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Clarice Gomes Palmeira, Carlos Linhares Veloso Filho e Marta

Rezende Cardoso
A violenta repetição do Édipo na adolescência:
o caso de uma jovem homossexual

Partindo-se de uma abordagem psicanalítica, investigou-se a questão do complexo de


Édipo na adolescência, em particular no caso das mulheres adolescentes. As modificações
corporais trazidas pela puberdade são experimentadas como algo perturbador. As
fantasias edipianas inconscientes podem retornar de maneira traumática, obrigando o ego
a defender-se de forma extrema diante da exacerbação da força pulsional.
>Palavras-chave
Palavras-chave
Palavras-chave: Adolescência feminina, Édipo, fantasias inconscientes, homossexualidade

The issue of the Oedipus complex in adolescence is studied here from a


psychoanalytical approach, especially in the case of female adolescents. The physical
changes brought about by puberty are experienced as disturbing, and unconscious
oedipal fantasies may return in a traumatic way, forcing the ego to defend itself in
extreme ways when faced with the intensification of the force of the drives.
>Key words
words: Female adolescence, Oedipus complex, unconscious fantasies, homosexuality
artigos> p. 29-38

O propósito deste trabalho é explorar o coordenada pela Profa. Marta Rezende


pulsional > revista de psicanálise >

tema da revivência do complexo de Édi- Cardoso.


po na adolescência e seu impacto sobre Durante a adolescência, o complexo de
a constituição psicossexual feminina. A Édipo, um dos pilares da teoria psicana-
ano XV, n. 163, nov./2002

título de ilustração faremos uma peque- lítica, já experimentado na infância, pode


na apreciação de dois casos clínicos: o assumir uma dimensão de violência.
caso da jovem homossexual, relatado por Referimo-nos, aqui, à noção de violência
Freud no texto “A psicogênese de um psíquica, vinculada à de trauma, e relati-
caso de homossexualismo numa mulher” va a um excesso pulsional muitas vezes
(1920), e um outro caso clínico ainda em desencadeado pela própria entrada na
atendimento por um estagiário da equipe puberdade, e que ultrapassa a capacida-
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de de simbolização por parte do sujeito. escolha de objeto amoroso num momen-
O adolescente, que atravessa um momen- to de crise: a adolescência.
to de crise e de ressignificação de seus
modos de relação, pode, então, apresen- O Édipo e o pré-edípico
tar uma série de comportamentos que Entendemos o complexo de Édipo como
expressam precariedade quanto aos mo- “o conjunto organizado de desejos amo-
dos de simbolização. Observamos esta rosos e hostis que a criança sente em re-
precariedade, por exemplo, na clínica lação aos pais” (Laplanche, 2000, p. 77). A
adolescente envolvendo situações de personalidade humana será, em grande
abuso sexual, comportamentos compulsi- parte, determinada por ele; em especial
vos (incluídas aí as diversas modalidades instâncias como o superego e o ideal do
de adicção, como a drogadicção e as ego têm seu desenvolvimento diretamen-
compulsões alimentares), assim como vi- te ligado a este complexo. Este será tam-
vências exacerbadas envolvendo direta- bém fundamental na orientação do dese-
mente a sexualidade. jo e nas escolhas feitas no decorrer da
Iniciaremos nosso percurso com um es- vida, como a escolha do objeto de amor,
tudo do complexo de Édipo e do comple- escolha marcada por investimentos obje-
xo de Castração, dando especial relevo à tais e identificações relacionadas aos con-
dimensão do pré-edípico. Em seguida, fa- flitos edípicos. Entender como se dá esta
remos uma investigação da singularidade escolha é um desafio, dada a complexida-
do Édipo feminino, visando analisar a re- de dos mecanismos envolvidos.
petição da vivência do Édipo na adoles- O período pré-edípico reveste-se de espe-
cência, especialmente em adolescentes do cial relevância para este trabalho, no qual
sexo feminino. Para tal, relacionaremos o nos voltamos mais para as especificidades
importante texto de Freud, “A psicogêne- relativas ao Édipo feminino. Este período,
se de um caso de homossexualismo numa em que a mãe é o objeto de investimen-
mulher” ao percurso teórico feito, bem to libidinal de ambos os sexos, diz respei-
como ao caso clínico que nos servirá de to à díade mãe-bebê. A relação primária,
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ilustração. relativa ao pré-edípico, teria duração mais


