Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Cibeles e Iemanja Por Julia Otero
Cibeles e Iemanja Por Julia Otero
JÚLIA OTERO
FLORIANÓPOLIS
2023
CIBELES E IEMANJÁ: AS DEUSAS ESTRANGEIRAS SEM PERMISSÃO PARA
SEREM PRETAS
Cibele é uma das primeiras Deusas da humanidade, faz parte das chamadas “deusas
primordiais”, como cunhou Faur (2016). As “deusas primordiais” são grandes Deusas-fontes
que depois são divididas e ampliadas para outras deidades conforme a complexidade e
diversidade humana aumentam. No período Paleolítico, se encontravam resquícios de uma
prática espiritual, mas foi somente quando a humanidade começou a conseguir “domar” a
natureza, fazendo agricultura, deixando de ser nômade e tendo mais tempo para ficar no
mesmo lugar é que as práticas espirituais e as artes com temática sagrada ganharam destaque¹.
Estamos falando do período Neolítico.
Uma das maiores descobertas científicas do século passado foi a escavação de Çatal Hüyük –
o que se acredita ser a primeira cidade de todos os tempos, segundo Mellaart (1989). As ruas
ainda não haviam sido inventadas e as pessoas caminhavam em cima dos telhados. Com uma
residência rudimentar colada na outra. E a entrada era pelo teto, descia-se até a casa de barro
por uma escada. Çatal Hüyük tinha esse urbanismo. Contava com cerca de 8 mil habitantes,
era contemporânea à Jericó e ficava na Anatólia, atual Turquia².
1 – Marija Gimbutas: The Living Goddess
2 – James Mellaart: Çatal Yutuk
3 – Marija Gimbutas: The Language of the Goddess
Os humanos estavam começando a domar os animais, por isso havia adoração de chifres de
boi e eram feitas estatuetas de mulheres segurando animais selvagens como onça, guepardo
ou leão³ – como é o caso da Deusa Cibele da Anatólia (imagem 1) analisada neste artigo.
Também ficou conhecida como “Senhora das Feras” e simboliza a vitória do ser humano
perante o selvagem. Como estamos falando de 6000 a.C, obviamente que toda divisão do
cristianismo entre bem e mal ainda não existia, de acordo com Faur (2016).
Conforme aponta Campbell (2015), havia uma noção, que depois se vê no paganismo dos
povos orientais, de que a Natureza era percebida tanto como boa – pois dava alimento – como
ruim, pois matava com desastres naturais. Portanto, era temida e reverenciada. E nesse
aspecto de união de luz e sombra, inverno e verão, que nasce a inspiração para as chamadas
“deusas primordiais” – pois são tudo junto. E a Terra entra como divino em diversas culturas.
Como Pachamama (Mãe Terra dos incas), Gaya dos gregos e Cibele para o povo oriental.
Diversos estudiosos como James Mellaart, James George Frazer, Robert Graves e Marija
Gimbutas, colocam que no início da civilização (período Neolítico) havia um matriarcado. E
essa hipótese estaria comprovada pelo número de estatuetas de mulheres encontradas na
Europa (principalmente Leste Europeu) – mais 2 mil, segundo Gimbutas (2001). O que daria
dez estatuetas de mulher para uma de homem, segundo a mesma autora. Alguns autores
acreditam que tais estatuetas seriam apenas um culto à fecundidade, visto a dificuldade de
sobrevivência e reprodução da época. Porém Gimbutas (2001) abraça a ideia e vai mais além,
propondo que essas estatuetas não representavam apenas um amuleto de fertilidade, como
também eram representativas da própria divindade.
A mais conhecida delas é a Vênus de Willendorf (imagem 2), e este nome foi dado em função
do local onde foi encontrada. Segundo McDermott (1996), essas estatuetas eram um símbolo
de fertilidade e copulação. O próprio nome “Vênus” faz menção à deusa grega do amor. Mas
Gimbutas (2001) acredita de que essas estatuetas são muito mais do que apenas “deusas do
amor”. Segundo ela, o primeiro Deus seria uma mulher. E seria responsável não só pelo amor,
mas por todas as esferas da vida.
