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3a Edição

Ricardo Luis Chaves Feijó

História
do Pensamento
Econômico

De Lao Zi a Robert Lucas

3ª Edição

3
E-BOOK.
Amazon eBook Kindle.

4
Ricardo Luis Chaves Feijó

História
do Pensamento
Econômico

De Lao Zi a Robert Lucas

SÃO PAULO
Amazon eBook Kindle – 2021

5
© 2021 by Amazon eBook Kindle.

ISBN 9798779973816

Capa: Editora Atlas S.A.


Composição: Ricardo Luis Chaves Feijó

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Feijó, Ricardo Luis Chaves


História do pensamento econômico : de Lao Zi a Robert Lucas / Ricardo Luis Chaves Feijó. -- São Paulo : Amazon
eBook Kindle, 2020.
ISBN 9798779973816
1. História econômica I. Título.

01-3179 CDD-330.09

Índices para catálogo sistemático:


1. Economia : História 330.09
2. Pensamento econômico : História 330.09

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(Lei no 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto n o 1.825,


de 20 de dezembro de 1907.

Cód.: 0407 55 122

Impresso no Brasil/Printed in Brazil

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A meus alunos.

7
Grandes argumentos não requerem palavras.
Chuang Zi (século IV a.C.)

8
Sumário

Apresentação

1 PENSAMENTO ECONÔMICO NA ANTIGUIDADE, 1


O mundo econômico sem racionalidade própria, 1
O intervencionismo de hindus e hebreus e o laissez-faire dos sábios chineses, 3
Platão e a sociedade ideal, 5
As noções econômicas de Aristóteles, 11
O pensamento econômico entre os romanos, 15

2 A EVOLUÇÃO DAS IDEIAS ECONÔMICAS NA IDADE MÉDIA, 21


O declínio do Império Romano e a formação de uma nova sociedade, 21
O papel da ética cristã na organização da vida medieval, 23
O avanço tecnológico, o aparecimento das cidades e o desenvolvimento do comércio e da
atividade financeira, 24
O renascimento da filosofia e a análise econômica escolástica, 26

3 MERCANTILISMO E CAMERALISMO: A EXPRESSÃO DA ECONOMIA NOS SÉCULOS XVI E


XVII, 35
Mudanças políticas e sociais e intervencionismo nacionalista, 35
Etapas do pensamento mercantilista, 38
Salário, preço e juro na óptica mercantilista, 43
Cameralismo: a doutrina do mercantilismo alemão, 45

4 A ECONOMIA COMO ORDEM NATURAL, 53


O desenvolvimento das ciências naturais, 53
Novas ideias sobre política e sociedade, 63
Boisguillebert e Cantillon: precursores de Adam Smith, 68
Os fisiocratas, 71

5 ADAM SMITH, 81
Teoria moral e filosofia da ciência, 81
A vida de Adam Smith, 86
A Riqueza das Nações, 88

6 SÉCULO XIX: A ECONOMIA POLÍTICA CLÁSSICA, 111


O nascimento da escola clássica, 111
Thomas Malthus, 112
David Ricardo, 116
John Stuart Mill, 123

7 KARL MARX, 137


Vida e obra, 137
O Capital, 147
A visão da história, 158

9
8 SÉCULO XIX: A ESCOLA HISTÓRICA E A EVOLUÇÃO DO MARGINALISMO E DO
SUBJETIVISMO ECONÔMICO, 165
A escola histórica, 165
A crise da economia clássica, 174
Crise econômica e mudanças sociais na Inglaterra, 177
Precursores do marginalismo, 179
A revolução marginalista, 192
O significado do conceito de utilidade, 199

9 O MARGINALISMO NA INGLATERRA: AS CONTRIBUIÇÕES DE JEVONS E MARSHALL, 211


Introdução, 211
O desenvolvimento das ideias de Jevons, 212
Jevons e a crítica ao hedonismo, 220
Vida e obra de Marshall, 225
Os Princípios de Economia, 230

10 LÉON WALRAS E A TRADIÇÃO DO EQUILÍBRIO GERAL, 251


Origem das ideias de Walras, 251
O equilíbrio na troca simples, 255
Modelo de equilíbrio geral, 261
Existência de equilíbrio, 268
A convergência ao equilíbrio, 269
Teoria do equilíbrio geral aplicada ao planejamento socialista, 270
A tradição de equilíbrio geral após Walras, 275

11 CARL MENGER , SCHUMPETER E A ESCOLA AUSTRÍACA, 285


Menger: vida, filosofia, conceitos básicos, visão da economia, 285
Os escritos metodológicos de Menger, 293
O problema do valor econômico, 301
A escala de necessidades, 303
A teoria do preço em Menger, 307
Joseph Schumpeter, 311
A escola austríaca, 314

12 KEYNES E A EVOLUÇÃO DA MACROECONOMIA, 319


Vida e influências, 319
A Teoria Geral de Keynes, 336
Macroeconomia após Keynes, 341

Índice de autores e personalidades, 361

10
Apresentação

Esta terceira edição do História do pensamento econômico: de Lao Zi a Robert Lucas


não se trata apenas de uma reimpressão. É fruto da aplicação do livro por nós mesmos em
nossas aulas de História do Pensamento Econômico (HPE) na Universidade de São Paulo e
da experiência de alguns professores de outras Universidades que utilizaram o livro como
material de referência em suas aulas e se dirigiram gentilmente a nós com sugestões de
melhoria para uma próxima edição.
O livro foi cuidadosamente reescrito ao longo de um ano, em um processo no qual o
texto foi melhorado sem descuidar de uma única vírgula. Em especial, estivemos atento às
suas passagens mais formais e matemáticas, a fim de não deixar passar nada sem a devida
correção. Pensamos que, agora, o público que prestigiou as edições anteriores terá em mãos
uma versão quase impecável, em que pese erros remanescestes, pois nada nasce perfeito e a
melhoria contínua faz parte da vida, até mesmo de um livro! Infelizmente nem tudo pôde
constar numa obra de menos de 400 páginas, em se tratando de mais de dois mil anos de
história das ideias econômicas. A escolha de o que priorizar na exposição se deu pela nossa
avaliação do que, no passado, foi realmente mais importante na história dessa ciência. Por
questão de economia, ainda ficamos devendo um espaço para autores como Veblen, pouco
comentado, e os que não são nem citados, como Rosa Luxemburgo, Kalecki e outros. Tudo é
questão de priorizar um corte na HPE que não tem como contemplar tantos nomes. Também
falta um capítulo sobre a história do pensamento econômico no Brasil, mas a omissão deve-
se à constatação da existência, no mercado editorial, de excelentes trabalhos no tema.
Os vários cursos de HPE ministrados no campus da USP de Ribeirão Preto, anos
seguidos desde 2000, foram de suma importância na construção desta terceira edição.
Agradeço as sugestões também dos alunos que são os que mais dependem da precisão deste
livro. Ciente do impacto que a presente obra já teve e continuará tendo nos cursos de HPE no
Brasil, acreditamos que nosso esforço contribuirá significativamente para um ensino nessa
disciplina que não se limite a priorizar certos autores de uma única tendência, mas que
forneça uma abordagem mais equilibrada, inclusive com maior ênfase na história das teorias
econômicas e em filosofia econômica, sem descuidar, no entanto, de história social e política.
Boa leitura!

O Autor

11
12
1
Pensamento Econômico
na Antiguidade

O MUNDO ECONÔMICO SEM RACIONALIDADE PRÓPRIA


Fragmentos de ideias econômicas são encontrados nos mais antigos textos ainda
preservados. Escritos como o Tao Te Ching, de Lao Zi, e os Analectos de Confúcio (ambos
século V a.C.) contêm trechos em que aparecem proposições de natureza econômica. Do
Antigo Testamento da Bíblia cristã também se podem extrair passagens de significado
econômico. No desenvolvimento das civilizações que seguiu essa era mais remota, nunca
deixou de existir, em cada época, um ou outro escritor que ao menos tangenciasse
questões dessa natureza. No apogeu das civilizações grega e romana, e em certos
períodos da Idade Média, noções e conceitos econômicos foram propostos e discutidos.
Então é difícil precisar uma data que teria marcado o nascimento do pensamento
econômico. No entanto, a organização desse saber como corpo teórico sistemático de
ideias somente se tornou perceptível em torno do ano de 1700 e no correspondente
século que se iniciava. William Petty, Richard Cantillon e os fisiocratas deram um
tratamento analítico mais consistente e avançado a questões de política econômica que,
por vezes, apareciam nas reflexões de autores escolásticos e alhures. Marco dos mais
significativos nessa evolução foi o aparecimento do monumental livro A riqueza das
nações, do escocês Adam Smith, em 1776.
Esses precursores do período clássico da economia científica compartilham a visão
do mundo econômico como um sistema integrado de eventos que se reforçam e se
sucedem mantendo certo ordenamento. De fato, há algo de novo na noção de sistema
econômico, que não se verifica anteriormente. Que vem ao encontro da crença popular
de que a economia como ciência teria surgido nesse período e Smith seria, por assim
dizer, o pai dela. Começar o livro de história do pensamento econômico deste ponto é
tentador, entretanto não se pode passar ao largo da reflexão econômica anterior a ele
sem uma perda considerável do itinerário passado das ideias nesse campo.
A época de Smith é marcada por grandes transformações na vida econômica e social
do continente europeu. Na economia, destaca-se a revolução industrial; na esfera social,
sublinham-se o legado da Revolução Gloriosa de 1688, com a longa estabilidade da
monarquia constitucional, e a eclosão da Revolução Francesa, que promoveu valores
republicanos em substituição à antiga monarquia absoluta. O período assiste à consoli-
dação das modernas instituições democráticas bem como à edificação do capitalismo
industrial nas nações mais desenvolvidas.
A ciência econômica surge com o advento do capitalismo. A relação entre eles vai
além de mera coincidência histórica. A ciência, como sabemos, está dividida em ramos
do conhecimento e cada qual elege um objeto de estudo. No objeto, suas propriedades
são observadas experimentalmente e suas regularidades reconhecidas, o que possibilita
explicar os acontecimentos com base em leis científicas. A ciência busca a trama racional
dos fatos. A natureza física e biológica (e mesmo a sociedade e a economia) só são

1
passíveis de análise científica na hipótese da existência de um padrão lógico de
ordenamento. Um mundo inteiramente caótico não poderia ser compreendido, pois a
teoria somente dá conta de uma realidade que se comporta de modo regular.
Qual é o objeto de estudo da economia? Tal ciência examina os fenômenos sociais
que dizem respeito a produção, distribuição e consumo de bens e serviços que satisfazem
às necessidades humanas. É difícil imaginar vida social sem que tais fenômenos estejam
presentes. Mesmo em sociedades mais antigas, nada impede, a princípio, que os homens
nelas inseridos possam pensar os fatos econômicos cotidianos e elaborar assim teorias
econômicas que os justifiquem, por mais primitivas que sejam. Vivendo em comunidade,
nossos ancestrais tinham de encontrar seu sustento e, para tanto, trabalho e produção
faziam parte do dia a dia. O produto do trabalho coletivo era distribuído, inclusive para
os que não trabalhavam, e os bens eram, por fim, consumidos. Ora, se os fenômenos que
definem o objeto da economia já se faziam presentes, por que a ciência não se
desenvolvera já por essa época? A resposta é que para o tratamento científico não basta
existir um objeto, é preciso que ele tenha uma racionalidade intrínseca, ou seja, que haja
um ordenamento dos fatos segundo uma lógica interna. Se pensarmos sobre o que regula
a vida econômica na era moderna, chegaremos a mercados e mecanismos sociais que
asseguram o funcionamento deles, como, por exemplo, a existência de leis e de moeda
intermediando as trocas. Mercados já havia na Antiguidade, contudo, a generalização de
uma sociedade com grande número de indivíduos independentes, relacionando-se uns
com os outros basicamente pelas trocas de mercado, só aparece com o advento do
capitalismo. Nas sociedades pré-capitalistas, em geral, há uma tradição cultural que
permeia a vida econômica e que condiciona fortemente a maneira como os homens
relacionam-se na produção e na distribuição de bens. Não predomina nelas uma lógica
de mercado a comandar os papéis individuais e nem há a impessoalidade típica das
economias capitalistas. Os indivíduos não pautam suas ações pela busca pessoal de
riqueza. O que move as pessoas nas sociedades tradicionais pré-capitalistas é a
representação de um papel já estabelecido que lhes é fornecido ao nascerem e que passa
a ditar suas vidas. Elas não estão, portanto, livres na vida econômica para alcançarem
toda vantagem possível. A participação de cada qual é ditada pela tradição que ensina as
pessoas como e para quem produzir.
A consequência maior do forte predomínio da tradição cultural na vida econômica
é a impossibilidade de se identificar uma recorrência de fatos econômicos que possam
ser racionalmente interpretados. Os preceitos que ditam a atividade produtiva nessa
sociedade são de natureza cultural e podem não obedecer a nenhum critério racional.
Nela, a visão de um mundo transcendental de mitos e deuses comanda ações econômicas
ordinárias. Com isso, todas as dimensões culturais permeiam o fenômeno puramente
econômico e não se pode separá-lo delas, mesmo para fins analíticos. No período
histórico em que surgem teorias econômicas verdadeiramente abrangentes, versando
sobre os principais temas ligados à produção, à troca e às políticas públicas, os fatos
econômicos já se encontravam ordenados na sociedade de modo bastante independente
da tradição. Isto possibilitou interpretar teoricamente o sistema econômico como uma
esfera independente e movida por uma racionalidade que lhe é própria.
No período anterior ao século XVIII, com raras exceções a vida econômica esteve
submetida a preceitos éticos e religiosos. A partir de então, com o capitalismo, em maior
grau os agentes são movidos por estratégias individuais que se combinam de modo a
resultar no presumido funcionamento automático da economia a despeito das imposi-
ções da tradição cultural. Assim, o que é oferecido pela ciência econômica não se poderia
esperar na concepção dos antigos: um modelo teórico representativo dos fatos
econômicos, no qual se selecionam variáveis (como preços, salários, lucros e juros) e se
concebe uma estrutura de relações estáveis entre elas. A identificação de fatos
econômicos isolados e a procura por uma lógica interna para eles, pautada em critérios

2
como busca de eficiência e maximização de resultados, não seria possível no período pré-
capitalista, o que não significa que nenhuma reflexão de natureza econômica tenha sido
feita até então. Na Antiguidade, não se encontra uma teoria econômica, porém, lá existia
um pensamento econômico voltado a questões similares às que são tratadas na ciência
econômica atual, embora em um âmbito mais restrito. Os antigos hindus, hebreus,
gregos e romanos analisam questões ligadas à propriedade dos bens, à produção e ao
comércio e procuram estabelecer a natureza delas e as normas que deveriam regula-
mentar tais atividades. A interpretação dos fatos econômicos era então de natureza moral
e as indicações de preceitos tinham por base uma visão religiosa.1
Entre os antigos, a exposição de temas econômicos aparece no bojo das reflexões
filosóficas. A preocupação era com a observância de preceitos morais e religiosos nas
tarefas práticas. Na busca de se chegar às implicações da moral nos afazeres diários, são
avaliados certos elementos que dizem respeito à produção e à distribuição de bens e que
nos interessam de perto. Assim, eles investigam as formas de apropriação dos bens, a
riqueza, as necessidades humanas, a organização da produção, a escravidão, as relações
familiares, as vocações individuais para o trabalho, as relações de trabalho, a distribuição
da riqueza, a natureza do comércio e dos juros, a troca de mercadorias, o fundamento
dos preços, o sistema fiscal e tributário e outros temas pertinentes à economia.

O INTERVENCIONISMO DE HINDUS E HEBREUS E


O LAISSEZ-FAIRE DOS SÁBIOS CHINESES
Nota-se nos povos antigos certo preconceito contra a atividade econômica. Para
eles, a vida econômica não tinha significado em si mesma, era tão somente um conjunto
necessário de procedimentos que, além de propiciarem a subsistência humana, serviam
para reforçar a divisão social, as crenças religiosas e a retidão individual. Havia, de modo
geral, uma aversão ao trabalho artesanal, enquanto a atividade agrícola era exaltada.
Condenações morais à riqueza individual apareciam invariavelmente, e as atividades
comercial e financeira eram vistas com desconfiança. Em alguns povos, as crenças
religiosas incentivavam os governantes a estabelecer regulamentações, na forma de lei,
que diziam respeito a numerosos aspectos da vida diária, incluindo o econômico. A lei
não era aplicada indiscriminadamente a todos, pois, dependia da condição social das
pessoas envolvidas (nacionalidade, casta etc.).
Entre os judeus, as leis mosaicas proibiam a usura, isto é, o empréstimo a juros.
Entretanto, a lei não se aplicava quando o empréstimo era feito a estrangeiros. Outra
exceção contemplava os casos em que empréstimos eram concedidos aos pobres a fim de
ampará-los; neste caso, os juros eram controlados e os prazos de pagamento não podiam
exceder a certas datas religiosas. As leis hindus condenavam os empréstimos se ofereci-
dos pelas altas castas de brâmanes e xátrias, contudo também havia exceções. Os Vedas
regulavam, para esses casos, as taxas de juros dependendo do tipo de empréstimo, se em
ouro, em grãos etc., e da casta envolvida. Judeus e hindus também obedeciam a leis que
procuravam regulamentar a atividade comercial: leis que padronizam pesos e medidas,
leis contra a adulteração da mercadoria, regulamentos condenatórios de práticas
especulativas e monopólios. Os rabinos proibiam a exportação de artigos considerados
essenciais e, em tempos de escassez de alimentos, não se podia estocá-los.

1 É o que se verifica entre os


povos antigos, embora em alguns momentos a esfera econômica tenha
até alcançado certa independência desses valores, como no código comercial romano em que a lei
procurava conferir praticidade às atividades econômicas independentemente de valores e crenças
morais.

3
Os hindus procuram controlar as estratégias individuais de manipulação dos merca-
dos proibindo preços acima ou mesmo abaixo de certo padrão determinado pela noção
que tinham de preço justo.2 Existiam, entre eles, curiosas leis que controlavam as
relações de trabalho: multas severas eram aplicadas a quem não cumprisse os contratos
de trabalho, impunham-se penalidades para o trabalhador negligente etc. Os hindus
também observam leis que estipulam uma rígida divisão de tarefas entre as castas.
Segundo essas leis, as castas elevadas, os brâmanes, deveriam dedicar-se integralmente
ao estudo e ao ensino dos livros dos Vedas, fazer sacrifícios e receber almas. Os xátrias
eram encarregados da guerra e podiam coletar impostos. Os vaisias podiam envolver-se
com atividades comerciais, os sudras eram artistas e artesãos e, como tais, deveriam
servir às castas superiores. Em tempos de catástrofes, uma casta poderia vir a
desempenhar a função de outra, no entanto na maioria das vezes as divisões mantinham-
se rígidas.
Leis regulamentárias adicionais da atividade econômica podem ser encontradas em
outras antigas civilizações, como as de chineses, árabes, japoneses, persas e egípcios, e
detalhes pitorescos seriam então identificados. Todavia, nem sempre prevaleceu entre os
pensadores antigos o espírito intervencionista. O pensamento dos filósofos chineses não
justificava a intervenção governamental. Ao contrário, vivendo em tempos de guerra e
forte presença do Estado na economia, entre os séculos VI e IV a.C., os sábios taoístas
reagiam contra o controle estatal da vida econômica. É o caso dos preceitos de filosofia
política em alguns dos poemas do lendário Lao Zi, que se acredita tenha vivido na China
à época de Confúcio (551-479 a.C.).
Enquanto o confucionismo firmou-se como uma literatura ética preocupada em
educar a burocracia do estado, Lao Zi despreza a necessidade de organização social pelo
poder e prega a harmonia individual como a chave para a união espontânea da sociedade.
As instituições sociais não podem interferir no caminho das pessoas e o bom governante
serve a seu povo com delicadeza, diz ele:
“Um grande país deve ser governado como quem frita pequenos peixes.” (Lao
Tse, Tao Te King)
A ação do governo deve observar, em qualquer momento, seus limites, de modo que
passe despercebida pelos cidadãos.
“Quando um Grande Soberano governa, o povo mal sabe que ele existe”
(ibidem).
O controle do Estado dificulta o desenvolvimento individual e, no plano econômico,
leva ao empobrecimento das massas e à proliferação de comportamentos nocivos. Em
seu laissez-faire primitivo, o sábio chinês acredita que a prosperidade do povo viria com
a ausência de proibições:
“Quanto mais proibições houver no mundo, mais o povo empobrecerá. Quanto
mais leis e decretos se publicarem, mais ladrões e assaltantes haverá. Se não
fizermos nada, o povo evoluirá por si mesmo. Se não empreendermos nada, o
povo prosperará por si mesmo.” (ibidem)
A interpretação de Lao Zi da sociedade é a transposição de suas crenças filosóficas
do plano individual para o coletivo. A pessoa, isoladamente considerada, busca o
reconhecimento do Tao ao deixar-se levar pelo caminho natural, livre de inquietações e
de desejos que poderiam forçar sua verdadeira unidade. Nesse caminho, ela integra-se à
sabedoria cósmica e sua vida torna-se, então, guiada pelos mesmos princípios de coesão
e de harmonia da ordem universal. Também na vida social, quando a atividade econômi-

2 O conceito de preço justo seria retomado na Idade Média.

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ca não é penalizada por impostos excessivos, o povo prospera e deixa-se governar facil-
mente:
“Quando o povo passa fome, isso acontece porque os fortes e os poderosos
cobram impostos em demasia. Quando o povo é difícil de ser governado, isso
ocorre porque os poderosos se intrometem em demasia.” (ibidem)
Na China antiga, a crença de que existiria uma ordem gerada espontaneamente na
sociedade não parou em Lao Zi. Ela teve prosseguimento nas reflexões de Chuang Zi
(369-286 a.C.) que transformou a noção de ordem espontânea em uma concepção
anarquista da sociedade. Chuang Zi recusou o convite do imperador Wei para o cargo de
ministro, dizendo que todas as restrições individuais que partem do governo distorcem
a natureza humana. Todavia, nem todos os pensadores chineses do passado distante são
contrários à ação do governo e muitos exaltam o poder do Estado, além de procurar ditar
regras a fim de ampliar tal poder.

PLATÃO E A SOCIEDADE IDEAL


Pensar em economia pressupõe uma reflexão sobre a sociedade. Foi na busca de
uma interpretação sobre a origem e a natureza da sociedade que os filósofos gregos
tocaram em temas de interesse dos economistas. Para eles, o aspecto econômico da vida
social é secundário. A razão de ser das cidades (sociedades) é explicada com base em sua
função para a realização de um ideal ético de justiça que levaria ao aperfeiçoamento da
alma, de modo que seja liberta da condição material.
O filósofo Platão (428-347 a.C.) entende a existência dos homens em sociedade
como um instrumento de salvação das almas. A economia é um aspecto da vida social
que não se separa da esfera política e moral. Os escritos de Platão investigam a origem e
a razão de ser da sociedade. Em suas reflexões, enfatizam-se tanto o lado material da
cooperação entre os homens no mundo do trabalho e da produção nas cidades quanto o
elemento espiritual da existência em sociedade. Platão é discípulo de Sócrates. Este
último, no entanto, nada escreveu sobre filosofia. Limitava-se a andar pelas praças da
Acrópole de Atenas, apregoando a existência de valores éticos verdadeiros, num sentido
absoluto, a que os homens deveriam obedecer. Estamos no século IV a.C., uma época em
que a política atravessa período conturbado na Grécia. A democracia entre os que são
considerados cidadãos, já que uma boa parte da população em Atenas é de escravos,
triunfa sobre o antigo modelo aristocrático, em que os dirigentes eram recrutados apenas
entre os nobres. Historicamente, é resultado do desenvolvimento comercial que abalou
a tradicional estrutura do poder em Atenas, baseada na propriedade do solo e nos direitos
de nascimento. Como resultado, o poder é transferido dos nobres para a assembleia do
povo.
Os ares democráticos em Atenas terão também implicações na maneira de pensar
dos filósofos. A antiga crença de que as leis a serem obedecidas pelos homens são
desígnios da natureza e, como tal, não podem ser contestadas é substituída então pelo
argumento dos filósofos sofistas de que tudo é relativo. Assim, não existiria uma noção
absoluta de justiça e os elementos que regem a conduta social seriam frutos de mera
convenção entre os homens. Certas regras, e não outras, são estabelecidas porque os
homens foram convencidos pelos mais sábios a adotá-las. Na filosofia dos sofistas,
sabedoria implica empregar bem os recursos da retórica e da arte da persuasão, não é,
portanto, um simples conceito abstrato. É essa perspectiva relativista que é condenada
por Sócrates e Platão. Na exposição dos verdadeiros princípios éticos que iluminam a
vida humana, eles tecem importantes considerações sobre a natureza da sociedade e
assertivas de natureza econômica.

5
Sobre a discussão da sociedade, duas obras de Platão interessam-nos de perto:
Protágoras e A república. Na primeira, o filósofo sofista Protágoras, dialogando com
Sócrates, a fim de justificar seu argumento de que a virtude é ensinada, narra um mito
em que os homens recebem do deus Hermes, enviado de Zeus, o dom da virtude (respeito
ao próximo) e a sabedoria ou senso de justiça (Boxe 1.1). No entanto, tais qualidades não
lhes são inatas. Os homens não nascem com elas e devem adquiri-las ao longo da vida no
esforço do aprendizado. O domínio humano do fogo, transmitido inadvertidamente pelo
semideus Prometeu, simbolizando a habilidade técnica, é inato; enquanto a virtude só
pode ser ensinada. Protágoras dá a entender que tal tarefa caberia aos sofistas (que
deveriam ser remunerados para tanto). O importante a considerar para efeito de nossa
análise é que, nesse mito, é condição sine qua non da vida social certa ética entre os
homens. A investigação da esfera social fica vinculada inseparavelmente à consideração
ética.

Boxe 1.1 Protágoras de Platão.

No livro, aparecem alguns personagens que dialogam entre si. No caso, o tema inicial é
o sentido da sabedoria. Tudo começa quando Sócrates é convidado por um amigo a visitar a
casa de uma personalidade conhecida. Ao chegarem lá, encontram todos acomodados no
jardim da casa ao redor de um homem reverenciado por eles como um sábio. É o sofista
Protágoras. Sócrates aproxima-se dele e tenta convencer a todos de que o sofista nada tem a
ensinar, pois os homens sábios já nascem com sabedoria e virtude. Na primeira metade do
livro, Protágoras domina a conversa com longas preleções às breves interpelações de Sócrates.
Na outra metade da obra, ocorre uma inversão de papéis, uma peripécia, e Sócrates toma a
ofensiva, fazendo Protágoras ceder lentamente às suas ideias. Ao argumentar porque a sabe-
doria deve ser aprendida, o sofista narra um mito sobre o nascimento da cidade que é, sem
dúvida, uma das primeiras tentativas de explicação da origem da sociedade. É a história dos
irmãos semideuses Epimeteu e Prometeu. Zeus tinha-os incumbido de distribuir qualidades
entre todos os animais de modo que cada espécie pudesse sobreviver. Epimeteu pede então
ao irmão que o deixe cumprir sozinho a tarefa. Quando depois Prometeu foi inspecionar o
trabalho feito, notou que o irmão havia cometido um engano. Gastou todo o estoque de
qualidades com os demais, nada restando a oferecer aos homens, naturalmente fracos e
desprotegidos. Para se redimir do erro e a fim de garantir a sobrevivência da espécie humana,
Prometeu revelou-lhes o segredo do fogo, até então prerrogativa dos deuses. O fogo funciona
aí como metáfora da sagacidade técnica; do domínio da linguagem, da agricultura, de instru-
mentos e armas de defesa.
Zeus, vendo o mal que Prometeu havia feito, condena-o a permanecer no alto de um
penhasco com seu fígado eternamente sendo devorado por abutres. Era preciso, entretanto,
completar o serviço de Prometeu e, assim, Zeus ordena a Hermes que ensine os homens a
viverem em sociedade, uma vez que as armas de defesa nada valeriam se eles tivessem que
lutar cada um por si contra grupos grandes de animais. Mesmo armados, a cooperação entre
os homens seria necessária à sua sobrevivência. Surge então o desejo de viver em sociedade,
estabelecendo-se entre eles um contrato para a mútua proteção.
Zeus, conta-nos Protágoras, percebeu que a vida social só seria possível se os homens
fossem dotados de certas qualidades a fim de não se voltarem uns contra os outros. Ele
identifica duas qualidades essenciais: o respeito e a justiça. Pede que Hermes lhas presenteie,
no que este pergunta a Zeus se deveria dar a todos os homens o mesmo dom dessas qualidades
ou distribuí-las de modo desigual. “Dê-as a todos”, disse Zeus, “e deixe que todos as
compartilhem; pois as cidades não poderiam vir a existir se apenas uns poucos as comparti-
lhassem.”

6
A segunda obra, A república, aprofunda o conceito de justiça e expõe, de modo
completo, a doutrina ética e social de Platão. Antes mesmo de apresentar tal conceito, é
importante ter em mente certos aspectos gerais da doutrina filosófica de Platão. Tal
filosofia procura refutar as crenças sofistas de que os valores são uma convenção
estabelecida na discussão e nas controvérsias públicas, e que a verdade é relativa se cada
um tem seu ponto de vista que lhe é verdadeiro. Platão também se opõe ao materialismo
dos filósofos pré-socráticos.
O teor de suas críticas é possível ser resumido. Ele acredita no princípio da contradi-
ção que nos diz que duas proposições opostas não podem ambas ser simultaneamente
verdadeiras. Nas discussões, há de se chegar ao absoluto, isolando a proposição falsa e
apontando para a verdadeira. O materialismo era, à época de Platão, antiga herança do
pensamento pré-socrático, originário da Ásia Menor, que acreditava na existência de um
substrato material preenchendo a realidade. Todas as coisas são constituídas de um
elemento material básico. Tudo é matéria e esta é feita de um único elemento identificado
inicialmente como sendo a água, em Thales de Mileto. Depois, outros filósofos apontam
o ar, o vapor, átomos de matéria e até fogo, como em Heráclito, como sendo o elemento
último. A escola materialista também concebia os corpos materiais como estando em
perpétuo movimento.
A oposição filosófica ao materialismo, de fato, aparecera antes de Platão. Filósofos
espiritualistas como Pitágoras e Parmênides rejeitam a existência exclusiva do corpo
material, acreditando que ao lado dele reside um princípio imortal a que chamam de
alma. A alma é tida como algo absoluto, imóvel e eterno. Os eleatas, da escola de
Parmênides, acreditam que só ela pode ser pensada. O pensamento não se fixa em corpos
materiais e o movimento não pode nunca ser entendido pelo pensamento. Dentre eles,
Zenão de Eleia construiu seus famosos paradoxos na tentativa de demonstrar que pensar
o movimento leva-nos a situações absurdas: Aquiles, correndo por trás, nunca alcançaria
a lenta tartaruga, pois, sempre que tivesse avançado a metade da distância que os separa,
uma nova metade ainda restaria a ser percorrida. É claro que o aparente absurdo seria
facilmente desvendado se os gregos soubessem que séries infinitas de termos positivos
podem ter soma finita quando a razão entre termos sucessivos for menor que a unidade,
o que é o caso.
A filosofia de Platão rompe com o materialismo, ao mesmo tempo em que resiste às
correntes espiritualistas que só pensam no mundo absoluto e estático. Platão remedeia a
crise intelectual trazida pela oposição de visões antagônicas. Enquanto os materialistas
acreditam apenas na existência do que atinge os sentidos, ele concebe a existência de
coisas que não podem ser alcançadas pelos sentidos. A noção de justiça, por exemplo,
não remete a algo que tenha existência corporal, mas ela compartilha do mesmo
conteúdo de realidade que os objetos materiais. Então Platão acredita em um mundo
fragmentado em duas esferas de realidade: o mundo dos objetos visíveis e o mundo de
ideias perfeitas (mundo das ideias), que também pode ser pensado como o mundo do
corpo versus o mundo da alma, o mundo do movimento contra o mundo estático, mundo
de corpos imperfeitos e perecíveis, de um lado, e mundo de entes perfeitos e imortais, de
outro, e outras dicotomias desse jaez.
Conhecida a natureza da filosofia de Platão, podemos retomar a discussão do
conceito de justiça na obra A república. Nela, argumenta-se que a justiça é um conceito
que só se realiza na vida em sociedade e que consiste em atribuir a cada indivíduo o papel
que lhe compete por suas qualidades naturais (Boxe 1.2.). A cidade surge porque os
homens buscam satisfazer melhor suas próprias necessidades, tirando proveito da
especialização de tarefas. Vivendo em sociedade, eles produzem para si e para os demais,
e procuram tirar o máximo proveito das trocas.

7
Boxe 1.2 A república de Platão.

A obra organiza-se em diálogos entre personagens, tendo Sócrates ao centro. Em visita a


uma cidade por ocasião da festividade à deusa Bêndis, Sócrates resolve então, a convite,
permanecer na localidade à noite na casa de um velho e sábio homem, enriquecido pelo
comércio, de nome Céfalo. Aí também se encontra um sofista, conhecido como Trasímaco, e os
dois irmãos: Glauco, que acompanhara Sócrates na viagem, e Adimanto, ambos argutos na arte
do pensamento. A conversa flui entre eles num tom agradável e começam por debater sobre o
amor e a velhice. Céfalo diz que a idade o faz pensar no além e leva-o, receoso de alguma
punição nesse outro mundo, “a fazer cálculos e a analisar se cometeu alguma injustiça com
alguma pessoa”. A conversa conduz inexoravelmente a discussões sobre o conceito de justiça e
as opiniões sucedem-se. Céfalo considera justo dizer a verdade, não enganar e cumprir os
contratos, honrando dívidas assumidas. A essa visão de justiça Sócrates interpõe o argumento:
“se alguém, em perfeito juízo, entregasse armas a um amigo, e depois, havendo-se tornado
insano, as exigisse de volta, todos julgariam que o amigo não lhas deveria restituir, nem mesmo
concordariam em dizer toda a verdade a um homem enlouquecido... como vês, justiça não
significa ser sincero e devolver o que se tomou”. A conversa torna-se mais acalorada quando
Trasímaco lança sua definição de justo como sendo o que é vantajoso para o mais forte, já que
“cada governo faz leis para seu próprio proveito”. Diz ele: “em todas as cidades o justo é a
mesma coisa, isto é, o que é vantajoso para o governo constituído; ora, este é o mais forte, de
onde se segue, para um homem de bom raciocínio, que em todos os lugares o justo é a mesma
coisa: o interesse do mais forte”. Sócrates, no entanto, desarma facilmente o argumento do
sofista: ora, diz ele, os governantes são passíveis de erro e, se devemos seguir todas as ordens,
em alguns casos torna-se justo fazer o que é desvantajoso para os governantes, quando eles
sem perceberem dão ordens que lhes são danosas. O justo torna-se nesse caso fazer o injusto.
Logo adiante, Adimanto lembra que a justiça traz recompensas a quem pratica e os injustos
são por vezes punidos, mas é preciso sempre parecer justo, pois, “se eu for justo sem o parecer,
não tirarei disso nenhum proveito, mas sim aborrecimentos e prejuízos evidentes; se eu for
injusto, mas gozando de uma reputação de justiça, dirão que levo uma vida divina”. Sócrates
até se curva a esse argumento; no entanto, ele assevera que, enquanto um indivíduo pode
escamotear sua iniquidade e fazer-se passar por justo, na cidade a justiça é mais visível e mais
fácil de ser examinada. Ao examinar-se a grande justiça da cidade, em oposição à pequena
justiça dos indivíduos “encontraremos mais facilmente o que buscamos”, diz Sócrates.
Após isso, a atenção volta-se para a causa do nascimento das cidades. Sócrates argumenta
que a causa desse nascimento é a necessidade que cada um tem de contar com o trabalho do
outro. Os homens necessitam de alimentação, moradia e vestuário e, vivendo em sociedade,
eles podem provê-las melhor se cada um se especializar em uma função. Como a natureza não
fez todos os homens iguais, mas diferentes em aptidões e aptos para esta ou aquela função, eles
trabalham melhor quando se exerce um só ofício. O filósofo lança o argumento de que a divisão
do trabalho leva ao aumento da eficiência produtiva, pois é verdade que “se produzem todas as
coisas em maior número, melhor e mais facilmente, quando cada um, segundo suas aptidões e
no tempo adequado, se entrega a um único trabalho, sendo dispensado de todos os outros”. A
justiça da cidade consiste em distribuir os ofícios entre os homens de acordo com as qualidades
inatas de cada um. Os de propensão para a filosofia serão os dirigentes, os de força física e
ardor serão os guerreiros e os de força física e senso de obediência, os artesãos e agricultores.

A cidade necessita de muitos especialistas em trabalhos diferentes. O produto


excedente do trabalho individual é permutado por meio de atos de compra e venda.
Aparecem então mercados e moeda, “símbolo do valor das mercadorias permutadas”. As
trocas são intermediadas por mercadores, “pessoas mais fracas de saúde, incapazes de

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qualquer outro trabalho[...] que se dedicam à compra e venda, com estabelecimento
aberto no mercado”, e negociantes “que viajam de cidade em cidade”.3
A vida em sociedade possibilita a prática do bem. A vida no bem é a vida conforme
a justiça e somente a vida justa leva-nos à libertação da alma. A organização da sociedade
deve ser perfeita para que, vivendo no bem, sejamos plenamente recompensados após a
morte. Platão apresenta então o que imagina ser a cidade justa. É a cidade perfeita que
pertence ao mundo das ideias. As cidades que existem concretamente estão longe da
perfeição.
No livro A república, Platão limita-se a mostrar a cidade ideal; em duas obras que
se seguiram, O político e Timeu, ele discorre sobre os motivos que afastam as cidades
concretas da perfeição, e em outro livro, As leis, mostra como a legislação poderia
aproximar a realidade existencial das cidades do plano ideal. Portanto, a sociedade
descrita em A república é, antes de tudo, um modelo, e as prescrições econômicas
contidas nela devem ser pensadas como elementos de um quadro ideal que podem ser
provisoriamente abandonados nas vicissitudes da cidade existente.
O que torna justa a cidade ideal não é a observância das noções de justiça dos
personagens Céfalo, Trasímaco e Adimanto, um tanto quanto limitadas ao contexto do
indivíduo. No pensamento platônico, deve-se separar a virtude individual da virtude na
cidade. No primeiro caso, a virtude está no equilíbrio de forças entre impulsos movidos
pelo desejo material e sensual, pela fúria e pela inteligência, denominados respecti-
vamente de concupiscência, cólera e razão. O homem justo dá a cada parte o lugar que
deve ocupar. A proporção depende de nossa natureza: uns nascem mais fortes, outros
mais sábios, e assim por diante. A virtude individual faz prevalecer em nós um balanço
de sentimentos compatível com nossa natureza. A cidade justa é composta por cidadãos
virtuosos, mas o que a faz justa é o modo como se distribui o conjunto de funções que
cada qual desempenha em seu interior. A virtude na cidade consiste em distribuí-las de
modo que cada qual cumpra um papel de acordo com o que lhe é merecido em face de
suas qualidades físicas, intelectuais e morais.
Para Platão, as pessoas nascem diferentes umas das outras e essas diferenças se
mantêm. Assim, cabe à cidade atribuir direitos e obrigações particulares a cada classe de
homens, pois seria uma injustiça tratar de modo igual os que são naturalmente
diferentes, como se pretende na democracia que sempre se degenera em tirania. A
sociedade ideal é sempre aristocrática, pois os melhores devem governar e os inferiores
submeterem-se com resignação às suas ordens. Entre os cidadãos, há três tipos de
pessoas: os que vivem na sabedoria exercida pela contemplação e que sabem dominar
suas paixões são os governantes; os guerreiros, que ainda mantêm grande sabedoria, mas
que se destacam pela força física e pelo ardor e doçura de sentimentos, já que devem ser
intrépidos contra os inimigos e cortês com os concidadãos. Finalmente, temos os
agricultores e artesãos em que predominam a força física e o senso de obediência. Os
ditames da organização social e econômica da cidade estão todos voltados à obtenção da
ordem hierárquica entre os homens.
Algumas condições lógicas devem ser observadas a fim de que todos ocupem bem
seu respectivo papel social. Primeiramente, um sistema educacional que não discrimine
pelo nascimento, já que a desigualdade de aptidões não é determinada pela heredita-

3 Até aqui as reflexões de Platão são próximas às de Adam Smith quando ele apresenta, logo no
início de A Riqueza das Nações, a descrição da fábrica de alfinetes. Entretanto, as diferenças de
enfoque são significativas e teremos oportunidade de apontá-las mais adiante no Capítulo 5.
Platão, nas palavras do personagem Sócrates, não fornece uma explicação puramente em termos
de vantagens econômicas para a razão de ser das cidades. Embora as cidades surjam para melhor
atender às necessidades humanas, sua função essencial não é econômica, mas espiritual (ou
ética).

9
riedade. As crianças são separadas dos pais e reunidas em escolas onde educadores
prestarão especial atenção nas desigualdades individuais, de modo a encaminhá-las o
mais cedo possível para uma vida de acordo com suas qualidades. A fim de que as
crianças não fiquem presas às influências paternas, é aconselhável o regime em que as
mulheres sejam compartilhadas e as crianças não reconheçam os pais. Não há famílias
nucleares e sim a plena comunidade de mulheres e filhos. A segunda condição para a
ordem justa é que todos os cidadãos da cidade sejam amigos entre si. A amizade entre
todos é alcançada em uma organização econômica em que os bens materiais sejam de
todos, pois entre amigos tudo é comum.
O comunismo é o regime de propriedade compatível com a cidade ideal. Além de
favorecer a amizade, ele evita o enriquecimento excessivo de alguns. Embora seja lícito
supor que os mais sábios tenham uma vida mais confortável, o critério de mérito na
cidade ideal jamais será o da riqueza. Pelo contrário, a oligarquia, ou governo dos ricos,
é condenada e o homem rico visto com desdém: “ser imundo que de tudo toma proveito,
que cresce à sombra e transborda em carnes supérfluas enquanto explora o miserável
chupado e assado pelo sol.” No comunismo de Platão, o sábio terá uma vida apenas
frugal, pois a riqueza poderia tirá-lo do caminho do bem e envenenar sua alma de
sensualidade e desejo de consumo. Os guerreiros não passam por privações que pode-
riam abalar saúde e vigor físico, essenciais na arte da guerra. Não mergulham, porém,
em riquezas que comprometeriam a disciplina da vida marcial. O artesão e o agricultor
mantêm sua disposição para o trabalho se afastados de uma vida de riquezas. Assim, na
cidade ideal os indivíduos levam um gênero de vida conforme a função que lhes cabe.4
Platão reconhece que a igualdade de riquezas entre os cidadãos da cidade ideal não
se verifica nas cidades concretas. Constatada a distância entre o ideal e a realidade, ele
lança-se, em As leis, a buscar soluções que atenuem as desigualdades. A reforma das
cidades é conduzida pela imposição de leis que regulam a atividade econômica:
repartição da propriedade, sistema tributário que busque a igualdade, confisco de
fortunas, regulamentação de heranças, controle populacional, proibição de se reter ouro
e prata e de empréstimos mediante juros elevados, controle das atividades dos
estrangeiros e das importações e exportações. Platão discorre sobre a prioridade do
Estado no controle da produção, mantendo ou dirigindo-a diretamente e repartindo o
produto; quando não for o caso, impondo condições sobre a atividade privada,
controlando as condições em que se farão as colheitas etc. Por fim, a atividade comercial
é proibida entre os cidadãos, ficando o comércio a cargo de estrangeiros.
No momento em que as cidades alcançarem os ideais da cidade perfeita, elas serão
plenas das quatro virtudes capitais – justiça, sabedoria, coragem e temperança, respecti-
vamente quando as funções de cada cidadão correspondem às suas qualidades pessoais,
quando a cidade é dirigida pelos mais sábios, guardada pelos mais corajosos e com os
inferiores obedientes aos superiores. Não se trata de uma democracia, mas de uma
aristocracia em que a seleção dos dirigentes é feita não pela escolha da maioria, mas
submetendo-os a provas morais e intelectuais. As prescrições de natureza econômica são
apenas meios, pensados para se alcançar um ideal de justiça social. Não há argumentos
de eficiência ou racionalidade econômica. As pessoas na cidade perfeita não procuram
maximizar riquezas, mas realizar seu papel social com perfeição de modo a se elevarem
espiritualmente.

4 Will Durant condena os que rotulam Platão de “comunista”: “A todas essas críticas, pode-se
responder muito simplesmente dizendo que elas destroem um homem de palha. Platão isenta,
explicitamente, a maioria de seu plano comunista; reconhece com nitidez que só uns poucos são
capazes da renúncia material que ele propõe para a sua classe dirigente; só os guardiães irão
chamar cada guardião de irmão ou irmã; só os gradiães não terão ouro ou bens. A imensa maioria
irá manter todas as instituições respeitáveis -propriedade, dinheiro, luxo, concorrência e a
privacidade que possa desejar.” (Will Durant, A história da filosofia, p. 64).

10
AS NOÇÕES ECONÔMICAS DE ARISTÓTELES
Natural de Estagira na Grécia, Aristóteles (384-322 a.C.) foi discípulo de Platão e
em alguns aspectos sua visão filosófica conserva a marca do mestre. Todavia, as
diferenças entre ambos são evidentes e, no que tange ao aspecto da organização
econômica da sociedade, eles estão em posições diametralmente opostas. O substrato
filosófico também difere e é sobre ele que discorreremos inicialmente.
Aristóteles não acredita no “mundo das ideias” de Platão. A realidade fica contida
nos objetos sensíveis, mas nem tudo é matéria. Há deuses e espíritos; no entanto, o
mundo sobrenatural é incomunicável e não exerce influência no mundo concreto. Além
disso, a própria matéria carrega um elemento que não nos é percebido diretamente pelos
sentidos. Trata-se de uma essência não revelada no objeto particular, mas que é
encontrada no universal que se faz presente em todos os objetos de mesma natureza. Os
objetos saltam aos olhos em sua aparência; entretanto, só podemos pensá-los em sua
essência. A matéria pura, de que são feitos, é incognoscível, enquanto formamos ideias
com base no conhecimento das formas dos objetos. Não podemos pensar em madeira
sem nos reportarmos à árvore, e esta é apreendida por sua forma. Todas as coisas
possuem uma natureza. Por trás da aparência mutável e não repetitiva das coisas, há
características essenciais que particularizam sua existência. Tudo possui uma essência
que não é engendrada e não se transforma, tratando-se de uma substância imutável e
eterna.
Assim, a filosofia de Aristóteles deve ser pensada com base nessas dicotomias entre
essência e aparência ou forma e matéria. A investigação da realidade consiste em
procurar pela natureza das coisas. Na obra Organon, a parte intitulada Analíticos Poste-
riores descreve o caminho que devemos seguir a fim de alcançar o essencial das coisas:
começar com a observação atenta dos fatos até se chegar à plena familiaridade com o
objeto. O processo de indução permite ao “olhar intelectual” (nous) do observador pene-
trar na realidade última do objeto. A identificação da essência vem à tona como uma
recordação de algo que já se sabia. A ideia de conhecimento como lembrança tem um
inequívoco componente platônico.5
A explicação do mundo dá-se então ao se identificarem as causas dos seres. Deve-
se reconhecer a ação da causa com vistas a um resultado final, o que se entende como
ação teleológica (Boxe 1.3). A noção de causalidade em Aristóteles aplica-se ainda na
explicação da sociedade. Em sua obra Política, o homem é tido como um animal social e
político. Seu lugar natural é a sociedade em que ele realiza o principal propósito da vida
humana: a busca da felicidade.
A felicidade não é apenas o usufruto do prazer sensorial, e nenhuma das vantagens
econômicas da vida na cidade a justifica. Tal prazer é comum também entre os animais.
Duas outras dimensões da felicidade são puramente humanas. A honra é importante por
reforçar no homem sua autoestima. Todavia, somente o prazer do pensamento racional,
presente na atividade de teoria ou contemplação, merece menção dentre os objetivos
prioritários da vida. A teoria ética identifica o bem e o justo, distinguindo-os do mal e do
injusto. Só os humanos são dotados desses sentimentos morais porque só eles possuem
o dom da palavra.

5 Muitos filósofos atuais discordam dessa aproximação entre Aristóteles e Platão. A tese de um
resquício platônico em Aristóleles aparece em Randall e Woodbridge, Aristotle.

11
Boxe 1.3 Ação teleológica em Aristóteles.

Vejamos, a título de ilustração, a Física de Aristóteles. O espaço é fragmentado em


regiões e cada local possui uma natureza que lhe é própria. Assim, o centro do universo, onde
se encontra a Terra, é o local natural dos elementos pesados e a esfera mais distante é a
residência dos corpos leves. Há quatro elementos, fogo, ar, água e terra, na ordem crescente
de peso. Todo movimento observado é o deslocamento de corpos em busca de seu lugar
natural; por isso, a água assenta-se sobre a terra; acima da água, está o ar e o fogo sobe em
direção ao ponto mais elevado. O movimento é compelido pela força, mas a causa da força é
o evento final em que o corpo estará repousado em seu lugar natural.

Então a cidade é pensada como um meio de tornar feliz a vida presente do indivíduo,
enquanto em Platão a cidade viabiliza a consecução de objetivos espirituais para além da
vida terrena. Em nenhum momento Aristóteles enfatiza as cidades como um
instrumento para satisfazer a necessidades materiais, como chega a estabelecer Platão
ao discorrer sobre a causa ou origem das cidades. A felicidade contemplativa, associada
ao uso da razão, é a ênfase; no entanto, a possibilidade concreta de se exercer a
contemplação requer o consumo de bens materiais, pois é condição necessária, mas não
suficiente, para a felicidade “cuidar do corpo, ter bons amigos e descendência feliz”.
São necessários recursos econômicos para a felicidade e, ao reconhecer tal fato,
Aristóteles lança-se a tecer considerações de natureza econômica. A economia é uma
parte mais restrita da ciência do homem que estuda a administração do lar (oïko = casa,
nomik = leis ou princípios de administração). O ramo mais abrangente e mais importante
dessa ciência é a política e o estudo mais específico do indivíduo pertence à ética. A cidade
nunca pode ser perfeita, pois tudo o que pertence ao mundo sublunar está sujeito ao
acaso e a mudanças imprevisíveis; o mundo perfeito e imutável é o das esferas celestes
tal como se observa na harmonia do movimento dos astros.
Na política, Aristóteles não se posiciona a favor de um único regime. Três deles são
possíveis: a realeza, a aristocracia e a república. O Filósofo apenas condena as formas
degeneradas desses governos, respectivamente a tirania, a oligarquia e a democracia: a
ditadura de um só, do dinheiro ou da maioria, nessa ordem. A política fornece os
princípios que norteiam o legislador, mostrando-lhe como alcançar, em sociedade, a
virtude. A economia ensina a organizar a vida econômica de modo que se torne
compatível com a obtenção das metas supremas da humanidade.
O comunismo de Platão é criticado. Os argumentos que, para tanto, Aristóteles
lança-se a fazer merecem uma exposição, pois até hoje são utilizados pelos liberais
críticos do coletivismo. Enquanto Platão pensava que a propriedade comunal facilitaria
o entendimento entre os homens, Aristóteles acredita que possuir bens comuns é fonte
de conflito. O amor e a amizade requerem a propriedade privada. O sentimento de pro-
priedade estimula o amor e a afeição pelos objetos e também pelas pessoas. Para ajudar
e receber os amigos, é preciso possuir bens. A educação das crianças no sistema comunal
de Platão é combatida. Os filhos devem estar próximos aos pais, já que nos interessamos
menos pelo que pertence a todos. Só a afeição exclusiva dos pais engendra o amor.
Aristóteles defende a família patriarcal com a mulher submissa ao homem.
A luta interna na cidade não é resolvida pela igualdade de riquezas. O comunismo
leva à irresponsabilidade. Todo o ônus da manutenção das novas gerações é repassado
para a sociedade e, assim, os indivíduos não refreiam o ímpeto da procriação, o que leva
à divisão infinita das fortunas pelo crescimento do número de cidadãos. Regular a
população era também uma preocupação de Platão; ele pensava que as cidades deveriam
ter apenas 5.040 cidadãos, número divisível por todos os inteiros de 1 a 12, exceto o 11,

12
facilitando-se o trabalho administrativo de organizar grupos. Aristóteles, como Platão,
também propõe a eugenia com a eliminação de crianças disformes. O que os difere é que
Aristóteles acredita que no comunismo seria impossível regular a população.
A desigualdade e, por extensão, a existência de homens ricos é tolerável e até útil
para a cidade. Os ricos pagam impostos e o Estado necessita deles para bancar as
despesas das atividades em comum: cultos aos deuses, defesa da cidade etc. Aristóteles
não defende a supressão do Estado; pelo contrário, há amplo espaço para o domínio
público, inclusive a propriedade pública de terras. Vê-se então que a defesa da
propriedade privada em Aristóteles não é radical. Uma última ideia vale a pena
comentar: o estagirita antecipa o argumento moderno contra a pretensão de eficácia do
comunismo ao enfatizar o comportamento oportunista dos que não se empenham em
contribuir para a sociedade, uma vez que o regime de propriedade comum garante de
antemão o usufruto da produção social. No contexto da época, tal argumento não era tão
forte, já que de qualquer maneira os cidadãos não tinham que trabalhar. O trabalho
penoso é incompatível com os objetivos da vida em contemplação. Não tanto o trabalho
agrícola do lavrador, que não chega a ser um impedimento para a virtude. Ele é até bom,
pois confere força ao corpo e o torna apto para a guerra, embora prive os homens do lazer
necessário à reflexão. O trabalho artesanal é o mais penoso e degenerativo por estragar
o corpo. O trabalho pode e para os cidadãos deve ser evitado sem prejuízo para a
existência, já que, de qualquer modo, os meios materiais para a sobrevivência deles estão
garantidos pela instituição da escravidão.
Escravos são subumanos que não podem ser senhores de sua própria vida e que
necessitam de comando. No entanto, é preciso, em cada caso, averiguar se o escravo em
questão é de fato um ser menos dotado. Não se pode aceitar que alguém que não mereça
ser escravo o seja. Platão desenvolveu argumentos semelhantes a favor da escravidão,
Aristóteles, porém, é mais enfático em afirmar que em certos casos o senhor deve libertar
seu escravo.
Certo conforto material é condição para a vida reflexiva do cidadão, no entanto a
procura ilimitada da riqueza é um vício que impede o alcance da verdadeira felicidade.
Aliás, indivíduos bons são os que menos necessitam de riquezas. Somente as atividades
voltadas ao atendimento de necessidades naturais de consumo são dignas de serem
examinadas pela economia. Há uma distinção importante entre economia (oikonomik) e
crematística (chrematistik). A ciência da administração doméstica preocupa-se com o
consumo e o aprovisionamento de riquezas na satisfação de necessidades humanas, a
crematística estuda tudo o que diz respeito à aquisição de riquezas, incluindo o ganho e
o acúmulo de dinheiro por empréstimo e comércio. A economia estuda a maneira natural
de aquisição de bens que consiste na apropriação pelo homem de outros seres vivos por
meio da agricultura, pecuária, pesca e caça. A crematística estuda modos não naturais e,
portanto, condenáveis de adquirir bens via comércio e atividades financeiras. Entre-
tanto, nem sempre o comércio é condenável, aceitamo-lo moralmente quando se trata de
melhor atender às necessidades humanas pela especialização do produtor e troca do
excedente. Nesse caso, a troca é um modo de atender a necessidades diversificadas e não
um meio de acumulação de dinheiro. Então uma parte da crematística tem um caráter
natural, uma vez que visa ao atendimento de necessidades.
A intersecção dos dois conjuntos mostra que há uma área da economia que é crema-
tística e uma parte desta última que é objeto da economia. Excetuando-se as condições
em que comércio e atividade financeira façam parte da economia, eles devem ser
proscritos da cidade. O uso do dinheiro para fazer trocas e retirar disso o máximo lucro
corrompe a alma humana e como tal é condenável. Trata-se da crematística pura, o setor
não econômico da crematística. Na Política, Aristóteles explica que fazem parte dela o
comércio exterior (e, portanto, as atividades de exportação e importação devem ficar a
cargo de estrangeiros), o trabalho assalariado (“o fato de se vender o próprio trabalho

13
por dinheiro”), a formação de monopólio (“o açambarcamento de toda a quantidade
disponível de uma mercadoria a fim de a revender muito cara”) e o empréstimo a juros,
a atividade mais condenável de todas.
A Figura 1.1 adiante resume essas ideias esclarecendo as diferenças entre economia
e crematística:

Figura 1.1 Diagrama identificando os conceitos de economia e crematística em


Aristóteles.

ECONOMIA CREMATÍSTICA
(Natural) (Artificial)

Trocas para o
Necessidades atendidas Obtenção de riquezas pelo
acolhimento de
pela apropriação de necessidades comércio ou pela atividade
seres vivos financeira

Nas condições em que a troca seja necessária como parte da economia, há de se


observar a justiça no estabelecimento dos contratos. Neste ponto o conceito ético de
justiça, exposto em Política e na obra Ética a Nicômaco, é aplicado nas trocas; é quando
aparecem as reflexões aristotélicas sobre o valor dos bens que lançam as bases do
pensamento econômico que se farão presentes no nascimento dessa ciência no século
XVIII. Aristóteles concebe a justiça em sociedade com base na noção de igualdade
proporcional: dar mais àqueles que merecem mais. As trocas devem obedecer a um
critério de reciprocidade. O que é considerado mérito depende da sociedade em questão,
muito embora o filósofo apregoe que a virtude deva ser o critério maior. No caso dos
contratos, a discussão da reciprocidade nas trocas lança sementes de um aspecto
fundamental do pensamento econômico: qual o critério que regula as proporções
trocadas dos bens? Aristóteles, nesse aspecto, oscila de posição, primeiro ele pensa que
as partes devam receber de acordo com o trabalho despendido na obtenção do bem. Tal
tese antecipa o que será aceito entre os economistas clássicos como a teoria do valor-
trabalho. O Filósofo, porém, está ciente das dificuldades dessa medida de mérito, primei-
ramente pelas diferenças qualitativas entre trabalhos de naturezas distintas e depois pelo
preconceito grego, muito arraigado, contra o trabalho, o que torna difícil elegê-lo como
elemento de mérito regulador das trocas justas. Assim, o estagirita parte para outro
princípio que deveria regular as trocas: a importância da necessidade atendida pelo bem.
Ciente de que isto envolve o conhecimento de avaliações subjetivas, ele mostra-se céptico
quanto à possibilidade do uso deste critério na avaliação moral de situações econômicas
concretas. Assevera que, na prática, os bens são avaliados pela moeda e que os valores
monetários devem então refletir os diferentes graus de necessidade. Não há, de fato,
muito aprofundamento na questão. Importa assinalar que Aristóteles lança e discute

14
superficialmente as duas principais vertentes do pensamento econômico na explicação
do valor: a teoria do valor-trabalho e a teoria do valor-subjetivo.
Em sua obra Política, Aristóteles discorre sobre a natureza da moeda. Descreve
como ela surgiu historicamente e diz que a moeda veio a ser adotada por sua função de
meio intermediário entre os bens: instrumento de comparação de valores e facilitador
das trocas. O Filósofo aponta também para a função da moeda como reserva de valor,
antecipando uma noção importante na moderna teoria monetária.
Outra questão monetária investigada por Aristóteles pergunta se o valor da moeda
depende do valor do metal precioso contido nela (metalismo) ou se aquele valor provém
da autoridade de um governo que a põe em circulação (nominalismo). Entre os
defensores da interpretação nominalista da moeda aparece Platão nas Leis. Aristóteles,
sem aderir a ela, também não se sente inteiramente convencido da posição metalista que
atribui valor intrínseco à moeda. Para ele, tanto as propriedades físicas quanto o costume
do povo e a força da lei explicam a natureza da moeda.
Outro pensador com ideias econômicas destacadas na Antiguidade grega foi
Xenofonte (430-354 a.C). Originário de uma família rica e influente em Atenas, foi
soldado, mercenário e discípulo de Sócrates. Autor de inúmeros tratados práticos sobre
assuntos que vão desde equitação a tributação.