O texto de 1920 ilustra, de forma exem- longa e mais rica de conseqüências para
plar, como a repetição da vivência do Édi- a menina do que para o menino – tendo
po pode ser experienciada de forma vio- em vista que, após este período, no caso
lenta pela adolescente. É nossa tarefa ain- do menino, o objeto se manterá o mesmo.
da mostrar a atualidade do material abor- Já para a menina, haverá uma mudança
dado por Freud. Sua “jovem homossexual” de objeto a qual poderá ser vivida com
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é personagem do início do século XX; dificuldades quando o Édipo se instaurar.


aqui, apresentaremos o material clínico Para ela, mesmo o abandono do Édipo
trazido por outra jovem homossexual, seria algo insatisfatório, nunca superado.
quase cem anos depois da primeira. Sepa- O complexo de Édipo deve ser entendido
radas em épocas distintas, ambas mantêm a partir de sua estreita relação com o
como característica uma problemática complexo de Castração. Ambos vêm inau-
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gurar a “lei” num indivíduo atravessado ça do sexo masculino (p. 263). Afirmou
pela cultura, exigindo renúncia pulsional. ainda, em seguida, que o Édipo clássico,
É importante lembrar ainda o impacto do em sua forma positiva, só ocorreria no
complexo de Castração sobre o narcisis- menino. Provavelmente essas conclusões
mo: o falo é considerado pela criança fizeram Freud voltar-se de maneira espe-
uma parte essencial da imagem de si cial, no caso da gênese da sexualidade fe-
mesma. A angústia de castração, no me- minina, para o pré-edípico. É justamente
nino, e a constatação da falta e posterior este o movimento que nos propomos a
pretensão de reparar o dano sofrido, na realizar aqui.
menina, põem em perigo, de forma radi- O reconhecimento da castração por par-
cal, essa imagem egóica ainda em cons- te da mulher leva-a, segundo Freud, a um
trução. No entanto, podemos considerar estado de insatisfação, a uma rebeldia
esta verificação da falha, da falta, não só que se instala contra a superioridade do
como visão efetiva daquilo que falta à crian- homem e sua própria inferioridade. Três
ça, em termos anatômicos. A ameaça de saídas clássicas para esta situação podem
perda, no caso do menino, e a constata- ser visadas. Na primeira, a frigidez é o ca-
ção desta, no da menina, articulam-se a minho: insatisfeita com seu clitóris, a me-
outras perdas vividas anteriormente – nina abandona qualquer atividade sexual
como o trauma do nascimento, o desmame fálica. Numa segunda saída, decorrente
e até mesmo o controle dos esfíncteres. do reconhecimento da castração, a mu-
Confrontamo-nos, neste ponto, com uma lher aferra-se ao que Freud chamou de
das principais dificuldades da teoria freu- “complexo de masculinidade”: mantém
diana: a dissolução do Édipo parece cla- em si a esperança de um dia possuir um
ra, no caso do menino (efetuada pela pênis e fantasia que um dia se tornará
ameaça de castração). Mas como se dá o homem, o que pode levar inclusive a um
fim do complexo de Édipo na menina? O comportamento homossexual. O terceiro
que a faz abandonar sua atitude ambiva- caminho levará a mulher a atingir o que
lente de amor e ódio em relação aos Freud denominou “atitude sexual normal”,
pais? Como se dá a superação do Édipo em que escolherá o pai como objeto
artigos

feminino? Entender como o Édipo é su- que, posteriormente, a conduzirá a uma


perado na infância é fundamental para se escolha heterossexual.
compreender de que maneira ele será re- Diz Freud em 1931, no texto já citado, que
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vivido na adolescência, já que nesta as o desenvolvimento feminino apresentaria


