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P ara UMA TEORIA DAS MODALIDADES* 1. As estruturas modais simples 1.1. 0 ato Se tomarmos como ponto de partida a definicdo proviséria da moda- lizagdio como “uma modificagao do predicado pelo sujeito”, podemos considerar que 0 ato — e mais precisamente 0 ato de linguagem — é 0 lu- gar de surgimento das modalidades, desde que a insténcia do sujeito modalizador esteja suficientemente determinada. Todo ato estd inserido em uma realidade desprovida de manifestagao linguistica. Assim, o ato de linguagem s6 é manifestado em e por seus resultados, como enunciado, ao passo que a enunciagdo que 0 produz possui somente o estatuto de pressuposicao légica. O ato em geral s6 pode receber uma formulacao linguistica de duas maneiras: ou quando € descrito, de maneira aproximativa e varidvel, no interior do discurso- enunciado, ou quando é objeto de uma reconstrugio légico-semintica, que utiliza os pressupostos extraidos da andlise do enunciado, no dmbito de uma metalinguagem semistica. Tanto num caso quanto noutro, a tini- ca maneira correta de referir-se a ele é dar-lhe uma representacdo se- mAntica candnica. Texto publicado originalmente na revista Langages, n. 43, 1976. 80 ‘SOBRE 0 SENTIDO II - ENSAIOS SEMIOTICOS A definigdo ingénua — e a menos comprometedora — do ato o apre- senta como “aquilo que faz ser”. Ela permite que nele se reconhega imediatamente uma estrutura hipotdxica de dois predicados: fazer vs ser 1.2. Os enunciados elementares A construgao do simulacro lingufstico do ato exige desde j4 uma definigdo prévia do predicado, a qual, por sua vez, nao pode senao re meter a uma ou a outra concepgao da estrutura do enunciado elementar. Trata-se de uma escolha definitiva, uma vez que determina a forma que a teoria lingufsti Postulamos que 0 predicado representa o niicleo, isto é, a relagao constitutiva do enunciado, cujos termos-finais so os actantes. Abstraido 0 semantismo que é investido no predicado ¢ que pode ser “retirado” para ser tratado em separado, o predicado pode ser identificado com a funedo légica, ¢ 0 enunciado, receber a forma canénica de: ica assumird em seu conjunto. FIA, Ao...) Postulamos assim que a fungio pode ser investida de um minimum semantico, que permite estabelecer a distingdo entre duas fungdes predicados: fazer e ser, e assim estabelecer duas formas possiveis de enunciados elementares: enunciados de fazer e enunciados de estado. A fim de representar esses dois enunciados de forma mais abstrata, pode-se designar o predicado fazer como a fungao denominada /trans- formagdol, ¢ 0 predicado ser como a fungao /jungaol. Nota: Os termos ser ¢ fazer poderio, contudo, ser empregados, desde que nao acarretem polissemias inconvenientes 1.2.1. A transformacao Mesmo que seu investimento minimo a faga parecer um universal da linguagem, a transformagdo pode ser considerada, do ponto de vista paradigmitico, uma categoria semdntica e, quadrado dito semistico como tal, projetada sobre o PARA UMA T 81 St So Jassercéio/}\_/ Negagao \V A - /negacao/ |/ \ /assercao/ S: 8: ina a definicao interna de contradi S,¢ 8; =S5. A contradigao surge, Em que /negagao/ = /assercao/ orig 1 ¢ Sy sao contraditérios se entio, como um caso particular da contrariedade. Consideradas do ponto de vista sintatico, isto é. do ponto de vista ao serem efetuadas sobre o quadrado, se constituem das operagdes qu em sucessdes de negacdo # /assercao/ Desse modo, 0 exemplo francés mostra bem que si nao é uma simples asseredo, mas um lexema c gado de “memoria”, que pressupde um enunciado de negagdo que o antecede.” O desvio que acabamos de realizar tem um duplo objetivo: trata-se de justificar a projegiio das categorias bindrias (contraditérias) no qua crado e de marear uma diferenga de tratamento entre a ldgica (que é de natureza frasal e opera somente por substituigdes) e a semidtica discursiva (cujos enunciados possuem, além disso, uma significagao posicional) Em francés, si € empregado para responder afirmativamente a uma pergunta feita por meio de uma negativa, 0 que em portugues ¢ feito por meio do verbo, Exem- plo: “Voce ido vem conosco?” — "Vou (NL) 82 SENTIDG i - ENSAIGS SEMIOTICOS: 1.2.2. Ajuncao A juncao, tomada como eixo semantico, se desdobra em seguida na categoria /conjungao/ |. _~- /disjungao/ {disjuncao/ njuncao/ Nota: Aqui também a posigdo do objeto de valor no percurso sintatico permite distinguir. por exemplo, a /disjungdo/, que caracteriza o objeto que jamais se possuiu, da /conjuncdo/, estado do objeto ao qual se re- nunciou 1.3. Performance e competéncia Pode-se dizer que a jungdo € a relagdo que determina o “estado” do sujeito em relagao a um objeto de valor qualquer, pois apenas as deter- minages, e nao uma “esséncia” do sujeito, permitem que se conhega algo a seu respeito e, notadamente. que ele seja considerado “existente”. Para simplificar as coisas, quando consideramos a jungao uma categoria binaria, dizemos que 0 sujeito pode ser descrito com a ajuda de dois enunciados de estado diferentes S$: 0, 0u S$. 0; Jaa transformagdo (assergdo ou negacado) explica o que se passa na passagem de um estado a outro. Constitutiva de enunciados de fazer. a transformacao ter por objeto sintitico nao mais um valor qualquer. mas um enunciado de estado. Toda transformagéo produz, portanto, uma 0. ¢ todo enunciado de fazer rege um cnunciado de estado. A re- presentagaio canénica de tal organizagao entao sera Sp 05(S, 40.) onde > indica a transformacao © indica a jungao PARA UMA TEORIA DAS MODALIDADES 83 Essa organizagiio hipotaxica de dois enunciados elementares (que corresponde, na lingua natural, 4 expressio fazer-ser) pode ser denomi- nada performance. A performance nao esgota, percebe-se, a definigéo ingénua de ato, pois 0 ato nao é um “fazer-ser”, mas “aquilo que faz ser”, em que o “aquilo que...” constitui, de certa maneira, o “ser do fazer” e pode ser formulado como um novo enunciado de estado, hierarquicamente supe- rior, que explica a existéncia virtual, logicamente pressuposta, da instén- cia que produz o fazer. Esse “ser do faz to, ser denominado competéncia; e 0 préprio ato pode ser definido ” ao qual voltaremos, pode, en- como uma estrutura hipotaxica que retine a competéncia e a performan- ce, sendo que esta pressupée aquela, mas nao o contrério. Dado que toda modificagao de um predicado por outro predicado é definida como sua modalizagiio, tanto a performance quanto a compe- she ia devem ser consideradas estruturas modais. Nota: Por isso, todo predicado que rege outro predicado se torna, em raziio de sua posigao sintética, um predicado modal, que, mesmo preservando seu estatuto enunciativo canénico (formador tanto de um enunciado de fazer esar da identidade das lexica- quanto de um enunciado de estado), pode, ap. lizagGes nas linguas naturais, receber novas sobredeterminagdes semanticas. 