Voltando à nossa escultura-tema, a Cibele de Anatólia (imagem 1), então, está dentro desse
contexto de escavação de Çatal Hüyük. Ali há uma releitura sobre o começo da civilização,
segundo Mellaart (1989). Um começo matriarcal. As formas da Deusa chamam a atenção por
ser obesa – totalmente o oposto do padrão estético atual. Por ter a cor de pele e de toda
escultura marrom (como provavelmente eram as pessoas orientais da Anatólia – hoje Turquia)
e também por estar nua. Essa Deusa está sentada num trono, em posição de poder, “domando”
criaturas selvagens com as mãos. Seis séculos depois, no Império Romano, aparece a mesma
Deusa, porém vestida, branca e magra. É sobre esses aspectos que esse artigo vem trabalhar.
Mas antes disso, vamos entender ainda mais sobre os períodos históricos de cada uma. A
Cibele de Anatólia ainda há muito mistério cercando suas origens e explicações. Pois o
antropólogo principal que escavou Çatal Hüyük, James Mellaart, depois de ter morrido, foi
descoberto que ele fabricava evidências científicas, criando tapeçarias e inscrições rupestres
para conseguir que sua narrativa tivesse mais embasamento³.
Essa Deusa (Cibele de Anatólia, imagem 1), a princípio, é uma descoberta verídica,
atualmente está em exibição no Museu das Civilizações da Anatólia e ela foi encontrada em
uma espécie de celeiro, segundo Gimbutas (2001). Então, de acordo com Roller (1999), a
hipótese principal é de que ela estivesse cuidando do celeiro de forma espiritual, como uma
representação da Deusa. Dentro das casas, também havia espaços sagrados, altares
domésticos, com pequenas Deusas. Mas para a antropóloga Meskell (1995), a estátua
representa uma ancestral ou um talismã.
Já a estátua romana de Cibele (imagem 3), de 3000 d.C.,era um símbolo de adoração, sem
sombra de dúvidas. Pois foi encontrada na região central de Roma, no Templo da Magna
Mater (Grande Mãe). Ou seja, em um santuário específico para Cibele. Esse nome “Magna
Mater”, “Grande Mãe” ou ainda “Mãe de todos os Deuses” reverbera com a ideia de deusas
primordiais – que seriam a origem dos demais Deuses.
Há mais acesso à cultura romana do que a neolítica, devido à língua escrita e à ampla
pesquisa. De acordo com Pinto (1952), o culto à Cibele em Roma começa ainda em 218 a.C
(seis séculos antes da estátua romana analisada aqui ser produzida e um século depois da
estátua neolítica ser produzida). Essa Deusa foi “importada” e os romanos tinham por
costume integrar Deuses de outras etnias, pois era uma maneira de conquistar culturalmente
os povos vencidos.
Segundo McBeath e Gheorghe (2005), o general cartaginês Aníbal Barca recebeu uma
mensagem oracular falando que “a Mãe está faltando” para vencer a Segunda Guerra Púnica
(218-201 aC). Ele enviou uma comitiva até um santuário na antiga região chamada Frígia –
correspondente à Anatólia, atual Turquia (mesmo local da deusa Cibele de Anatólia). Os
guerreiros trouxeram um meteorito do santuário que representa a Deusa Cibele, como essa
mensagem que veio do espaço, essa mensageira do cosmos era Deusa Cibele. A partir de
então, a Deusa entra de vez para a cultura não só romana, mas de toda Europa.
Prova disso é que hoje na Espanha tem a “Fonte Cibeles” (imagem 4) em que uma escultura
da Deusa em uma carruagem puxada por leões, feita em 1782 (século XVIII), agora é local de
comemoração do time de Real Madri (imagem 5) e uma estrutura de comemoração
futebolística já foi montada para receber a comitiva em volta da Deusa, que recebe adornos
toda vez que o time joga, como forma de sorte.
Imagem 5 – Fonte Cibeles com Real Madri, divulgação La Liga
Em diversos locais do globo, há outras artes sobre Cibele, no mesmo contexto, em volta de
feras domadas. Como mostram as imagens 6, 7, 8 e 9. Essa profusão de imagens mostra a
popularidade do seu culto. Inclusive, Cibele chega a ser conhecida como Deusa Guardiã de
Roma, tamanha sua popularidade, conforme mostram McBeath e Gheorghe (2005).