O PENSAMENTO ECONÔMICO ENTRE OS ROMANOS


Anteriormente ao século V a.C., Roma à época de Aristóteles ainda não era uma
cidade importante. Sua sociedade aristocrática separava os homens entre nobres e
plebeus, havendo em cada uma das classes ampla subdivisão de grupos ordenados pela
riqueza. A partir de então, essa cidade começa a desenvolver um crescente poderio até se
constituir no maior império da Antiguidade em extensão e riqueza, que durou cerca de
mil anos até sua completa desintegração entre 535 e 540 de nossa era. O
desenvolvimento do império romano acompanha a decadência da civilização helênica
pela dispersão de seus povos, instabilidade política e guerras internas. Após ter sido
subjugada pelos reis da Macedônia, a Grécia é por fim anexada ao império de Roma em
146 a.C. Toda a orla do mar Mediterrâneo teve esse mesmo destino. A conquista dos
povos mediterrânicos fez parte da estratégia da aristocracia romana que por meio da
pilhagem, do comércio e de deportações em massa logrou grande êxito em seu
enriquecimento. O poder está nas mãos dos grandes proprietários que, já em 312 a.C.,
dominam a Assembleia Centurial em detrimento de outras classes sociais. O regime
republicano mantém-se coeso graças a concessões calculadas que vão sendo paulati-
namente feitas à plebe e ao combate encarniçado contra os escravos rebelados sob a
liderança de Sálvio, Atenião e Espártaco, em diferentes momentos, até a derrota defini-
tiva desses movimentos em 71 a.C. O período áureo de Roma ocorre na fase imperial que
se estabelece em 27 a.C. com a tomada do poder por Augusto. As liberdades políticas são
abolidas e um Senado, sem poder, fornece os quadros dirigentes de governadores de
províncias e generais.
Nessa fase, uma intensa atividade econômica verifica-se espalhada pelo império. A
elite de Roma desenvolve hábitos sofisticados e de toda parte afluem bens de consumo
na satisfação de seus desejos. Desenvolve-se o comércio entre regiões, também facilitado
pela adoção de moedas para intermediar as trocas. Instituições de crédito similares ao
cheque e notas promissórias eram conhecidas e usadas. Há banqueiros profissionais e
até um banco público para supervisionar suas atividades. O governo tem de enfrentar
problemas econômicos típicos da era moderna como crises monetárias e fiscais, falta de
ouro, balança comercial deficitária e inflação. Os imperadores intervêm de muitas

15
formas na vida econômica, fixando preços, tabelando os juros, protegendo devedores,
inspecionando a qualidade dos bens nos mercados, confiscando mercadorias defeituosas
ou estragadas. Também atuam com medidas contra a competição estrangeira, outras que
regulam o uso das vias públicas, que proíbem a exportação de metais preciosos e até
organizando as profissões em corporações obrigatórias.
Com tudo isto, era de se esperar que o pensamento econômico tivesse grande de-
senvolvimento no período, mas tal fato não ocorreu. Pelo contrário, há uma relativa
estagnação entre os romanos em relação às reflexões políticas e econômicas dos povos
gregos. Isso se explica pelo fato de a cultura romana ter desenvolvido um viés bastante
pragmático: os romanos são homens de ação e estão mais preocupados com ideias
concretas sobre relações econômicas, de aplicação imediata nos negócios do dia a dia, e
menos voltados à análise puramente teórica. A principal fonte de ideias econômicas na
Roma Antiga localiza-se no sistema de leis. Há um pensamento econômico original e
fértil entre os juristas romanos. Na elaboração das leis com impacto na economia, esses
juristas tendiam a dar menos importância a considerações éticas e religiosas. A
inclinação predominante era ver a esfera econômica como dominada pela ação de forças
impessoais. Tal fato representa um afastamento em relação aos povos antigos que não
separavam a esfera econômica da dimensão ética e política; contudo, não se pode
exagerar a interpretação a ponto de se falar em teorias de sistema econômico imbuído de
racionalidade própria. A partir dos romanos, porém, inicia-se um caminho em direção a
essa perspectiva que somente se desenvolve no nascimento da economia como ciência
no século XVIII.
Contudo, não se pode negar que as concepções filosóficas e teológicas também
tiveram alguma influência no pensamento econômico do período, mesmo levando-se em
conta que pouca filosofia original sobre política, Estado e vida social aparece entre os
romanos. Roma esteve sob a influência de duas doutrinas filosóficas principais: o
epicurismo e a filosofia estoica. Epicuro viveu em fase decadente da civilização grega,
entre 341 e 270 a.C., e suas ideias refletem a percepção de um período em que os valores
dessa civilização estão sendo questionados. Assim, suas crenças desdenham do legado
aristotélico; a filosofia política peripatética é posta de lado e com ela a tese de que a
sabedoria somente seria alcançada com a ajuda da cidade. A ênfase recai agora no
indivíduo isoladamente considerado em uma concepção materialista. Nela, a realidade é
composta de átomos materiais que se combinam mecanicamente para formar os corpos
sensíveis, como nos filósofos pré-socráticos. Os deuses que existem são também corpos
materiais, só que inteiramente estranhos ao resto do mundo. O homem deve abandonar
o mundo da cidade e voltar-se para si mesmo, adotando o comportamento hedonista de
maximizar sua própria felicidade ao longo da vida, pelo cultivo moderado do prazer
carnal e da amizade.6
O estoicismo foi a principal influência filosófica sobre as concepções legais e o
pensamento econômico de Roma. Ele conjuga tendências idealistas e materialistas e
representa, em relação ao epicurismo, um afastamento menor de Aristóteles. A
concepção moral dos estoicos retém de Aristóteles a explicação teleológica do mundo
pelos fins que se persegue, em detrimento do modelo mecânico de Epicuro. Aliado a isso,
há uma dose de fatalismo que apregoa a resignação diante do mundo, o que leva a uma
indiferença em relação à sociedade e seus problemas. A felicidade consiste no domínio
de desejos e paixões. O sábio deve seguir a ordem intangível e divina da natureza,
submetendo-se, por sua própria vontade, às leis naturais. A felicidade está na adesão da
razão particular à razão presente na ordem universal. A razão soberana da natureza
revela-se diretamente à consciência individual dizendo ao homem o que deve e o que é

6Esta idéia antecipa as concepções utilitaristas que serão desenvolvidas entre os séculos XVIII e
XIX e que terão certa influência no pensamento econômico moderno.

16
proibido fazer, conferindo às leis um valor absoluto. Com o tempo, as leis romanas vão
tornando-se cada vez mais divorciadas da religião e menos guiadas pelos costumes locais,
já que são fundadas em princípios gerais de racionalidade, ligados à noção grega de
natural (jus naturale). O conceito de lei natural terá uma grande influência na doutrina
jurídica de Roma e também entre os filósofos morais da época, principalmente Cícero e
Sêneca. No século XVIII, a ideia de lei natural será retomada pelo pensamento dos
fisiocratas e de Adam Smith.
A ênfase da lei em elementos impessoais leva ao desenvolvimento de um sistema
legal científico que prioriza os direitos do indivíduo mais do que os de comunidades como
famílias e clãs. Desenvolve-se então a liberdade de contrato e o direito individual de
dispor da propriedade. O reconhecimento legal das instituições da propriedade privada
e do contrato favoreceu os processos econômicos e também foi importante para a evolu-
ção do pensamento econômico.
O sistema de direitos privados individuais foi, de fato, a grande contribuição
intelectual dos romanos. Ideias e preceitos econômicos são discutidos pelos juristas de
Roma. Eles conheciam a instituição da moeda e sabiam de sua vantagem para as trocas.
Eram metalistas, pois achavam que a moeda tinha um valor intrínseco que não poderia
ser estabelecido por lei. No período romano, os juros sempre estiveram fixados ou
controlados por decretos. Já em 450 a.C., a Lei das Doze Tábuas fixa os juros, condena
a usura e busca diferenciar juros de usura. Em 357 a.C. os juros estão fixos por lei em
10% ao ano e, dez anos depois, em 5%. Na sequência, as leis genucianas proíbem
completamente os juros. As leis justinianas fixam os juros entre 4 e 8% de acordo com as
características do empréstimo. Na prática, entretanto, a lei era letra morta, pois as taxas
de juros variavam com as condições de mercado. De fato, as leis foram tornando-se mais
flexíveis com os juros à medida que o império enriquecia e os empréstimos
generalizavam-se. Em geral, as taxas praticadas eram muito maiores nas províncias mais
distantes, chegando a quase 50% ao ano em alguns casos.
O Direito Romano também tecia ideias sobre preço e valor econômico dos bens.
Havia um senso prático nessa questão. A referida Lei das Doze Tábuas deixava os preços
ao sabor do mercado. O preço era visto como resultante dos processos de regateio no
mercado, nos quais cada parte tendia a fazer seu ponto de vista prevalecer. Os juristas
romanos não analisam as forças que determinam o preço final da transação, mas com o
tempo surgem discussões sobre o preço justo (verum pretium). A noção de preço justo
será depois retomada pelos padres da Idade Média e ela está na base da ideia moderna
de preço de equilíbrio. Um aprofundamento na questão do valor aparece nos filósofos
morais Cícero e Sêneca. Eles reconhecem a importância do desejo humano e da utilidade
do bem na determinação do valor. Com o crescimento do comércio e do crédito, os
romanos passam cada vez mais a ver a “utilidade” como o fundamento para o valor de
troca dos bens.
Nos últimos dois séculos antes da queda do império romano, a percepção da deca-
dência estimula o desenvolvimento de ideias econômicas e das iniciativas de intervenção
do Estado nas atividades econômicas enquanto um paliativo para evitar o desastre
anunciado. Em 301 de nossa era, Diocleciano fixa nos contratos um preço justo com base
no custo tradicional de produção. Cresce, a partir de então, as tentativas de limitar os
contratos introduzindo considerações éticas.
Embora encontremos no Direito Romano uma visão renovada dos processos econô-
micos, menos embebida de considerações éticas e religiosas, não se pode dizer que se
tenha abandonado por essa época o antigo preconceito e desdém contra o trabalho e a
atividade econômica. O filósofo Cícero, no século I, afirma que os homens ocupados em
trabalhos manuais são de fato inferiores e possuem uma natureza servil. Ele também
condena a atividade crematística que visa tão somente ao lucro e ao empréstimo a juros.

17
Diz que “quem empresta dinheiro assassina um homem”. Cícero posiciona-se contra o
comércio e a contratação de mão de obra assalariada. Em geral, os filósofos morais de
Roma condenam os luxos e vícios da época, a sede de dinheiro e de riqueza, e pedem
moderação e comedimento na vida econômica. Fazem a apologia da vida simples dedica-
da à agricultura como nos tempos remotos e apregoam uma volta à natureza.
Entre os romanos, entretanto, constata-se algum progresso na mentalidade antieco-
nômica. Há a defesa da propriedade que é tida como legítima se adquirida conforme ao
direito. Mesmo a riqueza não é tão execrada como antes. Sêneca diz que a riqueza fornece
ao homem sábio uma matéria para ele desenvolver suas qualidades, desde que ganha de
modo honesto. Os mercados e o processo de formação de preços são mais bem
compreendidos. Os devedores são protegidos por lei e estão salvos contra a escravidão.
Na ausência de fraude, o comprador não pode processar o vendedor. Há em Cícero
argumentos sobre o papel da divisão do trabalho. A escravidão, embora generalizada no
império romano e embora se encontrem filosóficos que a justifique, é condenada com
base em argumentos econômicos nos escritos que tratam dos princípios práticos das
propriedades agrícolas, dos autores romanos Varrão, Catão e Columella.
Os romanos não acrescentaram muito ao pensamento econômico, não desenvol-
veram teoria nessa disciplina. No entanto, o estudo de suas doutrinas jurídicas e filosófi-
cas é importante para uma compreensão da evolução do pensamento econômico. Não se
pode negar que houve um avanço na interpretação econômica entre os romanos e talvez
falte na literatura especializada em história das ideias um maior aprofundamento no
período em questão.

18
Questões

1. Até que ponto é possível identificar uma doutrina econômica separada das questões
políticas, éticas e religiosas entre os pensadores da Antiguidade?
2. Por que se diz que o advento do capitalismo favoreceu a definição de um objeto
racional de estudo para a ciência econômica?
3. Sabe-se que entre os judeus e os hindus antigos as leis que afetavam a vida
econômica não eram aplicadas igualmente a todos os cidadãos. Comente algumas
discriminações feitas por elas.
4. O que levou judeus e hindus antigos a uma postura intervencionista na sociedade?
5. Qual a relação entre a defesa do laissez-faire na sociedade e a concepção mística do
Tao em Lao Zi?
6. Explique a noção platônica de sociedade como instrumento para a salvação das
almas.
7. Na lenda de Protágoras que narra a origem da vida em sociedade, por que é preciso
que Hermes presenteie os homens com as qualidades morais de justiça e respeito?
8. Em sua obra A república, Platão narra o diálogo entre Sócrates, Céfalo e os irmãos
Glauco e Adimanto. Numa passagem inicial, os interlocutores estão a discutir o
conceito ético de justiça. Exponha os argumentos de cada um deles e a estratégia de
refutação adotada por Sócrates. O que é a cidade justa para Platão (Sócrates)?
9. Os gregos posicionam-se diante da questão sobre a natureza das leis humanas
formulando ao longo do tempo diferentes concepções. Comente a evolução dessas
ideias e o significado das leis para Platão e Aristóteles.
10. Qual a causa apontada por Platão para o nascimento das cidades?
11. Como está organizada a sociedade ideal de Platão?
12. Quais os argumentos utilizados por Platão e Aristóteles na defesa de suas concepções
sobre a propriedade dos bens?
13. Quais as principais diferenças entre a concepção filosófica de Platão e Aristóteles?
14. Qual a diferença entre crematística e economia?
15. No que consiste a noção de causalidade final em Aristóteles?
16. O que Platão e Aristóteles escreveram a respeito dos escravos? Havia uma conde-
nação moral à escravidão?
17. O que deveria regular as trocas de bens para Aristóteles?
18. No Império Romano, até que ponto as concepções éticas sobre a riqueza e a proprie-
dade afetaram a legislação que regulava a vida comercial do Império?
19. Como era vista a escravidão pelos autores romanos que escreviam sobre princípios
para a agricultura? Você concorda que a escravidão coloca um limite à expansão
econômica e à inovação tecnológica?
20. Comente os principais pontos da filosofia de Epicuro.
21. Como a ideia estoicista de lei natural afetou o direito romano?
22. É correto afirmar que os romanos mantêm o antigo preconceito contra a atividade
econômica? O que há de novo entre eles nesse aspecto?

19
Leitura Adicional

Literatura Primária

ARISTÓTELES. Organon, livro IV: analíticos posteriores. Lisboa: Guimarães Editores,


1987. (Coleção Filosofia e Ensaios.)

LAO TSE. Tao Te King. São Paulo: Pensamento, 1978.

PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Col. Os Pensadores.)

_____. Protágoras. São Paulo: Matese, 1965.

Literatura Secundária

DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

DURANT, Will. A história da filosofia. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1996.

EKELUND JR., Robert; HÉBERT, Robert F. A history of economic theory and method. New
York: McGraw-Hill, 1990.

GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Lisboa: Difusão Cultural, 1994.

HANEY, Lewis H. History of economic thought: a critical account of the origin and
development of the economic theories of the leading thinkers in the leading nations.
New York: Macmillan, 1949. cap. 3 a 5.

RANDALL, John Herman; WOODBRIDGE, Frederick J. E. Aristotle. New York: Columbia


University Press, 1960.

20
2
A Evolução das Ideias Econômicas
na Idade Média

O DECLÍNIO DO IMPÉRIO ROMANO E


A FORMAÇÃO DE UMA NOVA SOCIEDADE
Nos dois últimos séculos da dominação romana, o Império não consegue mais
manter a mesma força militar e o elevado grau de coesão política e ordenamento jurídico
que no passado fizeram sua glória. Há uma estagnação econômica. As antigas instituições
entram em decadência e novo conjunto de crenças religiosas emerge, então sob
influência do cristianismo. Depois de séculos de perseguição implacável, em 313 o
imperador Constantino legaliza o culto cristão. Ele próprio veio a aderir à nova religião.
O cristianismo convertera os europeus começando pela periferia do Império e nas áreas
rebeladas dos povos bárbaros. À medida que legiões de bárbaros germanos e eslavos
invadiam o império, suas crenças cristãs iam alastrando-se em direção a Roma.
Constantino chegou ao poder com o apoio dos germanos e, em contrapartida, autoriza
suas práticas religiosas cristãs. A nova sociedade, que começa a se formar a partir de
então, é um amálgama de tradições que reúne as antigas instituições romanas, os
costumes dos bárbaros, o credo da Bíblia e aspectos de filosofia grega.
A sociedade germânica organiza-se em vilas rurais constituídas por grupos autos-
suficientes de famílias, nos quais se pratica entre eles certa democracia e observa-se
também igualdade de riquezas. Predomina um sentimento de solidariedade, ao mesmo
tempo em que a vida econômica é controlada. Não havia moeda e o comércio apenas era
tolerado. As leis romanas, com base nos direitos individuais de propriedade, dão lugar
aos costumes teutônicos que, embora também reconheçam a individualidade do cidadão,
conferem precedência aos hábitos da comunidade. A nítida divisão entre direito público
e privado, como nos romanos, não se observa e os direitos absolutos de propriedade são
substituídos por uma noção de propriedade relativa e mutável de acordo com interesses
comunitários. Observa-se uma gradação de diferentes tipos de propriedades. Na ativida-
de agrícola, o arado e outros instrumentos pertenciam aos indivíduos, mas a posse da
terra era limitada pelo tipo e pelo uso que se fazia dela; iam de terras comunais, sem
proprietários, a glebas particulares. Não somente a posse da terra, mas também a época
do plantio e a técnica do trabalho agrícola eram ditadas pelos costumes da vila. Em
qualquer setor da vida econômica os planos da comunidade vinham em primeiro.
A ênfase das leis romanas nos direitos individuais aparece entre os germânicos com
nova roupagem, na qual mais importante que garantir o acesso à propriedade é a defesa
de direitos e obrigações pessoais estabelecidos pela natureza da vinculação à terra. O
sentimento de fraternidade germânico responde por um tipo de sociedade rural com
elevado nível de coesão garantido pelo paternalismo e pelo sentido de obrigação para
com o superior, que vincula fortemente, de cima a baixo, os estamentos sociais. As
tradições germânicas mostram-se compatíveis com os preceitos do cristianismo e a
proximidade entre eles facilitara a difusão da religião cristã e a construção de instituições
que iriam perdurar por mais de um milênio.

21
No período final do Império Romano floresce a doutrina do cristianismo em sua
fase primitiva. Os evangelhos do Novo Testamento difundem uma ética herdada da
tradição judaica. Cristo perpetuou e difundiu tal tradição ao pregar certa indiferença em
relação à sociedade e defender o caminho da salvação da alma pela caridade e combate
ao egoísmo dos homens ricos. A ganância e o individualismo de uma sociedade
atomizada são substituídos pela visão idílica de unidade social por meio da correção ética
de seus membros. Cristo realça a dignidade fundamental do homem ao pregar a
igualdade de todos perante Deus. Isso certamente trouxe implicações em termos de uma
nova visão dos processos econômicos em que a escravidão é condenada e o trabalho passa
a ser visto como uma atividade digna. O apóstolo Paulo fazia a exaltação ao trabalho,
estabelecendo entre seu grupo diminuto de cristãos o princípio da obrigação de trabalhar
e da repartição dos bens pela contribuição dada. O acúmulo de riquezas é reprovado e o
cristão ideal, reforçado em muitas passagens do evangelho, principalmente em Lucas,
deve procurar repartir seus bens.
Seguindo os preceitos do Evangelho, os primeiros padres da Igreja Católica
defendem o regime comunista de sociedade. No século III, Cipriano, bispo de Cartago,
diz que é dever dos cristãos partilhar os bens. No século seguinte, Basílio estende o
comunismo interpretando-o não apenas como partilha, mas sendo também a existência
de uma vida em comum ou união completa entre todos pela fraternidade cristã, o que
significa comunhão de sentimentos e de interesses, dentro de uma comunidade inteira-
mente coesa voltada ao desenvolvimento espiritual de seus membros. Há também os que
encontram um argumento econômico a favor do comunismo cristão. O arcebispo de
Constantinopla, João Crisóstomo, no fim do século IV, acredita que a riqueza social se
desenvolve no regime comunista impulsionada pela concórdia e união das vontades.
Destaca-se então o aparecimento, por essa época, de argumentos favoráveis à riqueza,
embora Crisóstomo fale em enriquecimento com comedimento e frugalidade (mais a
riqueza da sociedade que a individual). A ânsia de acumular riquezas permanece conde-
nável, assim como a ganância, a avareza, o egoísmo, o amor às coisas materiais e outros
“pecados” econômicos. Entretanto, a atitude dos padres da igreja primitiva com relação
à riqueza começa a mudar. Na Bíblia, os outros evangelhos não condenam a riqueza
enquanto tal e, de fato, Lucas é dentre os evangelistas o que mais enfaticamente prega a
igualdade entre os homens. Valendo-se disso, e preocupados com os mais ricos e
poderosos entre os adeptos da igreja, que depositavam fartamente o dízimo, os padres
da época buscam argumentos para mostrar que os ricos não estavam automaticamente
condenados e os pobres não haveriam de conseguir a salvação apenas pela miséria
material.
Clemente de Alexandria escreve, em A salvação do homem rico, como este pode
adentrar o reino do céu, se for honrado e tiver consciência de que sua fortuna é uma
dádiva de Deus. Como tal, ela deve ser usada na caridade, para promover o bem-estar
dos semelhantes. A riqueza não é condenável em si mesma, o importante é o uso que se
faz dela. Ambrósio (339-397) também diz que a riqueza deve ser corretamente usada. Os
ricos têm um conjunto de obrigações e devem agir de modo paternalista em relação aos
pobres.
Os cristãos acreditavam que, à medida que os convertidos à nova religião praticas-
sem a caridade e observassem a responsabilidade de uns para com os outros, surgiria
uma nova sociedade, na qual se viveria em paz e felicidade com a plena comunidade dos
bens. O sonho utópico dos cristãos era reforçado pelas teses milenaristas da Bíblia que
falavam em um mundo melhor, como no Apocalipse de João no qual se previa, em mil
anos, a queda do Império Romano e o nascimento da sociedade ideal. Nem todos os
padres, contudo, renderam-se ao milenarismo. Agostinho (354-430), em A cidade de
Deus enfatiza a regeneração das almas no lugar das cidades. A indiferença de Cristo para
com a sociedade terrena é reforçada e transformada em uma doutrina que prega

22
abertamente o desinteresse a respeito da vida econômica e política. Toda a organização
social deve estar voltada ao plano espiritual. Ao Estado cumpre a função principal de
ajudar a Igreja na salvação das almas e a própria autoridade do rei é tão somente um
instrumento a serviço da religião. A ênfase na existência do outro mundo, entretanto,
não impediu Agostinho de tecer comentários sobre a organização da sociedade. Ele
critica as instituições sociais, ao mesmo tempo em que defende o respeito a elas.
Destoando da condenação cristã à escravidão e fazendo concessões aos romanos, ele
encontra argumentos que a justifique. A escravidão não é uma instituição natural, pois
Deus criou os homens para dominarem os animais e não os outros homens. Entretanto,
os escravos merecem essa condição porque Deus desejou que fossem vencidos na guerra:
“Toda vitória, mesmo a que obtêm os maus, é um efeito dos justos juízos de
Deus, que humilha com ela os vencidos, quer os queira emendar, quer os queira
punir.” (Apud H. Denis, História do pensamento econômico)
Essa era a situação do pensamento social quando na Europa inicia-se a Idade Média.

O PAPEL DA ÉTICA CRISTÃ NA ORGANIZAÇÃO DA VIDA MEDIEVAL


O largo período que vai da queda do Império Romano, entre os séculos V e VI (o
último imperador romano morreu em 476), ao final do século XV, época do início das
grandes navegações, delimita o que se conhece como Idade Média. É vantajoso estudar
o período dividindo-o em duas épocas. A primeira preside às mudanças radicais no estilo
de vida europeu com o desaparecimento de cidades e a acentuada ruralização. Muitas
das práticas romanas são esquecidas e a Europa entra em período de menor fervor
cultural. O poder político pulveriza-se ao mesmo tempo em que, lentamente, vão-se
consolidando as instituições medievais. Essa etapa vai até o ano de 1200 e corresponde
também ao apogeu da civilização islâmica. Enquanto a Europa mergulha na Idade das
Trevas, os povos árabes conquistam grande império, que em 730 incorpora desde a
Espanha e o sudoeste da França, passando pelo norte da África e o Oriente Médio, até as
longínquas fronteiras da Índia e da China.
O Império Islâmico destaca-se por seu refinado padrão de vida e por sua cultura na
qual se valorizam a literatura, a ciência, a medicina e a filosofia. Sabemos que os árabes
travaram contato com diversos povos, conheceram a sabedoria hindu, preservaram e
desenvolveram o conhecimento grego em matemática, física, química e astronomia. É
possível que eles tenham tido um papel no desenvolvimento do pensamento econômico,
porém pouco se sabe a esse respeito. Há, de fato, carência de estudo nesse assunto. A
relevância dos árabes no pensamento econômico começa com a grande contribuição que
foi o sistema de números inventado por eles. Os números arábicos (indo-arábicos)
facilitaram as tarefas aritméticas e certamente impulsionaram os processos de contabi-
lização econômica e o desenvolvimento de uma primitiva econometria. No entanto, não
se conhece uma teoria econômica árabe, embora eles soubessem das reflexões de
Aristóteles sobre o valor dos bens. O mais importante para nossos propósitos é que os
árabes preservaram e traduziram os clássicos remanescentes da filosofia grega. Quando
em 1085 os europeus retomam Toledo, na Espanha, e para lá afluem acadêmicos em
busca dos clássicos antigos, a Europa desperta de seu sono e recupera novamente o gosto
pela filosofia; o que viria a ter uma importância muito grande no desenvolvimento do
pensamento econômico pelos padres escolásticos nos próximos quatro séculos que se
seguiram.
A segunda etapa da Idade Média, tal como estamos caracterizando, vai de 1200 a
1500. O grande divisor de águas foi o renascimento filosófico impulsionado pelo resgate
da filosofia grega. Tomás de Aquino (1225-1274) destaca-se então como o pensador mais
influente do período. É nesse segundo período medieval que a análise econômica terá um
significativo avanço. Antes de discuti-lo, vejamos algo mais da etapa anterior. No
23
feudalismo constata-se a divisão do poder político. Não há um Estado centralizador forte
e sim um imenso conjunto de pequenos feudos cuja base do poder está na propriedade
da terra. Os proprietários são os senhores que estão inseridos numa malha de relações
políticas com outros senhores. No topo dela está o rei, um antigo chefe da tribo primitiva
que invadiu a Europa, e o poder da Igreja. Os senhores possuem direitos e obrigações
entre eles e cada qual cuida de seus camponeses, homens ligados à terra e inteiramente
submetidos aos desígnios daqueles. Não podem ser escravizados ou expulsos da terra.
Os camponeses cumprem uma série de obrigações, como transferir uma parte da produ-
ção agrícola, pagar impostos e trabalhar alguns dias da semana nas terras de uso de seu
senhor. Em troca, os senhores dão-lhes proteção, resolvem as disputas jurídicas entre
eles, oficializam casamentos e garantem alguns benefícios paternalistas. Há, portanto,
um sistema de obrigações e serviços mútuos regulado pelos costumes do feudo, já que
não existem, como na época do Império Romano, leis escritas.
A produção artesanal regrediu por essa época. Predomina então a atividade agrícola
em pequena escala, usando-se técnicas agrícolas primitivas. A atividade comercial é, de
início, bastante limitada, embora ela venha a crescer a partir do século XI. A base da
organização não está no contrato, mas nas relações de status. A palavra empenhada, a
promessa verbal e a defesa da honra valem mais do que a lei escrita.
A sociedade medieval espelhou a hierarquia social de Platão em A república. Na
base, uma classe de trabalhadores camponeses, acima dela os senhores seculares, com
sua rede de lealdades transferíveis de um senhor a outro, e no topo os senhores
eclesiásticos: padres e bispos que deviam lealdade permanente à Igreja de Roma. Como
no modelo social platônico, a classe superior era a repositória e guardiã do conheci-
mento. Seus representantes contemplavam o mundo natural de olho no plano espiritual
e desenvolviam ideias teológicas imbricadas em alguma filosofia. A organização da vida
social refletia as crenças religiosas e, como o ensino religioso era monopólio da Igreja,
existia de fato certa centralização de poder em Roma, entretanto não nos moldes de um
império. Além de canalizar para si o poder e a riqueza, a principal preocupação da Igreja
era fazer prevalecer os preceitos éticos cristãos. A ética cristã ditava a organização da vida
medieval e ela servira como cimento ideológico capaz de manter coesa a Europa Medieval
e proteger seus governantes contra a insurreição da maioria de camponeses pobres. A
ética paternalista, já que difundia o comportamento altruístico entre os ricos, contribuía
para acalmar as tensões sociais.

O AVANÇO TECNOLÓGICO, O APARECIMENTO DAS CIDADES E O


DESENVOLVIMENTO DO COMÉRCIO E DA ATIVIDADE FINANCEIRA
A vida econômica na sociedade medieval era sustentada pela atividade agrícola. Os
feudos eram autossuficientes e quase nunca produziam um excedente exportável. A
partir do século XI, mudanças tecnológicas aumentaram significativamente a produti-
vidade na agricultura e, com isso, pôde-se gerar crescentemente um excesso de produção
destinado ao comércio. A atividade comercial dá origem a uma nova classe de homens
enriquecidos sem vínculos fortes com a antiga ordem social. São os portadores do
elemento que iria dissolver lentamente as relações feudais: a substituição dos vínculos
medievais que existiam entre as pessoas, legitimados pela fé, por relações de mercado.
Contudo, não foi uma transição linear; muitas guerras, revoltas e retrocessos ocorreriam
até que o capitalismo comercial substituísse o feudalismo nos países mais adiantados da
Europa.
O início das transformações sociais ocorre com as inovações tecnológicas que
ocorreram no século XI. Verifica-se primeiramente uma mudança no sistema de rodízio
das culturas (Boxe 2.1). A repercussão dessa prática na produtividade agrícola represen-
tou um aumento de 50% no rendimento das lavouras. O aumento na produção de aveias

24
e outras forragens permitiu a expansão da pecuária, pois mais animais podiam ser
alimentados. Soma-se a isso a utilização do cavalo em substituição ao boi, que se
generaliza tanto na aragem da terra como no transporte. A maior agilidade do cavalo
impulsiona a produtividade agrícola. Outras tecnologias também se desenvolvem. Os
arados de osso são substituídos por equipamentos de madeira e depois se passa a reforçá-
los com pontas metálicas pelo desenvolvimento da metalurgia. Novos tipos de adubos
são inventados aproveitando-se os excrementos e os restos orgânicos dos animais. A
construção de carroças fora melhorando gradualmente até se chegar, no século XIII, aos
modelos de quatro rodas com pivô no eixo dianteiro. A primeira revolução agrícola
corresponde ao período de intensas inovações tecnológicas na agricultura europeia nos
séculos XI a XIII.

Boxe 2.1 Evolução do sistema de rodízio na agricultura.

Antes a gleba era dividida em duas áreas. Ao longo do ano, cultivava-se apenas a metade
da terra enquanto a outra permanecia em repouso para a recuperação de sua fertilidade. No
ano seguinte, a terra em pousio era explorada deixando-se a outra, que tinha sido cultivada
anterior-mente, em descanso. Começa então, por essa época, a plena difusão entre os agricul-
tores da nova técnica de duas culturas por ano. A terra é dividida agora em três campos. No
primeiro há uma cultura de outono, com colheita na primavera, em geral plantando-se centeio
ou trigo. O segundo campo é cultivado na primavera com sementes de aveia, feijão e ervilha,
para coleta no próximo outono. O terceiro campo permanece em pousio ao longo do ano. No
ano seguinte utiliza-se a terra que estava parada, uma das terras anteriormente cultivadas fica
em repouso e assim por diante, alternando-se os campos. Com isso, apenas um terço do
terreno permanece não cultivado, sem perda da qualidade do solo.

As consequências da revolução agrícola foram dramáticas. O excedente de produção


permitira a expansão demográfica na Europa cuja população cresce cerca de três vezes
no período, gerando-se assim um excedente de mão de obra. O enriquecimento de parte
da população possibilita mercado consumidor para as manufaturas, cuja produção
estabelece-se em núcleos urbanos em torno dos feudos ou que se formaram nas feiras ao
longo de rotas comerciais pelo interior do continente. Tais aglomerações eram os burgos
que viviam à mercê dos senhores feudais. Em breve, alguns desses centros transformam-
se em cidades que pouco a pouco foram se livrando da tutela dos senhores. O fluxo de
manufaturas deu um impulso adicional ao comércio que vinha desenvolvendo-se para os
produtos agropecuários. O aperfeiçoamento das carroças, a melhoria das estradas e a
navegação costeira e dos rios permitiram o comércio de longa distância. No século XI,
também contribuiu para impulsionar o comércio o fato político das Cruzadas: leva de
europeus que se deslocavam a pé até a Terra Santa com o fito de expulsar dela os
mulçumanos.
A ampliação do comércio foi um fator de desintegração da sociedade medieval.
Muitas das obrigações mútuas entre o camponês e o senhor ou mesmo entre os senhores,
ditadas pela tradição medieval, foram sendo substituídas pelo pagamento em dinheiro
de aluguéis e taxas. Com o aumento da renda dos camponeses, algumas das obrigações
em trabalho são substituídas por pagamentos em dinheiro. Outros deveres, como desti-
nar parte da produção ao senhor, também são transformados em pagamentos. Com isso,
camponeses viram simples arrendatários, e senhores feudais tornam-se meros proprie-
tários de terra. Tal processo, no entanto, só se completa ao final da Idade Média, e nos
países europeus mais atrasados ele prossegue até o século XIX.
A transição de um modelo social a outro conheceu inúmeros sobressaltos. No fim
da Idade Média, a ocorrência de catástrofes era acompanhada por tentativas de reintro-

25
duzir as antigas obrigações feudais. A reação dos camponeses, por vezes, resultava em
rebeliões que proliferaram pela Europa. A Guerra dos Cem Anos (1337-1453) e a Peste
Negra dizimaram a população, aumentando com isso os salários e reduzindo a renda.
Isso forçava os senhores a buscarem recuperar direitos antigos como forma de compen-
sar o prejuízo. O que tendia a agravar o quadro de conflitos sociais.
As grandes feiras comerciais até o século XIV permaneceram sob a tutela do senhor
feudal. No último século do período medieval, muitas delas tinham-se transformado em
verdadeiras cidades comerciais que conseguiram libertar-se do senhor feudal. Na ausência
do poder externo, as cidades buscaram criar suas próprias instituições. A mais importante
eram as Guildas, corporações que regulamentavam a produção de manufaturas e as
atividades financeiras e comerciais. Tal instituição também intervia em questões sociais e
religiosas.
A atividade financeira também se desenvolve no fim da Idade Média. A doutrina cristã
era contrária a empréstimo a juros, mas a posição oficial da Igreja foi tornando-se mais
flexível. Há passagens bíblicas, no Deuteronômio, em que se condena o juro. Com base na
Bíblia, no século IV o Concílio de Niceia bane a prática dos juros entre os clérigos. No reino
de Carlos Magno, a proibição é estendida a todos os cristãos. A alegação é a de que é injusta
a prática da usura, na qual se recebe mais do que é dado.7 As leis contra a usura
permaneceram por séculos. Nos séculos XII e XIII, o desenvolvimento econômico estimula
a atividade financeira; aparecem os primeiros banqueiros que recebem depósitos pagando
juros por eles. A doutrina econômica de cunho moral ia cedendo à prática econômica e a
Igreja passa a influenciar os reis para que permitam os juros, mas regulem o valor cobrado.
Os limites legais variavam de 10% ao ano na Itália a 300% anuais em Provença. Os reis
também passaram a receber fundos mediante pagamento de juros. Frederico II pagava aos
credores juros de 30 a 40% ao ano, mais do que comerciantes pagavam pelos empréstimos
recebidos dos banqueiros, algo entre 10 e 25%, dependendo do tipo de crédito.
À medida que as cidades comerciais foram adquirindo autonomia, seus dirigentes
procuravam estabelecer um código legal preciso em substituição ao direito consuetu-
dinário e paternalista do feudalismo. As transações comerciais e financeiras foram então
regulamentadas por uma legislação comercial específica. Tal legislação permite incre-
mentar o comércio por leis de contrato, pela legalização das representações comerciais e
das vendas em leilão, e criar novos instrumentos e operações financeiras, tais como letras
de câmbio e outros papéis negociáveis, câmaras de liquidação de dívidas etc.
É de se esperar que todo esse desenvolvimento da vida econômica tenha de alguma
forma contribuído para uma melhor compreensão do processo econômico e do funcio-
namento dos mercados. De fato, na etapa final da Idade Média (de 1200 a 1500) um
avanço não desprezível da análise econômica aparecerá nas reflexões dos padres
escolásticos do período.

O RENASCIMENTO DA FILOSOFIA E
A ANÁLISE ECONÔMICA ESCOLÁSTICA
O pensamento econômico na Idade Média, em seu período avançado a partir do
século XIII, será desenvolvido no interior dos mosteiros onde padres cultos irão explorar
e estender as reflexões econômicas preexistentes inspirando-se nas traduções das obras de
Aristóteles. A mescla da filosofia peripatética com o pensamento bíblico deu origem à
escola escolástica que contribuiu significativamente para o avanço da reflexão econômica
à época. Embora ainda envoltos com falácias e preconceitos antieconômicos, os escolásti-
cos alcançam melhor entendimento dos mercados e dos fenômenos relacionados de preço,

7 Está implícito no raciocínio o conceito ético aristotélico de reciprocidade nas trocas.

26
valor e juro. Nas questões econômicas, como de fato em todos os aspectos da cultura e da
teologia, sobressai-se o nome de Tomás de Aquino, o mais importante pensador escolástico
do século XIII, que marcaria com suas ideias todo o período restante da Idade Média.
Aquino pode ser visto como um divisor de águas entre os dois períodos medievais que
estamos considerando. A sombra de sua autoridade em filosofia e religião ainda hoje se faz
presente. Interessa-nos diretamente a geração de grandes mestres escolásticos entre os
séculos XIII e XIV que no bojo de seus pensamentos disseram algo sobre a economia. Entre
eles destacamos Alberto Magno, Henry de Friemar, John Duns Scotus, Jean Buridan e
Geraldo Odonis.
A estratégia de exposição de ideias dos escolásticos resulta em construção teórica
edificada por um método peculiar. Dela faziam parte argumentos estruturados em cadeia
dedutiva de raciocínios que procuram refutar uma posição contrária, inicialmente
estabelecida, mais pela lógica, pela fé e com base na autoridade, do que buscando sustenta-
ção na experiência. Os escolásticos preocupavam-se com a questão moral e ao tratarem de
economia irão interessar-se pelo aspecto da justiça, mais especificamente com a justiça das
trocas ou justiça comutativa. Como vimos, essa era também a preocupação de Aristóteles.
De fato, os padres tomam dele o conceito de reciprocidade nas trocas como ponto de partida
para se aprofundar, esclarecendo certos pontos e corrigindo ambiguidades.
O primeiro aspecto a ser ressaltado da reflexão econômica dos padres medievais é a
distinção entre “ordem natural” e “ordem econômica”. Isso já se fazia presente séculos antes
em Agostinho. Foi dito, no capítulo anterior, que Aristóteles não separa a economia da
ordem natural. Em analogia, Agostinho acredita que moralmente a economia não se
distingue da ordem natural. Aceita, entretanto, que por vezes os homens são levados a
valorizar as coisas e ordená-las em importância não pelo uso do critério legítimo das
necessidades naturais, mas pela consideração do prazer gerado pela posse e usufruto delas.
Na esfera natural, os bens são ordenados pela importância que eles possuem no atendimento
de necessidades fisiológicas naturais, enquanto no âmbito das trocas econômicas prevalece
o critério da busca do prazer sensual que não tem diretamente uma base natural. Há assim
a distinção entre necessidade e prazer em Agostinho, que terá uma importância no desenvol-
vimento do pensamento econômico no século XIII. Agostinho fornece uma interpretação
subjetivista do valor econômico, avaliado com base nas necessidades humanas.
A separação entre ordem natural e econômica é base de toda reflexão medieval
sobre o valor, e a maneira como determinado pensador concebe essa distinção matiza as
posições particulares de cada qual.8 Agostinho separa as duas ordens associando-as
respectivamente ao atendimento de necessidades naturais ou, como algo distinto, de
prazer sensual. O grande latinista Alberto Magno (1206-1280), professor de Tomás de
Aquino, considera que as necessidades humanas diante da escassez dos bens, a que
chama de indigentia, sejam a medida do valor na ordem natural. Entretanto, reco-
nhecendo a separação do econômico em relação ao natural, ele considera que na ordem
econômica as coisas são avaliadas de outra maneira. Os bens são vendidos em relação ao
trabalho (em latim opus) desprendido em sua obtenção e, sendo assim, o valor de troca
deve corresponder ao custo de produção (em trabalho e em outras despesas). Se o preço
de mercado de um bem não cobre seus custos de produção ele cessa de ser produzido e
enquanto permanecer abaixo deles não haverá mercadoria disponível para atender a
todos que a desejam. Com isso, Alberto Magno acrescenta uma ideia de equilíbrio de
mercado à noção primitiva de valor em Aristóteles, enfatizando o lado do custo em
detrimento do papel da demanda.

8 Na Ética a Nicômaco de Aristóteles não há tal separação e o fundamento do valor parte do


critério de reciprocidade nas trocas, sem chegar-se a um porto seguro nas necessidades ou no
trabalho requerido para a produção.

27
A partir do século XIII, os preços começam a ser tratados como valores de equilí-
brio. Os pensadores identificam uma variável econômica, no caso de Magno os custos,
como fonte reguladora do valor. No entanto, muito tempo restaria até uma clara
compreensão do processo de determinação dos preços com base em um modelo sistemá-
tico que integre as considerações de oferta e demanda.
Tomás de Aquino rompe com seu mentor ao enfatizar as necessidades ou desejos
humanos em face da escassez dos bens, ou seja, o conceito de indigentia em Magno,
como sendo o ponto de partida do valor econômico. Aquino desconsidera as diferenças
entre necessidade e prazer, enfatizada para separar a ordem natural da econômica e, ao
negligenciar tais diferenças, ofusca a análise anterior do fenômeno das trocas. A noção
tomista de indigentia como fundamento do valor significa indiscriminadamente
necessidade humana ou prazer. Alguma noção do papel da escassez dos bens também é
importante na determinação do valor. Pode-se dizer que, em Aquino, o valor depende da
necessidade ou prazer diante da escassez. A ordem natural dos bens corresponde ao
plano do criador e discutir a importância relativa que eles adquirem nessa ordem é
prerrogativa da teologia. A economia discute o modo como os homens avaliam a
importância dos bens e Aquino afirma que o fazem comparando as utilidades atendidas
por cada bem nos respectivos montantes em que estão disponíveis. Na esfera econômica,
e não na natural como em Magno, os preços são determinados pela indigentia.
Magno e Aquino posicionam-se, portanto, em diferentes linhas interpretativas do
legado de Aristóteles. Contudo, as diferenças entre eles devem ser consideradas apenas
uma questão de ênfase. Ambos interpretam os preços como um processo de ajuste ao
equilíbrio e encontram uma variável básica reguladora do valor, custos em Magno e
indigentia em Aquino, mas também consideram o papel, embora secundário, da outra
variável em foco. Mesmo aceitando as similaridades entre eles, é importante reconhecer
que suas nuanças interpretativas da Ética a Nicômaco, ponto de partida de toda análise
do valor no Ocidente, deram origem a diferentes tradições.9
A introdução por Aquino do elemento “necessidade” na fórmula dos preços foi um
primeiro passo para o desenvolvimento de uma análise da demanda. Entretanto, ele
ainda estava longe de compreender o mecanismo de mercado. Aquino vê a economia
como submetida a fatos morais, porém já percebia que as forças de mercado não
poderiam ser analisadas exclusivamente pela consideração da noção de justiça. Começa
a aparecer por essa época consciência crescente da autonomia da esfera econômica. Os
padres escolásticos, que sucederam e deram sequência ao tomismo, irão trabalhar as
considerações de Aquino até alcançarem um melhor entendimento da demanda efetiva
e do papel dos desejos humanos.
Aquino oscila entre a compreensão da vida econômica como sistema e uma posição
moralista, conservadora e preconceituosa da economia. Embora tenda a acreditar que o
preço de mercado seja resultado objetivo de forças impessoais, ele despreza o espírito
comercial e acredita que o Estado deva controlar a atividade do comércio pela imposição
de sanções. A base normativa para o estabelecimento delas era o conceito de preço justo
(Boxe 2.2). Escolásticos subsequentes irão interpretar o preço de equilíbrio no modelo
tomista como resultante de um designo divino e equivalente ao preço justo.
As considerações econômicas tomistas não se limitam à questão teórica do valor.
Aquino teceu inúmeros comentários éticos sobre a vida em sociedade. Todas as relações
econômicas e sociais para ele emanam da providência divina. A divisão social de trabalho
e papéis individuais são necessárias e, para tanto, tornam-se indispensáveis as distinções
socioeconômicas, que todos os homens devem aceitar. Os que são agraciados pela
riqueza devem usá-la a fim de prestar serviços à sociedade. A riqueza e a instituição da

9A ênfase nos custos como determinante do valor encontrou a maioria de seus continuadores na
Inglaterra, e a consideração da demanda disseminou-se pelo restante do continente europeu.

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propriedade privada são justificadas como uma condição para a assistência aos pobres.
O homem rico que não presta serviços à sociedade deve ser nivelado ao ladrão comum.
Para inibir a acumulação desenfreada de riquezas, a usura deve ser proibida, pois o juro
é o ganho à custa dos semelhantes. Assim, Aquino mistura uma ética conservadora e
antieconômica com uma percepção da impessoalidade da esfera econômica, o que gera
tensões em seu pensamento e elementos de difícil reconciliação

Boxe 2.2 A noção tomista de preço justo.

O preço justo deve remunerar apenas o suficiente para reproduzir a condição tradicional
e costumeira da vida do comerciante, pagando pelo custo usual de produção, pela distância e
tempo de deslocamento do bem, pelo risco de transporte, bem como pelo tempo e esforço
requeridos na busca do comprador. Toda prática de preços acima ou abaixo do valor justo seria
uma iniquidade, uma prática ilícita que deveria ser combatida a qualquer custo. O valor
impessoal de mercado, determinado pelo balanço das indigentias, deveria de alguma maneira
corresponder ao preço justo. No entanto, a relação entre um conceito e outro não é bem
esclarecida por Tomás de Aquino. Enquanto preço justo era definido com base nos custos, o
preço teórico fundamentava-se no lado da demanda. Mesmo priorizando a noção de custo,
nem por isso a análise do preço justo, em Aquino, esteve apoiada apenas no lado real da
produção (análise objetiva). Pois, a ênfase tomista nos custos enfatiza os sacrifícios do
vendedor pensados também em termos subjetivos, significando sacrifícios que o produtor
avalia incorrer.

Um passo importante no aprimoramento das ideias de Aquino para uma melhor


compreensão da demanda de mercado foi dado por Henry de Friemar (1245-1274).
Sabemos que a moderna noção econômica de demanda é agregativa, no sentido de que
considera o desejo de todos os compradores que participam do mercado. No entanto, o
conceito tomista de indigentia refere-se ao indivíduo isolado. Friemar estendeu tal
conceito ao concebê-lo como uma medida agregada que engloba a somatória das
quantidades desejadas por muitos indivíduos. Indo além na análise, ele diz que o valor
depende dessas quantidades em relação ao que está disponível no mercado, ou seja,
depende da demanda em face da escassez. Um bem pode apresentar preço baixo mesmo
diante de forte demanda se houver em abundância. Friemar percebe, com clareza, que o
preço é um fenômeno que depende também da oferta e de certa forma ele incorpora esse
lado quando diz que o valor é determinado pelas “necessidades comuns de algo escasso”.
Entretanto, ainda está longe de um modelo satisfatório dos mercados, por não possuir as
ferramentas desenvolvidas pelos marginalistas do século XIX.
A associação entre indigentia e preço justo ensejou numerosas controvérsias na
Idade Média, que procuraram reconciliar o modelo teórico tomista de determinação do
valor, pelo balanço das indigentias, com a norma moral do preço justo. Tentativas de
revisão do conceito, no sentido de melhor adaptá-lo como preceito moral, aparecem em
Johannes Duns Scotus (1265?-1308). A crítica de Scotus começa por questionar se o
desejo deve sempre ser o determinante fundamental do valor. Diz que algo não é precioso
em si mesmo só porque a preferência do comprador é forte. Haveria nessa concepção um
elemento de imoralidade, pois é errado querer tirar vantagem dos desejos intensos do
comprador, como quem negocia drogas a preços elevados explorando o desejo intenso
do viciado.
O conceito de preço justo leva em conta os custos e os sacrifícios do vendedor e uma
parte desses sacrifícios é avaliada subjetivamente por ele. Ora, é justo que quem incorra
em maiores sacrifícios, ou que assim pensa fazê-lo, possa receber mais pela mercadoria.

29
Se o preço justo levasse em conta apenas um nível ordinário de sacrifício, de fato ele
impediria que os que produzem na condição média viessem a auferir lucros expressivos
ao cobrar preços elevados, o que é bom já que “quem lucra muito vende o que não é seu”.
Contudo, o que dizer de quem produz com sacrifícios acima ou abaixo da média? A noção
de preço justo seria determinada caso a caso e uma lei que controle os preços com base
nesse critério deveria ser bastante flexível e observar cada contexto, o que de fato não
ocorria na época. Há ainda outra questão: se concordamos com Scotus que o vendedor
não pode repassar aos preços o desejo ardente do consumidor por não ser justo, então
por que é justo que ele repasse aos preços seu próprio desejo de ser remunerado pelo
sacrifício? As questões levantadas por Scotus levaram Jean Buridan, reitor da
Universidade de Paris, a dar um grande passo na evolução da teoria escolástica do valor.
Buridan (1295?-1360?), pensador escolástico que teceu um grande número de
comentários à obra de Aristóteles, contribuiu para o avanço da reflexão econômica com
algumas revisões de conceitos. Ele percebe que a solução dos problemas levantados por
Scotus demandava nova interpretação da noção de desejo. Na linha de Friemar, ele
formula a noção de desejo agregado como sendo o determinante da demanda efetiva e,
em última instância, do valor econômico, levando-se em conta também o poder de
compra dos consumidores. Diferentemente dele, entretanto, o conceito de indigentia em
Buridan também se aplica à luxúria e não apenas às necessidades naturais. A somatória
dos desejos, qualquer que seja sua natureza, o poder de compra dos demandantes e a
situação de oferta determinam simultaneamente o estabelecimento de um estado de
negócios justo ou normal. “O mercado é o melhor juiz do valor” e quando para lá
acorremos consideramos a avaliação do mercado sem intervir nele. Buridan aproxima
sua análise do modelo moderno do mercado de concorrência e sua visão viria a afetar o
pensamento econômico na Europa continental, mais que na Inglaterra. A pobreza é a
condição de quem não tem o que deseja, mas uma vez provido de recursos financeiros o
pobre consegue sancionar sua demanda, que irá depender também da utilidade que
atribua ao bem. Buridan diz que a utilidade é uma experiência psicológica, mas ele
enfatiza também as propriedades que os bens possuem e que nos levam a desejá-los. Sua
análise conduziu, cinco séculos depois, ao moderno conceito de utilidade marginal.
Há um entendimento crescente ao longo da Idade Média de que o valor é um
conceito que depende tanto dos custos de produção, destacadamente do trabalho, quanto
de fatores de demanda, tais como necessidades, desejos, indigentia e renda dos
consumidores. Friemar e Buridan já caminharam em direção a uma síntese entre os dois
lados, a oferta e a demanda. No começo do século XIV, passos importantes em direção à
síntese, que só seria completada muito depois, foram dados pelos escritos do monge
francês da ordem franciscana Geraldo Odonis (1290-1349). Ele percebeu que o trabalho
humano é um componente importante para o valor, mas que essencialmente o valor dos
bens é conferido pela sua raridade (em latim raritas). A raritas mede o grau de escassez
do bem em face das necessidades. É o inverso do conceito de indigentia que avalia as
necessidades diante da escassez e essa inversão tem como consequência deslocar a
atenção teórica dos desejos humanos para a disponibilidade do bem.
Para Odonis, a teoria de Alberto Magno, que via o valor na quantidade de trabalho,
é unilateral, pois não enfatiza a relação do trabalho com a escassez, esse sim o verdadeiro
fundamento do valor. Primeiramente, é preciso notar que os trabalhos diferem entre si
no que tange à sua qualidade. O que determina as nuanças de qualidade no trabalho é o
grau de eficiência a depender das diferentes habilidades produtivas dos homens. Odonis
cria uma teoria também para explicar as diferenças de salários. Munidos de diferentes
habilidades, os homens situam-se dentro de um espectro de eficácias relativas, adquiri-
das a um custo diferenciado. Como todo tipo de trabalho é escasso, dada a escassez de
habilidades, os produtos obtidos por ele também o são. O trabalho escasso, ao restringir
a produção de bens, gera a escassez. É por isso que o trabalho regula o valor. Assim, tanto

30
a teoria dos custos quanto a da demanda são componentes de um princípio único no
modelo de Odonis. Embora falte maior articulação analítica de conceitos, a solução de
Odonis destaca-se por procurar uma síntese de conceitos que incorpora demanda e
custos na questão do valor. Modelos como esse, que integram os dois enfoques, cairão
em certo esquecimento no século XVIII pela ênfase unilateral dos economistas ingleses
na teoria do valor-trabalho. A Figura 2.1 sintetiza a interpretação de autores medievais
feita nesta seção.

Figura 2.1 Interpretação do valor econômico nos autores medievais.

Aristóteles
Reciprocidade

Tomás de Aquino
Alberto Magno Indigentia e preço justo
Trabalho e despesas

Henry de Friemar
John Duns Scotus Demanda agregada e escassez
Crítica à teoria do preço justo

Jean Buridan
Demanda efetiva, utilidade e
mercado

Geraldo Odonis
Raritas e habilidades do
trabalho

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Questões

1. Por que os costumes da antiga sociedade germânica facilitaram a incorporação dos


preceitos do cristianismo?
2. Qual o tipo de regime de propriedade defendido pelo cristianismo primitivo? Cite
alguns pronunciamentos bíblicos que o justificam?
3. Quais os argumentos de Clemente de Alexandria e Frei Ambrósio na defesa do
homem rico?
4. Qual é a crença básica do milenarismo e por que se diz que Agostinho não aderiu a
ela?
5. Por que a representação árabe dos números foi importante para o desenvolvimento
do pensamento econômico?
6. Por que se diz que a sociedade medieval imitou o modelo de Platão em A república?
7. Quais os avanços tecnológicos que possibilitaram o desenvolvimento da agricultura
a partir do século XIII?
8. De que modo o avanço do comércio afetou as relações sociais na Idade Média?
9. Quem controlava o poder nas cidades medievais? Cite algumas medidas
intervencionistas nas cidades, que prevaleceram nessa época.
10. Como Agostinho distingue a ordem natural da ordem econômica?
11. Qual o fundamento do valor para Alberto Magno e até que ponto ele já compreende
o mercado como um processo de equilíbrio?
12. Explique o conceito de indigentia.
13. Como Tomás de Aquino separa ordem natural de ordem econômica?
14. Comente esta passagem do capítulo: “Aquino oscila entre uma compreensão da vida
econômica como um sistema e uma posição moralista, conservadora e preconcei-
tuosa da economia.”
15. O que para Aquino determina o preço justo? É possível conciliar a teoria do preço
justo com a explicação dos preços pela indigentia?
16. Cite e comente as críticas de Scotus ao conceito de preço justo.
17. Qual a crítica de Scotus ao uso do desejo humano como fundamento do valor?
18. Comente as inovações ao conceito de indigentia feitas por Henry de Friemar.
19. O que determina os preços para Buridan?
20. Descreva como Geraldo Odonis conjuga as influências do trabalho, do desejo e da
escassez na determinação do valor. Por que ele é visto como um modelo de síntese
entre uma teoria do valor-trabalho e a teoria do valor com base na demanda?

32
Leitura Adicional

Literatura Primária
AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Porto Alegre: Sulina, 1980.

BÍBLIA SAGRADA. Antigo testamento: os cinco livros do pentateuco, deuteronômio. Parte


III: O Código Deuteronômico. 21. ed. São Paulo: Ave Maria, 1975.

Literatura Secundária
DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

EKELUND JR., Robert; HÉBERT, Robert F. A history of economic: theory and method. New
York: McGraw-Hill, 1990.

HANEY, Lewis H. History of economic thought: a critical account of the origin and
development of the economic theories of the leading thinkers in the leading nations. New
York: Macmillan, 1949.

HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J. História do pensamento econômico. Petrópolis:


Vozes, 1985.

