proprio, o governo burgués da cidade medieval tratou os 81 camponeses muito melhor que 0 governo agririo da cidade da Antiguidade. Aos latifundiarios © aos grandes proprietérios rurais que predominavam nas ctirias municipais do fim do Império nfo podenia convir libertar os escravos e aliviar as obrigagGes dos agricultores livres, cujo trabalho Thes permitia distrairem-na na cidade e repousarem na sua residéncia de ‘campo; assim como, muito mais tarde, nos tempos da Arcddia, a exaltagao literiria do camponés e do pastor parece nao ter sugeridoaquem podia fazé-loque se lhes facilitassem astarefas, proporcionando-Ihes ferramentas mais eficientes. Os burgueses da Idade Média decerto nfo idealizaram os risticos, a sétira do vilio € 0 documento mais convincente deste ionguissimo proceso de separagio entre a sociedade urbana e a sociedade rural. Em compensagiio, ajudaram os vilios ambiciosos a aburguesar-se, instigando-os drevolta contra os seus senhores e abrindo as portas a escravos e servos foragidos, ensinando-lhes os oficios ea escrever, naturalmente para arranjarem ajudantes baratos e tentar que nao se tornassem seus concorrentes; e, deste modo, ofereceram-lhes 0 minimo necessério para aquilo a que a Revolugdo americana chamou «a busca da felicidaden. E que essa busca nem sempre foi em vio, € amplamente demonstrado por outro tema constante da literatura burguesa medieval, o Fessentimento contra o vilio imigrado que fez fortuna. P. Receio que esse quadro essencialmente optimista apresente ‘grandes riscos e deva a sua origem a uma tradigdo de estudos hhistorico-juridicos que acentuaram esmagadoramente o ele- ‘mento esiatutdrio, isto é, 0 declinio das instituigdes servis por quase toda a Italia. R. Na verdade, as instituigdes servis declinam também fora de Itilia, se bem com um certo atraso e em muito menor grau: a escravatura desaparece em quase todo 0 Ocidente (com aimpor- tante excep¢io dos escravos importados das colénias), @ servidio perde terreno em Franga do século XIII em diante, em grande parte da Inglaterra e da Alemanha ocidental no século XIV, na peninsula ibérica entre o século XIV ¢ 0 século XV; 0 mesmo se as velhas obrigagdes se mantém sob formas diferentes, nfio é pouco poder-se procurar melhor sorte emigrando. 82 Aligs, no foi minha imtengZo afirmar que os camponeses encontraram o paraiso na cidade dos mercadores; a tio conhe- cida organizagao boloniesa do Paraiso, que resgata a expensas dacomuna todos os servos que permanecemnocampo, é0 fim €.a0 cabo um bom nvestimento, pois 0s servos libertos deverio pagar impostos 20 palcio comunal, em vez de o fazerem a0 castelo senhorial. Em vez disso, sublinhei, e nfo me arrependo, que a interdependéncia e a mobilidade social proprias do estado de espirito mercantil entreabriram também para os camponeses vias de safda que o espfrito conservador da cidade antiga quase desconhecia, De resto, os camponeses nem sequer tinham necessidade de se mudar para respirar ar novo: acidade vinha ao seu encontro, arrancando ao seu seio aprendizes, marinheiros, criados; os costumes ¢ 05 servigos urbanos penetravam cada vez mais no campo, com o progresso da comercializacao. Ii no século XI se pode falar de urbanizagao em relacfo a vari aldeias da costa Ifgure, em redor de Genova; junto a Florenca, até as mais pequenas aldeias assumiam no século XII um aspecto quase urbano, com notérios, escolas, vendas bem fornecidas. Em Janeiro de 1291, a Comuna envia a Castel- fiorentino, que nao tem estatuto urbano, mas é repetidamente mencionado como simples mercatale, um juiz do Tribuno do povo para liquidar uma sociedade comercial em situago de faléncia, Trata-se de uma empresa que trabalha com técnicas mercantis actualizadas; tanto o valor como a variedade das, mercadorias negociadas, dos tecidos as especiarias, fazem-nos pensar em consumos e modos de vida urbanos. Quando se dizquea cidade medieval pode sé-lomesmocom 500 ow 1000 habitantes, acaba-se em esséncia por admitir que também 0 campo tem 0 diabo no corpo. Também as aldeias francesas, em especial na Provenga, se aburguesam: em Forealquier, no ano de 1330, hé um negociante que vende tecidos a metro, redigindo as suas notasem latim ou em francés, endo faltam judeus que negoceiam com elee escrevem pelo seu punho facturas em hebraico. Disse-se, e nfo sem razo, que a Iidlia meridional quase serve de colénia aos mercadores do centro ¢ do norte; no prinefpio do século XIV os agentes das companhias florentinas procedem a0 agambarcamento de queijosemtodas as feiras locais, certamente vendem qualquer coisa em troca, Antes de mais, 0 mercado dominical, ou ligado 83 as festas, ou anual leva uma atmosfera citadina aonde quer que se desenrole, Na Alemanha ha os Krdmer, na Franga os Merciers, e estes iltimos elegem um rei entre si, como ainda hoje continuam a fazer os ciganos. Ha o mercador ambulante judeu, figura familiar nalgumas regiGes da Europa do nordeste fe menos conhecido na Area italiana. A Sabdia enche-se de tendinhas de prestamistas, em grande parte oriundos de Asti. Em Espanha, 0 comércio anima os itineriirios de Com- postela; aliés, orepovoamento é feito coma fundagao de centros que recebem fieros, privilégios de mercado, antes de serem, jé no digo cidades, mas também no propriamente simples aldeias. Nas tabernas rurais da Polénia vende-se vinho e inicia- ~se umcomeércio com os camponeses do burgo feudal. Seoarda cidade faz homens livres, o ar do mercado faz cidadaos. P. Vejamos se se verifica também semelhante penetracdo dos sservicos urbanos e, em particular, dos servicos de distribuicdo no territério das cidades de povoamento colonial a que nos referimos anteriormente. R. Comecemos por terras no muito longinquas, mas que ti: nham permanecido primitivas. A colonizagao da Sardenhae da Cérsega pelos pisanos, genoveses e catalfies nunca chegaré a ser completada; os cidadaos genoveses recusavam-se muitas vezes amudar-se para aquelas regides montanhosas. No fim do século XII, tinha sido necessirio conceder a todos os genoveses que tivessem fixado residéncia em Bonifiicio um subsidio regular; este continuard a ser pago mesmo quando se tiver formado uma cidade com mercadores com um tipo de actividade nitidamente urbana, se bem que os seus recursos sejam os de uma economia pastoricia, Em 1272, para persuadir uma centena de Iigures a Construir as suas casas a curta distancia de Ajaccio, € preciso prometer-lhes que apés trés anos de permanéncia e depois de terem erigido o castelo necessério & defesa, poderiam navegar livremente com isengao fiscal. P. Este é um caso de ndo penetragdo da cidade. Um gedgrafo isruelita cheiv de sentido histérico, Jerahmiel Kolodny, disse que aCérsega é uma montanha no meio do mar: durante muitos séculos, a costa foi dos ligures, 0 interior dos corsos. Creio que 84 sepoderiam apresentar muitos outros casos, em especial quando ‘0 centro costeiro e portuério alberga wm aglomerado de lingua diferente e mais evoluido queo territério circundante, que nunca virdaser campo nomesmo sentido que o contado em Indliae que namaior parte do Ocidente. Pensemos nas cidades dalmditicas hansedticas: 05 camponeses escravos do interior encontram, Seja na costa adridtica seja na baltica, um recido urbano que os Yepele, impedindo ou atrasando a sua assimilacdo, no sd por desconfianga e desprezo pelos-vildos, mas também por razées Ginicas e linguisticas. Condigdes deste tipo existem, alids, também mais para o interior, por exemplo, entre aglomerados urbanos germanicos e o campo checo ou hiingaro; e, neste caso, ‘08 responsdveis pelo contraste sao muitas vezes os soberanos ¢ 0s feudatdrios, que convidaram imigrantes germdnicos para se ‘aproveitarem da sua competéncia de minerros, do seu treino rmilitar ou, mais simplesmente, do seu espirito empreendedor ‘paraocomércio. Por detrds darevolucdo dos hussitas estardndo ‘apenas a inguietacdo religiosa ou a mauuracao da cidade checa, ‘mas mais ainda a desforra dos camponeses. R._ De resto, vimos j4 que no sdo necessérias diferencas de estirpe para que um cidado considere os nisticos gente de raga inferior, mesmo sc 0 pai ou 0 av6 vieram do campo, como € 0 caso, entre 1100 e 1300, de grande parde da populagiio urbana. Mas também € dbvio que o intercdmbio entre cidade e campo é vantajoso de miltiplas maneiras tanto para uma como para 0 outro, Sem os mercados ¢ as lojas das cidades, e semas estradas, {que as administragdes comunais mantém em boas condigoes de seguranga, como s¢ trocariam os produtos agricolas pelos artesanais? Para s6 citar um caso limite de simbiose, de que serviriam as instalag6es industriais, 0 linho e cainhamo dos Pafses Baixos e da Itilia do Norte, as culturas especializadas de pastel-dos-tintureiros entre Paviae Voghera, no Aretino, eentre ‘Tolosa e Bordéus a valiosa vinicultura que suplantou quase por completo todas as outras culturas em parte da Borgonha e em ‘muitas outras regies, se nfo fossemos teceldes das cidades¢ 05 bebedores burgueses? Acrescente-se que as oficinas de tecelagem davam trabalho aos filhos demasiady nunucivsos dos camponeses; € se, especialmente na Flandres, as cidades se ‘opdem, até pela violéncia, ao desenvolvimento da indiistria de 85 a lanificios no campo, na Lombardiaos tecidos dealgodioséoem grande parte produzidos no campo e comercializados na cidade, Ou, endo, pensa na relaedo entre o desenvolvimento da criago de ovelhas em Castela e em Inglaterra e 0 desenvolvimento da indiistria de laniffcios, néo apenas nas cidades desses paises, mas também no vasto raio de acgdo em que a li € exportada, ‘Antigamente, em Aragio, as proprias cidades possufam pastos ctinham parte activa na transumincia do gado. E verdade que a longo prazo a passagem das ovelhas seré nociva para a agricultura, e que (como dizia Thomas More) «as ovelhas comerio os homens»; mas estes graves erros ecoldgicos, que so revelam 0s seus perniciosos efeitos a longo prazo, nao sio exclusivos da Idade Média, P. Para conhecer devidamente o modo como sio repartidos os proventos desta simbiose serd necessdrio deslocarntos a nossa ‘atengdo da relacao entre cidade e campo para a relagdo entre cidadaos e camponeses. Se nos contentdssemos com wma resposta intuitiva e€ com uma comparagdo entre o rendimento médio de um cidadao individual eo de um camponés individual, arribuir-se-ia a priori a parte de ledo ao cidaddo; mas ndo seria essa uma resposta séria. E evidente que os mestres artesGos e os ‘mercadores sdo na sua matoria homens da cidade, enquanto os camponeses fornecem no maximo aprendizes emarcanos, € que a maior parie dos cultivadores directos ndo sao latifundidrios. R. Nao digo que nfo: a miséria nos campos atinge ainda hoje, particularmente emregi6es sobrepovoadas e subdesenvolvidas, abismos mais profundos que nas cidades, ¢ mesmo hoje 0s primeiros passos para sair dessa condigiio sio os mais dificeis. Mas até numa aldeia desfavorecida pela natureza, como Montaillou, agricultores e pastores poderiam gozar de um modestissimobem-estar sea inquisi¢ao do futuro papa Benedito XII nfo os atormentasse; e por todo o lado hd casos de ‘camponeses que se tornam abastados, de marganos de loja que sobemna vida, como Francesco Datini, que comegou por varrer a loja de um mereador, O essencial € que no perfodo de que estamosa tratar, quer dizer, desdecerca do século XIaté meados do século XIV, a tendéncia gerai é no sentido de uma melhoria, Escolhemos falar de historia urbana, nfo de histéria econ 86 rica, ¢ nfo quero sair do tema. Permiti-me que relembre sé um exemplo, que terei talvez. citado demasiado amiide, mas me parece verdadciramente exemplar. Boodcio, para deixar bem ‘marcado que omarqués de Saluzzo quer desposar a virtuosa mas pobrissima camponesa Griselda em estado de absoluta indigéncia, faz que ele deixe em casa até a propria camisa: duzentos anos antes, a camisa era uma indumentiria de luxo, quatrocentos anos antes, € duvidoso que os proprios reis 2 usassem. Nao duvido que grande ntimero de cidaddos em Itélia dispusessem de rendimentos fundifrios, mais nfo fosse porque muitos eram de origem camponesa; no caso extremo de San Gimignano, em 1314 mais de 60 por cento dos proprietirios de terras residia adentro das suas muralhas e recebia 80 por cento das receitas fundidrias; mas estd por provar que explorassem os cultivadores directos mais duramente que os antigos feudatirios ‘ou que 0s poucos camponeses enriquecidos de fresca data. De resto, San Gimignano pouco maior seria que Castelfiorentino; na época éurea da comuna, o capital urbano empregue na posse de terras € usualmente uma forma de seguranga dos mercadores face aos riscos dos seus negécios mais lucrativos, uma Aistracyfo aprazivel eum istrumento de prestfgio social, mais queuma grande jogada. E preciso nfo confundiresta épocacom adacidade de antigoregime: acrise doséculoXIV é,dissoestou certo, a principal linha divis6ria entre arevolugo comercial e a revolugio industrial. P. Essa,oi efectivamente a opinido prevalecente até hd poucos anos, opinido para que t mesmo contribulste com as thas investigagdes; mas alguns estudos recentes contesiam-na. Visto todos nds trabalharmos com dados incompletos, estas oscilagdes so inevitdveis: mas qual a ma reacgao? R. Houve quem contestasse desde o principio, ¢ desde o prin- efpio que estive mais que disposto a deitar um pouco de égua no ‘meu vinho; mas nfo me preocupo muito com o que, para falar francamente, me parece mais umadefesaderetaguardaque uma contra-ofensiva, Estou até um pouco admirado por umestudioso de primeiro plano como Philip Jones, a quctm wantodevemos, tor recentemente publicado um ensaio a combater o que ele chama «0 mito da burguesia»; se de mito se tratava, jé tinha sido 87 destruido por Salyemini, Luzzatto, Sapori ¢ outros mestres desaparecidos. Pelo meu lado, nunca neguei que a burguesia italiana tenha incorporado, por vezes sem os digerir, muitos magnates do campo (foi essa a sua forga antes de se tornar a sua fraqueza), nem que tenha havido um certo abrandamento na expansio urbana desde finais do século XII, nem quea crise do século XIV tenha deixado muitas coisas como estavam © favorecido o desenvolvimento de outras coisas; mas é ent, € nio antes, que a burguesia italiana comeca a transformar-se de estimuladora em parasita. Para voltarmos & nossa discussiio: quando, no inicio do século XIV, um Benedetto Zaccaria, homem de primeira linha no progresso comercial ¢ industrial, adquire uma residéncia em Albaro, paralé do Bisagno, digna de albergara imperatriz Margarida, vitiva de Henrique VII, nfo di 4 impressio de ter feito um investimento produtivo no sector agnitio, mas sim de ter adquirido uma espécie de segunda casa. Se afo sintoma de uma renovada atengio pelo campo ainda se faz sentir, nas geracdes fturas a villa tornar-se~4 um centro de ligagio e’de controlo da produgdo agréria P, Acima de tudo, sabemos como os proprietdrios florentinos sé introduziram nos seus territérios rurais cada vez mais vastos; @ como af multiplicaram as villas e foram depois impondo 0 contrato agrario que acompanhava as suas conguistas politico~ “militares, aparceria, Houve, no entanto, situagdes deatraso ede abrandamento nesta expansdo que derivam da dificil coexisténcia entre uma cidade € os senhores que ainda governam as regides do interior. Ndo é por acaso que a villa veneziana comeca a difundir-se no século XV, altura em que o governo aristocrético revoga as antigas interdicdes que impediam os seus cidaddos de adquirir bona na Terrafirme;e até encoraja af as aquisicées que fortalecam a nova relagéo entre dominadores e siibditos. R. Em Itélia, e também nalgumas outras regides como a Pro- venga, hd um aspecto da relagao proprietario-colono que necessério por em evidéncia. Os camponeses dispéem efec- tivamente de contratos e de acordos muito diferentes dos que prevalecem em regides menos urbanizadas: as enfiteuses, as parcerias, rural e pecuéria, garantem geralmente ao trabalhedor 88 ‘uma maior poreo do rendimento agrario que aquela que se encontra nos sitios onde as relagdes so ainda mais feudais que alodiais; 0s pequenos agricultores independentes sao tributados, € verdade, mas geralmente no sio sujeitos &s corvées & aos pesados tributos préprios de um regime de servidio ou quase servidao. Confrontemos agora os documen- tos daadministragio de propriedades pertencentes amercadores italianos com 0s manor rolls, os registos de jurisdicfo € ‘administragio das aldeias inglesas. Um recente estudo de Zvi Razi sobre aaldeia de Halesowen mostra-nos, por exemplo, que para suceder ao pai na posse de uma terra, 0 camponés deve pagar somas relativamente grandes; que para se casar deve pagar uma fine, quer dizer, uma multa; que uma mulher