primeiras vivências infantis serão reafir- duas fases: a primeira de caráter mascu-
madas. lino, representada pelo clitóris, e a segun-
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O complexo de Édipo feminino ainda pa- da de caráter feminino, marcada pela va-
rece ser um tema bastante obscuro, tal gina. A transição de uma fase para a ou-
qual parecia a Freud que chegou, inclusi- tra, teria um complicador: a permanência
ve, a afirmar, no texto “Sexualidade femi- do representante da primeira fase, o cli-
nina” (1931), ter a impressão de que as tóris, que continuaria “funcionando” na
formulações acerca do complexo de Édi- vida sexual da mulher adulta (p. 262),
po se aplicariam exclusivamente à crian- ponto que Freud diz não compreender
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satisfatoriamente – e, acrescentaríamos consciente de feminino entendido como
nós, ponto que permanece obscuro na cicatriz, ferida, algo que inevitavelmente
teoria psicanalítica. precederia a também criticada “inveja do
Mas Freud não deixa de sublinhar, ainda pênis”. Esta, como marcam Laplanche e
que em meio a dúvidas e incertezas, a im- Pontalis, seria a “mola da dialética da se-
portante constatação de um desenvolvi- xualidade feminina” (p. 250), onde para
mento sexual feminino de caráter particu- constituir-se como ser feminino, a mulher
lar, no qual o Édipo tem papel fundamen- deveria apelar ao masculino – represen-
tal. Como já assinalamos, uma das dife- tado aí pelo desejo de ter um pênis.
renças em relação ao Édipo masculino André evoca uma carta de Abraham a
residiria na natureza da escolha de obje- Freud, datada de 3 de dezembro de 1924,
to. A dificuldade, para a menina, seria a onde é defendida a idéia de que haveria
de passar da fase de predominância do um reconhecimento da vagina desde
clitóris para a da vagina e, ao mesmo tem- cedo, idéia oposta à concepção freudia-
po, trocar o seu primeiro objeto de inves- na de uma aquisição e reconhecimento
timento por outro. No caso da mulher, a tardios desta, ocorrendo somente na pu-
relação dual pré-edípica tenderia a perpe- berdade, com a troca de zona erógena.
tuar-se. Por outro lado, a saída do Édipo Assim, se em Freud a menina abandona o
feminino se daria de forma insatisfatória, clitóris (análogo ao pênis), substituindo-
uma vez que este tenderia a não ser total- o pela vagina, cuja existência fora “igno-
mente superado. rada” até então, André retoma Abraham
Nosso desafio será analisar a questão da e afirma que na puberdade ocorreria a
repetição da vivência do Édipo na adoles- “renovação do estado original” (p. 26), um
cência feminina, o que, segundo estas estado primitivo, de dominância vaginal.
formulações, poderia envolver um para- É suposta, assim, uma erogeneidade da
doxo: como reviver algo que não foi su- vagina desde o início, reconhecida na in-
perado, algo que não deixou de existir? fância e objeto de recalque com o adven-
to da fase fálica. André retoma em sua
teorização outra carta de Abraham, data-
artigos

Complexo de Édipo feminino: uma


perspectiva ampliada da de 26 de dezembro de 1924, onde des-
Familiarizados com estes conceitos freu- taca a seguinte passagem: “... os processos
dianos que, sem dúvida, são fundamen- psicossexuais são repetições” (p. 28) e de-
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tais, passamos a considerar as contribui- senvolve a idéia de que os processos psi-


