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Noc6es sociais de infancia e desenvolvimento infant CLarice CoHN* resumo Esse artigo faz uma revisdo de textos antropoldgicos sobre a nogdo de pessva, com 0 intuito de averiguar seu rendimento para a com- preensio da concepgao social de infancia e do de- senvolvimento infantil. Embora apenas parte dos textos analisados tenha como tema principal a in- fancia, a autora busca indicagdes que sejam suges- tivas do modo como a sociedade tratada a conce- be. Na conclusio, reflete-se sobre como o estudo da pessoa pode auxiliar na busca da caracteriza~ do da infancia cm sua especificidade social. unitermos antropologia da crianga, socializa- Gio, nogio de pessoa. InTRODUGAO! A antropologia tem apenas recentemente se voltado de modo mais sistematico a andli- se da infancia em sociedades nao ocidentais. Na realidade, sempre houve estudos sobre a crianga, mas, & exceco da escola de cultura ¢ personalidade?, eles eram esparsos. Nos til- timos anos, porém, esses estudos tém crescido * Mestre em Antropologia Social pela USP e Pesquisado- ra do MARI ~ Grupo de Educagio Indigena/USP. 1, Agradego as sugestdes de Lux Vidal, Aracy Lopes da Sil- va, Beatrix Perrone-Moiés ¢ Cesar Gordon Junios isen- tando-os, como sempre, de quaisquer erros que por: ventura permanesam no texto, Agradego, ainda, 0 apoio do CNP eda Fapesp. Esse artigo € parte do Capftulo IL dda minha Dissertagao de Mestrado (Cohn, 2000). 2. Veja-se, para uma boa compilagio dos preceitos ¢ re- sultados dos trabalhos inseridos nessa escola antro- polégica, Barnouw (1967). abstract This paper review the anthropolo- gical literature about selfhood investigating whe- ther they allow the researcher to apprehend the social notion of childhood and child’s develop- ‘ment. Despite only some of the texts reviewed focus the issue of childhood, the author searches for some indications of how the society being analysed conceives it. The paper closes with a reflection about how the research of social notions of selfhood could be profitable to characterise child- hood and its specificity on a particular society. uniterms anthropology of children, sociali- sation, selfhood. em ntimero e gerado um debate interno, ¢ a antropologia parece ter despertado para essa nova problematica (Caputo, 1995). Os estudos sao de tipos variados: ha aque- Jes que reportam cenas do cotidiano de crian- cas em sociedades determinadas, suas intera- ges e 0 modo como outros reagem a suas ages para entender a especificidade do pro- cesso de desenvolvimento e aprendizado nes- sa sociedade (por exemplo, Briggs, 1998); hé os que se voltam para a especificidade da ex- periéncia da infancia em uma sociedade dada, como o de Pereira (1997); € ha 0 trabalho ain- da impar (salvo engano) de Christina Toren (1990), o qual, através de uma cuidadosa pes- quisa etnogréfica que revela as formas de so- ciabilidade em Fiji, trata do modo como a crianga apreende um conceito fundamental 4 | cuanice cons dessa sociabilidade, a hierarquia, e, a partir dele, sua construgao de um sentido para 0 mundo em que vive e 0 modo como seu enten- dimento difere daquele dos adultos. No entanto, nenhum desses trabalhos re- vela © conceito que a sociedade pesquisada utiliza para dar sentido & experiéncia particu- lar da infancia ¢ do proceso através do qual la se transforma em um adulto. Neste artigo busca-se refletir, a partir de uma revisao da investigag’o antropolégica sobre a Pessoa, como ela poderia, ao investigar as concep- g6es sobre a Pessoa e sua formagao, revelar as nogGes com queas sociedades tratadas ope- ram para dar sentido a experiéncia da infan- cia ¢ ao crescimento. A NOGAO DE PESSOA Foi Mauss quem primeiro chamou a aten- cao para o fato de que cada sociedade tem um modo especifico de pensar a relagao entre seu membro individual ¢ 0 todo que a confor- ma, demonstrando que 0 conceito ocidental de individuo foi historicamente construido. No Brasil, a partir do ensaio de Seeger, Da Matta ¢ Viveiros de Castro (1979), a nogao de pessoa € 0 idioma da corporalidade pas- sam a ser enfatizados nos estudos sobre as sociedades indigenas. Nesse cnsaio, os auto res realizam um balango do que havia sido realizado na pesquisa sobre as sociedades in- digenas das Terras Baixas sul-americanas, diagnosticando as dificuldades encontradas ~ devidas, a seu ver, a utilizagio de conceitos antropolégicos formulados para dar conta de outras realidades sociais—e propondo um ins- trumento alternativo de analise, a construgio social da pessoa ¢ a fabricacao de corpos. Esse texto tem sido considerado 0 marca- dor das analises contemporaneas das socieda- des indigenas. E um esforso de sistematiza- go que parte dos trabalhos que estavam sen- do feitos naquele momento, os quais indica- riam um amadurecimento da etnologia volta- da a essas sociedades que permitiria um des- locamento frente aos modelos formulados para dar conta de outros contextos sociais. Os autores desse trabalho estavam eles mesmos envolvidos nessa reformulagio: a andlise de Da Matta da sociedade Apinayé (1976) foi pautada pela “ideologia nativa”, e foi esta que lhe possibilitou esclarecer as chamadas “anomalias” que foram atribuidas 4 organi- zacio social desse povo a partir da divulga- gio dos trabalhos de Nimuendajt e sua expli- cagiio dos agrupamentos sociais pela descen- déncia, Em suma, foram as ideologias nati- vas de concepgio, e do que esse autor deno- minou “comunidade de substancia”, e sua re~ lagéo de oposicao complementar frente A nominagao e a transmissao de papé que deram a Da Matta a chave para a revi- sao do problema originado pela interpretagao de Nimuendajti e para sua superacao. Seeger, como vamos ver mais detalhadamente adian- te, voltou-se ao significado da ornamentagao corporal e as concepgdes sobre