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1B PANDORA: ANOREXICA, MAS NAO TANTO. Hi pouco mais de um ano, fui procurado por uma francesa de vinte € tis anos que disse estar afetada de anorexia, j4 hé muitos anos, normal para a esta- iste em dizer isso, pa- alguns meses antes, consultou uma terapeuta que Ihe garantiu nfo ser possivel ela softer de anorexia, pois seu peso era normal. Minha paciente — vamos chamé-la de Pandor lamente desistiu dessa terapeuta, pois, a s2u ver, quem confia na evidéncia dos sentidos & custa da verdade da palavra nfo vale grande coisa, A palavra eloquente Pandora escolheu-me para atender sua demanda de anélise por achar gue eu falava bem francés. Ela me ouviu pronunciar em franeés uma conferéncia em Nova York, e me achou muito elogtiente. A clo- gliéncia € 0 que ela busca nos homens; alids, é s6 isso que ela busca. Em suas relagdes com as pessoas, ela gosta sobretudo de escutar, e © méximo da escuta é receber a palavra bem articulada de um homer. Vive ha trés anos com um homem clogiente ~ um ator ~ mas este std em via de deixa-la por outra: por isso procurou-me. Com esses dois tracos, podemos esbocar um quadro clinico. A. anoréxica, mas nem tanto assim, consegue nutrir-se sem comer. Aos quinze anos de idade, ela teve episddio de anorexia pura ~ espécie de greve de fome. Saiu disso para a bulimia, Nunca teve regras nor- mais. Pelo fato de nao serem satisfatsrias para ela nem a anorexia 6 Pandots: anoréiica, mas no tani °7 nem a bulimia, cla encontrou uma espécie de meio-termo: todos os ‘mastiga até ficar uma papa ~ depois ‘cospe tudo na lata de lixo. Ela chama isso de “masca-cospe”: € um sintoma nio muito comum, mas que j4 encontrei em outras pessoas Ela se nutre, portanto, de sucos que The passam na garganta, mesmo ndo. Esse © sua chama de sua obsesséo, Ela recusa, portanto, corpo de anoréxica 20 olhar médico. Conhece mu 8 intervenco urgente — pouco Ihes la, Portanto, Pandora guarda seu segre~ 1do-o unicamente a homens su ua vida erdtica. Nio ficou mais pobre or isso. Ela se sente satisfeita com isso. A0outra mulher © problema é que seu amigo nio se sente satisfeito: hé um ano, ela se esquiva cada vez mais da relagao sexual. Segue um camiinho bem Préximo do misticismo. Mas compreendeu bem que néo basta para seu amante, e, portanto, quando ele enceta uma ligacdo com outra mulher, ela concorda: seu amante continua sendo um homem de ver- dade, ¢ além do mais continua vivendo com ela. Assim ela fez um arranjo que the convéi mente, ‘A outra mulher tem outra idéia. Nao aceita sua funcao — ser boa s6 para copular. Ela quer que 0 homem more com ela — por a 10 analista uma ditima oportunidade, icdo a esse arranjo do ho- ‘aco aprovada por ela ~, ela cometen um nao viu que essa mulher pode desejar outra coisa jana de falo. sejo de um homem que deve di- sm para outra mulher. Sua estrutura é por- ‘nao estabelecermos um paralelo com 0 caso para o pai impotente se ligue a outra mulher ey ‘lia lacaniane que seja suscetivel de acolher o desejo causado por Dora. Alma irma de Dora, nossa Pandora manifesta 0 maior interesse por tudo que se refere a gravidez. De minha parte, j4 na primeira sesso, faco o seguinte raciocf- io: quando alguém declarando ter obsessio de comida afirma que as coisas ficardo melhor se eu néo teimar em curar esse sintoma, de~ vo reconhecer que se trata certamente de outra coisa que ndo a ora- lidade, certamente de outra coisa que nada tem a ver com barriga boa ou ruim. A palawa sem voz Pandora tem isso de comum com outras anoréxicas: quando fala, mal utiliza a voz, quase sempre néo encontra nada para dizer (dizer coisa vazia®) ¢ ela fica angustiada diante do vécuo da escuta analitica, Vé- se obrigada 2 encher os ouvidos do analista com palavras. ‘Arrisco a {rmula seguinte: o rito de mascar e cuspir representa ‘uma alegoria da palavra, de uma palavra que pode ser emitida sem voz, sem ser vocalizada. Como Dora, Pandora interessa. mente pela fumaga dos homens. Nao devemos reconhecer af o laco entre os ritos concementes ao tabaco, 0 roubo do fogo, e a questo de comer cru ¢ 0 assado, 0 objeto da demanda ¢ 0 objeto do descjo? Digamos que para Pandora houve simbolizacio, mas nfo ver- balizacZo. Isso se manifesta numa cena contada por ela apds varios meses de anélise. Quando tinha mais ou menos cinco anos, ela, sua im ¢ seu pai foram abandonados pela mie que foi buscar sua alma numa comunidade de religiosas. Nas semanas que precederam essa ppartida, a mio passava o tempo proparando para as filhas