1.4. As modalizagées translativas As definigdes de performance e competéncia foram obtidas por meio do aproveitamento de duas organizagdes modais: fazer modalizando ser ser modalizando fazer Percebe-se que ainda restam duas combinagées possiveis: ser modalizanco ser fazer modalizando fazer As estruturas modais que nos propomos a examinar exigem a pre- senga de duas instncias modalizantes distintas, pois 0 sujeito moda- lizador deve necessariamente ser diferente do sujeito cujo predicado é 84 SOBRE 0 SENTIDO || - ENSAIOS SEM/OTICOS modalizado: por isso pode-se dizer que lidamos com modalizagdes translativas. 1.4.1. As modalidades veridictorias Um enunciado modal de estado que tem por sujeito $; pode modifi- car totalmente outro emunciado de estado produzido e apresentado pelo sujeito S> Quando se trata de ares de linguagem, tal esquema pressup6e a exis- téncia de duas inst&ncias, enunciador e enunciatério, sendo que o segun- do, que se supde ser 0 sujeito modatizador, sanciona o enunciado produ- zido pelo primeiro. Essa distingao, necesséria no plano te6rico para que se determine © modo de geragdo das modalidades, pode se apagar quan- do se considera apenas o funcionamento pratico do discurso, pois 0 ator “sujeito falante” é, de forma intermitente, actante enunciador e actante enunciatario de seus préprios enunciados. O predicado modal pode ser tratado como uma categoria e decom- posto em /set/ _- [parecer/ “ /parecer/ “ fser/ A categoria se articula em dois esquemas: O esquema /D <«— p/ € chamado manifestagdo O esquema /S

. O ato de $), mesmo cognitivo translativo. Nota-se nesse momento 0 quanto a organizagao sintagmatica do ato se assemelha a do discurso narrativo, ou antes ao programa narca- tivo candnico: este, articulado em duas componentes, competéncia e performance, refere-se geralmente & instancia do destinador, encarre- gado, primeiro, de outorgar um mandato ao sujeito e, em seguida, de sanciona-lo 2. As sobremodalizagoes 2.1. Acompeténcia e suas sobredeterminacées, Esperamos que a instalacio do dispositive sintagmatico das modali- dades que acabamos de propor ajude a estabelecer os pontos de reflexao e a tragar as contiguragdes dos campos epistémicos a partir dos quais uma teoria das modalidades poderia ser concebida e construida. Vé-se, por exemplo, que uma feoria da performance que englobe tanto o fazer factitivo quanto o fazer transitivo poderia se desenvolver em duas com- ponentes: uma feoria da manipulacdo e uma teoria da acdo. Seria bom. também se uma teoria paralela, a da competéncia, que se integrase tan- to quanto possivel as pesquisas convergentes dos légicos e dos Semio- licistas, possa, enfim, se constituir. De fato, quer se trate do “ser do fazer”, da competéncia pragmatica er do ser”, da competéncia cog- nitiva que o habilita a fazer julgamentos sobre os objetos enunciados no mundo, 0 “ser” ou o “estado” de que falamos em ambos os casos se nos apresenta intuitivamente como uma instdncia potencial na qual se situa do sujeito que se dispoe a agir, ou do 0 conjunto dos antecedentes do fazer e do ser. Por outro lado, essa ins tancia surg para empregar o termo de Guillaume, como 0 lugar de “tensiio” que se estabelece entre 0 ponto zero e 0 ponto em que se rea- liza 0 fazer ou o ser, estado tenso, que por causa disso capaz de rece- ber articulages mais finas que. sob a forma de sobredeterminagées modais, tuncionam como se fossem balizas. PARA UMA TEORIA DAS MODALIDADES 89 2.2. Inventdrio provis6rio Um inventario provisério das sobremodalizag6es da competéncia, que em nenhuma hipétese é definitivo — pois se baseia apenas na expe- riéncia limitada da andlise dos discursos narrativos e das descrig6es de algumas linguas europeias (alemao, inglés, francés) — pode agora ser proposto com quatro modalidades: /querer/ /dever/ /poder/ /saber/ Essas modalidades podem modular o estado potencial denominado competéncia e assim reger os enunciados de fazer e de estado, modifi- cando, de certo modo, seus predicados. O inventdrio proposto é provisério em dois sentidos: primeiro, por nao ser organizado como uma taxionomia; em seguida, por nao ser fe- chado. Assim, ao passo que o semioticista tenderé a interpretar esponta- neamente o dever como o querer do destinador, para o légico 0 querer pode surgir como um dever autodestinado. A conclusao que se pode ti- rar no momento atual é a possibilidade de estabelecer, seguindo uma andlise ao mesmo tempo sémica e sintdtica, um sistema modal interde- finido e autossuficiente. 2.3. Categorizagao e denominagao Quando se considera que cada uma das modalidades do inventario é uma forma modificada do “ser do fazer”, torna-se possivel categorizé- Jas uma a uma e projeté-las no quadrado semiético, inserindo-as em um sistema bindrio composto pelo predicado modal e pelo predicado fazer (conforme 1.4.2): dever fazer dever nao fazer nao dever nao fazer n&o dever fazer 90 ‘SOBRE © SENTIDO II - ENSAIOS SEMIOTICOS A categoria modal obtida pode ter seus termos denominados como prescrigaéo nterdic&o permissividade {- “> facultatividade O procedimento de denominagdo permite que se encontre, com algu- mas poucas modificacées, o dispositive das modalidades deénticas uti- lizado em certas Idgicas modais. Do ponto de vista tinguistico, toda denominagao é arbitréria, ainda que. no momento de sua lexicalizac&o, possa ser mais ou menos motiva- da semanticamente. Para que se torne operacional no plano metalinguis- tico que ajuda a fundar, ela deve comportar uma definigdo estrutural que a integre no conjunto coerente dos conceitos de mesmo nivel. Ora, em nosso caso, 0 procedimento de denominagao consiste no que se pode chamar nominalizagao, isto é, na conversdo de uma formu- lado verbal em formulagao nominal que transforme o predicado modal em um valor modal. Mais ainda: 0 resultado convertido e nominalizado € 0 que ja chamamos uma estrutura modal, que é uma organizagiio hipotéxica de um enunciado modal ¢ de um enunciado descritivo, ¢ nado 0 predicado modal sozinho. F 0 caso de, por exemplo: /prescrigéio/ ‘dever-fazer/ Os valores modais, utilizados em l6gica, devem, consequentemente, ser entendidos, do ponto de vista semistic de definigées sintdticas, como sao as estruturas modais correspondentes. |, como denominagdes dotadas 2.4. As modalizagdes do sujeito e do objeto Empregando-se 0 mesmo