Imagem 8 – Encontrada em escavações aonde seria hoje Afeganistão, estima-se que seja a deusa Cibele em
artefato de 300 a.C. – fonte Wikipedia Common
Imagem 9 – Deusa Cibele representada no século 2 d.C. período romano – fonte Wikipedia Common
Ao mesmo tempo, os povos germânicos começavam a invadir terras agrícolas romanas. O que
combinado com temperaturas baixas que diminuíram as terras férteis, fez com que parte da
população passasse fome. E ainda do lado espiritual, começa um crescimento do cristianismo,
que afeta também a figura do imperador. Já que os os cristões não aceitavam “prestar-lhe
culto religioso, como era costume na época”, informa Silva (2021). E isso é uma perda de
poder.
Roller (1999) afirma que o auge do culto à Cibele foi durante a Roma Imperial, mas que
mesmo depois ainda se pode ver vestígios de sua popularidade. É interessante notar que a
Cibele romana (imagem 3) está com uma coroa. É apenas em Roma que Ela adquire o título
de “Magna Mater”, Mãe Soberana, Mãe de Todos os Deuses. É ali que ela recebe a coroação,
o reconhecimento. Além disso, ela carrega um pandeiro na mão, o que não tinha na Cibele da
Anatólia (imagem 1). O pandeiro dá a marca da música, dá o tom. É a batida de fundo que dá
o ritmo da vida, o que sustenta a música, de forma quase imperceptível. O que pode ser feita
uma relação de como era vista essa Deusa: era ela quem ditava o ritmo da vida.
O pandeiro é uma herança romana, pois os romanos eram conhecidos por suas romarias e
peregrinações com música, em formato de festa popular. Inclusive há relatos de sacerdócio
em nome de Cibele, como conta Silva (2021). Dentro da sua mitologia, Cibele se apaixona
por um mortal, Atis, que é seu filho e amante. Ele é infiel a ela. E acaba tendo o membro
sexual decepado. Esse sacrifício é copiado por sacerdotes homens de Cibele. Em uma Roma
aonde não havia ainda esse tipo de demonstração purgatória, isso acaba chocando parte da
população, como aponta Silva (2021).
Até então, pode-se ver que as duas esculturas habitaram contextos muito diferentes. Desde o
número de habitantes nas cidades (Çatal Hüyük com 8 mil habitantes para Roma com 1
milhão). Até o período histórico de cada uma. Cibele da Anatólia nasce no começo da
civilização, por isso é feita de barro, no começo da cerâmica. O sedentarismo recém havia
começado – por isso também é esperado que naquela época aonde precisava-se fazer muito
esforço físico houvesse muitas pessoas magras. O que pode sugerir que a obesidade era algo
de exceção e, por isso, valorizada. Pois representava abundância de comida e domínio do
reino animal. Isso explicaria por que grande parte das esculturas pré-históricas encontradas do
sejam de mulheres gordas.
Está comprovado que países com maior industrialização tem maior número de obesos, como é
o caso do Estados Unidos hoje. Pois, de certa maneira, há maior incentivo em permanecer
sedentário. No período Neolítico, é o oposto disso. Recém havíamos saído da selva, a
agricultura estava começando. E tudo ainda era arcaico e manual, ainda se exigia bastante do
corpo físico. Portanto, se hoje a maioria da população é gorda e o ideal é o magro, pois o
magro é exceção; o oposto se encontra no passado: no Neolítico o comum era ser magro, por
isso ser gordo era desejado, pois era a exceção.
E qual era o padrão estético corporal de Roma? Roma fazendo parte de um império que estava
em constante guerra tinha um ideal do que era um corpo pronto pro ataque. Era um corpo
atlético e magro. E se Deuses serviam para inspirar, a sua imagem também deveria passar um
ideal a ser seguido.
Não há evidências que corroborem para dizer que existia uma sociedade gordofóbica romana.