que tenha um fitho ilegitimo deve sujeitar-sea umaoutra multa. Nao €um jus primae noctis, mas pouco falta; endo se trata de servos, mas de homens livres, e nem a Inglaterra é um pafs dos menos urbanizados da Europa, De resto, houve direitos feudais que se ‘mantiveram muito para além da Idade Média no sul de Italia ¢ ha Campanha romana, A prépria comuna de Milao nio libertou as comunas do seu territério rural de todos os vinculos econdmicos de dependéncia dos senhores eclesidsticos ou laicos que residiam adentro das muralhas milanesas © derivavam a maior parte dos seus rendimentos do tributo dos camponeses. Pior ainda eram as coisas em Franca, onde 0 sistema feudal no recebeu o golpe de miseric6rdia antes de 1789. Isto nao impede, porém, que o verdadeiro feudalismo desaparega mal a servidao da gleba desaparece. P. Emresumo, queres dizer que, antes mesmo de descobrir em nome de quem esidoos bens, épreciso determinar seo camponés élivre owndo,se deve permanecer na terra onde nasceu ou pode integrar-se nacidade. Estapremissa€é especialmente valida para das zonas onde a serviddo dos vilaos se prolongou mais: e penso na Alemanha do norte e no secular conflito das cidades balticas com os senhores feudais, Ainda em 1515, Reval (actualmente Talin) tenta demarcar-se dos protestos que os nobres levantam na Dieta da Livonia: sim, & verdade que acolhe camponeses fugitives, mas as cidades no poderiam sobreviver sem este ‘afiuxo. Menos de vinte anos antes, em 1496, uma multidéo de ‘populares esténios tinha maltratado diante das muralhas um 89 Fee ee EERE EEE EEE CES EERE EEE EEE EEE EEE eee eee re eee eee cavaleiro que levava consigo um camponés que the fora rrestitufdo pela autoridade municipal. E os magistrados de Reval tinkam elaborado no fim do século XV uma linha de condusa com vestigios de prolongadas mediacées e mortificantes negociagdes: 0 canponés que com a sua familia tivesse a exploracdo de wna propriedade tinha de ser expulso da cidade, ‘mas ndo seria de novo entregue ao seusenhor; se, pelo contrario, ai tivesse chegado sozinho e sem deixar atrds cle si terras abandonadas, endo podia-se ranquilamente acolhé-lo. Os equilibrios eram dificeis e as cidades sabiam que se ‘movimentavam sobre o fio da navalha. Wismar, que se aproveita da proximidade da sua poderosa irmd hansedtica Lubeque, tem de impor em 1400 aos seus cidadios a signifi- cativa proibicdo de conduzir pela violencia os camponeses € (forasteiros paradentro das muralhas. Esta pressdo quotidiana da Feudalidade e este fardo pesado como chumbo dos vinculos ‘servis impostos aos campos dissolveram-se pelo menos dois Séculos antes na Indlia centro-setentrional, ¢ atenuaram-se em ‘grande parte da Europa ocidental. R. Ao camponés que quisesse urbanizar-se restava, porém, a dificuldade de se integrar no mercado de trabalho da cidade: dificuldade que sera bem perceptivel depois da crise do século XIV, criadora, a longo prazo, de uma massa de desempregados, de vagabundos, de marginais, a quem a cidade tentard proibir a entrada, Mas mesmo antes, bastard um ano de peniiria ou um. cerco para que as autoridades da cidade tentem desembaragar- ~se das bocas initeis. Face 2 situagio de emergéncia, os funciondrios anondrios urbanos, a Abundancia ou as Provis6es, ‘como Ihe chamam na Toscana, tendem a recolher todo 0 cercal que o campo produz, antes de obter por elevado prego géncros alimenticios importados, Depois quando a situagio se torna mais dramitica e os camponeses caem sobre a cidade ¢ se apinham nasruas, so adoptadas medidas de coergio. Os Annali genoveses, fonte oficial, louvam as enormes importagoes Tealizadas para sustento nfo s6 dos habitantes da cidade, mas de todos quantos tinham acorrido em busca de comida; pelo contrario, o testemunho fidedigno do Novellino conta-nos que uma multidio de esfomeados foi convidada pelos pregoeiros piiblicos a dirigir-se a bordo de um navio carregado de viveres, 90 mas os desventurados encontraram-se pouco depois em pleno mar, na rota para a Sardenha, Uma célebre miniatura do Libro del biadaiolo florentino representa os guardas das portas de Florenca acolhendo ¢ dando alimento aos esfomeados expulsos de Siena em tempos de pentiria. P. Asprovisées dos conselhos das cidades italianas sao riquts- simas, entre 0 século XIII ¢ o século XVI, de expulsdes de «forasteiros» durante os tempos de pentiria, mas, ma- liciosamente, omitem amitide a definigdo deste termo. Jun- ramente com alguns mestres pedreiros, alguns artesdos e ‘mercadores forasteiros, vemos porém ser mandados para longe das murathas muitos imigrados do campo. Trata-se de wna historia pouco conhecida que mereceria ser reconstiwuida. Aregido que se revela mais atentads gradacées do direito de cidadania e, por contraste ou por assimilacdo, ao conceito de cidadao ou forasteiro, é talve2 a Alsdcia. Estrasburgo foi wna das primeiras grandes cidades do império a libertar-se do seu bispo que, derrotado em pleno campo, se retirou para os seus domtniosfeudais (1262);mas asuasombra continua aprojectar- sesobre as murathas daquela que se tornou uma cidade imperial livre. E talvez por isso que aqui se assiste d persisiéncia de uma esiruura juridica da populacdo extremamente articulada: no vértice eicontram-se os cidaddos de pleno direito (Burger), sejam patricios ou no; logo abaixo enconiram-se os ‘semicidadaos (Schultheissbiirger), que ndo chegam ao escaldo rributdrio de 10 Pfennige, mas se procura assimilar, reconhecendo-thes ou até impondo-lhes a plena burguesia assim que alcancam aquele limiar fiscal; e burgueses ainda, mas da tltima categoria, sao os Pfahlbirger, bastante préximos dos bourgeois forains da Franca e dia Flandres, dos cives silvestres dos éditos imperiais e da realidade italiana. Estes residem no campo, mas sao burgueses e, portanto, no esto sujeitos a Jjuurisdiedo do senhor territorial em cujos dominios vive; e sea ‘sua existéncia néo é de certo peculiar da regido de Estrasburgo, ‘assume aqui um claro cardcter de travdo e de desafio do poder episcopal. Nas cidades menores da Alsdcia, cm Hagenau, em Colmar, em Mulhouse, encontramos hierarquias menos complexas, que se formaram com base no que até ao século XIII eram as duas o1 Jinicas categorias existentes: os burguenses ¢ os inhabitatores, Os primeiros esta ligados d cidade e ao seu regime juridico; os segundas sdo camponeses que, venham ou ndo a residir adentro das murathas, se procuram de algum modo subtraur d jurisdigdo senhorial, Sero chamados de varias maneiras, Seidner (de Selde, cabana) ouHlinterssassene (porque, como nos explicaum documento de Hagenau de 1352, tomam lugar airds de um senhor) e, na drea francéfona da Alsdcia, simplesmente manants. Os que se estabeleceram nessas pequenas cidades {foram gradualmente reabsorvidos pelo nivelamento verificado na situagdo jurtdica, mas permanecerd uma diferenctacdo até ao século XVII: em caso de escassez de alimentos podem ser expulsos, enquanto o cidaddo de pleno direito é, por exceléncia, imune a este risco. Os cives silvestres sido um antigo instrumento na tura das cidades aiemiis contraosprincipes territoriais; eosimperadores, emespecial de Frederico Il a Carlos IV, serviram-se deles, ora {facultando 0 aparecimento de um grande niimero de homens ‘com direito a condigéo de burguesia no campo, ou nas jurisdigoes senhoriais, ora restringindo-a ou bloqueando-a totalmente. R. Cidadania a diferentes niveis encontramo-la também nas col6nias italianas: por exemplo, nas possesses genovesas da Crimeia, os «burgueses de Caifa» tinham direitos especiais, inferiores aos dos cidadaos de Génova, mas superiores aos dos outros habitantes ou visitantes da cidade; na colénia pisana de ‘Acti, todos os mercadores toscanos tém um tratamento de favor, mis esto sujeitos & jurisdigao do cénsul mandado por Pisa, Estes cambiantes tém a sua importincia © mereceriam um ‘estudo especial; mas eu confessei logo de infcio aminha escassa competéneia na matéria, P. Gostaria de chamar a tua atengao para o grande trabalho de aprofundamento e de debate realizado em Initia em torno das institigées e do governo do campo. A cidade dominante, em especial Veneza ¢ Florenca, confere aos seus vindrios e reitores poderes que antes eram exercidos pela cidade que passa a osigdo de stibdita: o nobre de Pistdia e de Padua, que era juiz dos seus camponeses, teve de passar