procedimento, é possivel fazer a categori- zagao da estrutura modal do /dever-ser/ ¢, ao mesmo tempo, dotar as posigdes taxicas obtidas de denominagées correspondentes: necessidade impossibilidade dever-ser [~\ dever nao ser L nao dever ser | contingéncia ndo dever ndo ser possibilidade uma TEOR| MODALIDAD: on Reconheceremos sem dificuldade no dispositivo assim obtido as mo- dalidades aléticas A comparacao entre as modalidades dednticas ¢ as aléticas é suges- tiva: ao passo que suas denominagoes tendem a separd-las ¢ a fazer com que sejam consideradas modalizagées distintas, suas detinigdes sintéti- cas as aproximam: sendo os predicados modais idénticos nos dois ca- Sos, apenas a natureza dos enunciados modalizados (enunciados de fazer ou de estado) as distingue. Por isso, uma vez que a semistica procura se prover de uma taxiono- mia ¢ de uma tipologia das modalidades, ela deve evitar denominagdes muito apressadas que. sendo semanticamente motivadas, arriscam-se a ficar impregnadas de um relativismo cultural dificil de discernir; nesse estagio devemos nos contentar com definigSes modais cuja categoriza- co, ao ulilizar um simbolismo bastante simples, m = enunciado modal = enunciado de fazer e = enunciado de estado tomara as formas de mf mF | ou mf ~ mF | me ~ me Investindo-se sucessivamente os quatro predicados modais seleciona- dos — querer, dever. poder e saber — no enunciado modal, obtém-se oito categorias modais que articulam a instancia da competéncia e permitem prever tantas ldgicas quanto possivel: ao lado de uma ldgica deéntica. que repousa sobre 0 dispositivo modal oriundo do /dever-fazer/, uma légica volitiva ou bulidtica, por exemplo, articulada em torno de /que- rer-fazer/ é facilmente previsivel ¢ assim por diante. A distingdo entre as modalizages do fazer ¢ as do ser deve, contu- do, ser mantida. Dir-se-4 que no primeiro caso a modalizagio tem por objeto 6 predicado considerado em sua relagdo com 0 sujeito e, no se- gundo, em sua relagao com 0 objeto: duas espécies de légieas — légicas subjetivas, que descrevem e regulamentam as modalizacdes das sniei- 92 OSENTIDO I ENSAIOS SEMIO tos, e objetivas, que tratam dos modos de existéncia dos objetos ciados — podem ser distinguidas enun- 2.4.1. Aabordagem sintagmatica O procedimento da categorizacdo que tentamos promover permite entrever a possibilidade de uma taxionomia modal. Todavia, esta sé podera ser constituida a medida que uma rede de interde recubra 0 conjunto de categorias modais e articule seus nticleos sémi- cos, seja progressivamente constituida. Apesar de algumas tentativas interessantes — mas que se apoiam apenas na intuigdo — nao é 0 caso no nigdes, que momento. Por isso, se podemos conceber a distribuigao dos espacos modais a partir dos quais as légicas modais particulares podem ser constnifdas, é dificil imaginar a conexdo de umas nas outras. A partir dai, pode-se tentar uma abordagem diferente, investigando. em uma perspectiva propriamente semidtica, se nao seria possivel ima- ginar ¢ precisar as condigdes nas quais as modalidades estudadas pode- riam constituir sequéncias sintagmaticas ordenadas ou, na falta destas, percursos sintaticos previsfveis. Isso permitiria responder, ao menos par- cialmente, a quest6es ingénuas tais como: qual percurso é adotado para chegar da instancia geradora ab quo, do ponto zero, até a instancia ad quem, drealizacio do ato, isto é, 4 performance. Por outro lado, como se simples quaisquer, que podem ser atribuidas a quaisquer s enunciados de estado, isto é, de determinagées sujeitos, a um saber certo ¢ assumido sobre 0 mundo e sobre os discursos que o relatam? chega, partindo de E evidente que no momento atual é impossivel dar respostas satisfa- (6rias a tais quest6es. Entretanto, a busca pelo saber comeca quase sem~- pre por quest6es ingénuas. Afirmar a “competéncia” como um bloco como um conceito no analisavel € til em um primeiro momento, mas invidvel em longo prazo, Tratar as légicas modais como um repertdrio dos modelos é bom, mas poder consideré-las do ponto de vista semi6ti- co, como marcos que delimitam etapas sucessivas de um discurso da verdade, seria ainda melhor. 2.4.2. Organizagao da competéncia pragmatica Se levarmos em conta apenas a competéncia pragmitica e, além dis- so, a considerarmos uma instincia potencial pressuposta pelo ato, pode- Temos propor sua articulagao em dois niveis de existéncia, sendo que: PARA UMA TEORIA DAS MODALIDADES 93 (a) cada nivel sera caracterizado por um modo de existéncia semiético particular e (b)os niveis manterdo entre si a relagao de pressuposi¢ao orientada a partir da performance (que pressupGe a competéncia). Desse modo obteremos: COMPETENCIA PERFORMANCE modalidades modalidades modalidades virtualizantes atualizantes realizantes. dever-fazer poder-fazer fazer-ser quererfazer saber-fazer O esbogo da organizagao sintagmética das modalidades que propo- mos s6 pode ter um cardter operatério. Em parte, ela é sugerida por uma longa tradigao filos6fica e se apoia sobretudo no reconhecimento dos es- quemas can6nicos da narrag4o, em que as duas instAncias — a da instau- ragao do sujeito (marcada pelo surgimento das modalidades eficientes de /dever-fazer/ e/ou de /querer-fazer/) e a da qualificagao do sujeito (modalidades de /poder-fazer e/ou do /saber-fazer/ que determinam os modos de agio ulterior) — distinguem-se de forma muito clara. Todavia, fato curioso, tal organizago sintagmiatica, que gostarfamos de considerar can6nica, se isso parecer justificado in abstracto, como simulacro da passagem ao ato, nao corresponde ao que se passa no nivel da manifestago e, notadamente, nos discursos que descrevem a aquisi- ¢ao da competéncia que desencadeia performances: 0 sujeito pode por exemplo, ser dotado do poder-fazer e nem por isso possuir 0 querer- fazer que deveria precedé-lo, Trata-se aqui de uma dificuldade que a catélise, a explicitagdo dos pressupostos, nao pode resolver sozinha, pois tudo se passa como se as modalizagGes sucessivas que constituem a competéncia pragmitica do sujeito nao fossem provenientes de uma Unica insténcia original, mas de varias (de varios destinadores, dir-se-ia em termos de graméatica narrativa). A interpretagio que propée distin- guir modalidades intrinsecas (0 querer-fazer e o saber-fazer) opondo-as as modalidades extrinsecas (0 dever-fazer e 0 poder-fazer), por mais interessante que seja, ainda nao parece trazer uma solugao definitiva'. Ter o artigo de Rengstorf, “Pour une quatritme modalité narrative”. Langages, 43, 1976, p. 71. 