uma gran- de bolsa ~ do tipo saco de Papai Noe! — repleta de brinquedos com bonitas embalagens. Um dia, chega um carro a casa, a mie diz as criangas que € hora de abrirem os seus presentes. As fillhas se preci- pitam com avidez sobre os pacotes enquanto a mie parte no carro. Ela ndo dissera uma palavra sobre sua partida, Trés anos depois, ela volta para retomar contato com as filhas e divorciar-se do pai. Pandora viveu a cena da seguinte maneira: estava se regalando com 0s brinquedos novos, no auge da felicidade, quando subitamente percebeu que toda essa encenacio tinha sido armada para distrair as criangas. Bla se deu conta, pela enorme quantidade de presentes, da cenormidade que Ihe foi retirada. Para cbroar a cena, o pai nao disse uma palavra sequer sobre a auséncia da mie, € 0 que ela me conta. Pandora: anoréxca, mas n tanto 89 Por sua parte, Pandora jamais falou disso. Houve de certo modo simbolizagéo da auséncia da mie sem verbalizacio. A impoténcia do pai manifestou-se pela incapacidade de falar de um evento capital Para a familia. E j4 que o pai no falava disso, a filha tampouco po- dia falar, Ihe foi efetivamente interdita, mas 0 que. sobretudo foi 70 g020 da palavra. Como disse Lacan: “Ali onde isso fala; iss0 goza... Mas, quando isso nao fala, isso goza de outro modo = pelo ouvido. O instrumento desse gozo & a voz. do Outro. Nao & por nada que Santo Agostinho dizia que a Virgem se tinha impreg- nado pelo ouvido.” A partida da mae, por nfo ter sido designada como tal, nao era uma partida. Todos os presentes viraram nada, ¢ a filha que sobre valeria alguma coisa: o dom da palavra, aguardado, ido do pai, Isso no quer dizer que © pai néo tenha dado vez de oferecer uma palavra significante que teria le ndo diz nada, apenas exerce a sua voz. ia c ela goza disso, Ela se tornard guardia da fem que Freud diz que, se 0 homem roubou 0 vvezes quase um cochicho, Quando chega a emitir ou- is parece a voz. de um homem. E eventualmente chega a ima voz que seria a sua, Experimenta entéo um gozo que %0 ica laceiana quando ela nfo agiienta mais, Nao agtientar mais no quer dizer que se esti satisfeito. © rito enquanto sintoma no & um rito obsessive. Com efeito, segue 0 contomo das boas maneiras na mesa, os ritos normais da Preparaco da alimentaco. Se mais ou menos a mesma coisa se pas- sa aqui todas as vezes, nada obriga a que isso se passe sempre da mesma maneira, Enquanto sintoma, 0 rito realiza um desejo ~ é trago unsrio, no sentido em que Freud fala do sujeito do segundo tipo de identifica ‘¢40. Quando Lacan diz que a anoréxica come nada, isso nos diz que cla procura criar uma falta em seu corpo-em-corpo ~ ou, para dizer ‘as coisas de outro modo, ela nao pode comer sendo o nada, pois é s6 isso que Ihe falta, A anoréxica procura um analista elogtiente por uma razio: a demanda dela é ser cumulada, demanda outra voz, mais © Seu discurso acabaré por a boca para 0 ouvido ‘ApS slguns meses, Pandora comega a restenir uma frustregto, que chegou a masturbé-los. Havia um de quem ela gostava imen- , € ela contou-me que, depois de té-lo masturbado pela pri- © morte. Se ela tocar o sexo de um homem, ele morreré, Entio, ndo guer ser tocada pelo sexo de um homem ~ no por causa dela, mas por causa dele. Ela est portanto em posicdo de se sacrificar pelo homem que escolheu, Pendora:anorésiza, mas no tanto a Nos Estados Unidos, quando se fala de um caso, € de rigor fa- lar de mudanga de comportamento, Em Paris, isso se faz bem menos =e por boas raz6es. Aqui, entretanto, jd que estamos num hotel ame- ricano (0 Sheraton), num encontro internacional, vou dizer-lhes co- ‘mo as coisas se modificaram. Para comecar, 0 rito sintomético conti- creia entretanto que seu problema tem alguma cla consegue comer razoavelmente perto da ‘egundo, as regras aparecem regularmente jé ha alguns. coisa que nunca sucedeu em sua vida. Terceiro, ela se des- prendeu do homem que a deixou sem sm episédio depressivo grave ~ é a transferéncia que a sustenta, la trabalha, © tra- balha bem, E, ainda, leva a vida com muita inteligéncia ~ ela é bem ‘Num caso como este de Pandora — © com casos de ano- mais graves — & preciso que isso aconteca. De outro mo- do, o analista se verd obrigado a entregar 0 corpo de sua paciente 1S — 0 que ser4 lido como confissao de impoténcia, Pelo contrério, procuramos conduzir a paciente a apre- ender © impossivel da relagdo sexual, mesmo quando isso passa da boca para o ouvido. STUART SCHNEIDERMAN

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