ções de Jacques André, autor que se de- cossexuais da puberdade seriam repeti-
bruçou sobre o feminino originário, ins- ções do infantil. Ou seja, a vagina, organi-
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pirando-se, por sua vez, em diversos au- zadora da sexualidade adulta feminina,
tores que o precederam, como Abraham, está ligada à sexualidade infantil – e, vale
contemporâneo de Freud. André desen- ressaltar, trata-se, aqui, de uma vagina
volve uma abordagem singular do com- representada num corpo com represen-
plexo de Édipo feminino, a partir de uma tação inconsciente, corpo erotizado.
perspectiva não-“falicista”. Ele trabalha Na verdade, esta concepção de André
com a idéia de uma representação in- está em sintonia com o que Freud já de-
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fendia no “Esboço de psicanálise” (1940 por parte do outro. Estas mensagens,
[1938]): verbais e não-verbais, marcariam, inclusi-
A experiência analítica convenceu-nos da com-
ve, a própria organização da sexualidade.
pleta verdade da afirmação, ouvida com tanta
A sedução do outro deixa vestígios e é
freqüência, de que a criança psicologicamente decisiva para a psicogênese sexual femi-
é pai do adulto e de que os acontecimentos de nina, a partir da representação da vagina
seus primeiros anos são de importância supre- que é reconhecida e depois recalcada,
ma em toda a sua vida posterior. (p. 215) dando lugar à fase fálica que coincide
com o Édipo.
Estas teorizações nos permitem repensar,
Na puberdade há nova eclosão da vagina
sob um novo viés, o Édipo e a repetição
como organizadora da sexualidade femi-
de sua vivência na adolescência. Lou An-
nina; então, mais do que uma repetição
dreas Salomé, outra autora que se propôs
da vivência do Édipo, ocorreria um retor-
a pensar o feminino sob uma ótica diver-
no ao pré-edípico, uma vez que neste pe-
sa da fálica, evoca em texto de 1916 (an-
ríodo já havia representação da vagina.
terior a Abraham e apoiado no texto de Isto difere da idéia de uma construção da
Freud de 1913, “A predisposição para a feminilidade pensada a partir daquilo que
neurose obsessiva”) que existiria uma falta à mulher, e que deveria ser por ela
passividade do eu diante da exacerbação invejado: o pênis. Para Jacques André, a
pulsional provocada por uma pressão inveja do pênis torna-se um paradoxo:
genital. Esta pressão vaginal (cabe aqui deseja-se um pênis externo no lugar de
ressaltar o termo vagina, já que muitas algo inexistente. Como pensar em aban-
vezes Freud utiliza o termo “genital” refe- donar algo que não se conhece, para in-
rindo-se somente ao pênis) seria, na visão vejar e desejar outra coisa? E, mais grave,
de Jacques André, sofrida como algo ex- se nem ao menos se tem algo? É o que o
cessivo que a mulher experimentaria com autor nos convida a questionar, recorren-
extrema violência nos dois tempos, na in- do a uma formulação do próprio Freud,
fância e na puberdade, momento no qual nos “Três ensaios sobre a teoria da sexua-
esta vagina seria reinvestida com o retor- lidade” (1905), segundo a qual qualquer
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no das fantasias edípicas (e novamente o lugar da pele ou das mucosas poderia ser
ego estaria em posição de fragilidade dian- tomado como zona erógena (p. 140). E
te das modificações corporais e psíqui- por que razão a mucosa vaginal não seria
cas). então reconhecida como zona erógena?
Seguindo certos aspectos desenvolvidos A mãe como objeto de investimento libi-
por Jean Laplanche em sua Teoria da se- dinal possui, para o autor, um lugar espe-
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dução generalizada, André parte da idéia cial, principalmente quando se analisa a