o cargo a um magistrado vindo de Florenca ou de Veneza. E verdade que nos 92 encontramos na formacdo do estado territorial, no século XV, isto é, no limite extremo do nosso pertodo; mas decerto se trata de um importante elemento caracteristico de Iidlia, que ndo se encontra além-Alpes ¢ tem raizes longinguas. Nesta linha de investigacdo, 0 préprio conceito de campo foi decomposto numajaixa suburbana, que por umraio de 5-10 quilémeiros esté soba jurisdigdo da cidade e dividido por portas,enasprovincias do distrito, que tém entdo jurisdi¢do separada, R. No caso de Florenga, a nomeagiio dos vigirios serve pois, sobretudo, para desmembrar o territorio rural das cidades siibdi- tas; 0 fendmeno é, porém, anilogo 2 politica que os soberanos Gindsticos seguiram para eliminar ou exautorar as autonomias feudais locais. A monarquia francesa, por exemplo a de Filipe, © Belo, conferia nas provincias um prestigio especial aos seus representantes, que provinham da Corte ¢ nao tinham raizes auténticas na regido. Em Veneza, a selecgao jé era canalizada através da pertenga hereditiria 3 aristocracia da capital. A tarefa de formar um estado territorial centralizado na Corte da capital, ‘com exautoragao das cidades sibditas, era muito dificil para os senhoresdo Poe, efectivamente, nenhum deles conseguiuman- ter permanentemente um estado territorial pluricitadino. E tam- bém por isso que o conceito de capital se aplica menos & Italia urbana, a Itdlia do centro e do norte, que a outras regioes. P. Se volidmos a fatar da histéria italiana, desta vez hd uma justificagdo. O terino contado é intraduztvel em inglés, em fran- ‘cés oem espanhol,'e é-0 de modo bastante aproximativo talvez 56 no termo alemdo Umland. Quando, ja no séeulo XII, Ordo da Frisia fazia notar, com um sentimento de desaponiamento imperial, que a Itdlia estava «quase toda reparnda entre as cidades», clarificava um processo que viria a aprofundar-se ea alargar-se enormemente, caracterizando de modo iinico inconfundivela histéria italiana, Entre os séculosXIV eXV, so {fixadas as fronteiras territoriais das grandes comunas urbanas, * fede ceo mado também em pontsuts pois no s ata spenas do campo en siymat 4 campo que rosia uma cidade ere enconira nur rlgo ntrdependente com es. Wao) que em muitos casos triam coincidir com ds fronteiras das provincias actuais. O campo italiano, essa profunda faixa de territério stibdito da cidade, ndo tem qualquer afiiidade com os condados ingleses, em que a localidade principal & uma mera sede administrativa de determinadas magistraturas; e inimagindvel nas outras grandes monarquias nacionais, em Franga ou em Castela. A tinica verdadeira semelhanca é com os cantées helvéticos, onde, no entanto, a subordinacio do territorio a cidade apenas se efectua nalguns casos (p. ex. em Zurique e em Berna) e posteriormente. R. Os trés cantées suigos mais antigos, Schwytz, Uri e Unterwalden, nfo tém um verdadeiro niicleo urbano'e, com efeito, oaglomerado mais importante de Uri chama-se Altdorf, {que se poderd traduzir por burgo velho: institucionalmente, siio ‘comunas rurais, forma muito difundida também em Itdlia. Mas onde também exista uma cidade importante, como Zurique, 0 territério esta mais associado que subordinado a ela, e s6 coma aristocratizagio dos séculos XVII e XVIII as coisas mudario, Ascomunas urbanas sufgas so, em suma, astinicas forade Itdlia aestendera sua autoridade ao campo que as circunda, mas com uma diferenga substancial, j4 que alargam a cidadania aos camponeses e montanheses que formam o nervo das suas forgas armadas. Tambémna Alemanhaas cidades imperiais se mantem muito mais isoladas no interior das suas muralhas, P.O maior territério de wma cidade imperial alema é 0 de Nuremberga, que o formou como cintura protectora durante as guerras conira o margrave de Brandeburgo: e sao 1500 knvsue conferem um sentimento de seguranga e poderio na Alemanha, mas fariam wma cidade do Pé ou da Toscana sentir-se quase cercada, E a alsaciana Mulhouse, com uma jurisdigdo de cerca de 20 kme-tem os problemas de status juridico dos cidadaos e camponeses que ind pouco vimos. De resto, no Império a distingdo entre soberania territorial ¢ posse patrimonial de wma cidade é muito fluida: p.ex.no século XV, Lubeque realiza vantajosas especulagées aceitande como penhor, comprando e vendendo aldeias com os respectivos direitos de jurisdicdo; enquanto Stralsund, que fica mais para 94. FReeeaeeeeeeeee eee eeeeen eee gece CEO reeeE eee EeePC PATHE EERE PEPER APACE eee ee eeeeeee este e estd expostadameaga do reida Dinamarcaprimeiro,edos duques de Pomerania depois, tende a infundir um cardcter de dominio permanente as 15 aldeias que no século XV conseguin cadquirir. R. O campo (contado) ¢ justamente um dos dois elementos constituintes essenciais do estado urbano; eéevidente queelese apresenta em Itdlia com uma intensidade de caracteristicas que em vao se procurariam noutros lados. Também as cidades flamengas condicionaram os seus territérios, mas muito mais comaintengiode controlare limitara sua autonomia produtiva, do que para neles introduzir uma administragio permanente e torné-los estados. Este contado & uma estrutura nfo s6 administrativa mas também, e nfo secundariamente, fiscal, P. 0 duplo sistema dos fogos, urbanos ¢ rurais, para recensear € sujeitar a tributagao os bens dos cidadaos e dos comitativi nasce em finais da época comunal e atravessa toda a sociedade do antigo regime, até ao cadastro fundidrio de Maria Teresa na Lombardia. A progressivapassagem das terras para as maos dos nobres e, mais genericamente, para as maos dos habitantes das cidades torna cada vez mais infqua, com o passar do tempo, a «divisdo dos encargos», a reparticdo fixa dos tributos, geralmente estabelecida entre o séculoXV eo século XVI, eque depois ndo foi revogada; as poucas propriedades que permaneceram nas méos dos comitativi viram crescer gradualmente 0 valor do imposto que thes era atribuldo O mesmo se aplica aos impostos pessoais no campo, just- iffcados por seremos substitutos dos tributos exigidos ds portas da cidade sobre os géneros de consumo. A comuna de Florenca reorganiza em 1342 0 velho focatico, transformando-o na ga- bella di fumanti, ou seja dos comitativi; mas ndo poupou ao seu campo um sistema fiscal mais retrégrado, que consistia precisamente em tributar os fogos independentemente da sua ‘capacidade contributiva. Quando, num arquivo italiano, depa- ramos com wma série continua e regular de avaliacées eriodicamente renovadas, temos boas razées para considerar que esse campo ter podida fazer sentir 0 seu peso com autoridade. De resto, a oscilacdo entre imposto pessoal (seja ele um focatico, uma capitagiio, um imposto de moagem dividido pelo ntimero de cabecas ou um tributo sobreo sal) imposto real 95 1 FORMA URBIS P. Sei que desejas incluir no nosso didlogo algumas perguntas sobre o modo como as forcas politicas, econémicas ¢ sociais de que temos vindo a ocupar-nos possam ter influido no tecido urbanistico, moldando pouco apouco a sua cidade, ndo sem, no entanto, terem sido por seu turno influenciadas pela forma urbis or elas criada. Uso este tom hesitante porque nunca cheguei a convencer-me completamente de que wma irrepreensivel exigéncia de «interdisciplinaridade> imponha ao individuo que p6s anu determinadas fontes documentais a interpretacdo deste tipo de testemunhos. Tu, que tiveste um convivio militante com @ investigacao urbanistica anglo-americana e francesa e também, mais recentemente, com a italiana e a espanhola, estards porventura a vontade para sintetizar os muitos € importantes trabalhos neste campo. R. Ecertoquehé dificuldades, mas no me parecem muito mais ‘graves que 2quelas que um historiador da economia encontra 20 servir-se da economia te6rica e daeconometria, ou das com que um historiador das ideias se defronta ao explorar problemas de cigncia e de filosofia. Visto 0 aspecto fisico da cidade espelhar as intengdes e as necessidades priticas dos cidadios (¢ como negé-lo?), a sua estrutura e a sua evolugdo urbanistica constituern uma provincia da sua historia que no pode ser marginal, No entanto, é verdade que 0 caminho for aberto por urbanistas, gedgrafos, arquedlogos ¢ socidlogos antes dos historiadores em sentido restrito, e que nem todas as suas conclustes so para nés alimento, Estudiosos do mundo