33
34
3
Mercantilismo e Cameralismo:
a Expressão da Economia
nos Séculos XVI e XVII

MUDANÇAS POLÍTICAS E SOCIAIS E


INTERVENCIONISMO NACIONALISTA
Em 1763, Victor de Riqueti, o Marquês de Mirabeau (1715-1789), cunhou a expres-
são mercantilismo para caracterizar o conjunto de doutrinas econômicas dominadas pelo
nacionalismo e pelo intervencionismo que, presente no final da Idade Média, ganha
impulso nos séculos XVI e XVII. O mercantilismo é a contrapartida, no plano das ideias
econômicas, do ambiente intelectual e político que acompanha o aparecimento de
Estados nacionais centralizados e fortes. Da perspectiva histórica, ele é considerado um
período de transição entre as práticas regulamentadoras da economia no feudalismo,
marcadas por fervor ético e religioso, e o nascimento das concepções liberais no século
XVIII. Também é o momento de germinação da economia como ciência, que se consolida
neste último século. O mercantilismo abriga um grupo bastante heterogêneo de autores,
espalhados em várias nações europeias, principalmente Inglaterra, França, Holanda,
Alemanha e Espanha. Dentre esses escritores, suas ideias não são as mesmas; pelo
contrário, apresentam tendências individuais específicas. Há, no entanto, pontos co-
muns que procuraremos identificar.
Outro aspecto a levar-se em conta é que, se situarmos a origem das concepções
mercantilistas no século XVI, constata-se, a partir de então, uma mudança de
pensamento. De início, as opiniões sobre economia ainda apelam aos sentimentos da
religião, e o efeito das práticas regulamentadoras defendidas por elas não é sistematica-
mente analisado pela teoria. Aos poucos, a ordem econômica veio a ser percebida como
um cosmo dotado de ordenamento natural e guiado por uma racionalidade própria que
independe da moralidade. Na última metade do século XVII e no início do século
seguinte, as interpretações econômicas de William Petty (1623-1687) e Richard Cantillon
(1680-1734) expressam claramente a busca de uma analogia com as ciências naturais, o
que iria marcar o surgimento da economia científica nos fisiocratas e em Adam Smith.
O mercantilismo representa um momento de grande fertilidade do pensamento
econômico, e não é à toa que, no século XX, o célebre economista John Maynard Keynes
o tenha defendido no capítulo 19 de sua mais importante obra, A teoria geral do
emprego, dos juros e da moeda, de 1936. Seus representantes eram pensadores
pragmáticos voltados ao dia a dia da atividade comercial e financeira. Não havia muita
comunicação entre eles e tal fato explica, em parte, a ausência de ferramentas analíticas
comuns ou de grandes ideias unificadoras. Embora não tenham sido muito importantes
no desenvolvimento da análise econômica, eles contribuíram significativamente em
identificação e coleta de dados, e no tratamento estatístico.
A doutrina mercantilista teve origem nas práticas dos reis medievais e gradual-
mente foi firmando-se como racionalização das políticas intervencionistas que já vinham

35
sendo adotadas. À medida que a classe de comerciantes e financistas enriquecia, ela
ganhava importância na sociedade medieval e os nobres feudais, sentindo a ameaça ao
status quo, compeliam o rei a tomar medidas para controlar a atividade mercantil de
modo a limitar o enriquecimento com o comércio. Na Inglaterra, já no fim do século XIII,
os reis Eduardo I e III estabelecem uma série de regulamentações econômicas, entre elas
o controle de preços e salários e a garantia de monopólios com o fito de limitar a
concorrência. Os comerciantes submetiam-se ao controle do rei com medo de maiores
hostilidades. No século seguinte, os reis Ricardo II e Henrique II, enquanto mantinham
leis que inibiam o comércio interno na Inglaterra, procuram estimular a concorrência
internacional dos produtos ingleses, negociando externamente, para tanto, tratados que
garantiam a supremacia dos comerciantes ingleses. Em 1391, o “Ato de Navegação”
estabeleceu o monopólio das frotas nacionais no comércio com a Inglaterra. A classe
mercantil era favorecida a despeito do controle a que estava submetida. Em nome do
nacionalismo, o rei foi acumulando poderes ao mesmo tempo em que a nova classe ligada
ao comércio ia conquistando seu espaço. Isso levou, no fim do século XIV, à associação
entre monarcas e burgueses, o que garantiu a centralização do poder em detrimento da
antiga classe de senhores feudais. Surge o nacionalismo exacerbado nos recém-criados
Estados-nações que conferiam poderes absolutos e divinos ao rei.
O declínio do sistema feudal e o aparecimento do Estado absoluto, desvinculado da
Igreja, contribuíram para a emergência de um ambiente intelectual favorável à nova
visão econômica. Os mercantilistas são considerados autores panfletários, porque eles
estão mais preocupados em justificar diretrizes políticas do que em fornecer explicações
teóricas da economia. A política econômica de então tinha duas preocupações: usar os
recursos de que a nação dispunha para tornar o Estado poderoso política e militarmente
e substituir a Igreja na assistência aos pobres de modo que se evite uma convulsão social
interna.
No bojo da reforma religiosa, com o aparecimento das figuras de Lutero e João
Calvino, o Estado absoluto assume a função social da Igreja. Na Inglaterra, Henrique VIII
rompe com o catolicismo romano e a própria visão do papel do Estado é profundamente
alterada. O Estado agora não é visto como instrumento da religião nem se pauta pelo
ideal de justiça e salvação das almas. Ele não deve subordinar-se à Igreja e não é sua
tarefa converter os homens e reprimir a maldade individual. Novos modelos de sociedade
aparecem na literatura da época. Nicolau Maquiavel (1469-1527) reconhece, em seu livro
O príncipe, que os homens são naturalmente corruptos e, portanto, devem ser governa-
dos por um soberano forte e, também ele, sem escrúpulos morais. Rejeitando as
sociedades existentes em sua época, Tomas Morus (1478-1535) escreve a obra Utopia,
em que imagina uma sociedade a exemplo de A república de Platão. A sociedade fundada
no homem ético, apregoado pela religião cristã, dá lugar cada vez mais ao modelo do
homem dominado por motivações egoístas. Daí a necessidade do Estado estabelecido por
meio de um contrato social que intervenha nos indivíduos de modo a assegurar simulta-
neamente o controle de seus impulsos enquanto preserva certo grau de autonomia
individual. É a tese do Estado como contrato social de Thomas Hobbes no Leviatã de
1651.
O poder real detinha, é verdade, uma aura de religiosidade, contudo na prática a
finalidade da ação do Estado eram coisas materiais. Toda a política mercantilista estava
voltada ao ganho material deste. A questão econômica básica era a de como colocar os
recursos materiais da sociedade a favor do enriquecimento e bem-estar do Estado-nação,
ou seja, como torná-lo poderoso político e economicamente.
A riqueza do Estado não era vista como a somatória das riquezas individuais de cada
cidadão. Pelo contrário, para o homem comum era importante tão somente que ele se
mantenha empregado e atuante. Deveria assim sobreviver, porém sem muito conforto,
pois isso destruiria seu ímpeto de trabalho. Quase todos os autores mercantilistas

36
defendem os baixos salários, apenas na margem de subsistência. Dada a suposta baixa
condição moral das classes trabalhadoras, a pobreza é útil, pois torna os trabalhadores
industriosos. Assim, as privações da pobreza têm um caráter terapêutico. Se o
trabalhador tivesse a oportunidade de ganhar mais, ele provavelmente ficaria na
ociosidade e na preguiça. O aumento de salários conduziria à prática de excessos, de
vícios, de consumo de drogas, enfim de tudo o que leva à ruína moral. Assim, a assimetria
na distribuição de renda é desejável para o fortalecimento do reino e uma distinção deve
ser feita entre o enriquecimento da nação e o da maioria dos indivíduos que a compõe.
Somente o rei e a minoria de comerciantes e apadrinhados estariam moralmente
preparados para uma vida de riquezas e, no fundo, as políticas mercantilistas só favore-
ciam a esses estamentos sociais.
A principal preocupação econômica do mercantilismo era a busca do pleno
emprego.10 A nação poderosa deveria usar todo o seu território para atividades
produtivas em agricultura, mineração e manufatura. Os trabalhadores devem ser
encorajados a manterem-se empregados. O desemprego era visto como resultado da
indolência do trabalhador e era tratado como um problema social. Assim, os pobres
desempregados deveriam ser, em tese, amparados pela sociedade. O problema do
desemprego, da mendicância e da marginalidade tornou-se particularmente importante
na época do mercantilismo. As recentes transformações pela qual passaram as econo-
mias da Europa Ocidental não favoreceram o emprego. Um primeiro fato que mudou a
estrutura produtiva da época foi o nascimento, no século XVI, da indústria manufatu-
reira com o sistema putting-out em substituição ao antigo artesanato medieval.
As utilizações de novas tecnologias, muitas delas importadas da China, como o
astrolábio e a bússola, propiciaram as grandes navegações a partir do final do século XV.
Com ela e valendo-se da descoberta da pólvora, nações distantes foram pilhadas, povos
escravizados e os mares tomados pela pirataria. Novos fluxos de mercadorias vindas de
quase todas as regiões do mundo circulam pela Europa. O comércio conhece então um
novo impulso, principalmente o comércio entre nações. Na Inglaterra, os ramos do
artesanato voltados às exportações são cada vez mais dominados pelos grandes
mercadores. Em pouco tempo, tais mercadores passam a controlar o suprimento de
matérias-primas, assegurando assim posições monopolistas. Isso se dá pelo monopólio
das importações, por monopólios internos concedidos pelos reis ou pela posse das
propriedades do campo por meio do cercamento das terras. Os camponeses arrenda-
tários são expulsos para as cidades e a produção de subsistência de alimentos substituída
pela criação de ovelhas que fornecem lã à indústria. O domínio da oferta de matéria-
prima confere aos grandes comerciantes o poder de controlar toda a cadeia do processo
produtivo. O antigo artesão, que antes vendia o produto acabado e auferia seu lucro,
passa a trabalhar por encomenda, recebendo uma provisão de matérias-primas e sendo
pago pela entrega do produto semielaborado dentro de uma rígida especificação contra-
tual. Assim, o mercador pôde concatenar várias manufaturas domésticas independentes,
como se fosse uma linha de produção, retirando encomendas de uma e entregando-as a
outras para uma nova fase da produção, ao longo de pequenas manufaturas dispersas
pelas áreas rurais.
Os artesãos mais pobres não conseguem sobreviver e viram simples assalariados.
As manufaturas sobreviventes procuram assegurar posições monopolistas. Para tanto,
amparam-se legalmente nas Guildas que estabelecem controles e barreiras protecionis-
tas, tais como a especificação dos regimes de aprendizado, privilégio e isenções para os
filhos de artesãos bem estabelecidos, taxas para admissão no negócio etc. As funções
regulamentárias das Guildas acabam sendo transferidas para o Estado. Em 1563, a
Inglaterra decreta o Estatuto dos Artífices, que substitui e padroniza para todo o reino as

10 Isso justifica a simpatia que Maynard Keynes tinha para com ele.

37
normas da manufatura, dentre elas as que limitam os aumentos de salários, bem no
espírito do mercantilismo. Na França, o ministro J. B. Colbert impõe leis que regulamen-
tam os métodos de produção e a qualidade das matérias-primas e dos produtos. Em 1666,
Colbert normatiza a fabricação de tecidos em Dijon com penalidades severas para o
transgressor.
Havia uma relação de ajuda mútua entre o Estado absoluto e os produtores. Ao
mesmo tempo em que aquele controlava os processos de produção e impunha toda sorte
de barreiras e impostos, os grandes comerciantes lucravam com as proteções. A ênfase
recaía na conquista do comércio internacional como fonte de enriquecimento do Estado.
Enquanto isso, a maioria do povo ficava à margem do processo. De 1500 a 1600, há
expressivo crescimento numérico da população europeia. As tensões no campo dão
ensejo a conflitos sociais violentos, e revoltas camponesas generalizam-se pela Europa.
Quase 90% da população rural é expulsa para as cidades. Parte dela é arregimentada
como força militar ou como colonos das novas terras além-mar. Boa parte, entretanto,
permanece ociosa. Em 1531 e 1536, o Estado inglês promulga leis para acabar com a
mendicância que havia adquirido proporções alarmantes. As leis discriminam os pobres
com direito a mendigar: deficientes físicos e inválidos em geral; e autorizam as paróquias
a angariar donativos espontâneos a fim de amparar os pobres de sua jurisdição. Tendo
fracassado em diminuir o número de mendigos, o Estado inglês decreta a Lei dos Pobres,
em 1601, que prevê a arrecadação de um imposto específico para acabar com a indigência
e determina quem deve receber assistência e de que forma. Ela promete ainda prisão
para os vagabundos incorrigíveis.
O paternalismo exercido pela igreja medieval é substituído pela ação do Estado. Não
há uma busca deliberada de melhorar a condição social dos pobres, trata-se apenas de
amparar os marginalizados visando coibir os focos de rebelião popular e mesmo de
criminalidade. Até certo ponto tais políticas foram bem-sucedidas, à custa de rigorosa
repressão. Ao longo do período, os mercantilistas, em vez de considerarem o crescimento
populacional um problema, estavam a defender e encorajar uma grande população como
forma de fortalecimento do reino.

ETAPAS DO PENSAMENTO MERCANTILISTA


No início do século XVI, verifica-se na Europa um renascimento intelectual que
consistiu na incorporação dos antigos valores estéticos e culturais dos gregos. Isso
certamente impulsiona o pensamento em várias áreas. Em economia, não houve no
período muita continuidade com as reflexões escolásticas, pois a própria maneira de
interpretar a vida econômica passou a ser outra. As reflexões teóricas sobre o valor dos
bens dão lugar às considerações pragmáticas sobre o comércio. O principal problema
econômico que vinha assolando a Europa nos últimos dois séculos era a insuficiência de
dinheiro em circulação para sancionar o aumento das trocas. A oportunidade propiciada
pelas colônias para o afluxo de metais preciosos parecia não só resolver o problema, mas
garantir às potências colonizadoras possibilidade ímpar de estimular a produção interna
e com isso enriquecer o reino. A maior oferta monetária deveria estimular as economias,
o que é basicamente correto se imaginarmos que elas estavam trabalhando abaixo do
pleno emprego e que as pressões inflacionárias não ocorreriam tão cedo.
Isso levou os primeiros autores mercantilistas do século XVI a uma associação
simplista entre moeda e riqueza, acreditando-se que a primeira levaria automaticamente
a um aumento da oferta de bens reais na economia. A concepção denominada de bulio-
nismo ou metalismo confundia moeda com riqueza, embora seus autores não fossem tão
ingênuos como dá a entender Adam Smith, no livro IV de A riqueza das nações. A
consequência da interpretação bulionista era a defesa de toda medida que contribuísse
para o acúmulo de ouro e prata dentro das fronteiras do país. O comércio internacional

38
era visto como meio para aquisição de metais preciosos e todas as medidas restritivas
que resultassem em aumento das entradas de metais seriam desejáveis. Os bulionistas
não perceberam as oportunidades, oferecidas pelo comércio entre nações, de se
aumentar a produção total de todos os países envolvidos com a especialização de cada
um, fato plenamente identificado no século XVIII. Eles viam o comércio internacional
como um “jogo de soma zero”, isto é, o que um ganha o outro perde, e não como um
processo criador de riquezas para ambas as partes.
A fórmula do bulionismo era de uma simplicidade comovente: proibir toda
exportação de ouro e prata e manter o estoque interno total de metais preciosos em
circulação, impedindo que as pessoas os retivessem para a confecção de adornos ou como
forma de poupança.11 Dos economistas espanhóis que escreveram a favor dessa fórmula,
destacam-se Luís Ortiz, que publica em 1588 uma Memória ao rei para impedir a saída
do ouro e, muito depois, Antonio Serra, médico que escreve em 1641 seu Breve tratado
das causas que fazem abundar o ouro e a prata num país onde não há minas. Na
França, temos Barthélemy de Laffemas, burocrata do rei Henrique IV, que publica em
1602 um tratado intitulado Como se deve permitir a liberdade do transporte do ouro e
da prata fora do reino e conservar por tal meio o nosso e atrair o dos estrangeiros.12
Ainda nesse país, Gerard de Malynes (1586-1641) aparece como um defensor da visão
bulionista radical.
No século XVII, no entanto, poucos são os que ainda aceitam o bulionismo extremo.
A interpretação mais em voga defende a balança comercial favorável como meio de
manter a economia a pleno emprego. Para tanto, uma série de medidas são necessárias.
Todas as importações devem ser desencorajadas, principalmente a de bens que já são
oferecidos pela produção doméstica. Uma exceção contempla as importações de maté-
rias-primas indispensáveis não encontradas no reino; contudo, nesse caso deve-se
preferir a troca por mercadorias. Por outro lado, é importante estimular as exportações
por todos os meios. Incluindo-se aí subsídios, restituição de impostos, monopólios
comerciais nas colônias etc. A exportação de matérias-primas é desestimulada, porque
todas devem ser usadas na manufatura doméstica, já que os bens finais valem mais do
que os bens intermediários. A balança comercial favorável asseguraria o fluxo positivo
de ouro e prata sem a necessidade de restringir diretamente a saída de metais. Os
mercantilistas sabiam que o importante era o fluxo resultante no longo prazo e que uma
eventual saída de ouro hoje poderia, na verdade, estar assegurando uma entrada líquida,
se levado em conta o tipo de compra feita, por exemplo, a aquisição de matéria-prima
para a manufatura de um bem exportável.
A política da balança comercial favorável também levaria a maximizar as reservas
metálicas, mas havia outros interesses em jogo. Muitos dos que defendiam uma ou outra
política intervencionista estavam voltados a favorecer os lucros de grupos de
comerciantes, entretanto, difundiam mensagens mercantilistas falando em nome do
bem da nação. Não sem motivos, os escritores mercantilistas seriam depois estigma-
tizados como cínicos defensores de escusos interesses particulares. É verdade que as
políticas mercantilistas tendiam a favorecer um ou outro grupo econômico em particular,
porém, em uma época de muita hostilidade entre as nações e de luta contra a volta do
antigo sistema feudal, seus preceitos econômicos mostravam-se adequados para o
fortalecimento do poderio do reino. Havia, de fato, elementos racionais na análise
mercantilista, que foram adequados à época para os propósitos visados. Além disso, há
de se considerar também que autores mercantilistas do século XVII em muito
contribuíram para o estabelecimento de certas técnicas de interpretação econômica. A
preocupação com o saldo externo positivo entre exportações e importações levou à

11 Esta última medida era coerente, pois evitaria problemas de insuficiência de demanda,
conforme notaria Maynard Keynes no século XX.
12 Note que os títulos das obras já indicam seu conteúdo bulionista.

39
formulação, pela primeira vez, de noções contábeis sobre o que chamamos
modernamente de “balança de pagamentos”. É o que encontramos no trabalho de
Edward Misselden (1608-1654), em que se identifica a mecânica do balanço global de
transações do país com o exterior. Misselden assinala como as transações do comércio
internacional afetam a política monetária. Para tanto, ele concebe um balanço de
transações multilaterais com cinco contas, tal como no Boxe 3.1:

Boxe 3.1 Balança de transações de um país com o exterior, segundo Misselden.

1. Balança Comercial
a. Mercadorias visíveis
b. Itens invisíveis
2. Conta de Capital
a. Capital de curto prazo*
b. Capital de longo prazo
3. Transferências unilaterais
4. Ouro e prata*
5. Erros e omissões

No livro O círculo do comércio, de 1623, Misselden calcula, pela primeira vez, o


Balanço de Pagamentos da Inglaterra. Ele não apenas identifica os números de cada uma
das contas, mas também calcula as relações entre elas. Dessa forma, o processo econômi-
co entre os países poderia ser mais bem compreendido e os fins da política mercantilista
seriam perseguidos com maior clareza analítica. Misselden aplica a noção de débito e
crédito em cada uma das contas, usa o método contábil de dupla entrada e avalia o
superávit ou déficit das contas. Ele assinala corretamente que o Balanço de Pagamentos
está sempre em equilíbrio, de modo que as contas assinaladas com asterisco (fluxos de
metais preciosos e capitais de curto prazo) representam movimentos compensatórios.
Enquanto as outras contas são determinadas de modo autônomo, pois dependem das
forças de mercado, as contas compensatórias devem ser manipuladas pelos instrumentos
de política econômica de modo a se estabelecer o equilíbrio do balanço global.
Misselden compreendia certos mecanismos da política monetária, e apontava corre-
tamente que taxa de juros interna acima das taxas internacionais atrairia capital de curto
prazo. Se a balança comercial (1) apresentasse um déficit não compensado pelo superávit
nas contas de capital de longo prazo e transferências unilaterais (2.b+3), tal déficit seria
financiado pelos movimentos de capital de curto prazo ou por movimentos adversos de
metais preciosos. A balança comercial (ou “conta corrente”, termos empregados
erroneamente como sinônimos) incluía também itens invisíveis (1.b) como pagamento
de transporte e fretes, o que reforçava a crença na importância do Ato de Navegação que
havia criado o monopólio nacional desses serviços e, dessa forma, propiciado ganhos na
conta invisível. Embora a exposição de Misselden tenha problemas do ponto de vista da
moderna explicação do Balanço de Pagamentos, seu mérito maior foi o de identificar que
os fluxos de entrada e saída de metais preciosos são movimentos que compensam as
outras contas e refletem resultados de transações comerciais autônomas e dos fluxos
financeiros.
A boa compreensão do Balanço de Pagamentos dera sustentação às propostas
mercantilistas de uma longa série de restrições que afetavam o montante e a composição
do comércio internacional, de modo a assegurar um superávit constante na conta dos
registros de metais preciosos. A importância do acúmulo de ouro e prata, como vimos,
era estimular a oferta doméstica de bens e serviços e, com isso, o enriquecimento do
reino.
40
As teses monetárias do mercantilismo foram-se desenvolvendo à medida que
surgiam problemas inflacionários trazidos pelo grande fluxo de ouro e prata que inundou
a Europa vindo das colônias americanas. De início, os mercantilistas achavam que a
causa da inflação era a adulteração das moedas pelo poder público que sistematicamente
reduzia a quantidade de metal contida nelas. Com isso, as moedas de maior teor de
metais preciosos seriam expulsas do mercado e substituídas pela moeda má, de acordo
com a lei formulada pelo inglês Thomas Gresham (1519-1579), e os preços dos bens,
inflacionados. Em 1568, Jean Bodin combate essa ideia, reconhecendo que é, de fato, o
afluxo de metais preciosos que explica a alta dos preços. Bodin formula a lei de que o
poder de compra das moedas de ouro e prata é inversamente proporcional à quantidade
de ouro e prata existente no país, mas não identifica claramente um mecanismo de
conexão entre moeda e preços. Embora a tese de Bodin tenha sido admitida por muitos
no século XVII, isso não impedirá que se mantenha a noção mercantilista segundo a qual
a riqueza de uma nação está ligada à abundância interna de moedas.
A interpretação de como o lado monetário da economia poderia afetar a produção
real era um tanto tosca entre os mercantilistas, e isso favorecia a ilusão monetária de se
associar riqueza ao dinheiro em circulação. A despeito dos avanços fornecidos pelos
estudos de Bodin, ainda faltava, entre eles, uma teoria monetária, tema de que alguns
pensadores ocupar-se-iam no século XVIII. Somente nessa época surge uma compreen-
são teórica clara de que não seria possível atrair indefinidamente meios monetários para
o reino, uma vez que o influxo constante de moeda iria inflacionar os preços domésticos
e com isso reduzir a competitividade internacional do país. A identificação de um
mecanismo interligando moeda e preços deve-se a David Hume (1711-1776) e, antes dele,
a John Locke (1632-1704) em pleno século XVII. Tais autores podem ser pensados como
os primeiros precursores do que hoje se conhece como teoria quantitativa da moeda.
Segundo essa teoria, a moeda afeta diretamente os preços, porém tal efeito é atenuado
se houver variações na demanda monetária, de modo que as pessoas retenham moeda
por mais tempo, ou em outras palavras, diminuam a velocidade de giro da moeda. Outro
mecanismo a refrear a relação direta entre oferta monetária e inflação é o crescimento
econômico. Ele permite acomodar expansões monetárias sem pressão nos preços. Ora,
as políticas mercantilistas perseguiam simultaneamente os dois objetivos. O aumento de
circulação de moeda era estimulado ao se proibir retenções do metal e o crescimento
econômico era seu alvo maior. Nesse tocante, a política metalista não era irracional,
entretanto inexistia uma base teórica na interpretação do crescimento econômico. A
moeda, por si só, não ocasiona o crescimento econômico. Nas condições da época, ela
seria no máximo uma condição necessária, mas não suficiente. De fato, o crescimento
econômico no período é explicado pelas transformações tecnológicas e na organização
da produção, bem como pelo impulso ao comércio mundial. Somente no século XVIII, os
fisiocratas, e depois Adam Smith, viriam a formular teorias mais arrojadas na explicação
do crescimento econômico.
Para os mercantilistas, a moeda estimula o crescimento econômico por dois
motivos:
1. Fornece o serviço de facilitar as trocas, permitindo ampliar o comércio e, com
ele, o escoamento da produção;
2. A abundância monetária reduz as taxas de juros proporcionando a expansão
dos empréstimos bancários e estimulando a produção e o comércio.
Os dois argumentos da explicação são falaciosos. No primeiro caso, basta observar
que os benefícios da moeda para as trocas dependem da estabilidade dos preços que pode
ser ameaçada com excesso de oferta monetária. O segundo argumento omite o fato de as
taxas de juros dependerem também do comportamento da demanda monetária que, por
sua vez, reflete as expectativas de rentabilidade interna dos investimentos. É verdade que
essa consideração é encontrada na obra de William Petty, o autor mercantilista que mais

41
contribui para uma melhor compreensão das taxas de juros. No entanto, a análise mais
arguta do pensamento de Petty não se faz presente na maioria dos escritores da época.
De qualquer modo, reconhecemos que os mercantilistas avançam em relação ao
pensamento medieval na compreensão do juro. Eles não tecem as antigas considerações
morais contra os juros e lançam mão de argumentos mais sofisticados condenando a
usura. Nesse tocante, destaca-se a análise de Thomas Culpeper (1635-1689), nomeado
governador colonial da Virgínia, Estados Unidos, que no Manifesto contra a usura
explica que os negócios economicamente viáveis devem possuir uma rentabilidade
interna acima dos juros cobrados pelos bancos. Sendo assim, juros elevados inviabilizam
muitos negócios, prejudicando a produção doméstica. Ele também estabelece a relação
entre juros e preços dos ativos físicos, mostrando que a baixa dos juros aumenta o valor
das terras ao estimular a produção agrícola, bem como dos demais ativos da economia.
Josiah Child (1630-1699), mercantilista inglês, em 1668 atribui a causa da prosperidade
da Inglaterra, no período, ao tabelamento legal dos juros que desceu a apenas 6% ao ano,
e diz que isso só foi possível graças ao afluxo de metais. Há algo de verdadeiro nessa
interpretação, contudo, sabemos que a relação entre juro e crescimento econômico é bem
mais complexa.
A obsessão mercantilista em ver no comércio internacional superavitário a fonte do
crescimento econômico sustentava todo tipo de medidas intervencionistas na produção
doméstica. A defesa do controle interno da economia visava, sobretudo, à competiti-
vidade com outros países. Em nome dela, setores da produção eram regulamentados,
certas indústrias, sobretaxadas enquanto outras recebiam subsídios, e monopólios eram
criados com a restrição à entrada em alguns mercados. Franquias e patentes também
concediam direitos exclusivos a certos comerciantes. Tudo isso não significa que o
mercantilismo era contrário à atividade econômica e nem que ainda retinha o mesmo
preconceito antieconômico da Idade Média. O que ele desenvolve e propõe são preceitos
a serem aplicados em uma economia mista, com os capitalistas a comandar a produção
e o Estado intervindo nela a fim de angariar maior poderio econômico à nação. O
pensamento mercantilista carrega consigo certa ambiguidade de propósitos, um
dualismo entre o intervencionismo e a defesa da liberdade dos mercados. Em se tratando
de um período de transição do feudalismo para o liberalismo é de se esperar essas tensões
entre posições políticas opostas. Alguns autores enfatizam controles e regulamentações,
enquanto outros defendem a liberdade do comércio.
John Hales, nobre inglês e membro do Parlamento, desenvolve suas teses
mercantilistas em 1549 no livro Um discurso sobre a prosperidade pública no Reino da
Inglaterra. Hales afirma que o interesse do Estado deve ser posto em primeiro lugar,
contudo não defende os controles legislativos na promoção do bem-estar social. Ele
acredita na ordem espontânea dos mercados que tem por base homens movidos pelo
autointeresse. Buscando maximizar lucros, suas escolhas resultam na alocação ótima dos
recursos, melhor do que o governo poderia fazer. As leis serão inoperantes e impotentes
se pretenderem compelir os homens a tomarem medidas que lhes são desvantajosas.
Nenhuma determinação legal pode prevalecer sobre o autointeresse. A imposição
governamental de preços tabelados, por exemplo, daria origem ao mercado negro. Hales
defende também a liberdade de comércio internacional. Pode parecer surpreendente ver
a defesa da liberdade de comércio nas palavras de um autor do século XVI, mas Hales
não está sozinho. Também defendem teses liberais autores do século XVII como Locke,
Petty e nomes menos conhecidos como Dudley North e Charles D’Avenant. O que mostra
que o mercantilismo não era um rígido sistema de controle, conforme Adam Smith viria
a caracterizá-lo.

42
SALÁRIO, PREÇO E JURO NA ÓPTICA MERCANTILISTA
Como vimos, os mercantilistas argumentavam que os salários deveriam ser
controlados de modo a evitar-se que eles se elevem acima de um nível ótimo. Leis que
regulamentam os salários já existiam na Idade Média; agora os mercantilistas buscam
fornecer-lhes um fundamento teórico. É preciso, para o enriquecimento do Estado,
manter os trabalhadores empregados e produtivos. Para tanto, há um requisito moral:
eles devem ser industriosos. Podem até acalentar sonhos de luxúria sem nunca os
alcançar, como na imagem da cenoura colocada diante do burro. Os trabalhadores são
submetidos a um nível ótimo de frustração quando os salários permitem que sobrevivam
sem irem muito adiante no consumo de riquezas. É a tese da “utilidade da pobreza”, que
preserva a condição moral da classe trabalhadora, porque de outra forma eles se
consumiriam no vício. O argumento parece e é, de fato, cruel, porém surge recorren-
temente em autores do século XVII e se mantém depois. Arthur Yong diz que os trabalha-
dores vivem melhor na pobreza. Bernard de Mandeville, em sua famosa obra Fábula das
abelhas, considera que mesmo a educação é perniciosa às crianças se forem pobres ou
órfãs e que, em vez de serem educadas, elas deveriam trabalhar desde cedo. Em 1701,
John Law sugere a taxação ao consumo como uma forma de encorajar a industriosidade
do pobre e a frugalidade do rico. Hume tece considerações semelhantes.
Entretanto, tal insensibilidade social possibilitou ao pensamento econômico chegar
a um resultado correto em termos da interpretação da curva de oferta de trabalho. A
moderna teoria microeconômica argumenta que a curva de oferta de trabalho, no plano
que relaciona salários com número de horas de trabalho ofertadas, é positivamente
inclinada, mas se o salário for suficientemente elevado ela torna-se negativamente
inclinada a partir de certo ponto, pois o “efeito renda” predomina sobre o “efeito
substituição” (Boxe 3.2). O argumento mercantilista é outro, mas leva ao mesmo
resultado, representado na Figura 3.1:

Figura 3.1 Relação entre oferta de trabalho e salário.

Salário

B
W’
W A

N N Oferta de trabalho

O ponto A é crítico, de modo que para salários acima de W há uma queda na oferta
do insumo trabalho (N’ < N), pois os trabalhadores preferirão não trabalhar, já que são
naturalmente avessos ao trabalho, e o salário mais elevado W’ torna-os propensos a
desfrutarem lazer em troca de trabalho. A consequência para a economia nacional é a
perda da produção e com ela a menor competitividade no comércio internacional, com a
saída de ouro e prata e todas as consequências indesejáveis que dela advém. Assim,
cumpre ao governo estabelecer um teto salarial.

43
Boxe 3.2 Explicação da moderna teoria econômica quanto ao formato da
curva de oferta de trabalho.

Para a teoria microeconômica, a curva de oferta de trabalho é positivamente inclinada,


porém sofre inflexão para a esquerda a partir de um nível crítico de salário. A teoria utiliza-se
de um argumento em termos da escolha individual entre renda e lazer. Quando os salários se
elevam, o aumento de renda induz os trabalhadores a optarem por um número maior de horas
trabalhadas reduzindo assim o tempo de lazer. A partir de certo patamar, o aumento de renda
não mais compensa a perda do lazer (tecnicamente diz-se que o “efeito renda”, que desloca as
preferências em direção ao lazer, torna-se maior que o “efeito substituição” de lazer por renda)
e assim os trabalhadores optam por trabalhar um número menor de horas.

É claro que à medida que a produção decrescer, diminuirá a demanda de trabalho e


isso pressionará os salários novamente para baixo. Se o mercado for flexível, ele, por si
só, determinará o valor de equilíbrio que maximiza a produção. O mercado de trabalho,
na prática, apresenta uma rigidez que poderia justificar algum tipo de controle legal, mas
dificilmente a ponto de se requerer a imposição de um teto salarial. A análise mercan-
tilista, entretanto, não entra nesses detalhes. Ela, de fato, não vai além de uma raciona-
lização superficial da expropriação dos trabalhadores.
Não há muita teoria de preço entre os mercantilistas, excetuando-se as interpre-
tações de William Petty. Natural da Irlanda, Petty, entretanto, é mais um autor de
transição entre o mercantilismo e o liberalismo do século XVIII do que um representante
típico dessa escola. Ele veio a rejeitar muitas das teses mercantilistas. Petty iniciou-se na
carreira médica e quando se propôs a escrever sobre economia trouxe muito dos métodos
de pesquisa das ciências naturais. No século XVIII, o pensamento econômico irá se
desenvolver procurando imitar o método dessas ciências. O irlandês propõe uma análise
mais rigorosa das ciências sociais pela observação de fatos no que ele denominou de
“aritmética política”. O empirismo de Petty é influência do filósofo inglês Francis Bacon
e ao mesmo tempo uma reação à economia escolástica com sua ascendência aristotélica.
Ele separa a ciência da moral. A ciência não resolve problemas morais, somente se
reporta aos meios. É a primeira reação radical contra o legado do pensamento econômico
que por séculos priorizou a questão ética. Embora seus escritos econômicos tendam para
o liberalismo, ele propôs um grande número de intervenções estatais na economia. Sem
chegar a desenvolver um sistema geral de conhecimento, limitou-se a ditar soluções para
um conjunto de problemas práticos. Sua “aritmética política” tornou-se um guia geral
para políticas públicas, no entanto ele não apresentou nenhuma contribuição para a
análise econômica. Na teoria dos preços, embora também não haja aí nenhum grande
mérito analítico, popularizou a noção de que o fundamento do valor está nos custos de
produção. Procurou reduzir todos os tipos de custos em dois fatores de última instância:
a terra e o trabalho. Tentou, adicionalmente, chegar a um denominador comum entre
eles, identificando uma unidade homogênea de poder produtivo que seria o determinan-
te do valor. Não obteve sucesso nessa tarefa.
Petty antecipou elementos da análise econométrica. Ele era muito esforçado na
coleta de dados, no entanto, nenhuma teoria satisfatória na explicação dos preços foi por
ele oferecida. Petty, ao separar a ciência econômica da análise moral, enterrou de uma
vez por todas as teorias de preço justo. O valor do bem é um dado de mercado, equivale
ao preço pelo qual a mercadoria é, de fato, vendida. Ele tinha plena consciência da noção
de preço impessoal em mercados competitivos e concebeu elementos de uma teoria de
oferta e de demanda. No entanto, não se preocupou em explicar preços relativos. Petty é
o mais teórico dentre os mercantilistas, no entanto, como de regra nessa escola, pouco

44
de análise de valor e preço pôde por ele ser apresentada. Definitivamente esse não era o
foco da investigação mercantilista. Os escritos do irlandês influenciaram a escola clássica
de economistas que localizarão no trabalho humano a causa do valor. A unilateralidade
da análise de Petty do valor herdou uma assimetria teórica que se tornará típica na
análise econômica clássica, em que se deixa de dar a importância devida a elementos do
lado da demanda na determinação do valor. Um retrocesso em relação às ideias escolas-
ticas, que felizmente mais afetou o ambiente intelectual inglês do que o restante da
Europa.
Finalmente, outra contribuição teórica de Petty foi sua análise sobre moeda e juros,
mais rica do que a encontrada em outros autores mercantilistas. Ele analisou o processo
de formação de poupanças e interligou-o à oferta de fundos para empréstimos. As taxas
de juros são um fenômeno de mercado determinado pela confluência da oferta de fundos
com a demanda de recursos, esta última dimensionada pela rentabilidade do investi-
mento em estoque de capital. Petty identificou as três funções da moeda, como meio de
troca, medida de valor e como ativo financeiro. A primeira função é a principal delas.
Como medida de valor, a moeda funciona para propósitos limitados, já que ela mesma
tem seu valor variável dependendo da relação entre oferta e demanda. Petty, como os
mercantilistas em geral, acreditou na existência de uma relação entre a moeda e o volume
da produção, mas pouco conhecia da ligação entre moeda e nível de preços. Embora
desconhecendo a teoria quantitativa da moeda, ele desenvolveu o conceito de velocidade
de circulação da moeda, mostrando que ela dependeria de fatores institucionais, como o
período de pagamento dos salários. Ele não aderiu às falácias bulionistas e nem
considerou o saldo positivo da balança comercial absolutamente prioritário, contudo
defendia certas medidas mercantilistas, como a proibição de exportar moeda.
Petty identificou uma ordem natural subjacente aos fatos econômicos e viu a
economia como uma esfera de fenômenos dotados de racionalidade própria. Faltou-lhe,
entretanto, para uma economia verdadeiramente científica, a construção de um sistema
unificado de explicação dos fatos econômicos. Não muito tempo depois, apareceriam
então as obras dos fisiocratas e de Smith, os primeiros tratados da economia como
ciência. Antes de concluir este capítulo, vejamos as características do pensamento
econômico, no mesmo período, entre os povos germânicos.

CAMERALISMO: A DOUTRINA DO MERCANTILISMO ALEMÃO


Com o fim da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), para fazer frente às grandes
potências europeias, os principados alemães viram-se diante da necessidade de suprimir
os resquícios do feudalismo, começando por reforçar a aplicação de princípios racionais
como probidade, diligência, obediência hierárquica etc. Isso refletia a percepção de que
o ato de governar não se limitava ao exercício e à conservação do poder, mas também ao
desenvolvimento de atitudes que promovam centralização política, supressão de práticas
antiquadas, enriquecimento do Estado e bem-estar dos súditos. Ante a crescente ameaça
das potências europeias, manifestou-se entre os príncipes alemães o desejo de fundar um
Estado moderno. A fim de desenvolver as potencialidades de seus domínios, assegurando
um fluxo constante de receitas fiscais, era necessário que o soberano tivesse em mãos
conhecimento fidedigno acerca das condições materiais e geográficas do território, bem
como da situação demográfica, social e política. O cameralismo expressa a intenção
concreta de tornar eficiente o controle fiscal, num período em que o desenvolvimento de
uma economia financeira estatal e a obtenção de fundos públicos eram tarefas de suma
relevância.
Outra questão central por trás da política cameralista relaciona-se ao entendimento
de que a riqueza nacional se localiza na capacidade produtiva dos indivíduos, resultando
disso a exigência de investimentos em educação, infraestrutura e avanço tecnológico. Em

45
outros termos, a prosperidade de um Estado depende da adoção de medidas que
promovam a melhoria material e espiritual dos cidadãos.
Por mais de três séculos, o cameralismo influenciou o pensamento econômico nas
nações de língua alemã. Ao contrário do que comumente se afirma acerca dele, consi-
derando-o uma mera versão alemã do mercantilismo, ele se caracteriza como um tipo de
reflexão econômica e, ao mesmo tempo, um programa de ação prática que refletia o
crescente intercâmbio de ideias que veio se intensificando na Europa desde a invenção
da imprensa. O foco da análise cameralista incidia na investigação de como o estado
moderno deveria promover a indústria por meio de expansão da demanda, gastos
públicos, liberalização interna, estabelecimento de planos e metas, proteção externa etc.
Trata-se, portanto, de um enfoque ligado aos problemas particulares da economia
de um conjunto de países de língua alemã. A Europa Central era uma região mais
atrasada em relação à França e à Inglaterra. Ela estava mergulhada em graves problemas
econômicos e o cameralismo surge como um conjunto de ideias voltado à solução das
calamidades econômicas, por meio de uma melhor administração pública. Diferente-
mente do mercantilismo ocidental, a ênfase não recaia na competitividade comercial com
outros países, mas em fornecer aos reis conhecimentos para uma boa gestão econômica.
Na ausência de um Estado alemão unificado, os príncipes viram-se obrigados a
reorganizar as atividades econômicas de sua gleba tendo em vista um mundo dominado
cada vez mais pela competição violenta entre impérios globais. Tal circunstância criou as
condições propícias para um arranjo institucional baseado em relação de dependência
mútua entre o príncipe e os súditos. Para desempenhar cabalmente suas funções, o
príncipe restabeleceu uma antiga instituição medieval, a Câmara, empregada inicial-
mente para designar o recinto privado do príncipe, e, em seguida, por extensão, o locus
de sua administração. O termo “cameralismo” vem da palavra alemã Kammer, que
designa o lugar onde se guardava o tesouro real. Depois passou a aplicar-se a tudo o que
dizia respeito à propriedade real. Virou a economia do rei ou a arte que bem administra
a renda real procurando mantê-la e, se possível, aumentá-la. De início, era uma combina-
ção de ideias envolvendo aspectos políticos, jurídicos e técnicos, além do econômico.
Com o tempo, seus autores foram especializando-se em economia política e afastando-
se de preocupações jurídicas. O ensino de cunho cameralista dos direitos e deveres
envolvidos na administração pública aparece nas universidades alemãs no século XVII e
a partir de então se desenvolve uma importante tradição do pensamento econômico.
Há elementos comuns com o mercantilismo ocidental, como a ênfase nas regula-
mentações governamentais, dada a confiança na eficácia das leis, e o receituário análogo
de política tributária, de como organizar o sistema de tarifas e taxas públicas. Como no
mercantilismo, o metal precioso é tido como a forma mais desejável de riqueza e eles
também se assemelham na pregação, comum a ambos, do aumento populacional, da
frugalidade e do interesse do rei. No entanto, o cameralismo é menos interessado em
relações internacionais, em comércio entre países e no desempenho da balança
comercial. A rivalidade internacional não é tão importante para ele. A ênfase recai em
finanças públicas e em como remediar o atraso na economia alemã pelo desenvolvimento
da indústria doméstica, da tecnologia agrícola, e da exploração de minas e florestas.
Os mercantilistas franceses e ingleses eram panfletários e só ofereciam pequenos
tratados não muito abrangentes. Enquanto isso, o cameralismo desenvolve sua doutrina
em grandes volumes que apresentam um corpo de pensamento bem conectado, versando
sobre a lógica da organização do Estado e da economia nacional, em seus aspectos
financeiros e técnicos. O desejo da administração eficiente da coisa pública é o eixo
principal a guiar a análise cameralista.
Já início do século XVI, certos autores buscavam oferecer aos burocratas dos
principados da Europa Central meios para remediar os males econômicos que afetavam

46
os povos de língua alemã. Martin Luther, o pai do protestantismo, e Melchior von Ossa
propõem uma reforma tributária a fim de aperfeiçoar o atrasado sistema de taxação. O
descontrole monetário também foi tema de debate. O influente pensador Nicolau
Copérnico, expoente de uma revolução científica na astronomia, havia proposto uma
moeda uniforme por todo o reino, sem a necessidade de nenhum lastro ou aval. Em 1530,
o desequilíbrio monetário desencadeia uma controvérsia sobre a cunhagem de moeda.
Por essa época, melhora a percepção da importância da moeda para a atividade
econômica e chega-se à conclusão de que algum controle sobre ela deveria ser exercido.
Tratados mais específicos sobre pesca, agricultura e indústria aparecem nos escritos de
Bornitz e Klock. Também se destaca Georg Obrecht, que se tornou professor de direito
em Estrasburgo em 1575 e foi o primeiro consultor financeiro oficial do rei.
No entanto, tais concepções somente se constituem numa escola de pensamento no
século XVII. Os principais representantes dessa escola são Veit Ludwig von Seckendorff
(1626–1692), Johann Heinrich Gottlob von Justi (1717-1771) e Joseph von Sonnenfels
(1733-1817). Tais pensadores buscaram oferecer uma teoria da gestão pública que iria
orientar os governantes alemães.
Seckendorff é tido como o pai do cameralismo. Ele separou a economia de outros
ramos do conhecimento social, como a política e a administração pública. Aconselhou a
restrição das importações e o aumento populacional. Contudo, não tinha total confiança
na eficácia do controle governamental. Era adepto da concorrência entre os produtores
e combateu o monopólio das guildas. Nesse século, também aparecem no pensamento
econômico alemão os nomes de P. W. von Hörnigk e Wilhelm von Schröder.
Von Seckendorff fundou os alicerces das ciências camerais em sua obra, de 1665,
Adendo ou informações e notas ao Tratado do Estado Principesco Alemão. Tal estudo
resulta de um processo de amadurecimento e crítica empírica extraídos da observação
da florescente economia holandesa. Ele trata essencialmente de revelar os efeitos
perniciosos da dependência econômica estrangeira. Em sua visão, na falta de um setor
manufatureiro livre e pujante o país não seria capaz de sustentar de forma duradoura
uma população crescente e, portanto, seus cidadãos inevitavelmente correriam para
países estrangeiros, onde vigoram melhores condições de vida. Os principados alemães
se manteriam em um estado de dependência das importações estrangeiras. Na Holanda,
Seckendorff compreendera a importância crucial das manufaturas em reverter a situação
de pobreza e declínio demográfico que debilitavam diversos principados alemães.
Caberia, assim, desenvolver a capacidade produtiva alemã e articular todas as atividades
econômicas, criando-se riqueza e empregos no processo.
Seckendorff preconiza medidas nesse sentido. Sua principal recomendação é
justamente a substituição de importações como forma de suprir as necessidades
econômicas domésticas. Um país caracterizado apenas por agricultura de subsistência
jamais poderia prosperar. Para desenvolver as manufaturas era preciso libertar os
artesãos dos grilhões das guildas e corporações de ofício. Isso atrairia mais trabalha-
dores, criaria demanda por novos negócios para suprir suas necessidades e geraria um
círculo produtivo de oferta e de demanda crescentes. Libertar as manufaturas de
restrições, bem como liberar os preços dos bens domésticos, revigorariam toda a
economia, trazendo os preços aos seus níveis adequados. Seu objetivo era, portanto, criar
condições favoráveis à superação do retardo técnico dos principados alemães, tendo-se
em vista a competição desigual com as principais potências europeias a época.
O cameralismo adentrou o século XVIII. No decorrer dele cátedras começaram a ser
ofertadas para o ensino daquilo que foi descrito como ciência cameral, que pode ser
caracterizada como o estudo dos princípios de administração pública e de política econô-
mica. Em sua forma original, a cameralística consistia na formulação de propostas
práticas, visando tornar eficientes a administração, a arrecadação e a utilização das

47
receitas públicas pelos príncipes, não se constituindo, portanto, uma disciplina segundo
os padrões científicos. Nesse século, no entanto, sucedeu-se notável esforço para
oficializar o ensino universitário das ciências camerais, embora a princípio algumas
inconsistências dificultassem sobremodo sua institucionalização.
Tendo surgido em meados do século XVII, na primeira metade do século seguinte o
cameralismo se consolida como ciência econômica alemã por meio das contribuição de
Justi e Sonnenfels. De fato, o cameralismo somente atingiu robustez teórica nas obras de
Von Justi, que lhe conferiu entendimento cada vez maior dos fundamentos econômicos
da vida política e social. Justi é reconhecido, por isso, como um dos precursores da
economia política na Alemanha. Embora tenha sido autor de um total de 77 livros,
compreendendo filosofia, literatura, ciência da natureza, geologia etc., seu grande mérito
foi ter logrado dividir habilmente as ciências camerais em ciências econômicas, ciência
política e ciência das finanças, questão que nenhum dos pensadores anteriores havia
resolvido plenamente.
Justi, atuando como professor na Áustria, ocupa-se de estudos em finanças, comér-
cio, tributação, agricultura e indústria. Elabora, então, um esquema de seu sistema
teórico de economia política, posteriormente desenvolvido em seu livro mais importante,
a Economia política ou tratado sistemático de todas as ciências econômico-camera-
listas necessárias ao governo de um País, de 1755.
Apesar de perseguir a opulência do Estado, Von Justi não reconhece a primazia
deste sobre os indivíduos. O Estado configura um complexo de instituições que se
caracterizam pela existência e pela aplicação efetiva de normas geralmente vinculativas
e permanentes, as quais indivíduos independentes estabelecem e mantêm para otimizar
sua cooperação a fim de obter disso a maior renda real possível e poder satisfazer suas
necessidades. Justi também considera a liberdade e a segurança individuais. Nesse
sentido, a função precípua do Estado consiste em garantir o bem-estar de seus cidadãos
e consequentemente propiciar condições favoráveis à produção dos bens que os fazem
felizes. As instituições sociais devem ser estabelecidas de modo a gerar a maior renda per
capita possível. Para Justi, legítimo é o Estado cujas instituições servem para criar
liberdade, segurança e bem-estar. Ao delimitar a ação política, Justi intenciona mostrar
que uma economia de mercado desregulamentada é superior a uma economia
controlada, não porque origina um produto interno maior, mas porque impõe menos
restrições aos indivíduos, o que a torna capaz de fornecer a cada cidadão uma maior
quantidade de bens necessários a uma vida feliz.
Em sua ótica, questões sociais são em grande medida problemas de administração
pública. Justi defende um governo que assume responsabilidades inerentes ao melhora-
mento das condições de vida e aperfeiçoamento moral dos súditos, obrigando-se não
apenas a criar empregos e prover meios de subsistência para todos, mas também a
aprimorar os métodos e a organização da produção. Nota-se aqui que o cameralismo não
se prestava somente ao fortalecimento do Estado como finalidade única. O propósito das
ciências camerais era favorecer a felicidade comum resultante da conciliação do conten-
tamento dos súditos com o triunfo do Estado.
Von Sonnenfels é considerado o último grande pensador cameralista. Contempo-
râneo de Justi, sobreviveu a ele tempo suficiente para estender solidamente as ciências
camerais até meados do século XIX. Sua obra mais importante, Princípios da polícia,
comércio e finanças, de 1765, figura entre os livros mais vendidos da literatura econô-
mica, usado nas universidades austríacas até 1848. Embora a sorte de ambos os autores
tenha sido bastante diferente, eles convergem quanto ao propósito de formular
estratégias de desenvolvimento com vistas, de um lado, a aumentar o bem-estar da
população, e de outro a fortalecer o Estado. A obra de Sonnenfels, exprime um esforço a
fim de reconciliar as exigências de um Estado forte com as novas instituições criadas a

48
partir da conjugação de diversos fatores cultural, político e econômico, resultantes de
eventos como a Revolução Francesa, a ocupação napoleônica e a Revolução Industrial.
Sonnenfels aplicou-se ao estudo da jurisprudência, tornando-se um dos mais
esclarecidos intelectuais do círculo iluminista vienense. Atuou na vida pública tanto no
ofício de professor, quanto de administrador. Sua influência em vários assuntos, incluin-
do-se questões jurídica e econômica, baseava-se não apenas em seu status de conselheiro
real e sua posição como docente, mas principalmente em numerosas publicações.
Em 1766, Sonnenfels oferece volumoso livro dividido em três tomos. Nele, sustenta
a tese de que os objetivos primordiais do Estado podem ser divididos em quatro temas
correlacionados, a saber, (i) a proteção externa, (ii) a segurança interna, (iii) a
diversificação de ocupações produtivas e (iv) o incremento da renda. Essas quatro áreas
compõem, em sua visão, o conteúdo da ciência do Estado e, ao mesmo tempo, as linhas
de especialização que formam a ciência política, compreendendo as ciências de polícia,
comércio e finanças. Enquanto a primeira apregoa princípios para o estabelecimento e a
manutenção da segurança interna e externa do Estado, a segunda se ocupa da ampliação
benéfica do que a terra e a indústria produzem. Por fim, a última indica o modo como as
receitas públicas devem ser aumentadas e administradas da maneira mais vantajosa.
A premissa do Estado está presente em todo o edifício teórico de Sonnenfels. Ao
conceber sociologicamente a natureza humana, ele caracteriza o Estado como a
culminação do projeto de realização da objetividade da vida social. Por isso, a vontade
coletiva é muito mais forte do que a do indivíduo. Na verdade, o pensamento de
Sonnenfels pode ser compreendido como um modo de expressão da filosofia política
alemã em sua forma orgânico-corporativista. Nesse ponto de vista, o Estado é definido
como expressão suprema de organização social, uma vez que nele todas as formas de
alienação doméstica, conjugal e patriarcal são superadas como etapas em direção ao
espírito objetivo.
O Estado funda as bases últimas da grande sociedade em que os cidadãos unem suas
forças para alcançar o bem comum. O efeito imediato disso é que os indivíduos assim
reunidos são considerados pessoa moral e consequentemente, tendo acima de si apenas
a vontade comum de exigir o melhor para todos, suportam um único poder supremo, o
qual consiste das forças próprias de todos os membros. A teoria do Estado implícita na
obra cameralista de Sonnenfels incumbe-se de conciliar as prerrogativas do governo
centralizado às novas exigências do Século das Luzes.
Sonnenfels compôs a maior parte da produção cameralista usada no final do século
XVIII. Sua influência manteve-se oficial não apenas dentro da monarquia austro-
húngara, tendo se estendido para além das fronteiras austríacas, encontrando audiência
inclusive nos Estados alemães do sul.
No século XIX, amplia-se o escopo da ciência cameralista. Em 1819, Schmalz afirma
que tal ciência deve incluir não somente a administração pública, mas também o estudo
de tudo o que pertence à propriedade e à renda das pessoas. Na mesma linha, Rau, em
1825, separa o domínio da economia privada e técnica, que estuda tudo o que diz respeito
à riqueza pessoal, da economia pública que avalia os aspectos financeiros das políticas
públicas. Nessa época, a economia firma-se como um ramo do estudo universitário não
confinado apenas à administração da coisa pública. Entre os professores de prestígio,
aparecem Gasser, Daries, Dithmar e Zincke.
Devido a seu vasto período de efetividade, o cameralismo produziu efeitos de longo
prazo, principalmente no que diz respeito à condução das políticas públicas e econômicas
dos Estados alemães. Com isso, ele funda as bases últimas da Nationalökonomie, que
viria a ser examinada a fundo e discutida de forma abrangente por Friedrich List.

49
Durante sua docência em Tübingen, List escreveu seu Parecer sobre o estabele-
cimento de uma faculdade de ciência política, de 1817, em que deixa evidente a
influência da tradição cameralista na sua formação. Neste ensaio, porém, List sugere ser
imperativo fundar as bases de uma nova ciência do Estado. Ele oferece um primeiro
esboço de sistematização das ciências econômicas, em que a Nationalökonomie
(economia nacional) e a Privatökonomie (economia privada ou individual) são apresen-
tadas como disciplinas auxiliares, demonstrando que o bem-estar do todo resulta do
bem-estar do indivíduo.
Na obra Enciclopédia das ciências políticas, de 1823, List concebe a economia
nacional como teoria das leis naturais de produção, distribuição e consumo de bens
oriundos de comércio, indústria e agricultura. Trata-se, pois, da doutrina que ensina em
que medida a influência do poder estatal pode ser benéfica ou prejudicial ao bem-estar
econômico dos indivíduos, dos Estados e da humanidade, argumento que será retomado
em outros escritos sobre a constituição das disciplinas econômicas.
O cameralismo, portanto, é a versão alemã da disciplina econômica, que apresenta
certas peculiaridades. Mais voltado a aspectos técnicos da produção e ao lado financeiro,
não acredita que o Estado e os capitalistas tenham sempre interesses harmônicos e
posiciona-se ao lado dos interesses do primeiro. Ele enfatiza os dispositivos de política
fiscal procurando combater a falência do tesouro público.
Dentre outros pensadores que deram importante contribuição às ideias econômicas
mercantilistas, destacam-se ainda: Claude de Seyssel, M. de Malestroit, Tomás Mercado,
Simon Newcomb, Antoine de Montchrétien, Marques de La Gomberdière, Thomas Mun,
Nicholas Barbon, J. Massie e James Stewart.

50
Questões

1. Até que ponto o mercantilismo pode ser pensado como um sistema coeso de ideias
que se manteve inalterado entre os séculos XVI e XVII?
2. Especule por que John Maynard Keynes mantinha certa admiração pela escola
mercantilista.
3. Comente algumas medidas que, tomadas ainda no período medieval, já antecipavam
as práticas mercantilistas.
4. Descreva a nova visão de sociedade que surge no século XVI.
5. É certo dizer que o objeto da política mercantilista era a maximização da riqueza de
todos os cidadãos?
6. Compare o sistema manufatureiro putting-out com o artesanato medieval.
7. Por que as monarquias absolutas se preocupavam em acabar com a mendicância e
que medidas foram tomadas nesse sentido?
8. O que é o bulionismo e como seus adeptos viam o comércio internacional?
9. Que políticas eram defendidas pelos mercantilistas no sentido de garantir uma
balança comercial favorável?
10. Descreva o Balanço de Pagamentos de Misselden. Para ele, é possível compensar um
déficit na balança comercial sem a fuga de metais preciosos?
11. No que consiste a lei econômica de T. Gresham?
12. Como Jean Bodin relaciona o acúmulo de metais preciosos com a inflação? Você
considera a explicação dele completa?
13. Como a oferta de moeda poderia estimular o crescimento da riqueza na
interpretação mercantilista?
14. Você concorda com a crença de que todos os mercantilistas eram fortemente inter-
vencionistas?
15. Comente a tese da “utilidade da pobreza”.
16. Por que, para os mercantilistas e na teoria atual, a curva de oferta de trabalho torna-
se negativamente inclinada a partir de certo ponto?
17. O que William Petty tem a oferecer em teoria de preços?
18. Qual a essência da teoria dos juros de Petty?
19. Quais as diferenças principais entre o cameralismo e o mercantilismo ocidental?
20. Aponte uma diferença entre o cameralismo no século XVIII e no período anterior.

51
Leitura Adicional

Literatura Primária

KEYNES, John M. A teoria geral do emprego, dos juros e da moeda. São Paulo: Nova
Cultural, 1996. (Os Economistas.) cap. 19.

SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os Economistas.)
livro IV.

Literatura Secundária

DEANE, Phyllis. A evolução das ideias econômicas. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

EKELUND JR., Robert; HÉBERT, Robert F. A history of economic theory and method. New
York: McGraw-Hill, 1990.

HANEY, Lewis H. History of economic thought: a critical account of the origin and
development of the economic theories of the leading thinkers in the leading nations.
New York: Macmillan, 1949.

HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J. História do pensamento econômico. 3. ed. Petrópolis:


Vozes, 1982.

52
4
A Economia como Ordem Natural

O DESENVOLVIMENTO DAS CIÊNCIAS NATURAIS


A partir de fins do século XV, o avanço do comércio ultramarino forneceu um fluxo
de matérias-primas que possibilitou, ao lado de fatores internos, a forte expansão da
economia europeia. Manter frotas navais espalhadas pelos mares da Terra e submeter
povos distantes ao domínio dos interesses coloniais não se constituía, entretanto, tarefa
fácil. A tecnologia necessária para a navegação e para a arte da guerra tornou-se um
desafio cujo enfrentamento somente logrou êxito pelo concurso das mentes mais
privilegiadas da época. As exigências tecnológicas de então, impostas pela emergência do
grande capital mercantil, resultaram nos brilhantes sucessos das ciências naturais
durante o período. No comércio, o transporte marítimo e fluvial de mercadorias tinha
enorme importância uma vez que o deslocamento por terra era muito mais lento, oneroso
e arriscado; enquanto um navio poderia transportar, com maior velocidade, grande
capacidade de carga. No entanto, somente com o avanço da ciência e da tecnologia as
viagens marítimas ficaram mais eficientes. A bússola tornou-se de uso universal apenas
na segunda metade do século XVI e bons mapas geográficos marítimos só apareceram
também por essa época. Tais instrumentos de nada valeriam para a navegação em mar
aberto se não houvesse métodos disponíveis que permitissem a localização do navio por
meio das coordenadas de latitude e longitude. O transporte por rios servia como meio de
ligação interna entre diferentes regiões da Europa. No passado, o crescimento natural
das cidades estava associado ao sistema de comunicação por rios. Agora, desenvolve-se
a construção de canais e eclusas visando o aperfeiçoamento das vias fluviais; com eles,
complementa-se o transporte interno conectando-o ao transporte marítimo.
No mesmo período, a indústria da mineração conhece expressivo crescimento. De
início, pela exploração das minas de ouro e prata na América, depois pelo desenvol-
vimento intenso da indústria de guerra. A invenção de armas de fogo e a introdução da
artilharia pesada estimularam a exploração das minas de ferro e cobre. Nos dois séculos
seguintes, a indústria metalúrgica é impulsionada pelas encomendas de canhões, balas e
outros armamentos pesados. A extração de minérios e a construção de artefatos de
guerra desafiaram a tecnologia da época que se desenvolveu a largos passos (Boxe 4.1).
Outros problemas práticos exigiam pronta solução ao conhecimento da época. Era
cobrada da ciência oficial o enfrentamento de diversos problemas que surgiram com a
expansão econômica das potências europeias. No século XVI, as universidades preser-
vam o conhecimento medieval dominado por um sistema escolástico fechado no qual não
havia lugar para as ciências naturais fora da tradição aristotélica. Tudo o que não fosse
encontrado em Aristóteles simplesmente não existia. A ciência era uma humilde serva da
Igreja que não lhe permitia ultrapassar os limites por ela estabelecidos. Por outro lado,
as necessidades tecnológicas demandavam o avanço da ciência, principalmente a física

53
nos ramos de astronomia, hidrostática, hidrodinâmica, mecânica, aerodinâmica e
resistência dos materiais (Boxe 4.2).

Boxe 4.1 Avanços tecnológicos impulsionados pela colonização ultramarina.

As grandes navegações elevaram a demanda por minérios. Minas mais profundas de ferro e
cobre passaram a ser exploradas. Surge então o problema de trazer o metal à superfície. A fim de
elevar o minério foram construídos os mais diversos equipamentos na elevação de cargas e um
sistema complexo de bombeamento começou a se desenvolver para a difícil tarefa de remoção das
águas em minas profundas. Outras inovações são utilizadas. O método rudimentar de produção
de ligas baseado em fornos a vapor é substituído pela forma mais perfeita de produção por altos-
fornos, na qual surge o problema da ventilação, apenas parcialmente equacionado.
A evolução da arte da guerra também estimulou o desenvolvimento da artilharia pesada que
fora incluída como parte integrante dos exércitos. Surgem os problemas teóricos de balística e
construção de canhões, que levaram à investigação da trajetória da bala, da relação ótima entre
calibre e carga, bem como a relação do calibre com o peso e o comprimento do canhão. Definidas
certas proporções no desenho do canhão, outros problemas são investigados, como o recuo do
canhão com o tiro. Em reação ao desenvolvimento da artilharia, ocorre verdadeira revolução na
construção de fortificações e fortalezas, com novos problemas para a engenharia da época.

Boxe 4.2 Desenvolvimento da Física em resposta aos problemas práticos.