os sentidos (0 olfato, a visio e a audigao) e seu uso pelos Suyé para a classificagio das pessoas e para a reflexdo sobre a oposigo Natureza/Cultu- ra, Por seu lado, Eduardo Viveiros de Castro (1979) refletiu, a partir de suas pesquisas en. tre os Yawalapiti, sobre a fabricacio do cor- po no Alto Xingu. Para ele, essa fabricagao ganha importancia por ser 0 modo como os Yawalapiti concebem a formacao do corpo social, perceptivel em uma construgao que transcende a concepgao ¢ alastra-se a reclu- sdo € aos rituais funerdrios; ela é vista como uma “tecnologia do corpo” (idem: 42) e parte do processo de fabricagao de humanos. O trabalho posterior de Viveiros de Cas- tro (1986), voltado aos Araweté, aliado ao estudo de Manuela Carneiro da Cunha (1978), que o antecede e Ihe serve de contraponto, vai sociais, cadernos de campo +n. 9 + 2001 NOGOES SOCIAIS DE INFANCIA E DESENVOLVIMENTO INFANTHL | 15 dar nova dimensao as pesquisas sobre a pes- soa nas sociedades indigenas. Carneiro da Cunha faz. uma anilise da escatologia Krahé, através da qual discute a oposigao entre vivos € mortos, ¢ como esta permite uma reflexdo (c esse € 0 termo por ela escolhido para con- trapor-se a idéia de “reflexo”) sobre a socie- dade; mas também das relagdes de amizade formal e companheirismo, as quais, argumen- ta, possibilitam a “imagem de si”, a delimi- taco da pessoa. Diz ela: “A maioria dos que estudaram esta nogao de pessoa preocuparam-se em descrever lke os atributos ou os componentes explicitos, tais como almas muiltiplas, principios mais ou menos individuais etc., e fizeram valer sua diversidade, Mas, se a pessoa nao é uma no- ¢lio universal, se seus conteiidos diferem cultu- ralmente, no entanto, o problema de seus limi- tes, o problema da identidade, apresentam constantes que parecem decorrer de sua pré- pria natureza: poderiamos talvez resumi-las na dupla necessidade de reconhecer o ‘semelhan- te’ e de opor-se ao ‘contrério’ (idem: 89-90). E €isso 0 que significa, na sociedade Kraho, co companheirismo ¢ a amizade formal: o pri- meiro fornece ao individuo uma imagem es- pecular, enquanto o segundo Ihe fornece, como sugere a autora, uma imagem invertida, a possibilidade de oposig4o ao contrario. A anilise de Eduardo Viveiros de Castro seria mais voltada a primeira vertente mencio- nada na citagdo acima: a da diversidade so- cial da nogao de pessoa. Note-se que Goldman (1996), em uma argumentagao interessante, vé duas faces do ensaio de Mauss sobre a pes- soa: uma que é relativista, ¢ que busca sua especificidade social, e outra que é evolutiva (Goldman, 1996:88, passim). E a primeira que sera recuperada e desenvolvida pelos es- tudos que seguem a sugest’io de Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, e é essa que esse iiltimo autor explora em sua monografia so- artigos bre os Araweté, Essas andlises, porém, nao se bastam na constatagao e descri¢ao da Pessoa socialmente informada, mas refletem sobre sua relagio com a construgao de uma ima- gem de sociedade, sobre uma construgao na- tiva sobre a realidade social. O trabalho de Viveiros de Castro sobre os Araweté demons- tra que a morte é fundamental para a com- preensio tanto da Pessoa quanto da imagem de sociedade a ela ligada. A morte separa os componentes da pessoa que em vida se mistu- ram e, portanto, revela-os com agudeza; ¢ € nela que os Araweté situam a pessoa comple- ta, no “devir”, como diz o autor Desde entao, diversos trabalhos explora- ram e desenvolveram esses temas. No presen- te texto, ao fazer uma leitura de andi nogao de pessoa, busco os meios pelos quais clas apresentam, informam ow discutem 0 modo como as diversas sociedades elaboram tema da infncia, de sua especificidade e do desenvolvimento infantil. A grande maioria dessas andlises, de fato, ndo se demora nesse aspecto; vamos ver, porém, que é possivel re~ cuperar algumas reflexées interessantes. Antes de entrar, porém, nesses textos, vale lembrar que, além da nogao de individuo, ja se demonstrou que a concepgao de infancia atualmente vigente na sociedade ocidental € também produto de uma construgao hi ca, A classica analise de Philippe Ariés (1988) acompanha as mudangas da experiéncia e do conceito de vida familiar e de infancia na Historia européia, e sugere que as modifica Ges hist6ricas por elas sofridas sao interliga~ das, e que a escolarizagao tem nelas um pa- pel fundamental. es da Lori- Por OUTRAS PARAGENS: FILIPRNAS, INDONESIA E MALASIA Dentre os antropélogos americanos, Geertz estd entre 0s que levaram adiante os ensina- 16 | ctanice coms mentos de Mauss. Em seu conhecido artigo sobrea nogao de pessoa em Bali, Geertz (1978) explora a relagdo entre essa nogao, a tempo- ralidade e a “conduta”, ou seja, o comporta- mento socialmente aceito nas relagoes inter- pessoais € nos rituais, desenvolvendo o argu- mento de que a pessoa é definida em Bali por diversos meios (como nome, tecndnimos, at buigdes de status) que a localizam na socieda- de, mas que, interagindo com a temporalida- dee uma conduta marcada pelo que chama, seguindo Mead e Bateson, de “auséncia de climax” (idem: 267), torna-se “despersonali zante” (idem: 256). Sua anlise, pautada por essa relagao dos termos do que conceitua como um triangulo metaf6rico das nogdes de pes- soa, tempo e conduta, nao se demora, portan- to, na construgao da pessoa ao longo de sua vida. Porém, algumas indicacdes podem ser iradas de passagens do texto. Uma delas a identificagio da quarta ge- ragio ascendente a descendente, de modo que ambas compartilham da mesma categoria, e que explica, na sua argumentagio, o fato de o bisneto nao prestar respeito ritual ao bisa- vO, em contraste com o que fazem os outros jovens em relaco aos mais velhos, e ele mes- mo em relagao aos outros velhos. E interes- sante notar que, em trabalho anterior, comen- tando