94 SOBRE 0 SENTIDO Il - ENSAIOS SEMIOT Por esse motivo, pensamos que, por enquanto, é oportuno procedzr — em busca de um método apropriado — a confrontagées das estruturas modais, procurando homologé-las por pares a fim de identificar, se pos- sivel, os critérios de sua compatibilidade. 3. As confrontagdes modais 3.1. Modalizagées aléticas Para comegar — ¢ em razdo de a associagao escolhida nos parecer inte! Ihar duas categorias modais objetivas, aquelas cujas estruturas modzis (correspondentes ao termo S, do quadrado) foram ini cidas como /dever-ser/ ¢ /poder-ser/ A operagiio pode ser concebida como uma série de quatro homologa- ges: ssante do ponto de vista metodolégico — pode-se procurar empare- ialmente reconhe- 1) Homologagao 1: sobreposigao simples de duas categorias modais articuladas em quadrados. 2) Homologagao 2: sobreposi cixos da segunda modalidade. 3) Homologacao 3: sobreposigao com inversdo dos esquemas da segun- da modalidade. 4) Homologagao 4: sobreposigao com inversdo das déixis. Gio dos o de duas categorias com invers O quadro a seguir, que representa o resultado das homologagées. é seguido de algumas notas explicativas e interpretativas. Confrontagiio de /dever-ser/ ¢ de /poder-ser/ I. Compatibilidades (1) Complementariedade (homologagio 1) necessidade(s) dever-ser dever nao ser | impossibilidade(s) possibilidade(o) poder-ser \v poder nao ser| contingéncia(o) dossibilidade(s} néo dever nao ser| / (0) n&o poder n&o si contingéncia(s} impossibilidade(o) nao dever ser necessid; no poder ser PARA UMA TEORIA DAS MODAL/DADES (2) Conformidades (homologagao 2) necessidade(s) necessidade(o) possibilidadets) possibilidade(o) dever-ser nao poder nao ser dever nao ser nao poder ser nai poder ser \ nao dever ser poder nao ser IL. Incompatibilidades (1) Contrariedades (homologagao 3) necessidade(s) impossibilidade(o) possibilidade(s) Contingéncia(o) necessidade(s) Contingéncia(o) possibilidade(s) nao dever nado ser nao dever ser impossibilidade(o) nao poder ser nao poder nao ser dever-ser no poder ser dever nao ser n&o poder nao ser 10 dever nao ser nao dever ser “poder ser dever-ser poder nao ser 95 impossibilidade(s) impossibilidade(o) contingéncia(s) contingéncia(o) impossibilidade(s) necessidade(o) contingéncia(s) possibilidade(o) impossibilidade(s) possibilidade(o) contingéncia(s) necessidade(o) (1) Ao lado das definigées sintaticas das estruturas modais (que temos expressado em lingua natural, mas cuja formulagao encontraremos em 2.4), julgamos conveniente acrescentar suas denominagées. Sen- do nos convidava — utilizar as mesmas denominagoes para as duas cate- gorias modais, de tal forma que, por exemplo: tas arbitrarias, pareceu-nos sugestivo — uma vez. que a intuigaio S, (de) = S) (pe) mesmo que em seguida tenhamos que nos interrogar sobre este fato inesperado. 96 ‘SOBRE 0 SENTIDO II - ENSAIOS SEMIOTICOS (2) As quatro homologagées permitem obter a confrontagao de dezesseis termos t4xicos associados, dos quais oito so compativeis e oito, incompatfveis. Sao compativeis os emparelhamentos cujos termos per- tencem 4 mesma déixis e incompativeis os que pertencem a déixis diferentes. Distinguem-se ainda dois tipos de compatibilidade: a complementa- ridade e a conformidade. A complementaridade caracteriza dois termos que ocupam a mesma posi¢io t4xica e pode ser interpretada como a possibilidade de sua inscrigaéo no mesmo programa modal (que marca tanto a progressdo quanto a regress4o no processo de modalizagao). A conformidade € 0 resultado do encontro de dois termos diferentes na mesma déixis e marca sua concomitancia na mesma posigao sintagmé- tica do programa modal. ~ A incompatibilidade das estruturas modais é de duas espécies: fala- remos de contrariedade quando se tratar da confrontagio de dois termos em posi¢ao téxica de contradigao, e de contradigao quando dois termos confrontados estiverem em posi¢o taxica de contrariedade. Tanto num caso quanto noutro, a incompatibilidade corresponde a impossibilidade de sua insergdo no mesmo programa modal e transforma o confronto em enfrentamento. Nota: Uma dificuldade surge no nivel do eixo dos subcontrdrios da tercei- ra homologagao, levantando, uma vez mais, a questo de saber se os sub- contrérios podem se definir sempre pela relago de contrariedade. (3) A confrontagao das duas categorias modais produz, quando da segun- da homologagao, um caso particular de conformidade que resulta, se nos ativermos as suas denominagées intuitivas, em sua identificagao. Duas interpretagGes so aqui possiveis. Do ponto de vista paradigmé- tico, o /dever-ser/, denominado necessidade, se apresenta como igual ao contraditério do contrario de /poder-ser/ que é /no poder nao ser/ e que foi igualmente denominado necessidade. Nesse caso, as duas es- truturas modais, o /dever-ser/e 0 /poder-ser/, devem ser consideradas contraditérias, ¢ essa constatagao se apresenta como 0 inicio da orga- nizagao taxionémica de nosso inventario provisério das modalidades. Do ponto de vista sintagmatico, entretanto, podemos nos perguntar se as denominagées um pouco agodadas nao escondem diferengas situa- PARA UMA TEORIA DAS MODALIDADES 97 das em outro nivel; se, por exemplo, as duas “necessidades” nao se distinguiriam da mesma forma; isto ¢, como se distinguem o “determi- nismo nas mentes” e 0 “determinismo nas coisas” ou as “estruturas construidas” e as “estruturas imanentes”. Se tal fosse 0 caso, poder-se- ia distinguir a necessidade proveniente do sujeito (coeréncia dos mo- delos e da metalinguagem) da necessidade proveniente do objeto (re- sisténcias do referente); a confrontag’o dessas duas categorias modais poderia, entio, ser inscrita no programa modal da competéncia episté- mica como um segmento no qual se situaria a problemitica da ade- quagdo (como definigdo possivel da verdade). (4) O modelo de confrontagdes, obtido com a ajuda de homologagées su- cessivas, parece-nos Util para testar outras compatibilidades e/ou in- compatibilidades das estruturas modais que poderiam ser inseridas em um mesmo programa de modalizacao, seja do sujeito seja do objeto. 