segundo a qual a sedução estaria relaci- revivência não só do Édipo propriamen-
onada ao lugar do outro, essencial para a te dito, mas também do que é relativo ao
constituição psíquica. Trata-se, funda- registro pré-edípico, no qual a relação
mentalmente, da sedução exercida por mãe-bebê é fundamental. Mas a sua críti-
meio dos cuidados maternos, com a im- ca não é tão radical quanto a de Abra-
plantação de “mensagens enigmáticas” ham, para quem as contrações vaginais da
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menina estariam dirigidas ao pai, assim da mencionada equipe de pesquisa e clí-
como as ereções penianas do menino se nica.
dirigiriam à mãe. No nosso entender, de- Traçando um paralelo com o “caso da jo-
vemos receber estas considerações com vem homossexual”, iniciamos descreven-
cautela, sem esquecer que elas nos fazem do brevemente dados gerais deste caso
compreender de uma maneira mais ampla de Freud. Leonora é uma jovem de 18
o complexo de Édipo feminino, o “voltar- anos, pertencente a uma família de boa
se da filha para o pai”, como bem marca posição. Mora com a mãe, o pai e três ir-
Jacques André. Determinar qual dos dois mãos: um, ligeiramente mais velho; outro,
genitores seria o alvo das primeiras exci- cinco anos mais novo e, outro, 16 anos
tações genitais, tanto no caso do menino mais novo. Seu pai procurou Freud tra-
como no da menina, insere-se na mesma zendo como queixa o comportamento da
problemática anteriormente abordada filha, que passara a nutrir adoração por
acerca do papel da sedução, segundo a uma dama, cerca de dez anos mais velha
concepção de Laplanche. do que ela. Esta era reconhecidamente
Não devemos, no entanto, esquecer-nos uma mulher promíscua. Certa vez o pai
das próprias considerações de Freud, surpreendeu Leonora na companhia da
para quem o Édipo é bipolar, ainda que dama e não escondeu sua revolta diante de
essas duas formas, positiva e negativa, tal cena. Ao perceber isto, ela empreen-
ocorram em graus diversos. Assim, pode- deu uma tentativa (frustrada) de suicídio,
ríamos propor uma conciliação das teo- atirando-se na direção de uma linha de
rias, já que não haveria passagens fixas trem. Seis meses após o episódio, a fa-
por uma posição, com rupturas bruscas: mília procurou Freud, solicitando que a
o amor pelo pai e o ódio ciumento con- “curasse”. Freud, no entanto, assinalou
tra a mãe (na forma positiva do comple- que a jovem não tinha doença nenhuma.
xo de Édipo feminino) se dariam junto O homossexualismo, no seu entender,
com o amor pela mãe e o ódio contra o não é uma “doença”, mas uma variedade
pai (na forma negativa). Assim, mais rele- de organização genital da sexualidade. O
vante do que discutir aquilo que seria pri- fato de a jovem não se queixar de sua
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mário e aquilo que só surgiria a posteriori, condição, não tendo sido sua a iniciativa
é necessário investigar o aspecto do femi- de procurar tratamento, foi um dos as-
nino, dentro do Édipo, terreno que para pectos desfavoráveis apontados por
o próprio Freud, numa de suas cartas a Freud.
Abraham, ainda permanecia obscuro. Passemos agora a uma abreviada análise
do cenário edípico envolvido no caso: o
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A jovem Homossexual de Freud e pai de Leonora era um homem rígido e


uma nova “jovem homossexual” austero com os filhos. A homossexualida-
Passamos à discussão de um caso clínico, de da filha causava-lhe extremo incômo-
visando melhor elaborar e complementar do. A mãe era uma mulher atraente, ain-
as idéias já apresentadas. Maria, jovem de da jovem e que, apesar de desaprovar o
17 anos, foi atendida durante um ano por comportamento da filha, não era tão ás-
um dos autores deste trabalho, estagiário pera como o marido. Seu relacionamen-
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to com os filhos não era homogêneo: in- quais projetava a figura materna, como
dulgente com os filhos homens e clara- seus filhos – ser mãe parecia ser uma
mente mais severa com Leonora. condição para o amor se desenvolver.
Havia em Leonora uma atitude masculina Mas este amor pela mãe é misturado a
com relação à dama, expressa na prefe- um sentimento de rivalidade para com a
rência da paciente de ocupar o lugar do mesma, uma vez que esta, mulher ainda
amante, posição de humildade e idealiza- jovem e atraente, conquistou aquilo que
ção do objeto de amor, típica do amante a filha desejava: ter um filho. Seria de se
masculino, e não do amado. Freud ressal- esperar que Leonora passasse a repudiar
ta que a atitude masculina é mais relevan- a mãe (por esta possuir o filho que ela
te, no caso, do que a investigação de pos- desejava) e se voltasse para o pai; no en-
síveis características físicas masculiniza- tanto ela, mais uma vez, dirige seu amor
das, mas dá uma descrição resumida da para a mãe.
aparência de Leonora, que era uma jo- Este voltar-se para a mãe fica mais claro
vem bonita, mas com feições pouco femi- quando Leonora abandona seus primei-
ninas. ros objetos (mães) e os substitui por um
A vivência do Édipo de Leonora pareceu novo: a dama. A dama mostrou-se um
dar-se por volta dos cinco anos, na épo- objeto especialmente atraente; de alguma
ca do nascimento do segundo irmão. A forma, amá-la parecia dar a Leonora a
revivência do Édipo pôde ser examinada possibilidade de viver um amor simultâ-
a partir de seus 13-14 anos, quando desen- neo por outras figuras, como seu pai e
volveu afeição por um menino de três seu irmão mais velho.
anos, acompanhada por amizade com os Na ocasião do nascimento do terceiro ir-
pais deste. Por volta dos dezesseis anos, mão, ela se volta, então, para a mãe. Po-
desenvolveu amizades intensas com ou- demos inferir daí, ainda, um retorno ao
tras mulheres, geralmente mães de apa- pré-edípico o qual, como já havíamos
rência jovem. Justamente nesta época sua apontado antes, constitui um período de-
mãe engravidou novamente e Leonora cisivo para as mulheres, marcado que é
passou pela experiência do nascimento por uma forte ligação com a figura ma-
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de um terceiro irmão. Todos estes fatos, terna. Leonora, diante da gravidez da