A localização dos navios no meio do oceano dependia da observação dos corpos celestes.
Uma vez conhecido o mapa das estrelas e seu movimento, a latitude poderia ser determinada por
astrolábio e instrumentos ópticos. Já a longitude dependia do auxílio de cronômetros marítimos
que somente foram inventados no início do século XVIII. Antes da popularização dos
cronômetros, o cálculo das longitudes utilizava a medida da distância entre a lua e as estrelas
fixas, o que exigia um conhecimento exato das anomalias do movimento da lua e constituía-se
numa das mais complicadas tarefas da mecânica celeste. Para aumentar a capacidade de
tonelagem dos navios era necessário o conhecimento das leis que governam a flutuação de corpos
em líquidos, tema da hidrostática. A fim de melhorar a qualidade de flutuação dos navios é
necessário conhecer as leis que comandam o movimento de corpos em líquidos, uma das tarefas
básicas da hidrodinâmica. O problema da estabilidade dos navios é estudado pela mecânica dos
pontos materiais. A construção de canais e eclusas exigia o conhecimento teórico dos fluxos de
líquidos para se entender as leis que governam o movimento das águas em canais de diferentes
seções. A elevação do minério à superfície envolvia o desenvolvimento de máquinas que
dependiam, para sua construção, de um complicado planejamento de rodas dentadas e
mecanismos de transmissão, que é tarefa da mecânica. O equipamento de ventilação dos altos-
fornos exigia o estudo da aerostática, parte da estática. O bombeamento de água das minas
requeria o estudo de problemas da elevação de líquidos em tubos e o conhecimento dos efeitos da
pressão atmosférica. A tecnologia de guerra envolvia o estudo das trajetórias de corpos em meio
resistente para se entender a trajetória da bala através do ar. Os processos que ocorrem no interior
do canhão exigem o estudo da compressão e da dilatação dos gases, tarefa da mecânica dos gases.
O estudo do fenômeno de recuo do canhão é objeto da mecânica. A estabilidade da arma propõe
o estudo da resistência dos materiais.

Sabemos hoje que a física de Aristóteles é falsa em grande parte, o que não nega ser
ela uma ciência altamente elaborada que procura submeter a um tratamento bastante
coerente e sistemático os dados do senso comum. Esse tipo de dado diz respeito à
experiência cotidiana, não preparada no sentido moderno do experimento de laboratório
montado para responder a perguntas específicas. As coisas tratadas por Aristóteles eram,
por assim dizer, fatos triviais que saltam aos olhos.

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A ciência moderna que surge nessa época parte da ideia aristotélica de ciência (Boxe
4.3), não obstante, há dois elementos principais na visão de ciência de Aristóteles que
seriam questionados: a crença dogmática na veracidade das premissas científicas e o
pouco cuidado com a observação sistemática dos fatos. Em consequência, a física de
Aristóteles enfrentava um paradoxo: embora fosse mais próxima do senso comum do
que a nova física de Galileu, Torricelli e Newton, entre outros, não vinha dando conta de
fenômenos físicos e astronômicos mais complexos, como aqueles trazidos pelo avanço da
tecnologia.

Boxe 4.3 Método da ciência em Aristóteles.

No volume Analíticos Posteriores do Organon de Aristóteles, o filósofo escreve que toda


ciência compartilha o mesmo método comum. Ele consiste em revelar a estrutura teórica por
trás dos fatos por meio de um encadeamento de sentenças provadas e demonstradas. As
sentenças verdadeiras dependem de outras sentenças, mais fundamentais, também
verdadeiras. A sentença fundamental constitui o princípio (arché) da explicação. São as causas
primeiras das coisas. A demonstração consiste no exercício de se obter qualquer uma das
sentenças encadeadas na teoria por meio da lógica dedutiva (ou raciocínio silogístico),
partindo-se dos princípios até se chegar às conclusões estabelecidas por ela. Tais conclusões
são fatos observados previamente conhecidos, antes mesmo da teoria, no entanto a ciência
trata de demonstrar como eles decorrem logicamente de premissas. As premissas ou princí-
pios da demonstração funcionam como hipóteses de um modelo explicativo que busca ajustar
fatos já observados a um sistema de conhecimento, enquadrando-os e nos lançando à
observação de fatos adicionais.
O método científico de Aristóteles começa na observação casual dos fatos. Depois
procura torná-los inteligíveis, formalizando e sistematizando as observações dentro de um
sistema dedutivo a partir de premissas. Procura-se extrair do evento particular, que se
observa, suas características universais a delimitar o tipo em questão. Destarte, isola-se o que
é essencial no evento de seus aspectos acidentais. Embora tal modelo de ciência não tenha sido
muito diferente das concepções metodológicas da moderna ciência natural, há um traço
característico na visão aristotélica jamais aceito pelos mentores da ciência moderna. Trata-se
de um resquício platônico que permeia as concepções de Aristóteles. A questão está centrada
no problema fundamental de como se chega aos princípios teóricos universais partindo-se da
observação de casos particulares. Do ponto de vista estritamente lógico tal problema
(denominado problema da indução) seria analisado no século XVIII por David Hume que
conclui pela impossibilidade de sua solução. Aristóteles, no entanto, vale-se das influências
platônicas que lhe permitem assegurar a veracidade dos princípios. Para ele é perfeitamente
possível firmar a verdade das premissas por meio de um processo de reconhecimento descrito
desta forma: cada fato que se manifesta aos nossos sentidos fica preservado em nossa
memória. Com a repetição do fato, o acúmulo de percepções na memória possibilita, a partir
de certo ponto, o reconhecimento do elemento universal. Uma vez reconhecidos, os princípios
são ainda examinados dialeticamente como um processo sistemático de crítica até que nos
certifiquemos plenamente de sua veracidade. Como no modelo de Platão, somos lembrados
da verdade pela experiência; apenas lembrados, pois, já nascemos com ela, embora a
tenhamos esquecido. A lembrança da verdade ocorre a partir da familiaridade com os fatos, o
que desperta um tipo de olhar intelectual que a reconhece, validando o princípio da
demonstração científica.

Na astronomia, as crenças aristotélicas tinham sido integradas desde o século II no


sistema geocêntrico de Ptolomeu. Nele, seguindo os preceitos aristotélicos, o céu é
pensado como um corpo divino e, por essa razão, é-lhe dado o movimento circular. Todos
os astros deveriam percorrer o círculo em torno da Terra, que estaria parada e imóvel no

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centro do universo. Sol, Lua e os cinco planetas observáveis estariam incrustados cada
qual em uma esfera de cristal concêntrica à Terra. A esfera exterior do universo contém,
incrustadas nela, as estrelas fixas mantendo posição relativa constante entre si, isto é, as
constelações com forma permanente. Os acentuados desvios do círculo, observados no
movimento de laçada dos planetas em torno do fundo das estrelas fixas (o ziguezague
dos planetas), são explicados pela curiosa associação entre uma esfera principal em torno
da terra (deferente) e a esfera acoplada (epiciclo), presa em um ponto fixo do deferente
e sustentando o planeta. O efeito da composição no movimento das duas esferas explica
as laçadas dos planetas. O desenvolvimento do sistema astronômico ptolomaico levou a
um avançado método de cálculo da posição das estrelas e dos planetas no céu e à previsão
de fenômenos tais como início das estações e ocorrência de eclipses.
Com o tempo, o aprimoramento dos instrumentos óticos e a necessidade de precisão
nas previsões levaram a numerosas correções e acréscimos ao sistema ptolomaico, que
para salvar as aparências não fazia cerimônia em, por exemplo, acoplar não as duas
esferas de que falamos, mas dezenas delas, cada qual centrada em um ponto na superfície
de outra, dando conta assim dos movimentos observados da Lua, do Sol e dos planetas.
Questões de simetria e simplicidade, além de inconfessáveis crenças místicas, conduzi-
ram Copérnico a propor o sistema heliocêntrico no início do século XVI.
Mais do que uma simples mudança de referencial, deslocando o centro do universo
da Terra para o Sol, o modelo copernicano abalou por completo a física de Aristóteles.
Esta última apoiava-se na crença de que há uma ordenação hierárquica estática à qual
obedece a natureza. Esta se exprime por princípios como o que estabelece haver um
“lugar natural” para cada coisa, o que define o movimento natural, e por oposição, o
movimento compulsório ou violento. Tirar um corpo de seu lugar natural seria uma
espécie de violência e, uma vez tirado, o corpo precisaria voltar a ele. A matéria é sempre
uma combinação de quatro elementos, ou corpos simples: terra, água, fogo e ar. Cada um
deles possui um princípio de movimento em sua própria natureza. O movimento natural
do fogo e do ar é para cima e os de água e terra são para baixo. No centro do universo há
algo em repouso. A Terra tem de existir, pois, é a terra (elemento simples) que está em
repouso no centro, para onde, se deslocado, volta por seu movimento natural para baixo.
Ora, se a Terra não estivesse no centro do universo, a noção de espaço ou lugar de
Aristóteles, que exerce influência no movimento dos corpos, teria de ser substancial-
mente revista. Aristóteles pensa que dois lugares diferentes, um em cima e outro em
baixo, possuem cada qual naturezas diferentes e por isso os corpos deslocam-se no
movimento de queda livre de um a outro. A hipótese copernicana de deslocar a Terra de
seu local no centro de tudo implica também que a teoria do movimento natural precisa
ser esquematizada de outra maneira. Portanto, Copérnico não apenas lança as bases de
outra astronomia, mas suscita também outra física.
A explicação dos problemas de balística nos projéteis lançados por canhões foi
tentada pela física aristotélica. A dinâmica de Aristóteles é muito curiosa (Boxe 4.4).
Embora a teoria de Aristóteles seja bastante engenhosa, ela não oferece uma solução
prática, por exemplo, ao problema do ângulo do eixo do canhão com a horizontal que
permita a máxima distância de alcance na trajetória da bala. A crença aristotélica de que
“a natureza tem horror ao vácuo” não explicava por que as melhores bombas d’água não
conseguiam extrair o líquido do fundo de um poço de profundidade superior a dez
metros. Foi por meio dos estudos da pressão atmosférica e com a hipótese da existência
do vácuo que Torricelli solucionou o problema, no início do século XVII. Conclui-se que
a urgência na solução dos problemas práticos foi minando a confiança na ciência
aristotélica.
A crítica à física de Aristóteles é anterior ao período. Em plena Idade Média,
pensadores escolásticos, como Jean Buridan e Nicolau Oresme, propunham interpreta-
ções diferentes para o movimento. Este último particularmente acreditou que a Terra

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estivesse em movimento. No entanto, podemos situar o marco maior no nascimento do
método da ciência moderna na obra do filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626). Bacon
via muita especulação nas ideias de Aristóteles e acreditava que o desenvolvimento da
ciência requeria um melhor intercâmbio do homem com a natureza. O conhecimento
empírico deveria ser valorizado e as noções a priori abandonadas.
“Resta-nos um único e simples método para alcançar os nossos intentos: levar
os homens aos próprios fatos particulares e às suas séries e ordens, a fim de que
eles, por si mesmos, se sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem
a habituar-se ao trato direto das coisas.” (F. Bacon. Novum Organum)

Boxe 4.4 Dinâmica do movimento dos corpos em Aristóteles.

Filósofos pré-socráticos acreditavam que todos os corpos estariam internamente


divididos em intervalos de modo a quebrar sua continuidade. O todo não é contínuo, mas
existe na forma de partes separadas pelo vazio. As partes, que são os átomos, estão em
movimento ao redor do vazio. A crença na existência do vácuo foi duramente criticada por
Aristóteles, pois no espaço vazio não existe nada e, portanto, também não haveria a diferença
entre o em cima e o em baixo e, sendo assim, não poderia haver movimento natural no vácuo.
Além disso, não é necessário o vácuo para haver o movimento, como pensavam os pré-
socráticos. Em sua obra Física, Aristóteles afirma que o movimento natural é a realização do
que existe potencialmente, a realização do móvel como móvel. Há assim uma ideia de
causalidade final na origem do movimento. Quanto ao movimento compulsório ou violento,
quando o corpo se afasta de seu lugar natural, no De Caelo Aristóteles afirma que, nesse caso,
ele é movido por alguma coisa que exerce sua ação de quatro maneiras: puxando,
empurrando, carregando e girando. A velocidade de deslocamento é sempre proporcional à
intensidade da “causa do movimento” (o que Newton chamou de força). Como explicar então
a trajetória da bala de canhão? Os aristotélicos, para explicar a trajetória dos projéteis, um
movimento não natural em sua definição, afirmavam que o projétil é impelido pelo ar que o
rodeia, por um mecanismo segundo o qual o ar se abre pela passagem do projeto, à frente, e
se fecha, atrás, de modo a impeli-lo.

Sabemos que Aristóteles realça o papel da observação empírica em sua descrição do


método científico. Ele, porém, como dissemos, entendia a experiência no âmbito restrito
do senso comum. O problema apontado por Bacon é que observações casuais do dia a dia
que fazemos são carregadas de preconceitos ou “antecipações”. A observação deve estar
submetida a controle sistemático se ela quer ir além do indutivismo ingênuo. Além do
mais, o legado aristotélico fora distorcido pela ortodoxia teológica, tornando-se ainda
mais especulativo e descolado da realidade empírica. A verdadeira ciência deveria servir
às necessidades tecnológicas. Somente assim, pode-se, com ela, dominar e conquistar a
natureza. No entanto, os homens somente o fazem submetendo-se a ela, “pois a natureza
não se vence, se não quando se lhe obedece”. O intelecto deve buscar extrair a verdade
das observações, eliminando falsas noções que bloqueiam e distorcem o processo
perceptivo. Tais noções apresentam-se a nós como ídolos geradores de ilusão, que devem
a todo custo ser combatidos pela ciência. Não podemos confiar exageradamente em
nossos sentidos (ídolo da tribo) e devemos estar atentos a possíveis estados de
perturbação mental, que crescem na “caverna” particular de cada um de nós (ídolo da
caverna). Hábitos semânticos errôneos bloqueiam o conhecimento (ídolo do fórum) e a
autoridade do pensamento filosófico dominante pode ser obstáculo adicional à verdade
científica (ídolo do teatro). Em seguida, Bacon desenvolve um método cuidadoso de
coleta de dados e o aplica ao estudo do fenômeno do calor.

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O método difundido por Bacon tornou-se conhecido como empirismo e sem dúvida
ele é um dos pilares da ciência moderna, que dominou vários ramos da ciência. Em sua
principal obra, Novum organon, ele desenvolve a ideia de experimentação sistemática
em laboratório, opondo-se ao indutivismo com base no senso comum de Aristóteles. Um
grande avanço, por certo. Bacon sabia perfeitamente que se oferecia à obtenção da
realidade das coisas por meio dos sentidos um grande número de obstáculos, e ele não
foi nada ingênuo nesse tocante. No entanto, o problema lógico da indução empírica, isto
é, o problema da indução de Hume, só no século XX seria satisfatoriamente examinado
pelo filósofo Karl Popper e, portanto, muito tempo decorreria até a consideração
completa de todas as dificuldades trazidas por uma ênfase fortemente empírica na
ciência. De qualquer modo, não foi o empirismo baconiano o único sistema filosófico
subjacente às grandes tradições científicas modernas.13 Já no século XVIII, outros dois
importantes sistemas metodológicos somam-se ao de Bacon dando sustentação aos
avanços no pensamento filosófico da ciência: Descartes e Newton. Tais sistemas exerce-
rão influência notável na evolução das ideias econômicas. Antes de adentrar no estudo
de suas características básicas, o presente quadro descritivo do desenvolvimento das
ciências naturais relaciona o empirismo de Bacon com os físicos Kepler e Galileu, para
depois finalmente concluirmos a seção com a descrição daqueles sistemas.
No início do século XVII, Johannes Kepler e Galileu Galilei revolucionaram as
ciências físicas e prepararam o caminho para a construção do imponente sistema da
física clássica. Kepler simplesmente utilizou os dados do grande astrônomo Tycho Brahe
para ajustar o cálculo da órbita dos planetas. Particularmente se interessou pela órbita
de Marte e, após exaustivas tentativas de ajustar os dados nos círculos perfeitos de
Aristóteles, chegou à conclusão das órbitas elípticas e propôs, assim, suas famosas três
leis do movimento dos planetas. Entretanto, não foi um empirista no sentido de Bacon. 14
Galileu estudou a queda dos corpos usando alguns experimentos de laboratório, muito
embora ele também se valesse das famosas experiências de pensamento (Boxe 4.5).

Boxe 4.5 Experimentos de pensamento de Galileu.

É bem conhecida uma estória em que Galileu refuta a teoria de Aristóteles, que
propugnava pela queda mais rápida de corpos mais pesados, lançando da torre de Pisa duas
bolas de igual dimensão, sendo uma mais leve que a outra. Parece, entretanto, que ele apenas
imaginou tal experimento. O melhor argumento utilizado por ele para invalidar a lei
aristotélica da queda dos corpos foi outro. Imaginou um corpo pesado atado a um corpo mais
leve. O corpo pesado tende a cair com uma velocidade maior, mas por estar preso a um corpo
mais leve, que, pela física aristotélica, cai mais devagar, ele é freado na queda e o conjunto
desce com uma velocidade menor que a do bloco mais pesado. Ora, o conjunto em si mesmo
pode ser pensado como um único bloco, mais pesado que as partes isoladas. E, portanto,
deveria cair mais rápido. Uma contradição da teoria de Aristóteles apontada por um
experimento puramente mental.

No lugar da teoria dos movimentos naturais de Aristóteles, Galileu fornece uma


explicação puramente mecânica. O movimento não é mais explicado pela qualidade do

13 Dissemos de passagem no capítulo anterior que o empirismo de Bacon influenciou a “aritmética


política” de William Petty. A partir de Petty a pesquisa empírica estará presente de modo mais
contundente na investigação social, mais em certos autores do que em outros.
14 Um grande pensador do século XX, Arthur Koestler, conta-nos que a ideia da elipse em Kepler

surgiu de um sonho por ocasião da gravidez de sua esposa. Sonhou com um ovo, símbolo da
fertilidade e após tentar o ajuste dos dados por uma forma ovoide (quem sabe também uma forma
perfeita) acabou chegando à elipse.

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corpo e a natureza do espaço, mas como efeito de forças comunicadas do exterior, como
de fato Aristóteles já havia pensado para movimentos forçados. Aceitando a existência
do vácuo, Galileu compreende o papel da inércia do movimento. Curiosamente Aristó-
teles havia pensado na inércia dos corpos enunciando-a para rejeitar a existência do
vácuo. Aristóteles argumentou que
“Como o ar resiste ao movimento, se o ar fosse evacuado, um corpo poderia ou
permanecer em repouso, porque não haveria causa para movê-lo, ou em
movimento iria à mesma velocidade para sempre. Como isto é um absurdo não
pode haver o vácuo.” (Apud L. P. Rosa, A dinâmica de Aristóteles e a estática de
Arquimedes)
Brilhante intuição do princípio da inércia, mesmo que apenas para negar a existência
do vácuo! Galileu aceita tal princípio também de maneira curiosa: ele imaginou que a
inércia fosse circular e, com isso, pensava estar explicando o deslocamento dos astros.
Um erro fatal da física de Aristóteles foi relacionar o movimento forçado com a “força
externa” aplicada ao corpo, quando sabemos, graças a Newton, que a força resultante
aplicada a um sólido só comunica aceleração, não sendo diretamente proporcional às
velocidades. Isso se deve ao fato de Aristóteles não compreender movimentos no vácuo
ou o papel do atrito e da resistência do ar nas situações cotidianas.
Na primeira metade do século XVII, a filosofia de René Descartes (1596-1650)
constitui outro pilar da ciência moderna com aspectos bem distintos do empirismo
inglês. O sistema de Descartes apresenta duas características distintivas: o mecanicismo
e o racionalismo. Na primeira delas, o mundo é formado por corpos que interagem na
colisão. O movimento de partículas e o impacto entre elas definem qualquer sistema
físico. Mesmo sistemas mais complexos, como os seres vivos, funcionam da mesma
maneira que os processos exibidos na natureza inorgânica. Os indivíduos, portanto, são
semelhantes a máquinas e o mesmo método científico da física pode ser aplicado à
biologia. Além disso, também as ciências humanas, como a ciência moral e a política,
fazem parte da árvore comum do conhecimento, em que as raízes são a metafísica, o
tronco a física e galhos e ramos constituem as demais ciências.
Do ponto de vista do método, em seu racionalismo Descartes acredita que o exercício
da razão humana assegura a certeza do conhecimento científico. Qualquer indivíduo tem
o poder de julgar e distinguir o falso do verdadeiro pelo uso do bom-senso ou razão.
Enquanto o caminho da verdade em Bacon radica na observação criteriosa, Descartes
procura assegurar-se dela no uso da razão. Como consequência, sempre que os homens
conduzem seu pensamento pelas mesmas vias e consideram as mesmas coisas chegam a
resultado igual. Há uma única verdade e, sendo assim, boa parte das disputas filosóficas
de sua época deve-se a uma má escolha do método de investigação. O bom caminho
consiste em refutar tudo o que seja apenas provável. Trata-se do método da “dúvida
metódica”, que certamente não pode negar tudo, já que o próprio eu não é negado, pois o
ato de pensar garante nossa existência (“penso logo existo”). Percorrer tal caminho leva
Descartes à rejeição de quase todo o conhecimento acadêmico a sua época, considerado
por ele mera especulação. Então o filósofo vai à procura do raciocínio simples dos homens
no mundo prático e nos negócios cotidianos. Tendo estudado autores consagrados de sua
época, ele agora se aventura no “livro do mundo”, a fim de viajar, ver cortes e exércitos,
frequentar todo tipo de gente e recolher diversas experiências. Depois de refletir sobre
todas suas experiências, percebe que o pensamento das pessoas é extravagante e muito
condicionado pelos costumes de cada um. Descartes resolve olhar a si próprio e recorrer
apenas à força de seu espírito. Somente a evidência conquistada por nós mesmos é válida,
e contra ela opõem-se os preconceitos da tradição acadêmica. A razão, portanto, aparece

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no esforço da mente isolada e todos os processos técnicos e sociais devem ser pensados,
planejados e controlados por ela.15
O método cartesiano prende-se a quatro preceitos básicos:
1. Acolher apenas coisas verdadeiras e indubitáveis, que não possam ser postas
em dúvida.
2. Todos os problemas são reduzidos a partes elementares, de modo a se decom-
por analiticamente a realidade.
3. O conhecimento parte de objetos simples, e só após o pleno conhecimento
deles pode-se investigar objetos compostos complexos.
4. Todas as soluções possíveis para um problema devem ser enumeradas e
analisadas uma a uma.
Tal método expressa-se, portanto, com base em axiomas, tidos como autoevidentes,
para a construção de raciocínio analítico e dedutivo, criteriosamente embasado numa
rigorosa lógica matemática. A mente humana busca conhecer a verdade decompondo
analiticamente o problema. Descartes não concede posição destacada à observação
empírica na compreensão dos fenômenos naturais, o que o afasta do empirismo de Bacon
e o aproxima de concepções apriorísticas da ciência. Isso não quer dizer que nenhum
papel possa ser atribuído ao experimento empírico em seu sistema. Em alguns casos, a
experiência conta na seleção de soluções particulares do problema, contudo, é tão
somente um instrumento adicional de análise ao lado dos recursos fornecidos pela
própria razão.
O sistema de Descartes mantém pontos de contato com a tradição escolástica,
inclusive na ênfase a questões religiosas. No entanto, ele fornece elementos para a
gestação da ciência moderna ao praticar metodicamente a dúvida no desenvolvimento
do pensamento científico. Suas ideias marcaram o pensamento filosófico ocidental, em
especial destacamos a influência em pensadores como Spinoza e Locke. No âmbito da
ciência natural deu contribuições expressivas ao desenvolvimento de ramos da física,
como a óptica geométrica, e da matemática, tendo criado a geometria analítica, uma das
bases matemáticas da física clássica.
A crença cartesiana de que a linguagem matemática é a forma universal do
raciocínio empregado em qualquer investigação científica haveria, por certo, de permear
toda a ciência natural a partir do século XVII e especialmente no século seguinte, quando
a matemática conhece grande impulso em seu desenvolvimento. O pensamento de
Descartes influenciou o Iluminismo francês do século XVIII, contudo, na época dele as
maiores referências para a ciência inglesa eram, de fato, o empirismo de Bacon e agora o
novo sistema de Newton. O racionalismo, com sua crença na apreensão direta da
verdade, é contraposto, em território britânico, principalmente ao método newtoniano
de se fazer ciência. Veremos adiante que tal método influenciou profundamente o
nascimento da economia como ciência afetando particularmente o pensamento de
Richard Cantillon e Adam Smith.
Isaac Newton (1642-1727) inaugurou um estilo intermediário entre a tradição
aristotélica e o empirismo baconiano. Esse estilo foi firmando-se a partir do imenso
sucesso alcançado por sua física em explicar e prever fatos empíricos já conhecidos e
propor soluções bastante satisfatórias aos problemas colocados pela tecnologia da época.
O método de Newton não ficou confinado apenas nas ciências naturais e também serviu
como modelo para a investigação social. Logo adiante veremos a descrição
pormenorizada desse método, por enquanto se explica como ele surge na prática de
Newton. Kepler havia descoberto as três leis que comandam o movimento dos planetas
pela mera análise dos dados de Tycho Brahe. Tais leis tinham, portanto, um caráter

15 É o que o economista do século XX, Friedrich von Hayek, chamará de “razão construtivista”.

60
puramente empírico, não se revestindo de algum princípio teórico que descreva os
movimentos dos corpos ou explique a natureza das órbitas planetárias. Muito jovem,
Newton tinha desenvolvido, a título de exercício matemático, uma explicação física do
movimento dos planetas na hipótese da existência de um sistema de forças centrais
unindo os planetas ao Sol, que decaem com o quadrado da distância que os separam da
estrela. Quando se lança essa hipótese, pode-se deduzir, com alguma competência
matemática, as três leis de Kepler. De início, Newton não deu muita importância a tal
achado, mas depois, em fase madura da vida, iria perceber, com os colegas cientistas, as
implicações de sua descoberta. Os fatos descritivos da dinâmica dos planetas, que haviam
sido estudados empiricamente por Kepler, são por Newton enquadrados em um sistema
teórico fundamental construído com base em poucas premissas. A lei da atração
gravitacional e a lei da ação e reação são princípios que dão conta de toda a multiplicidade
de fenômenos astronômicos já conhecidos. E mais: os movimentos dos corpos na
superfície da Terra também são explicados pelos mesmos princípios da dinâmica,
rompendo-se a separação aristotélica, mantida por Galileu, entre o mundo translunar
das estrelas e o mundo sublunar em que vivemos.
Não cabe aqui discorrer sobre as realizações da ciência newtoniana, mas vale dizer
que seu sucesso também esteve associado à solução de importantes problemas práticos
da época. Basta examinar a ordem em que as questões teóricas são tratadas na obra
máxima de Newton, os Princípios matemáticos da filosofia natural, de 1687, para se
perceber sua relação com questões práticas (Boxe 4.6). Newton procurou não apenas
resolver problemas empíricos isolados, mas também construir uma sólida base teórica
para a solução, por meio de métodos gerais, do conjunto de problemas físicos suscitados
pelo desenvolvimento da tecnologia.

Boxe 4.6 Problemas técnicos tratados nos Princípios de Newton.

No prefácio dos Princípios, Newton chama atenção para o fato de que a mecânica
aplicada e a descrição de máquinas simples já tinham sido tratadas por outros e que seu
objetivo não era “discutir os vários ofícios e resolver problemas particulares, mas discorrer
sobre a natureza e sobre os fundamentos matemáticos da física”. Como a obra é apresentada
na linguagem matemática abstrata da geometria, seria difícil encontrar nela referências
diretas às exigências técnicas das quais acreditamos os problemas por ele resolvidos derivam-
se.
No entanto, a simples inspeção dos temas abordados em cada capítulo demonstra que o
núcleo central dos Princípios consiste exatamente nos problemas técnicos de sua época. Assim
é que, no primeiro livro da obra, é feita uma exposição detalhada das leis gerais do movimento
de corpos sujeitos à ação de forças centrais fornecendo um método geral para a solução dos
problemas mecânicos. O segundo livro é dedicado ao movimento dos corpos num meio
resistente, resolvendo problemas fundamentais de balística, importante para a artilharia
pesada. A quinta seção do segundo livro é dedicada ao fundamento da hidrostática, ao
problema dos corpos flutuantes e ao problema da compressão de gases e líquidos submetidos
a pressões, todos com aplicação na construção de navios, canais, bombas d’água e sistemas de
ventilação. A sexta seção do mesmo livro trata do problema do movimento do pêndulo num
meio resistente, que facilitaria depois a construção de relógios. A hidrodinâmica dos fluxos de
líquidos por meio de tubos é tratada na seção seguinte, com importante aplicação para a
construção de canais, eclusas e bombas d’água. O terceiro livro dos Princípios lida
especificamente com questões referentes ao movimento dos planetas e às anomalias do
movimento da Lua, com aplicações em astronomia e para entender-se o movimento das
marés, ambas de importância vital para a navegação. Esse breve perfil dos Princípios mostra
a coincidência entre os temas teóricos e as exigências tecnológicas da época.

61
O sucesso do empreendimento de Newton conferiu a seu método um valor de
paradigma para todas as ciências e isso se impregnou fortemente no ambiente
acadêmico inglês. No que consiste o método newtoniano? No plano meramente formal,
é muito assemelhado à descrição aristotélica de ciência. Lembremos que a ciência em
Aristóteles se caracteriza pela busca e pela identificação de princípios (arcai) com base
nos quais se pode demonstrar conclusões que dizem respeito a fatos empíricos
previamente conhecidos. Começa-se das conclusões desejadas e pesquisam-se as
possíveis premissas da demonstração lógica. Dessa forma, as observações são formali-
zadas e ajustadas a um sistema teórico. Eventualmente a identificação dos princípios
levará à observação e à descoberta de novos fatos. Ora, é exatamente isso o que Newton
fez com os resultados empíricos de Kepler. Identificou os princípios da mecânica e da
atração universal dos corpos e provou matematicamente como a órbita elíptica e outras
conclusões keplerianas decorrem deles. Então, o método newtoniano consiste em
identificar-se uma ordem natural subjacente a fenômenos aparentemente caóticos
construída a partir de um pequeno número de princípios básicos muito bem
fundamentados. Destarte, mostra-se que o complexo mundo dos fenômenos observados
pode ser ordenado pelo encadeamento de raciocínios lógicos e se desdobra das premissas
iniciais como implicação.
A questão que separa Newton de Aristóteles diz respeito a como se chega aos
princípios e ao status ontológico quanto ao conteúdo de sua verdade. Vimos que
Aristóteles apoia-se numa visão platônica a firmar a verdade dos princípios no
mecanismo de revelação (nous ou “olhar intelectual”) que vê a verdade dos princípios na
memória retida dos objetos. Definitivamente essa não é a interpretação de Newton. O
grande físico obteve os princípios de seu sistema apoiado no debate com seus
contemporâneos, no legado da investigação de autores que o antecederam e, sobretudo,
graças a sua imensa genialidade. Participa também os aspectos místicos em sua formação
intelectual (Boxe 4.7). De fato, há muitos elementos imponderáveis na descoberta
newtoniana dos princípios científicos, que não podem ser logicamente reconstruídos.16
É certo que Newton foi observador meticuloso de fenômenos particulares. Ele fazia
experiências de laboratórios, por exemplo, incidindo feixe de luz num prisma, e observava o
movimento dos astros. Entretanto, não foram tais observações que nele despertaram
diretamente a descoberta dos princípios. Além do mais, muito do que se diz sobre Newton
hoje se sabe que se trata de lenda. Não está provada a veracidade da narrativa sobre a queda
da maçã de uma árvore, que lhe teria revelado a existência da gravidade. Enquanto no
método de Bacon a observação empírica meticulosa está na base da ciência, em Newton os
fatos empíricos aparecem como ilustração ou como comprovação a posteriori da teoria.

Boxe 4.7 Misticismo de Isaac Newton.

John M. Keynes arrematou, em leilão, uma caixa contendo papéis com anotações de Newton
à época em que escrevera os Princípios. Keynes conta-nos que o conteúdo desses papéis revela
uma mente envolta em questões de alquimia e esoterismo, muito em voga na época. O eminente
físico brasileiro Mário Schenberg afirma, entre outras coisas, que Newton considerava o espaço o
“sensório de Deus” e que a ideia de atração gravitacional pode ter sido inspirada nas antigas
crenças esotéricas dos poderes de amor e ódio, que corresponderiam a forças atrativas e repulsivas,
respectivamente.

16Ciente destas dificuldades, Karl Popper propõe a separação metodológica entre o contexto da
descoberta e o contexto da justificação na prática científica. A partir daí, a metodologia científica
só diria respeito ao método da justificação, deixando para o contexto da descoberta a ação de
fatores de outra ordem.

62
Muito embora carregue consigo um enorme poder preditivo dos fenômenos físicos, a
ciência de Newton não se propõe a alcançar a verdade última das coisas; como na lei da
atração gravitacional, que é apenas postulada. Newton sabia tratar-se de uma hipótese forte
que poderia, com o progresso da ciência, vir a ser mais bem explicada, como de fato o seria
com o desenvolvimento da física moderna. O que importava era o fato de que eventos
observados pudessem ser obtidos retrospectivamente com base na ação dos princípios
teóricos; e que a construção teórica conferisse uma ordem harmônica aos fatos físicos
observados. Além do mais, a teoria teria diversas importantes aplicações tecnológicas.
O sistema de Descartes difere bastante da visão de Newton. Este último não acredita
que as forças da razão possam assegurar a verdade do conhecimento. Adicionalmente, há
outros aspectos que os separam. Newton não compartilha a visão mecanicista do universo
tal como aparece em Descartes. Embora também ele aceite o papel das colisões, concebia
que muitos processos físicos dependeriam de outros fatores além de movimento e colisão de
partículas. Newton acreditava em uma explicação do movimento com base na hipótese da
“ação à distância” entre os corpos, enquanto o sistema teórico do francês só permitia a ação
por contato. Os corpos interagem apenas empurrando ou puxando uns aos outros. Newton
não considerava plausível que um sistema complexo como um organismo animal pudesse
funcionar em analogia às engrenagens de uma máquina. Ele refutava o modelo do universo
enquanto um relógio, embora seu sistema também estivesse fortemente carregado de
relações deterministas. O sistema cartesiano identificava espaço com matéria e não permitia
a existência de espaços vazios, mantendo, portanto, a velha crença aristotélica na ausência
de vácuo. Newton aceitava o vácuo. A lista de diferenças entre eles poderia ampliar-se muito
mais.
Esta seção estendeu-se para fora do âmbito mais restrito da evolução do
pensamento econômico porque se necessita de uma sólida compreensão do desenvol-
vimento das ciências naturais até o século XVIII, e de suas diferentes bases filosóficas e
metodológicas, a fim de situar-se o nascimento da economia científica. A próxima parte
descreve como a revolução nas ideias da época repercutiu na visão de sociedade e suas
implicações para o nascimento da economia como um sistema teórico mais integrado.

NOVAS IDEIAS SOBRE POLÍTICA E SOCIEDADE


Localizamos três importantes tradições científicas consolidadas no início do século
XVIII, associadas aos nomes de Bacon, Descartes e Newton. Embora os problemas que
deram origem a elas digam respeito à explicação de fenômenos naturais, os métodos
científicos e a visão filosófica geral que emergem, de modo diferenciado, em cada uma
das tradições funcionaram também como paradigmas da ciência social e da economia em
particular. Isto só foi possível porque, paralelamente ao avanço da ciência natural, uma
nova visão da sociedade foi sendo elaborada desde o início do período histórico do
Renascimento. A decadência da estrutura feudal e a negação do poder da Igreja abalaram
a imagem da sociedade como uma comunidade de fiéis, na qual caberia a cada um
desempenhar funções específicas predeterminadas. O entusiasmo geral provocado pelo
avanço do conhecimento tecnológico favorecia um novo tipo de visão enaltecedora do
poder do intelecto humano em conhecer a realidade e dominar a natureza. Ao mesmo
tempo, o homem como cordeiro submisso à Igreja é substituído pelo homem dotado de
vontade própria, repleto de paixões e muitas vezes movido por impulsos não muito
éticos. É quando surgem os modelos teóricos descritivos da sociedade que procuram dar
conta de sua origem e coesão sem pressupor a componente moral e religiosa.
Embora sem a mesma presença anterior de elementos de sociabilidade trazidos pela
autoridade da tradição religiosa, a vida social não se degenera em caos. Há de se
identificar então os mecanismos que garantem a coesão social no contexto moderno de
63
homens livres e pensantes. Surgem as primeiras interpretações da política, no contexto
do novo Estado que substitui o poder eclesiástico. Nicolau Maquiavel (1469-1527) propôs
uma ciência política de caráter positivo, que examina sistematicamente os mecanismos
pelos quais um ditador impõe a ordem entre homens egoístas e pérfidos (Boxe 4.8).
A tendência de interpretar o conjunto da vida social como estando submetido a
certos mecanismos lógicos, semelhantes às regularidades dos fenômenos físicos, é
mantida e até reforçada no século XVII. Thomas Hobbes (1588-1679) tenta compreender
a sociedade comparando-a a uma máquina. Seu pensamento político mantém pontos de
contato com o modelo de Maquiavel, como a imagem realista da natureza humana e a
necessidade de um governo forte para a acomodação de interesses particulares (Boxe
4.9). Sua obra máxima, Leviatã, de 1651, foi dedicada a Galileu. Conceitos físicos são
utilizados para descrever a natureza humana, quando Hobbes distingue movimentos
vitais de movimentos voluntários do homem. Os primeiros são os processos automáticos
de operações vitais como digestão e respiração. Estes últimos dizem respeito à ação
voltada ao atendimento de desejos e aversões. Tudo o que contribui para a satisfação de
desejos é um bem, ao passo que coisas que produzem aversão denominamos de mal.
Assim, os conceitos éticos de bem e mal são redefinidos em termos de coisas que são e
não são agradáveis aos homens.

Boxe 4.8 Teoria política de Maquiavel.

Para Maquiavel, a eficácia do comandante em atender ao objetivo visado passa por um


cálculo racional. O domínio da situação depende das estratégias do poder em seguir
recomendações práticas, como as que constam em sua obra O príncipe. Os caprichos pessoais,
que poderiam levar à destruição mútua de todos, são neutralizados pelo poder do Estado.
O quadro traçado por Maquiavel procura ser realista ao conceber uma natureza humana
egoísta e falar em ações necessariamente cruéis que deveriam ser praticadas pelo soberano.
Isso, no entanto, não se constitui em um juízo de valor da parte dele. Não se pode concluir
que seu intento seja o de afrontar a moralidade, pois ele não se prende a uma ética
deontológica construída em consideração a princípios de bem e mal. Maquiavel segue a ética
teleológica, em que o julgamento da conduta é feito em termos de suas consequências práticas
em alcançar o fim a que se destina. Com ele, as ações humanas em sociedade passam a ser
julgadas como procedimentos técnicos análogos às medidas requeridas para o domínio da
natureza. O Estado é visto pela óptica de um naturalismo que o assimila a um organismo vivo
cuja saúde depende da eficácia dos remédios aplicados.

Boxe 4.9 Hobbes e o Leviatã.

A sociedade de Hobbes é organismo artificial inteiramente análogo ao organismo biológico.


É uma criação artificial que se contrapõe ao “estado natural”. Este último descreve a situação de
guerra de todos contra todos, alimentada pela competição, pela desconfiança e pelo desejo de
glória individual. A partir dela, os homens, movidos pelo medo e ansiando por uma vida mais
confortável, são levados, em vontade própria, a firmar um pacto social. Assim, o Estado emerge
de uma convenção, quando um conjunto de indivíduos concorda em estabelecer o contrato social.

Hobbes concebe a sociedade como um organismo artificial, modelo que é reforçado


pelo mecanicismo de Descartes, que viveu à mesma época. Enquanto mecanismo
automático, a sociedade sujeita-se a leis de funcionamento. Leis que também condicionam
a esfera econômica, e justificam políticas pouco intervencionistas.

64
A influência do espírito cartesiano, portanto, também alcança o pensamento econômi-
co. Com base na ideia de lei social, Hobbes defende a liberdade de comércio. Outro autor,
Dudley North, que escreveu em 1651 os Discursos sobre o comércio, assevera que quando o
método cartesiano é aplicado às questões comerciais, chega-se a um conhecimento da
economia como um sistema mecânico fundado em verdades claras e evidentes, em que os
preços se fixam, por si só, em cada mercado e a riqueza advém espontaneamente sem a
intervenção do Estado.
A visão da sociedade que iria prevalecer no século XVIII, época do nascimento da
economia como ciência, afasta-se, no entanto, do racionalismo e do mecanicismo
cartesianos sob as influências marcantes da obra de John Locke (1632-1733), da qual
destacamos o Ensaio sobre o entendimento humano e os Dois tratados sobre o governo
(Boxe 4.10). As ideias de Locke repercutiam as aspirações da classe burguesa; ele é
considerado o filósofo da Revolução Gloriosa, que em 1688 estabeleceu a monarquia
constitucional na Inglaterra, bem como um dos precursores do Iluminismo, movimento
intelectual que comandou a Revolução Francesa. Locke também é considerado o pai do
liberalismo que se impôs completamente na cena inglesa do século XIX.

Boxe 4.10 Sociedade e Estado em John Locke.

O modelo de sociedade política de Locke assemelha-se ao de Hobbes mantendo dele


afastamento em pontos específicos. Em Dois tratados sobre o governo, ainda aplica os
conceitos de “estado natural” de homens livres e iguais, precedendo o aparecimento do poder,
e a ideia de que o poder se legitima pelo consentimento. Contudo, o pacto social não é pensado
como um antídoto para acabar com a situação de guerra de todos contra todos, já que em
Locke no estado de natureza o homem não é o lobo do homem, embora não se encontre aí a
visão idílica do bom selvagem popularizada por Rousseau. Sem aderir a concepções extremas
do caráter do homem no estágio pré-social, Locke argumenta que o pacto social é fruto da
conveniência de os homens submeterem-se a um poder central a fim de preservarem a vida e
a propriedade.
Se o Estado aparece para preservá-las, é importante encontrar uma justificativa para o direito
de propriedade. Nesse tocante, Locke envereda suas reflexões passando às considerações
econômicas. O Estado não interfere na distribuição de riquezas, pois é o trabalho individual que
confere a cada qual seus direitos de propriedade, que englobam também os direitos de herança. O
fim da vida social é produzir a maior quantidade possível de coisas úteis, mas a produção deve-se
deixar a cargo de interesses particulares.

Locke segue a trilha de seus antecessores Bacon e Hobbes, mas critica Descartes
em aspectos essenciais. Como Bacon, ele exalta o poder dos sentidos como fonte do
conhecimento e repudia os vestígios platônicos da visão de ciência em Aristóteles com
suas crenças em verdades inatas. De Hobbes, Locke retém o modelo individualista
que explica o poder instituído a partir de um acordo livremente estabelecido entre os
indivíduos e selado por um contrato social. No entanto, Locke demonstra maior
preocupação em resguardar a liberdade individual contra a tirania do poder. Lança
então a tese de que a natureza reserva aos homens certos direitos como os de
integridade física e propriedade. Seguindo Descartes, Locke também confia no poder
da razão de transformar o mundo, porém ele fornece outra interpretação dela. A razão
não consiste na busca de princípios internos ao pensamento individual obtidos pela
decomposição analítica dos fenômenos em seus elementos básicos. Trata-se, mais
propriamente, em um dom potencializado pela observação empírica. Locke critica o
racionalismo de Descartes, que interpreta ainda reter resquícios escolásticos da

65
crença de ideias inatas e verdades autoevidentes, ao mesmo tempo em que se
aproxima da tradição empirista de Bacon.
No entanto, isso não significa que ele tenha, de fato, aderido a um empirismo
radical, embora Locke em muito tenha contribuído para a difusão do empirismo fora da
Inglaterra. O empirismo havia-se consolidado no século XVIII graças ao extraordinário
avanço das ciências, mas foi o método da física newtoniana e não o de Bacon que se
tornou o paradigma do pensamento filosófico em ciência. Locke desfrutou da amizade
de Newton e com ele apercebeu-se que grande parte de nossas ideias não se poderia
comprovar, pois elas provêm de um conhecimento intuitivo. Podemos demonstrar as
consequências matemáticas dos princípios da física e chegar a certas conclusões de
aplicação empírica, mas o princípio em si mesmo, uma vez bem estabelecido, não se pode
contestá-lo. Outras ideias colocam-se acima da razão humana e só podem ser assentidas
pela fé, como as crenças religiosas.
Dando continuidade à ética teleológica de Maquiavel e Hobbes, Locke busca ainda
um fundamento hedonista para a justificativa moral da conduta. Bem e mal são definidos
pelo prazer e pelo mal que a conduta propicia ao indivíduo. Tal modelo ético iria depois
resultar no utilitarismo de J. Bentham, seguido pela maioria dos filósofos éticos ingleses
entre o fim dos setecentos e o século seguinte.
Em teoria econômica, Locke tece consideração sobre o valor dos bens. Seu
fundamento está no trabalho humano. Contrariamente à versão menos enfática de
William Petty, o trabalho é mais importante que o próprio preço das terras na
determinação do valor dos bens. No ensaio de 1691, intitulado Considerações sobre a
queda do juro e a elevação do valor da moeda, Locke indica claramente sua compreen-
são dos mercados como um mecanismo impessoal, em que operam a oferta e a demanda
e no qual os preços estabelecidos não poderiam ser consistentemente alterados por
medidas legais. O próprio juro do dinheiro seria determinado por uma taxa natural de
mercado.
Há então no início do século XVIII um consenso em torno da interpretação da política,
da sociedade e mesmo da economia como esferas naturais. Uma importante questão da
época interrogava em como conciliar a visão da sociedade composta por indivíduos
autointeressados com o comportamento ético presumidamente atribuído ao homem pelos
filósofos morais. Aceitando todos os preceitos da análise de Locke, um grupo de filósofos
ingleses ataca a visão pessimista de Hobbes e tenta mostrar que o autointeresse não é, a
princípio, incompatível com a benevolência. Entre eles podemos citar Shaftesbury, Tucker e
Hartley. Passando ao largo das particularidades individuais, todos defendem a possibilidade
de reconciliação entre a conduta altruística e a busca da satisfação individual. Porque, sendo
o homem um animal social, as preocupações com o interesse próprio e com o interesse
comum se confundem, de modo que ao se trabalhar pelo incremento da felicidade pública
aumenta também o quinhão da felicidade individual. O argumento filosófico principal deles
consiste em mostrar que o comportamento humano tem sempre um componente de
benevolência, não sendo, portanto, um comportamento genuinamente egoísta. Os filósofos
éticos procuram enfraquecer a tese do homem autointeressado e egoísta, reconciliando-o
com a moral.
O escritor holandês Bernard de Mandeville (1670-1733) publica um poema em 1705
em que busca demonstrar, por meio de uma fábula, que não é necessário descartar o
comportamento puramente egoísta para se derivar a partir dele resultados benéficos
para a sociedade. A obra Fábula das abelhas traz em seu subtítulo um resumo da fórmula
encontrada por Mandeville: vícios privados, benefícios públicos (Boxe 4.11).
Mandeville reforça o modelo individualista de sociedade, mostrando a precariedade
dos argumentos morais na explicação da sociabilidade dos homens nas economias de
mercado. Suas ideias, no entanto, escandalizaram a opinião da época e não foram

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seguidas pelos mais importantes filósofos morais do século XVIII. Mandeville não nega
que os homens sejam naturalmente dotados de algum senso moral, mas ele não
considera que a plena moralidade é pré-condição para a vida social.

Boxe 4.11 A Fábula das abelhas.

Nesta obra, Mandeville supõe a existência de um mecanismo na sociedade pelo qual os


vícios privados, ao se somarem, convertem-se em benefícios públicos. O argumento é o de que
a luxúria humana, ao lado da vaidade e da inveja, é socialmente útil já que gera demanda
efetiva, encorajando a produção de bens e com isso empregando toda sorte de trabalhadores.
A fim de ilustrá-lo, conta a estória de “uma grande colmeia, repleta de abelhas, que viviam
com luxo e comodidade” e que a partir de certo momento resolve se moralizar.
Consequentemente “à medida que minguaram o orgulho e o luxo... fecharam fábricas
inteiras” e... “Todas as artes e ofícios foram abandonados”. A colmeia, ao se moralizar, entra
em franca decadência econômica. Como lição da estória, Mandeville escreve que “ser famoso
na guerra e, ainda, viver comodamente, sem grandes vícios, é uma vã utopia radicada no
cérebro. A fraude, o luxo e o orgulho devem existir, enquanto recebemos seus benefícios”.

O ensaio de Mandeville teve papel decisivo para emancipar o pensamento


econômico da época da moralidade e permitir assim a consideração de um subsistema
social autônomo que constitui uma ordem econômica formada por uma coleção de
indivíduos buscando seu autointeresse e governados pela lei da oferta e demanda. A
ordem social ora era pensada como uma criação artificial dos homens, como na tradição
hobbesiana, ora como uma entidade natural ou até divina.17 Newton também via o
desígnio de Deus na ordem natural. Os economistas do século XVIII acreditavam todos
na ordem natural dos fenômenos econômicos.
Mercier de la Rivière, membro da escola de economistas franceses conhecida como
Fisiocracia, afirma textualmente que a “ordem natural e essencial da sociedade” não é
fruto do trabalho do homem, mas é instituída por Deus. Smith talvez tenha enxergado o
desígnio do criador na ordem econômica, enquanto Hume era céptico da presença divina
nessa ordem. Não importa se a interpretação de cada qual é ou não carregada de
conotação religiosa; todos aceitam a existência de uma ordem natural subjacente à
sociedade e à economia. Se ela existe, os homens em sociedade estão sujeitos a leis
naturais do mesmo modo em que na natureza física os fenômenos submetem-se a leis
físicas. Os fisiocratas acreditam que a produção e a distribuição dos bens são efetuadas
de acordo com leis fixas da natureza e que os problemas de distribuição devem ser
lidados como se enfrentam os problemas da física.
Esta seção examinou sistematicamente a visão de sociedade que emerge no século
XVIII e o sistema de crenças filosóficas subjacente ao aparecimento da economia como
ordem natural. Veremos, ainda no presente capítulo, aspectos mais específicos de teorias
que influenciaram diretamente o tratado econômico de Adam Smith. Por certo, boa parte do
material e do esquema de ideias de Smith pertence ao legado de um conjunto de autores
antecedentes.

17 Descartes via a sociedade


como uma ordem divina, embora seu racionalismo estivesse associado
à crença no poder da razão humana em edificar a sociedade. Hayek o associa à “razão
construtivista”.

67
BOISGUILLEBERT E CANTILLON: PRECURSORES DE ADAM SMITH
Nesta seção, faremos uma exposição detalhada da contribuição destes dois autores que,
ao lado dos fisiocratas, foram importantes precursores das ideias de Smith. Começa-se com
Boisguillebert (1646-1714), autor francês cujos trabalhos mais importantes concentram-se
por volta de 1700. Pierre le Pesant, seu nome de batismo, foi um importante crítico das
políticas mercantilistas na França no reinado de Luis XIV. É bem verdade que ele ainda não
fornece um tratamento sistemático da economia com base em princípios e só analisa
problemas econômicos específicos, mas sua obra tem elementos de originalidade que mere-
cem ser considerados. Boisguillebert vê a economia como um mecanismo natural governado
pelas forças de mercado e, contrário às práticas mercantilistas, enfatiza a liberdade das
trocas.
À época de Boisguillebert, a França vinha atravessando grave crise econômica
alimentada pelas despesas de guerra e pelas extravagâncias de consumo na corte. Os
males econômicos são atribuídos por ele à adoção de preceitos mercantilistas. Boisguille-
bert publica um conjunto de obras, entre 1665 e 1712, tratando principalmente de
reforma tributária e que chegaram a escandalizar o rei, a ponto de ser penalizado tendo
de se exilar pelo lançamento de O memorial da França em 1707. De original, ele propõe
a noção de que os bens e os serviços à disposição de cada cidadão e não a moeda ou a
fortuna do rei constituem a verdadeira riqueza da sociedade. A fonte do crescimento da
riqueza é o consumo individual, de modo que o bem-estar nacional depende da pujança
da demanda efetiva. Boisguillebert acredita que a renda nacional seria determinada pelo
fluxo de dinheiro gasto, antecipando, pelo menos em espírito, ideias de Keynes.
A solução para o problema do declínio econômico da França requer uma reforma
tributária que possa reduzir os impostos, de modo a suprimir um fator limitante da
demanda. Boisguillebert havia calculado que os impostos em excesso e a concentração
em sua base de incidência teriam acarretado uma queda na renda da França em pelo
menos 50%, entre os anos de 1665 e 1695, pela decorrente insuficiência de demanda
agregada. Os efeitos nocivos provocados pelo receituário mercantilista também foram
responsabilizados pela queda na renda. Especialmente desastrosa tinha sido a decisão
do ministro Colbert de proibir as exportações de grãos, o que veio a prejudicar a
agricultura do país. Como consequência dela, os preços dos grãos tendiam a cair princi-
palmente em tempos de crise quando se acentuava a escassez de demanda.
A visão de Boisguillebert enaltecia dois elementos: a primazia da agricultura e os
benefícios do livre-comércio, também bandeiras dos fisiocratas como veremos mais
adiante. As medidas que procuravam favorecer as manufaturas em prejuízo da agricul-
tura deveriam ser revertidas. O mercado funcionando por conta própria traria a expan-
são da agricultura, com estabilidade de preços e melhor distribuição de renda. Uma
distribuição mais equitativa seria importante por garantir a sustentação da demanda
agregada.
A reforma tributária proposta por ele priorizava o combate a três tipos de impostos
então cobrados na França: as talhas, as sisas (“aides” em francês) e os impostos
aduaneiros. Os primeiros incidiam sobre as propriedades e eram sujeitos a muita
arbitrariedade e capricho pessoal em sua aplicação. Os nobres e membros do clero
ficavam isentos de pagá-los. A carga incidia fortemente sobre os proprietários mais
pobres, principalmente o pequeno camponês. As sisas são um imposto indireto sobre as
vendas. Boisguillebert preocupava-se com a possibilidade de o povo francês ter que
cortar seu hábito mais típico pelas pesadas sisas sobre a venda do vinho. Os direitos
aduaneiros eram cobrados pela circulação de mercadorias, não só entre as fronteiras da
França, mas também entre regiões internas; o que restringia sobremaneira o fluxo de
mercadorias e a concorrência nos mercados, implicando assim em aumento de preços.

68
Boisguillebert defendia a liberdade dos mercados, argumentando que, deixando a
natureza agir, os preços, espontaneamente determinados, garantiriam em todos os
setores da economia um ganho normal ou justo. O mecanismo de formação de preços já
asseguraria o máximo de riqueza. O mercado leva à realização de todos os planos dos
produtores individuais e não haveria nunca o problema crucial de falta de consumo.
Pode-se considerar, neste aspecto, que Boisguillebert tenha antecipado a chamada Lei de
Say, apontada pelo famoso economista clássico.
O autor que estamos considerando propõe assim um conjunto de medidas que
comporiam uma reforma tributária. Anos depois, ele será criticado pelos fisiocratas por
não oferecer um “sistema natural de finanças públicas”, mas um conjunto de medidas
arbitrárias visando ao aumento do consumo agregado. Os críticos fisiocratas
consideravam mais importante para a expansão econômica do país a forma como os
impostos afetam não o consumo, mas o processo de acumulação de capital. Boisguille-
bert, por seu turno, raciocina pensando em tornar os impostos mais progressivos e
melhorar a distribuição de sua base de incidência de modo a liberar renda disponibi-
lizando-a para o consumo. Esse é seu receituário básico de política econômica. Ele
também deu importante contribuição em questões monetárias analisando a natureza da
moeda. Percebeu então que há outros meios de pagamento na forma de papéis (letras de
câmbio, títulos do governo etc.) que podem funcionar como substituto da moeda nas
transações. Também se notabiliza por considerar que o efeito de certa quantidade de
moeda sobre a economia dependeria também da velocidade de circulação da moeda,
conceito ainda mal compreendido à época.
Em 1755, é publicada em Paris a obra de um autor não muito conhecido, que já havia
falecido duas décadas antes, assassinado em condições obscuras nas ruas de Londres; são
os Ensaios sobre a natureza do comércio em geral de Richard Cantillon (1680-1734).
Banqueiro e comerciante, de origem irlandesa, pouco se conhece de sua vida. Seus Ensaios
constituem um tratado brilhante que, sob influência do método newtoniano, busca a
descoberta de princípios básicos da vida econômica. Em analogia com o princípio universal
da gravitação, Cantillon localiza o motor do processo de ajuste dos mercados na busca
autointeressada do lucro. Todo o sistema econômico é visto como um processo de ajuste
entre partes conectadas, de modo que mudanças básicas na população, nos gostos e na
produção afetam umas às outras. É possível que seu legado tenha sido ainda mais
importante que o dos fisiocratas na formação das ideias de Adam Smith. No entanto, a
importância de Cantillon só foi reconhecida no final do século XIX, quando foi, por assim
dizer, redescoberto por Willian Jevons. Com justiça, podemos considerá-lo o autor do
primeiro tratado sistemático de economia.
Em Cantillon, pela primeira vez, ao que consta, a variável demográfica é incorpo-
rada como parte de um modelo econômico. Também de modo pioneiro ele oferece uma
explicação racional para a localização espacial das cidades e da atividade econômica.
Entretanto, queremos destacar três aspectos da contribuição de Cantillon:
1. A estrutura das classes sociais.
2. A teoria dos preços e a descrição do sistema de mercado.
3. A teoria monetária e os fluxos de renda.
Cantillon parte da existência da propriedade privada como um requisito para o
funcionamento dos mercados. A sociedade é composta por quatro classes: nobres,
proprietários de terra, empresários e assalariados. As duas primeiras são os segmentos
das pessoas financeiramente independentes, que não precisam trabalhar, e tão somente
fornecem suas propriedades para que os produtores possam extrair delas os recursos
naturais. As propriedades incluem terra e capital físico em geral. Os empresários ocupam
uma posição intermediária, seu papel consiste em operar nos mercados de produtos e
fatores de produção procurando tirar vantagem do sistema de preços de modo que da

69
ação deles dependa o mecanismo de ajuste entre oferta e demanda em cada mercado.
Eles também são os que contratam trabalhadores e organizam a produção. Os
assalariados trabalham por remuneração fixa, enquanto o empresário tem uma renda
incerta, pois é ele quem corre o risco: quando produz não sabe o preço a que poderá
vender o produto.
Essa divisão social em classes era um procedimento analítico ainda pouco usual nos
escritos econômicos. Frequentemente atribui-se aos fisiocratas a introdução de classes
sociais na análise econômica, mas sem dúvida antes deles Cantillon já raciocinava em
termos delas. O representante típico da classe empresarial é o fazendeiro, pois os
modernos métodos capitalistas de produção estavam mais disseminados na área rural
da França. Toda troca e circulação de bens que aciona o sistema econômico parte da
classe dos empresários e, sendo assim, estes ocupam nele uma posição vital.
Cantillon descreve a economia como um sistema organizado de mercados interco-
nectados que afetam uns aos outros, no interior do qual atuam indivíduos em relação de
dependência mútua. O sistema ajusta-se pela ação de empresários autointeressados que
operam nos mercados comprando, vendendo e organizando a produção em condições de
incerteza. Com o tempo, os mercados tendem a se estabelecer na situação de equilíbrio.
No equilíbrio de longo prazo, os preços estabilizam-se em torno do custo real de
produção. Nessa condição, Cantillon define o conceito de valor intrínseco, que pode ser
reduzido a quantidades e qualidades de terra e trabalho humano que entraram na
produção. A tentativa de fundamentar os preços em alguma medida de custo real não é
bem-sucedida e falta-lhe maior clareza, por exemplo, em como se definem as diferentes
qualidades de terra e trabalho e como unidades de terra e trabalho podem ser compa-
radas entre si, questões também enfrentadas e igualmente não resolvidas por Petty.
A contribuição analítica mais importante de Cantillon diz respeito à sua descrição do
processo de convergência para os valores de equilíbrio. No curto prazo, ele enfatiza a noção
de preço de mercado dando-lhe uma interpretação subjetivista que realça, em sua
determinação, os humores e caprichos dos agentes envolvidos, bem como o desejo de
consumo deles. No longo prazo, os preços estabilizam-se nos valores intrínsecos (Boxe
4.12).

Boxe 4.12 Cantillon e o mecanismo de mercado.