3.2. Modalizagdes dednticas e bulidticas Armados com 0 procedimento de homologagGes, podemos agora voltar 4 competéncia pragméatica para tentar uma nova confrontagao das. modalidades virtualizantes do /dever-fazer/ ¢ do /querer-fazer/ Confrontagao do /dever-fazer/ e do /querer-fazer/ I. Compatibilidades (1) Complementariedades obediéncia dever-fazer dever nao fazer ativa querer-fazer querer nao fazer vontade nao dever nao fazer nao dever fazer passiva nao querer nao fazer nao querer fazer (2) Conformidades obediéncia dever-fazer dever nao fazer passiva n&o querer nao fazer nao querer fazer vontade nao dever nao fazer nao dever fazer ativa querer fazer cuerer nao fazer Hi 98 ‘SOBRE 0 SENTIDO Il - ENSAIOS SEMIOTICOS IL. Incompatibilidades (1) Contrariedades resisténcia dever-fazer dever nao fazer passiva nao querer fazer nao querer nao fazer abulia nao dever nao fazer nao dever fazer ativa querer nao fazer querer fazer (2) Contradigées resisténcia dever-fazer dever nao fazer ativa querer nao fazer querer fazer abulia nao dever nao fazer nao dever fazer passiva nao querer fazer nao querer nao fazer A interpretagio do quadro sugere algumas observagées: (1) Os emparelhamentos efetuados parecem representar um conjunto de posigdes modais do sujeito pragmatico no momento em que ele pre- enche as condigGes necessérias 4 conclusdo do contrato; portanto, quando o destinador j4 transmitiu, com a ajuda da modalizag&o fac- titiva, o contetido deéntico de sua mensagem. Dotado de duas moda- lidades distintas, 0 sujeito se encontra em uma posi¢4o que pode originar tanto a aceitagdo (em caso de compatibilidade modal) quan- to a recusa (em caso de incompatibilidade) do contrato, sendo que ambas (= assergao e negacdo) dependem da performance cognitiva, que é a decisao. (2) A simples combinatéria obtida comporta oito posigdes de aceitacao € oito de recusa. Nota: E evidente que a recusa também deve ser considerada uma forma de contrato; ela nao interrompe o desenrolar do programa de modalizagao do sujeito, mas produz sua inflexdo em uma nova diregao. Se agora denominarmos apenas os eixos das modalidades empare- Ihadas, poderemos, apesar do cardter bastante aproximativo dessas de- nn PARA UMA TEORIA DAS MODALIDADES 99 nominagGes, ter uma ideia da distribuig&o dos papéis actanciais do sujei- to do consentimento. obediéncia ativa vontade ativa vontade' passiva obediéncia passiva e do sujeito da recusa tesisténcia ativa abulia ativa abulia passiva resisténcia passiva (3) Vé-se que tal tipologia de sujeitos que sao intimados a confrontar seus deveres e vontades est na 6rbita tanto da semi6tica de6ntica quanto da semi6tica bulidtica, e que, ao mesmo tempo, pode ajudar a esclarecer certos aspectos da tipologia das culturas e, mais precisa- mente, a descrever as “atitudes” do individuo em relagao a socieda- de. Vé-se, por exemplo, que o contexto cultural europeu valoriza como “criadores” os papéis actanciais da “vontade ativa” e da resis- téncia ativa. (4) As confrontagSes modais da resisténcia ativa néo fazem nenhum prejulgamento do desenvolvimento sintagmatico das modalizagées nem de seu ordenamento em sequéncias. Assim, seguindo a priorida- de sintagmdtica concedida a uma ou a outra das estruturas modais, podem-se prever dois tipos de contratos: Contrato injuntivo = /dever-fazer/ —* /querer fazer/ Contrato permissivo = /querer fazer/ — /dever fazer/ Nota: deve-se observar, todavia, que 0 contrato permissivo é facultativo: ele nao é pressuposto pelo estabelecimento da modalizacao volitiva. 3.3. Sistemas das regras e aptiddes dos sujeitos Esperamos que um tltimo exemplo possa oferecer um modelo de representacao do funcionamento dos cédigos sociais, isto é, dos siste- mas de regras mais ou menos coercitivas, implicitas ou explicitas, que sdo confrontadas com dispositivos compardveis que correspondem as diferentes articnlacHes da camneténcia das enieitne ans anaic ca anli- 100 SOBRE 0 SENTIDO Il - ENSAIOS SEMIOTICOS cam. Tratar-se-4 aqui apenas da confrontagao das modalidades do /de- ver-fazer/ e do /saber-fazer/, mas a justaposigao da primeira com o /po- der-fazer/, talvez fosse tao sugestiva quanto. Confrontagao do /dever-fazer/ e do /saber fazer/ I. Compatibilidades (1) Complementariedades dever-fazer dever nao fazer 5 saberfazer saber nao fazer nao dever nao fazer nao dever fazer no saber nao fazer nao saber fazer (2) Conformidades dever-fazer dever nao fazer nao saber nao fazer no saber fazer nao dever nao fazer nao dever fazer saber fazer saber nao fazer IL. Incompatibilidades (1) Contrariedades dever-fazer dever nao fazer n&o saber fazer nao saber nao fazer nao dever nao fazer nao dever fazer saber nao fazer saber fazer (2) Contradigées dever-fazer dever nao fazer Saber nao fazer saber fazer nao dever nao fazer dever nao fazer nao saber fazer ~ nao saber nao fazer Di PARA UMA TERIA DAS MODALIDADES 104 Notas: (1) A confrontagao desses dois tipos de modalidades permite representar a aplicacio dos c6digos sociais de cardter normativo tais como —regras de gramatica — regras de jurisprudéncia —regras de usos e costumes (codigos de cducaciio, etiqucta) etc. feita pelos sujeitos dotados de um /saber-fazer/ isto €, de uma espé- cie de “inteligéncia sintagmatica” que pode ser inserida em uma tipo- logia como um dispositivo de aptidées ¢ de inaptidées. Dada a diver- sidade de isotopias semanticas sobre as quais tais aplicagdes podem ser efetuadas, seria pouco prudente, neste estagio, tentar encontrar, para cada emparelhamento, uma denominagao apropriada (por exem- plo, os “excessos de zelo” corresponderdo, segundo o cddigo da po- lidez, &s “hipercorregdes” em gramitica) (2) A confrontagao pode ser concebida de duas manciras diferentes: no nivel da competéncia, ela determina os modos de agdo eventuais e pode originar uma tipologia de papéis sociais; apreendida ap6s a re- alizagdio das performances, ela serve para constituir uma grade no in- terior da qual poderd exercer a sangao (exames, rituais de iniciagdo, qualificagdo e reconhecimento dos sujeitos etc.), que é uma forma de veridicgao que tem por objeto a competéncia dos sujeitos. 4. Para concluir A necessidade, sentida h4 muito, de introduzir e explicitar a compo- nente modal de uma gramética discursiva vindoura esta na origem deste texto e das reflexGes nele contidas. O que inicialmente se resumia a um desejo de assinalar a existéncia de um local de questionamentos ¢ um campo teérico a ser desbravado propiciou alguns desenvolvimentos mais aprofundados, algumas formulagdes provisérias: isso porém no significa que o imenso dominio de intervengdes modais — pensamos Principalmente nas modalizagées epistémicas — tenha sido explorado. S OBRE A MODALIZAGAO DO SER” . 