também Bali, Margaret Mead afirma que as almas renascem na mesma familia a cada quatro geracées, e que é tido como inapropriado que os bisavds estejam vivos a0 mesmo tempo que seus bisnetos. Para os bali- neses, uma pessoa morre muito cedo se nao chega a compartilhar do arroz (ou seja, se ndo chega a alimentar-se coletivamente, para além da amamentagao), mas muito tarde se chegar a ser contemporaneo de seu bisneto (Mead, 1955:40). Uma segunda indicacao é a reflexao sobre a maturidade, que é marcada em Bali pelo nascimento de um filho (que faz com que os pais passem a ser conhecidos por um tecndni- mo, “pai ou mae de X”, sendo até entao cha- mados por “nomes da ordem de nascimento”); se alguém atinge a maturidade sem ter filhos, permanece conceitualmente, para os baline- ses, uma crianga: “Isso nao significa, naturalmente, que tais pessoas sejam reduzidas, em termos sociolé- gicos (e muito menos psicoldgicos), a desem- penbarem o papel de crianca, pois sao acei- tos pelos consdcios como adultos, embora incompletos. O fato de nao ter filhos, porém, é um grande empecilho para quem almeja 0 poder local e o prestigio |...]” (Geertz 197! 236, nota 6). No entanto, mesmo essas indicagées nao oferecem muito mais que as posigdes ocupa- das por individuos na sociedade e seus signifi- cados. E nao poderia ser diferente, j4 que, como vimos, o conceito de pessoa que Geertz se esforca por deslindar é aquele que surge das classificagdes sociais dos individuos, dis- tinguiveis nos diversos niveis das “ordens sim- bolicas da definigao-pessoa” (idem: 234). Michelle Rosaldo (1993), em seu trabalho sobre as nogées Hongot de pessoa e socieda- de, atribui como uma das inspiragdes para sua anilise 0 artigo de Geertz que acabamos de ver, mas de fato sua abordagem traz ganhos significativos eni relagio a sua fonte inspira- dora, a0 refletir sobre o que constitui a pessoa para este povo filipino e sua construgao conti- nua ao longo da vida, e como ela informa o conceito Hongot de sociedade e das relagdes interpessoais. Sua andlise tem inicio no modo como 0s Ilongot conceituam a especificidade dos seres humanos, ou seja, pela intencionali- dade do coracao, o qual é, para eles, “além de um 6rgio (...), uma fonte da ago e da consciéncia [awareness], ¢ um local da vitali- dade e da vontade” (idem: 36). Se 0 coragio é comum a humanos, animais e plantas, ele é tinico em sua intencionalidade ~ por ele os cadernos de campo +n. 9 + 2001 NogOes SOCIAS DE NFANCIA EDesenvoLvIAaNro mxtanr | 17 humanos (¢ apenas eles) sentem, pensam movem-se com a consciéncia da respiracao. O coragio diferencia-se, individualiza-se, pela aquisi¢ao, ao longo do tempo, do conhecimen- to (beya) que nasce da experiéncia e desen- volve-se ao longo da vida (idem: 38). Liga-se ainda A paixdo (liget, também glosado como “energia” ou “raiva”), gerada na pessoa ¢ que informa sobre sua situacao frente a0 mun- do envolvente (idem: 43), sendo capaz, por- tanto, de indicar seja conformidade, seja des- contentamento e desagrado. As paixdes sio essenciais para mover os humans, sao criati- vas e permitem o trabalho e as ages. No en- tanto, elas podem ser disruptivas, e devem ser mediadas pelo conhecimento ~ 0 qual s6 é adquirido pela experiéncia. Esses dois conceitos, que a autora argu- menta terem sido escolhidos por uma énfase émica, dao sentido as relagdes entre os géneros eas idades. Liget, as paixdes, enfraquece com a passagem da vida, ¢ csté em seu auge na puberdade; beya, 0 conhecimento, é ao con- trario, fortalecido ao longo da vida. Os llongot dizem que os homens tém mais beya que as mulheres, j4 que se aventuram pelo desconhe- cido, enquanto as mulheres, que permanecem em casa em respeito a regra de residéncia uxo- rilocal, nao vao mais longe que suas rogas, espaco ja domesticado pelo trabalho de derru- bada e preparacéo do terreno dos homens. Rosaldo sugere, porém, que, se o equilibrio entre paixGes e conhecimento distinguem as pessoas de acordo com o género, ele leva tam- bém a uma complementaridade e interdepen- déncia, j4 que nunca se realiza plenamente: 60s seres humanos so sempre incompletos; quando [hes sobram paixdes, como é epitoma- do pela adolescéncia masculina, na qual os rapazes movimentam-se pelas regides conhe- cidas e desconhecidas em busca de uma espo- sa e de cabecas (0s Hongot so um povo caca- dor de cabecas ea maioria dos homens que ja artigos matou alguém na caga das cabegas, esclarece a autora, o fez antes de casar), falta-Ihes co- nhecimento (¢ os rapazes, em sua busca de es- posas e cabecas, devem ser auxiliados e enca- minhados pelo conhecimento dos mais velhos); a0 contrério, quando atingem um grande co- nhecimento, na idade madura, ja Ihes faltam paixo e energia. Assim, também, a realiza- cao do liget masculino e feminino, seu traba- Iho, a caga e a agricultura, é complementar. Rosaldo se debruca, portanto, sobre este equilibrio precério entre paixdes ¢ conheci- mento ao longo da vida. Neste percurso, in- forma-nos sobre como a infancia é concebida pelos longot. Para eles, o crescimento em di rego maturidade é marcado pela passagem da auséncia de conhecimento, quando os be- bés devem ser comandados e consolados* pe- Jos mais velhos, a um entendimento e respeito a esses, que faz. com que os comandos sejam obedecidos, ¢ nao apenas seguidos. Em uma fase de transigao, viilida especialmente para 0s homens, pelo deslocamento da experiéncia nica do comando e da obediéncia para o aprendizado entre si, ou seja, no grupo de peers. O desenvolvimento pode também ser visto através do progresso da consciéncia [awareness] (idem: 66), pelo qual o individuo controla suas paixées sem necessidade da in- terferéncia de outro. Essa andlise, centrada na especificidade da concepgao de pessoa entre os Hlongot, basea- da nesse equilfbrio sempre