Nos Ensaios sobre a natureza do comércio em geral, Richard Cantillon, considera que
os preços de mercado se afastam dos valores intrínsecos na medida em que os planos de
produtores e de seus clientes não estejam perfeitamente coordenados. Planos inconsistentes
distanciam temporariamente os preços de seus custos. Os preços funcionam como uma rede
de sinais que serve para conectar mercados diferentes. Os homens, movidos pelo
autointeresse, reagem aos sinais dos preços e entram em diferentes mercados vendendo e
comprando de modo a explorar as diferenças observadas entre preços praticados e valores
intrínsecos. A própria ação dos agentes, à medida que desloca a oferta e a demanda, leva a
uma mudança nos preços relativos, sinalizando novas estratégias até que os planos de
compradores e vendedores se tornem compatíveis. O mesmo processo também se verifica no
mercado de fatores e conduz à realocação constante de trabalho e de outros insumos
produtivos até que a demanda se iguale à oferta. Tal mecanismo explica, por exemplo, como
as forças naturais alocam o trabalho em seus diferentes empregos. É verdadeiramente
surpreendente a fecundidade das ideias econômicas contidas nos Ensaios. Smith interpreta
a economia de mercado tomando na íntegra o esquema de Cantillon do funcionamento dos
mercados.

70
Há outra ordem de ideias em Cantillon que seria depois aperfeiçoada pelos fisiocratas.
Ele desenvolve um modelo de fluxo de rendas em circulação entre as classes sociais. Há três
canais de transmissão de renda: o que vai dos fazendeiros para os proprietários, na forma de
pagamento de aluguéis; o fluxo entre os primeiros e trabalhadores, proprietários de
matérias-primas e vendedores de bens manufaturados, que corresponde aos pagamentos
dos fazendeiros na aquisição de bens e serviços. Por fim, resta o fluxo interno entre os
próprios fazendeiros, obtido como resíduo ou renda líquida dessa classe. A noção de fluxos
de pagamento entre classes sociais, embora ainda muito primitiva em Cantillon, conhecerá
em François Quesnay grande aprimoramento, em que um esquema bastante complexo dos
fluxos de recebimentos e gastos em cada setor será proporcionado pelo Quadro econômico,
sua principal obra.
A análise dos fluxos de renda está integrada a uma teoria monetária bastante
desenvolvida. A relação entre moeda e preços já era bem conhecida entre os economistas.
Faltava, no entanto, melhor entendimento da cadeia causal em que as moedas afetariam os
preços. Locke havia lançado uma explicação em termos do que hoje é conhecido como teoria
quantitativa da moeda, mas a grande dificuldade, ainda não resolvida, consistia em mostrar
de que maneira e em que proporção variações monetárias impactariam os preços. A ideia
popularizada até então era a de que acréscimos de moeda nas mãos do público afetariam o
nível agregado das despesas, que por sua vez levaria a um aumento da produção. A pressão
da demanda dos produtores elevaria os custos e finalmente os preços dos bens finais.
Cantillon tratou dessa questão embasado em sólida pesquisa empírica; assim como Petty ele
também tinha grande habilidade na coleta e análise de dados. Estimou então o estoque de
moeda necessário para o bom funcionamento da economia com base em um estudo
minucioso da velocidade de circulação da moeda. Sua pesquisa empírica acabou revelando-
lhe o princípio analítico de se separar o nível geral de preços dos preços relativos.
Cantillon ficou convencido de que a ênfase no nível geral de preços encobre o aspecto
mais fundamental de como as emissões monetárias afetam os preços relativos entre
diferentes setores da economia. Dependendo de como a moeda entra no sistema
econômico, ou seja, das mãos em que ela passa primeiro, poderia afetar prioritariamente
o consumo ou a poupança. Quando se destina aos que consomem proporcionalmente mais,
o aumento da demanda de bens finais estimula o aumento da produção e a decisão de
investir. Como não haveria acréscimos significativos nos fundos para investimentos, a
concorrência no mercado de fundos conduziria a uma elevação nas taxas de juros. Por
outro lado, se a moeda adicional é transferida inicialmente aos que poupam mais, a menor
pressão da demanda de bens finais e a disponibilidade maior de fundos reduziriam as taxas
de juros. No primeiro caso, temos aumento dos juros e pressões inflacionárias, na segunda
hipótese ocorre redução dos juros e menor influência sobre os preços. Assim, o mecanismo
automático de ligação entre moeda e preços é questionado na análise setorial de Cantillon.
Apenas no fim do século XIX, esse tipo de análise dos elos microeconômicos da teoria
monetária é retomado.
Para completar o quadro dos antecessores de Adam Smith, apresentaremos, na
última seção do capítulo, a escola fisiocrata.

OS FISIOCRATAS
Em meados do século XVIII aparece na França o primeiro grupo de pensadores de
questões econômicas organizado formalmente em escola. Eles intitulavam a si mesmos
de “economistas”, expressão não muito usual à época, mas vieram a se tornar conhecidos
como fisiocratas, adeptos da escola da fisiocracia. A raiz da palavra fisiocracia significa
“governo (ou regra) da natureza”, e revela um aspecto fundamental da crença que os une,
quer seja, a ideia de que a sociedade e a economia funcionam de acordo com uma ordem
natural. Todos os fatos sociais e econômicos estão intimamente ligados e sujeitos a leis

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inevitáveis. Sendo assim, tanto o governo quanto o setor privado devem, em suas ações,
entender e observar essas leis se desejam alcançar resultados ótimos. A ordem natural
da sociedade apresenta, portanto, o caráter de um modelo ideal, que não é estabelecido
na prática quando os homens criam obstáculos a seu bom funcionamento.
A natureza social é fruto do desígnio de Deus que a constrói estabelecendo entre
seus elementos relações matemáticas. Embora a fé religiosa possa revelar o conteúdo da
doutrina moral e política que rege a sociedade, o entendimento da esfera econômica
constrói-se com base na observação dos fatos e da articulação dos dados quantitativos
fornecidos pelos preços em um sistema de cálculo matemático. O trabalho do economista
consiste na observação metódica, bem como no arranjo e na organização dos fatos de
acordo com suas causas e na proposição de um sistema analítico em modelo teórico.
Assim, a ciência econômica copia o mesmo método das ciências físicas. Seu objetivo
precípuo é o de analisar a mecânica da interdependência das partes que compõem uma
totalidade. A vida econômica configura uma máquina semelhante a organismo vivo, e a
análise mecânica e matemática dela permite à teoria acompanhar seu modo de
funcionamento.
A preocupação dos fisiocratas consiste em identificar os princípios racionais que
regem a produção e a acumulação de riquezas, bem como a distribuição de renda e os
fluxos de gastos. No primeiro caso, enfatizam o processo de investimento produtivo,
pensado como adiantamento de capital de giro e emprego de capital fixo. No que tange à
geração de renda e de gastos, os fisiocratas descrevem um processo anual de interação
mútua entre classes sociais como um fluxo circular de renda e despesa. A compreensão
do fluxo é importante, pois identifica o âmago do funcionamento do sistema econômico
em analogia aos fluxos sanguíneos do organismo biológico. Os efeitos das políticas
intervencionistas podem ser antecipados pelo entendimento do organismo econômico.
A boa política deve procurar ampliar o fluxo circular, o que impulsiona o crescimento
econômico.
A produção e a distribuição de riquezas ocorre ao longo de um circuito composto
por diversos elos. A política econômica, ao afetar determinado elo, comunica um efeito à
economia como um todo. O fator-chave da atividade econômica é a agricultura. De fato,
na França do século XVIII a atividade agrícola era o setor mais importante. O método
capitalista de direção empresarial havia-se difundido mais na agricultura, que se
constitui assim no carro-chefe da economia francesa. Refletindo a organização do
trabalho vigente na França do período, os fisiocratas vão identificar na agricultura o setor
natural para a implementação dos métodos capitalistas, enquanto nas atividades
urbanas veem a estrutura tipicamente artesanal como a forma natural de gestão. O
capitalismo é um sistema de produção com base nas trocas de mercado que tem como
princípio de funcionamento a geração de excedente, sua aplicação produtiva e sua
ampliação.
O capitalismo pressupõe o direito de propriedade e em sua forma pura não admite
restrições a esse direito. No entanto, no plano da ordem natural os fisiocratas argumentam
que tal direito se deveria fundamentar no trabalho humano despendido. Nesse ponto, os
fisiocratas seguem John Locke na defesa dos direitos individuais e no uso deles para
justificar a propriedade privada. Também defendem a liberdade de mercado e acreditam que
o autointeresse individual esteja na base do funcionamento harmônico da economia. Os
fisiocratas combatem as medidas intervencionistas do governo e têm como máxima o
conhecido bordão laissez-faire, laissez-passer, que apela para a liberdade de produção
(permitam que façam!) e de comércio (deixai que passem!). A crítica ao controle da
autoridade não significa que os homens não tenham de se submeter a algum poder. No
entanto, tal poder, no caso, é a própria lei natural que se deve observar para a consecução
plena dos objetivos colimados.

72
O excedente é um conceito importante dos fisiocratas e significa a riqueza produzida
que não é consumida. Os fisiocratas acreditam que o excedente só ocorre na agricultura.
Sendo o capitalismo um sistema de geração de excedentes, somente na agricultura ocorre
a produção nos moldes capitalistas. Como este é o único setor que gera mais do que é
consumido no processo, ele é tido como o único segmento produtivo. A atividade
manufatureira apenas muda a forma dos bens. É claro que por seu concurso os bens
tornam-se mais úteis, entretanto, só a agricultura é capaz de criar riqueza adicional. O que
confere um status privilegiado à agricultura é a ação, exclusivamente nela, de forças
naturais que ocorrem no campo e que propiciam o crescimento do ser vivo: a planta que
se desenvolve, a árvore que floresce etc. O mesmo processo não é identificado na indústria.
O excedente é a apropriação destas benesses da natureza. Toda a fonte da riqueza advém
do excedente, só ele contribui para a formação do produto líquido (a produção que
ultrapassa o consumo no período).
A escola fisiocrata era formada por um grupo heterogêneo de autores, dentre eles
destacam-se:
1. Jacques Turgot: secretário de finanças de Luís XVI, autor de reformas de
inspiração liberal e propagandista da teoria do direito natural. Muitos não o
consideram fisiocrata, mas somente um simpatizante do movimento. Turgot
destaca-se na análise do valor.
2. Marquês de Mirabeau: que cunhou, como vimos, a expressão mercantilismo.
3. Mercier de la Rivière: uma das principais figuras, com farta reflexão em filo-
sofia política.
4. Du Pont de Nemours: migrou para os Estados Unidos e ajudou a difundir as
ideias fisiocratas por lá.
5. François Le Trosne: jurista e economista, o mais jovem do grupo. Desenvolve
em seus escritos uma análise do valor em que considera fatores como
utilidade, despesas na produção, raridade do bem e concorrência.
6. Nicolas Baudeau: editor-chefe do jornal dos fisiocratas.
7. François Quesnay: o líder do movimento. Médico da corte de Madame de
Pompadour e Luís XV. Conheceu Smith pessoalmente e influenciou-o com
sua visão do processo econômico. A sua obra Quadro econômico é a mais
conhecida da escola fisiocrata.
A contribuição dos fisiocratas insere-se nas críticas, muito em voga na época, contra
a política econômica de Luís XV. Impostos opressivos eram cobrados da população para
financiar os gastos extravagantes da corte e o envolvimento em guerras que trouxeram
consequências desastrosas para o tesouro francês. No entanto, os nobres e os membros
do clero beneficiavam-se de isenções fiscais, embora fossem donos de dois terços das
terras. Os fisiocratas reagiam a esse estado de coisas. Acreditavam que o receituário de
medidas mercantilistas levaria à ruína do reino. As políticas para estimular as
exportações resultaram no encolhimento do mercado interno, dos salários e da renda
gerada na economia. A produção agrícola sofria com os impostos abusivos e, mais grave,
os impostos afetavam o crescimento econômico por impedir a acumulação de capital.
A obra que melhor sistematizou a nova visão da economia e que serviria como guia
científico para a reforma econômica foi o Quadro econômico (“Tableau Économique”)
de Quesnay. Ele percebeu que uma compreensão do processo de interação entre as
classes sociais por meio de fluxos de renda e despesas seria fundamental para se
restaurar a política econômica. Ele concebe a sociedade por meio de três classes
socioeconômicas:

73
1. Classe produtiva, formada basicamente por agricultores, mas que poderia
incluir também pescadores e mineradores.
2. Classe estéril, em que participam manufatureiros, mercadores, servos e
profissionais liberais.
3. Proprietários de terra e de outros bens.
Alguns comentadores atribuem a Quesnay a primeira proposta de se pensar a economia
em termos de classes sociais e fluxos de renda entre elas, mas já vimos que antes dele este
enfoque aparece em Cantillon, embora no Quadro econômico ele esteja mais bem
desenvolvido.
Quesnay oferece uma complicada tabela numérica na qual traça em zigue-zague os
fluxos de renda e despesa agregadas entre as classes. O fluxo circular da economia,
representado por ela, mostra como as despesas de um setor geram as receitas de outros,
dentro de um modelo fechado e estático. A origem das despesas é a renda recebida pelos
senhores de terra. Tal renda é o produto líquido do período anterior pago no início do
novo período pelos fazendeiros. A renda total que emana dos fazendeiros movimenta a
atividade econômica das três classes ao longo do período, e no final retorna a eles. A cada
período o processo se repete. Exemplificando, suponhamos que o produto total da
economia no fim do período produtivo anual seja de cinco unidades monetárias que se
encontram inicialmente nas mãos da classe produtiva. O excedente sobre os custos
necessários para essa produção é o produto líquido que é transferido para o pagamento
de aluguel. Assim, duas unidades monetárias são canalizadas integralmente aos
proprietários. O período seguinte começa com os proprietários gastando o que têm,
comprando $ 1 de manufaturas da classe estéril e $ 1 dos mesmos fazendeiros na
aquisição de alimentos. Os fazendeiros adquirem $ 1 de manufaturas da classe estéril e
$ 2 de alimentos deles mesmos. Os artesãos e outros membros da classe estéril gastam o
rendimento adquirido no período comprando $ 1 de alimentos e $ 1 de matérias-primas
dos fazendeiros. Destarte, as cinco unidades monetárias iniciais retornam à classe
produtiva no fim do período, como demonstra a Figura 4.1, na qual estão representados
os vários fluxos de rendas e despesas anuais.
No diagrama, as setas contínuas representam as despesas da classe produtiva e as
setas pontilhadas indicam as receitas. Percebe-se facilmente que os cinco de despesas
transformam-se integralmente em receitas, restabelecendo-se a mesma condição do
início do período. O esquema traçado no quadro de Quesnay não apenas mostra como as
condições iniciais são reproduzidas, pois, além disso, indica também as condições reque-
ridas para o crescimento econômico. A fim de manter a economia no mesmo nível de
produção, são necessários gastos de capital chamados de adiantamentos. Quesnay fala
em quatro tipos de adiantamentos:
1. Adiantamentos anuais (avances annuelles): o capital de giro da produção
agrícola.
2. Adiantamentos primitivos (avances primitives): para a reposição das ferra-
mentas agrícolas.
3. Adiantamentos em melhorias permanentes (avances fonciéres).
4. Adiantamentos para o capital fixo social aplicado pelo governo em estradas,
canais, portos etc. (avances souveraines).
Para o fazendeiro, importa principalmente os adiantamentos anuais e primitivos.
Se houver uma queda deles, a produção não poderá sustentar-se no nível anterior.
Portanto, a descrição dos fluxos econômicos no quadro também considera os
adiantamentos. Quesnay parte da hipótese de que o adiantamento anual é feito pela
classe produtiva e o adiantamento primitivo pela classe estéril.

74
Figura 4.1 Diagrama dos fluxos de rendas e despesas identificadas por Quesnay.

Podemos transmitir uma noção do quadro econômico dos fluxos entre as classes
sociais sem apresentá-lo como em Quesnay, evitando-se assim uma construção
demasiado complexa, mas retendo aspectos essenciais de sua representação. Para tanto,
construiremos a seguir dois quadros bastante simples, um para o fluxo monetário e outro
para o fluxo real das mercadorias.
No lado real, trabalha-se com alguns números meramente hipotéticos: três
unidades físicas de mercadorias na classe produtiva e três unidades retidas pela classe
estéril. As três unidades da classe produtiva correspondem ao adiantamento anual,
composto de uma unidade de alimento e uma de manufatura, destinadas ao sustento dos
trabalhadores, e uma de matéria-prima para a produção. Das três unidades da classe
estéril, uma delas será cedida à classe produtiva como adiantamento primitivo, trata-se
de matéria-prima. O adiantamento primitivo é feito no começo do período pela classe
estéril e serve para repor o capital fixo que se depreciará no período. As duas unidades
de mercadorias que permanecem na classe estéril são constituídas por alimento, para os
trabalhadores do setor, e matéria-prima, para a produção de mercadoria (os
trabalhadores da classe estéril não demandam manufatura, apenas como hipótese sim-
plificadora).
No final do período de produção, a agricultura gera três unidades de alimentos e
três de matérias-primas. Como para a produção final dessas seis unidades foram reque-
ridas três de adiantamento anual e uma unidade de adiantamento primitivo, estamos
considerando o produto líquido do setor igual a dois. A classe agrícola retém, ao final, o
produto líquido de uma unidade de alimento e uma de matéria-prima.
Os fluxos das transações com mercadorias ao longo do período produtivo
reproduzem as condições iniciais. As duas unidades que correspondem ao produto líqui-
do são transferidas para os proprietários. Estes retêm uma unidade de alimento para
consumo e trocam a outra por uma unidade de manufatura. Depois, a classe produtiva
troca uma unidade de alimento por uma de manufatura com a classe estéril. Como a
classe agrícola cedeu duas de alimentos e uma unidade de matéria-prima, ainda lhe
restam da produção uma unidade de alimento e duas de matérias-primas, já que tinha

75
produzido três unidades de alimentos e três de matérias-primas. Falta ainda considerar
que uma unidade de matéria-prima pertence, na verdade, à classe estéril que foi
responsável pelo adiantamento primitivo. Assim, em última instância as condições
iniciais do problema estão reproduzidas ao fim destes movimentos. O Quadro 4.1,
diferente do quadro de Quesnay, facilita bastante acompanhar o raciocínio anterior, mas
não se assemelha aos quadros em ziguezague do francês.

Quadro 4.1 Fluxos reais.


Quadro dos Fluxos Reais

Classe produtiva Proprietários Classe estéril


Dotação inicial 3 (1a,1mp,1m) 0 3 (1a,2mp)
Adiantamentos 4 (1a,2mp,1m) 0 - 1 (mp)
Produção 6 (3a,3mp) 0 2 (m)
Transferências 2 (1a,1mp)
1 (mp)
1 (m)
1 (m)
1 (a)
1(mp)
Dotação Final 3 (1a,1mp,1m) 0 3 (1a,2mp)
a : alimento
mp : matéria prima
m : manufatura

Essa descrição simplificada dos fluxos reais no quadro de Quesnay pode ser comple-
mentada com os fluxos monetários. Trabalha-se com a hipótese de que as transações
possam ser sancionadas por duas unidades monetárias em mãos inicialmente da classe
agrícola. A seguir representamos os fluxos monetários em um novo quadro. A classe
produtiva paga $ 2 de aluguéis aos proprietários que compram $ 1 de manufaturas e $ 1
de alimentos. A classe estéril, por sua vez, compra $ 1 de alimentos. A classe agrícola usa
este montante para comprar $ 1 de manufaturas e finalmente a classe estéril compra $ 1
de matérias-primas junto à classe agrícola. A última linha do Quadro 4.2 mostra que a
classe produtiva termina com os mesmos $ 2 que possuía no início.
A classe estéril recebe uma unidade de matéria-prima em troca de uma unidade dela
em adiantamento. Assim, ela não recebe juros pelo adiantamento. O quadro de Quesnay,
portanto, não contempla o pagamento de juros. Juros em sua terminologia é tão somente
a restituição do principal do montante emprestado.
No processo de acumulação, o nível de renda da economia eleva-se desde que sejam
propiciados maiores adiantamentos à produção. Assim, o fenômeno do crescimento
econômico é ocasionado por investimentos crescentes. Crescimento implica acumulação
de capital produtivo. Tal interpretação leva Quesnay a advogar a favor de todo tipo de
política que estimule a acumulação. A ênfase recai na aplicação do capital na agricultura.
É necessário ainda não prejudicar a agricultura com taxas que incidam sobre o produtor.
Deve-se taxar, preferencialmente, os proprietários de terra, pois eles destinam o produto
líquido basicamente ao consumo. Contudo, Quesnay não é inimigo do proprietário de
terra. Pelo contrário, ele mostra-se um grande defensor da propriedade privada. Na
verdade, o proprietário não é apenas a figura do consumidor, já que são eles os
responsáveis pelos avances fonciéres que produzem melhorias permanentes nas terras.
Quesnay acreditava que os proprietários de terra seriam depois recompensados pelo

76
aumento de impostos, pois a adoção das políticas que recomenda levaria, no futuro, a um
aumento na renda da terra que mais do que compensaria a carga tributária adicional.

Quadro 4.2 Representação dos fluxos monetários.


Quadro dos Fluxos Monetários

Classe produtiva Proprietários Classe estéril


Dotação inicial $2 0 0
Transferências $2
m $1
$1 a
$1 a
m $1
$1 mp
Dotação Final $2 0 0
a : alimento
mp : matéria prima
m : manufatura

A elevação da renda da terra viria com a liberdade de comércio e com as políticas de


estímulo ao investimento agrícola. O efeito da acumulação de capital seria a intensi-
ficação do fluxo circular, o aumento da demanda por bens agrícolas e o consequente
aumento da renda agrária.
As medidas econômicas apregoadas pelos fisiocratas tiveram algum prestígio na
França, mas com o tempo sua importância declinou rapidamente. O sistema teórico dos
fisiocratas tinha grande mérito, mas também apresentava falha gritante. Na avaliação
deste, aparece como importante contribuição o conceito de excedente e adiantamento, e
ainda a noção correta de que o crescimento econômico dependeria do volume de
investimentos em cada período. Outrossim, a ideia de que a carga fiscal deveria penalizar
menos a produção e mais o consumo dos proprietários mostrou-se adequada para a
época. Outras medidas que visavam estimular a produção também se mostraram
corretas, como o teto legal dos juros, o fim das restrições à circulação de mercadorias e
outras. Por outro lado, pode-se destacar algumas falhas na análise fisiocrata que seriam
sanadas com a evolução da economia científica.
Embora a questão do valor fosse objeto de análise de fisiocratas como Turgot e Le
Trosne, o próprio Quesnay não propôs nenhuma teoria do valor. Em consequência, seu
sistema teórico não atacou satisfatoriamente o problema da avaliação do excedente. O
resultado da produção era comparado aos insumos apenas em termos físicos. Por vezes,
o valor monetário do produto líquido era calculado simplesmente com base nos preços
de mercado. Na ausência de uma teoria do valor consistente em Quesnay, o excedente
não era de fato explicado. Isso foi claramente percebido por Adam Smith que tratou de
desenvolver uma teoria do valor antes de esquematizar uma teoria do crescimento
apoiada na acumulação de capital à la Quesnay.
Quesnay não incorporou em seu sistema a existência de juros e nem um papel para
o lucro dos capitais. Se o excedente gerado com base nas inversões de capitais pertence
ao proprietário de terra, não se identifica a razão para o fazendeiro investir. Além das
deficiências conceituais, a teoria dos fisiocratas era repleta de considerações normativas.
Eles achavam que só a agricultura era produtiva, pois, nessa visão, somente a produti-
vidade da terra explica a formação do excedente. Ora, sabemos que na indústria também
participam processos naturais, por exemplo, o ar permite que a pintura de uma peça

77
seque, a ação da eletricidade possibilita a reação química etc. De fato, nos processos
industriais também ocorrem mudanças qualitativas e quantitativas dos insumos. Isto
não é prerrogativa apenas da agricultura. Os fisiocratas consideram que a atividade
industrial cria utilidades, mas, mesmo assim, não seriam produtivas. No entanto, se as
novas utilidades acrescentam valor à mercadoria, também aí se pode falar em geração de
excedente e a atividade industrial seria produtiva. Outro argumento criticável leva em
conta a formação de preços nos mercados. Se há algum grau de monopólio, mesmo a
longo prazo, os preços ficam acima do custo marginal, como nos ensina a teoria
microeconômica atual. Haveria um excedente de produção sempre que se verifique um
grau de monopólio, não importando tratar-se de atividade agrícola ou manufatureira.
A concepção do sistema econômico como uma ordem complexa, em que se verifica
um amplo processo de interação entre as partes constituintes em analogia a um corpo
humano, é um importante preceito da análise fisiocrata. No mais, ele confirma a
tendência do século XVIII de reconhecer uma ordem natural subjacente aos fenômenos
econômicos. A par de suas limitações analíticas, a influência fisiocrata foi decisiva em
Adam Smith, de modo que podemos localizar também nessa escola o berço da economia
científica.

78
Questões

1. Comente alguns dos problemas práticos trazidos pela expansão do comércio no


século XVI. Por que a física de Aristóteles se mostrou inapropriada na solução deles
e qual a relação entre as inovações tecnológicas e o desenvolvimento dessa ciência?
2. Até que ponto é correto afirmar que a ciência de Aristóteles não dava a devida
atenção à experiência prática?
3. Por que no desenvolvimento da ciência as ideias sobre a existência ou não do vácuo
tiveram um papel importante?
4. O que há de importante na teoria política de Maquiavel?
5. Compare entre si os métodos científicos de Bacon, Descartes e Newton.
6. O empirismo de Bacon pode ser considerado ingênuo?
7. Qual o significado da expressão “penso, logo existo” de Descartes?
8. Comente a seguinte passagem deste capítulo: “Isaac Newton inaugurou um estilo
intermediário entre a tradição aristotélica e o empirismo baconiano.”
9. Em que diferem as ideias de Hobbes e Locke quanto à origem da sociedade?
10. A explicação do valor em Locke é a mesma de William Petty? Justifique.
11. Qual o significado do advento do individualismo a partir do século XVII? É possível
relacioná-lo com as novas concepções religiosas da época?
12. Que ideia do processo social Mandeville expressa em sua Fábula das abelhas?
13. Resuma a reforma monetária proposta por Boisguillebert.
14. Explique como, na interpretação de Cantillon, os preços de mercado aproximam-se
dos valores intrínsecos pela ação do mecanismo de mercado.
15. Assinale os elementos mais inovadores da teoria monetária de Cantillon.
16. De que modo Quesnay descreve a mecânica de interdependência dos setores da
sociedade no Quadro econômico? Mostre como as despesas de um setor geram as
receitas em outros setores ao longo de um período e como o processo reproduz-se
no período seguinte. Por que para Quesnay o setor agrícola é a única classe produti-
va?
17. Como é possível a medida do excedente, no modelo de Quesnay, sem uma teoria do
valor. Quais as hipóteses adotadas por esse autor que permitem a ele efetuar tal
medida?
18. O que leva, para Quesnay, ao aumento do excedente agrícola? E por que se diz que
ele foi o primeiro a conceber uma teoria do crescimento nos moldes da economia
clássica?
19. Quesnay era contra os interesses dos proprietários de terra? Justifique.
20. Quais as maiores deficiências na teoria de Quesnay que seriam depois sanadas com
o desenvolvimento da economia clássica?

79
Leitura Adicional

Literatura Primária

ARISTÓTELES. Organon, livro IV: analíticos posteriores. Lisboa: Guimarães Editores,


1987. Itens 1 a 10, p. 9-42. (Filosofia e Ensaios.)

BACON, Francis. Novum Organum: ou verdadeiras indicações acerca da interpretação


da natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1993. (Os Pensadores.) v. 13.

CANTILLON, Richard. Essay on the nature of commerce. The history of economic


thought. <http://www.cepa.newschool.edu>

DESCARTES, René. Discurso sobre o método. Bauru: Edipro, 1996.

HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria e poder de um estado eclesiástico e civil. Lisboa:


Imprensa Nacional: Casa da Moeda, 1999.

MAQUIAVEL, Nicolau. Príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

NEWTON, Isaac. Princípios matemáticos da filosofia natural. São Paulo: Nova Cultural,
1996.

QUESNAY, François. Quadro econômico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian [s.d.].

Literatura Secundária

BIANCHI, Ana Maria. A pré-história da economia: de Maquiavel a Adam Smith. São


Paulo: Hucitec, 1988.

DEANE, Phillis. A evolução das ideias econômicas. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

EKELUND JR., Robert; HÉBERT, Robert F. A history of economic theory and method. New
York: McGraw-Hill, 1990.

HANEY, Lewis H. History of economic thought: a critical account of the origin and
development of the economic theories of the leading thinkers in the leading nations.
New York: Macmillan, 1949.

HEILBRONER, Robert. A história do pensamento econômico. São Paulo: Nova Cultural,


1996.

NAPOLEONI, Claudio. Smith, Ricardo, Marx. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

HESSEN, Boris. As ideias sociais e econômicas dos “principia” de Newton. Revista


Brasileira de Física, v. 6, 1, 1984.

RANDALL, J. H. Aristotle. New York: Columbia University Press, 1960.

ROSA, Luis Pinguelli. A dinâmica de Aristóteles e a estática de Arquimedes: versão


preliminar. São Paulo: Instituto de Física da Universidade de São Paulo [s.d.]. Mimeo.

SCHENBERG, Mário. Pensando a física. São Paulo: Brasiliense, 1983.

80
5
Adam Smith

TEORIA MORAL E FILOSOFIA DA CIÊNCIA


É pelo fato de a visão preponderante da economia no século XVIII ter caminhado
firmemente em direção à ideia de ordem natural que os avanços na física e nas demais
ciências naturais são bastante relevantes na emergência da economia como ciência. Os
economistas buscam deliberadamente imitar o método da física, já que acreditam
também tratar a ciência econômica de fenômenos naturais. Não é mera coincidência que
o campo social tenha atraído médicos como François Quesnay e homens com sólida for-
mação em ciência natural como Adam Smith.
No fim dos setecentos, Boisguillebert crê que a vida econômica é governada por
mecanismos naturais. No começo do século em questão, a influência newtoniana faz-se
presente na obra de Richard Cantillon, que pensa a economia como Newton pensou o
cosmos: uma totalidade composta por elementos interconectados com funcionamento
racional. O método newtoniano também teve grande influência na obra de Smith.
Embora Adam Smith (1723-1790) seja considerado o pai da economia política,
sabemos hoje que boa parte de suas ideias já estava presente em autores antecedentes
como Quesnay e Cantillon. O esforço analítico de Smith deve-se muito a esses e outros
autores do século XVIII, por fornecerem elementos que irão compor sua visão. Ele
destacou-se pelo tratamento sistemático das principais questões econômicas da época
em um único tratado. A qualidade literária e a pretensão didática de seu trabalho é
evidente. Há em sua principal obra em economia, A riqueza das nações, inúmeras
considerações históricas inéditas e até alguns procedimentos originais no tratamento
teórico. O mérito de Smith recai, no entanto, mais em seu poder de síntese do que na
originalidade de seu sistema teórico.
Antes de expor, em outra parte, as ideias-mestras de seu pensamento econômico,
esta seção trata de suas concepções no campo da ética e da filosofia da ciência. O estudo
da filosofia de Smith dificilmente seria apoiado apenas na leitura de A riqueza das
nações. É que ele não explicita nela seus pressupostos filosóficos e metodológicos. Mais
revelador nesse sentido é o ensaio smithiano cujo título já revela seu conteúdo: Os
princípios que guiam e conduzem a investigação científica ilustrados pela história da
astronomia. Smith escreveu esse ensaio ainda muito jovem, entre 1746 e 1748, com
pouco mais de 20 anos de idade, embora ele só tenha aparecido ao público 19 anos depois
da publicação de A riqueza das nações, obra da sua fase madura. O estudo do método de
Smith com base em ensaio de início de carreira pressupõe, é claro, a tese de que ele tenha
mantido uma continuidade de visão ao longo da vida. Hipótese aceita pela maioria dos
estudiosos.
Sabemos que ele era muito culto, que lera e escrevera em diversas áreas. Quando
ainda jovem, foi enviado a Oxford para estudar; ao chegar lá não teve orientação precisa
nos estudos e, em consequência, acabou dispersando o foco de interesse em diversas
áreas do conhecimento. Com poucos compromissos formais, passava o dia na biblioteca
da faculdade de Balliol, ligada à Universidade de Oxford, em contato com os principais

81
clássicos gregos e latinos e com a literatura científica da época, incluindo-se as obras de
Newton, Bacon e Descartes. Depois, Smith viria a escrever textos em diversas áreas
incluindo filosofia moral e estudos de linguística, bem como tratados de estética, arte,
literatura e metodologia da ciência. O ensaio História da astronomia mostra claramente
a influência do método newtoniano. Como Newton, Smith não acredita que o
conhecimento científico possua um substrato ontológico verdadeiro. A teoria científica
não representa a apreensão da verdade última das coisas como em Aristóteles. Destarte,
a atividade científica justifica-se como uma necessidade psicológica para o cientista, ou
filósofo, como Smith referia-se a ele.
O fim último da filosofia (ou ciência) é o repouso e a tranquilidade da imaginação
do filósofo. Entretanto, nem todos os homens são filósofos. Estes surgem apenas em
sociedades evoluídas, estáveis e seguras, nas quais já se nota certa divisão de trabalhos
de modo a liberar determinados indivíduos da preocupação com o sustento material. Tais
pessoas são treinadas a pensarem sobre a natureza e têm suas mentes especialmente
condicionadas para o desenvolvimento de certos sentimentos que conduzem a uma
reflexão filosófica das coisas. Os filósofos possuem mentes sensíveis e irrequietas,
movidas por uma mecânica que os compele à busca de prazer associado ao
apaziguamento da imaginação. Enquanto a imaginação do homem comum é indolente e
preguiçosa, a do homem educado é curiosa. Ela só encontra tranquilidade quando
descobre os elos invisíveis entre dois fenômenos aparentes. Assim, os filósofos são
mentes curiosas que procuram as cadeias ocultas dos fenômenos. O homem comum,
como um artesão, contenta-se com as aparências e nunca percebe a existência dos elos
ocultos entre os fenômenos. A causa da investigação científica é a busca de uma ponte
entre as aparências, mas tal ponte não precisa ser verdadeira ou mesmo provável; basta
que ela funcione para apaziguar os sentimentos.
Smith analisa o funcionamento da mente do filósofo pelo exame de três sentimentos
que ocorrem sempre na mesma sequência: a surpresa, o espanto e a admiração. Essa
descrição da mente humana com base na mecânica de sentimentos psicológicos lembra
René Descartes, que em seu Tratado das paixões da alma aplicou os métodos da física a
fatos humanos. Nele, Descartes discorre sobre o processo de descoberta científica como
sendo movido pela ação de uma paixão fundamental a que denomina admiratio. Smith
também descreve um mecanismo psicológico para a descoberta científica. Ambos não
pretendem adotar um modelo mecânico que aproxime a mente da máquina. Mesmo
Descartes não segue modelo rigorosamente mecânico da mente, premido pelas tensões
de certo “dualismo metafísico” que consiste em separar a mente das várias diferentes
substâncias que preenchem todos os corpos, de modo que ela jamais possa ser explicada
como um sistema físico. Fora a semelhança na descrição do funcionamento da mente, a
teoria de Smith, de fato, não se confunde com a de Descartes, distinguindo-se
principalmente na questão do método. Não aderindo ao racionalismo cartesiano, Smith
dava muita importância aos dados dos sentidos e às observações dos fenômenos; mais
próximo, portanto, da tradição de Bacon e Locke.
Embora a observação empírica tenha um grande valor em Smith, o critério decisivo
para a emergência de novas teorias é a ação dos três sentimentos já citados.
Primeiramente, a ocorrência de um fato inesperado, que já sabíamos existir, mas que não
esperávamos encontrá-lo no momento em que ocorreu, desperta no filósofo o sentimento
de surpresa:
“Ficamos surpresos com aquelas coisas que temos visto com frequência, mas
que de modo algum esperamos encontrar no lugar onde efetivamente as
encontramos [...]” (Adam Smith, A história da astronomia)

82
Tomado pela surpresa, o filósofo passa a preocupar-se com o fenômeno e descobre
nele aspectos novos e singulares. A novidade desperta o sentimento de espanto, um
estado extremo em que a mente é tomada por fortes inquietações.
“Espantamo-nos com todos os objetos extraordinários e incomuns; com todos
os fenômenos raros na natureza, com meteoros, cometas, eclipses; com plantas e
animais singulares e com todas as coisas, em suma, sobre as quais tenhamos tido
pouca ou nenhuma informação anterior [...]” (ibidem)
A busca do restabelecimento da tranquilidade mental leva à proposição de um novo
sistema explicativo que dê conta do fenômeno inusitado. As aparências, até então
estranhas e desconexas, são integradas como consequência lógica de uma nova
construção explicativa. Destarte, a mente volta a repousar em sua tranquilidade e o novo
sistema desperta o sentimento de admiração. A admiração é estimulada por grandeza e
beleza do quadro contemplado pela nova teoria. Quanto maior esse sentimento, mais se
podem julgar a teoria alternativa e os resultados da investigação como melhores que na
explicação anterior.
Os sentimentos não apenas se sucedem na ordem em que os colocamos, eles ainda
influenciam uns aos outros:
“Surpresa de prazer quando a mente está afundada em mágoa ou surpresa de
mágoa quando ela está exaltada de alegria são desta forma as mais insuportáveis
[...] Não somente a aflição e a alegria, mas todas as outras paixões são mais
violentas quando os extremos opostos se sucedem uns aos outros [...] Até mesmo
os objetos externos para os sentidos afetam-nos de uma maneira mais vívida
quando os máximos de opostos se sucedem ou são postos lado a lado. Um frescor
moderado pareceria um calor insuportável se sentido após um frio extremo.”
(ibidem)
Smith explica que o sentimento de espanto se torna menos intenso conforme o
evento original, que o originou, repete-se e o observador a ele vai habituando-se,
diminuindo assim a novidade:
“Um pai que perdeu muitos filhos imediatamente um após o outro será menos
afetado com a morte do último do que com a do primeiro, embora a perda em si
seja neste caso indubitavelmente maior [...]” (ibidem)
O ensaio smithiano A história da astronomia consiste em aplicar a dinâmica dos
sentimentos assim identificados na explicação de como os sistemas astronômicos foram,
desde a Antiguidade, sucedendo-se uns aos outros. Temos o antigo sistema grego,
substituído por Ptolomeu, Copérnico, Tycho Brahe, Kepler e Newton. Cada sistema, uma
vez proposto, vai tornando-se mais complexo para salvar as aparências. Até que já não
consegue mais tranquilizar a imaginação como antes. O sentimento de espanto leva os
astrônomos a propor novo modelo. As teorias astronômicas são ficções para tranquilizar
a imaginação.
A principal influência exercida sobre Smith em sua abordagem da história da
astronomia advém de David Hume. A teoria do conhecimento de Hume, apresentada no
Tratado da natureza humana de 1739, também analisa o funcionamento da mente no
processo de aquisição de conhecimento. Hume discorre sobre as paixões e caracteriza a
mente humana como uma máquina psicológica complexa. Ao contrário de Descartes,
Hume acredita que as ideias não são inatas e que o trabalho do intelecto consiste em
relacionar fatos assimilados pelos sentidos e pela experiência. As assertivas sobre as
propriedades reais dos objetos externos não podem ser demonstradas verdadeiras.
Hume é céptico com relação às pretensões do empirismo baconiano em obter a verdade
das coisas da observação de fatos. Lança então o famoso “problema de Hume” que
contesta a possibilidade de firmar a certeza de uma lei universal. É suficiente para a

83
ciência propor enunciados respaldados no que a observação veio a transformar em
hábito. Admite-se, portanto, a inevitabilidade da ignorância humana em conhecer o
âmago das coisas. Isso é próximo ao método newtoniano.
Smith nutria grande admiração por Hume e é certo que foi do programa deste que
ele segue a estratégia de entender a empresa científica com base em considerações sobre
a natureza humana, sob a hipótese de que tal natureza seria única, mesmo entre homens
separados no tempo e no espaço. Hume, antes de Smith, destaca o papel da imaginação
na teoria do conhecimento.
O método newtoniano, que influenciou Hume e Smith, consiste na busca de
princípios que possibilitam identificar uma ordem subjacente a fenômenos
aparentemente caóticos. Os princípios em si mesmos não precisam ser verdadeiros, mas
funcionam como uma convenção psicológica que permite salvar as aparências e com isso
tranquilizar a imaginação.
Curiosamente o próprio Newton preocupou-se, em certo momento de sua vida, com
questões econômicas. Ele foi diretor da Casa da Moeda da Inglaterra em 1717 e deve-se a
ele a primeira tentativa de estabelecer um preço oficial para o ouro em 85 xelins por onça.
Smith leu muito do que escrevera Newton e na História da astronomia conclui o ensaio
com uma descrição entusiasmada das descobertas da física newtoniana. Smith gostava
de matemática e de “filosofia natural”. Newton e Smith compartilham o mesmo método
de raciocinar em ciência, que toma os princípios elaborados pela intuição e apoiados na
indução de fenômenos e depois, com base neles, deduz novos fenômenos. Ambos
mantêm o ceticismo quanto ao realismo das premissas. Newton sempre trabalha da
mesma maneira: antes da apresentação da teoria lista fenômenos já conhecidos,
conforme se constata diversas vezes nas partes iniciais em cada um dos livros que
compõem os Princípios. Os fenômenos justificam a proposição de princípios teóricos dos
quais são deduzidos novos fenômenos. A natureza última dos princípios não importa,
nem seu conteúdo de verdade. Sobre a força da gravidade, Newton afirma que:
“Para nós é suficiente que a gravidade atue de acordo com as leis que nós temos
explicado e sirva, com sucesso, para dar conta de todos os movimentos dos corpos
celestes e do mar.” (Isaac Newton, Princípios matemáticos da filosofia natural)
Em analogia às leis gerais dos movimentos dos corpos na física, Smith concebe leis
gerais na economia. Na Riqueza das nações, começa dizendo que a divisão do trabalho é
o resultado necessário da propensão humana a trocar uma coisa por outra. A propensão
humana à troca é pensada como um princípio que, ao ser desdobrado em suas
consequências pela teoria, irá explicar a causa da riqueza das nações. Tal princípio econô-
mico deve ser pensado como uma lei natural. No entanto, Smith não se propõe a
determinar se a propensão à troca é, ela mesma, um princípio original da natureza
humana ou se é uma consequência das faculdades da razão e da fala. Conclui Smith
dizendo que essa questão “não pertence ao presente objeto de estudo”. Nenhuma
tentativa de provar a veracidade do princípio em questão é feita por Smith, pois, no
espírito do método newtoniano, é necessário tão somente postular sua existência e
demonstrar como sua articulação no modelo teórico conduz a conclusões que dão conta
de explicar a realidade aparente.
Em suma, o método comum em Newton e Smith pode ser sintetizado da seguinte
forma: começa-se com um princípio, ou poucos princípios básicos, que são inferidos no
processo de explicação de casos mais ou menos triviais. Em seguida, tenta-se explicar o
mundo dos fatos observáveis, buscando-se mostrar como esses fatos são derivados
desses princípios. Os eventos são classificados (na Riqueza das nações as várias formas
de remuneração dos agentes são classificadas em salários, lucro e renda) e as classes de
eventos são vistas como resultado do jogo de princípios. A teoria procura elaborar um
sistema no interior do qual operam os princípios elementares, de tal forma que fenôme-

84
nos que pareciam os mais inexplicáveis são todos deduzidos com base nos princípios e
atados a uma única cadeia. A teoria é julgada pelo poder preditivo, em adição conta
também elementos estéticos tais como simplicidade, coerência e beleza. Em todo caso,
ela é sempre uma invenção de uma imaginação particular que poderá eventualmente
também cativar a imaginação dos demais.
Em seu nascimento como ciência, o fenômeno econômico é pensado como uma
ordem natural tratada pelos mesmos métodos da física. Isso, como vimos, já está bem
sedimentado mesmo entre os precursores de Smith. A construção teórica do sistema, no
entanto, requer a especificação de hipóteses comportamentais dos agentes. O modelo
parte da ideia de indivíduos autointeressados. Ora, vimos no capítulo anterior que os
filósofos éticos ingleses procuram conciliar essa premissa com as qualidades morais que
acreditam existir na espécie humana. A solução proposta por eles enfraquece a hipótese
exclusiva do egoísmo, pois veem a conduta humana como resultante de um jogo de
paixões egoístas e altruístas.
Vejamos a questão ética em Smith. Primeiramente há de se notar certa continuidade
entre a filosofia moral de Smith e a de seu antigo professor em Glasgow, Francis
Hutcheson (1694-1746), também entre Smith e David Hume, de quem desfruta de íntima
amizade. Hutcheson segue a filosofia do direito natural, na linha de Locke, e acredita que
o homem é naturalmente dotado de um senso moral. Os homens possuem paixões
altruístas, mas também egoístas e elas são reconciliadas, na determinação da conduta
humana, pela intervenção de um senso de autoestima que atenua a propensão individual
para ações egoístas. Hume fala que a correção moral da conduta humana depende de
julgamentos que nós e os outros fazem de nossas ações. A moral humeana aproxima-se
das outras concepções da época por ser, também ela, teleológica. No caso, porém, os
efeitos repercutidos da ação ou os fins decorrentes dependem, se ela for um bem moral,
da aprovação dela não só da parte de quem a pratica, mas por todos os demais. A
importância do julgamento de terceiros é expressa em um sentimento a que denomina
de “simpatia”.
Smith, em seu sistema ético, confere papel primordial ao sentimento de simpatia.
Em seu famoso livro de 1749, a Teoria dos sentimentos morais, começa descrevendo o
homem como uma criatura dotada de um conjunto de propensões básicas a que
denomina de paixões. Há as paixões do amor sensual e paterno e outras não tão
agradáveis como o ódio e o ressentimento. Há ainda uma lista de boas paixões a que
denomina de paixões sociais, tais como a generosidade, a compaixão e a amizade. Há
também espaço para as paixões egoístas. As paixões tendem a contrapor-se e a
equilibrar-se em um balanço estável feito em cada um de nós. O equilíbrio das paixões
internamente se reproduz no plano social, suposto um sistema em harmonia. O controle
particular das paixões é compelido em cada homem pelo princípio da simpatia, já
presente na teoria moral de Hume. Quando percebemos a desaprovação de nossas
condutas, isso desencadeia sentimentos desagradáveis que procuramos eliminar
corrigindo a conduta de modo a atrair para nós sentimentos de aprovação. O homem
virtuoso observa o juízo que os outros fazem dele e está a ajustar constantemente seu
comportamento de modo a vir a “ocupar um lugar de honra na mente do semelhante”.
Quando Smith descreve a mecânica dos mercados que move o sistema econômico
na Riqueza das nações, apresenta os homens como sendo impulsionados a todo
momento por um cálculo egoísta de maximização de riqueza. Esse aparente paradoxo
entre o agente egoísta da Riqueza das nações e o homem ético da Teoria dos sentimentos
morais aparece na literatura como o “problema de Adam Smith”. Não cabe aqui uma
discussão prolongada dessa questão. Parece que há, hoje em dia, uma opinião
amplamente aceita de que não se trata de uma contradição de uma obra com outra. A
maneira de reconciliar os dois enfoques é notar a distinção estabelecida por Smith entre
as motivações e os efeitos concretos das condutas humanas. No plano abstrato da teoria

85
moral, o mérito da ação é julgado pela intenção do agente, no entanto, nas circunstâncias
concretas da sociedade, as consequências efetivas da ação exercem uma poderosa
influência no julgamento da ação. A condutas que produzem prazer são avaliadas
independentemente das intenções originais. A busca exclusiva da riqueza, por exemplo,
embora não tenha mérito intrínseco, produz o feito de angariar aprovação dos demais
pelos efeitos benéficos que a riqueza pessoal produz na sociedade. Os homens buscam a
riqueza a fim de ostentarem símbolos de status social e obter a admiração e o respeito
dos demais. Os homens, porém, ao procurarem seguir essa estratégia, não se destacam
realmente da multidão e a posição de honra que vierem a ocupar terá sempre um caráter
efêmero. Contudo, na prática, o limite da razão humana compele os homens a cometerem
o mesmo erro sistematicamente. E assim temos um sistema econômico movido pelo
autointeresse.

A VIDA DE ADAM SMITH


Ao discorrer sobre a filosofia de Adam Smith, antecipamos aspectos de sua vida, as
influências que se exerceram nele e a trajetória intelectual. Pretende-se agora discorrer
detalhes de sua vida, antes de, na próxima seção, adentrarmos em sua principal obra.
Tendo nascido em Kirkcaldy, Escócia, no ano de 1723, Smith completa nessa cidade sua
educação secundária, após o que se transfere para a universidade de Glasgow a fim de
estudar humanidades. Na juventude, as influências principais se dão em torno do nome
de Francis Hutcheson, que desperta a atenção de Smith para com a filosofia do direito
natural e os princípios do sistema de economia política. Por essa época, ele já iniciara o
estudo dos problemas econômicos, mas demorará a que se volte decisivamente para a
economia.
Antes de se graduar em Glasgow, em 1740 Smith ganha uma bolsa para estudar em
Oxford, no Balliol College. Sua experiência no novo ambiente acadêmico proporcionou-
lhe aprofundamento nos estudos de filosofia clássica e de literatura; no entanto, logo
cedo Smith indispôs-se com os professores de Oxford, tidos como obscuros e
excessivamente escolásticos. Smith foi repreendido por eles por estar lendo o Tratado
sobre a natureza humana, obra de David Hume, de 1738, proscrita dos meios
acadêmicos da Universidade. Tão logo termina o bacharelado, Smith retorna à Escócia
em 1746. Sem emprego regular em sua terra natal, ele permanece na casa da mãe
ambicionando para o futuro uma posição estável como tutor acompanhante de algum
nobre. Enquanto isso, inicia a carreira de professor, de início ministrando cursos avulsos
de literatura inglesa em Edimburgo. Depois, em 1750 e 1751, volta-se para o tratamento
de problemas econômicos, em que defende princípios liberais e ganha reputação
acadêmica. No fim desses anos, é eleito para a cadeira de Lógica de Glasgow. Começa por
ensinar retórica e literatura e, com o adoecimento do professor Craigie, assume
interinamente o cargo deste em filosofia moral. Em 1752, morre seu grande mentor
Hutcheson e Smith é agraciado com a cadeira do mestre. A partir de então, até 1764,
Smith consolida sua reputação intelectual e o interesse acadêmico pela economia.
Sabemos das primeiras reflexões econômicas de Smith, nos cursos de Glasgow,
pelas anotações preservadas de um estudante que frequentara as suas aulas, depois
reunidas no ensaio Aulas (Lectures). Lá ele antecipa ideias que seriam desenvolvidas
anos depois na obra máxima A riqueza das nações. Smith considera então a riqueza
como fruto do trabalho humano e assimila os fatos econômicos observados a certos
mecanismos automáticos na sociedade. Antecipa a noção de que a opulência nasce da
divisão do trabalho e de que essa divisão leva ao aumento da produtividade pela maior
habilidade conferida ao trabalhador especializado, e por proporcionar economia de
tempo e estímulo à invenção de máquinas. Diz também que o capital associado ao
trabalho na produção aumenta a produtividade do trabalho. Criticando os fisiocratas,

86
afirma que o trabalho industrial não é estéril e que ele também contribui para o processo
de acumulação. Entrando na questão dos preços, considera que os preços naturais
remuneram o tempo de trabalho para a produção do objeto. Na questão da distribuição
da renda, pensa que os rendimentos aferidos pelo indivíduo devem guardar certa
proporcionalidade ao trabalho de cada um. Finalmente, critica a doutrina mercantilista.
Por essa época, Smith participa ativamente dos debates acadêmicos e políticos em
voga e é convidado a integrar os principais grupos de eruditos da Escócia, o Edinburgh
Society e o Select Society, do qual é um dos fundadores ao lado de Hume, Lauderdale e
Townshend. Smith publica artigos no Edinburgh Review e em outros periódicos
conceituados. É também o início da grande amizade com Hume que perdura até a morte
deste em 1776. No interregno em questão, Smith escreve e publica sua primeira grande
obra, A teoria dos sentimentos morais, de 1759, que lhe confere projeção internacional.
No entanto, Smith não escrevera até então apenas sobre questões de ética; pelo contrário,
seu interesse claramente interdisciplinar tinha-se evidenciado, e, na ocasião, ele
dispunha de um considerável acervo de escritos de sua autoria em campos variados, em
que se destacam particularmente os tratados em estética, e história das ideias; neste
último, temos a sua História da astronomia. Havia, no entanto, o projeto intelectual, até
então ainda não realizado, de escrever um amplo tratado sobre os princípios da
economia.
A teoria dos sentimentos morais teve cinco edições e foi traduzida para outras
línguas. É a obra que projeta definitivamente o nome de Smith. Já famoso, Smith contou
com a amizade de Townshend para finalmente realizar seu antigo sonho de se tornar
tutor. Em 1763, Townshend decide confiar a Smith a tutela de seu enteado, o Duque de
Buccleugh. Smith renuncia à cadeira em Glasgow e parte com Buccleugh para uma
viagem de dois anos à França. Em troca haveria de receber generosa pensão vitalícia.
Dois fatos destacam-se nessa viagem: ela proporciona-lhe contato direto com as
principais expressões intelectuais da época e também foi nesse período que ele começou
a escrever suas primeiras notas para a obra econômica principal. Visita o sul da França e
vai a Genebra onde conhece pessoalmente Voltaire, do qual se torna grande admirador.
Em 1765, mora em Paris, que lhe recebe com as portas abertas de salões e da corte. Para
tanto, conta com a amizade da prestigiada figura de Hume e a fama de sua A teoria dos
sentimentos morais, já traduzida para o francês. Foi importante para a formação das
crenças econômicas smithianas o acesso a Quesnay, Turgot e ideias fisiocráticas, que não
aceitou por inteiro, mas que viriam exercer influência em seu pensamento.
A estadia na França termina abruptamente em 1766 com o assassinato do irmão
mais novo do Duque, também sob a custódia de Smith. Retorna então a Londres onde
permanece trabalhando com Townshend, que se tornara ministro da Fazenda. Além de
assessorar o anfitrião, Smith dedica-se, em Londres, à edição ampliada de A teoria dos
sentimentos morais. Em pouco tempo ele rompe com Townshend, principalmente por
discordar da política inglesa com suas colônias na América. Não concorda com a
excessiva tributação sobre o chá americano, que de fato seria um dos estopins da
revolução pela independência. Desiludido, Smith decide retornar a Kirkcaldy, onde, em
casa de sua mãe, permaneceria os próximos dez anos dedicados a escrever o livro A
riqueza das nações. Embora afastado da vida pública, o prestígio de Smith cresce ainda
mais no período. Recebe o título de fellow da Royal Society, mas, avesso à exposição
pública e entretido com seu livro, permanece relativamente confinado, enquanto se
preocupa com o acabamento da obra, lapidando a base teórica, retocando as observações
históricas e os exemplos práticos, muitos deles observados in loco em suas andanças pelo
interior da Escócia. Finalmente em 1776 publica sua obra econômica máxima.
Durante quase todo o século XIX, a Riqueza das nações tornou-se, em diversos
países, o ponto de partida ao estudo de economia. A primeira edição esgota-se em menos

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de seis meses e em 1800 a obra já estava disponível em francês, alemão, italiano,
dinamarquês e espanhol, muito embora ela tenha sido proibida na Espanha “por sua
baixeza de estilo e pela indefinição de seus princípios morais”, como diziam os críticos
espanhóis (na verdade uma reação desesperada contra ideias liberais contidas na obra).
Em 1777, Smith é nomeado para um alto cargo na administração aduaneira escocesa
e 10 anos depois se torna reitor na Universidade de Glasgow. Coberto de glórias, morre
em 1790, aos 67 anos.

A RIQUEZA DAS NAÇÕES


A obra Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, de
1776, representa um marco importante na evolução do pensamento econômico. As ideias
aí expressas não são inteiramente originais, mas isso não enfraquece sua qualidade. Há
um núcleo teórico em torno da questão do crescimento econômico das nações, no
entanto, ao redor dele, organizam-se uma miríade de considerações históricas e farto
material empírico que fornecem embasamento à visão geral e enriquecem sobremaneira
o tratado. A obra serviu como paradigma teórico no desenvolvimento científico da
economia no século XIX. Pode-se extrair dela um modelo explicativo básico e facilmente
resumível para o crescimento econômico.
A riqueza é definida como o produto anual per capita da nação e a ampliação desse
produto depende do número de pessoas empregadas produtivamente. Nem todo
trabalho humano é produtivo, só os que resultam na transformação de objetos,
tornando-os próprios para consumo. O número de trabalhadores que podem ser
empregados produtivamente é função do estoque de capital disponível na sociedade. O
montante de capital aumenta a produtividade do trabalho, ao se combinar com ele na
produção, e o número de trabalhadores produtivos. Portanto, o processo de formação de
capital é chave no entendimento do crescimento econômico.
A vida econômica nas sociedades evoluídas é posta em movimento pelo emprego do
capital. O processo produtivo deve restituir esse capital em escala crescentemente
ampliada de modo a propiciar crescimento econômico. Tal esquema é semelhante ao de
Quesnay, contudo as diferenças entre ele e Smith são significativas. Smith não acredita
que a atividade industrial seja estéril, pois ela também gera novos valores. Ele percebeu
ainda que a medida do crescimento econômico e a compreensão analítica dele
dependeriam de uma teoria do valor. Smith conhecia as noções sobre valor em Petty e
Locke, mas as considerava ambíguas. A ausência de uma teoria do valor nos fisiocratas,
que se limitavam a comparações entre montantes físicos da mercadoria básica, era tida
como grave lacuna.
O trabalho produtivo sempre produz um excedente de valor sobre o custo de
reprodução do trabalhador. Quanto maior o número de trabalhadores produtivos em
relação à população total do país, maior o excedente anual gerado na economia. Parte
desse excedente é consumida pela classe dos patrões, porém parte importante é
reinvestida por eles, ou seja, canalizada para a contratação de mais trabalhadores. A
capacidade de ampliação de trabalho produtivo, e portanto de geração adicional de
excedente para novas inversões futuras, depende do número potencial de trabalhadores
a serem contratados pelo capital. Uma medida do valor que estabeleça relação entre um
montante de mercadorias heterogêneas e o correspondente número de trabalhadores por
ele empregados, enquanto capital, possibilitaria identificar e mensurar facilmente o
processo de reprodução ampliada das condições de produção. A teoria do valor deveria
servir a fim de se compararem diferentes mercadorias antes que seus preços fossem
determinados pelas vicissitudes de mercado. Ao mesmo tempo, tal teoria deveria
estabelecer a referida correspondência entre o valor e o montante de trabalho útil

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empregado pelo capital. Estas duas questões seriam atendidas pela teoria smithiana do
valor fundamentado no trabalho comandado ou encomendado pela mercadoria, ou seja,
o poder de ela ser trocada por outras mercadorias que também exigem trabalho em sua
obtenção.
A riqueza das nações trata dessas questões no livro I. A obra está dividida em mais
quatro livros. Smith descreve uma espiral de crescimento e o desenvolvimento da teoria
do valor confere embasamento analítico a essa espiral. Começa com a discussão da
divisão do trabalho, mostrando que ela aumenta a sua produtividade. No terceiro elo,
temos a geração ampliada do excedente associado a cada trabalhador. Empregado, ao
menos em parte, produtivamente, tal excedente possibilita o crescimento no estoque de
capital e o aumento subsequente do emprego produtivo. Mais adiante na obra,
percebem-se os outros elos da espiral. O aumento de demanda por trabalho produtivo,
acima da elevação do número de trabalhadores no período, conduz ao crescimento dos
salários, que por sua vez cria condições para o aumento futuro da população
economicamente ocupada. A consequência de tudo isso é a ampliação dos mercados. A
extensão dos mercados possibilita que se intensifique o processo de divisão de trabalho,
voltando-se à posição semelhante a inicial na espiral do crescimento (Figura 5.1).

Figura 5.1 Espiral do crescimento no enriquecimento das nações.