Mas, sim, que existiu um padrão magro e que isso acabou influenciando toda uma geração de
artistas e, por fim, no padrão estético ocidental que chegou até os dias de hoje, que, claro, foi
cada vez afinando-se mais e mais. Pode ser que ambas esculturas estavam inspirando os ideais
de beleza de cada comunidade.
Caso Cibele de Anatólia não seja representação de uma Deusa, mas como disse Meskell
(1995), um talismã ou uma ancestral; isso mostra que a sociedade neolítica tinha mais
abertura a diferentes tipos de corpos. Se estava representando uma ancestral, por exemplo,
isso revela que não só a beleza jovem tinha lugar nas artes – como é grande parte das
esculturas romanas – mas também a beleza anciã.
É como se no Neolítico houvesse espaço para se admirar uma mulher gorda e velha. Mas no
Império Romano, é necessário ser magra e jovem. Pois assim se mantém produtiva, guerreira.
Esse aspecto guerreira da Deusa foi tão ressaltado dentro de Roma que alguns séculos depois,
quando Cibele é retratada na Espanha (na praça das Cibeles, aonde o time de Real Madri a
tem como madrinha), ela saiu da posição sentada no trono (imóvel) para estar em uma
carruagem puxada pelas feras e com uma espada na mão (imagem 4).
É interessante notar como a Deusa vai ganhando adereços, de acordo com a necessidade que
um povo tem de incentivo. No começo da civilização, ela precisava domar os animais e
descansar, sentada na sua posição de poder. Em Roma, ela ganha um pandeiro aonde pode
marcar o tempo da vida e mostra uma comemoração pela inserção daquela que viria a ser
celebrada como Madrinha de Roma. Na Espanha, ela já não está mais parada, os animais
trabalharam para ela e está prestes a atacar com sua espada. Claramente se pode ver o seu
movimento: primeiro de alegria e festa pela inserção dessa Deusa e depois pela necessidade
de aumentar o seu lado bélico.
O que permanece em todas as leituras são as feras domadas. O que em um primeiro momento
na Anatólia poderia se estar falando das feras em carne e osso, pois estavam aprendendo a
domar a natureza. Mas já nas demais leituras, pode-se fazer uma interpretação quanto a domar
as feras internas, o lado selvagem de cada um. E talvez essa seja a força de Cibele, pois fala
de uma questão existencial humana: a batalha entre nosso lado humano e animal.
Ao analisar as Cibeles, depois de ver a diferença de corpo, o que salta aos olhos é a diferença
de cor de pele. Cibele da Anatólia é feita de barro e foi resgatada sem resquícios de qualquer
tipo de tinta natural. Tem cor de barro. Foi parida em Çatal Hüyük, Anatólia, atual Turquia,
onde as pessoas costumam ter pele escura. Portanto, ela representa bem o seu povo.
Já a Cibele Romana é feita de mármore branco. Quando foi encontrada, tampouco tinha
resquício de qualquer tinta. Porém estudos de Brinkmann (2018), estão dando conta de que as
esculturas romanas na verdade não eram apenas de mármore branco. Que elas tinham pinturas
coloridas em cima, mas que se perderam com o tempo. Diferente do Egito, por exemplo,
aonde o tipo de areia e clima conseguiu conservar parte das cores originárias. Então, é
possível que, no princípio, a Cibele Romana tivesse outra cor de pele e vestes coloridas.
Porém, ainda assim, o material original escolhido – o mármore – é de cor branca. E, naquela
época, havia outros materiais – como o ébano – disponíveis para escultura. É o caso da Deusa
Artemis de Éfeso (imagem 10), esculpida com mármore branco nas vestes, mas com ébano no
rosto e mãos – ficando com a pele preta. Artemis de Éfeso foi criada pelos romanos no século
II d.C. na mesma localidade aonde Cibele Romana foi criada, portanto o material
provavelmente estaria disponível na natureza e a técnica dominada, já que a estátua de Cibele
Romana foi criada um século depois da de Artemis de Éfeso.
Portanto, é possível que tenha sido uma escolha estética fazer Cibele Romana toda de
mármore branco. Se teve tinta ou não, o estudo de Brinkmann (2018) não chegou até essa
estátua em específico. Podemos analisar agora, como era a questão racial de Roma.