desde o princípio da adolescência da pa- mãe, teve mais uma vez que se deparar
ciente, ilustram de maneira exemplar com algo negado por esta (lembrando
como o Édipo se dá de modo completo, que, como fantasia, a menina atribui à
em suas formas positiva e negativa: hou- mãe a falta de um pênis, bem como o
ve inicialmente uma reedição do amor acesso barrado a um filho). Ela se rebelou
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pelo pai (forma positiva, marcando a en- contra isto, por ocasião da adolescência,
trada no Édipo feminino). A partir da gra- operando uma das três saídas, conforme
videz da mãe, Leonora pareceu reviver o o indica Freud, diante do reconhecimen-
amor por ela, abandonando o desejo de to da castração. O complexo de masculi-
ter um filho e passando a buscar, como nidade parece ter sido a saída escolhida:
objeto, a mãe. Leonora afastou-se do pai, dos homens e
Leonora amava tanto as mulheres, nas de um papel feminino, tomando a mãe
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como objeto de amor. Um objeto de amor não pesam no entendimento da sua orien-
ambivalente, misturado de sentimentos tação sexual. Maria é uma jovem que cer-
de amor e ódio. tamente não é feia mas, como Leonora,
A dama poderia representar, ainda, uma não apresenta uma beleza tipicamente fe-
alternativa para o desagrado de Leonora minina. O modo como se veste e se mo-
em relação à mãe, funcionando como vimenta indica certo desconforto para
substituta desta, substituta mais afetuosa com seu corpo feminino.
e que não compete com Leonora pelo A sua queixa principal é centrada no fato
amor de seu pai. Leonora, por amor à de ser dependente química em recupera-
mãe, afastando-se de uma escolha hete- ção (não há desconforto em relação a
rossexual e de uma posição feminina, sua orientação homossexual). Diz ter vin-
deixa os homens, inclusive seu pai, para do procurar apoio psicológico para ten-
a mãe. Ao mesmo tempo, esta parecia es- tar compreender o domínio que a droga
tar revivendo o seu próprio Édipo na re- exercia sobre si. Apresentava ainda uma
petição da vivência do Édipo da filha: este sexualidade compulsiva e promíscua. Po-
é um aspecto interessante a ser destaca- demos apontar também uma ligação mui-
do. Os pais de adolescentes, em geral, dian- to forte e intensa vinculação sexual com
te da reedição do Édipo de seus filhos, a mãe que a tratara de forma agressiva,
também efetuam um retorno às suas pró- quando a apanhou mantendo relações
prias fantasias edípicas. No caso em ques- sexuais com uma amiga.
tão, isto fica ainda mais claro através do Seu pai se suicidou quando Maria tinha 12
comportamento competitivo que a mãe anos; ela demonstra em relação a ele
estabelece com a filha. A adolescência de grande ressentimento por tê-la abandona-
Leonora despertara em sua mãe o medo do. Afastou-se dos homens e de um papel
de perder aquilo que a tanto custo con- feminino, vindo a tomar a mãe como ob-
quistara: um pênis, ou um filho anterior- jeto de amor. Maria aparenta ter forte
mente negado por seus próprios pais. vinculação sexual com a figura materna.
Desta forma, mostrava-se mais tolerante “Ela é o meu espelho”, diz, na infinidade de
artigos