1. Taxionomias e axiologias a [Eee semantismo (“nogao”, “campo”, “conceito”, “lugar”, “territ6- tio” etc.), quando entendido como uma relagao e apresentado como um eixo semantico, é passfvel de ser articulado em uma categoria se- mantica que pode ser representada com a ajuda do quadrado semistico. Uma categoria semntica pode ser axiologizada pela projegao da categoria timica no quadrado que a articula, de modo que os termos contrdrios serio denominados /euforia/ e /disforia/. Trata-se de uma ca- tegoria “primitiva”, também chamada proprioceptiva, com a ajuda da qual procura-se formular, muito sumariamente, a maneira como todo ser vivo, inserido em um meio, “sente” a si proprio e reage a seu entorno, ser que é entendido como “um sistema de atragdes e repulsGes”. A cate- goria timica pode, assim, em certa medida, ser homologada com o ter- mo /animado/ da categoria /animadol vs /inanimado/, geralmente admi- tido em lingufstica. O quadrado e a categoria por ele representada como uma taxionomia sero, entao, ditos axiologizados, e os termos que os constituem — reco- * Anteriormente a sua publicagdo, esse texto surgiu no Bulletin du Groupe de Recherches Sémio-linguistiques (EHESS-CNRS). 104 nhecidos e interdefinidos — poderao ser denominados valores axiolégi- cos (e nao apenas valores descritivos — ou tinguisticos — no sentido saus- suriano de “valor”) e receberao nesse nivel abstrato o estatuto de valores virtuais. Dir-se-A, portanto, que a aplicagao do “timico” sobre o “descri- tivo” transforma as taxionomias em axiologias Nota: Homonimias inconvenientes se introduziram inadvertidamente na designagao dos termos que definem os diferentes modos de existéncia semistica: /virtualidade/ ~ /atualidade/ ~ /realidade/. Por um lado, para designar os diferentes niveis de profundeza das estruturas semiéticas em geral, dizemos que as estruturas profundas sao virtuais, as semionarrativas so atualizadas, ¢ as discursivas, realizantes. Por outro, para distinguir as diferentes fases da modalizagao do sujeito do fazer (a aquisigao de sua competéncia modal), dividimos as modalidades em virtualizantes (querer e dever-fazer). atualizantes (poder e saber-fazer) ¢ realizantes (Lazer-ser). As confusdes siio, todavia, relativamente raras 2. Problemas de conversao Ha de ser lembrado que pelo nome conversdo designamos 0 conjun- to de procedimentos que explicam a passagem (~ transcrigiio) de uma unidade semistica situada no nivel profundo para uma unidade da estru- nova unidade considerada, ao mesmo tem- po, homotopica e heteromorfa em relacao & antiga, isto é, como enqua- ura de superficie, sendo e: drando 6 mesmo contetido (6pico e contendo mais articulagdes signifi- aS, cantes, sintiticas e/ou propriamente semanti A conversao dos valores axiologizados, de que agora nos ocupamos, consiste (a) na manutencio de seu estatuto de valor axiol6gico, ¢ (b)em sua atualizagdo, que se efetua pela assuncao dos valores pelos sujeitos ou, o que dé no mesmo, pelo estabelecimento de uma rela- cao de determinado tipo entre valores e sujeitos. Em virtude de, no nivel profundo, o valor axiolégico ser definido de modo a comportar dois elementos — um termo sémico sobredeterminado por um termo timico —, dois aspectos desse procedimento de conversdo devem ser enfocados separadamente: SOBRE A MODALIZAGAO DO 105 (a) do ponto de vista semantico, os valores considerados termos sémi- cos, passiveis de ser selecionados no interior do quadrado, sio ditos convertidos quando estiverem investidos nas entidades sintaticas cha- madas objetos, as quais se definem pela relagio de jungao que man- tém com os sujeitos. Os valores sii, entao, representados como ins- critos nos enunciados de estado; (b)a conversao dos valores considerados em seu aspecto timico leva a um novo problema, de cardter muito geral. 3. Espaco timico e espaco modal Tal conversdo pede uma hipétese geral que pode ser postulada nos seguintes termos: o espaco significante que, no nivel das estruturas profundas, é articulado com a ajuda da categoria timica deve ser con- siderado homotépico e heteromorfo em relacdo 4 totalidade das articu- lagées modais que regem, no nivel das estruturas semidticas de super- ficie, as relagées entre os sujeitos e os objetos. Dito de outra forma — pois convém qué esse postulado epistemolégico seja explicitado -, 0 es- pago timico que, no nivel das estruturas abstratas, supostamente repre- senta as manifestagdes elementares do ser vivo em relagdo a seu meio- ambiente (conforme acima /animado/) encontra sua correspondéncia, no nivel mais superficial, antropomérfico, do percurso gerativo, no espago modal que, embora recubra 0 mesmo lugar t6pico, se apresenta como uma excrescéncia e como uma sobrearticulagao do primeiro (e pode ser aproximado do termo /humano/). Diremos, portanto, que a conversio dos valores — tal como a assun- cao de um termo sémico que é selecionado no interior do quadrado semidtico e inscrito como valor no objeto — implica também a selegao de um termo timico que é convocado a se investir na relagdo que liga o sujeito ao objeto. A relagao entre ambos, que define o sujeito como im, dotada de um “excedente 80 que o ser do sujeito passa a estar modalizado de existindo semioticamente, encontra-se, a: de sentido”, ao pz uma maneira particular. A modalizagao se apresenta, entao, como resultado de uma série de subarticulacdes significantes da massa timica amorfa. Constitufda ini- cialmente como categoria timica do nivel profundo, ela se diferencia 106 ‘SOBRE 0 SENTIDO Il ~ ENSAIOS SEMIOTICOS, mais uma vez em categorias modais no nivel antropomérfico. As confi- guragdes modais, obtidas por essas categorizagGes sucessivas, devem ser consideradas universais e construidas ao mesmo tempo. Sao construi- das porque — apesar das evidéncias intuitivas, sempre contestaveis, e das andlises indutivas de suas lexicalizagées nas linguas naturais, jamais convincentes — apenas os critérios sintaticos da gramatica semionarrati- va podem fundar sua discriminagao e sua interdefini¢ao. Por esse motivo, apenas na perspectiva hipotético-dedutiva se pode dizer que a categoria timica correspondem, no nivel mais superficial, quatro categorias modais, e que um termo timico tal como /euforia/, por exemplo, pode ser convertido, levando-se em conta a posigdo sintagma- tica da estrutura sintatica no interior da qual ele ser4 investido, em qua- tro termos modais distintos: /querer/, /dever/, /poder/ e /saber/. Nota: Nao surpreende que no nfvel das estruturas antropomérficas (estru- turas semionarrativas de superficie) sejam encontradas organizagées ta- xionémicas que servem de ponto de partida para as construgées sintéticas; pois é af que devem ser definidas nao somente as relagGes entre sujeitos ¢ os objetos, mas também as estruturas actanciais (a fragmentagdo dos pro- toactantes em actantes, negactantes etc.), sem falar das categorias modais que permitem estabelecer a tipologia dos sujeitos e dos objetos. 