Na Antiguidade Clássica, era considerado bonito uma mulher ter a pele clara, pois mostrava
que ela tinha privilégio o suficiente para não ter de trabalhar ao sol. Já para os homens, era o
contrário. Pois havia o mito do herói. E um herói deveria estar na rua, os heróis lutavam em
campos de batalha e competiam em anfiteatros.
Então, se pode afirmar que a Roma antiga tinha, sim, racismo. Não nos mesmos moldes de
hoje, nem discriminando exatamente pelas mesmas questões, mas aparece uma preferência
pela pele clara. Tanto que o número de esculturas apenas com mármore branco é muito maior
do que aquelas que tem ébano. Inclusive as de ébano são consideradas exceções.
Com relação às roupas, a arte romana aprecia o nu artístico. Por isso é curioso que Cibele
Romana esteja vestida. Pois o cristianismo só trouxe a ideia dos pudores a partir do século V,
então a Deusa é feita sem essa influência da ideia do pecado ou da vergonha feminina. Por
outro lado, uma veste simboliza poder e status social. A roupa teria sido colocada para indicar
esse status. Cibele Romana segue sentada no seu trono que mostra poder, com sua coroa que
também inspira poder e com vestes com um caimento feito para elite, para quem não precisa
trabalhar no sol. Uma roupa formal e que, mais uma vez, mostra através da imagem qual é o
ideal. Agora, com relação à roupa. Antes, com o corpo.
O mito da beleza de Wolf (2002) começa se configurar com a distribuição dessas imagens.
Uma imagem inalcançável para reles mortais: o photoshop da antiguidade com suas medidas
irreais, sua pele branca como o mármore, sua veste impecável e seu corpo dentro dos padrões
de magreza. Uma imagem nunca é só uma imagem.
As Vênus do Neolítico não tiveram a mesma projeção que as estátuas greco-romanas. Cibele
da Anatólia hoje é resgatada não apenas como um símbolo de uma época possivelmente
matriarcal, mas também para lembrar que nem sempre o corpo feminino foi preso a um
padrão de magreza.
Se Aranha (2008) estava certa e “ver é habitar com o corpo”, pois é preciso entender a arte
com todos os sentidos, cabe a pergunta: Você, com o seu corpo, como percebe essas duas
imagens? Até aqui, analisamos o que se pensava na época, o que os pesquisadores
formularam como soluções, hipóteses e relações. Mas na contemporaneidade, além disso, é
preciso que cada um veja a si mesmo refletido na obra e faça as seguintes perguntas
formuladas por Hernández (2011, p.38):
“O que vejo de mim nessa representação visual? O que diz de mim essa
imagem? Como essa representação contribui na minha construção identitária
– como modo de ver-me e ver o mundo?”
Pois o sentido só será amplamente entendido quando cada leitor ativar os gatilhos de acordo
com sua experiência, o “horizonte de expectativa”, proposto por Iser (2011).
Com a licença do “tempo anacrônico” de Didi Huberman (2015), que entende e reconhece
que as imagens na arte caminham fora da linha reta positivista, mas que reaparecem em
distintas épocas e civilizações, agora trazemos para a análise a Iemanjá do Ribeirão da Ilha de
Florianópolis (imagem 11), que foi criada em meados dos anos 2010 pelo escultor catarinense
Paulo César dos Santos.