antigo como Fustel de Coulanges e Gordon Childe, da urbanistica 96 medieval como Pierre Lavedan, da sociologia urbana como Lewis Mumford, da teoria urbanfstica como Le Corbusier e depois, em Itélia, Benevolo, Poleggi e a escola de Ragghianti, propuseram-nos a nds, historiadores, uma série de problemas novos e fascinantes; toca-nos agora escolher aquilo que nos pode ser mais directamente stil, reexaminar as propostas dos outros de acordo com a nossa curiosidade e, sobretudo, fazer a recolha sistemdtica da documentagiio que nos faz faltae quenzo € apenas material e, portanto, inarticulada, mas compreende também um grande nimero’ de fontes escritas. Quanto & Antiguidade e€ ao Renascimento, estamos bastante bem informados; quanto & Idnde Média, nfo, 0 trabalho mal comegou. Por agora, temos apenas recolhas descarnadas ou fragmentirias de plantas de cidades, tipos de edificios, deliberagdes de consclhos municipais e apreciagdes literdrias sobre aesiética, as necessidades priticas e ocusto das estruturas urbanas. P. Parece-me porém que muito de bom se terd iniciado, e ai realizado, nos illtimos trinta anos, e mais ainda nestes tltimos dez: esto a aparecer atlas de cartografia urbana para a Franca, ‘Alemanha, Inglaterra ¢ Dinamarca, ¢ anuncia-se agora a saida do austriaco, Na historia é-se obrigado a um recuo no tempo a partir dos primeiros levantamentos cartogrdficos fidedignos, na ‘sua maioria do século passado; mas 0 método e os resultados parecem-me de grande interesse. R. Sem divida; e também em Itdlia, onde a propria riqueza de material € um obsticulo a um trabalho de conjunto, safram monografias documentais importantes, como a de Pampaloni sobre Florenca no tempo de Dante e ade Pierottie de Corsi sobre a urbanistica de Lucca, Em Espanha, os trabalhos de Leopoldo ‘Torres Balbis eda suaescolaelaboraram oestudoda urbanistica com uma metodologia que nao consente objecedes mesmo do historiador mais rigorosamente tradicional. E na Bélgica, os grossos volumes de De Bruyne sobre a estética medieval, baseados numa consulta muito atenta das fontes escritas, providenciaram um antidoto para as especulagSes arbitrérias dos primeizos historiadores da arquitectura, Mas isso nio impede que a histéria urbanistica seja uma ciéncia jovem, 97 indisciplinada, que ainda procura o seu caminho; ¢, precisamente por isso, no posso deixar de Jamentar que nao tenha sido escutadoo convite docoléquio de Spa, em 1968, para estabelecer sobre bases internacionais pelo menos wn catdlogo das construgoes civis na Buropa medieval e de antigo regime, comum ficheiro uniforme e ilustragio fotografica ¢ documental constante. Tudo o que resta de um projecto to urgente (pois 2 arquitectura doméstica e privada é a mais exposta i destruicao), €0 volume das actas desse coléquio, Les constructions civiles dinterét public dans les villes d'Europe au Moyen Age, publicado em Bruxelas pela fundago Pro Civitate, ¢ umas Centenas de dossiers sobre Poitou e sobre a Umbria, depositados na biblioteca de historia de arte da Universidade de Yale. P. Passando am dos tratamentos mais classicos da histéria do urbanismo, 0 de Keyser para as cidades alemas do norte, afonte privilegiada e contraposta quase de forma polémica aos documentos escritos é a planta, Dela se parte, analisando-lhe a evolugdo, mas quase contrapondo esta leitura @ dos estatutos, das leis, das crdnicas. R. A ideia foi proposta por Pirenne, adoptada unanimemente pela sua escola e aplaudida pelos urbanistas, mas nfo posso dizer que sinta muito entusiasmo por ela. A planta é um palimpsesto que sem a documentagio das alteragocs sucessivas pode meter-nos em apuros, Uma planta em xadrez regular, por exemplo, com angulos e cruzamentos ortogonais, pode provir Ge um trago de fundadores helénicos ou romanos, ou de um modelo usado na Idade Média para uma série de fundagoes de centros urbanos, ou de rectificagdes e demoligdes da época comunal, ou de uma imitago renascentista do que se considerava ser um modelo cléssico, ou de especulag6es privadas dos tempos modemos. Apenas os documentos podem ajudar-nos a escolher entre estas hipéteses. Uma planta em mancha de 6leo pode reflectir um conceito estético ou urb: nistico abstracto, ou a polarizagdo em redor de um edificio importante ou, pelo contrério, um crescimento caético ¢ des- controlado; também neate caso, serdo necessarios documentos para uma decisio. Parece-me talvez mais reveladora a sobre- posigio de esquemas diferentes: Aosta, Pavia ¢ Mildo tém 98 decerto no corago uma planta romana, mas esta planta foi congelada no interior das muralhas antiquissimas de Aosta porque a cidade nao sofreu grandes destruicoes nem grandes expanses na Idade Média e Moderna; ainda é visivel em Pavia, mas com modificagdes diversas, porque a cidade teve um Gesenvolvimento quase ininterrupto, mas sempre de proporgdes modestas; ¢ € irreconhecivel em Milfo, porque primeiro as destruigdes dos godos ¢ as destruigdes menos graves de Barba- -Ruiva’ e, depois, o acrescimento tumultuoso e radical devastaram o plano original. E, no entanto, mesmo em Milo se podem ainda identificar cerias persisténcias: 0 centro histérico coincide ainda com 0 centro romano e o prdprio nome de algumas Tuas (Mercadores, Ourives, Armeiros, Esporeiros, Espadeiros, Broletto', Cordusio, ou seja, Curia Ducis, Casa da Moeda Velha, Circo) lembram-nos a localizagao medieval ou antiga de oficios monumentos desaparecidos. P. Falas de persisténcias, mas hd pouco insististe nas trans- formacées da planta, nas irregularidades inesperadas, nas alteragoes reveladoras. Seria proveitoso seguir esta linha de raciocinio. R. A verdade é que a Idade Média nao teve, em geral, grande simpatia pela planta regular e pela rua larga e direita. Pelo contrério, quase todas as cidades nao tém um centro tinico, mas vérios, nfo tém arténas paralelas, mas Tuas tortuosas que apontam em varias direcgoes. Porqué ruas tortuosas ¢ estreitas? Tortuosas, creio, por um misto de razbes estéticas e praticas que podemos mais intuir que provar. Geometria, simetria, perspectivas libertas de obstéculos eram qualidades aos olhos dos gregos e dos romanos, mas ndo dos barbaros; jé Técito nota e deplora o facto de os germanos, «talvez, porque incapazes de construir», implantarem as suas residéncias onde quer que uma fonte, uma colina, uma floresta os atraia. Mas 0 grande historiador no se dava conta de que também a surpresa ¢ a aparente desordem podem ter 0 seu fascinio; um edificio visto de longe parece mais pequeno aos aifct de constho mans (N. do T) nossos olhos, uma igrejaque aparece ao virar da esquina de uma rua estreita ¢ tortuosa parece-nos mais majestosa e mais alta. Além disso, uma rua tortuosa corta 0 vento: € verdade que 0 ‘vento também existia para os romanos, mas pelo menos as casas dosricos estavam mais aquecidas ento quena Idade Média. Por limo, uma rua estreita e tortuosa pode ser mais facilmente bloqueada em caso de invasio. Porqué varios centros? Porque cada igreja, cada mosteiro, cada ediffcio cria em seu redor uma microcidade; cada grupo familiar, cada especializagio artesanal cria 0 seu territ6rio urbano. Este nao se encontra fechado em si por muros e cancelas em redor de becos sem safda, como os das cidades islfimicas, mas € muitas vezes capaz de se defender por meio de torres € barreiras méveis ou, pelo contrério, fica isolado como um gueto dos bairros mais nobres. A formacio de «ilhas» eclesiis decories familiares, mediante a aquisiedo de casario adjacente, proporciona aprogressiva retiradade clérigos e patricios da vida activa da comuna urbana e a sua transformagio em administradores € consumidores de rendimentos fundisrios proprios. P. Contudo, a formagéto de wm bairro ede uma corte 4 volta de uma familia, como a dos Guinigi em Lucca ou a dos Cavalcanti em Florenca, por vezes acompanha e garante a actividade eco- némica de grupos familiares ainda em plena expanstio. E tam- bémaampliacéo das éreaseclesidsticas, especialmente de algu- ‘mas ordens regulares, significa muitas vezes ndio a estagnacdo da instituigdo, mas antes a multiplicagdo das suas funcoes ¢ 0 crescimento das suas receitas. R, Nao era minha intengao falar de estagnago, mas mais de diversificagao dos investimentos. Contudo, mais que embre- nharmo-nos desde ja no interior da rede urbana, € sobre os diferentes centros de uma cidade, oumelhor, sobre