precério de conhe~ cimentos e paixées na intencionalidade das agées, possibilita ndo sé uma interpretagao da interago e das formas de vida social, como do modo pelo qual esse povo apreende € pensa a especificidade da infancia e do de- senvolvimento infantil. Esse tiltimo ganha re- 3. © consolo dos mais velhos é especialmente importante porque a raiva pode ocasionas, nos bebés, a perda do coragio; nao sabendo ainda como controli-la, eles dependem dos mais velhos para os consolarem, 18 | cLARICE COnN levancia, ainda, na sua insergao, que a auto- ra demonstra, em um processo continuo de desenvolvimento ¢ vivéncia da relacao entre as paixdes ¢ 0 conhecimento. Na anilise do conceito de pessoa das Chewong, grupo étnico da Malésia, Signe Howell (1988) argumenta que é essencial re- cuperar a particularidade da infancia nesse povo e como ele a entende, ja que € [...] enfatizando como as criangas falham em adequar-se a certos padres, [que] os Chewong expressam as caracteristicas da hu- manidade nao em termos positivos, mas ne- gativos” (idem: 148, traducao minha). Portanto, os Chewong oporiam a infancia 4 humanidade, a qual é atributo dos adultos, e €como a transformagao de crian¢a em Hu- mano que é visto, nesse texto, o desenvolvi- mento infantil. Howell argumenta que hé na cosmologia Chewong uma divisdo entre huma- nos e seres sobre-humanos que é vivida cotidia- namente, em uma interagao continua. Porém, a transformagio de criangas em humanos pode, em alguns casos, como os dos grandes xamis, ser continuada, culminando na trans- formacao de si em um ser sobre-humano. As relagdes entre criangas e humanos e humanos (adultos) ¢ seres sobre-humanos é de mesma ordem: 0 primeiro termo é considerado mais vulneravel que o segundo, mas pode, com a aquisigao de conhecimento (mediado sempre pelo segundo termo), transformar-se nele. Essa observagio ¢ interessante porque sugere que: “[..] aprender, na visio dos Chewong, é uum proceso que continua por toda a vida, alcangando uma concluséo apenas ilusdria quando da aquisi¢ao da bumanidade [buman- hood)” (idem: 151, tradugao minha). £ 0 conhecimento, portanto, que diferen- cia os tipos de seres, e permite a transforma- do de um em outro sempré na mesma dire- do, do acréscimo de conhecimentos a huma- nidade e, no caso dos grandes xamfs, 4 so- bre-humanidade'. A aquisi¢ao de conhecimen- tos € associada ao crescimento fisico ea uma gradativa assimilacaio dos elementos da pes- soa (0 corpo, 0 principio vital, o cheiro, o fi- gado e os olhos, além do nome pessoal, que marca a incorporagao da crianga a socieda- de) para operar a transformagdo em humano. A assimilagao dos elementos da pessoa refe~ re-se ao processo pelo qual passa a crianca, concebida como nao os tendo ainda fortes, mas principalmente como tendo-os ainda va- gamente associados. O crescimento refere-se portanto a fixacao desses elementos da pes- soa, a criagao de relagdes estdveis e ao esta- belecimento de fronteiras entre eles (idem: 153). O atributo da humanidade é alcangado quando nasce o primeiro filho ~ ocasiio em que se considera 0 corpo dos pais plenamente desenvolvido e eles demonstram sua capaci- dade reprodutiva. Esse texto, todo ele voltado ao modo como a concepgdo de infncia e de pessoa explicam- se mutuamente, é especialmente interessante também por acrescentar a essas concepsdes a nogiio de conhecimento e da defini¢ao de hu- manidade, 0 que faz dele uma interpretagio abrangente ¢ reveladora dos Chewong. Os estudos da infancia na antropologia sao ra~ ros, ¢, dentre eles, poucos apresentam uma sistematizacao tio inchusiva como essa. 4. Embora o aprendizado seja, para os Chewong, essen- cial na transformacao das criancas em humanos, Howell afirma nfo haver, entre els, uma formalizagio do ensi- no; a0 contriro, eles acreditam que deve partir do individuo a iniciativa de aprendes,c isso se faz a depen der de uma caractrisica pessoal, que Ihe ¢ dada pelo figado, o qual pode ser mais ou menos enerpético, mais cou menos timido, caracteristica que € valorizada por esse povo ¢ vista como distintiva de sua identidade. Do mesmo modo, a continuidade do processo que leva a teansformagio em ser sobre-humano depende da ini ciativa pessoal. cadernos de campo + n. 9 + 2001 NOGOES SOCIAIS DE INFANCIA DESENVOLVIMENTO INeaNTL | 19 SOBRE AS SOCIEDADES INDIGENAS DAS TERRAS BAIXAS SUL-AMERICANAS A busca de informagées contidas em ané- lises ernol6gicas sobre nogdes suciais de in- fancia pode ser iniciada em um perfodo ante- rior a formulagao da questéo da nogao de pessoa como um meio privilegiado de desven- dar os sentidos e logicas das sociedades indi- genas brasileiras — quando Egon Schaden (1945, 1976), pesquisando a sociedade Gua- rani, aborda 0 modo como eles pensam suas criangas. Registre-se aqui que esse autor é um_ pioneiro das reflexdes sobre a infancia nas sociedades indigenas brasileiras, em um mo- mento em que essa questo ndo costumava ser elaborada pela antropologia. Mas em seu estudo sobre a cultura desse povo que dis- cute sua maneira de entender e interagir com suas criangas. Ele identifica, entre os aspectos fundamentais da cultura guarani, “o respeito pela personalidade humana e a nogdo de que esta se desenvolve livre e independente em cada individuo, sem que haja possibilidade de interferir de maneira decisiva no proces- so” (Schaden, 1962:67). Os pais dedicam-se a0 crescimento fisico saudavel da crianga, mas nao ao molde de sua “alma”, que jé nasce pronta (idem: 69). Entre os Guarani, portan- to, nao existiria um esforco para a formacdo do carater da crianga, 0 que se explica pela concepgio de alma e reencarnago, que esta- belece que o carater da pessoa é inato. As criangas seriam muito independentes € respei- tadas ~ para os Nandeva, o autor comenta: “Nem todos, mas muitos membros do gru- po, tém