Um ponto em comum entre Cibele romana (imagem 3) e Iemanjá do Ribeirão (imagem 11) é
que ambas imagens, ao aportarem nas suas novas terras, Iemanjá no Brasil e Cibele em Roma,
elas ganham um elemento da cultura colonizadora: a coroa. Símbolo de status social, poder,
mas também de conexão com os céus, espiritualidade. Ambas também ficam reconhecidas
como as “grandes mães”, pois Iemanjá é a que cuida das cabeças dos recém nascidos, é ela
que os recebe na Terra. Portanto, a coroa da iorubá também ganha uma conotação de
grandiosidade perante a vida:
Iemanjá tem tarefa de zelar, de cuidar, que essa cabeça assuma essa
grandiosidade. Ela é evocada no dia a dia, quando cruza a mão no orí
[cabeça], e canta que “em cima da nossa cabeça tem uma coroa”, a gente
está assumindo essa realeza que está em nós e Iemanjá como uma grande
rainha, rainha de todas as águas, nos faz assumir essa realeza que nos foi
arrancada pela escravidão, mas que o orixá nos devolve cada vez que a gente
está mais perto dele. (WILLIAM, online, 2022)
Segundo Vallado (2019), Iemanjá é rainha das águas. Na África, era responsável por um rio,
mas ao cruzar o oceano, ganha a imensidão do mar no Brasil. É sincretizada com Nossa
Senhora dos Navegantes, padroeira dos pescadores e trabalhadores marítimos e seu culto é na
praia. Por isso, carrega em uma das mãos uma rede de pesca simbolizando seu domínio nas
águas. Na outra mão, carrega um espelho. De acordo com Vallado (2019), o espelho serve não
apenas para olhar a si mesma, mas principalmente para mostrar ao outro sua visão completa e
real. Os animais ferozes de Cibele (figuras 1 e 3) não estão presentes em Iemanjá, mas na
escultura do Ribeirão da Ilha (imagem 11), seu rosto tem expressão impetuosa, desgarrando-
se da influência sul-americana e católica de virgem recatada e subservente. Pois em comum
com a “Senhora das Feras”, a deusa primordial Cibele e a orixá Iemanjá também está a
representação de uma mulher que não é servil ou submissa, mas expressa um caráter de
valentia e dinamismo.
Considerações Finais
Por meio de duas imagens de Cibele, separadas por 6 séculos, já pode-se ver o padrão estético
corporal e racial sendo moldado para formar o que se espera de uma mulher nos dias de hoje.
Quanto à raça, é possível que Cibele Romana tivesse tinta dando outra tonalidade para o seu
rosto. No entanto, o que chega hoje é apenas o mármore branco cru e como essa cor acaba
interferindo na escolha do belo de diversos artistas e chegando na atualidade como um padrão
estético. O branco não é o branco da pele, mas um branco além do branco. Um branco de
mármore. O fato de antropólogos e curadores terem limpado e tirado as tintas coloridas das
esculturas greco-romanas (como aponta Brinkmann, 2018) apenas ressalta mais o asco da
nossa sociedade perante o que não for limpo, estéril e 100% branco. A obsessão com o branco
talvez não houvesse no artista inicial, mas com certeza houve nos curadores seguintes que
mantiveram apenas a cor branca da estátua. A mensagem é clara: não há espaço pra cor de
argila da Cibele de Anatólia – isso ficou com “povo selvagem”. A civilização embranquece.
Se no período Neolítico, nossos ancestrais honravam todo tipo de corpo – inclusive a anciã
gorda, como ressaltou Meskell (1995); agora há espaço para apreciação de um tipo apenas de
corpo feminino. O jovem e magro. Em uma Roma cercada de guerras e guerreiros, arenas e
disputas corporais, é óbvio que sua Deusa também iria refletir as formas atléticas. Mas se no
passado havia espaço para mulheres gordas, a mensagem que começa a chegar é que aqui não
há respeito ou lugar para apreciar corpos gordos. O que se estuda na verdade é a exclusão
desse corpo, o desaparecimento dele nas artes. E ao censurar esse corpo gordo, ao não
contemplá-lo nas representações visuais, nós estamos negando a sua existência.
É especialmente enriquecedor olhar para essas imagens, pois a neolítica resume um padrão
estético do período, onde é possível que tenha havido um matriarcado. Então, quanto mais
poder essa mulher tinha, mais espaço físico ela podia ocupar. Na medida em que a sociedade
vai se tornando patriarcal e o papel da mulher também diminui, assim é exigido do seu corpo:
que também se apequene. Cibele Romana pode ter coroa, mas tem metade da largura.