A explicação anterior não significa que Smith forneça um tratamento meramente


mecânico à questão do crescimento econômico. Ele também incorpora aspectos institu-
cionais. Enfatiza o papel da lei, da propriedade privada e a necessidade de ausência de
barreiras no mercado a fim de que os processos identificados ocorram na prática. O
mecanismo depende das possibilidades de investimento rentável dos excedentes gerados
a cada período. Do ponto de vista do capitalista, o incentivo básico à acumulação é a taxa
de lucro. Mesmo em condições institucionais ideais, o processo de crescimento pode não
ser indefinidamente sustentável se houver redução das taxas de lucro abaixo de um nível
crítico. O crescimento no estoque de capital muito acima do crescimento demográfico
pode levar a uma queda das taxas de lucro pela elevação de salários. Eventualmente a
sociedade pode alcançar um estado estacionário em que o crescimento apenas
acompanha a expansão da população.
O economista do século XX J. Hicks sintetizou a teoria do crescimento de Smith em
poucas equações. Há uma quantidade inicial de capital utilizado como recurso para

89
sustentar os trabalhadores por ele empregados. Isso leva à geração do produto Xt que
depende do produto do período anterior Xt-1 e da relação produto por unidade consumida
(p/c). De modo que se pode escrever Xt = (p/c).Xt-1. Se p/c > 1, Xt > Xt-1. A taxa de
crescimento da produção é (Xt – Xt-1 )/ Xt-1 = p/c – 1. Considerando-se os vazamentos não
produtivos, isto é, a quantidade de produto entregue a setores não produtivos, na
expressão anterior, Xt-1 seria substituído por kt, na qual kt = k.Xt-1 e k é a fração restante
após esses vazamentos.
Temos então que Xt = (p/c).kt = (k.p/c).Xt-1. E a nova taxa de crescimento seria
(k.p/c) – 1. A condição matemática para uma economia progressiva seria a de que k.p >
c, o que se verifica quando há poucos desvios não produtivos do excedente, k é grande, e
quando é elevada a produtividade p/c. Hicks desenvolve o modelo matemático de Smith
pensando numa única mercadoria, trigo por exemplo, no entanto uma teoria do valor
consistente pode prescindir dessa hipótese e, de fato, Smith pensava numa economia
com múltiplas mercadorias.
Os livros I e II da Riqueza das nações contêm esse esquema explicativo básico do
crescimento econômico. Smith sintetiza o livro I, dizendo que ele investiga...
“As causas do aprimoramento nas forças produtivas do trabalho e a ordem
segundo a qual sua produção é naturalmente distribuída entre as diferentes
classes e condições de membros da sociedade.” (Adam Smith, A riqueza das
nações)
O livro II investiga a natureza do capital e como ele pode ser acumulado, explica
formas de seu emprego e de que modo utiliza quantidades de trabalho.
Sobre o livro I vale notar, da definição anterior de seu conteúdo, que ele também se
preocupa com a questão da distribuição dos rendimentos. É que a teoria do valor de
Smith, a qual aparece no bojo da discussão do crescimento como medida deste, remete a
uma discussão em termos de componentes desse valor em salário, lucro e renda da terra,
tema que veremos mais adiante. Na discussão do valor surge a questão da distribuição.
Em Smith e entre seus seguidores clássicos, valor e distribuição aparecem sempre como
temas correlacionados.
Os livros I e II são as partes teóricas principais de A riqueza das nações, embora
mesmo aí não apareça apenas teoria e se constate neles muito material histórico. Há
alguma análise teórica também nos demais livros, como a teoria das vantagens absolutas
no comércio internacional, contudo, do livro III ao V interessam questões de história e
aplicação. O livro terceiro trata da evolução histórica das políticas econômicas. É o teste
empírico e histórico da teoria do crescimento focalizando a evolução econômica da
humanidade. Os livros IV e V contêm proposições normativas em termos de legislação e
política econômica. Lá estão a crítica aos fundamentos da política comercial e colonial
mercantilista e o elogio à escola da fisiocracia (livro IV), bem como questões de
tributação, política fiscal, dívida pública (livro V), em que se discutem os prós e contras
da intervenção do Estado na economia em diferentes áreas.
Vejamos, em detalhe, o conteúdo do livro I. Ele está dividido em 11 capítulos. O
capítulo 1 discorre sobre a divisão do trabalho. Começa dizendo que a divisão do trabalho
aumenta suas forças produtivas. Ora Smith refere-se à divisão dele na economia geral da
sociedade, ora trata da maneira como a divisão do trabalho opera em certas manufaturas.
Smith fala tanto em divisão social do trabalho quanto em sua divisão no interior de uma
unidade produtiva. Ilustra seu ponto de vista com a observação de uma pequena
manufatura de alfinetes (Boxe 5.1). A divisão da fabricação de alfinetes em setores com
trabalhadores especializados provoca grande aumento na produtividade. Argumenta que
a diferenciação das ocupações e dos empregos, principalmente em sociedades mais
evoluídas, produz aumento nas forças produtivas do trabalho. A divisão do trabalho é

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menor na agricultura, pois aqui os diferentes tipos de trabalho estão associados às
estações do ano, de modo que é impossível empregar um único homem em cada uma das
oportunidades de trabalho nela. É por isso que, argumenta Smith, as diferenças de
produtividade entre nações ricas e pobres são menores na agricultura e maiores na
manufatura, em que são muitas as possibilidades na especialização de tarefas.

Boxe 5.1 Os efeitos da divisão do trabalho na fábrica de alfinetes.

Smith escreve: “Um operário desenrola o arame, um outro o endireita, um terceiro o


corta, um quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação da cabeça do
alfinete; para fazer uma cabeça de alfinete requerem-se 3 ou 4 operações diferentes; montar a
cabeça já é uma atividade diferente, e alvejar os alfinetes é outra; a própria embalagem dos
alfinetes também constitui uma atividade independente. Assim, a importante atividade de
fabricar um alfinete está dividida em aproximadamente 18 operações distintas, as quais, em
algumas manufaturas são executadas por pessoas diferentes, ao passo que, em outras, o
mesmo operário às vezes executa 2 ou 3 delas. Vi uma pequena manufatura desse tipo, com
apenas 10 empregados, e na qual alguns desses executavam 2 ou 3 operações diferentes. Mas,
embora não fossem muito hábeis, e portanto não estivessem particularmente treinados para
o uso das máquinas, conseguiam, quando se esforçavam, fabricar em torno de 12 libras de
alfinetes por dia. Ora, 1 libra contém mais do que 4 mil alfinetes de tamanho médio. Por
conseguinte, essas 10 pessoas conseguiam produzir entre elas mais do que 48 mil alfinetes por
dia. Assim, já que cada pessoa conseguia fazer 1/10 de 48 mil alfinetes por dia, pode-se
considerar que cada uma produzia 4800 alfinetes diariamente. Se, porém, tivessem
trabalhado independentemente um do outro, e sem que nenhum deles tivesse sido treinado
para esse ramo de atividade, certamente cada um deles não teria conseguido fabricar 20
alfinetes por dia, e talvez nem mesmo 1, ou seja: com certeza não conseguiria produzir a 240 a
parte, e talvez nem mesmo a 4800a parte daquilo que hoje são capazes de produzir, em virtude
de uma adequada divisão do trabalho e combinação de suas diferentes operações.” (Adam
Smith, A riqueza das nações)

Smith explica por que a pessoa é capaz de realizar mais trabalho com a divisão do
trabalho. Enumera três fatores: a maior destreza alcançada pelo trabalhador
especializado, a economia de tempo ao se passar de um trabalho a outro e a invenção de
máquinas (Boxe 5.2). Nem sempre é o trabalhador especializado que propõe inovações
nas máquinas que emprega. Também contribuem para as novas invenções o engenho dos
fabricantes de máquinas que utilizam o trabalho de “filósofos ou pesquisadores, cujo
ofício não é fazer as coisas, mas observar cada coisa.” (Adam Smith, A riqueza das
nações)
A divisão do trabalho e o mecanismo de troca nos mercados propiciam, numa socie-
dade avançada, a abundância geral dos bens. Todos lucram com ela, até mesmo um
simples operário que tem mais necessidades atendidas do que “muitos reis da África, que
são senhores absolutos das vidas e das liberdades de 10 mil selvagens nus” (Ibidem).
Com a divisão do trabalho, surge a necessidade de comparação e ajuda de milhares de
pessoas. Nem sempre nos damos conta de todos os que contribuíram para que diferentes
tipos de bens cheguem em nossas mãos, no entanto os benefícios são evidentes,
argumenta Smith.
A ideia de que a divisão do trabalho é a chave para o progresso material não era
novidade à época de Smith. A república de Platão discute extensivamente seus benefícios
na formação da cidade. No entanto, a explicação de Smith é original em alguns pontos.
No capítulo 2, Smith apresenta os princípios que dão origem à divisão do trabalho.
Enquanto para Platão tal divisão é fruto da sabedoria da cidade, ou seja, é um tipo de
ideal ético, em Smith ela é um produto não intencional. Não é algo que tenha sido visado
91
por alguém que imaginou previamente certa consequência. Smith discute a origem da
divisão do trabalho e a associa à propensão humana para as trocas. Logo no início do
capítulo, ele escreve:
“Essa divisão do trabalho, da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua
origem, o efeito de uma sabedoria humana qualquer, que preveria e visaria esta
riqueza geral à qual dá origem. Ela é a consequência necessária, embora muito
lenta e gradual, de uma certa tendência ou propensão existente na natureza
humana que não tem em vista essa utilidade extensa, ou seja: a propensão a
intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra.” (Adam Smith, A riqueza
das nações)

Boxe 5.2 A invenção de máquinas pelo próprio operário.

Smith escreve: “Quem quer que esteja habituado a visitar tais manufaturas deve ter visto
muitas vezes máquinas excelentes que eram invenção desses operários, a fim de facilitar e
apressar a sua própria tarefa no trabalho. Nas primeiras bombas de incêndio um rapaz estava
constantemente entretido em abrir e fechar alternadamente a comunicação existente entre a
caldeira e o cilindro, conforme o pistão subia ou descia. Um desses rapazes, que gostava de
brincar com seus companheiros, observou que, puxando com um barbante a partir da
alavanca da válvula que abria essa comunicação com um outro componente da máquina, a
válvula poderia abrir e fechar sem ajuda dele, deixando-o livre para divertir-se com seus
colegas. Assim, um dos maiores aperfeiçoamentos introduzidos nessa máquina, desde que ela
foi inventada, foi descoberto por um rapaz que queria poupar-se no próprio trabalho.” (Adam
Smith, A riqueza das nações)

Smith não aprofunda a regressão analítica a fim de chegar à origem da propensão


para as trocas; contudo, considera provável que ela seja uma consequência das
faculdades de raciocinar e falar.
Platão e Smith concordam no ponto em que, com a divisão do trabalho, cada
indivíduo passa a necessitar do trabalho do outro. Smith argumenta que a necessidade
de ajuda dos semelhantes não vem da benevolência alheia...
“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que espera-
mos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse.
Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos
das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles.”
(ibidem)
A passagem é bastante explícita em apontar que nas trocas de mercado os homens
visam a seu autointeresse. A existência de um mercado para as trocas é um requisito para
a divisão do trabalho, pois os homens só se especializam naquilo que fazem melhor
sabendo que poderão trocar o excedente da produção.
Platão acredita que os indivíduos possuem, desde o nascimento, diferentes aptidões
e que cada um se entrega ao trabalho que atende melhor a essas aptidões. Então, a
diferença entre as pessoas está na base da divisão do trabalho. Smith discorda radical-
mente dessa visão. Para ele, as pessoas não são naturalmente diferentes, é a propensão
para a troca que, ao longo do tempo, acentua as diferenças. Já os animais são bastante
diferenciados entre si e, no entanto, não podem usufruir dessas diferenças.
Smith identifica no capítulo 3 fatores limitativos para a divisão do trabalho. Como
esta depende da possibilidade de se trocar o excedente da produção, o tamanho do
mercado aparece como um impedimento para a extensão da divisão do trabalho. É por

92
isso que no campo, exemplifica Smith, o carpinteiro é também marceneiro, o ferreiro
ainda faz pregos etc. Meios de transporte adequados e baratos facilitam a divisão do
trabalho. Onde os transportes foram facilitados por condições geográficas, tais como rios
navegáveis e acesso ao mar, surgiram as grandes civilizações. De fato, os povos do
mediterrâneo beneficiaram-se de facilidades de navegação. O progresso e o aprimora-
mento do Egito muito se devem à navegação interna do Nilo. Bengala, na Índia, conta
com o rio Ganges. Pontos remotos do interior e regiões que não oferecem facilidades de
transporte, como no interior da África e norte da Ásia, não possibilitam comércio
internacional e seus povos permanecem em estado de barbárie.
O capítulo 4 apresenta uma breve história sobre “a origem e o uso do dinheiro”. A
parte principal do capítulo reconstitui, por meio de uma história analítica, como o
dinheiro veio a se tornar o instrumento universal do comércio. Na parte final do capítulo,
discute o “paradoxo do valor”. Vejamos o primeiro aspecto. Smith começa apontando
que, com a divisão do trabalho, a maioria das pessoas conta com as trocas de mercado
para satisfazer a muitas de suas necessidades. Assim é como se todos fossem
comerciantes, caracterizando a moderna sociedade comercial (Smith não emprega o
termo “capitalismo”). De início, antes da disseminação do dinheiro, havia grandes pro-
blemas para efetivar-se as trocas, pois, só há troca caso haja coincidência de necessidades
e de interesses. Buscou-se então possuir uma mercadoria amplamente aceita, além da
mercadoria produzida pelo próprio indivíduo em questão. Historicamente temos gado,
sal, açúcar, peles, couros e até pregos (como de uma observação sua no interior da
Escócia) como sendo a mercadoria dinheiro. Aos poucos, a função de instrumento de
troca acabou fixando-se nos metais, que são imperecíveis e subdivisíveis. Ferro, cobre,
ouro e prata, descreve Smith, serviram cronologicamente como dinheiro. De início o
metal era ofertado em barras brutas. Dado o inconveniente da pesagem e da verificação
da autenticidade, optou-se por dinheiro cunhado ou moeda com gravação cobrindo os
dois lados da peça e as laterais, de modo a garantir o peso e o teor metálico da moeda.
O próprio nome da moeda, de início, expressava peso ou quantidade de metal, como
a libra inglesa: libra é medida de peso também. Smith conta que alguns reis diminuíam
propositalmente a quantidade de metal na moeda, em prejuízo dos credores e ganho dos
devedores. Em suma, é esta pequena história do dinheiro que nos conta Smith.
No final do capítulo, Smith apresenta a questão fundamental: quais as normas que
as pessoas observam ao trocarem suas mercadorias por dinheiro ou por outras
mercadorias? Smith está a discutir as regras que determinam o valor relativo ou o valor
de troca dos bens. Nota ele que a palavra “valor” possui dois significados: a utilidade de
determinado objeto, ou seja, o valor de uso, e o poder de compra que o referido objeto
possui, o valor de troca. Observa Smith que, em geral, objetos com elevado valor de uso
possuem baixo valor de troca e vice-versa; cita o caso da água e do diamante. Após
contrapor os conceitos dessa maneira, Smith diz que a preocupação da economia política
deve recair no valor de troca, e anuncia o enfoque dos capítulos subsequentes que será o
de investigar os princípios que regulam o valor de troca. Antecipa duas questões básicas:
1. Qual a medida real do valor de troca, ou seja, no que consiste o preço real de uma
mercadoria. 2. Quais as partes ou componentes que constituem o preço real das coisas.
O preço que realmente o objeto vale é seu preço natural. Os preços que se verificam nas
situações dos mercados são os preços de mercado, que no longo prazo se aproximam do
preço natural.
Diversas observações podem ser feitas dessa passagem de Smith, voltaremos a
comentá-la em outras partes de nosso livro. Não é muito compreensível qual a utilidade
de se contrapor os conceitos de valor de uso e valor de troca. São coisas diferentes, por
certo, mas não decorre que estejam em posição paradoxal. A relação entre esses dois
conceitos requer a análise marginalista que não estava ao alcance da época. O fato de o
bem possuir alto valor de uso e baixo valor de troca não deve ser moralmente condenado.

93
O tom de Smith, porém, passa essa impressão. Smith deixa claro que o que ele procura
não é exatamente o fundamento analítico do valor, mas apenas uma forma de medi-lo.
O uso da palavra “natural” para os preços é um modismo da época em que a expressão
“natural” vinha carregada de conteúdos normativos.
A riqueza das nações procurou seguir os passos metodológicos dos Princípios de
Newton. A ideia de identificar princípios fundamentais subjacentes ao fenômeno e de
tentar reconstituir uma ordem por trás da aparência caótica, de modo a mostrar como os
elementos são coordenados por esses princípios, é típica no método de Newton. A
riqueza das nações identifica certos princípios básicos, tais como a propensão para as
trocas, a divisão do trabalho e o autointeresse (observada a moral e os costumes), e com
base neles articula um esquema explicativo que mostra o jogo aparente dos fatos como
decorrência lógica da aplicação desses princípios.
Os capítulos de 5 a 7 mostram a essência da teoria smithiana do processo de
mercado e o esquema básico para sua interpretação dos preços. Nesses capítulos, Smith
desenvolve sua teoria rudimentar do equilíbrio, uma de suas melhores contribuições em
teoria econômica. A teoria dos preços é o ponto de partida da análise econômica feita por
Smith. Trata-se de uma teoria de equilíbrio estático que já estava presente em autores
anteriores que disseram algo a respeito do mercado. Nesse sentido, não houve muito
avanço em relação a seus contemporâneos.
No capítulo 5, apresentam-se os conceitos de preço real e preço nominal. Smith
associa o preço real da mercadoria à ideia de valor. Se o homem é rico ou pobre conforme
a quantidade de serviço alheio que está em condições de encomendar ou comprar, o valor
de uma mercadoria é a quantidade de trabalho que ela permite comprar ou comandar.
Assim, o trabalho é a medida real do valor de troca de todas as mercadorias. Smith não
está dizendo que valor de troca é trabalho, mas que este pode ser usado como medida
daquele. Ter uma medida do valor é tudo que Smith necessitava para sua análise
posterior do crescimento econômico.
Smith representa uma volta a Alberto Magno, séculos atrás, ao afirmar que o preço
real de um bem é o incômodo que custa a aquisição dele. Fundamentar o valor
exclusivamente no lado dos custos é uma visão unilateral que não corresponde à
moderna compreensão dos preços. No entanto, essa unilateralidade já havia ganhado
certa reputação entre autores de língua inglesa, especialmente sob influências de W.
Petty e R. Cantillon, que popularizaram a ideia no ambiente britânico. Smith apenas
segue a corrente. A escola clássica irá refinar essa interpretação do valor.
Avaliar o valor das mercadorias pela medida do trabalho apresenta algumas
dificuldades práticas. Primeiramente a medida do trabalho deve levar em conta não
apenas o tempo gasto, mas as diferentes qualidades de trabalho, o grau de dificuldade e
de engenho em cada caso. Em segundo lugar, não se troca, na prática, mercadoria por
trabalho (M-T), mas as mercadorias são trocadas umas pelas outras (M-M’) ou se mede
o valor de troca de M pela quantidade de dinheiro D (M-D-M’). No entanto, o dinheiro
possui certas inconveniências. Se for o caso de se usarem ouro e prata como tal, as
variações no valor do ouro e da prata implicam que a mesma quantidade deles pode ora
comandar mais trabalho, ora uma quantidade menor dele. O valor dos metais depende
da oferta e do trabalho para trazê-los ao mercado, e, assim, o valor de uma unidade deles
é, em si mesmo, variável. Somente o trabalho humano, assevera Smith, não varia seu
valor. O dinheiro mede apenas o preço nominal das coisas, o preço real é medido
precisamente em quantidades de trabalho e o valor do trabalho não varia (Boxe 5.3).

94
Boxe 5.3 O valor do trabalho que compra os bens não varia.

Smith escreve: “Pode-se dizer que quantidades iguais de trabalho têm valor igual para o
trabalhador, sempre e em toda parte. Estando o trabalhador em seu estado normal de saúde,
vigor e disposição, e no grau normal de sua habilidade e destreza, ele deverá aplicar sempre o
mesmo contingente de seu desembaraço, de sua liberdade e de sua felicidade. O preço que ele
paga deve ser sempre o mesmo, qualquer que seja a quantidade de bens que receba em troca
de seu trabalho. Quanto a esses bens, a quantidade que terá condições de comprar será ora
maior, ora menor; mas é o valor desses bens que varia, e não o valor do trabalho que os
compra. Sempre e em toda parte valeu este princípio: é caro o que é difícil de se conseguir, ou
aquilo que custa muito trabalho para adquirir, e é barato aquilo que pode ser conseguido
facilmente ou com muito pouco trabalho. Por conseguinte, somente o trabalho, pelo fato de
nunca variar o seu valor, constitui o padrão último e real com base no qual se pode sempre e
em toda parte estimar e comparar o valor de todas as mercadorias. O trabalho é o preço real
das mercadorias; o dinheiro é apenas o preço nominal delas.” (Adam Smith, A riqueza das
nações)

Para o trabalhador, o preço do trabalho é o dispêndio de energia de uma dada tarefa


e, fixada esta, ele é sempre o mesmo. O preço do trabalho varia para o empregador, mas
na verdade são os bens que se tornam mais ou menos caros. Isso porque o trabalho é
pago em bens. Na prática, utiliza-se alguma mercadoria eleita para medir os valores. No
longo prazo, os valores estimados em trigo são mais estáveis que aqueles avaliados em
ouro ou prata. A relação entre quantidade de trabalho e quantidade de trigo é mais
estável, até porque as quantidades de trigo funcionam como bom indicador do preço real
em trabalho que deve remunerar a subsistência do trabalhador. Como o trigo é o
principal bem para essa subsistência, ele guarda certa proximidade com quantidades de
trabalho. Já os metais são instáveis em seu valor, pois mudanças nas condições de sua
oferta induzem variações do valor, e, mantendo-as fixas, reduções da quantidade de ouro
e prata contida nas moedas resultam em alterações nos valores delas. No entanto, o valor
real de uma renda em trigo varia muito no curto prazo; sendo assim, a moeda metálica
funciona melhor para transações de curto prazo. Smith conclui dizendo que no mesmo
tempo e lugar o dinheiro é medida exata do valor real de troca de um bem. Fica claro ser
essa medida apenas aproximação no curto prazo e em pequenas distâncias.
No capítulo 6, Smith tem a ideia de decompor o preço das mercadorias em partes
elementares independentes; por certo também recebe influência do método analítico de
Newton que separou a substância material em partículas para o estudo dos problemas
de mecânica. Smith divide historicamente a sociedade em dois estágios: primitivo e
evoluído. Diz que, no primeiro caso, as trocas são reguladas por quantidade de trabalho.
“Se em uma nação de caçadores abater um castor custa duas vezes mais
trabalho do que abater um cervo, um castor deve ser trocado por – ou então vale
– dois cervos. É natural que aquilo que normalmente é o produto do trabalho de
dois dias ou de duas horas valha o dobro daquilo que é o produto do trabalho de
um dia ou uma hora.” (ibidem)
A medida da quantidade de trabalho leva em conta o tempo, a dificuldade do
trabalho, a destreza e o engenho. Na sociedade primitiva, todo produto do trabalho
pertence ao trabalhador que o executa.
No estágio evoluído, pessoas contratam pessoas; surge o lucro. O lucro não é
simplesmente o salário pago por inspecionar e dirigir a empresa, ele é regulado pelo valor
do capital entregue à produção. O produto total já não pertence inteiramente ao
trabalhador, parte é entregue ao patrão na forma de lucro. Nesse caso, o valor da merca-
doria não é apenas regulado pela quantidade de trabalho incorporado em sua produção.
95
Ela vale mais do que o que remunera o trabalho, e a parte em excesso é paga na forma de
lucro e, quando for o caso, na forma de renda pelo aluguel da terra, pois...
“No momento em que toda a terra de um país se tornou propriedade privada,
os donos das terras, como quaisquer outras pessoas, gostam de colher onde nunca
semearam, exigindo uma renda, mesmo pelos produtos naturais da terra.”
(ibidem)
Assim, o valor v de uma mercadoria é regulado pelos três componentes salário w,
lucro l e renda da terra r.
v=w+l+r
Não pode haver outros componentes, além desses três, na determinação dos preços.
Qualquer outro tipo de dispêndio na produção poderá, em última instância, ser enquadrado
em uma dessas três categorias. Os juros, por exemplo, que são a renda auferida por uma
pessoa que não emprega ela mesma seu capital, mas o empresta a outras, é um componente
do lucro e, como tal, ele é sempre menos que o montante de lucro total. Os juros não são uma
parte do preço, mas uma renda derivada do lucro. Salários, lucros e rendas da terra não se
confundem entre si. Com o avanço da sociedade, há uma tendência crescente da maior
participação de salários e lucros nos preços à medida que os produtos se tornam mais
elaborados.
O capítulo 7, intitulado “O preço natural e o preço de mercado das mercadorias”,
começa definindo os conceitos de preço natural e preço de mercado; em seguida ele
descreve uma teoria de funcionamento dos mercados que mostra como a força do
autointeresse individual impele o mecanismo de ajuste dos mercados. Preço natural é o
conceito teórico mais fundamental, é nele que reside o valor real das coisas. Logo no
início do capítulo, escreve:
“Em cada sociedade ou nas suas proximidades, existe uma taxa comum ou
média para salários e para o lucro, em cada emprego diferente de trabalho ou
capital. Essa taxa é regulada naturalmente – conforme exporei adiante – em parte
pelas circunstâncias gerais da sociedade – sua riqueza ou pobreza, sua condição
de progresso, estagnação ou declínio – e em parte pela natureza específica de
cada emprego ou setor de ocupação.
Existe, outrossim, em cada sociedade ou nas suas proximidades uma taxa
média de renda da terra, também ela regulada – como demonstrarei adiante –
em parte pelas circunstâncias gerais da sociedade ou redondeza na qual a terra
está localizada, e em parte pela fertilidade natural da terra ou pela fertilidade
conseguida artificialmente.
Essas taxas comuns ou médias podem ser denominadas taxas naturais dos
salários, do lucro e da renda da terra, no tempo e lugar em que comumente
vigoram.” (Adam Smith, A riqueza das nações)
Cada componente do preço tem sua taxa natural e a somatória das taxas naturais de
salário, lucro e renda da terra determinam o preço natural. Tal preço funciona como um ponto
de equilíbrio ou uma condição de longo prazo. No curto prazo os preços efetivamente
observados no mercado, os preços de mercado, oscilam em torno do preço natural. Note que
a explicação de Smith dos preços não é apenas microeconômica. Como se depreende da citação
anterior, as taxas naturais dependem não apenas “da natureza específica de cada emprego ou
setor de ocupação”, de seus aspectos técnicos e sociológicos, mas também da saúde
macroeconômica.
Smith apresenta um excelente tratamento de como os preços fora do equilíbrio
alcançam os valores naturais. Para tanto, define o conceito de demanda eficaz, que leva
em conta o papel dos indivíduos que desejam pagar o preço natural do bem. A oferta é
inelástica e corresponde a uma quantidade fixa colocada no mercado. Graficamente, no

96
plano que relaciona preços p com quantidades x da mercadoria, a demanda eficaz é um
ponto que corresponde à quantidade total demandada ao preço natural (Figura 5.2).

Figura 5.2 Equilíbrio de mercado de longo prazo em Adam Smith.

Se ao preço natural a quantidade ofertada estiver abaixo da demanda eficaz, o preço


de mercado sobe acima do preço natural, tanto mais quanto menor a oferta em questão
(Figura 5.3).
Como efeito do aumento de preços, alguns demandantes deixam o mercado, só
restando os que aceitam pagar o preço de mercado acima do valor natural. Ao mesmo
tempo, preços elevados atraem novos ofertantes, de modo que à medida que ocorre o
processo de arbitragem entre mercados, os negócios deslocam-se em direção ao mercado
em questão, contribuindo para o aumento da oferta, em adição, tem-se a ampliação da
oferta, pelo estímulo dos preços, por parte dos que já se encontravam neste mercado. A
resultante desses movimentos é o deslocamento para a direita da oferta, até que o
equilíbrio de longo prazo seja novamente restabelecido ao preço natural.

Figura 5.3 Equilíbrio de mercado de curto prazo em Adam Smith: excesso de demanda.

Ocorreria o inverso se houvesse um excesso de oferta ao preço natural. Os preços de


mercado ficariam abaixo dos preços naturais, sinalizando novos compradores e
retirando do mercado parte dos ofertantes até que o equilíbrio de longo prazo fosse
restabelecido no preço natural (Figura 5.4).

97
Figura 5.4 Equilíbrio de mercado de longo prazo em Adam Smith: excesso de oferta.

Na prática, os mercados estão sempre se ajustando, mas as flutuações nos preços


são inevitáveis; principalmente porque as condições de oferta são instáveis. Reveses
naturais, variações na produtividade do trabalho ao longo do tempo e outros fatores
levam a grandes flutuações de preços de mercado. No longo prazo, entretanto, os preços
não podem descolar-se dos valores naturais, já que o fluxo de capitais entre mercados
trata de explorar eventuais discrepâncias na busca de lucro maior.
A análise de Smith do processo de convergência ao equilíbrio partindo-se de
posições fora do equilíbrio é excelente e antecipa o moderno tratamento da questão.
Smith, porém, não se preocupou com a descrição do processo de mercado, só se
dedicando minimamente ao tema no capítulo 7. Mais prioritário na teoria dos preços de
Smith era obter uma explicação para as taxas naturais que determinam o equilíbrio de
longo prazo. Ele trata do tema nos capítulos subsequentes do livro I, contudo não é
totalmente bem-sucedido nesta empreitada.
Smith começa o capítulo 8, que trata dos salários, dizendo ser ele a recompensa
natural do trabalho. Na sociedade primitiva, o produto integral do trabalho pertence ao
trabalhador, não há propriedade da terra e nem patrão para repartir o fruto do trabalho.
Assim, qualquer aumento de produtividade reverte em elevação de salário. Entretanto,
isso não ocorre necessariamente com o aparecimento de patrões e proprietários. O
patrão adianta um capital e recebe lucro, o proprietário empresta a terra e recebe uma
renda.
Na sociedade evoluída, Smith investiga quais os salários comuns ou normais do
trabalho. Reconhece, de início, que trabalhadores e patrões têm interesses contrários:
“Os trabalhadores desejam ganhar o máximo possível, os patrões pagar o
mínimo possível. Os primeiros procuram associar-se entre si para levantar os
salários do trabalho, os patrões fazem o mesmo para baixá-los.” (Adam Smith, A
riqueza das nações)
O salário depende das negociações entre as partes. A natureza do contrato de
trabalho é resultante do jogo de pressões. O patrão sempre está numa posição vantajosa
de negociar com os trabalhadores. Primeiramente porque ele pode resistir por mais
tempo à paralisação, já que não depende da renda corrente para sobreviver, tendo já
acumulado uma fonte de recursos que lhe permite uma vida confortável mesmo diante
de uma longa paralisação nos negócios. Além disso, sempre fazem conchavos secretos
destinados a baixar os salários. Por outro lado, mesmo fazendo mais barulho, os
trabalhadores não conseguem impor seus interesses:
“Os trabalhadores raramente auferem alguma vantagem da violência dessas
associações tumultuosas, que, em parte devido à interferência da autoridade, em
parte à firmeza dos patrões, e em parte por causa da necessidade à qual a maioria

98
dos trabalhadores está sujeita por força da subsistência atual – geralmente não
resulta senão na punição ou ruína dos líderes.” (ibidem)
Há, porém, um piso para os salários, abaixo do qual não se consegue manter os
trabalhadores por muito tempo. Os salários devem ser suficientes, no mínimo, para a
manutenção dos trabalhadores e de seus filhos. Há situações em que o trabalhador
consegue ganhar mais do que o mínimo humanitário. A escassez de mão de obra sempre
força os salários para cima.
Tem-se descrito a teoria dos salários naturais de Smith como aquele correspondente
a certo nível de subsistência, mas de fato não é bem isso que ele tem em mente. O salário
natural depende da demanda por mão de obra e da disponibilidade local de
trabalhadores. Aquela demanda depende dos fundos destinados ao pagamento de salá-
rios, que são de dois tipos: o excedente do empresário que é empregado novamente para
manter o negócio e o excedente do proprietário de terra, e das demais classes abastadas,
que é emprestado ou empregado diretamente para contratar mais trabalhadores. Em
todo caso, os fundos destinados ao pagamento de salários guardam estreita relação com
o estoque de capital da economia. Sempre que esse estoque crescer mais rapidamente
que a população trabalhadora os salários serão elevados; é o caso dos EUA, onde os
salários eram maiores que os da Inglaterra, dado o crescimento acelerado daquele país.
“Não é a extensão efetiva da riqueza nacional, mas seu incremento contínuo,
que provoca uma elevação dos salários do trabalho. Não é, portanto, nos países
mais ricos, mas nos países mais progressistas, ou seja, naqueles que estão se
tornando ricos com maior rapidez, que os salários do trabalho são os mais altos.
A Inglaterra é certamente, no momento, um país muito mais rico do que qualquer
outra região da América do Norte. No entanto os salários do trabalho são mais
altos na América do Norte do que em qualquer parte da Inglaterra.” (Adam
Smith, A riqueza das nações)
Smith diz que quando os salários estão elevados as famílias procriam mais e que “o
indício mais claro da prosperidade de um país é o aumento do número de seus
habitantes.” (ibidem)
Mesmo que o país seja rico, se os fundos destinados aos trabalhadores forem
constantes ao longo do tempo, em breve não existirá escassez de mão-de-obra e os
salários cairão até a subsistência. A sociedade regride a uma condição de pobreza mesmo
que um dia tenha alcançado considerável riqueza. Smith ilustra essa ideia com a
descrição do caso da China. Essa passagem também revela, mais uma vez, o talento
literário de Smith e como em certas partes da obra há um tom dramático a ilustrar suas
ideias (Boxe 5.4).
Smith também cita o caso da Índia, pior que o da China, pois lá os fundos destinados
aos trabalhadores não apenas deixaram de crescer como também regrediram.
Na Inglaterra, os salários permanecem bem acima do nível de subsistência, e como
prova disso Smith argumenta que, nesse país, variações nos preços dos mantimentos não
afetam o valor dos salários e que muitas vezes preços e salários caminham em direções
opostas. Há de se considerar também que na ilha há grande diferença de salários,
explicada, em parte, pela dificuldade de se transportarem pessoas de um lugar a outro.
Smith oferece uma interpretação bastante plausível da relação entre pobreza e
crescimento da população. Argumenta que nos pobres a fecundidade é maior, mas a
proporção dos que chegam à maturidade é menor que nos ricos. Assim, os salários não
representam um freio nas taxas de nascimento, mas, no longo prazo, estão sempre a limitar
a população trabalhadora pelas altas taxas de mortalidade que ocorrem quando as rendas
são baixas.

99
Boxe 5.4 A miséria da China.

Smith escreve: “A China foi por muito tempo um dos países mais ricos, isto é, um dos
mais férteis, mais bem cultivados, mais industriosos e mais populosos do mundo. Ao que
parece, porém, há muito tempo sua economia estacionou. Marco Polo, que a visitou há mais
de quinhentos anos, descreve sua agricultura, sua indústria e densidade demográfica mais ou
menos nos mesmos termos em que são descritos por viajantes de hoje. Talvez tivesse
conseguido aquele complemento pleno de riqueza que a natureza e as leis e instituições
permitem adquirir. Os relatos de muitos viajantes, contraditórios sob muitos outros aspectos,
concordam em atestar a baixa taxa de salários e as dificuldades que um trabalhador tem para
manter sua família na China. Ele se satisfaz se, após cavar o solo um dia inteiro, puder
conseguir o suficiente para comprar uma pequena porção de arroz à noite. A situação dos
artesãos é ainda pior, se é que é possível. Em vez de esperar indolentemente pelos chamados
dos clientes nas oficinas, como acontece na Europa, circulam continuamente pelas ruas
empunhando os instrumentos de seu ofício, oferecendo seu serviço, e quase mendigando
emprego. A pobreza das camadas mais baixas do povo chinês supera de muito a das nações
mais pobres da Europa. Nas adjacências de Cantão afirma-se que muitas centenas e até
milhares de famílias não têm moradia, vivendo constantemente em pequenos barcos de pesca
nas margens dos rios e dos canais. A subsistência que ali encontram é tão escassa, que ficam
ansiosos por apanhar o pior lixo lançado ao mar por qualquer navio europeu. Qualquer
carniça, por exemplo, a carcaça de um cachorro ou gato morto, embora já em estado de
putrefação e fedendo, é para eles tão bem-vinda quanto o alimento mais sadio para as pessoas
de outros países. O casamento é estimulado na China, não porque ter filhos represente algum
proveito, mas pela liberdade que se tem de eliminá-los. Em todas as grandes cidades, várias
crianças são abandonadas toda noite na rua, ou afogadas na água como filhotes de animais.
Afirma-se até que eliminar crianças é uma profissão reconhecida, cujo desempenho assegura
a subsistência de certos cidadãos.” (Adam Smith, A riqueza das nações)

A teoria dos salários de Smith não é simples de ser sintetizada. Smith joga com
vários aspectos do tema e nem sempre é suficientemente claro. A melhor interpretação é
a de que, nessa teoria, os salários são determinados pela relação entre o crescimento do
estoque de capital que irá compor o fundo para o pagamento de salários e as taxas de
crescimento vegetativo da população. Da relação entre essas duas taxas de crescimento
chega-se a certo nível de salário, mas não se determina claramente, em cada caso, qual o
nível teórico de salário de equilíbrio. Há muitos digressões. Ora ele chega a uma fronteira
inferior para o salário real que é a condição para a reprodução da oferta de trabalho. Se
o salário não permite a reprodução, a oferta de trabalho cairá no futuro e os salários
aumentarão, se o salário está acima do necessário para a reprodução, a oferta de trabalho
se ampliará e os salários cairão no futuro. A demanda por trabalhador, como por todas
as outras mercadorias, regula a produção de homens. No entanto, Smith não é explícito
em como as taxas de salário se formam entre uma geração e outra. Os salários podem
ficar indefinidamente acima do nível de subsistência se o estoque de capital crescer
sempre a taxas superiores à evolução demográfica. Em suma, Smith não chega a uma
teoria de salários de equilíbrio. Não se pode dizer que o nível de subsistência seja o valor
de equilíbrio pensado por ele.
Chamam a atenção neste capítulo outras considerações de Smith sobre os salários.
Ele já introduz o que modernamente se conhece por “teoria do salário eficiência”: como
o desempenho do trabalho é afetado pelo salário percebido (Boxe 5.5).
No Capítulo 9, Smith parte para a determinação teórica da taxa natural de lucro.
Assim como os salários, os lucros do capital dependem do estado de progresso da riqueza
na sociedade. Contudo, o processo afeta os lucros de maneira diferente do que afeta os
salários. O aumento do capital faz decair as taxas de lucro ao mesmo tempo em que eleva

100
os salários, quer se trate do capital na sociedade como um todo ou do capital de
determinado negócio. Assim, a concentração dos grandes negócios na cidade reduz as
taxas de lucros nesta localidade, ao passo que a escassez de capital no campo as eleva.
Por outro lado, os salários são maiores nas cidades e menores no campo.

Boxe 5.5 A teoria do salário eficiência de Smith.

Smith escreve: “Assim como a remuneração generosa do trabalho estimula a propagação


da espécie, da mesma forma aumenta a laboriosidade. Os salários representam o estímulo da
operosidade, a qual, como qualquer outra qualidade humana, melhora em proporção ao
estímulo que recebe. Meios de subsistência abundantes aumentam a força física do
trabalhador, é a esperança confortante de melhorar sua condição e talvez terminar seus dias
em tranquilidade e abundância que o anima a empenhar suas forças ao máximo. Portanto,
onde os salários são altos, sempre veremos os empregados trabalhando mais ativamente, com
maior diligência e com maior rapidez do que onde são baixos; é o que se verifica, por exemplo,
na Inglaterra, em comparação com a Escócia, o mesmo acontecendo nas proximidades das
cidades grandes, em comparação com as localidades mais recuadas do interior.” (Adam Smith,
A riqueza das nações)

Então, o efeito da prosperidade nos lucros é a redução deles. O raciocínio de Smith


considera que a expansão do capital torna menores as possibilidades de emprego lucrativo;
a concorrência entre capitais reduz as taxas de lucro. Embora os lucros devam diminuir com
o desenvolvimento da economia, há exceções, como ocorre nas colônias inglesas onde
salários e lucros andam juntos. Nesse caso, altos lucros e salários estão associados à
ocupação de novas áreas com elevado grau de fertilidade e boa localização. Entretanto,
mesmo aqui, os lucros devem diminuir com o tempo, argumenta Smith. Há também
situações em que salários e lucros são conjuntamente baixos, quando, após um grande
progresso, a sociedade entra em estagnação. Portanto, não há necessariamente correlação
inversa entre salários e lucros em toda parte, mas a tendência das variáveis é a de
caminharem em direções opostas. Esse efeito não é de todo indesejável. A baixa taxa de lucro
nos países mais avançados compensa os elevados salários, de modo que os países ricos
conseguem manter preços competitivos no comércio mundial. Isso vale para a relação entre
a cidade e o campo.
Os lucros flutuam muito. Tudo o que afeta preços, concorrência, clientela, risco de
transporte, custo de armazenagem etc. faz o lucro variar no dia a dia. Smith dá especial
ênfase aos juros que são pagos pelos lucros e dedica boa parte do capítulo a discuti-los.
Nesse sentido, há muito material histórico apresentado. Juros do dinheiro e lucros variam
no mesmo sentido e, assim, acompanhar a evolução dos primeiros fornece-nos uma ideia
dos lucros. Na Inglaterra, Henrique VIII decretou um teto de 10% nos juros, Eduardo VI
proíbe completamente a prática dos juros, medida inócua. O decreto 13o de Isabel mantém
o teto anterior, mas Jaime I, no Decreto 21o, reduz o teto para 8%. Após a Restauração
inglesa, ele cai a 6% e finalmente a rainha Ana limita-o em 5%. Após discorrer sobre esses
casos históricos, Smith assevera que tais medidas controladoras apenas conseguiram
seguir as taxas de mercado, mas que em geral poder-se-ia tomar emprestado a um juro
menor do que este. A partir de Henrique VIII o progresso da Inglaterra fez aumentar os
salários e reduzir os lucros. Smith conta-nos que também se procurou reduzir os juros na
França do século XVIII, mas no caso o objetivo principal era reduzir a dívida pública. As
taxas de mercado seguiam um caminho próprio, não totalmente dependentes das taxas
oficiais.
Juros são sempre proporcionais ao lucro líquido. As taxas mínimas de juros devem
remunerar o risco do emprestador e, portanto, os lucros sempre estarão acima deste

101
mínimo. Nos países ricos, os juros são baixos e ninguém vive dele. Como no caso da
Holanda, país tido como mais avançado que a própria Inglaterra, todos são homens de
negócios. Em países pobres, muitos vivem de emprestar dinheiro, a taxa de lucro é mais
alta e a proporção dele destinada ao pagamento de juros é maior que nas nações ricas.
Em suma, como regra, a taxa natural de lucro declina conforme o país se torna mais
rico. Acréscimo nos estoques, no número de empresários ou na competição entre
comerciantes e produtores reduz os lucros. Destarte, Smith indica a trajetória dos lucros,
porém não determina o nível da taxa natural de lucro. A estrutura analítica da teoria dos
lucros de equilíbrio, como anteriormente na teoria de salários naturais, fica sem um
verdadeiro embasamento teórico. No capítulo 10, Smith discute as causas das desigualdades
entre salários e lucros em diferentes ocupações. Mais considerações factuais são introdu-
zidas, mas não se resolve a questão teórica do nível em que essas variáveis são estabelecidas
no equilíbrio.
Finalmente, o último componente dos preços, a renda, é apresentado no capítulo 11.
Aqui se diz que a renda da terra é o preço pago ao proprietário pelo seu uso, “é o máximo
que o arrendatário pode permitir-se pagar, nas circunstâncias efetivas da terra” (Adam
Smith, A riqueza das nações). Depois de pagos os salários e os preços dos demais fatores
de produção, e embolsado um lucro normal, o que sobra do valor da produção é pago em
renda da terra. A renda, diz Smith, não é um pagamento pelo capital emprestado pelo
dono da terra para melhorá-la, não se confunde com lucros e juros. Mesmo terras que
não podem receber melhorias pagam renda, como na exploração de algas marinhas. A
renda é um preço de monopólio; não é proporcional ao que o empresário investiu ou ao
que se pode extrair da terra.
Sempre que a relação entre oferta e demanda eficaz possibilite à mercadoria ser
vendida por seu preço natural, a renda é o que sobra após subtraídos dele os salários, o
pagamento unitário de lucros normais e a reposição do valor do capital. A renda é a
parcela excedente e como tal ela depende da demanda. Se o preço praticado está acima
dos preços normais, uma parte da parcela excedente vai para a renda da terra (outra
parte estaria remunerando salários ou lucros acima dos seus valores normais). Assim, a
teoria da renda de Smith apresenta certa inconsistência: ao mesmo tempo em que a
renda é uma parcela dos preços, e como tal deveria determiná-lo, ela mesma é função
dos preços, pois é obtida como resíduo do valor das vendas e dos salários e juros
praticados. Smith não se incomodou com essa circularidade lógica; no entanto, ciente
dela, David Ricardo tratou de reformular a teoria 50 anos depois.
O capítulo 11 discute ainda os casos de produtos da terra que sempre proporcionam
alguma renda, os que às vezes a proporcionam e quais fatores provocam variação na renda.
Neste último aspecto, diz que a renda é maior perto das cidades e que, além da localização, a
fertilidade é um item importante na sua determinação. A melhoria de transportes tem efeito
sobre as rendas. A renda obtida nos trigais regula a renda das terras dedicadas à pecuária e
outras atividades. Produtos que proporcionam um excedente de valor maior, como as
batatas, aumentam as rendas. Estas são, portanto, as principais considerações de Smith a
respeito dos fatores que condicionam a renda. Voltando à questão dos produtos que sempre
pagam renda da terra, Smith cita o caso dos alimentos. Eles sempre proporcionam renda
porque são desejados por atenderem a necessidades básicas do homem. Outros produtos da
terra, usados no vestuário e em moradia, às vezes pagam renda, às vezes não. Quando a terra
é tratada de modo a oferecer alimentos suficientes para manter as pessoas, há uma demanda
adicional por produtos ligados à fabricação de roupas e moradia. Enquanto houver, para
esses casos, um excesso de demanda, o preço elevado desses materiais proporciona o
pagamento de renda da terra. Quando a terra produz materiais para vestuário e moradia
mais do que requerem as pessoas a serem sustentadas, mesmo estando a terra em estado
natural e não tratado, tais produtos não acarretarão renda. Então a renda depende da
dinâmica da demanda em relação à oferta. Há digressões interessantes sobre a relação entre

102
o preço do carvão em comparação ao preço da madeira e o pagamento de renda nas minas
de carvão. A mina mais fértil regula o preço do carvão e a renda é proporcional à
superioridade das minas. Também é importante a discussão sobre o valor da prata feita,
nesse mesmo capítulo, em conexão com a teoria da renda.
Então a renda da terra é efeito de variações nos preços e não uma causa delas. A renda
das minas de carvão parece ser regulada por um princípio diferente do caso geral. Smith diz
que o custo de produção da mina que não paga renda é um bom indicador do menor preço a
que a mercadoria é vendida. Nota-se, portanto, que, nesse caso, as rendas determinam os
preços.
O livro I contém a principal contribuição analítica de Smith. Embora importante no
contexto histórico, ela é de pouco uso atual. A distinção entre preço natural e de mercado
não é muito importante, já que os preços naturais podem exceder ou estar abaixo do
preço de mercado por séculos. A decomposição dos preços em salário, lucro e renda da
terra também é um tanto inócua. Ela embaralha determinantes micros e macroeco-
nômicos de uma maneira difícil de separar. Mais importante foram as ilustrações de
Smith que educaram gerações posteriores. Conceitos como custo de oportunidade,
equalização de retornos em diferentes usos, relação entre lucro e risco, entre salário e
produtividade são pontos teóricos importantes. Smith tem a virtude de um pedagogo e o
mérito maior do livro é a apresentação cuidadosa e enfática de ideias já conhecidas a sua
época. Além do talento literário inquestionável e dos exemplos históricos.
O livro II também é basicamente de teoria. Ele discute as condicionantes e as carac-
terísticas da acumulação de capital, em que analisa o que determina a oferta de emprego
produtivo e sua distribuição setorial. Há também esboços de uma teoria monetária. O
capítulo 1 discute a diferença entre capital circulante e fixo:
“Há duas maneiras de se empregar um capital, para que ele proporcione uma
renda ou lucro a quem o emprega.
Primeiro, o capital pode ser empregado para obter, fabricar ou comprar bens, e
vendê-los novamente, com lucro. O capital empregado desta forma não gera renda
ou lucro a quem o emprega, já que permanece na posse da pessoa ou conserva a
mesma forma. As mercadorias do comerciante não lhe proporcionam renda alguma
nem lucro, enquanto ele não as vender por dinheiro, e também o dinheiro não lhe
proporciona renda ou lucro, enquanto por sua vez não for trocado por bens. Seu
capital continuamente sai dele em uma forma e volta a ele de outra; somente
mediante essa circulação ou trocas sucessivas pode ele proporcionar-lhe algum
lucro. Por isso, esses capitais são adequadamente denominados de capitais
circulantes.
Em segundo lugar, o capital pode ser empregado no aprimoramento da terra,
na compra de máquinas úteis ou instrumentos de trabalho, ou em coisas similares
que geram uma renda ou lucro sem mudar de donos, ou seja, sem circularem
ulteriormente. Por isso, tais capitais podem com muita propriedade ser
chamados de capitais fixos.” (Adam Smith, A riqueza das nações)
O capítulo 2 discute o papel da moeda e do crédito na circulação de mercadorias e
na acumulação de capital. No capítulo 3, Smith desenvolve o conceito de trabalho
produtivo e discute a relação entre poupança e formação de capital. Sobre o conceito de
trabalho produtivo, diz que esse tipo de trabalho “fixa-se e realiza-se em algum objeto,
em particular, ou mercadoria vendável, que perdura ao menos algum tempo depois de
finalizado o trabalho”. Smith segue a lei de Say e não considera o problema de demanda
efetiva, tal como seria depois apontado por T. Malthus e, no século XX, por J. M. Keynes.
O capítulo 4 é a teoria dos juros de Smith e o capítulo 5 analisa a produtividade do
capital em diferentes setores. Tais capítulos não merecerão aqui uma apresentação.

103
O livro III representa o teste empírico das teorias dos livros I e II utilizando
exemplos históricos. Intitula-se “o diferente progresso da opulência em diferentes
nações”. Enfatiza o comercio entre as cidades e o campo. Estuda a situação da agricultura
na Europa na época após o declínio do Império Romano. Explica de que maneira o
comércio das cidades contribui para o progresso no campo.
Dos três livros restantes da A riqueza das nações, já adiantamos algo sobre eles.
Queremos destacar agora a teoria do comércio internacional de Smith que aparece nos
dois primeiros capítulos do livro IV. E depois veremos temas dos capítulos III a IX do
mesmo tomo.
O capítulo I do livro IV da Riqueza das nações intitula-se “Do princípio do sistema
comercial ou mercantil”. Nele, Smith apresenta as vantagens que o comércio
internacional pode trazer a um país. Começa por criticar a ideia de certa caricatura do
mercantilismo (criada por ele mesmo) de que dinheiro representa riqueza. A verdadeira
riqueza de uma nação, argumenta Smith, é a quantidade de bens que possui. Após um
breve retrospecto das políticas mercantilistas, Smith critica a concepção de que o
comércio exterior só beneficia o país pela entrada de ouro e prata. Afirma que acumular
ouro e prata mais do que o necessário é uma insensatez e que a verdadeira utilidade deles
consiste na facilidade que proporcionam na circulação de mercadoria, não represen-
tando uma forma de riqueza direta. Smith considera que a verdadeira vantagem do
comércio internacional é a possibilidade de se vender a produção excedente que não
encontrou procura nos domínios de um país.
No capítulo seguinte, “Das restrições à importação de países estrangeiros daqueles
bens que podem ser produzidos internamente”, discute detalhadamente várias medidas
intervencionistas no comércio internacional. Não as critica como um todo, preferindo
analisar caso a caso. Começa dizendo que a restrição à importação via taxas ou proibições
cria um monopólio no mercado interno. Como consequência, é desviado capital e
trabalho de outros empregos para o produto favorecido, mais do que ocorreria de outro
modo. Smith discute o efeito dessa medida sobre a produção da economia em geral.
Conclui que a produção não pode aumentar mais do que o capital do país é capaz de
empregar. O direcionamento artificial de capital e trabalho aos setores protegidos da
concorrência externa não é vantajoso para a sociedade. O capital e o trabalho são mais
bem empregados quando as decisões alocativas são guiadas pelo autointeresse:
“Todo indivíduo empenha-se continuamente em descobrir a aplicação mais
vantajosa de todo capital que possui. Com efeito, o que o indivíduo tem em vista
é sua própria vantagem, e não a da sociedade. Todavia, a procura de sua própria
vantagem individual natural ou, antes, quase necessariamente, leva-o a preferir
aquela aplicação que acarreta as maiores vantagens para a sociedade [...] Já que
cada indivíduo procura, na medida do possível, empregar seu capital em
fomentar a atividade nacional e dirigir de tal maneira essa atividade que seu
produto tenha o máximo valor possível, cada indivíduo necessariamente se
esforça por aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade. Geral-
mente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até
que ponto o está promovendo [...] visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como
em muitos outros casos, é levado como que por mão invisível a promover um
objetivo que não fazia parte de suas intenções.” (Adam Smith, A riqueza das
nações)
A expressão “mão invisível” já aparecera na História da astronomia e na Teoria dos
sentimentos morais, obras anteriores de Smith. É a metáfora para um modelo mecânico
de equilíbrio competitivo de mercado.
Para Smith, um único homem, ou um conselho de homens, não poderia orientar
melhor a alocação de capitais entre diferentes setores que o mercado agindo por conta

104
própria. As medidas protecionistas buscam orientar os capitais pelo monopólio do
mercado interno. Se o preço do produto internamente é igual ao preço no mercado
externo, a regulamentação é inútil; se são diferentes, ela é perniciosa. Não é vantajoso
produzir internamente o que se pode comprar lá fora mais barato. Desloca-se, dessa
forma, parte da produção para uma atividade menos vantajosa, o que só pode acarretar
a queda do valor do produto anual do país. Leis regulamentárias conduzem à queda na
acumulação do capital. Os países possuem enormes diferenças nas vantagens naturais e
devem especializar-se em produzir o conjunto de bens que fazem melhor, não impor-
tando se suas vantagens são naturais ou foram adquiridas.
Apesar do forte apelo retórico contra a intervenção no comércio exterior, Smith
ainda defende certas medidas que restringem o comércio com o estrangeiro. Defende a
lei sobre a navegação que confere à esquadra britânica o monopólio do comércio
marítimo de seu próprio país como uma exigência para a defesa nacional. Também
defende que se imponha uma taxa de importação de produtos similares a bens de
produção doméstica taxados dentro do país. Smith também fala em políticas de
retaliações como resposta ao protecionismo de outros países. Em suma, a fórmula do
livre mercado pode ser reavaliada em certas circunstâncias, não se constituindo dogma
geral em matéria de comércio internacional.
O capítulo III do Livro IV discute “As restrições extraordinárias à importação de
mercadorias de quase todos os tipos, dos países com os quais a balança comercial é
supostamente desfavorável”. Critica então as restrições defendidas pelos mercantilistas
como sendo irracionais e ineficientes. No capítulo IV do mesmo livro, Smith oferece a
seguinte observação sobre o reembolso das tarifas aduaneiras:
“Deixar o comerciante se reembolsar da exportação, total ou parcialmente do
valor da exação ou taxa imposta sobre a indústria doméstica, nunca pode ocasio-
nar a exportação de maior quantidade de bens do que a que seria exportada se
não houvesse taxa imposta.” (ibidem)
No capítulo V do Livro IV, denominado “Os prêmios”, Smith critica os incentivos
para as exportações:
“O efeito dos prêmios, tal como o de todos os outros expedientes do sistema
mercantil, só pode forçar o comércio de um país para um canal muito menos
vantajoso do que aquele para o qual normalmente ocorreria por si só”. (ibidem)
No capítulo VI do mesmo Livro IV, intitulado “Os tratados de comércio”, Smith
discorre sobre os três principais artigos do tratado de comércio entre Inglaterra e
Portugal de 1703. Discute o destino dado pelos portugueses ao excesso de ouro trazidos
dos “Brasis”.
“Quase todo o nosso ouro, diz-se, vem de Portugal [...] Quanto mais ouro é
anualmente importado de determinados países, muito acima do que é necessário
para chapa e cunhagem, mais deve ser necessariamente exportado para outros.”
(ibidem)
No capítulo VII, ele comenta sobre as colônias. Alega os motivos para o
estabelecimento de novas colônias:
“O estabelecimento das colônias europeias na América e nas Índias Ocidentais
não surgiu de nenhuma necessidade; e muito embora a utilidade que resultou
delas tenha sido muito grande, não é tão clara e evidente. Não foi entendida logo
de início, e tampouco o motivo de seu estabelecimento ou descobertas que a
ocasionaram, e a natureza, a extensão e os limites dessas utilidades talvez não
tenham sido bem entendidos até hoje.” (ibidem)
Sobre a colônia no Brasil, escreve:

105
“Após as colônias dos espanhóis, a dos portugueses no Brasil é a mais antiga
nação europeia na América. Mas como por um longo tempo depois da conquista
não se encontraram minas de ouro nem prata, e não dando, por causa disso, quase
nenhuma renda à Coroa, por muito tempo foi negligenciada, e durante este
estádio de indiferença, tornou-se uma grande e poderosa colônia. Enquanto
Portugal esteve sob o domínio espanhol, o Brasil foi atacado pelos holandeses,
que se apossaram de setes das catorze províncias em que está dividido.
Esperavam logo conquistar as outras sete, quando Portugal recuperou sua
independência pela elevação da família Bragança ao trono. Os holandeses, então,
como inimigos dos espanhóis, se tornaram amigos dos espanhóis. Concordaram
assim em deixar aquela parte do Brasil que não haviam conquistado ao rei de
Portugal, que concordou em deixar-lhes aquela parte que haviam conquistado,
como questão que não valia a pena disputar entre bons aliados. Mas o governo
holandês logo começou a oprimir os colonos portugueses, que, em vez de se
distraírem com queixas, pegaram em armas contra seus novos senhores, e por
seu próprio valor e resolução, com a conivência, de fato, mas sem nenhuma
assistência reconhecida da terra-mãe, os expulsaram do Brasil. Os holandeses,
portanto, achando impossível conservar qualquer parte do país para si,
contentaram-se com que fosse inteiramente restaurado à Coroa de Portugal.
Nessa colônia, diz que há mais de seiscentos mil pessoas, portugueses ou seus
descendentes, crioulos, mulatos e uma raça mista entre portugueses e brasileiros.
Supõe-se que nenhuma colônia na América contém tamanho número de pessoas
de ascendência europeia.” (ibidem)
Outros temas do capítulo VII dizem respeito às causas da prosperidade das novas
colônias e às vantagens para a Europa da descoberta da América e da passagem pelo Cabo
da Boa Esperança. No capítulo VIII do mesmo tomo, Smith chega à conclusão sobre a
quem efetivamente atenderam as regulamentações do sistema mercantil:
“Não é muito difícil determinar quais foram os arquitetos de todo esse sistema
mercantil: não os consumidores, podemos crer, cujo interesse foi inteiramente
negligenciado, mas os produtores, cujo interesse foi tão cuidadosamente
atendido; e dentre esta última classe nossos comerciantes e manufatureiros
foram de longe os principais arquitetos. Nos regulamentos mercantis, que foram
assinalados neste capítulo, o interesse de nossos manufatureiros foi muito
especialmente atendido; e o interesse, não tanto dos consumidores, mas de
algumas outras categorias de produtores, a ele sacrificado.” (ibidem)
Por fim, no capítulo IX do Livro IV, Smith critica a fisiocracia, também chamada de
sistemas agrícolas ou sistema de economia política. Cita Colbert (ministro de Luís XI) e
Quesnay, “o engenhoso e profundo autor desse sistema”. Merece destaque a famosa
passagem:
“Sr. Quesnay, ele próprio um médico muito teórico, parece ter sustentado uma
noção da mesma espécie, concernente ao corpo político, e ter imaginado que este
viveria e prosperaria apenas sob um certo preciso regime, o exato regime das
perfeitas liberdade e justiça. Parece não ter considerado que, no corpo político, o
esforço natural que cada homem está continuamente fazendo para melhorar sua
própria condição é um princípio de preservação capaz de prevenir e corrigir, sob
muitos aspectos, os maus efeitos de uma política econômica, em certo grau, parcial
e opressiva. Tal economia política, se bem que retarde mais ou menos, não é capaz
de interromper totalmente o progresso natural de uma nação rumo à riqueza e à
prosperidade, e ainda menos fazê-la retroagir. Se uma nação não puder prosperar
com a fruição das perfeitas liberdade e justiça, não haveria no mundo uma só nação
que consiga prosperar. No corpo político, porém, a sabedoria da natureza
afortunadamente fez ampla provisão para remediar muitos dos maus efeitos da

106
loucura e injustiça humanas, da mesma maneira que fez no corpo natural para
remediar os maus efeitos de sua cobiça e intemperança.” (ibidem)
Finalmente vejamos algo do Livro V, que discorre, dentre outros temas, sobre
tributação, política fiscal e dívida pública, sobre a renda do soberano e da comunidade,
a despesa com a justiça, a despesa com as obras e as instituições públicas (para facilitar
o comércio etc.) e as despesas com o sustento da dignidade do soberano. Neste último
tema discorre: “Naturalmente esperamos encontrar mais esplendor na corte de um rei
que na mansão de um doge ou burgomestre”. (ibidem)
Smith escreve sobre as fontes de renda geral ou pública da sociedade, e sobre as taxas
(sobre renda, renda da terra, sobre aluguéis de casas, sobre o lucro ou a renda oriunda
do capital, sobre o lucro de aplicações específicas de capital, sobre os salários do trabalho,
taxas de capitação e taxas sobre bens de consumo). Sobre os débitos públicos, escreve:
“Um país repleto de comerciantes e manufatureiros, portanto, necessariamente
é abundante de um conjunto de pessoas que a qualquer momento tem o poder de
adiantar, se assim o escolherem, uma enorme quantia de dinheiro ao governo. Daí
a capacidade de os súditos de um estado comercial de conceder empréstimos”.
(ibidem)

107
Questões

1. Como Smith caracteriza o processo de descoberta ou invenção científica na História


da astronomia?
2. Descreva o método newtoniano e demonstre que Smith seguiu tal método quando
escreveu A riqueza das nações.
3. Comente esta afirmação (nossa): “Em A riqueza das nações, Smith constrói um
modelo de sociedade onde os indivíduos são guiados apenas pelo seu interesse
pessoal. Essa concepção está em conflito com o que ele escreve na Teoria dos
Sentimentos Morais, pois nessa obra o indivíduo é visto como comandado não só
pelos seus interesses egoístas, mas também pelo juízo que os outros emitem sobre
as suas ações (o princípio da simpatia).”
4. Quais os argumentos utilizados por Adam Smith para demonstrar que a divisão do
trabalho leva ao aumento da produtividade do trabalho?
5. Em Smith, explique o mecanismo em que o crescimento econômico é desencadeado
pela divisão do trabalho. Por que a divisão do trabalho fica limitada pela extensão do
mercado?
6. Comente a proposição (nossa): “Na Riqueza das nações, Smith não explica o que
leva à divisão do trabalho, mas outros escritos desse autor fornecem uma pista para
essa explicação.”
7. É a diferença de talentos individuais em pessoas diferentes que origina a divisão do
trabalho ou é esta que dá origem àquela diferença? Explique a relação, apontada por
Smith, entre esses aspectos.
8. Smith, discutindo os feitos da divisão do trabalho sobre a produtividade, viria a
afirmar que “As nações mais opulentas geralmente superam todos os seus vizinhos
tanto na agricultura como nas manufaturas; geralmente porém, distinguem-se mais
pela superioridade na manufatura do que pela superioridade na agricultura” (A
riqueza das nações). Explique o porquê disso.
9. No capítulo 4 da Riqueza das nações (livro I), Smith escreve: “O açougueiro tem
consigo mais carne do que a porção que precisa para seu consumo, e o cervejeiro e o
padeiro estariam dispostos a comprar uma parte do produto. Entretanto, não têm
nada a oferecer em troca, a não ser os produtos diferentes de seu trabalho ou de suas
transações comerciais, e o açougueiro já tem o pão e a cerveja de que precisa para
seu consumo. Neste caso, não poderá haver nenhuma troca entre eles. No caso, o
açougueiro não pode ser comerciante para o cervejeiro e o padeiro, nem estes podem
ser clientes do açougueiro; e portanto diminui nos três a possibilidade de se
ajudarem entre si” (A riqueza das nações). Essa dificuldade é algo que se pode dar
em várias situações na vida em sociedade. Para Smith, de que forma os homens
conseguem contornar esse problema na prática?
10. Ao investigar o que na sociedade determina o valor de troca de uma mercadoria, por
que para Smith:
a. O valor de uso não serve como critério para a determinação do valor de troca?
b. O valor de troca real não se confunde com seu preço de mercado?
11. Na questão do valor, a estratégia teórica de Smith consiste em encontrar um
elemento que se conserva nas trocas:
a. Qual é esse elemento?
b. Por que, para Smith, nas sociedades evoluídas o trabalho incorporado nas
mercadorias não funciona mais como medida do valor de troca?