almas de pessoas defuntas e, numa ceriménia que se realiza pouco apés o nasci- mento, o fianderd (sacerdote) identifica a alma espiritual do recém-nascido, entre outras coi- sas, para saber o nome que se the deve dar. Ora, é bem possivel que o bebé tenba a alma (ou melhor, as almas) de um ilustre e compe- artigos tente fianderii falecido ou de algum velho que todos hajam conhecido como pessoa sabia, correta ¢ respeitavel. Singular a pretensao de quem quisesse dar-the educagao moral” (Scha- den, 1976: 25). Embora a concepgao de “alma”, de acor- do com Schaden, seja distinta para os diver- sos grupos Guarani, além de variar de acordo com interpretacées individuais, todos concor- dam quanto a existéncia de sua pluralidade, uma(s) ligada(s) as manifestacdes espirituais ¢ outra(s) as vitais; diferencia-se sempre aquela que vai para o céu depois da morte e aquela que fica vagando na terra, e que € temida. A primeira é designada pelo mesmo termo que significa linguagem (ayvié) ou fala (fe?), € indica a capacidade de comunicagao, assim como sua importéncia para a definigao de um ser social; a segunda é chamada atsyygud. Ambas nascem com a pessoa, mas a atsyygud € ainda pequena quando do nascimento, ¢ desenvolve-se de acordo com as ages de quem a porta, tornando-se mais perigosa e assusta~ dora quando pertencente a pessoas lembradas como “brigdes” ou “valentdes”. Vé-se, portanto, que, aqui, embora nao de modo sistematizado, jé estavam apresentadas as condigées necessérias para uma andlise da noo de pessoa: seus elementos constitutivos € a relacio entre‘eles. De modo inaugural e que passou despercebido, Schaden desenvol- ve sua reflexao voltando-se a questo de como os elementos constitutivos da pessoa apresen- tam-se na infancia e modelam as atitudes so- ciais frente a crianga. Ainda um pouco antes da formalizagao dos estudos da nogao de pessoa em relacio a es- sas sociedades, que localizamos no artigo so- bre sua construgao social, deve-se mencionar as reflexes imediatamente anteriores a ela e que a informam. Trata-se dos estudos Jé no Ambito do “Harvard Central-Brazil Project” (HCBP), no qual se realizou o que seus parti- 20 | cianice con cipantes denominavam uma comparagao con- trolada entre diversas sociedades do tronco lingiifstico Macro-Jé, e a partir dos quais teve ago meto- dolégica e analitica das “ideologias nativas” nas interpretagdes desses povos. Neles, a pessoa foi definida como uma das partes constituintes do dualismo caracteristi- inicio tanto o debate como a uti co da percepgao desses povos do cosmos e da sociedade, realizando-se na oposi¢iio comple- mentar do corpo e do nome; a coexisténcia dos quais em um mesmo individuo seria a condigao para torné-lo pleno ¢ completo. Um recém-nascido, ainda nao nominado, nao é ainda uma pessoa completa, e, se morrer, nao receberd um funeral; ao contrario, os mortos sio fortemente contrapostos aos vivos por te- rem perdido parte do que constitui a pessoa, 0 corpo, enquanto seu nome permaneceré em seu(s) nominado(s). Mas, desde o momento em que recebe um nome, mesmo que ainda bebé, a pessoa ja é considerada “plena” O texto que melhor expée essa questo é aquele em que Melati apresenta 0 par nomi- nador/genitor (e, portanto, nome/corpo) como um dos opostos complementares a ser acres- centado lista do dualismo krahé. A partir da regra de que o nominador ¢ o genitor de um individuo nao podem coincidir na mesma pessoa, ou seja, de que quem dé 0 corpo nao da o nome, 0 autor conclui que a transmissao de nomes, ao definir os papéis sociais de um individuo, concede-lhe também um persona- gem que esse individuo perpetua no tempo, sendo “como uma forma figurada de procria~ 40”, ja que, entre os Krahé, sugere 0 autor, “a existéncia dos organismos nao teria razio de ser, se nao viessem encarnar um persona- gem” (Melatti, 1976146). Se € apenas quan- do o personagem se acresce ao corpo que a pessoa se completa, a transmissio do nome no tem como conseqiiéncia a replicagao da pessoa. Citando um informante, que diz que seu nominado é “quase a minha pessoa”, ‘Melatti comenta sobre a felicidade da expres- sio escolhida por ele: “Na sociedade Krabé, |...) os individuos portadores do mesmo nome pessoal tém uma parte razodvel de sex comportamento previs- to por uma mesma rede de relacdes pessoais. Suas pessoas s6 nao coincidem inteiramente porque o nome pessoal nao é transmitido com todas as relagdes sociais, mas apenas uma parte delas: 0 nome pessoal néo prevé quem deve ser o genitor de seu portador, nem serve de critério de filiacao a todos os tipos de me- tades e grupos nem transmite todos os lacos de parentesco do nominador. Por isso, os por- tadores dos mesmos nomes sao quase a mes- ma pessoa, mas nunca a mesma pessoa” (idem: 146). No entanto, a reflexio de Melatti pauta- se pela distingaio entre ser biol6gico e ser so- cial que Goldman (1996:97)° sugere existir na a antropologia social britanica a partir de Radcliffe-Brown. De fato, Manuela Carneiro da Cunha (1986) vé a pessoa krahé como ten- do origem, para além do dualismo pautado nessa distingdo, na relagao de amizade for- mal, a qual, por ser uma inversdo do sujeito, atribuithe uma dindmica prépria na condi- cdo de sujeito auténomo. Sendo assim, a pes- soa krahé surgitia no da complementarida- de entre o corpo e 0 nome, mas de uma insti- tuig&io que nao se relaciona a nenhum deles (ou, argumenta Carneiro da Cunha, relacio- na-se ao nome apenas secundariamente), a de amizade formal. Nesses casos, porém, embo- ra tenhamos um debate pautado pela andlise das concepgées nativas, temos poucas indica- Ges sobre como a nogao de pessoa reflete-se na de infancia. 