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A cristalização e a adulteração no mel

Robinson Rolim Ressetti, M.S., Eng. Agr.

O mel é um alimento adocicado produzido por abelhas melíferas a partir do néctar presente na base das
flores, ou de secreções de partes vivas vegetais (melato). Outra possível fonte de matéria prima para a
produção de mel são as excreções de insetos sugadores de plantas que se encontram sobre elas
(melato) (Brasil, 2000).

O mel é coletado desde a pré-história e seu valor é reconhecido por todas as civilizações que o
experienciam. Existem registros de utilização do mel, como medicamento e oferenda em cerimônias
religiosas, no Egito e Grécia antigos e na Babilônia (localizada no atual Iraque) (Crane, 1997;
Nascimento, 2013). As propriedades do mel incluem o estímulo do metabolismo e das forças de forma e
sua plasticidade, associadas à solidez nos tecidos estruturais (Híbou, 2016).

O mel fresco (recém-colhido) é uma solução supersaturada de glicose e apresenta consistência entre
sólido e líquido. A composição do mel é função da localização geográfica, condições climáticas, floradas
utilizadas pelas abelhas, estádio de maturação, processamento e armazenamento (Silva et. al., 2004).
Os componentes básicos no mel são açúcares, sendo os monossacarídeos glicose e frutose os mais
abundantes (80 a 85 % dos sólidos) (Zamora e Chirife, 2006). Também estão presentes outros
carboidratos, enzimas, aminoácidos, minerais, ácidos orgânicos, substâncias aromáticas, vitaminas,
pigmentos, cera e grãos de pólen. O mel, geralmente, é composto por 27,5 a 40 % de glicose e 36,2 a
49 % de frutose em função da florada. Por outro lado, o melato ou mel de melato apresenta ao redor de
26 % de glicose e 34 % de frutose (Brasil, 2000; Moreira e De Maria, 2001).

Pode ser utilizado como adoçante natural em substituição ao açúcar de cana-de-açúcar refinado entre
outros. Por ter capacidade limitada de produção e seu valor de mercado ser superior aos dos outros
adoçantes industrializados, é suscetível a adulteração, o que leva a perda de qualidade. E pode mesmo
ser simplesmente falsificado. Nesse caso específico, adulteração é a adição de uma substância a fim de
aumentar a quantidade de outra, e falsificação é uma “imitação econômica” do produto para se passar
pelo original. Ambas constituem fraude, pois visam enganar o consumidor.

Um indicativo popularmente utilizado como atestado de pureza no mel é a cristalização. Entretanto, a


cristalização apenas pode sugerir que o mel é puro, uma vez que o mel adulterado pode ‘cristalizar’
(‘endurecer’) de maneira desuniforme, formando uma “pedra irregular de açúcar”. E a não cristalização
não significa, necessariamente, que o mel é adulterado ou falsificado.

Portanto, esse critério não pode ser utilizado como atestado de pureza.

Também existem outros métodos populares de “comprovação” de pureza no mel, como misturar o mel
com água e verificar sua dissolução, adicionar iodo ao mel e verificar a cor resultante e adicionar
algumas gotas de vinagre e observar se ocorre a formação de espuma entre outros (Covisa, 2018;
Souza e Alcici, 2021). Entretanto, o resultado obtido não é inteiramente confiável na identificação de um
produto puro, adulterado ou falsificado.

A seguir são discutidos alguns aspectos relacionados à cristalização e adulteração no mel.

Cristalização no mel

A cristalização no mel ocorre pela formação de hidratos de glicose. O teor de umidade e sua atividade
de água (Aw) são os principais fatores que influenciam a cristalização, qualidade e vida útil do mel.
Quanto menor a umidade inicial, maior a concentração de monossacarídeos com consequente maior
possibilidade de cristalizar. O teor de umidade é o teor total de água em um determinado produto,
enquanto a Aw é a água disponível para diferentes reações químicas, enzimáticas e utilização por
microrganismos. Durante a cristalização, a Aw aumenta, mas o teor de umidade total é mantido
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constante. Esse fato é devido à liberação da água pela agregação de parte dos sólidos dispersos no
sistema (formação de cristais), o que torna a fase líquida menos concentrada com consequente
elevação na Aw (Kuroishi et al., 2012).

As principais ligações das moléculas de água aos açúcares são pontes de hidrogênio. No mel líquido, a
glicose se encontra ligada a cinco moléculas de água. No mel cristalizado, a glicose está ligada a
apenas uma molécula. À medida que ocorre a cristalização, a agregação de sólidos solúveis presentes
no sistema é incrementada e as moléculas livres aumentam a Aw (Gleiter et al., 2006; Kuroishi et al.,
2012). O teor de umidade máximo no mel é de 20 g.100 g-1 (Brasil, 2000).