aorigem dos diferentes niicleos, mas adjacentes e complementares entre si, que devemos primeiro debrugar-nos. O que realmente separa 0 mundo antigo da Idade Média €anecessidade de, no perfodo das invasdes barbaras, levar de novo a cidade, ou pelo menos o que dela permanece vivo, para as elevagdes de onde ela descera Gurante a longa pax romana, ou para outras posigées de Facil 100 defesa, como por exemplo uma ilha fluvial. Por vezes, vai-se procurar essa elevago Dastante longe; e muitas so as cidades gue se transferem para posigdes a quilmetros de disténcia, Nascem entretanto novas cidades, em especial na Europa setentrional, nas quais a influéncia e a tradigo urbana greco- romana nao penetraram. Também estas cidades, em muitos casos maritimas, se situam em posigdes da facil defesa; tanto mais que foram frequentemente concebidas como guarnigées ou, nas provincias recentemente colonizadas e convertidas para além do Elba, como sedes episcopais. Este processo continuard tambémcoma expansiio colonial mediterranica, na Terra Santa, no Egeu eno Mar Negro. Assim como na Antiguidade a cidade tinha descido da acrépole ou saido da ilha (como a Siracusa antiga) e nfo s6 crescera como se sentia relativamente segura, também isso acontece na cidade medieval. Mas em Itdlia esta descida faz-se sentir predominantemente soba forma de manchade dleoe sem ‘uma diferenea duradoura de jurisdigao, enquanto noutros paises prevalece a oposigio cidade-burgo que, descrita com particular clareza por Pirenne para as cidades belgas, foi depois tomada como modelo pelos historiadores, como um estgio infalivel ¢ obrigatério no desenvolvimento urbano. E talvez se tenha exagerado a0 postular este estédio mesmo quando para tal faltam provas. P. Mas como pensas que se deverd interpretar a tdo difundida formacdo de duas cidades convergentes entre si, mas bem divididas por uma fronteira geogrdjica e altimétrica que logo assume um conteiido jurisdicional e politico: justamente a oposigdo a que tu aludias e que ndo é $6 belgo-flamenga, mas ‘mais aindafrancesa meridional (de LausanaaTolosa, de Tolosa @ Perpignan), entre o bourg episcopal e capitular (frequen- temente até dividido em duas jurisdicoes distintas) e a nova ville, que surge aos pés da colina e se enche de uma populacdo mercantil ou de artesdos? Nao te faz lembrar uma dindmica andloga ao desenvolvimento do burgo italiano nofundo do vale, a que Se encontra sobranceira ao castelo senhorial? R. A coisa ¢ ainda mais difundida que isso; os historiadores polacos, por exemplo, véem quase todas as suas cidades como 101 tendo partido no binémio cidade-burgo; e também os espanhdis por vezes falam nele. Eu diria, porém, que devemos fazer uma Gistingdo: a cidade que se desenvolve verdadeiramente segue uma dinamica muito diferente da da aldeia rural controlada pelo solar do senhor: a esta falta-Ihe efectivamente a forca de ‘atracgdo que © centro urbano retira do mercado. Também 0 burgo, seja qual for o seu destino futuro, se pode formar a partir Ge virias origens: pode, por exemplo, desenvolver-se a partir de compos santos, isto 6, de edificios de culto erigidos sobre reliquias de martires ¢ de santos que, por uma regra higiénica jé do tempo dos romanos, no podem ser sepultados adentro muralhas, Vale a pena observar, € siio as fontes que no-lo recordam directamente, que nesse caso a falta de um apoio defensivo € compensada pela proteceo do santo, que por outro lado vela também pelas muralhas e pela cidade alta, em especial se af houver uma igreja que lhe seja dedicada. Mas com 0 enascimento econdmico da Baixa Idade Média, o burgo desenvolve-se mais faciimente ex novo, como no modelo de Pirenne, aos pés do castelo episcopal ou laico, onde se realiza mercado, que se expande demasiado e jé nao cabe no limitado ‘espago da cidade alta. Esta articulago tem um forte significado politico porque, em casos extremos, a cidade alts € a sede do soberano (em Praga, por exemplo, em Cracévia), ou pelomenos do bispo ou do senhor laico, comas suas cortes, os seus criados, cortesdos, funciondrios e clientes. Onde o capitulo tem uma autoridade propria, onde uma abadia tem uma jurisdigao independente, onde quer que uma outra autoridade tenha o seu fulero, a cidade alta pode subdividir-se em duas ou mais dreasde influéncia politica diferentes, talvez até territorialmente. no contiguas ou separadas por construgdo. Deste local elevado, 0 velho senhor tenciona defender e conservar oseu poder politico, judicial e tributdrio sobre a nova cidade baixa em rapida expansio. Esta nasce, por definigio, acéfala; mas essa inferiondade facilita-lhe, de certo modo, organizar-se com as suas prprias forcas, o que nfo acontece com a comuna urbana, ‘que para isso necessita em primeiro lugar de se desembaragar do senhor, ou de o encerrar numa drea de imunidade. Em suma, é uma fraqueza que gera uma forga. ‘O desenvolvimento normal, segundo 0 modelo de Pirenne tio frequentemente citado, é 0 burgo absorver a cidade alta, Na 102 realidade, nfo so raros os casos em que as duas cidades continuam a viver separadas, cada uma com o seu govemo, mesmo séculos apés s¢ terememancipado do bispo ou do senhor laico. Em Arles, hd quatro aglomerados distintos até finais do século XVI: cité, burgo velho, burgo novo, mercado, cada um com as suas muralhas € o seu governo. Fenémenos deste tipo poderdo causar espanto a um italiano habituado as sucessivas incorporagées de subiirbies num municfpio em crescimento, mas nfo @ um americano que conhece a resistencia dos subirbios elegantes ou tranquilos 8 anexagZo por metr6poles ‘com imposios mais elevados, indigentes mais numerosos a seu cargo e um centro em processo de degradagao. P. Cidade alta e cidade baixa, civitas, urbs, oppidum, cité, ¢ ville, burgo e subirrbio (e até falso burgo, ou faubourg), city € town; ndo te parece que estas denominagées, utilizadas em Hnguas e locais diversos, criam confusdo? R. Para o historiador moderno que nio leia os estatutos, sim; mas a ambivaléncia dos termos tem as suas razGes no diferente desenvolvimento do aglomerado. Urbs, bourg, towne oppidum referem-se todos, como vimos, de modos diversos & cintura de muralhas, Civitas, cité, ciudad, city, cittd, cidade referiam-se originariamente nfo a0 micleo rodeado de muralhas, mas 2 cidade com o seu territério rural; porém, quando na Alta Idade Média o niicleo muralhado perde 0 seu campo, também o nome se retrai para dentro das muralhas, mas, precisamente por scr utilizado para os aglomerados que se distinguem peia presenea de um bispo, serd 0 preferido para os centtos habitactonais de maiores dimensOes. A Franga é uma excepefo: cité sobreviverd apenas para a parte da povoagio onde reside o bispo e acabard por ser substituida pelo termo ville, que originariamente se referia ao latifiindio rural; daf nascerd uma curiosa contradiggo entreonomedapovoacaoeonomedosseushabitantes, citoyens ou, mais frequentemente, bourgeois, enquanto os vilains sio os camponeses e mais tarde, depreciativamente, os maus€osTuins. Também no inglés perdura uma cera confusio: town pode significar qualquer aglomerado urbano; city ¢ preferidu para us centros maiores ou para o centro historico da cidade; borough, tal como borgo e faubourg, tende a indicar um centro mais 103 pequeno (equivalente assim ao antigo oppidum, que significava um centro mais pequeno com muralhas). E preciso muita paciéneia, P. Destasfusdes e transformacdes nasce pois, nuns lados mais, noutros menos homogénea, a cidade da Baixa ldade Média e do mundo comunal. Mas ndo poderiamos agora imaginar uma dessas cidades e depois, obviamente, enriquecé-la_com excepedes ¢ contraposigaes? Ou, melhor, ver quais siio as componentes, os edificios e os espacos sem os quais dificilmente nos poderemos sentir perante ou dentro de uma cidade? R. Era precisamente a isso que eu queria chegar. No primeiro dos nossos encontros, quando procurivamos um critério juridico, econémico, social, demogréfico ou psicologico que se pudesse utilizar para distinguir em qualquer caso a cidade dos outros aglomerados, a cintura de muralhas foi o tinico elemento estruturale visual a chamar anossa atengao. Mas para perscrutar estado de espinito urbano convém passar além das muralhas € ver quais os edificios que polarizam a vida da comunidade e, consoante 0 seu aspecto, quando ainda existam e