4. Competéncia modal e existéncia modal Dado que (a) do ponto de vista estrutural, considera-se que as relagdes precedem 0s termos, que apenas resultam delas e sio reconheciveis como pon- tos de intersec¢do com outras relagdes; (b) do ponto de vista sintatico, as relagdes sao constitutivas de enuncia- dos elementares (enunciado de fazer e enunciado de estado); (c)as modalizagdes desses enunciados tém por objeto as relagdes constitutivas de enunciados(chamadas fungées); convém distinguir primeiro, conforme a natureza da relagdo que modi- ficam, duas espécies de modalizagées e, do mesmo modo, duas classes de modalidades: as modalidades de fazer, que regem as relag6es inten- cionais, e as modalidades de estado, que regem as relagées existenciais. SOBRE A MODALIZAGAO DO SER 107 Nota: Vé-se que as modalizag? s antecedem as operagées sintaticas que supostamente descrevem os enunciados, pois para “fazer” & preciso, pri meiro, “poder fazer”; e as operagdes de assercdo ¢ de negagao press poem o querer ¢ 0 poder assertar ou negar; € assim também com o objeto de valor, que é “desejado”, independentemente das operacées de conjun- gdo € disjungdo, ¢ anteriormente a ela Por outro lado, o exame da maneira como as cargas semAnticas sao investidas e distribuidas no interior dos enunciados canénicos (por exemplo: “a costureira trabalha” “a moga cose”, “ela costura para fora” etc.) permite que o semioticista, ao construir sua metalinguagem, for- mule essa “carga semntica” suplementar como relacionada a um ou a outro dos elementos constitutivos do enunciado. Desse modo, tal modalizagio pode laco-fungao, ora 0 sujeito, ora o objeto. Diremos, portanto, que as modalizagGes do fazer devem ser interpre- tadas como alterag6es do estatuto do sujeito de fazer e que as modalida- des que o afetam constituem sua competéncia modal. Da mesma manei- ra, as modalizagdes do ser serdo consideradas modificagdes do estatuto er afirmada como tendo por objeto ora a prépria re- do objeto de valor; j4 as modalidades que afetam o objeto (ou melhor 0 valor nele investido) serao ditas constitutivas da existéncia modal do sujcito de estado. Nota: 6 evidente que essas distingdes nao sao feitas apenas para facilitar a formulagao metalinguistica das modalidades ¢ que correspondem tanto a apreensio intuitiva dos fendmenos modais quanto a experiéncia extrafda da pratica dos textos. O sujeito de fazer se apresenta como um agente, um elemento ativo que retine em si todas as potencialidades do fazer; 0 sujei- to de estado, ao contrario, se revela um paciente, ele recebe, passivo, to- dos os estimulos do mundo, inscritos nos objetos que o cercam. A partir dai é possivel colocar em evidéncia a distancia que separa a semidtica modal das légicas modais: ao pa poe a determinar e a formular a competéncia modal dos sujeitos (de fazer) e a exist@ncia modal dos objetos de valor (definidores dos sujei- tos de estado), a segunda, ao considerar que as modalizagdes tém por objeto de modo exclusivo as proposigdes (isto é, as relagdes que as constituem), interessa-se por elas apenas porque modificam essas re: > que a primeira se pro- 108 SOBRE 0 SENTIDO Ii - ENSAIOS SEMIOTICOS. lagées proposicionais. Um exemplo permitira ver as consequéncias desse duplo tratamento. DEVER-FAZER DEVER-SER | légica semiética logica semiética “obrigagaio” “prescrigéo” — “necessério” | “indispensavel” Se na ldgica alética € a relagdo entre sujcito e objeto (ou antes, entre sujeito ¢ predicado) que é definida como “necessdria”, na semidtica € 0 /dever-ser/ que é interpretado como estando relacionado ao objeto de valor, 0 qual é caracterizado como “indispensdvel” para 0 suicito de estado. Do mesmo modo, se na légica dedntica a “obrigagdo” pode ser interpretada como a relagao entre dois sujeitos (ou duas instancias ac- tanciais), na semistica a “prescrigdo” é um /dever-fazer/ “sentido” pelo sujeito ¢ faz parte de sua competéncia modal, ao passo que o cestinador, fonte dessa “prescrig&io”, é caracterizado por um /fazer/ factitivo. ‘Vé-se que as duas abordagens, por mais diferentes que possam ser, s4o igualmente legitimas. Embora sejam claramente distintas quando se trata de enunciados de estado, € preciso cuidado para nao confundi-las no tratamento modal dos enunciados de fazer, mesmo que a abordagem semiética parega ser, 4 primeii ‘a vista, mais “sofisticada”. 5. Estruturas modais e suas denominagdes Ao passo que as modalidades de fazer j4 foram submetidas a um exame mi jes dos detalhado (ver 0 capitulo precedente), as modalizz enunciados de estado ficaram um pouco negligen me parcialmente confundido com o praticado pela légica, que se interes- sa apenas pelos enunciados debreados “objetivados”. A necessidade de distinguir os problemas relativos as modalidades, situados no nivel nar- das, sendo seu exa- rativo, dos da debreagem, préprios ao nivel discursivo, e, ainda, o surgi- mento de uma nova problematica, a das paixdes, nos obrigam a rediscu- tir certas formulag6es muito rigidas, e, também, a tornar mais nitidas as fronteiras entre disciplinas vizinhas. Se, Por um lado, os questionamen- tos sohre a nossibilidade de descrever as “paixdes” parecem hoie impul- GRE A MODALIZAGAO DO SER 109 sionar as pesquisas semidticas em diregdo a constituigdo de uma espécie de psicossemidtica, por outro, os légicos se mostram pouco dispostos a se aventurar nesse terreno. F facil pegar as quatro modalidades capazes de modificar os enuncia- dos de estado, projeta-las no quadrado semidtico e constituir as quatro categorias modais que podem servir de rede taxionémica para uma sinta- xe modal, Entretanto, € sua denominagao que, apesar de arbitraria por definigao, gera dificuldades. As denominagées contém, queiramos ou nao, uma componente de interpretagdo e, bem “‘motivadas”, facilitam o uso nas Iinguas naturais, uso do qual nenhuma metalinguagem pode prescindir. A fabricagao terminolégica solitéria, a que se dedicam certos pesquisado- res, raramente é eficaz; por isso, mesmo permitindo-nos sugerir, a titulo indicativo, algumas denominag sidade se fizer sentir, confiar a tarefa a um “comité terminolégico” com- petente para avaliar seu emprego na pratica de andlises textua s possiveis, preferirfamos, se a neces- desejavel prejudicial querer ser querer nao ser ndo prejudicial nao desejével nao querer nao ser ndo querer ser indispensavei irrealizavel dever ser NZ dever néo ser realizavel NN fortuito nao dever nao ser nao dever ser possivel evitavel poder ser poder nao ser inevitavel |_““ \_ impossivel nao poder nao ser n&o poder ser verdadeiro ilus6rio saber ser /. saber nao ser 2 | \? nao saber nao ser nao saber ser MIOTICOS, 110 SOBRE Notas sobre a denominagio: 1) Na modalizagao