A cristalização também é influenciada pela concentração e tipo de açúcares, procedência do néctar, tipo
de processamento, temperatura e condições de armazenamento (Conforti et. al., 2006). As
temperaturas entre 14 e 18 ºC e umidade abaixo de 17 g.100 g-1 aceleram a cristalização (Costa et al.,
2020). À medida que a temperatura é reduzida, ocorre diminuição na solubilidade dos açúcares
presentes no mel, contribuindo na cristalização (Kuroishi et al., 2012; Costa et al., 2020).

A cristalização no mel é a separação da glicose e formação de hidratos de glicose. O primeiro açúcar


que cristaliza é a glicose, por ser relativamente insolúvel e apresentar maior possibilidade de desidratar
(precipitar). A frutose tem alta higroscopicidade e é muito mais solúvel que a glicose (higroscopicidade é
a capacidade de adsorção de água). Existem méis puros que nunca cristalizam, que cristalizam lenta ou
rapidamente. Por exemplo, o mel de néctar de flores de laranjeira pode levar mais de 12 meses para
cristalizar, devido ao alto teor de frutose. Já o mel produzido a partir de néctar de flores de eucalipto
(rico em glicose) cristaliza mais facilmente. Teores de glicose inferiores a 30 % dificultam a cristalização
(ex. mel de melato de bracatinga). Quanto maior o teor de frutose, maior o período de tempo para
cristalização (Conforti et. al., 2006; Kuroishi et al., 2012; Costa et al., 2020; Lengler, 2023).

A cristalização bem controlada no mel produz um mel cremoso, onde estão presentes cristais muito
pequenos não percebidos pelo paladar. Temperaturas entre 12 e 15 ºC tendem a provocar a formação
de cristais mais grosseiros (mel granulado), enquanto entre 20 e 25 ºC favorecem a formação de cristais
mais finos (Lengler, 2023). A cristalização no mel e o tamanho dos cristais formados estão em função
das relações glicose/água e frutose/glicose e do histórico térmico do produto (Conforti et. al., 2006; Gois
et al., 2013).

Por outro lado, a cristalização não controlada leva a formação de um produto com duas fases e
consequente cristalização desuniforme. Uma colheita antecipada do mel (estádio não adequado de
maturação) também pode gerar duas fases (Kuroishi et al., 2012; Frigieri, 2014).

Adulteração no mel

O mel tem disponibilidade limitada e preço relativamente alto, o que pode levar a sua adulteração.
Normalmente isso é feito com a adição de outros carboidratos, essencialmente açúcares comerciais
(dissacarídeos) como glicose comercial de milho, solução ou xarope de sacarose (cana-de-açúcar),
melado e solução de sacarose invertida. Uma forma muito utilizada de adulteração é a partir do caldo de
cana-de-açúcar aquecido ao fogo para “encorpar”. O aspecto dessa mistura é incrementado pela adição
de iodo (cor) e de aditivos químicos (viscosidade) (Rossi et al., 1999). A utilização de qualquer tipo de
aditivo é expressamente proibida pela legislação (Brasil, 2000).

A adulteração no mel é realizada devido ao alto custo do mel, facilidade em adicionar outros produtos e
dificuldade em identificar os mesmos e os infratores. O consumidor não é capaz de identificar com
segurança um mel puro através de critérios empíricos. As fraudes e outras alterações podem ser
encontradas apenas por meio de análises laboratoriais, que visam o controle de qualidade no mel
(Souza et al., 2021). Por exemplo, o teste de Lugol avalia a presença de amido e dextrinas no mel e o
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teor de hidroximetilfurfural (HMF) é capaz de mostrar a presença de substâncias produzidas pelo


superaquecimento ou adição de xaropes de milho ao mel. O HMF, um constituinte secundário no mel
que resulta da quebra de açúcares hexoses, como glicose e frutose, é um indicador de qualidade no
mel. Com valores elevados, o mel pode estar “velho”, ter tido armazenamento em condições impróprias
(ex. temperaturas elevadas), ter sofrido superaquecimento ou adulterações com adição de açúcar
invertido (Araújo et al., 2006). O teor máximo de HMF estabelecido pela legislação é 60 mg.kg -1 (Brasil,
2000).

Considerações

A rotulagem padronizada autêntica de produtos serve de suporte às pessoas e pode garantir maior
qualidade e segurança sanitária no produto. Mas é comum encontrar-se méis embalados em recipientes
com rotulagem fora dos padrões especificados pelas legislações vigentes e mesmo sem rotulagem.
Produtos sem rotulagem podem ser inseguros para o consumo e sua comercialização é uma infração
passível de multa e apreensão. E a fiscalização oficial também se mostra limitada com relação à
comercialização do mel e de outros alimentos (Abreu et al., 2023).

Devido à dificuldade em estabelecer padrões de qualidade empíricos no mel, que possam ser utilizados
pela população de maneira segura antes da compra, é aconselhável adquirir produtos diretamente de
produtores/revendedores idôneos e, preferencialmente, com rotulagem e selo de qualidade.

REFERÊNCIAS

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embalagens comercializadas em diferentes cidades do RJ e RS. Research, Society and Development,
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Curitiba, 07 janeiro 2024.

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