5. De fato, esse problema jd havia sido examinado e criti ccado em Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979), cadernos de campo +n. 9 + 2001 Em um trabalho posterior ao HCBP, An- thony Seeger se debruca sobre a relagio entre Natureza e Cultura tal como concebida pelos Suyé, tendo-a como distingaio fundamental e basica na formagao da cosmologia desse povo, argumentando, no entanto, que ela ndo con- forma uma oposigao em colunas, mas uma que comporta gradagGes entre os termos — as quais cle aborda tendo como referéncia uma classificacao émica pelo cheiro. Assim, hé 0 mais natural (os animais de cheiro forte) € 0 mais social (0s iniciados vivendo na Casa dos Homens, sem cheiro), sendo o sexo feminino classificado em contexto, podendo, portanto, ser considerado tanto “natural” quanto “cultu- ral”® (idem: 22), e as pessoas classificadas em gradagao de acordo com idade e sexo. Essa gradacdo seria, portanto, especialmente signi- ficativa na classificagao das pessoas ao longo de seu ciclo de vida, marcando-as de acordo com sua ligagao com “natureza” ou “cultura” Além da classificagdo em uma gradaga0 natureza-cultura das pessoas, Seeger explora © significado dos ornamentos corporais na socializagao, marcando assim o desenvolvi- mento da pessoa, da infancia & idade adulta, de acordo com sua participagao na vida social ¢ ritual. Entre os Suy4, os ornamentos corpo- ios privilegiados de sua identi- dade, utilizados na diferenciago com outros grupos étnicos; mas eles também diferenciam os membros da sociedade entre si a partir da idade e do sexo, e de acordo com expectati- vas sociais ligadas ao género e a idade: “Os ornamentos corporais sdo importan- tes também no interior da sociedade porque eles marcam a entrada em determinados gru- pos sociais. As criancas, de quem ndo se espe- 1a sejam bons ouvintes ou oradores, nao usam rais so ini 6. Como 0 sio, als, todas as coisas ~ tudo pode ser classificado como natueal ou cultural em contexto, € natureza e cultura sio principios e no entidades con- cretas (Seeger, 1981:34). artigos adornos labiais ou auriculares, As mulheres depois da puberdade e os homens jovens, de- pois da puberdade mas antes de entrar na casa dos homens [que usam adornos auriculares], devem ouvir muito, mas nao se ocupam da oratéria on dos cantos. Depois de sua inicia- gio e da colocagao de seus discos labiais, os homens jovens devem cantar todo 0 tempo. Quando tém filbos, comecam a fazer a orato- ria. Quando envelhecem, o de namentos muda e eles assumem diferentes papéis. Os graus de socializagao no ciclo de vida sao marcados pela socializagao de cer tas partes do corpo por operaco ou ornamen- taco” (idem: 82, traducio minha). Ambos os trabalhos de Seeger (1980, 1981) demonstram como as pessoas sao classifica- das pelos Suya de acordo com os sentidos e as faculdades, ou seja, sua habilidade auditiva, orat6ria e sua visdo (esta ultima, que nao re- cebe ornamentacées especiais, estaria asso- mn de seus or- ciada, para os Suya, av assucial). Seeger uo trata da concepgao de pessoa, mas niio é difi- cil perceber que sua andlise volta-se a uma busca de como as diversas capa manas sao utilizadas pelos Suy4 para pensar tanto sua especificidade enquanto grupo étni- co, quanto os individuos que o compéem e, lades hu- portanto, a fabricagao de corpos’, A monografia de Eduardo Viveiros de Cas- tro (1986) sobre os Araweté, que vimos ser bastante pautada pela questo da nocao de pessoa, é complexa e nao se refere especial- mente & crianga; porém, ela apresenta o ciclo 7. Seeger, porém, no explora o mado como esse modelo classifcatrio opera na earacterizagio da infincia entre 03 Suyé, o que elaboro para os Xikrin (Cohn, 2000); & época, ele buscava refletic sobre a proximidade dessa classiticaglo entee esses dois grupos, tomando como referéncia os Kayapé, ambos Jé setentrionas, mas dis punha de poucos dados. A pesquisa nos Xikrin, subgeupo Kayapé, focada no modo como eles definem 2 infncia e o crescimento, permite comparar 0 modo como um mesmo modelo opera nesas duas sociedades. 22 | cuarice coun de vida ¢ fornece algumas informagées fun- damentais sobre a formagao da pessoa desde a concepgao. Sao os homens, através do sé- men, que dao origem a crianga; no sémen es- iv “todos os componentes potenciais da pes- soa” (idem: 438), das substancias corporais ao principio vital. Porém, o autor nota a difi- culdade de esclarecer o papel da mulher nesse processo: concebida como receptadora, ela Ihe parece adquirir um status de transformadora que ganha peso com a énfase da matrilaterali- dade na definigao da unidade do grupo de ir- mios. A vulnerabilidade do principio vital, pouco fixo até os 4 anos, perfodo em que a ctianga recebe tratamentos xamanicos, indica que a pessoa & concebida nessa fase como nfo estando “integralmente estabilizada” (idem: 449-150). A humanidade da erianga, prosse- gue o autor, relaciona-se com sua conscién- cia, que se manifesta ainda antes da aquisi- 40 da habilidade lingiifstica verbal, quando cla comega a responder a estimulos externos. O autor comenta ainda a pouca énfase na transigGo e nas passagens, e a continuidade da formago do corpo da menina em sua ini- ciagao sexual, quando € “modelada” pelos homens e cresce pela “alimentacao seminal” (idem: 456). Porém, é na sua andlise mais ampla da concepgao de pessoa Araweté, a qual ganha sentido especialmente frente & morte, que 0 autor nos fornece as reflexdes mais ricas do modo como os Araweté pensam a especificidade da infancia, No céu dos Araweté nao hi criangas, a no ser os filhos dos mortos ld nascidos (idem: 560, nota 62), € os viventes se dizem criangas em relagio aos Ma’i, os deuses canibais. Vi- veiros de Castro apresenta a seguinte inter pretacio dessas afirmages: para ele, os vi- ventes seriam “como criangas”, ou seja, seres incompletos (idem: 195, nota 10). Assim, tor- na-se clara a idéia de que os Araweté, seres incompletos quando viventes, que se comple- tam ao