relacionada ao objeto de valor, gostarfamos,, por assim dizer, naturalmente, de interpretar 0 /querer-ser/ como © “ser querido” do objeto. Infelizmente, o portugués nem sempre se presta aessas “transformagées passivas”, pois 0 /dever-ser/ nado é um “ser devido” etc. 2) Por serem utilizados para qualificar os objetos modalizados ern sua relagiio com os sujeitos, os adjetivos dotados dos sufixos -4vel, -ivel parecem, ao contrério, adequar-se bem as operagées terminolégicas, 3) As denominagoes escolhidas devem ser diferentes das utilizadas em légica. Por mais imperfeita que seja, a interpretagdo das estruturas modais, realizada gragas as lexicalizagdes denominativas, nos leva, em liinhas gerais, a0 mesmo dispositivo de suas inter-relagdes com o qual de para- s do fazer: mos ao examinar as modalizag (a) Assim, as modalidades do /querer/ ¢ do /dever-ser/, ditas virtualizan- tes, parecem mais “subjetivas”, mais préximas do sujeito do que as modalidades do /poder/ e do /saber-ser/, ditas atualizantes, que sio mais “objeti para 0 estatuto do objeto de valor. (b)Do mesmo modo, a distingio entre as modalidades endégenas (/que- rer/ ¢ /poder/) e as exdgenas (/dever/ e /saber/), propostas inicial men- te por Rengstorf! para as modalizagdes do fazer, parece operaitéria ” ¢ mais determinantes aqui, uma vez que opde os desejos do homem as suas necessid ades; as possibilidades de sua realizagao as resistncias proprias do objeto. 6. Valores modalizados Em decorréncia desse reexame, vé-se que 0 que nos habituamios a chamar de valor, com base nos objetos de valor, é, na realidade, uma estrutura modal V= me (s) “Pour une quatri¢me modalité narrative”, artigo citado. 411 A MODALIZAGKO DO onde “s” designa uma grandeza sémica qualquer, selecionada no mo- mento da conversio, ¢ “me”, uma estrutura modal cujo primeiro termo, ‘m” designa uma das modalidades selecionada i encial modificada pela modalizagao. Nota: Talvez fosse conveniente distinguir, na escrita, um “v” mindsculo, que simbolizasse o valor axiolégico, ¢ um V maiisculo que designasse 0 valor jf modalizado. Uma vez inscrito no objeto, tal valor modalizado (cle proprio actante Jo enunciado de estado), passa, ent&o, a submeter-se As operagées de ungdo (conjungao ¢ disjun sretismo no interior de um mesmo ator ou representado por um ator auténomo e distinto). Assim, por exemplo, um objeto de valor /deseja- vel/ pode estar tanto conjunto quanto disjunto do sujeito de estado. E sossivel dizer, nesse sentido, que um sujeito (de estado) possui uma 2xisténcia modal que pode ser perturbada a qualquer instante, que é submetida as transformac6 stor (sujeito de fazer) quanto por outros atores (sujeitos de fazer) da (0) efetuadas pelo sujeito de fazer (em sin. realizadas tanto pelo proprio sujeito como mesma cena. 7. Conclusoes provisorias No estagio atual de nosso estudo é muito prematuro tentar tirar todas as conclus6es dos esclarecimentos que acabamos de fazer ao estabelecer ama espécie de equilibrio entre as modalizagdes do fazer ¢ as do ser; ontre a competéncia modal ¢ a existéncia modal. As poucas observagoes que poderiamos acrescentar destinam-se, portanto, apenas a mostrar a mportancia dos desatios que se nos apresentam. ‘1)O fato de as modalizacdes do ser poderem ter por objeto qualquer grandeza semistica (s) pode significar duas coisas: primeiro, que o valor investido é uma varidvel da estrutura modal tomada como invariante; segundo, que essa estrutura modal deve ser pensada como um dispositivo permanente que independe de qualquer investimento semantico. Assim, por exemplo, o lexema amor designaria o efeito de sentido de um dispositivo modal enquanto tal, a0 passo que a 112 SENTIDO I~ ENSAIOS SEMIOTICOS avari za comportaria, além disso, o investimento semantico “dinhei- ro” (sem mencionar outras rest igdes que a especificam). (2)0 fato de a grandeza semAntica investida parecer ser dotada de ante- mao, “natural” ou “socialmente”, de uma conotag do timica propria nao impede que sua modalizago se revele positiva ou negativa, As- sim, por exemplo, o termo sémico /vida/ pode ser modalizado como Idesejavel/ ou como /nao-desej el/, € oO mesmo pode ocorrer com seu contrario, /morte/. Esse fendmeno também € observado no trata- mento da categoria /naturezal vs feultura! ou na valorizagao atuali- zante da axiologia figurativa elementar /fogo-dgua-ar-terral (a esse respeito ver nosso livro Maupassant), Vé-se bem que a estratura modal do sujeito de estado recategoriza os sistemas de valores assu- midos por cla. (3) O fato de se falar de valores investidos como sendo grandezas quais- quer permite colocar sob uma mesma etiqueta tanto valores descriti- vos (valores semanticos sfrictu sense) quanto valores modais. E evi- dente que as modalizagées do ser podem ter por objeto essas duas classes de valores, ¢ que os valores modais tais como /saber! ou / poder/, por exemplo, podem, por sua vez, ser sobremodalizados como /desejdveis. lindispensdveis!, Ipossiveis/ ou Iverdadeiros/. (4) Vé-se, alids, que um valor qualquer, investido no objeto, pode ser modalmente sobredeterminado tanto simulténea quanto sucessiva- mente por varias modalidades. O que afirmamos acerca das confron- tagdes modais. a propésito das modalizagées do fazer, também se aplica aqui: no primeiro caso, o da concomitancia, trata-se do célculo das compatibilidades modais (0 sujeito pode julgar um objeto de valor /desejdvell ¢ limposstvell ao mesmo tempo): no segundo, o de sua sucesso, trata-se da descricgdo da histéria modal do sujeito — ao menos dos esteredtipos sintagmaticos modais que ela contém ~ (no esquecendo, todavia, que a hist6ria ja se situa no plano discursivo). A ultima nota diz respeito 4 observagao, absolutamente corriqueira, de que um sujeito pode se relacionar modalmente nao apenas com um tnico objeto de valor, mas com varios ao mesmo tempo. que sua SOBRE A MODALIZAGAO D0 SER 113 existéncia modal pode originar conflitos de valores, questionamentos cognitivos ¢ fiducidrios acerca do valor comparativo dos valores de valor desigual e sofrer tensdes de dimensdo variada; é possivel falar de sujeitos neutros, de estados indiferentes, de competéncia nula. Afirmaremos antes que os sujeitos de estado sao, por definigao, su jeitos inquietos e que os sujeitos de fazer so veleidosos. Assim, por menos que queiramos falar do sentido nesse tumulto modal, do esta- belecimento de encadeamentos légicos de agdes e paixdes de um sujeito, seremos obrigados a nos colocar diante do problema das isotopias modais dominantes ¢ sua discursivizagao.

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