com a homossexualidade da filha. significações que essa frase pode carre-


Passando à descrição do nosso caso clí- gar. “Tudo que eu critico nela e não gos-
nico, veremos como há pontos de apro- to, é porque também tenho isso”. Apro-
pulsional > revista de psicanálise >

ximação e de diferença em relação ao veitamos aqui esta metáfora do “espelho”


caso de Freud. Maria, de 17 anos, é estu- para situar a relação da paciente com a
dante. Quando procurou atendimento, mãe. Destacamos o poder dessa figura,
morava com a mãe, o padrasto e dois ir- que gera na paciente sentimentos ambi-
ano XV, n. 163, nov./2002

mãos, um mais novo e outro mais velho. valentes de amor e ódio e também um
Ao contrário de Leonora, foi a própria fascínio sexual que é vivido como algo da
Maria quem procurou atendimento, sem ordem de uma violência interna, dada a
que tivesse havido imposição da família. intensidade e sua veracidade e, a contra-
Como no caso de Leonora, as caracterís- partida disso, a instância interna norma-
ticas físicas de Maria são detalhes que tiva e repressora.
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Poderíamos ir mais longe dizendo que a com rapazes. No início do tratamento,
relação com as drogas estaria reproduzin- mantinha relações sexuais promíscuas,
do uma ligação com marcas primárias sempre buscando uma pessoa que preen-
que comportam esse caráter especular, chesse as suas expectativas, mas tal esfor-
indiscriminado e absoluto. ço era improfícuo, levando a paciente a
Maria mantém uma posição extremamen- associar que procedia daquele modo
te ciumenta e possessiva em relação à para “preencher o vazio da droga com
mãe. No discurso da paciente, ambas pa- pessoas.”
recem ser extremamente controladoras: Em seu discurso, no que diz respeito às
Maria acredita que a mãe quer controlar nuances de suas relações, podemos notar
a sua vida; ao mesmo tempo, parece a presença de grande possessividade, um
competir com o seu padrasto pela aten- forte ciúme e exigência de manipulação
ção da mãe. Maria já competira com seu de suas vinculações com os outros. Essas
irmão mais velho por essa atenção. Este relações são marcadas pelo fato de sem-
irmão é considerado o garoto “certinho” pre procurar atuar de modo preponde-
e preferido da família, inclusive da mãe rante e ativo, e disso depende o prazer da
que “faz de tudo para agradar a ele” (o relação. Parece ter dificuldade de se co-
que lembra um pouco a figura materna locar em posição de passividade, não só
presente no relato de Leonora, que, se- como posição sexual, mas como postura
gundo ela, também demonstrava prefe- em relação à vida. Neste ponto, aponta-
rência pelos filhos homens). mos outra semelhança com Leonora: am-
Na mesma época em que trouxe para a bas parecem apresentar não só uma apa-
análise o tema do suicídio do pai, Maria rência masculinizada como também ado-
relatou um outro fato de extrema violên- taram uma posição masculina, ativa, em
cia: um episódio de violência sexual (es- suas relações. Se para Leonora uma con-
tupro) sofrido por ela, da parte de um dição essencial era que o objeto de amor
antigo namorado que insistia em fazer fosse mãe, no caso de Maria suas escolhas
sexo contra sua vontade, quando ela es- são sempre mulheres heterossexuais.
artigos

tava sob efeito de drogas. Mesmo relativizando sua preferência pelo


O início da experiência de Maria com mesmo sexo e tendo investido em expe-
drogas ocorreu logo após a morte de seu riências com o sexo oposto (o que não
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pai. Sua mãe casou-se novamente e Maria ocorre mais), Maria apresenta comporta-
não gostava do padrasto. Por isso, prefe- mento fóbico em relação ao órgão sexual
ria ficar em casa quando a família – mãe, masculino. De início, havia indícios, por
padrasto, irmão mais velho e o filho do meio de associações da paciente, de que
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padrasto – saía para passear. Sentindo-se essa evitação, a escolha homossexual e o