porventura funcionem, ou a partir do aspecto que Ihe atribuem as fontes escritas, avaliar a importincia relativa que cada um deles teve. Numa curiosa passagem do seu /tinerdrio da Grécia, escrito ha dezoito séculos, Pausanias pergunta-se se nao seré absurdo cha- mar polis, isto 6, cidade, aum certo centro da Fécida. E verdade, dizele, que temmuralhas e envia delegados assembleia federal da regio, mas nfo tem um palécio, nem um gindsio (ou seja, uma palestra atlética e agonistica), nem um mercado, nem um aqueduto. Nao teria podido explicitar melhor a discrepincia entre os requisitos juridicos, que estao satisfeitos, ¢ os edificios emblematicos e indispensdveis 2 sociedade urbana, que esto ausentes. Naturalmente, os edificios indispensdveis ndo sera0 ‘os mesmos em todas as regides e periodos; no século VI, Gregorio de Tours considerard Dijon digna do titulo de cidade, Jéque tem um territério fértil, boa 4guae melhor vinho, mas tera ‘de reconhecer que lhe falta um bispo; quanto aos edificios, nao se preocupa. E, na realidade, muitos recursos romanos suportaram despesas superiores aos seus recursos para construir 104 arenas mais vastas ¢ faustosas que o necessirio, e muitas comunas medievais fizeram 0 mestno com as suas catedrais, em ambos, 0s casos convictas de que a magnificéncia do edificio demonstraria a magnificéncia da cidade. S6 numa terceira Epoca, ¢ nao tem toda a parte, o prestigio da cidade aparece ligado & magnificéncia do palécio comunal; mas raramento a comunidade urbana esta dispostaa gastar com este tanto quanto tinha gastocom a arena e coma catedral, De facto, acidade dos mercadores € mais econémica que aquelas que a tinham precedido; nao quer gastos de luxo, investimentos avultadosem edificios de puro prestigio. Mas no quero atardar-me numa controvérsia mais econdmica que especificamente urbana, ou soja, sobre o peso que os investimentos de puro prestigio possam ter tido no malogrado desenvolvimento econémico de uma cidade. P. Nas trés fases que delineaste hd uma légica interna. A arena, 08 banhos piblicos da Antiguidade sdo um centro importante da vida urbana, Por seu turno, a catedral da Alta Idade Média ndo apenas um edificio sagrado: ndo sé se celebra af o culto, no s6sediz aiamissa, mas tambémse governaacidade comas suas dioceses, Ndo é um teatro, mas as procissdes eas representagées sacras partem da catedral. As suas naves abrem-se a manifestagées e a reunides que os contemporéneos ndo ideniificavam com a devocdo quotidiana, que sentiam como diferentes: ndo sé as audiéncias do bispo enquanto senhor, mas também as assembleias da comuna que entretanto se tornara soberana e amadurecidia continuardo durante muito tempo aser convocadas ¢ a desenrolar-se aqui. Mesmo quando o poder esté nas maos da comuna ou do senhor, em Itdlia, ou do rei ou de um seu vigdrio nos estados mondrquicos, a catedral conserva muitas destas fungdes; € ndo as perde todas mesmo quando o centro de gravidade urbano se desloca mais para baixo e para longe dela. No entanto, 0 set antagonista néo é apenas o poder laico comas suas instituicdes, apartir do século XIII emdiante; fazendo concorrénciaao bispo, sua catedral e a todas as pardquias ¢ igrejas seculares, aparece tum novo e poderoso interlocutor: as ordens mendicantes. Nao é 86 no plano do culto, mas também no da atracedo civil, da convocacéo de assembleias de cidadaos, ou de simples 105 corporagées de artesdos, que as novas igrejas e, em especial, as dos franciscanos ¢ dos dominicanos, alcancaram posicdes de prirneiro plano. R. O facto é que, excepto nos principados episcopais do Impé- Tio, a catedral j4 nao € a sede do poder politico. O edificio Gestinadoa substitui-la Custa a ser edificado. Quando a expres- Stio domus civitatis aparece pela primeira vez em Cremona, em 998, nio é muito claro se se trata de um edificio ja comunal ou ainda episcopal: ¢ a noticia chega-nos quase fortuitamente, no contexto do secular conflito entre mereadores cremonenses ¢ a sede episcopal, por causa da cobranga de impostos alfande- gérios. Ainda nao emergiu a comuna no seu aspecto institu ional. Ainda nao hé cénsules, ainda nao hi bont homines, mas a domus sim. De resto, a catedral como centro obrigatério natural de convocagio encontra-se em plena crise por volta do século XI: a primeira fase da sua superagilo verifica-se com as assembleias populares ao ar livre, na praca, Portanto, palicio piiblico no pode tardar a fazer a sua apari¢ao, pois as fungdes © as incumbéncias que nele deverdo ser desempenhadas no podem ser delegadas com base permanente em qualquer outro lugar: para além das assembleias, surgem cargos ordinérios, administrativos judiciais, que funcionam com um ritmo quotidiano c terdo de dispor de locais fixos. Pode quase afirmar- se que este dado municipal, este elemento da toponoméstica urbana, constitui um dos sintomas mais seguros do nivel de autonomia alcangado. O facto de as cidades inglesas 6 raramente e bastante tarde o tereme de as deliberagdes da cidade sejam tomadas ora numa, ora noutra igreja, demonstra como a firma burgi determina’ formas de vida piiblica bastante apagadas. A coisa parece nao ter preocupado os historiadores, ingleses, habituados como esto a ver tratar os assuntos da vida da cidade onde calha, frequentemente junto do bispo ou numa igreja e, com tempo, mais frequentemente ainda no que vem a ser chamado guild-hall. E, de facto, a autonomia municipal comega geralmente como guilda, quer dizer, como uma asso- ciagdo juramentada que originatiamente reiine sobretudo os grandes mercadores (merchant-guild). No eutauto, a guild expande-se, como acontece noutros Iados com a conjura comunal, até abarcar praticamente toda a comunidade urbana 106 ae Nio se pode, portanto, chamar-Ihe uma corporagio, no sentido alemdo de Zunft, até surgirem as class guildes, ov seja, as associagées de oficios. Também em Génova, como em qualquer outracidade maritima, acomunanasce comoassociagéio de mer- cadores; € € por isso que nunca se formard af uma arte de mercadores com cardcter corporativo. Genuensis ergo mercator, diz um adégio popular, Em Génova, 0 palicio comunal’s6 é edificado em meados do século XIII, com um atraso que, para a Itdlia, € excepcional, A construgio dos palicios puiblicos italianos, a competigao para os edificar cada vez mais belos e majestosos, torna-se uma questao de orgulho local, como o bairrismo das cidades-catedrais francesas. No entanto, em Franea, nem sempre existe paldcio piblico, embora ‘ode La Rochelle seja uma joia do Renascimento ¢ 0 de Arras uma construgio importanie; mas af estamos as portas do territ6rio flamengo ¢ brabantino. Também na Bélgica a semelhanga com Itdlia se manifesta nofactodeos hotels de ville reflectirem quase portodaaa parte o orgulho municipal; contudo, siio um pouco mais tardios, na sua maioria nfo anteriores ao século XIV.Também no territério hansedtico e nas suas ramificagGes polacas o Rathaus € obrigatério e importante (0 de Lubeque, por exemplo, € oedificio mais importante da cidade), mas relativamente tardio. Alids, por todo 0 Iado as guildas ou artes individuais tendem a construir o seu palécioy em Itélia, até 08 partidos por vezes os edificam. : Mais raras, mas extremamente significativas, sfo as repre- sentagoes artisticas do governo da cidade e dos seus efeitos. Em Siena, encontramos o famoso «Bom governo» ¢«Mau governo» de Ambrogio Lorenzetti; em Arezzo, a comuna despojada € a comuna com senhoria, representada na catedral quando. bispo € eleito supremo magistrado da cidade. : is O tiltimo monumento que recordaremos, pois aenumeraco pode tornar-se fastidiosa se nfo foracompanhada de ilustragoes, €a série de Rolandos, estatuas colossais do paladino, protector do mercado, que se espalham pelas cidades hansedticas, de Brema até Magdeburgo. ¥. Mas se nas principais comunas trallanas o puldcio piiblico nasce como defesa das liberdades urbanas, também os seus campos se constelam de faustosas sedes piiblicas: as residéncias 107 do vigdrio, do podesta, do tribuno, do lugar-tenente, em suma, de todos aqueles que, a vérios tiulos, representam o poder central. R. Trata-se, sem divida, de edificios que originalmente tinham fungGes diferentes, e reflectem-no com frequéncia nas prOprias formas arquitecténicas: nfo s6 nos campos, mas também nas colénias do Levante, estes paldcios nao podem