108
12. Explique os conceitos smithianos de valor de troca, valor de uso, preço natural e
preço de mercado.
13. Se o preço natural das mercadorias é decomposto, no esquema de Smith, em salário,
lucro e renda fundiária, por que não se poderiam incluir outros componentes como
o juro e o custo das matérias-primas?
14. Sintetize a explicação de Smith para a determinação dos valores naturais dos
salários, dos lucros e das rendas. Que diferenças existem entre a teoria do preço
natural de Smith e a moderna explicação microeconômica do preço de equilíbrio?
15. De que maneira a teoria do valor-trabalho comandado de Smith articula-se logica-
mente com sua teoria do crescimento?
16. Para Smith, por que a acumulação de capital leva a uma queda na taxa natural de
lucros e de que modo isso compromete a continuidade do processo de acumulação?
17. Explique a diferença entre lucro e juro. Por que os lucros globais não podem ser
menores que os juros?
18. Critique a teoria da renda de Smith mostrando a circularidade lógica nela implícita.
19. Smith diz que o verdadeiro benefício que o comércio internacional pode trazer a um
país não está na acumulação de ouro e prata. Assim, de que maneira o comércio
exterior pode contribuir para o enriquecimento do país?
20. Qual a consequência efetiva da acumulação de metais preciosos para um país?
21. Para Smith, quais as consequências da restrição à importação e quais os casos
particulares em que Smith defende a regulamentação do comércio internacional pelo
governo; e com base em que argumentos?
22. Qual a diferença entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo? O que acontece
com o número de trabalhadores produtivos à medida que aumenta o capital
acumulado? Qual o efeito sobre o processo de acumulação de um aumento relativo
no trabalho improdutivo?

109
Leitura Adicional

Literatura Primária

DESCARTES, René. Discurso do método: meditações, objeções e respostas: as paixões da


alma. São Paulo: Abril, 1983.

SMITH, Adam. Os princípios que guiam e conduzem a investigação filosófica ilustrados


pela história da astronomia. In: Essays on philosophical subjects. Oxford: Oxford
University Press, 1980.

_____. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São
Paulo: Nova Cultural, 1996.

_____. Teoria dos sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

NEWTON, Isaac. Princípios matemáticos da filosofia natural. São Paulo: Nova Cultural,
1996.

Literatura Secundária

BIANCHI, Ana Maria. A pré-história da economia: de Maquiavel a Adam Smith. São


Paulo: Hucitec, 1988.

FEIJÓ, Ricardo L. C. A filosofia da ciência em Adam Smith. In: Anais do 19o encontro
nacional de economia. Curitiba: Anpec, 1991.

FONSECA, Eduardo G. Historiography of economic thought: a comparative analysis,


Darwin College. Cambridge: Lest/Easter Terms, 1983. Mimeo.

ROSS, Ian Simpson. Adam Smith: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 1999.

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6
Século XIX: A Economia
Política Clássica

O NASCIMENTO DA ESCOLA CLÁSSICA


Nas primeiras décadas do século XIX, o ensino de economia política gira em torno
da obra de Adam Smith. Todo intelectual com preocupações sociais tem em A Riqueza
das nações um livro de leitura obrigatória. Após a revolução industrial, a Inglaterra
desponta como grande potência econômica, e a gestão do império, que começa a se
ampliar, traz desafios aos que se propõem a dirigir ou opinar políticas públicas. A
circulação generalizada de dinheiro e um complexo sistema de crédito suscitam
controvérsias teóricas. Também as políticas de comércio exterior desafiam a gestão
econômica em questões que iam de proibições à importação, passando por taxas e
impostos aduaneiros, à questão do câmbio.
Os pensadores que se debruçam nessas questões e seguem o modelo básico de Smith
irão compor a chamada economia política clássica. Muitos autores aparecem como
membros desta escola: John McCulloch, Jean-Baptiste Say, James Mill, Nassau William
Senior, John Cairnes, Thomas Hodgskin, Perronet Thompson, Jean Charles Léonard
Simonde de Sismondi, Samuel Bailey, Thomas De Quincey e outros. No entanto, des-
tacamos três autores clássicos mais importantes para estudo neste capítulo: Thomas
Malthus, David Ricardo e John Stuart Mill. Partindo do paradigma smithiano, irão
examinar questões metodológicas, de padronização de linguagem, sobre medida do valor
e distribuição, monopólio, oligopólio, política monetária e comércio exterior. Ainda
elegem como questão central da economia política o crescimento econômico, mas dão
ênfases particulares a diferentes temas ligados à questão básica: Malthus enfatiza a
demanda, Ricardo a distribuição dos rendimentos e Mill preocupa-se com questões
metodológicas e sobre produção, distribuição e propriedade dos bens. De fato, Ricardo e
Mill eram as maiores autoridades na fase áurea da economia política inglesa em meados
do século XIX. Malthus foi relativamente superado por eles, mas sua importância seria
resgatada tempos depois.
As reflexões desses autores clássicos estarão em sintonia com os problemas da
época, muito embora a escola tenha-se tornado, ao longo do tempo, excessivamente
abstrata e descolada desses problemas. Temos como questão inicial, quase sempre
tratada no início das obras, o problema do valor, ou seja, de como os preços são
determinados na sociedade avançada. A estrutura de preços relativos em termos reais
seria explicada pela versão ampliada e aperfeiçoada da teoria do valor trabalho de Smith.
A moeda é usada para explicar o nível dos preços absolutos. Supunha-se a existência de
uma dicotomia entre o lado real e o lado monetário da economia. Não são muito
explorados os vínculos entre a oferta de moeda e o nível de produção, embora Henry
Thornton o tenha estudado no ensaio Investigação sobre a natureza e os efeitos do
papel-crédito da Grã-Bretanha, de 1802. Os problemas econômicos com raízes no setor
financeiro ainda não são muito estudados, e a teoria real mantém primazia em relação à
teoria monetária. A análise clássica dos juros parte da dicotomia já referida, e os juros

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são, para ela, formados no mercado de capitais reais. O nível dos juros é governado pela
demanda de empréstimos por capital de investimento e pela oferta de recursos reais
disponíveis de capital, que por sua vez depende da oferta de poupança bruta. A taxa de
juros seria então o preço do capital. No longo prazo, a oferta de moeda é neutra e não
afeta os juros reais, apenas os preços. A taxa de juros de longo prazo seria determinada,
portanto, neste mercado físico de bens de capital e dependeria de certas variáveis
exógenas ao modelo como produtividade do capital e parcimônia dos poupadores.
No curto prazo, também se reconhecia o papel do mercado de fundos emprestáveis.
A oferta de crédito monetário e a demanda de fundos disponíveis determinariam as taxas
de juros de curto prazo que seriam um fenômeno puramente monetário. Então no curto
prazo os juros são um fenômeno monetário e no longo prazo um fenômeno real. A
conexão entre mercados monetários e mercados de bens foi tentada por Thornton. Ele
acreditava que no longo prazo as taxas reais de retorno do capital fixo seriam iguais às
taxas de retorno no mercado de fundos emprestáveis, mas não sabia explicar direito esta
conexão. A relação entre taxa de juros de mercado e as taxas reais ou naturais de juros (a
produtividade física do capital) não eram bem investigadas. Só no fim do século XIX
Knut Wicksell e Alfred Marshall irão lançar uma luz verdadeiramente esclarecedora à
temática monetária, contudo, tal tema fora tratado anteriormente pelos autores clássicos
em questão, principalmente David Ricardo.
Ricardo esteve envolvido nas controvérsias monetárias da época e era adepto do
estabelecimento de um padrão-ouro. Embora importante, não iremos enfatizar, neste
capítulo, a questão monetária. A ênfase estará na teoria do crescimento, da distribuição
e do valor nos autores clássicos. Pontualmente, também se privilegiam as políticas de
comércio internacional na análise que se segue.
Veremos então três autores, nessa ordem: Malthus, Ricardo e Stuart Mill, por certo
os mais importantes, mas sabemos que outros deveriam aparecer numa análise mais
detalhada da escola clássica. O apogeu dessa escola ocorre entre 1840 e 1860, embora ela
tenha sido hegemônica por todo o século XIX. Após o período áureo, entrou em
decadência. A descrição do processo de crise da escola será tema do Capítulo 8; por ora,
o estudo recai nas principais ideias desses autores, sem visualizar o ambiente externo em
outros países além da Inglaterra, onde se observam movimentos diferenciados no
pensamento econômico da época.

THOMAS MALTHUS
Thomas Robert Malthus (1766-1834) nasceu no seio de uma família próspera. Seu
pai admirava as ideias do filósofo Jean-Jacques Rousseau e era amigo de David Hume e
William Godwin. Malthus ingressou na Universidade de Cambridge aos 18 anos. Estudou
matemática e línguas clássicas e recebeu formação sacerdotal. Nove anos depois, foi
eleito fellow da instituição e em 1797 tornou-se sacerdote. Ao longo de sua vida, Malthus
foi aceito em sociedades culturais importantes como o Royal Society e o Clube de
Economia Política. Teve estreito contato com David Ricardo e James Mill, pai de John
Stuart Mill.
Quando Charles Darwin publicou, em 1859, seu famoso livro A origem das espécies,
os debates que se seguiram como reação à obra foram bastante acalorados. E não seria
para menos. Darwin trata aqui de questões muito sensíveis relativas ao surgimento das
espécies vivas, que afrontavam crenças religiosas seculares. Seu modelo de evolução
biológica parecera naquela época refutar concepções criacionistas e estáticas da vida no
planeta Terra. Para ele, as diversas espécies sofreram, no passado, mudanças e
transformações acarretadas pelo processo evolutivo de seleção natural, até adquirirem a
conformação presente. Darwin explica no prefácio de seu livro que, em parte, sua teoria...

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“É a doutrina de Malthus aplicada com grande ênfase ao reino animal e vegetal
como um todo.” (Charles Darwin, Origem das espécies)
Também não devemos esquecer a contribuição de Alfred Russel Wallace, biólogo
contemporâneo a Darwin e precursor, de modo independente, da teoria da evolução no
domínio natural. Embora muitos desconheçam o fato, Thomas Malthus foi o verdadeiro
guru da teoria evolucionista.
Os estudos de Malthus obviamente não versavam sobre a evolução de espécies
animais ou vegetais, pois enfocam fenômenos propriamente econômicos que incluíam,
como usual na época, a questão do crescimento populacional. Não havia uma
demarcação entre a economia científica e o estudo de fatores demográficos. Pelo
contrário, o crescimento numérico de populações humanas consistia numa variável
endógena ao modelo de determinação de variáveis tipicamente econômicas, como
riqueza, salário, lucro etc. A obra de referência de Malthus nesse tema é o Ensaio sobre
o princípio da população em seus efeitos na melhoria futura da sociedade, com
considerações sobre a especulação do senhor Godwin, senhor Condorcet e outros
escritores, publicada em 1798, portanto, mais de seis décadas antes do livro de Darwin.
Como sugere o título completo da obra, a grande ambição do escrito de Malthus era
contrapor-se às ideias amplamente defendidas, na época, por renomados filósofos
morais e pensadores sociais como William Godwin e Marquês de Condorcet. Tais
filósofos acreditavam na possibilidade de melhorias na condição de vida das pessoas
mais pobres da sociedade pela ação da política social e pelo aprimoramento de
instituições sociais tais como o casamento e o direito de propriedade. O progressismo
radical de Godwin, na Inglaterra, propunha uma mudança na legislação sobre os pobres,
a Lei dos Pobres, de forma que tornasse o pagamento de auxílio social proporcional ao
tamanho das famílias, isto é, ao número de filhos.
Uma característica presente no pensamento do século XVIII, que se manteve no
início do século seguinte, período que estamos considerando, era a peculiar ideia de
natureza. O conceito de natural invadia a todos os domínios do conhecimento, inclusive
a ciência econômica. Para tal crença, natural era sinônimo de necessário, verdadeiro,
equilibrado e harmonioso. Tinha, portanto, um caráter normativo. O próprio sistema
econômico era tido como ordem natural. Malthus evoca a natureza, enquanto conceito
normativo, a fim de recomendar moderação nas políticas de subvenções sociais. É no
seio dessa controvérsia que ele desenvolve, em seu livro de 1798, os fundamentos de uma
teoria da seleção natural. Malthus liga a questão da sobrevivência humana com o
crescimento populacional e a competição por recursos naturais. A quantidade de
alimentos e de outros recursos disponíveis para consumo humano representa, para ele,
freio ou estímulo, dependendo de sua escassez relativa, ao crescimento demográfico. À
luz dessa ideia, maiores transferências de recursos às populações carentes, no longo
prazo, só agravariam o problema, pois elas propiciariam condições para o subsequente
crescimento populacional desenfreado. Na população futura, restabelecer-se-iam as
demandas por mais recursos até encostar-se no limite da capacidade da economia em
atendê-las; ponto a partir do qual se esgotaria a capacidade de expansão demográfica ou
mesmo reduzir-se-ia a população.
Dada a existência dessa lei natural, para Malthus só restaria aos governos esperar
pelo controle voluntário da procriação pelas famílias. Essa seria uma questão antes de
tudo moral, trazida, quem sabe, pela educação, embora o próprio Malthus não revele
muito otimismo de que as famílias, guiadas por imperativos morais, contivessem o
ímpeto irresistível de reprodução. Malthus acredita nas leis irrevogáveis da natureza,
contudo asseverou que os homens deveriam tentar deliberadamente conter seus efeitos
inaceitáveis. A ação da natureza não era tida como um mal em si mesma; em se tratando
de um processo equilibrador necessário. Malthus defendia, porém, que os freios morais
contenham a procriação antes que a natureza, de modo bastante mais doloroso, o faça.

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Não cabe aqui examinar sistematicamente todos os pontos em que Malthus
antecipou a teoria evolucionista de Darwin. Certamente ele não punha em questão sua fé
na doutrina criacionista, até porque era sacerdote da Igreja Anglicana, e a teoria da
evolução das espécies nem se colocava para ele. Além disso, é questionável até que ponto
compartilhou a noção de progresso que seria, décadas depois, desenvolvida por Darwin.
Destacam-se dois pontos principais, característicos do legado de Malthus, que seriam
incorporados, tempos depois, na teoria de Darwin:
1. A crença nos processos espontâneos da natureza.
2. A necessidade de os homens ajustarem-se às condições ambientais. Ele não
enfatiza como o mundo em nossa volta poderia ajustar-se a nossas
necessidades, o ambiente adaptando-se à espécie e não o contrário, como tem
sido estudado na moderna teoria evolucionista.
Então Malthus tornou-se conhecido a sua época, principalmente, pelo Ensaio da
população, que continha importantes ideias sinalizando uma nova visão dos processos
naturais, dentro e fora da economia. No entanto, na presente seção não iremos nos deter
nesse ensaio, pois, mais importantes para o debate em teoria econômica foram seus
Princípios de economia política e considerações sobre a sua aplicação prática, de 1820.
Logo na introdução do livro, Malthus deixa claro o ponto em que seu método se
diferencia do de Ricardo e de outros economistas políticos. Ele achava que se deveria dar
maior ênfase à observação empírica e não se perder em abstrações em excesso:
“A principal fonte de erro e das diferenças que existem no momento entre os
autores científicos em economia política parece-me estar na tentativa precipitada
de simplificar e generalizar; e enquanto seus oponentes mais práticos tiram
inferências demasiado apressadas a partir de um apelo frequente a fatos parciais,
aqueles autores colocam-se no outro extremo e não tentam comprovar suficiente-
mente suas teorias mediante referências àquela experiência ampliada e
abrangente que, em assunto tão complexo, é a única que pode estabelecer sua
verdade e utilidade.” (T. Malthus, Princípios de economia política)
Malthus ficaria caracterizado como adepto de um método em economia que dá mais
importância à experiência em contraposição ao viés mais abstrato e dedutivista de David
Ricardo. Pode-se dizer que Adam Smith continha os dois caminhos metodológicos e, com
base nele, Ricardo enfatizou um e Malthus outro. Também em teoria, Ricardo foi o
principal adversário de Malthus à época e suas ideias acabaram sobressaindo-se às deste.
Os Princípios de Malthus começam com definições; aceita a definição de riqueza de
Smith como uma coleção de objetos materiais. Depois, discorre sobre trabalho produtivo
e improdutivo, considera que a “pedra fundamental do trabalho de Smith é a distinção
que faz entre os diferentes tipos de trabalho”. Pensa, entretanto, que a diferença entre
trabalhos, no que tange a produtividade, é uma questão de grau e que tal produtividade
mede-se pelo montante do valor gerado. Elege a agricultura como a atividade mais
produtiva, porém não nega que a manufatura também seja produtiva.
Em seguida, Malthus trata da questão do valor no capítulo 2 e nesse ponto está
bastante avançado, para além do padrão de sua época. Ele reconhece as limitações de
fundamentar-se o valor no trabalho incorporado, tal como em Ricardo, e assevera:
“Podemos, de maneira realmente arbitrária, chamar o trabalho que foi
empregado numa mercadoria como seu valor real mas, ao fazer tal coisa, usamos
as palavras num sentido diferente daquele em que são habitualmente usadas,
obscurecemos imediatamente a distinção muito importante entre custo e valor e
tornamos quase impossível explicar com clareza o principal estímulo para a
produção de riquezas, o qual, na verdade, depende dessa distinção.” (ibidem)

114
Para Malthus, o valor real de troca de um bem é a capacidade de, com ele, se adquirir
outros bens, inclusive o trabalho. O valor nominal é a capacidade de adquirir metais
preciosos. O valor de uso do objeto é sua utilidade.
O valor nominal de troca é determinado no mercado pela oferta e demanda. Diz a
respeito:
“Essa lei parece ser tão geral que provavelmente não conseguiremos encontrar
um único exemplo de variação de preço que não possa ser rastreado de maneira
satisfatória em alguma variação anterior nas condições determinadas da procura
ou da oferta.” (idem)
Se os valores nominais dependem da ação conjunta da oferta e da demanda, o que
dizer do valor natural dos bens? Malthus escreve que os preços naturais também são
determinados pelas ações dessas duas forças. Isso não significa que o custo de produção
não tenha nenhuma influência sobre o preço natural.
“É claro que essa questão deve ser resolvida pela observação cuidadosa da
natureza da variação que uma alteração no custo de produção ocasiona nas condi-
ções da oferta e da procura e, em particular, pela observação cuidadosa da causa
imediata e específica da variação do preço.” (ibidem)
Os custos só afetam os preços se exercerem alguma alteração nas condições de
oferta. Se os custos aumentarem ou diminuírem, e mesmo assim a oferta permanecer
inalterada por alguma outra razão, “não restará o menor fundamento na suposição de
que haveria alguma variação de preço”. Conclui Malthus:
“A relação entre oferta e procura, quer efetiva, quer ocasional, é o princípio
dominante na determinação dos preços, tanto de mercado quanto naturais [...] O
custo de produção subordina-se necessariamente àquele princípio, isto é, apenas
à medida que seu custo afeta de maneira efetiva ou ocasional a relação entre a
oferta e a demanda.” (ibidem)
O preço natural é simplesmente o preço necessário para “satisfazer as condições de
uma oferta regular”, não é o que a mercadoria realmente vale:
“O valor de uma mercadoria é o seu preço de mercado, e não seu preço natural
ou necessário. É o seu valor de troca e não o seu custo.” (ibidem)
A vertente hegemônica da economia política clássica irá rejeitar a interpretação
malthusiana do valor. O preço estabelecido no mercado pelo concurso da oferta e da
demanda, argumenta, não pode ser o fundamento do valor. Ele só pode estar em algo
que antecede o próprio mercado. Então busca-se nos custos em trabalho esse
fundamento. Todavia, a explicação clássica não dá a devida importância ao papel da
demanda e, como aponta corretamente Malthus, ela confunde valor de troca com custo.
Embora tivesse sido rejeitada, a análise de Malthus é mais próxima da compreensão
moderna do problema. Malthus não dominava técnicas analíticas para uma
interpretação mais sofisticada dos preços, no entanto sua intuição aponta na direção
correta, e suas críticas à teoria do valor ricardiana merecem respeito.
Em outras partes dos Princípios, Malthus discorre sobre temas como renda da terra,
salários, lucros e investiga as causas do crescimento da riqueza. Também nesse livro, ele
antecipa algumas das ideias básicas de Maynard Keynes. Propunha Malthus a realização
de obras públicas para aumentar a demanda efetiva, preocupando-se com o excedente
da oferta sobre a demanda agregada, o que levaria ao declínio da atividade econômica.
Malthus acreditava que a renda dos proprietários de terra teria a função de injetar
demanda no sistema econômico e, sendo assim, mesmo o consumo perdulário teria um
papel social. Injustamente, ele foi acusado de defender os privilégios das classes dos
proprietários. Ao discutir o aumento da riqueza das nações, Malthus propunha que o
governo deveria incentivar a agricultura, mais do que a indústria.
115
DAVID RICARDO
David Ricardo (1772-1823) nasceu em Londres, filho de imigrantes judeus. Homem
de negócios, operador da bolsa, enriqueceu ainda jovem. Vivendo em época bastante
conturbada, em meio a grandes mudanças políticas, sociais e tecnológicas, ele era
defensor de ideias liberais. Em 1799, inicia-se no campo da economia política com a
leitura da obra de Smith. Em 1808, já participa do debate público em torno de questões
monetárias. Em jornais da época, discute a suspensão, ocorrida na Inglaterra em 1797,
da conversibilidade da moeda em ouro. Localiza a causa da inflação da época nas
emissões descontroladas de moeda e não no aumento do preço dos cereais, como se
supunha. Esboça uma versão da teoria quantitativa da moeda na qual, dados os hábitos
de pagamento da comunidade, os preços guardariam proporção com o volume de moeda
vis-à-vis a quantidade de bens e serviços transacionados. A inflação tinha sido criada
pela emissão de moeda para financiar as guerras napoleônicas e não havia até então um
referencial teórico para uma análise monetária.
Ricardo, ao lado de Thornton e Malthus, era rotulado de bulionista e acreditava que
a volta do padrão-ouro traria a almejada estabilidade dos preços. Havia também o campo
dos que pensavam de modo diferente. Para banqueiros, ministros e antibulionistas em
geral, a moeda era gerada endogenamente no sistema de crédito e, assim, não poderia
ocorrer emissão em excesso. Explicavam a inflação pelo lado real, localizando sua causa
nos gastos públicos desenfreados e na queda das exportações.
Um ano após o primeiro artigo versando sobre a queda da libra no Morning
Chronicle, em 1809, Ricardo refuta os críticos em O alto preço do ouro, exposição teórica
abstrata que oferece uma análise de longo prazo. No mesmo ano, apresenta o ensaio
Propostas para um numerário seguro, de grande impacto na opinião pública e que
serviu de base para a criação de um comitê de especialistas que decidiria pela volta da
conversibilidade uma década depois. A partir de então, o regime de padrão-ouro duraria
até a Grande Guerra de 1914.
Ricardo popularizou a explicação do problema da inflação como sendo o efeito do
descontrole nas emissões monetárias, no entanto, a análise de Thornton era mais sutil e
enfocava as relações entre a moeda e o lado real da economia. As teses de Thornton
deram origem à recomendação na qual variações da moeda bancária deveriam
corresponder a mudanças nos estoques de ouro. Em 1844, a Lei Bancária estabelece o
controle das emissões monetárias, com flexibilidade para acompanhar os fluxos de ouro.
Ricardo também se envolveu na discussão sobre a Lei dos Cereais, que proibia a
importação de trigo pela Inglaterra. Na exposição de suas ideias nesse tocante,
desenvolve em 1815 o ensaio analítico Sobre a influência do baixo preço do trigo nos
lucros do capital, em que mostra a inconveniência de restrições à importação. O ensaio
inspirou o livro Princípios de economia política e tributação, de 1817, a principal obra
de Ricardo. Ainda no ensaio anterior, Ricardo argumenta que barreiras à importação
beneficiam produtores menos eficientes, aumentam a proporção dos rendimentos
destinada ao pagamento de renda da terra e dos salários, neste último caso porque cresce
o preço da cesta básica. As transferências para os setores menos dinâmicos da economia
debilitam o crescimento econômico em prejuízo da nação. Em suma, o aumento no preço
do trigo e o consequente aumento nos salários reduzem as taxas de lucro, retardando o
crescimento. As ideias contidas no ensaio não convencem os opositores e levam Ricardo
a debater com James Mill e Malthus, os principais economistas da época. Já famoso,
Ricardo é eleito representante na Câmara dos Comuns.
O livro de 1817 conheceu três edições até 1823, ano da morte de Ricardo. Nessa obra,
Ricardo revela por completo seu estilo: alto nível de abstração, bom domínio da lógica e
no uso de raciocínio dedutivo, grande rigor científico e capacidade de abstração; em que
pese o pouco uso de material empírico. Os “Princípios” de Ricardo representam uma

116
reelaboração dos ensaios anteriores. Começa enunciando o problema central da
economia política: quais as leis que regulam a distribuição do produto nacional entre
renda, lucro e salários? Ao contrário do que se interpreta comumente, Ricardo não
despreza a questão smithiana do crescimento, pelo contrário, tal questão continua
central, contudo, para ele o crescimento depende de como os rendimentos são reparti-
dos. No fundo, a questão que Ricardo coloca é subsidiária ao problema do crescimento.
Ricardo tem em mente que o lucro é a variável que regula o crescimento econômico,
mas não se contenta com a interpretação de Smith que analisa a trajetória das taxas de
lucro sendo determinada pela distância relativa entre oferta de capitais e possibilidades
de investimentos. Para Smith, ao longo do tempo os salários podem crescer menos que
os preços finais e, no processo de acumulação de capital, oportunidades de investimento
lucrativo ficam cada vez menores. Ricardo constata que a relação entre aumento de
capitais e queda nos lucros não vinha acontecendo. Propõe então uma interpretação do
lucro como resíduo, após a dedução dos demais custos de produção. Então é chave
entender como se dá a distribuição, ou seja, como são formados os salários e a renda da
terra.
Para tanto, o passo inicial é investigar a questão do valor. Na seção I do capítulo 1,
Ricardo começa citando a observação smithiana do paradoxo do valor. Conclui dizendo
que a utilidade não é a medida do valor de troca já que tais conceitos estão em relação
inversa, contudo ela é essencial para que haja valor. Existindo utilidade, o valor de troca
ou é derivado da escassez, da disponibilidade em face da demanda, caso de bens raros
como estátuas e pinturas famosas, ou advém da quantidade de trabalho incorporado na
mercadoria, caso da imensa maioria dos bens que são reproduzíveis.
Ricardo critica Smith quando este considera como fundamento do valor ora a
quantidade relativa de trabalho incorporado, nas sociedades primitivas, ora a
quantidade de trabalho comandado ou encomendado, nas sociedades avançadas.
Trabalho incorporado e comandado não são a mesma coisa. No exemplo smithiano, se
um castor é trocado por dois cervos é porque o castor requer, por exemplo, um dia de
trabalho e o cervo apenas a metade disto. Se houvesse mudanças na produtividade
relativa, como aumento na eficiência em que o cervo é apanhado, então o mesmo castor
seria agora trocado por, digamos, quatro cervos. Mantido o mesmo tempo de trabalho,
de lado a lado, a antiga proporção 1:2 é agora 1:4. Quatro cervos são trocados por cada
castor, e não mais apenas dois, a despeito de a quantidade de trabalho incorporada na
obtenção do castor ser a mesma. Antes, era comandado o trabalho de dois cervos, agora
o de quatro. Em unidades de mercadorias, e não de tempo, há mais trabalho comandado
no segundo caso, mesmo que o trabalho incorporado para se obter o castor tenha
permanecido o mesmo. Se o aumento de produtividade tivesse sido o mesmo nas duas
caças, no tempo em que se obtém quatro cervos também se conseguiria dois castores e a
proporção 1:2 permaneceria inalterada. Então, na hipótese de que o impacto de variações
na produtividade não seja o mesmo em todos os setores, trabalho comandado e incorpo-
rado não significam a mesma coisa.
Ricardo assevera que o trabalho comandado depende de uma medida ela mesma
variável, como unidades de trigo e ouro, cujos valores flutuam com a oferta e a demanda.
O montante de trabalho comandado depende de tudo o que afeta os salários. Variações
no preço do trigo, por exemplo, podem provocar variações no trabalho comandado. Já o
trabalho incorporado é um padrão invariável, ele sim o verdadeiro fundamento do valor.
Na seção II do mesmo capítulo inicial, Ricardo discute como o trabalho incorporado
poderia ser quantificado numa unidade comum diante da heterogeneidade do trabalho.
Ele argumenta que os valores de diferentes categorias de trabalho são “acertados no
mercado” em função da destreza relativa e das horas de trabalho. A teoria não precisa
preocupar-se em determinar tais valores, pois as dificuldades em se comparar trabalho

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são automaticamente resolvidas no mercado. O mesmo intervalo de tempo em trabalho
pode conter diferentes valores, se levarmos em conta as habilidades relativas e as
intensidades de trabalho. Em tempo relativamente curto, entretanto, a posição relativa
nos valores entre os bens permanece aproximadamente a mesma, e as desigualdades nos
trabalhos ficam invariáveis.
Na seção III, Ricardo argumenta que mesmo na sociedade primitiva é
imprescindível o uso de algum capital. Mesmo que um castor e dois cervos sejam
apanhados no mesmo tempo, a proporção que iguala valores não será 1:2, se
considerarmos o trabalho passado de construção da arma de caça, digamos, maior no
caso do castor. Então a teoria do valor-trabalho incorporado deve ter em conta o trabalho
incorporado no capital. Como o capital tem certa durabilidade, em cada período em que
é empregado ele transfere apenas uma parcela de seu valor. Quanto menos durável o
instrumento em questão, maior a parcela de seu valor transferida no cômputo do valor
do bem produzido com ele. Ricardo, de início, argumenta que a relação entre salários e
lucros não afeta o valor relativo dos bens, pois influencia de igual modo todas as
atividades.
O valor relativo das mercadorias só dependeria das proporções entre o trabalho total,
incluindo transporte e comercialização. Sempre que dado bem economiza na utilização de
trabalho, cai seu valor relativo. Ricardo nota ainda que a redução de trabalho em edifícios,
máquinas e meios de transportes afeta não somente um único bem. Uma parte reflete-se
no valor dele, mas o restante é distribuído por todos os bens para os quais igualmente
contribuem aqueles capitais. Os capitais têm diferentes durabilidades e utilizam em sua
fabricação distintas quantidades de trabalho. Além disso, certos capitais apoiam direta-
mente a mão de obra envolvida na obtenção de um bem de consumo final, enquanto outros
são investidos na fabricação de ferramentas, implementos, edificações e maquinarias que
somente em período futuro irão contribuir para o produto final. Assim, constatada a
heterogeneidade do capital, Ricardo define os conceitos de capital fixo e capital circulante.
A diferença entre eles leva em conta o tempo de retorno financeiro do capital. O capital
circulante é rapidamente consumido e perece, precisando ser reproduzido em intervalos
pequenos. Já o capital fixo é consumido lentamente e atende a muitas rodadas de
fabricação.
Pode-se ter o mesmo montante de capital, em valor, mas diferentes composições
entre capital fixo e circulante. Quando se levam em conta as diferenças no grau de
duração do capital fixo e a variedade na proporção entre esses dois tipos de capitais, o
valor relativo dos bens finais passa a depender não apenas da proporção entre os
trabalhos incorporados, mas também do próprio salário ou, como Ricardo refere, do
valor do trabalho. Onde há capitais com diferentes composições
“[...] uma subida de salários não pode deixar de afetar desigualmente os bens
produzidos em tão diferentes circunstâncias.” (David Ricardo, Princípios de
economia política e de tributação)
Em seguida, Ricardo fornece um exemplo em que as taxas de lucros podem afetar o
valor relativo de dois bens. Cem trabalhadores estão envolvidos na produção de trigo e
outros cem na construção de máquinas, no período de um ano. Ao final dele, ambos os
produtos têm o mesmo valor, por terem demandados o mesmo número de trabalhadores.
Pense agora num período ampliado de dois anos, em que as máquinas, no segundo ano,
utilizam outros cem trabalhadores na produção de tecido de lã ou artigo de algodão.
Considerando-se que as máquinas se depreciaram totalmente, o valor do bem final seria
o equivalente a 100 trabalhadores por dois anos ou 200 por ano. O trigo, se produzido
novamente no segundo ano, teria o mesmo valor, no cômputo total dos dois anos, do bem
manufaturado. No entanto, o valor do trigo no primeiro ano foi integralmente repartido
entre os agentes produtivos participantes que recebem rendimentos, e gasto por eles. As

118
máquinas, por sua vez, não se dissiparam no final do primeiro período, mas foram postas
a serviço por todo o período seguinte. Com efeito, o proprietário delas não desfrutara do
valor de sua venda ao cabo do primeiro ano, preferindo reinvesti-lo para o segundo ano,
e recebe então um lucro pelo risco e espera no negócio. Ricardo conclui o exemplo
dizendo que o valor do bem manufaturado deve exceder o valor do trigo, ou 200
trabalhadores por ano, “para compensar o prazo maior que deve transcorrer até que o
produto de maior valor chegue ao mercado”, já que o trigo é consumido em bases anuais e
a manufatura somente a cada dois anos. Então, os valores diferem também pela quantidade
de capital fixo, ou trabalho previamente acumulado nele. O valor dos produtos
manufaturados deve incorporar os 200 trabalhadores/ano mais a parcela que corresponde
ao lucro sobre investimento em maquinaria. É claro que mudanças nas taxas de lucro
afetariam novamente os valores relativos entre manufaturas e trigo.
A relação entre salário e taxa de lucro no longo prazo depende de uma série de
suposições que ficarão explicitadas no modelo de Ricardo. No curto prazo, “não pode
haver um aumento no valor do trabalho sem uma diminuição nos lucros”. Assim, um
aumento de salários deprime os lucros e, portanto, a relação entre valores fica, no
exemplo, menos favorável à manufatura. O preço do bem com maior proporção de capital
fixo diminui em relação aos que contêm menos dele.
Na seção V, ao analisar o caso de bens com mesma composição do capital, mas cujos
capitais apresentam diferente duração, Ricardo raciocina logicamente que o bem com
capital de menor duração se comporta de modo análogo ao trigo, isto é, como um produto
com pouco capital fixo. A conclusão imediata é que o valor de troca relativo de bens
produzidos com capital mais durável cai com o aumento de salários, ao mesmo tempo
em que o valor de troca de bens com capital mais perecível é favorecido. Viceja a hipótese
subjacente de que as máquinas não ficarão mais caras com aumento de salários, já que
tal aumento não poderia ser repassado a preços, uma vez que, se isso ocorresse, o
aumento no lucro atrairia capitais de outros setores, com o efeito de reduzir preço e lucro
do maquinário.
A teoria do valor de Ricardo revela-se, dessa forma, mais sofisticada do que parecia
à primeira vista. O valor depende do trabalho incorporado, da composição do capital e
da duração deste. Por conseguinte, os valores de troca relativos passam a depender de
salário e lucro, em contradição com o que o próprio Ricardo afirmara no começo do
mesmo capítulo dos “Princípios”. Qualquer mercadoria, em comparação a outras, está
sujeita a oscilação em seu valor, mesmo que tenha empregado uma quantidade fixa de
trabalhadores em certo período. Coloca-se então a questão de como, em tal contexto, é
possível uma medida de valor invariável, tema da seção VI. Ricardo escreve:
“Quando o valor relativo dos bens se altera, seria interessante dispor de meios
que indicassem quais os que descem e quais os que sobem em valor real.”
(ibidem)
Ricardo se pergunta se é possível comparação dos bens com um padrão de valor
invariável, o qual não estaria sujeito a nenhuma das flutuações que afetam os outros
bens. Para ele, não existe bem que possa oferecer esse padrão, mesmo a moeda. Mesmo
se a produção de moeda metálica consumisse sempre a mesma quantidade de trabalho,
a moeda ainda assim estaria sujeita a variações derivadas de mudanças salariais em razão
das diferentes proporções de capital fixo e circulante “necessárias não só para produzir
como para se obterem os outros bens cuja alteração de valor desejamos calcular”.
O ouro não é produzido com a mesma composição de capital dos outros bens, nem
utiliza capital fixo de igual duração e nem leva o mesmo tempo para ser colocado no
mercado. Assim, a importante questão da necessidade de uma régua inflexível para
mensurar valores, independentemente da divisão do produto social, fica em aberto. Ela
só seria resolvida de modo consistente muito tempo depois por Piero Sraffa, em pleno

119
século XX. A seção VII discute algo mais sobre a natureza do dinheiro e argumenta que,
como o valor dele é variável, não se pode estabelecer uma relação mecânica direta e
inversa entre variações de salário e de lucro.
Estabelecida a teoria do valor, Ricardo lança-se a examinar diretamente a questão
central de como os rendimentos são distribuídos na sociedade, tema dos capítulos
seguintes dos “Princípios”. Já dissemos que o lucro é determinado como resíduo, e assim
o problema da distribuição é atacado como um problema de determinação de salários e
renda da terra. Ricardo toma emprestada a teoria da população de Malthus,
argumentando que o salário real de equilíbrio se deve manter no nível mínimo de
subsistência. Não há muito o que comentar dessa hipótese. Ela foi muito contestada na
época e era uma ideia algo solta. Ricardo falava que esse mínimo de subsistência não é o
mínimo fisiológico para a sobrevivência, mas correspondia a certo padrão de vida das
classes subalternas estipulado pelas condições históricas locais, dependente de fatores
ligados ao hábito e ao costume. Um aumento de salário acima desse mínimo elevaria a
população trabalhadora e reduziria os lucros. O efeito seria duplamente perverso, ao
mesmo tempo em que cresce a oferta de trabalho se reduz a demanda de mão de obra, o
que só pode resultar em queda de salário, trazendo-o ao nível inicial de subsistência.
A teoria da renda da terra é mais sofisticada e merece consideração detalhada. Na hipótese
de livre concorrência, em que a mesma taxa de lucro se impõe em diferentes propriedades rurais,
a renda da terra deve-se à escassez de terras e à diferenciação das produtividades entre elas. No
capítulo 2 dos “Princípios”, Ricardo começa definindo a renda da terra como
“[...] a porção do produto da terra paga ao seu proprietário pelo uso das forças
originais e indestrutíveis do solo.” (ibidem)
Que não deve ser confundida com a parcela paga pela utilização do capital
empregado para melhorar a qualidade da terra. As leis da renda e do lucro são muito
diferentes. Em um país dotado de terras disponíveis ricas e férteis não seria cobrada
renda da terra. A diferença de qualidades das terras dá origem à renda, regulada pela
magnitude dessa diferença. Supondo-se a existência de três faixas de terras, em que o
emprego da mesma quantidade de fatores produtivos dá ensejo à produção de 100, 90 e
80 unidades de cereais, a renda da terra é o excedente acima dos custos básicos de
produção na terra de pior qualidade das que foram ocupadas (ver Figura 6.1).

Figura 6.1 Faixas de terra no modelo de David Ricardo.

100 90 80

O produtor da terra marginal que produziu apenas 80 unidades vende o cereal a um


preço que deve cobrir salários e lucros normais. Esse mesmo preço regula o valor nas
vendas do produto das outras faixas mais internas. A ideia de homogeneidade de salários,
lucros e preços, entre as diferentes terras, assegurada pela hipótese de livre concorrência
e intensa arbitragem entre mercados, leva ao aparecimento de um resíduo excedente nas

120
terras de qualidade superior. Tal resíduo dá origem ao pagamento da renda da terra, que
equivale exatamente a seu valor in natura. Assim, paga-se 20 de renda no círculo central
e 10 na faixa intermediária. A terra marginal não percebe renda.
As diferenças entre as forças produtivas da terra também regulam a renda no caso
em que a mesma faixa de terra é usada aplicando-se quantidades cada vez maiores de
capital. Indo-se de k a 2k unidades de capital aplicado, o produto aumenta 85%; paga-se
uma renda de 15% sobre o produto original associado ao primeiro lote de capital. Os
retornos decrescentes nas aplicações de capital fazem com que terras com cultivo menos
intensivo, com maior retorno por unidade de capital, paguem uma renda pelo critério
explicitado anteriormente. Em qualquer caso, o fenômeno que se observa é o de que com
terras de pior qualidade ou de uso mais intensivo o produto torna-se mais caro, já que a
produtividade dos fatores diminui. É a elevação de preço com a progressão no uso da
terra que resulta no pagamento de renda da terra.
“O trigo não encarece por causa do pagamento de renda, mas, ao contrário, a
renda é paga porque o trigo torna-se mais caro.” (David Ricardo, Princípios de
economia política e de tributação)
O preço é fornecido pela produtividade da última porção do capital. Depende,
portanto, da produtividade do capital. A renda não é componente dos preços das
mercadorias como em Smith. Preços dependem apenas de salários e produtividade do
capital.
A distribuição dos rendimentos com o processo de acumulação de capital pode ser
vista na dimensão temporal com base na articulação das teorias ricardianas básicas de
salário e renda da terra. À medida que novas inversões de capital são feitas, os preços dos
alimentos tendem a crescer pela queda na produtividade dos fatores. Com isso, os
salários por unidade de capital crescem, mesmo que os salários reais permaneçam
constantes no nível de subsistência. A renda, também medida em unidade de capital,
cresce acompanhando o volume ampliado de excedentes nas condições inframarginais
em que o capital é mais produtivo. Já que os lucros são obtidos como resíduo, dada a
diferença entre o produto total e os custos em salários e renda da terra, os lucros por
unidade de capital decrescem não apenas porque parcelas dos custos estão ampliando-
se, mas também porque o produto por unidade de capital é decrescente (pela fertilidade
inferior das terras marginais e pela lei da produtividade marginal decrescente no cultivo
intensivo). A Figura 6.2 ilustra essa ideia:

Figura 6.2 Mudanças na distribuição de renda com acumulação de capital em Ricardo.

O lucro por unidade de capital tenderia a zero com o avanço na acumulação de


capital. A taxa de lucro agrícola determinaria a taxa geral de lucro, por arbitragem, e,
assim, também haveria a queda na taxa de lucro na indústria e demais setores. A queda

121
do lucro leva ao estado estacionário, no qual a economia deixaria de crescer (k
constante). Tal situação poderia ser adiada por inovações tecnológicas na agricultura ou
pela abertura ao comércio internacional que barateariam os preços dos cereais,
argumento teórico também usado por Ricardo contra a Lei dos Cereais. Em suma, há
uma visão pessimista no modelo de Ricardo, no entanto o resultado se pode postergar.
Passando ao largo das questões monetárias e interpretando Ricardo como um
modelo de um único produto, suas conclusões são facilmente formalizadas. Começando
pela teoria do valor. Sendo 𝜔 o salário e 𝑇 a quantidade de trabalho incorporado, ambos
em unidade de tempo, e sendo 𝑟 a taxa de lucros, o valor 𝑣 de um bem é a soma do custo
da produção direta mais o custo do capital 𝑣 = [𝜔𝑇 + 𝑟(𝜔𝑇)] + [𝜔𝑇𝑐 + 𝑟(𝜔𝑇𝑐 )](1 +
𝑟) = 𝜔(1 + 𝑟)𝑇 + 𝜔(1 + 𝑟)2 𝑇𝑐 . Dois bens com a mesma composição entre capital fixo e
circulante, tal que 𝑇 ′ = 𝑇 e 𝑇𝑐′ = 𝑇𝑐 , teriam o mesmo valor 𝑣 ′ = 𝑣.
(1+𝑟)𝑇+(1+𝑟) 𝑇 2
Se há diferenças na relação entre esses capitais 𝑣⁄ = (1+𝑟)𝑇′+(1+𝑟)2 𝑇𝑐′ . Portanto, a
𝑣′ 𝑐
relação entre valores depende da taxa de juros.
Na teoria da renda da terra de Ricardo, sejam 𝑇 e 𝑇 ′ quantidades de trabalho
utilizadas respectivamente na terra marginal e na terra mais fértil; 𝑥 e 𝑥’ são as
quantidades de cereais produzidas nessas mesmas terras. A produtividade 𝑎 do trabalho
na terra marginal é 𝑎 = 𝑥⁄𝑇 e na terra mais fértil 𝑎′ = 𝑥′⁄ ; 𝜔 é o salário em quantidade
𝑇′
(𝑎−𝜔)𝑇
de cereais. O lucro é 𝑥 − 𝜔𝑇 = (𝑎 − 𝜔)𝑇 e a taxa de lucro é 𝑟 = = 𝑎⁄𝜔 − 1. Pela
𝜔𝑇
hipótese de arbitragem, 𝜔 = 𝜔′ e 𝑟 = 𝑟′. Na terra mais fértil, os salários pagos são iguais
a 𝜔𝑇 ′ , o lucro 𝑟𝜔𝑇 ′ = (𝑎⁄𝜔 − 1) 𝜔𝑇 ′= (𝑎 − 𝜔)𝑇′. A renda é dada por 𝑥′ – lucro – salário
total pago = 𝑎′𝑇 ′ − (𝑎 − 𝜔)𝑇 ′ − 𝜔𝑇 ′ = (𝑎′ − 𝑎)T’. À medida que ocorre a acumulação de
capital, cresce o fator (𝑎′ − 𝑎) e a renda paga na terra mais fértil. Mesmo que os salários
reais 𝜔 permaneçam constantes, a massa de salários 𝜔𝑇 cresce à medida que cresce o
número de trabalhadores 𝑇 e os lucros totais declinam pela queda na produtividade do
trabalho 𝑎.
Dessa forma, relata-se a teoria básica de Ricardo do crescimento econômico e da
distribuição da renda. Como indica o título completo da obra, Princípios de economia
política e tributação, questões de política tributária são bastante discutidas ao longo do
livro. Ele estava preocupado com o efeito da incidência de impostos. Ricardo discute
então o que define a capacidade de pagamento de impostos de um país. Diz que ela
depende do valor monetário do rendimento de cada cidadão e do valor monetário das
mercadorias que ele habitualmente consome. Não obstante, para concluir, queremos
enfatizar a teoria do comércio exterior de Ricardo, outro tema importante apresentado
na obra.
Ricardo é autor da conhecida Teoria das Vantagens Comparativas que demonstra
serem vantajosas as trocas internacionais mesmo numa situação em que determinado país
tenha maior produtividade que outro na produção de todas as mercadorias. Essa teoria parte
da premissa de que os valores nas trocas internacionais não são determinados pela
quantidade de trabalho dos bens envolvidos, já que não há mobilidade de mão de obra entre
países. Assim, duas mercadorias intercambiadas podem não representar a mesma
quantidade de trabalho. Ricardo supõe que, no comércio entre Inglaterra e Portugal, dada
quantidade de vinho é transferida em troca de certo montante de tecido. Em cada caso, é
requerida determinada quantidade de mão de obra, representada por horas de trabalho,
como na Tabela 6.1.

122
Tabela 6.1 Teoria das vantagens comparativas: exemplo numérico de Ricardo.
Horas de trabalho por
Horas de trabalho por unidade de vinho
País unidade de tecido intercambiável

Portugal 90 80
Inglaterra 100 120

Mesmo que Portugal só empregue 90 horas de trabalho para produzir uma unidade
de tecido e 80 para a produção de vinho, enquanto a Inglaterra produz as mesmas
unidades empregando 100 e 120 horas de trabalho respectivamente, ainda assim é de
interesse a Portugal especializar-se na produção de vinho, pois esse país, ao fazê-lo,
poupa 10 horas de trabalho, só precisando de 80 das 90 horas de trabalho anteriormente
alocadas na produção de tecido, que são transferidas para gerar uma unidade
intercambiável de vinho que poderá ser trocada pela produção de tecidos da Inglaterra.
Essas 10 horas de trabalho poupadas representam um ganho de bem-estar para os
portugueses. O outro país, ao especializar-se em tecidos, mantém a mesma oferta interna
de vinho, com as importações de Portugal, e ainda poupa 20 horas de trabalho que é a
diferença entre 120 e 100. Portanto, a Inglaterra também tem um ganho de bem-estar.
Ricardo discute outros pontos importantes do comércio internacional, como as
dificuldades de transferência de capital entre países, os problemas do equilíbrio automá-
tico no padrão ouro e o efeito da abertura ao comércio mundial sobre as taxas de lucro
de um país. Ele argumenta que o comércio exterior, de fato, não afeta as taxas de lucro,
mas beneficia o país pelo aumento no volume de bens obtidos e no nível de emprego
doméstico.

JOHN STUART MILL


John Stuart Mill (1806-1873) tornou-se o mais influente economista clássico após
Ricardo. Trinta e poucos anos separam as respectivas idades, portanto Mill foi o jovem
economista mais bem-sucedido a dar prosseguimento à economia clássica, mantendo o
prestígio da escola, ampliando o raio de suas reflexões e renovando-a em alguns pontos.
Filho de James Mill, também notável economista, ele seguiu as influências do pai na
formulação de suas ideias.
O desenvolvimento pessoal de Mill, desde a infância, deve-se a um cuidadoso
projeto pedagógico inspirado nas doutrinas educacionais de J. Bentham. Quando
criança, ele foi afastado do convívio das demais crianças, tido como contagioso, e
submetido a rigoroso programa de aulas particulares e acompanhamento pessoal, levado
a cabo, de início, pelo próprio pai. Ensinou-lhe grego e aritmética aos três anos de idade.
Conhecimentos em história, filosofia clássica, poesia, álgebra e geometria lhe foram
precocemente transmitidos e assimilados antes dos 12 anos. A partir de então, o
aprendizado concentra-se em lógica silogística e já inicia os estudos de economia política.
James confia a tutela do filho a dois amigos: Austin, professor de direito, e David Ricardo
auxiliando a formação de economista. Até os 28 anos de idade, manteve-se inteiramente
imerso na visão da economia clássica e na doutrina ética do utilitarismo de Bentham.
Depois, sua vida conhece um período conturbado, no qual as crenças e os valores
passados são revistos e parcialmente alterados, sob influência dos poetas românticos S.
T. Coleridge, William Wordsworth, Charles Dickens, John Ruskin e, por fim, Thomas
Carlyle, que cunhou para a economia política a expressão “dismal science” (ciência
lúgubre). Também se projeta à mente de Mill o exemplo do positivismo francês de
Auguste Comte.