tornarem-se eles mesmos deuses cani bais, tornam-se também adultos no céu, Tal- vez se pudesse dizer, entdo, que os Araweté anseiam por um “devir adulto”. Por dltimo, vejamos a anélise de Joanna Overing sobre os Piaroa da Venezuela, Publi- cado na mesma coletanea em que se encontra 0 texto de Howell sobre os Chewong visto acima e que retine, de modo pioneiro, anélises antropolégicas do desenvolvimento infantil, 0 texto de Overing trata também do éresci- mento e da aquisic¢ao da sociabilidade, tendo como pano de fundo a nogao de pessoa Piaroa, suas condigdes de realizagdo e manifestagoe: Para os Piaroa, os humanos distinguem-se dos animais ¢ dos espiritos por terem simulta- rneamente uma “vida do pensamento” (ta’kiva- rii) ¢ uma “vida dos sentidos” (kdkwd) — os es- piritos possuem apenas a primeira; os animais, a segunda. A “vida do pensamento”, por sua vez, desdobra-se e pressupée o desenvolvimen- to de dois outros atributos: a capacidade, ha bilidadee conhecimento dos costumes e de sua realizagdo ~ a lingua, as normas sociais, 0 processamento dos alimentos, a tecnologia e 08 rituais (ta’kwvanya)s e a intencionalidade e a motivagao para sua realizacao, a conscién- cia e sua compreensio (ta’kakomend). Todo o aprendizado formalizado deve comegar pela svontade e responsabilidade, ta’kakomend, e prosseguir com a capacitagao eo conhecimento da cultura, ta’kwanya. O conhecimento é trazido pelo xama (ruiwang, glosado como “wizard”, mago, mas, também, feiticeiro, curador) do exterior da sociedade, © os Piaroa, como a autora depreende dos mitos, consideram-no perigoso e disruptivo. realiza 0 ensino for- Assim, uma cerimé: mal, pelo ruivang, da responsabilidade e da vontade para criangas de 6 ou 7 anos, 0 que ilitara a “vida do pensamento” ¢ a aquisigdo das habilidades necessarias para a as possi ago cultural. Esse ensino inclui a narrativa cadernos de campo +n. 9 + 2001 Nogots SOCIAS DE INFANGIA DESENVOLVIMENTO INFANT. | 23 de mitos, que a autora sugere tém uma atua- cao por si pedagégica, o parentesco ¢ os mo- dos adequados de interago pessoal. A respon- sabilidade, portanto, é condigao basica para a aquisig¢ao dos conhecimentos culturais, vis- tos como perigosos e desestabilizadores*. O texto acompanha o crescimento e o de- senvolvimento infantil, mas nos interessa aqui, mais do que resumir os diversos t6picos apre- sentados, recuperar o que a autora revela so- bre a concepeao de infancia Piaroa através de sua nogao de pessoa e seu desenvolvimento, cujas condigdes essenciais j4 foram mencio- nadas. Para os Piaroa, a pessoa deve ser ca- paz de controlar a “vida dos sentidos” e a “vida do pensamento” e realizar 0 equilibrio entre elas. Adquirindo moderagio em ambas, ela pode alcangar a tranqiiilidade que é defi- nidora da boa personalidade e da boa vida social. Em uma sociedade sem mecanismos de coergao que sejam externos aos individuos, Overing sugere que o autocontrole é essen- cial, ¢ este € alcangado, afirmam os Piaroa, pela tranqiiilidade e autonomia pessoal. Mas, e principalmente, os Piaroa conside- ram 0 aprendizado como um processo de domesticagio, 0 que é indicado pelo fato de as criangas, até as primeiras “ligdes de sabe- doria”, serem referidas por um termo que sig- nifica filhote de animais ~a identificagao com 08 quais sugere que elas so pensadas como tendo apenas “vida dos sentidos”, e ainda nfo 8. Os Piaroa passario depois por mais uma tnica cerimé- nia voltada ao ensino da sociabilidade, da responsabi- lidade ¢ das capacidades culeurais. As mulheres, na puberdade, recebem as “ligées de sabedoria” para a fertilidade, abrangendo tanto a procriagZo como o tra balho na roca; as “ligées de sabedoria” dos rapazes voltam-se 3 caga e participagao em rcuais caletivas (os Praroa dizem que a fertilidade € 0 a’kiva, os pensamen- tos da mulher, assim como a eaga ea feitigaria sio 0 dos homens (Overing, 1988184), Os homens podem esco- Iher passar por novas ceriménias a0 longo da vida, especialmente aquela para o aprendizado da “sabedo- sia", para se tornar ele mesmo um “wizard”. artigos aptas para a vida social (idem: 176) ~ ¢ cha- madas pelo nome, o qual se liga 4 alma que o “sabio” Ihes forneceu no nascimento e que € considerado um poder privado e anti-social (idem; 189). Os clementos da pessoa, como a alma nomeada, mas também a fertilidade, a “inteligéncia” ¢ a “vida dos sentidos”, so domesticados; assim, também, o perigoso co- nhecimento que se adquire ao longo da vida deve ser mediado pela responsabilidade que, como vimos, deve condicionar 0 aprendiza- do. O sucesso na domesticacao dos elementos que constituem a pessoa é demonstrado pelo comportamento controlado e moderado. Por tiltimo, uma indicagio sobre a corpo- ralidade e sua relagio com a aquisigio de conhecimentos. Estes, como vimos, so consi- derados como tendo um poder desestabiliza- dor, o que leva a concepgio Piaroa de que o aprendizado de capacidades culturais deva ser precedido daquele da responsabilidade, que permite scu controle. O conhecimento é tra- zido a sociedade pelo “sabio” como contas que so internalizadas pelo aprendiz. Assim, © aprendizado forma as “contas da vida” (idem: 183), que o indi terior de seu corpo, € que possibilita, como vimos, a existéncia social. A ornamenta¢ao luo coleciona no in- corporal, nessa sociedade, informa sobre a quanti individuo internalizou, marcando, desse modo, sua socializacao. lade e 0 tipo de conhecimentos que 0 CONCLUSOES: O RENDIMENTO DA NOGAO DE PESSOA EM ANALISES SOBRE A CONCEPGAO SOCIAL DE IN- FANCIA E DESENVOLVIMENTO INFANTIL Os estudos de nogao de pessoa, como a selegéo de textos aqui comentados pretendeu mostrar, fornecem indicagdes preciosas para a compreensio da concepgao socialmente in- formada da infancia. Eles permitem entender 24 | ctanice con qual a definigo social de