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Os resultados desastrosos dos “revolucionários do giz”

Jean Marcel Carvalho França*


15/09/2021

Há quem diga que a famigerada geração de 68, aquela que gritava haver areia da praia debaixo
do calçamento cinza das cidades burguesas, ousou sonhar, e sonhou muito. Parte dessa chusma
de utopias foi abandonada pelo caminho ou sepultada pela implacável realidade – a mesma que,
hoje em dia, tem sido sistematicamente desprezada; uma outra parte, no entanto, persistiu e,
em larga medida, moldou aspectos diversos das sociedades ocidentais contemporâneas.

O ensino é um bom exemplo. Há pelo menos quatro décadas, de maneira obstinada e indiferente
aos resultados, os educadores que se querem progressistas, que se querem herdeiros da
revolução libertadora de outrora, têm se esforçado enormemente para transformar as escolas e
universidades do Ocidente num verdadeiro laboratório de quimeras. Esses revolucionários do
giz encasquetaram que das salas de aula sairiam os seres humanos do terceiro milênio, e que,
para tal, bastava semear aqui e ali aquilo que genericamente denominavam ensino plural, um
ensino supostamente crítico, antielitista e poroso à diversidade, palavra, inclusive, que ganhou
ultimamente poderes quase mágicos – uma instituição escolar, hoje em dia, não precisa se
preocupar muito com a qualidade do ensino que oferece, desde que o ofereça num ambiente
amigo da diversidade.

Para levar adiante intento de tamanha grandeza e importância – a construção de um ser humano
supostamente depurado, melhor e mais humano –, um pouco por todo lado nas sociedades do
Ocidente, educadores e pais de “mentes arejadas” fizeram uma aposta arriscada, certos de que
colheriam excelentes resultados: apostaram que a não transmissão da tradição cultural cristã-
ocidental – acusada sistematicamente de opressora e excludente – aceleraria a criação dos tais
cidadãos críticos, multiculturais e, como gostavam de repetir os rebeldes de 68, livres das
amarras do passado, redimidos dos pecados que a ganância capitalista e a soberba cultural
levaram seus pais e avós a cometerem.

Pois bem, decorrido meio século do sonho sonhado e pelo menos quatro décadas de bem-
sucedidos esforços para torná-lo uma realidade, o ensino plural transformou-se no “senso
comum” dos educadores. Os resultados, os mesmos que nunca mereceram muita atenção dos
agentes, já se fazem sentir em larga escala, e o que se vê é, no mínimo, inquietante. Ao que tudo
indica, a escola libertadora é uma fábrica de jovens desprovidos dos instrumentos lógicos e
intelectuais mínimos para viver num mundo que gostamos de denominar “mundo da
informação”, uma fábrica de jovens que se querem globalizados e multiculturais, mas que têm
pouco lastro cultural e, consequentemente, diminutas referências do planeta em que vivem e
do modo como vivem os outros seres humanos reais que o habitam.

Ironicamente, tudo parece ter saído contrário ao planeado. Ao invés de seres intelectualmente
ágeis, informados e plurais, geramos indivíduos incapazes de decodificar mensagens que, aos
ouvidos de seus pais ou avós, não soavam sequer complexas. Ao invés de críticos sagazes da
realidade circundante, fabricamos um exército de indivíduos mal informados, desconhecedores
do mundo e, consequentemente, incapazes de formular sobre ele uma crítica plausível, que
escape a clichês ou que não recorra a argumentos subjetivos e emocionais – ao tal “lugar de
fala”. Ao invés de seres livres e impetuosos, recolhemos lá na ponta seres frágeis e vitimistas,
sempre assustados e dispostos a trocar a sua liberdade por proteção, e sempre esperando que
o mundo lhes restitua uma bem-aventurança de que julgam terem sido privados em razão do
comportamento grosseiro e politicamente incorreto dos “mais velhos”. E o que é o suprassumo
da ironia, ao invés de cidadãos do mundo, tolerantes e multiculturais, parimos seres tribalistas e
dogmáticos, que desprezam e querem cancelar aqueles que não pertencem ao estreito mundo
que habitam, o qual costumam encarar como sendo o mundo todo.

É desse ambiente tribal que sai a galeria nada desprezível de fanáticos que desejam nada mais
nada menos do que reeducar a sociedade, torná-la um espaço livre da dor, da opressão, do
embate, da diferença e do contraditório, numa palavra, um espaço livre da humanidade. É daí
que sai aquela gente capaz de transformar a vida dos outros humanos num exercício constante
de paciência: são os irritantes fiscais da linguagem, que pensam estar instaurando o reino da
justiça na terra quando substituem o artigo masculino por um arroba ou por um E, um X, um Y
ou um Z. São os incansáveis guardiões étnicos que, mesmo ignorantes da história de outros
povos e da sua própria, estão sempre atentos à espoliação que grupos dominantes querem fazer
de uma qualquer cultura oprimida. São os empáticos e simpáticos naturalistas, que insistem em
prolongar a existência dos seus vizinhos protegendo-os do tabaco, do álcool, do consumo de
processados e de outros vícios. Ou, ainda, para ficar nuns poucos tipos, os conscienciosos
veganos que, em nome da saúde do planeta, dos animais e dos humanos – nesta ordem –,
sonham extirpar o milenar e prazeroso hábito de comer carne. A lista de justiceiros, fiscais e
patrulheiros do bem viver é enorme, enorme e variada, pois há décadas são cultivados nas
estufas escolares e, mais recentemente, legitimados e replicados nas redes sociais, todos certos
de sua verdade e convictos de que a sua missão é reeducar a gente rústica que anda por aí.

A proliferação de tantos e tão tolos “donos da verdade” parece ser um sinal inequívoco de que
criar artificialmente, nos bancos das escolas, um ser humano renovado, purificado das máculas
do passado, foi uma experiência desastrosa. Mais umas das tantas evidências de que
intervenções radicais e pretensamente redentoras na ordem social têm efeitos inesperados e,
na maior parte das vezes, terrivelmente perversos. Já vai tarde, porém, o tempo das
lamentações, mas por certo não é tarde para cessarmos de produzir em série esses indivíduos
que, incentivados a desconhecerem e a desprezarem de onde veem e o que são, não fazem a
menor ideia de para onde querem ir.

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