Cibele é uma Deusa forasteira toda poderosa que acaba madrinha de Roma. Mas desde que
entre nos padrões estéticos. E assim entendemos a lógica da arte romana, seus valores de
valentia e valorização do guerreiro atlético, do herói. Compreender essa formação faz com
que entendamos os valores ocidentais, pois as imagens greco-romanas são a base cultural
ideológica do ocidente. E a mensagem do passado é: o físico precisa ser magro, atlético e
branco. Essa é a importância das imagens artísticas para formação do padrão estético coletivo.
Quando comparamos com a escultura de Iemanjá no Ribeirão da Ilha, há uma resistência a
esse modelo: após viagem em 42 países na África, o dirigente da casa de religião manda fazer
uma estátua de 1,80m com a pele retinta, feições negras e expressão facial dominante. O
resultado disso é uma repulsa por parte da sociedade catarinense tão grande que a estátua é
quebrada pelo menos três vezes, uma delas com machadadas que viram fonte de reportagens e
até processo judicial. O que se enquadraria no que Nogueira (2020) chamou de “racismo
religioso”, pois a origem do rechaço é além do religioso, sua raiz está ancorada na raça.
Portanto, apesar de tanto Cibele como Iemanjá, serem “estrangeiras” – e de acordo com Said
(2007) o Orientalismo é uma criação do Ocidente para menosprezar e subjugar tudo que não
reconhece como espelho, tudo que é o outro – apesar das duas divindades serem originárias
desse espaço “outro”, ambas só conseguem popularidade e aceitação quando se comprometem
esteticamente com o padrão estético vigente. Caso contrário, são vandalizadas (Iemanjá do
Ribeirão) ou relegadas à diminuição de sua importância (Cibele de Anatólia apenas como
anciã e não como divindade). Assim, notamos que apesar das lutas e resistências para peles e
corpos diversos, ainda se persiste uma visão padronizada sobre o corpo feminino.
Referências Bibliográficas
ARANHA, Graça S. G. Exercícios do olhar: conhecimento e visualidade. São Paulo: Unesp; Rio de
Janeiro: Funarte, 2008.
CAMPBELL, Joseph. Deusas: Os Mistérios do Divino Feminino. São Paulo: Palas Athena, 2015.
CAO, Marián Lópex Fernández. Educar o olhar, conspirar pelo poder: gênero e criação artística.
In: BARBOSA, A.M; AMARAL, Lilian. Interritorialidade – mídias, contextos e educação. São
Paulo: Senac, 2008.
EISLER, Riane. O Cálice e a Espada: Nosso Passado, Nosso Futuro. São Paulo, Palas Athena:
2017.
FAUR, Mirella. O anuário da Grande Mãe. São Paulo: editora Alfabeto, 2016.
FRAZER, James. The Golden Bough; a Study in Magic and Religion. Londres: Oxford University
Press, 1890.
GIMBUTAS, Marija. The living Goddesses edited and supplemented by Miriam Robbins Dexter.
California: University of California Press, 2001.
_________ The Language of the Goddess: Unearthing the Hidden Symbols of Western
Civilization. Londres:Thomas e Hudson, 2001.
MCBEATH, Alastair e GHEORGHE, Andrei Dorian. Meteor beliefs project: Meteorite worship in
the ancient Greek and Roman worlds. WGN, Journal of the International Meteor Organization, 33:
135-144, 2005. Acessado em: https://adsabs.harvard.edu/full/2005JIMO...33..135M
MESKELL, Lynn. Goddesses, Gimbutas and 'New Age' Archaeology. Londres: Cambridge, 1995.
https://www.academia.edu/9188864/Goddesses_Gimbutas_and_New_Age_Archaeology
MELLAART, James. Çatal Hüyük: A Neolithic Town in Anatolia. Londres: Thames & Hudson
Ltd, 1967.
NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância Religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro, Pólen, 2020.
PINTO, Edith Pimentel. 1952. As religiões orientais e o paganismo romano. O culto de Cibele-
Attis. Revista de História, 4(9): 79-87. Acessado em: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/35041-
Texto%20do%20artigo-41144-1-10-20120726.pdf
ROLLER, Lynn E. In Search of God the Mother: The Cult of Anatolian Cybele. California:
University of California Press, 1999.
SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia do
Bolso, 2007.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio
de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002.