humanidade, quais 08 processos necessarios para adquirir o atri- buto de ser humano, como a sociedade inter~ ‘vém nesses processos ¢ como 0 conjunto des- sas varidveis atua para defini a infancia e, em alguns casos, 0s estagios que a conforma, fornecendo pistas que aparecem como uma solugao de questdes j4 diagnosticadas como problematicas no esforgo de revisao que vem sendo realizada do modo como a infancia tem sido tratada na antropologia. As andlises de Rosaldo e Howell demons- tram que essa abordagem pode ser muito va~ liosa para estudos antropolégicos voltados as mais diversas sociedades. Porém, ao levar em conta a proposta de Seeger, Da Matta Vi- veiros de Castro, que se mostrou muito fruti- fera nas pesquisas realizadas desde entdo, pode-se supor que ela seja especialmente ren- tavel para as andlises da concepgao de infan- cia das sociedades indigenas das Terras Bai- xas sul-americanas. O texto de Overing é, nesse sentido, revelador, e clama por uma continuidade’. Ressalte-se ainda que esse tipo de anélise fornece ao pesquisador o modo como a pré- pria sociedade concebe o sujeito pleno, aque- le que esta plenamente socializado, resolven- do uma questo sempre problematica nos estu- dos anteriores, o de estabelecer previamente © produto final do processo de socializagio, 0 de tratar a crianca como um ser incompleto, que se torna, gradualmente, um adulto ja co- nhecido de antemao pelo pesquisador. Essa postura gerou uma espécie de vicio no modo como antropélogos olhavam as criangas, e suas descrigdes freqiientemente se assemelha- vam a uma infancia indigena genérica; por ‘outre lado, suas andlises do processo de inser- 9. Que procurei das, seguindo, porém, outras pistas, em ‘minha analise de como os Xikrin pensam e vivenciam @ Infancia, o crescimento e 0 aprendizado (Cohn, 2000). go na vida social acabavam sempre por rea- firmar, de modo acritico, a experiéncia da infancia como uma participacao gradual na sociedade, na qual a crianga iria aprendendo por imitagio. Se esse retrato nfo é falso, ele nada indica, porém, do que seja particular a cada experiéncia social da inféncia. Essa ques- tdo ja foi diagnosticada por alguns autores, que se esforcam por superé-la, como Schild- krout (1978), que demonstra que a infancia é, para os Hausa, nao quantitativamente diver- sa da idade adulta (em conhecimentos mensu- raveis, por exemplo), nem um ensaio da vida adulta, mas qualitativamente diferente, pos- sibilitando uma vivéncia da sociedade que nto poderd ser continuada na idade adulta, 0 que quer dizer, permitindo as criangas um conhe- cimento sobre sua sociedade que ela nao teria como formar na idade adulta, na qual os es- pacos de cada género sao rigidamente dos"®, Assim, abordar o modo como a socie~ dade entende a Pessoa e sna formacio pode evar a uma compreensio do modo como ela mesmo define a infancia, e a um melhor en- tendimento da singularidade da experiéncia da infancia em cada sociedade. Livra ainda os estudos antropolégicos de uma dificuldade inerente as andlises de de- senvolvimento cognitivo; a de pautd-las pre- vyiamente por té5rias ¢ modelos formulados para dar conta de nossa propria sociedade. Essa dificuldade pode ser percebida em um sensivel estudo com criangas Hausa (Levinne e Price-Williams, 1974), em que se analisa seu aprendizado dos termos de parentesco, tendo como referéncia os estudos de desen- 10, Schildkrour, cujo texto poderia estar resenhado aqui com mais vagat, demonstra que a “modestia” que defi ne 0 comportamento de género é pensado pelos Hausa como sendo desenvolvido pela crianga ao longo tem 0, € que no se 6 cobra delas em boa parte da ina cia, quando andam por todas as casas e pelos ambien tes masculino e feminino. cadernos de campo +n. 8 + 2001 NOGOES SOCIAIS DE INFANCIA E DESENVOLVIMENTO INFANTIL. | 25 volvimento cognitivo. A sensibilidade da ané- lise esta nas adaptagdes que foi capaz de fa- zer no instrumento, um questionario estrutu- rado por Piaget para uma pesquisa na Suica e da recuperagao de dados culturais para a andlise de seu resultado. Porém, essa adapta- ao, parece-me, nao basta para torné-lo um instrumento de fato voltado a realidades so- ciais distintas, e permanecem na andlise ques- tes que so pautadas para dar conta do de- senvolvimento cognitivo na sociedade ociden- tal, buscando certificar-se da sua universali- dade. Nesse sentido, ele é mais interessante para uma avaliagao da possibilidade de ge- neralizagao da teoria do desenvolvimento cognitivo que a antropologia e ao estudo das apropriagées simbélicas dos dados fisiol6gi- cos e naturais, pela andlise da passagem da infancia a idade adulta em uma sociedade dada a partir do modo como ela mesma a concebe, 0 que pode, novamente, ser indica~ do por um estudo da Pessoa. A nogao de pessoa nao é, portanto, o tni- co ponto de partida possivel para uma anéli- se da infancia pela antropologia. O primoro- so trabalho de Toren acima mencionado, uma excelente articulagao de instrumentos e abor- dagens da psicologia e da antropologia, é a melhor prova disso. As andlises do cotidiano das criangas em diversas sociedades também tém-se mostrado valiosas, e € necessario acres- centar, ainda, os estudos de processos educa- tivos que se conformam em estratégias cultu- ralmente especificas de formagao de membros de uma sociedade. Mas, se a questo é enten- der como uma sociedade dada pensa a infan- cia, sua diferenga em relacao a idade adulta, a maturidade e o proceso da formagio de seus membros, é ela quem fornece as melho- res indicagoes. artigos BIBLIOGRAFIA, ARIES, Philippe. A criana ea vida familiar no Antigo Regime. Lisboa: Relégio D’Agua, 1988. BARNOUW, Vietor. Cultura y personalidad. Buenos Aires: Ediciones Troquel, 1967. BRIGGS, Jean L. Inuit Morality Play. 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