excluída, abandonada, começou a usar medo de ser rejeitada, poderiam estar vin-
drogas – inicialmente álcool. culados a identificações “relacionadas aos
Relatou que sempre se sentiu atraída por homens de sua vida que não foram ne-
meninas, apesar de ter mantido algumas nhum exemplo”: o pai, os padrastos, os
relações (infrutíferas e traumatizantes) namorados, os irmãos. Numa outra via,
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percebemos que a escolha de objeto ho- castração supõe (fazendo-a deparar-se
mossexual, tanto para a jovem de Freud com aquilo que lhe falta e foi negado pela
como para Maria, protegeu-as de manei- mãe), bem como evitação da repetição
ra peculiar da fantasia edípica de realiza- da vivência do conflito edípico na adoles-
ção do incesto. cência (já que nesta, com o advento da
O registro do pré-edípico é fundamental capacidade orgástica e procriativa, a fan-
para entendermos a violência envolvida tasia de realização do incesto correria o
no retorno dessa fantasia. Cabe aqui res- risco de passar para o plano concreto).
saltar uma das ricas contribuições de Jac- Os desdobramentos deste material clínico
ques André que sustenta que este caráter ficam para futuros trabalhos. Apresenta-
violento, que pode assumir essa repre- mos aqui alguns pontos de dois casos clí-
sentação do sexual, deve ser remetido ao nicos que nos ajudam a refletir sobre a
próprio processo de constituição psíqui- repetição da vivência do Édipo e suas im-
ca, a este primeiro encontro com o outro, plicações na orientação sexual. Mesmo
tendo em vista a implantação, a penetra- estando as jovens separadas por épocas
ção da sexualidade inconsciente do outro e culturas tão diferentes, podemos ver
sedutor. Na mulher, a possibilidade de que o Édipo é vivido na infância e revivi-
uma penetração vaginal traria de volta do na adolescência de maneira intrinca-
este momento, marcado pela penetração da, múltipla e, muitas vezes, violenta.
originária pelo inconsciente traumático
do outro. Referências
Já há um ano a paciente está namorando ANDRÉ, J. As origens femininas da sexualidade.
uma moça um pouco mais velha que ela, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
e parece o início de uma nova fase em sua FREUD, S. Edição Standard das Obras Psicológicas
vida, visto que pôde relativizar o caráter Completas. E.S.B. Rio de Janeiro: Imago,
compulsivo que caracterizava suas rela- 1989. v. XXIV.
ções anteriores. Porém, mesmo com uma _____ (1920). A psicogênese de um caso de
relação estável, a paciente ainda mantém homossexualismo numa mulher. E.S.B. v.
outras “paqueras” fora do namoro, dizen-
artigos

XVIII.
do servir isto como garantia, caso seja _____ (1940 [1938]). Esboço de psicanálise.
“abandonada ou trocada por um ho- E.S.B. v. XXIII.
mem”. Esta fantasia – de ser trocada por
pulsional > revista de psicanálise >

_____ (1931). Sexualidade feminina. E.S.B. v.


um homem – é temida por ela como algo XXI.
muito mais ameaçador do que a de ser _____ (1905). Três ensaios sobre a teoria da
trocada por uma mulher. Parece que o sexualidade. E.S.B. v. VII.
ano XV, n. 163, nov./2002

que está aí em jogo, por ela verbalizado L APLANCHE, J. e PONTALIS, J-B. Vocabulário da
como “medo do homem”, poderia ser tra- psicanálise. São Paulo: Martins Fontes,
duzido como medo da diferença sexual, 1997.
no sentido de que essa evitação do pênis
pode ser entendida como evitação da
confrontação com a diferença, resultan- Artigo recebido em junho/2002
te tanto dos processos que a teoria da Aprovado para publicação em outubro/2002
>38

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