faltar; onde quer que os genoveses estabelecam a sua jurisdigdo, surge a Lobbia, & sua construgéo com arcadas. Mas, limitando-nos i fisionomia primitiva de uma cidade-tipo, nao pode faltar 2 um centro urbano, juntamente com a catedral e 0 paldcio piiblico (nao digo além destes, pois ele nao é menos essencial), um outro polo de animagdo, Pausinias enumerava-o em quarto lugar, o belga Pirenne formulava, dezoito séculos maistarde, asuacélebretese «que identifica a origem da cidade medieval com a formagiio do mercado, P. Essa 1ese, 1al como foi formulada, parece demasiado rigida; mas, na sua esséncia, esté préxima das tuas posicoes. R, Sim, decerto que sim; exceptuando os exageros inevitéveis, quando um historiador de génioapresenta uma tese nova, 0 conceito fundamental perdura. E verdade que, se bem que reduzida ao minimo, a economia de mercado ¢ a vida urbana nunca chegaram a desaparecer na Alta Idade Média; e também é verdade que se podem assinalar excepcdes ao quadro do enascimento urbano proposto por Pirenne em regides que lhe erammais familiares. Mesmo a, hd centros urbanos quenascem emredor de umpaldcioreal, de umcastelo, de umaigreja, de um mosteiro, ¢ s6 depois disso assumem um cardcter mercantil: Aquisgrano ¢ Toumnai, por exemplo. E nessas mesmas regides encontram-se centros originalmente mereantis que pouco a pouco se transformam em cidades predominantemente artesis: emGante, aindistria téxtil, eem Dinantametalirgica, acabaro por submrair ao comércio a quase totalidade do capital e da mao- de-obra disponiveis. P. Quando o mercado volta ao centro da arquitectura urbana, 108 quais ¢ onde se siruam os edificios que o albergam? R. Nos primeiros tempos, no hé necessidade de edificios especiais: qualquer lugar ao ar livre serve para por uma carroga ou montar uma tenda (ainda hoje em bom castelhano se chama tienda a qualquer negécio) mas, habitualmente, hé duas localizagées preferidas: em redor de uma igreja no centro da cidade para o mercado intemo, quotidiano ou semanal, 2onde negociantes locais ¢ camponeses dos arredores levam objectos vulgares e comestiveis; ¢ fora de portas, junto as muralhas, para © mercado mais intermitente de artigos mais caros importados pelos forasteiros. Ambos os mercados se tornario mais tarde cobertos ¢ permanentes, expandindo-se o interno em lojas ¢ 0 externo por subiirbios inteiros. P. Contudo, essa descrigdo pressupde que, segundo os postu- lados dos extremos de Pirenne, 0 mercado terd desaparecido durante algum tempo na Alta Idade Média, R. Nao necessariamente: mesmo nos nossos dias, as lojas nfo fizeram desaparecer 0s pontos de venda ambulantes a volta das catedrais de Ferrara e de Magonza; a formagio de coldnias permanentes de mercadores estrangeiros nfo tornou iniiteis as feiras internacionais. O palimpsesto da cidade moderna naoesté ‘Go apagado que no se possam af Jer ainda as camadas anteriores de escrita, Mesmio que se verificasse a auséncia de mengdes aos negotiatores na Alta Idade Média, a continuidade fundamental da loja parece-me demonstrada pelo facto de tanto em Spoletto, como em Metz, as lojas medievais que sobre- viveram se assemelharem bastante as de Pompeia, Trata-se de um vo com o balco voltado para a rua; logo ao lado, abre-se aentrada, munidade uma porta de madeira que éfechada inoite. Contfguo a este primeiro local, hé um outro nas traseiras, que serve de habitagio e por vezes, também, de oficina; a dividi-los nio existe geralmente uma divis6ria permanente ou uma parede, mas uma cortina que filtra a luz do dia. Este esquema de construgéo é particularmente adequado fs actividades amtesanais, em que a mercadoria nao se encontra pronta para venda, mas tem de ser reelaborada por encomends, Pelo contririo, quando o exerefcio seja destinado nao & produgio, 109 mas A distribuigdo de mercadorias acabadas ou de géneros que no exijam transformagao posterior (dos cereais as especiarias), predomina um outro tipo de loja, também com arcada, onde se encontram as mercadorias, mas que nfo se prolonga em habitagao ¢ oficina. Os grandes mercadores, que lidam com produtos valiosos ou remessas por atacado, vivem fora da loja, nas casas e paldcios, por vezes fortificados e com torredes, que edificaram como sede da sua familia e de todos os queaclaestio Bigados. P. Destas ripologias tao precisas emerge, previsivel eimplicita, acaracterizagao do mercado como uma imensidao de lojas onde houver um certo niimero deactividades, sejam artesanais, sejam apenas de distribuicdo, hd um mercado. E isso que tu queres dizer, e que também Pirenne pretendia dizer? R, Esse é apenas um dos aspectos da formagao de um mercado, mas é, disso no tenho davida, o aspecto decisivo e mais importante. Creio que também Pirenne pensaria assim, negando a legitimidade dos mercados estabelecidos pelos soberanos carolingios,e até do mercadode Aquisgrano fundado por Carlos Magno, do qual temos descrig&es pormenorizadas ¢ entusids- ticas, como a de um observador imparcial, o mercador Abraio de Jacob de Tortosa, um judeu do califado de Cérdova, Esta Gesconfianga, decerio exagerada, exprime no entanto um ‘conceito que partilho: néo é um decreto soberano que origina um mercado a partir do nada, mas sim 0 espontineo afluir de mercadores que confere’ significado concreto 4 noma legislativa. Por outro lado, os privilégios e a proteccio que o soberano possa assegurar a um determinado sitio, assim como 05 edificios ¢ os servigos que ai instaure (decesto niio sem contrapartidas fiscais), podem canalizar e promover este crescimento, A acco da autoridade piiblica revelar-se-4 cada vez mais racional ¢ fecunda na medida em que se for transferindo das mios de um longinquo soberano dindstico para as de uma comuna de mercadores ou, melhor ainda, para as de uma guilda ou corporagéo. P. No entanto, creio que nemmesmo Keutgen, quando em 1901 Publicava a sua classica recolha de cartas urbanas alemas, 110 ee eee eee EEE EE EEE EE EE Peet EEE Ee ete EEE EE tee Ee PEE Ere terete eee eter ee anna pretendia que um privilégio tenha fundado um mercado num deserto. O que talvez possa matizar os nossos jufzos e as nossas interpretagdes é 0 maior ou menor interésse pelo quadro politico-institucional em que um mercado nasce e funciona. ‘Mas agora é mais pertinente ver como esses estabelecimentos comerciais agem sobre a configuragdo urbana, R. Oprimeiro vestigio material 6a famosa cruz do mereado de Treviri, no século X, quase o arquétipo dos Rolandos que atrés ‘mencionei. Mase quisermos ouvir uma voz directa, poderemos ler a bela inscrigao colocada em 1111 na catedral de San Martino, em Luca: «a fim de que todos possam trocar, vender e comprar com confianga, todos os cambistas e merceeiros juraram... nio cometer furtos, fraudes ow falsificagdes na corte de San Martinoe nas casasde albergue (...).E, alémdisso, quem protege esta corte permanentemente tem a seu cargo que qualquer agravo seja corrigido. Aquele que chega, Ieia esta inscrigao (...) e nada teman. ‘Mas, na verdade, € no tecido urbano que se reflectem com maior eficécia os ediffcios, dentro dos quais regulamentos cada vez mais complexos disciplinam a condugio dos negécios. Quando se estabelecem no Levante, os mercadores italianos asseguram-se da disponibilidade dos edificios que consideram indispensaveis, e que uma férmula que depressa se tornou norma identifica como armazém, capela e banhos. Esta solugio arquitect6nica quase parece ser uma resposta & reputagdio que em Inglaterra deu aos tribunais mercantisa designagiode «corte dos pés poeirentos», ou a um texto francés dos tempos da primeira Cruzada, que chama poeirentos aos emigrados para as cidades. Por seu turno, os banhos remetem-nos para dois elementos que Pausénias enumerava os indispensaveis cidade da Antiguidade: o aqueduto e o gindsio, O segundo nao tem um correspondente exacto na urbanistica medieval, enquanto 0 primeiro se traduz em intimeras fontes, uma por quarteirio, bairro on paréquia, alimentadas por condutas subterrineas e, como tal, néo expostas as intempéries. A fortuna de muitas cidades dependeu, foi quase decidida, pela abundancia ou pela escasscz das aguas piblicas: a sua ulilizagdv para mdquinas industriais (moinhos de natureza varia, forjas, pisdes, serragdes, etc,), para lavagem dos tecidos, para curtimenta de peles esteve ql

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