123
Com o falecimento do pai, Mill resolve manter-se na carreira do serviço público que
ele havia iniciado muito tempo antes, seguindo o exemplo de James. Ambos atuaram na
Companhia das Índias Ocidentais. Mill foi promovido a Encarregado nas Relações com
a Índia, função que lhe transmitiu grande experiência na gestão pública. Ao lado do
emprego regular, ele envolveu-se na organização de periódico voltado à difusão de
reformas radicais na sociedade. Manteve-se em intensa atividade intelectual, atraído
tanto pela lógica, em que procurou conciliar a lógica indutiva com a experimentação,
quanto por economia política. Na primeira área, publica em 1843 o livro Sistema de
lógica e na outra área, cinco anos depois, sua obra máxima em economia, os Princípios
de economia política.
Também exerceu influência marcante na trajetória intelectual de Mill a figura
feminina de Harriet Taylor. Por duas décadas, Mill manteve sentimento platônico pela
mulher casada que o encantara, até que ela se tornou viúva e então contraiu novo
matrimônio, agora com ele, em 1861. Harriet intensificou em Mill o interesse pela
bandeira do feminismo e ainda pelas causas humanitárias. Foi quando ele escreveu
alguns livros sobre liberdade e democracia (dentre outros, Ensaio sobre a liberdade e
Sujeição das mulheres), e passou a militar em prol dessas causas nos últimos anos de
vida. Defendeu o voto feminino e em 1865 tornou-se membro do parlamento britânico,
onde pôde promover algumas das medidas que advogava.
Mill não se destacou apenas como economista, seus escritos cobrem diversas áreas
ligadas ao pensamento político e social. A relação entre a psicologia e a etologia (o estudo
da formação do caráter individual e grupal), o papel da sociologia e o lugar particular
ocupado pela análise econômica são temas recorrentes em suas reflexões. Mill também
se destaca no estudo da filosofia moral, na qual faz uma revisão do utilitarismo ético de
Bentham, bem como na discussão dos conceitos de liberdade e representatividade no
sistema democrático. Queremos destacar, no entanto, o tema de metodologia da
economia que se tornou uma febre entre os economistas da época, e em que Mill era tido
como a maior autoridade.
Mill preocupou-se em estabelecer explicitamente sua visão metodológica, ao
contrário de David Ricardo. Quanto a Adam Smith, como vimos no Capítulo 5, há todo
um arrazoado em filosofia da ciência em sua História da astronomia. Além disso, pode-
se inferir da leitura de A riqueza das nações a combinação de um método dedutivo de
estática comparativa, presente principalmente nos livros I e II, e que seria depois
consagrado por Ricardo, com o uso do método histórico-indutivo nos livros III, IV e V, e
também em algumas passagens dos livros I e II. O método de Smith difere da visão
predominante em sua época, sendo um dos primeiros a ter a coragem de afirmar que a
mecânica newtoniana não representava a verdade, pois as teorias científicas são
máquinas imaginárias. Dada a proeminência do papel ocupado por ele, seria de esperar
que suas concepções metodológicas viessem a influenciar os autores da economia
clássica.
Ricardo é contra o empirismo cru e nega que os fatos falem por si mesmos. Seu
método é o hipotético-dedutivo, propenso a aplicar modelos altamente abstratos
diretamente na análise da complexidade do mundo real. Como hábil político do
parlamento britânico, ele dizia a seus colegas de casa que suas conclusões teóricas eram
tão certas como o princípio da gravitação de Newton. Quando Ricardo dialogava com
Malthus, era mais modesto, afirmando que seu modelo trata de casos fortes e imagi-
nários só para mostrar a operação de certos princípios. J. Schumpeter cunhou a
expressão “vício ricardiano”, para a tentativa forçada de minimizar a separação entre
conclusões abstratas e aplicações concretas.
Ricardo abdicou do elemento histórico e institucional em prol de um método mais
abstrato, acreditando que suas previsões, como o custo crescente do cereal e a queda dos

124
salários ao nível da subsistência, não eram tendências históricas incondicionais, mas
previsões sob certos supostos. Malthus considera o método mais indutivo de Smith
superior ao método puramente dedutivo de Ricardo. Malthus prioriza a construção de
teorias mais empíricas e que cubram fatores de curto prazo, não expressando a teoria
apenas tendências.
Cinquenta anos após a publicação de A riqueza das nações, o economista clássico
Nassau Senior promove a primeira discussão sistemática dos problemas da metodologia
econômica no ensaio Leitura introdutória em economia política, de 1827, ampliado em
outro ensaio de 1836 intitulado Uma visão da ciência da economia política. Neste
mesmo ano, Stuart Mill publica o célebre artigo Sobre a definição da economia política
e do método de investigação que lhe é próprio. Com tal ensaio, adquire a reputação de
grande comentador de questões metodológicas em economia. Mais de dez anos depois,
ele daria importante contribuição à filosofia da ciência ao tratar do problema da indução,
já colocado por Hume, no ensaio Sistema de lógica.
Vejamos agora elementos em comum na metodologia dos economistas clássicos
anteriormente apontados. Focalizando o debate na natureza das premissas teóricas, eles
tendiam invariavelmente a acreditar que tais premissas são derivadas da introspecção ou
da observação casual e não sistemática dos fatos. As premissas obtidas dessa maneira
são tidas como verdadeiras de modo a priori, quer dizer, a certeza delas é conhecida
antes da experiência. A teoria é um processo puramente dedutivo, e suas implicações
seriam verdadeiras na ausência do que Mill denominou de causas perturbadoras. A
experiência teria papel somente na determinação da aplicabilidade do raciocínio
econômico, não servindo para determinar a validade da teoria.
Senior e Mill formulam assim os princípios que governam o método de investigação
da economia. Seus esclarecimentos metodológicos tornaram-se úteis à ciência
econômica num período de intensa controvérsia de ideias. Após a morte de Ricardo, em
1823, assiste-se a um vigoroso debate intelectual sobre a aplicabilidade e a validade do
sistema criado por ele. James Mill e John McCulloch participaram ativamente dessas
discussões, contudo a construção de uma metodologia econômica que fornecesse maior
credibilidade a essa ciência coube de fato àqueles dois autores.
Era importante por essa época justificar a validade da teoria econômica e apontar o
caminho de seu progresso científico. Nesse período, nota-se o aparecimento de duas
tendências metodológicas: de um lado os que asseveram que a verdade dos princípios da
economia só pode ser julgada a posteriori, ao arbítrio dos fatos. A outra tendência viria
a considerar os princípios de que parte o raciocínio econômico verdadeiros a priori.
Senior e Mill adotam esta segunda perspectiva. Senior foi o primeiro, ao que se sabe, a
propor a separação entre ciência positiva e arte normativa. Ele também escreve que a
economia repousa em poucas proposições gerais bem familiares e que as conclusões
decorrentes das proposições são verdadeiras na ausência de causas perturbadoras. Mill,
anos depois, viria a discutir as mesmas questões de Senior de modo mais cuidadoso e
penetrante, dando ênfase maior na verificação das conclusões teóricas. No ensaio de
1836, Mill começa separando ciência de arte da economia política, tomando a mesma
ideia de Senior. A primeira representa uma coleção de verdades materiais, e a segunda
trata de um conjunto de regras normativas.
Ao formular os fundamentos da ciência econômica, Mill afirma que nesse domínio
do conhecimento há princípios primeiros que nos são evidentes e verdadeiros em si
mesmos; e dos quais se tiram inferências que a experiência singular pode até contrariar.
Tais princípios caracterizam a ciência e ajudam a demarcar seus limites. Mill procura
mostrar em economia

125
“[...] a natureza do processo pelo qual suas investigações devem ser conduzidas e
suas verdades devem ser alcançadas.” (Stuart Mill, Definição da Economia
Política, em Essays on some unsettled questions of political economy)
Para tanto, ele vale-se da dualidade entre proposições normativas e positivas: a
ciência descobre as leis que regem os fenômenos independentemente de quaisquer
finalidades; ela lida com fatos e produz assim uma coleção de verdades, estabelecendo “o
que é”. A arte negocia com preceitos, ou regras, e estabelece “o que deve ser”. À maneira
de Senior, Mill classifica a matéria da economia como ciência mental, preocupada com
motivos humanos e modos de conduta na vida econômica.
Mill lança o conceito de homem econômico; ser que existe enquanto se abstraem
dele outras paixões e motivos humanos, exceto o desejo de riqueza e a aversão ao
trabalho. Tal conceito representa apenas um aspecto do homem real que age motivado
também por outros impulsos para além do puramente econômico. Devemos estudar,
escreve Mill, uma causa isolada, para prever e controlar seus efeitos. Assim, as
conclusões da economia política são aplicáveis quando impera a causa isolada por ela. A
economia é tida como ciência moral ou psicológica que trata dos comportamentos
humanos em sociedade orientados pela obtenção de riqueza (entendida como coisas
úteis produzidas pelo trabalho). Em sua esfera, os homens são guiados apenas por
motivações pecuniárias e predomina neles uma única lei de conduta: a busca de riqueza.
A economia política parte de duas abstrações: a conduta motivada pela busca de
renda monetária e a paixão irracional pela reprodução da espécie. A última premissa
apoia-se na teoria da população de Malthus e trata-se de um segundo impulso de
natureza distinta do primeiro. Qual a especificidade do conhecimento na esfera da
economia? Nela, não se parte do singular para o geral, não se emprega o método a
posteriori; raciocina-se sobre hipóteses assumidas, pelo uso da introspecção com base
na observação do semelhante, combinando indução com raciocínio: é o método a priori.
As hipóteses básicas não são derivadas de observações específicas de eventos concretos,
mas de premissas psicológicas em que se desconsidera o aspecto não econômico do
comportamento humano.
Os princípios não provêm da indução completa, mas de algo mais complexo: a
capacidade abstrativa da mente e o poder de transposição mental. Mill trabalha com o
método abstrato-dedutivo no qual opera uma lógica da indução baseada na certeza
subjetiva que garante a objetividade do conhecimento.
Mill estabelece uma demarcação, no plano metodológico, entre ciências naturais e
sociais, ao falar de uma fonte de saber adicional nas ciências sociais: a compreensão
empática. Ele separa as leis da mente das leis da matéria. Estas últimas dizem respeito
ao objeto sobre o qual se age e somente podemos apreendê-las pela observação empírica.
Já as leis da mente referem-se às propriedades do objeto que age. O objeto ativo
apresenta uma identidade com o sujeito cognoscitivo tornando este capaz de apreender
o objeto por introspecção ou compreensão empática.
Não apenas a conduta, mas também o mundo interior do agente está ao alcance da
observação científica, por um processo de transposição da vida psíquica entre observador
e observado. As leis da economia são originadas por introspecção e empatia. São
verdadeiras, porém nem sempre aplicáveis. Por não considerar todas as motivações
humanas, as conclusões da ciência econômica são verdadeiras na ausência de causas
perturbadoras. Para Mill, tais causas são a única incerteza da economia política. Acredita
ele, entretanto, que mesmo as causas perturbadoras têm suas leis próprias e que também
é possível apreender a natureza e a intensidade do distúrbio de modo a priori, somando-
se seu efeito ao efeito decorrente da causa geral.
Aparece então o papel complementar do método a posteriori. Ele permite
identificar as causas perturbadoras e verificar se as leis que a ciência prescreve são aplicá-

126
veis às situações concretas. A contradição entre teoria e eventos reais permite-nos ver em
que lugar atuam as causas perturbadoras, onde a cláusula de ceteris paribus fora violada.
O método a posteriori serve para verificar verdades e não para descobri-las. A falha na
verificação não corresponde a refutação, apenas mostra que a sentença original era
insuficiente. O que se imagina ser a exceção de um princípio é sempre princípio distinto.
O fenômeno observado é a resultante de uma somatória de forças cada qual comandada
por princípios próprios.
Em economia, diz Mill, considera-se apenas a busca de riqueza. Ela vai descrever
apenas as ações que decorrem desse motivo. Como consequência, as leis econômicas
somente expressam tendências. Elas determinam o curso exato dos acontecimentos
quando não operam impedimentos. Os princípios são certos, mas as conclusões incertas.
Muito se tem investigado sobre a relação entre a teoria econômica substantiva de
Mill e sua visão metodológica. O fato é que os Princípios de economia política não
contêm questões metodológicas e parece mesmo não manterem uma unidade
metodológica. A metodologia de Mill busca fornecer sustentação ao sistema teórico de
Ricardo que se encontrava na época abalado pelo fato de algumas de suas predições
terem sido falsificadas pela evidência empírica disponível nas décadas de 1830 e 1840.
As implicações das premissas abstratas de Ricardo diziam que o preço dos cereais
tenderia a crescer, ao mesmo tempo em que o lucro do capital declinaria e os salários
permaneceriam constantes no nível de subsistência. A renda dos proprietários de terras
cresceria constantemente. Todas as previsões do modelo de Ricardo eram tidas como
positivas e testáveis e não apenas hipotéticas. O fracasso da teoria de Ricardo em prever
o que se verificou na primeira metade do século em questão foi reconhecido por Mill em
seu “Princípios”, no entanto ele tratou de salvar o sistema ricardiano por meio de
“estratagemas imunizadores”. Afinal, qual o prazo requerido para que o modelo funcio-
ne, isto é, quando operam as forças de longo prazo? Talvez umas poucas décadas não
permitam falsificar as conclusões teóricas, pois é sempre possível presumir que, neste
período, predominaram as causas perturbadoras que operam a curto prazo.
A metodologia de Mill procura explicitar as regras adotadas implicitamente por
Ricardo, mostrando, dessa forma, a certeza de sua construção teórica. No entanto, a
defesa de Mill não permaneceu, à época, isolada de críticas contundentes. A escola
histórica inglesa não poupou críticas à teoria ricardiana e aos escritos filosóficos que
procuraram defendê-la.18 Em 1875, John Elliot Cairnes voltou-se contra os críticos de
Ricardo. Estando inteiramente convencido da validade das tendências teóricas ricar-
dianas, Cairnes foi mais dogmático que Mill contra o empirismo dos economistas históri-
cos. A economia, diz ele, não é tão somente uma ciência hipotética e dedutiva. Aliás, não
há nada de hipotético em suas premissas. Somente essa ciência começa com o
conhecimento das causas últimas. A ampla verificação da existência das causas justifica,
portanto, elevado grau de confiança em suas conclusões. As leis econômicas, para
Cairnes, só podem ser refutadas mostrando-se que os princípios e as condições assumi-
das não existem ou que a tendência que a lei afirma não segue como consequência
necessária da hipótese. O uso do método dedutivo, no lugar do método indutivo-
classificatório, é um sinal de maturidade da economia, acredita ele.
Feita a apresentação anterior das crenças metodológicas de Mill e dos autores que se
aliaram a ele na defesa do apriorismo, estuda-se agora o conteúdo de sua contribuição
positiva em economia examinando a estrutura dos Princípios de economia política. A obra
está dividida em cinco partes ou livros. O livro I trata de produção, o livro II, de distribuição
e os livros subsequentes, de troca, progresso da sociedade e governo. A separação entre
produção e distribuição é reforçada por Mill, pois ele acredita que enquanto as leis da
produção de riqueza têm o caráter de verdades físicas, a distribuição da riqueza é

18 Conforme veremos no capítulo 8.

127
“[...]exclusivamente uma questão de instituições humanas, depende das leis e dos
costumes da sociedade.” (Stuart Mill, Princípios de economia política)
Exemplos de leis da produção apontados por Mill incluem: o fato de a produção ser
limitada pela poupança, pelas habilidades, tecnologia, uso de máquinas e cooperação no
trabalho; também a lei da produção decrescente da terra e a lei em que o gasto
improdutivo empobrece a comunidade. Sobre essas leis ele escreve:
“As opiniões ou os desejos que possam existir sobre esses diversos assuntos não
governam as coisas em si mesmas.” (ibidem)
No lado da produção, não podemos alterar as propriedades últimas da matéria e da
mente, podemos apenas fazer uso delas. No entanto, as normas que regem a distribuição
variam bastante. Isso não significa que um estudo objetivo da distribuição não seja
possível, porquanto, escreve Mill, embora as normas variem de acordo com o tipo de
sociedade, uma vez conhecidas e fixadas as instituições em estudo, as consequências das
normas têm o caráter de leis físicas.
Posto isso, vejamos o que é abordado no livro sobre produção. No capítulo 1,
discutem-se os seus requisitos. Diz-se que são dois: o trabalho e a presença de objetos
materiais que passam por transformação mediante a atividade humana. A natureza
fornece materiais, energias que cooperam ou substituem o trabalho humano e outras
forças naturais como a coesão dos corpos e as reações químicas. Todo o trabalho, em
última análise, é feito pela força da natureza. Os homens só precisam colocar os objetos
na posição correta. A essência do trabalho humano é movimentar coisas. O agente
natural possui valor de mercado à medida que esteja disponível em quantidade limitada.
No capítulo 2, Mill discute o “trabalho como agente de produção”. O trabalho pode
ser aplicado na produção direta, como o trabalho do padeiro, ou em operações prévias,
como os trabalhos do moleiro, semeador, coletor, arador etc. Todos eles obtêm sua
remuneração do preço do pão. Assim, o preço do bem final remunera todos os
trabalhadores envolvidos. Arados, edificações, cercas etc. são remuneradas a partir do
pão feito em diversas safras, até o desgaste total dos equipamentos; no preço do pão,
também se leva em conta o pagamento de operações de armazenagem e materiais de
transporte. Mill exemplifica: para um arado de 12 anos, em cada ano computa-se 1/12 do
trabalho para fazer o arado, que corresponde ao seu desgaste nesse tempo de uso. Há
também o trabalho para produzir mantimentos que irão sustentar os trabalhadores
durante a produção. Antecipações de alimentos e outros bens para manter os
trabalhadores não serão pagas com base no preço do pão, já que esse trabalho já foi
remunerado. Contudo, tais adiantamentos aos trabalhadores conferem aos proprietários
certa remuneração pela abstenção, que é o lucro com o produto. Portanto, o lucro não
paga o trabalho, mas a espera do capitalista.
O trabalho pode ser empregado sobre a natureza direta ou indiretamente com vistas
à produção. No segundo caso, Mill fornece seis exemplos:
1. Trabalho na produção de matérias-primas, como alimentos, que são destruí-
das em um único emprego.
2. Trabalho empregado em fazer ferramentas ou implementos para ajudar o traba-
lhador. O trabalho para obter-se as coisas que são usadas como meios imediatos
de produção e de que se faz uso repetitivo. Nesse caso, o trabalho de construção
delas é remunerado pelo total dos produtos dos quais contribuem para a produção.
3. Trabalho para a proteção da atividade, tais como construções para a produ-
ção, trabalho do soldado, do policial e do juiz que são pagos com impostos.
4. Trabalho para tornar o produto acessível, como os dos transportadores, dos
construtores de meios de transporte, construtores de estradas, canais etc.,
negociantes e comerciantes. Todos são remunerados pelo preço final, que
cobre trabalho e abstenção.

128
5. Trabalhos que têm por alvo seres humanos, como os de médicos e educado-
res.
6. Trabalho dos inventores de processos industriais, trabalho mental e manual,
remunerados também pela produção.
Na sociedade complexa, é difícil demarcar se o trabalho é aplicado à agricultura, às
manufaturas ou ao comércio, muitas vezes servindo ele a propósitos múltiplos. No
entanto, Mill acredita ser possível separar trabalho produtivo de improdutivo. No
capítulo 3, discute o trabalho improdutivo. Smith havia definido trabalho produtivo
como aquele cujo resultado é palpável em algum objeto material. Outros autores, como
J. R. McCulloch e J. B. Say, assimilam o termo “improdutivo” ao trabalho que não produz
coisa útil ou que é antieconômico. Há, portanto, diferentes significados para as palavras
produtivo e improdutivo. Quando se diz que o trabalho improdutivo não tem por objeto
a produção, deve-se ter em conta que produção não significa necessariamente a obtenção
de matéria. Pois não criamos matéria.
“Podemos fazer com que ela assuma propriedades, em virtude das quais se
transformam de inútil para útil para nós.” (ibidem)
Mill conceitua trabalho produtivo como o que cria riquezas, entendida não como
objetos, mas como algo produzido que gera utilidades. Há três tipos de utilidades
produzidas pelo emprego do trabalho:
1. Utilidades fixas e incorporadas em objetos externos.
2. Utilidades incorporadas aos seres humanos pela educação e
3. Utilidades não incorporadas a objetos, tais como música e apresentação teatral,
que geram diretamente utilidades em vez de adequar uma coisa para que
proporcione utilidade. Nessa categoria está incluída também a ação do exército
e do governo, mas não a dos comerciantes, que apenas mudam o local do objeto.
Essas três categorias de trabalho produzem utilidades, mas não necessariamente
riquezas. As utilidades da terceira classe não constituem riqueza, já que não são
susceptíveis de serem acumuladas, mas as capacidades adquiridas pelo homem são
riquezas. Assim, trabalho produtivo para Mill é todo trabalho que é empregado em criar
utilidades permanentes, quer incorporada em seres humanos, quer em quaisquer outros
objetos, animados ou inanimados. A questão chave é a permanência do produto, não
tanto sua materialidade. O trabalho improdutivo termina no prazer imediato; ele não
aumenta os produtos materiais, e até, em certo sentido, torna a humanidade mais pobre.
Mill também emprega os termos produtivo e improdutivo para o consumo. O
consumo improdutivo em nada contribui para a produção, e o produtivo é destinado a
manter e aumentar as forças produtivas da sociedade. Então há trabalhos destinados a
atender ao consumo produtivo ou improdutivo, e esta é, para Mill, a distinção mais
importante.
O livro I dos “Princípios” de Mill discute ainda a natureza do capital, capítulos 4 a
6, a produtividade dos agentes de produção, capítulos 7 a 9, e as leis que comandam o
crescimento demográfico, a acumulação do capital e a produção agrícola, capítulos 10 a
13. Mill corrige e aprimora proposições que foram feitas nesses temas pelos autores
clássicos já vistos e não se pretende aqui detalhá-las.
Vejamos então o livro II que trata da distribuição da riqueza. Como a distribuição
depende das instituições, Mill lança-se a discutir a propriedade privada e o comunismo,
tema importante que merece exposição detalhada. A instituição da propriedade privada
pode ter características variáveis, e sua origem na sociedade não se deve a considerações
de utilidade. Mill apresenta dois grupos de opositores ao princípio da propriedade indi-
vidual. Os comunistas, como Robert Owen, que asseveram ser desejável a igualdade
absoluta na distribuição de recursos físicos de subsistência e de prazer, e socialistas como

129
Etiènne Cabet que admitem certa desigualdade fundamentada no princípio de justiça ou
equidade geral, em que cada qual deve “trabalhar conforme a sua capacidade e receber
segundo suas necessidades”. Na versão socialista, terra e instrumentos de produção
seriam propriedades de comunidades, associações ou do governo. Também se enqua-
dram no socialismo Saint- Simon e Charles Fourier, que serão apresentados no Capítulo
7 deste livro.
Mill considera o socialismo viável, mas apresenta uma objeção:
“Cada um estaria constantemente preocupado em fugir da sua quota de
responsabilidade no trabalho.” (Stuart Mill, Princípios de economia política)
Nas empresas das atuais economias mercantis, comenta Mill, o trabalhador deve
ser vigiado e o trabalho de controle e supervisão sempre tem o olho do patrão. Em um
regime socialista, cada trabalhador é supervisionado pela comunidade inteira.
Reconhece Mill que no sistema de trabalho vigente não há estímulo para uma maior
produtividade do trabalhador e que no comunismo o trabalho seria executado com maior
eficiência, já que o espírito público seria maior, como no caso de padres e monges. No
entanto, ele se pergunta se o comunismo não poderia levar ao crescimento demográfico
imprevidente. Ao que conclui negativamente, uma vez que, nele, a opinião pública e as
punições resolveriam esse problema. A distribuição das tarefas entre os indivíduos e as
punições seriam um problema a se resolver no comunismo, problema difícil, mas não
impossível.
Após todo esse arrazoado, Mill pergunta-se qual a melhor sociedade. Lembra que
na resposta a essa questão deve-se comparar o comunismo ideal com a melhor forma de
organização que o regime de propriedade privada poderia estabelecer. Se na origem a
propriedade privada foi obtida pela força, não há hoje em dia relação entre o princípio
da propriedade privada e os males físicos e sociais que se associam a ele. A defesa desse
princípio passa então pela proporção entre a remuneração e o trabalho. Há duas
condições para a realização das massas sob quaisquer regimes: a educação e o controle
populacional. Mill pergunta-se:
“Qual dos dois regimes se compagina com o máximo de liberdade e de
espontaneidade humana?” (Stuart Mill, Princípios de economia política)
E em defesa do comunismo argumenta:
“As restrições impostas pelo comunismo seriam liberdade, em comparação
com a condição atual da maioria dos seres humanos.” (ibidem)
Aproveita para criticar também a opressão das mulheres. Novas regras para a
remuneração do trabalho poderiam tornar o regime de propriedade privada mais justo.
Mill demonstra nutrir grande admiração pelos sistemas filosóficos socialistas, não
comunistas, de Saint-Simon e Fourier. O primeiro prega a divisão desigual da produção:
que cada um tenha ocupações conforme vocação e capacidade e que as remunerações
sejam proporcionais à eficiência do trabalho e a seus méritos. Fourier não suprime a
propriedade privada e a herança. Defende a organização do trabalho por associações e a
distribuição com base nos talentos, capacidade de trabalho e dotação de capital. Defende
que sistemas de propriedade comunal deveriam ser tentados.
O assunto continua no capítulo 2 do mesmo livro, onde Mill começa perguntando
quais considerações devem delimitar a aplicação do princípio da propriedade privada.
Define o direito de propriedade como
“[...] o direito de dispor com exclusividade daquilo que alguém produziu com seu
próprio trabalho, ou recebeu espontaneamente.” (ibidem)
Os proprietários dos fundos de capitais, que representam trabalho anterior acumu-
lado, também devem ser recompensados pelo trabalho anterior e pela abstinência.

130
Em seguida, Mill discute o direito de herança. Tal direito é o exercício da vontade
de dispor de um bem privado ao bel-prazer do proprietário. Há os proprietários legais,
mas também a posse não contestada dentro de um número de anos deve ser entendida
como propriedade plena. As leis que defendem a propriedade também asseguram o
direito de transferência na forma de doação testamentária. O direito de doação não se
confunde com o de herança, e as leis atuais que regulam este devem ser reparadas. A
herança não faz parte do conceito de propriedade. Hoje, a propriedade é inerente a
indivíduos e não a famílias. Se os filhos não devem reivindicar a posse plena dos bens
dos pais, após a morte deles, Mill investiga o que a lei poderia fazer para ampará-los.
Critica os direitos de herança dos parentes em linha colateral e acredita que os direitos
dos filhos são reais e inalienáveis. É preciso garantir a eles uma provisão razoável, a fim
de que se mantenha o padrão de quando seus pais eram vivos.
Mesmo o direito de fazer doações testamentárias, atributo do princípio da
propriedade privada, pode em certas circunstâncias ser limitado, se necessário. Cita o
caso dos direitos à propriedade da terra. Já que é o proprietário quem melhora as terras,
esse direito deve vir associado às melhorias implementadas em irrigação, adubo etc. De
modo geral, a propriedade da terra é uma questão de conveniência geral: pode ou não
ser justa. Além disso, o direito à terra para cultivo não implica direito exclusivo de
passagem.
Ainda no livro sobre distribuição, Mill discute as classes entre as quais é distribuída
a produção, capítulo 3, a concorrência e o papel dos costumes na determinação dos
preços, capítulo 4, a escravatura, capítulo 5, a propriedade camponesa, capítulos 6 e 7, o
sistema meeiro e a posse Cottier, capítulos 9 e 10. O capítulo 11 é particularmente de
interesse. Intitulado “Os Salários”, nele Mill lança os fundamentos da famosa teoria do
fundo de salários e a hipótese de trabalho homogêneo. Sobre o que determina os salários,
ele afirma:
“Os salários dependem sobretudo da procura e da oferta de mão de obra; ou
então, como se diz com frequência, da proporção existente entre a população e o
capital. Por população entende-se aqui somente o número de trabalhadores, ou
melhor, daqueles que trabalham como assalariados; e por capital, somente o capital
circulante, e, nem sequer este em sua totalidade, senão apenas a parte gasta no
pagamento direto da mão de obra. A isso, porém, devem-se acrescentar todos os
fundos que, sem serem capital, são pagos em troca de trabalho tais como os
vencimentos de soldados, criados domésticos e todos os outros trabalhadores impro-
dutivos. Infelizmente, não há maneira de expressar com um único termo comum o
conjunto daquilo que se tem denominado o fundo salarial de um país; e já que os
salários da mão de obra produtiva constituem quase a totalidade desse fundo,
costuma-se passar por cima da parte menor e menos importante, e dizer que os
salários dependem da população e do capital. Será conveniente empregar essa
expressão, mas lembrando-se de considerá-la como elíptica, e não uma afirmação
literal da verdade integral.
Ressalvadas essas limitações inerentes aos termos, os salários não somente
dependem do montante relativo do capital e da produção, como, sob o domínio
da concorrência, não podem ser afetados por nenhuma outra coisa. Os salários
(naturalmente no sentido de taxa geral de salário) não podem aumentar a não ser
em razão de um aumento do conjunto de fundos empregados para contratar
trabalhadores ou em razão de uma diminuição do número daqueles que
competem por emprego; tampouco podem baixar, a não ser porque diminuem os
fundos destinados a pagar mão de obra ou porque aumenta o número de
trabalhadores a serem pagos.” (Stuart Mill, Princípios de economia política)

131
Nessa passagem, estão explicitados os fundamentos da teoria do fundo de salários que
seria muito criticada a partir dos anos 1870 (ver Capítulo 8, adiante em nosso livro). Em
seguida, no mesmo capítulo, Mill prossegue criticando opiniões aceitas sobre o que determina
os salários: eles não dependem da situação dos negócios, nem dos preços elevados, e nem
variam com os preços dos alimentos, como acreditou Ricardo. A discussão sobre os salários
prossegue nos capítulos 12 a 14, em que Mill, relaxando a hipótese de trabalho homogêneo,
discute os diferenciais de salários nas diversas ocupações e algumas soluções populares para
os baixos salários. Finalmente o capítulo 15 discorre sobre os lucros e o seguinte sobre a renda
da terra.
O livro III discute a questão das trocas de mercado. Lá aparece a versão milliana da
teoria do valor. Sem romper com a teoria clássica, ele enriquece a compreensão do valor.
Mill diz que ele é um conceito para se discutir a distribuição; como, porém, a distribuição
não é regida pela concorrência, mas pelo uso ou costume, o conceito adquire menor
importância. A questão do valor não afeta a produção, argumenta, mas é fundamental
no estágio social da troca generalizada nos mercados. Afirma então:
“Felizmente nada resta, nas leis sobre o valor, a ser esclarecido por mim ou por
qualquer autor futuro; a teoria sobre esta matéria está completa.” (ibidem)
Ledo engano de Mill, pois anos depois aconteceria a Revolução Marginalista e, com
ela, ampla revisão das teorias sobre valor.
Mill aponta ambiguidades na aplicação do conceito de valor de uso por Smith. Em
economia, observa, a utilidade de uma coisa significa a capacidade dela de satisfazer a
um desejo ou servir a uma finalidade. O valor de uso entendido nesse sentido é um valor
teleológico.
“O valor de uso, ou, como o denomina o Sr. De Quincey, o valor teleológico é o
limite extremo do valor de troca. O valor de troca de uma coisa pode ser inferior
– para qualquer montante – ao seu valor de uso; mas que possa superar o valor
de uso, implica contradição; isso supõe que as pessoas pagarão, para possuir uma
coisa, mais do que o valor máximo que elas mesmas lhe dão como meio de
gratificar as suas inclinações.” (ibidem)
Valor é sinônimo de valor de troca, entendido como poder de compra em geral e não
uma soma em dinheiro. Na hipótese de concorrência plena e autointeresse dos agentes
envolvidos, Mill irá investigar as causas que originam o valor. No capítulo 2, discute a
procura e a oferta e sua relação com o valor, diz que há dois requisitos a fim de que uma
coisa tenha valor de troca: a utilidade e a dificuldade para consegui-la. A utilidade regula
o máximo de valor, alcançado no regime de monopólio, porém a compreensão do valor
pressupõe o conceito de oferta e demanda. A oferta é a quantidade que pode ser obtida,
em determinado tempo e lugar, por aqueles que desejam comprar o bem. A procura
efetiva é resultante do desejo e do poder de compra e varia com o valor. A concorrência
tende a igualar oferta e procura por meio de um ajuste no valor. Se em última instância
é o mercado que regula o valor, qual o papel dos custos de produção? Tal pergunta é
respondida no capítulo 3.
Qualquer mercadoria, para ser produzida, deve ter um valor que cubra os custos de
produção. O valor é determinado pela oferta e pela procura, mas, se ele não compensa o
custo de produção e não assegura o lucro normal, a mercadoria deixa de ser produzida.
Mill trabalha com a noção de valor necessário que cobre tanto o custo de produção
quanto o lucro normal. O valor nunca estará permanentemente acima ou abaixo do valor
necessário, já que se supõe que a oferta de capital e de mão de obra flua entre mercados
equilibrando os valores em direção aos valores necessários. A equalização das expectati-
vas de lucro em diferentes ocupações faz com que as coisas sejam trocadas à razão de seu
custo de produção. Com lucros iguais em diferentes mercados, o valor necessário iguala-
se ao valor natural, dado pelos custos de produção. A renda da terra, no entanto, não faz

132
parte dos custos de produção que determinam o valor. Esse tema é objeto do capítulo 5;
nos capítulos restantes do mesmo livro, Mill ainda discute as questões de crédito e de
comércio internacional.
O livro IV examina os impactos sobre valores, salários, lucros e renda da terra do
crescimento da economia, mostrando a tendência dos lucros em direção a um mínimo e
lançando a famosa hipótese do estado estacionário. O livro V conclui a obra discutindo
temas de tributação.

133
Questões

1. Por que a teoria da população de Malthus é considerada uma teoria naturalista?


Quais as críticas que se fazem a ela?
2. Por que Malthus não acreditava na Lei de Say? Quais as consequências práticas da
teoria de crescimento de Malthus?
3. No início dos Princípios de Economia e Tributação, Ricardo começa criticando a
teoria do valor de Smith. Quais os pontos principais dessa crítica? Por que a teoria
do valor que fora útil para Smith não servia para Ricardo que estava preocupado com
distribuição dos rendimentos?
4. Para Ricardo, o trabalho comandado por uma mercadoria pode ser maior que o
trabalho incorporado? Qual a relação entre esses dois conceitos quando a
mercadoria em questão é a força de trabalho?
5. Na teria do valor trabalho-incorporado de Ricardo, como são avaliados os valores de
mercadorias que são produzidas utilizando-se capital fixo? De que modo as
diferenças de durabilidade do capital afetam o valor? De que modo as respectivas
taxas de lucro afetam os valores relativos de duas mercadorias? A teoria do valor de
Ricardo é, de fato, invariante com a distribuição de renda?
6. Na teoria da renda de Ricardo, explique por que a renda paga é maior nas terras mais
produtivas. Explique também por que o uso cada vez mais intensivo do mesmo lote
de terra proporciona renda. Qual a lei fundamental de produção subjacente ao
fenômeno da renda da terra?
7. É correto dizer que Ricardo estava preocupado apenas com uma teoria da distribui-
ção de renda?
8. Em Ricardo, é correto afirmar que os salários nunca afetam o valor de troca da
mercadoria? Senão, em que condições o salário afeta tal valor e de que forma? (Pense
em mercadorias produzidas com diferentes combinações de capital fixo e circulante
e diferentes durabilidades do capital empregado.)
9. Exponha detalhadamente a teoria da renda de Ricardo confrontando-a com a
respectiva teoria de Smith.
10. Como os retornos decrescentes na agricultura afetam:
a. O preço dos alimentos em termos de trabalho incorporado?
b. O valor nominal dos salários?
c. O valor dos lucros e a taxa de crescimento da economia?
11. A teoria do valor de Ricardo é, de fato, invariante com a distribuição de renda?
12. Considere o modelo de Ricardo que toma todos os rendimentos medidos em unida-
des de cereais e a identidade física entre produto e capital (tal como no ensaio de
1815). Mostre que, se a e a’ representam, respectivamente, a produtividade por
trabalhador nas terras marginal e inframarginal, a renda aferida pelo proprietário
desta última é dada por (a’ – a).T’, na qual T’ é o número de trabalhadores
empregados na terra inframarginal.
13. Qual a diferença entre as categorias “trabalho” e “força de trabalho”?
14. Caracterize, demarcando as diferenças, o método de Ricardo e o de T. Malthus. De
que modo os seguidores de Ricardo procuram salvar a teoria do mestre contra a
observação de fatos que contrariavam as previsões da obra de Ricardo?

134
15. Na teoria de Ricardo sobre o comércio internacional, como um país que possui
vantagens absolutas na produção de todos os bens pode, ainda assim, se beneficiar
do comércio com outros países?
16. No que consiste a metodologia “apriorística”? Qual o papel da confrontação com os
fatos para essa metodologia? No que consiste o chamado “vício ricardiano”?
17. Qual a base da defesa da propriedade privada feita por Mill? Para ele, em que
condições o princípio da propriedade privada deve ser limitado? A esse respeito,
comente as opiniões de Mill sobre herança e propriedade da terra.
18. Em Mill, há leis universais comandando a distribuição de renda e a produção?
19. O que é trabalho humano para Mill? O que é trabalho indireto e de que modo ele é
remunerado? Dê exemplos deste tipo de trabalho.
20. Qual o papel da oferta e da demanda na determinação do valor para Mill e no que
sua teoria difere da de Ricardo?
21. Comente os prós e os contras levantados por Mill na avaliação do comunismo.

135
Leitura Adicional

Literatura Primária

DARWIN, Charles. Origem das espécies. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985.

MALTHUS, Thomas Robert. Essay on the principle of population. Londres: Everyman’s


Library, 1967.

_____. Princípios de economia política e considerações sobre sua aplicação


prática. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

MILL, John Stuart. Princípios de economia política com algumas de suas aplicações à
filosofia social. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

_____. Essay on some unsettled questions of political economy. New York: Kelley,
1968.

RICARDO, David. Princípios de economia política e de tributação. Lisboa: Fundação


Calouste Gulbenkian, s.d.

Literatura Secundária

DEANE, Phyllis. A evolução das idéias econômicas. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

BLAUG, Mark. A metodologia da economia. São Paulo: Edusp, 1992.

ELSTER, John. Social norms and economic theory. Journal of Economic Perspectives, v.
3, 4, 1989.

MATTOS, Laura V. Economia política e mudança social: a filosofia econômica de John


Stuart Mill. São Paulo: Edusp, 1998.

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, [s.d.].

SEN, Amartya. On the darwinian view of progress. Population and Development Review,
v. 19, 1, 1993.

136
7
Karl Marx

VIDA E OBRA
A Revolução Industrial da segunda metade do século XIX teve como base o
desenvolvimento do eletromagnetismo com as experiências seguidas de muitos físicos
brilhantes e a síntese matemática de James Clerk Maxwell, que com suas quatro equa-
ções básicas, envolvendo campos elétricos e magnéticos, proporciona uma completa
compreensão teórica dos fenômenos naturais observados em laboratório. A aplicação dos
achados da ciência física na construção de motores, na comunicação por telégrafo, na
indústria siderúrgica e em outros campos cria as condições para novo impulso no
desenvolvimento do capitalismo industrial. Às expensas dos bens de consumo populares,
intensifica-se o investimento em bens de capital cuja criação ampliada cobrava um
elevado custo social com grandes privações para as massas. De fato, as classes sociais
inferiores foram as mais sacrificadas. Mais uma vez, as relações tradicionais no seio das
comunidades eram substituídas por pura relação de mercado. O trabalho foi sendo
crescentemente especializado em operações mecânicas simplificadas e a tirania do
relógio no interior das fábricas ditava o ritmo do trabalho, inteiramente dependente das
máquinas. Mulheres e crianças eram empregadas nas fábricas. A Lei dos Pobres, na
Inglaterra, não conseguia assegurar os direitos das crianças, e muitas delas ficavam aos
cuidados de inescrupulosos que se dedicavam a traficá-las. Os capatazes eram pagos para
manter a rígida disciplina do trabalho e recebiam pela produtividade. A condição da
mulher na sociedade foi revista à medida que ela passa a desempenhar papéis nas
fábricas que antes eram prerrogativas de homens. Crescem as cidades na Inglaterra, num
ambiente empoeirado e sem condições mínimas de higiene. O poder absoluto e
irrefreável dos grandes industriais foi contestado em motins organizados pelos trabalha-
dores. Até 1813, eclodem revoltas de grupos deles contra o sistema fabril, contudo os
ímpetos contestatórios foram sendo dominados pelo emprego da força e pela necessi-
dade de sobrevivência dos revoltosos.
O governo tratou de intervir nas relações sociais, fazendo a revisão das leis que
haviam sido edificadas, muito tempo atrás, no fim do século XVIII. A Lei das Associações,
de 1799, visava coibir as ações dos primeiros grandes sindicatos na indústria têxtil. Um
complexo sistema de auxílio aos pobres havia sido edificado; entretanto, muitos
argumentavam que tal sistema teria contribuído para a queda dos salários e limitado a
mobilidade da força de trabalho. A nova legislação, de 1834, condicionou a assistência ao
pobre à exigência de internação nas Casas de Trabalho.
Nem todos, porém, acreditavam que reformas nas leis poderiam conter o quadro
desumano criado pela expansão capitalista. A descrença com a sociedade, tal como era,
tinha levado alguns pensadores a imaginarem um novo tipo de sociedade regulada por
outras regras e princípios. Muitos deles chegaram a implementar, em contextos
particulares, pequenas comunidades regidas pelos critérios imaginados. Seguiam o
exemplo de Gerrard Winstanley, que, no século XVII, tinha fundado uma comunidade
nas terras da coroa inglesa. Na época da Revolução Francesa, havia-se difundido a ideia
de que a tomada do poder por populares poderia, enfim, eliminar as injustiças sociais
criadas pela desigual condição humana. Gracchus Babeuf pregava o socialismo como

137
modelo social e foi executado logo após a queda de Robespierre. No entanto, ao contrário
de Babeuf, a maioria dos socialistas pensava que a transição ao novo modelo de sociedade
poder-se-ia realizar de modo pacífico.
Na Inglaterra, conservadores rotulados de Tóris propunham reformas sem ruptura
na sociedade. Robert Owen (1771-1858) critica os excessos cometidos por empresários
industriais, acreditando que por meio de empreendimentos industriais de caráter
experimental poderia demonstrar a superioridade de um modelo mais humano nas
relações de trabalho. Imaginava ele que o ambiente da fábrica poderia funcionar como
uma irmandade de iguais, na qual os operários seriam estimulados a dar o melhor de si.
Em troca, seriam recompensados e tratados com toda consideração. Para Owen, o
socialismo atenuaria a competição e faria prevalecer relações de cooperação entre os
homens. Todavia, a fábrica experimental de Owen não foi bem-sucedida, e ela só pôde
funcionar mantendo uma rígida disciplina do trabalho.
Outros também pensavam que o socialismo poderia vir a prevalecer a partir de
exemplos bem-sucedidos em experimentos particulares. William Godwin (1756-1836)
faz a defesa da classe operária mostrando que ela tem sido quase sempre prejudicada
pelas leis que só favorecem os ricos. Godwin acredita que a educação e o bom uso da
razão levariam à transformação social. Outro conservador radical, Henri de Saint-Simon
(1760-1825) pensava que o governo deveria participar diretamente na produção e na
distribuição de riquezas. A propriedade privada não deveria ser abolida, mas usada no
interesse das massas. Tidos como mais eficientes que a pequena manufatura, os grandes
empreendimentos industriais não são combatidos; Saint-Simon, porém, assevera que
eles deveriam ser canalizados para atender ao interesse público.
Charles Fourier (1772-1837) foi outro que acreditou ser possível reformar o capita-
lismo pela força dos exemplos. No entanto, as cooperativas rurais que fundara também
foram uma experiência fracassada. Fourier critica a concorrência no capitalismo
alegando que ela leva sempre ao monopólio. O capitalismo é um sistema irracional, já
que nele poucos realizam trabalho útil para a sociedade, enquanto a maioria é composta
por parasitas. Finalmente outro socialista que se destacou no período foi Joseph
Proudhon (1809-1865), que contesta radicalmente a existência da propriedade e afirma
literalmente que a propriedade é um roubo.
Todos esses socialistas apontados anteriormente, à exceção de Babeuf, acreditam
que reformas políticas graduais poderiam levar a uma sociedade melhor. Na segunda
metade do século XIX, aparece a concepção do socialismo como algo a ser alcançado pela
revolução social. Ele não seria obtido pelas reformas nas leis e nem pelo exemplo
particular. Seus adeptos substituem a concepção do socialismo como uma utopia ideal
pelo socialismo como método de interpretação da história e de ação política. O principal
nome na teoria do socialismo revolucionário foi o pensador alemão Marx.
Karl Marx (1818-1883) nasceu em Tréveris, região então desenvolvida e com
moderna agricultura ao sul da Alemanha. Filho de família relativamente abastada, de
origem judaica e convertida ao cristianismo, seu pai foi brilhante jurista e lhe conferiu
vigorosa orientação formadora. Marx perdera-o com apenas 20 anos, mas as influências
do falecido pai permaneceram por toda a vida. Aos 17 anos, ingressou no curso de direito
na Universidade de Bonn. Em Bonn, iniciou relação afetiva com Jenny von Westphalen,
com quem viria a casar-se anos depois. Jenny era filha do Barão de Westphalen, membro
proeminente da sociedade de Tréveris e o responsável pelo interesse de Marx na
literatura romântica e nas ideias saint-simonianas. No ano seguinte, o pai de Marx
enviou-o à Universidade de Berlim, tida como mais séria, na qual permanece por quatro
anos, tempo em que abandona o romantismo.
O rico ambiente cultural despertou o interesse de Marx pela filosofia, especialmente
por Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e pela leitura dele feita pelos Jovens

138
Hegelianos. Marx torna-se membro desse movimento, e seu grupo incluía os teólogos
Bruno Bauer e David Friedrich Strauss, que fazem crítica radical ao cristianismo e, por
implicação, estão contra os opositores liberais da aristocracia prussiana, afeitos ao
regime democrático e constitucional. A filosofia hegeliana, no entanto, já se encontrava
em crise e cisão, e Marx ateve-se a certos elementos dela, enquanto negava outros. O que
logo de início ele tratou de se desvencilhar foi o idealismo, em prol de concepção
materialista que o leva à escolha do tema de sua tese de doutorado em filosofia no estudo
comparativo dos filósofos gregos materialistas Demócrito e Epicuro, defendida na
Universidade de Jena em 1841.
O materialismo de Marx foi reforçado com a leitura da obra de Ludwig Feuerbach
(1804-1872), A essência do cristianismo, lançada em 1841, que propôs apoiar a crença
materialista no naturalismo antropológico e na revisão do conceito hegeliano de
alienação. Enquanto a noção de alienação em Hegel descrevia o processo em que as ideias
se realizam nas criações objetivas da história humana, para Feuerbach alienação
corresponde à perda da essência humana, o afastamento de si mesmo em prol da
submissão ao Deus projetado. No lugar do cristianismo, propõe ele um humanismo
naturalista. Embora Marx tenha acolhido com entusiasmo as ideias de Feuerbach, ele
havia rejeitado a descrição naturalista e universal do homem e a crítica à dialética
hegeliana, tida por Feuerbach como mera especulação mistificadora. Para Marx, o
caráter do homem dependeria do lugar por ele ocupado na trama das relações sociais e o
princípio dialético de Hegel não deveria ser descartado, mas elaborado para a criação de
uma dialética materialista. Assim, Marx, em sua crítica ao idealismo hegeliano, ainda
manteve a dialética, agora redefinida como elemento propulsor do materialismo. Na
história da filosofia, a noção de dialética ganha diferentes significados. Nos pré-
socráticos, é a mutabilidade do mundo, a transformação de toda propriedade em seu
contrário. Em Platão e Aristóteles, adquire o significado de arte da discussão. Em Kant,
é a força dos aspectos contraditórios no processo de desenvolvimento das ideias, que
possui uma conexão interna a ser desvendada pela filosofia. Marx reteve a concepção
dialética de Hegel, porém não como propulsora das ideias e sim como motor do
desenvolvimento nas relações econômicas.
As contribuições de Marx foram firmando-se enquanto tendência particular dentro
do materialismo filosófico. Ele afasta-se das noções filosóficas idealistas de Hegel, da
crença de que “todos os fenômenos da natureza e da sociedade têm sua base na ideia
absoluta”. Reteve, entretanto, o conceito de alienação e o ponto de vista dialético da
compreensão da realidade. A dialética de Hegel, afirma Marx, estava correta, mas deveria
ser posta de cabeça para baixo, substituindo-se o idealismo pelo materialismo, a visão da
história como sendo movida pelo desenvolvimento do espírito absoluto pela ideia de que
as condições materiais seriam o motor verdadeiro do devir histórico.
A matéria é o princípio primordial, e o espírito, apenas um reflexo secundário dela.
Da matéria surge a consciência, e o conhecimento do universo é a realidade refletida
nessa consciência. No entanto, a realidade enquanto tal existe independentemente da
consciência. Os primeiros filósofos materialistas apareceram na Grécia antiga. Thales de
Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito, Demócrito e Epicuro, todos eles procuram
identificar o elemento material básico, o bloco de construção do universo: água, vapores,
átomos materiais e até mesmo o fogo foram selecionados como sendo esse elemento.
Depois, na Idade Média, as concepções materialistas sobreviveram na filosofia
nominalista. Na Renascença, Giordano Bruno manteve crenças materialistas. Tido como
herege, ele foi condenado à fogueira. O hilozoísmo e o panteísmo acreditam que as
sensações e outros fenômenos psíquicos possuem as mesmas propriedades do mundo
físico. No século XVIII, surge o materialismo mecanicista de La Metrie, Diderot e
Holbach. Tidos como ateus, suas concepções escandalizaram o mundo em sua época.
Feuerbach, portanto, pôde contar com uma longa tradição em filosofia materialista. Ele

139
usou o materialismo em seu ataque a Hegel; e Marx, mesmo não aderindo integralmente
às teses de Feuerbach, esteve sob suas influências. Todavia, entre eles, apenas Marx uniu
o materialismo à dialética na construção de seu materialismo dialético que acredita estar
embasado na prática social e aspira ser a teoria orientadora da revolução do proletariado.
Com a pretendida carreira universitária impedida pelo governo prussiano, Marx
muda-se para o jornalismo e em outubro de 1842 torna-se editor, em Colônia, da
influente Gazeta Renana, um jornal liberal financiado por industriais. Foi a atividade
política, no exercício do jornalismo, que o impeliu ao estudo da economia política e das
teorias socialistas. Os artigos de Marx, particularmente em questões econômicas, força-
ram o governo da Prússia a fechar o jornal. Marx, então, emigra para a França após se
casar com Jenny em 1843.
Chegando a Paris no fim de 1843, ele rapidamente trava contato com grupos organi-
zados de imigrantes alemães que faziam oposição ao absolutismo prussiano e com vários
adeptos de diferentes seitas socialistas francesas. Ele publica, em colaboração com
Arnold Ruge, figura destacada da esquerda hegeliana, o periódico de curta duração Anais
Franco-alemães, que pretendia unir os socialistas franceses aos radicais alemães de
inspiração hegeliana. Durante seus primeiros meses em Paris, Marx torna-se comunista
e expôs suas concepções numa série de escritos reunidos depois nos Manuscritos
econômicos e filosóficos, que permaneceram não publicados até 1932. Nesses “Manus-
critos”, Marx delineia uma concepção humanista do comunismo, ainda sob influência da
filosofia de Feuerbach e com base no contraste entre a natureza alienada do trabalho no
capitalismo e a sociedade comunista na qual os seres humanos desenvolveriam
livremente sua verdadeira natureza na produção cooperativa. Foi em Paris que Marx
inicia sua parceria, que se desenvolveria por toda vida, com Friedrich Engels (1820-
1895), filho de um industrial têxtil e afastado do curso universitário, mas que se tornara
incansável autodidata, movido por enorme curiosidade intelectual. Engels também se
ligara ao movimento dos Jovens Hegelianos.
O primeiro contato intelectual entre ambos se deu nos Anais, em que consta artigo
de Engels intitulado Esboço de uma crítica da economia política, tido como genial na
avaliação de Marx. O “Esboço” de Engels focaliza a obra dos economistas clássicos
ingleses como expressão da ideologia burguesa da propriedade privada, que não teria,
portanto, uma significação científica. Marx convencera-se, com a influência do amigo, de
que sua atividade teórica em complemento à ação política teria como orientação a crítica
da economia política.
Em dois ensaios publicados nos Anais, Introdução à crítica à filosofia do direito de
Hegel e A questão judaica, Marx esboçara, por meio da “dialética materialista” e de sua
concepção teleológica da história, o modo como o proletariado alemão seria a classe
agente da transformação mais profunda que deveria combater o absolutismo na Prússia
e abolir a divisão de classes na nova sociedade. Nos Manuscritos econômicos e
filosóficos, Marx indicara a evolução de seu pensamento da matriz de Hegel e Feuerbach
para a nova visão do materialismo dialético assentada fundamentalmente na ideia de
oposição entre as classes, e, no caso do capitalismo, também na oposição entre o
proletariado e a propriedade privada. Só a alienação dos trabalhadores permite manter
esta instituição em pé. Marx fornece um novo conteúdo ao conceito-chave de alienação,
agora não visto como objetivação de ideias (como em Hegel), ou como perda da essência
humana pelas crenças ilusórias da religião (como em Feuerbach), mas enquanto
processo da vida econômica. A essência humana objetiva-se nos produtos do trabalho do
operário que a ele se contrapõem por serem produtos alienados e convertidos em capital.
O capital domina os produtores em escala cada vez mais ampliada, à medida que cresce
por meio da incessante alienação dos novos produtos do trabalho.

140
A essa época Marx formula o conceito de alienação de sua fase madura. Antes, ele
havia interpretado no sentido da alienação micro, ou seja, o operário não conhece o efeito
real da contribuição de seu trabalho particular no conjunto das operações da fábrica que
resultam no artigo vendável a que ela se destina. Agora, Marx pensa na alienação em sua
dimensão macro, como o automatismo do capital num modo de produção particular; o
capitalismo funcionando como uma “segunda natureza”, a concepção de que o capital
possui leis próprias de funcionamento e é movido por uma lógica, que lhe é intrínseca,
em direção à acumulação, submetendo os agentes a essa mesma lógica. Qualquer ator
social vira mero suporte de relações e deixa de ter uma vida voltada à execução de seus
próprios desígnios. As exigências da acumulação capitalista impõem-se aos objetivos
individuais e empobrecem o sentido da vida humana.
Feuerbach argumenta que Deus foi inventado pelos homens como projeção das
próprias ideias deles. Contudo, escreve, ao criarem Deus como sua imagem haviam
alienado o homem dele mesmo. Eles criaram outro ser em contraste consigo, reduzindo
si próprio a uma criatura pecadora que necessitaria da religião e dos governos, a fim de
guiarem-na e controlarem-na. Se a religião fosse abolida, diz Feuerbach, os seres huma-
nos superariam o estado de alienação. Marx inova e transforma tal ideia de alienação
aplicando-a à propriedade privada; propriedade essa que faz o homem trabalhar para ela
e não para o bem de sua espécie. Nos Manuscritos, a ideia de alienação tem uma base
econômica. Só a sociedade comunista poderia contrapor-se ao efeito desumano da
propriedade privada.
Sob pressão das autoridades prussianas, o governo francês expulsa Marx de Paris
no fim de 1844. Na companhia de Engels, ele move-se para Bruxelas, permanecendo por
lá nos próximos três anos. Nesse período, visita a Inglaterra, onde a família de Engels
possuía uma indústria de tecelagem de algodão em Manchester. Marx iria residir em
Londres a partir de 1848. Marx e Engels trabalham conjuntamente o livro A sagrada
família, de 1845, em que os amigos jovens hegelianos são criticados por manterem a
interpretação hegeliana do conceito de alienação. Ainda em Bruxelas, no mesmo ano
Marx trabalha em algumas notas, As teses sobre Feuerbach, que, em colaboração com
Engels, seriam ampliadas e resultariam no livro A ideologia alemã. Trata-se de intenso
estudo em história em que se elabora o que viria a ser conhecida como a concepção
materialista da história. A tese fundamental é a de que a natureza dos indivíduos depende
do papel deles na produção material ou que o pensamento humano é determinado pelas
forças socioeconômicas. Marx traça a história de diferentes modos de produção,
desenvolvendo o método de análise do materialismo dialético, em que a ação de forças
históricas leva à mudança na sociedade. Ele prevê o colapso do estágio atual, o
capitalismo industrial, e sua substituição pelo comunismo.
Na obra A ideologia alemã, o materialismo de Marx alcança plena maturidade. Sua
filosofia procura ser antimetafísica e contrária ao idealismo. Ela é o estudo das leis mais
gerais que regem a natureza, a sociedade e o pensamento, partindo do modo como a
realidade objetiva se reflete na consciência. Estuda como se transforma a matéria, como
se realiza a passagem das formas inferiores às superiores. Sua teoria do conhecimento
enfatiza a prática social como critério de verdade. As verdades científicas são sempre
parciais enquanto conhecimento limitado pela história.
O materialismo histórico de Marx, tido como um desenvolvimento do materialismo
dialético, estuda as leis sociológicas que caracterizam a vida em sociedade, bem como
sua evolução histórica e a prática social dos homens no desenvolvimento da humanidade.
Ao mesmo tempo em que estabelece as bases do materialismo histórico, A ideologia
alemã critica os jovens hegelianos e Feuerbach, pois, contrariamente à opinião deles, a
história não é o mero resultado de um jogo de ideologias e da presença de grandes heróis.
O verdadeiro fundamento dela reside nas formações socioeconômicas e nas relações de
produção. Marx e Engels não negam a força das ideias; pelo contrário, afirmam serem

141
elas capazes de introduzir mudanças na base econômica que as originou. Decorre então
a importância da ação dos partidos políticos e de outras associações.
O materialismo histórico trabalha com conceitos. A unidade do processo social é o
“ser social”, não o indivíduo, mas suas relações uns com os outros e com a natureza. Tais
relações têm existência objetiva, não dependendo da consciência individual. A
“consciência social” é o conjunto de ideias políticas, jurídicas, filosóficas, estéticas e
religiosas, mais a psicologia das classes sociais. Esse conjunto de ideias e representações
constitui-se por meio da história. Outros conceitos centrais são os “meios de produção”,
tudo o que é empregado para gerar bens materiais, as “forças produtivas”, que englobam
meios de produção, capacidade técnica, conhecimento e rotinas de produção, as
“relações de produção”, relações de propriedade, de cooperação, submissão e outros
vínculos que se estabelecem entre os homens na produção, e os “modos de produção”,
conceito mais abrangente que caracteriza o estágio de desenvolvimento da sociedade,
entre comunidade primitiva, escravagismo, feudalismo, capitalismo e comunismo, o
ápice na escala de evolução das sociedades.
O modo de produção é basicamente composto de três estratos. A base material que
são as forças produtivas, o conjunto de relações sociais que compõe as relações de
produção e a “superestrutura”, o conjunto de crenças ou a ideologia que mantém a coesão
entre os homens justificando o status quo e compelindo-os ao cumprimento dos papéis
individuais, contrapondo-se à “infraestrutura” (ver Figura 7.1).

Figura 7.1 Diagrama representativo do modo de produção.

A filosofia do devir histórico de Marx e Engels é cravejada de conceitos, não apenas


os que definimos anteriormente. Diversos outros termos e expressões adquirem
conotação particular no interior de uma ontologia social. Sociedade, formações socio-
econômicas, estrutura social, organização política da sociedade, vida espiritual, cultura,
história, personalidade e progresso social, cada qual deve ser interpretado à luz do
quadro de referências associado a tal sistema filosófico (Boxe 7.1). A concepção
materialista da história parte da materialidade do mundo, no qual tudo é matéria em
movimento e a matéria é anterior à consciência. O mundo pode ser conhecido; primeiro
as qualidades e depois os aspectos quantitativos e as causas dos fenômenos.
Simultaneamente à composição de A Ideologia alemã, Marx trabalha na elaboração
de um polêmico panfleto, A miséria da filosofia, no qual ele demarca nitidamente as
teses do socialismo revolucionário das crenças socialistas anteriores. Os escritos de
Owen, Godwin, Saint-Simon e Fourier são considerados formulações ilusórias do
socialismo a que Marx rotula de “socialismo utópico”. Nesse ensaio, ele tem em vista
principalmente a concepção socialista idealizada de Proudhon. Não se pode negar,
entretanto, as influências que esses socialistas tiveram na formação de Marx.

142
Em 1847, uma organização de trabalhadores emigrados da Alemanha, com sede em
Londres e conhecida como Liga Comunista, convida Marx e Engels a participarem de
uma reunião nessa cidade na condição de líderes teóricos. Ao final dela, eles são
solicitados a escreverem uma declaração de suas posições pessoais. Ela apareceria no ano
seguinte em meio à eclosão de diversas revoluções na Europa; intitula-se Manifesto
Comunista.

Boxe 7.1 Aspectos da lógica no sistema filosófico de Marx.

Além de conceitos peculiares, a crença de Marx parte de uma ontologia social, que
identifica o que constitui os objetos da realidade social, e de uma lógica. A lógica é apenas uma
linguagem. A lógica dialética de Marx é uma alternativa à lógica tradicional. Esta última aceita
o princípio da não-contradição: duas proposições opostas não podem ser simultaneamente
verdadeiras. Marx, seguindo a filosofia hegeliana, acredita que em certas circunstâncias o uso
dessa lógica pode levar a resultados contraditórios e busca contornar tais dificuldades. Se a
realidade é contraditória, ou seja, se a contradição está no próprio objeto de estudo, é melhor
aceitá-la desde o início e examiná-la no prisma de uma lógica que aceita a contradição. A lógica
que não admite a contradição, ao examinar uma realidade ela mesma contraditória, leva a
resultados também contraditórios. Tratando a realidade por meio de uma lógica que admite a
contradição, chega-se a resultados não contraditórios. Portanto, a lógica dialética apreende
melhor a realidade do capitalismo.

O “Manifesto” condensa o trabalho teórico dos autores em termos de estratégia e


tática política. Sua fórmula é simples; ele declara que toda a história tem sido a história
da luta de classes. Sobre o capitalismo, o enfrentamento entre a classe trabalhadora e os
capitalistas resultará no comunismo. A eclosão da revolução na Alemanha e em outros
países da Europa conduz Marx de volta à região de Colônia, onde ele inicia a publicação
do periódico Nova Gazeta Renan , que até seu fechamento, em maio de 1849, defende a
perspectiva comunista no decurso de uma revolução democrático-burguesa. Com o
fracasso do movimento liberal na Alemanha, Marx transfere-se permanentemente a
Londres.
Por muitos anos, ele e sua família viveram na pobreza, ajudados pelas pequenas
subvenções de Engels e de parentes. De 1851 a 1862, Marx contribui para o jornal
americano New York Tribune, escrevendo artigos e editoriais. Ele permanecia,
entretanto, a maior parte do tempo no Museu Britânico, estudando economia e história
social e desenvolvendo suas teorias.
As ideias de Marx levaram alguns alemães refugiados em Londres a estabelecerem,
em 1864, a Associação Internacional dos Trabalhadores, conhecida como “Primeira
Internacional”. No ano em que eclodira uma breve comuna em Paris, em 1871, o nome
de Marx começa a tornar-se conhecido em alguns círculos políticos europeus.
Os estudos de economia em Londres resultaram na obra O capital, a mais impor-
tante de Marx. Ele concluiu o primeiro volume em 1867 e outros dois foram editados
postumamente em 1884 e 1894. Marx hesitou em publicar esses dois volumes, tendo
trabalhado neles até seus últimos dias. O lançamento póstumo deles deu-se graças à
iniciativa de Engels, que também reuniu esboços feitos por Marx na compilação de um
quarto volume. O capital é o ápice no desenvolvimento do trabalho de Marx em
economia política. Em 1857, ele já havia produzido um gigantesco manuscrito de 800
páginas intitulado Grundrisse, a respeito de temas como capital, propriedade da terra,
salário, o papel do Estado, comércio exterior e mercado mundial,. Tal obra permaneceu
desconhecida, e só seria publicada em 1941. No começo dos anos 1960, Marx havia

143
composto três volumes reunidos nas Teorias da mais-valia, na qual critica as teorias da
economia política, particularmente as de Smith e Ricardo. O volume 1 de O capital é uma
reelaboração ampliada dessas reflexões, analisando o processo capitalista de produção e
elaborando sua própria versão da teoria do valor-trabalho e seus conceitos de mais-valor
e exploração articulados num modelo que levaria à queda na taxa de lucro e ao colapso
do capitalismo industrial.
Um dos motivos porque Marx demorou em publicar O capital foi que ele, na época,
devotava muito de seu tempo e energia à Primeira Internacional, na qual havia sido eleito
para o Conselho Geral em 1864. Marx esteve ocupado em preparar os congressos anuais
da “Internacional”. Uma batalha interna desenvolve-se então entre Marx e o anarquista
russo Mikhail Bakunin, contestado e depois expulso por Marx. Embora Marx tenha
vencido o conflito com Bakunin, a transferência da sede do Conselho Geral de Londres
para Nova York em 1872, apoiada por ele, levou ao enfraquecimento e posterior declínio
do movimento. O evento político mais importante no período de existência da
“Internacional” foi a Comuna de Paris em 1871, quando os cidadãos de Paris se rebelaram
contra o governo e mantiveram a cidade sob controle por dois meses. Ao longo dos
combates sangrentos da rebelião, Marx escreveu um de seus mais importantes panfletos
A guerra civil na França, defesa entusiasmada do comunismo.
Marx foi demitido da Primeira Internacional em 1872 e passou seus últimos anos
trabalhando em sua obra mais importante, O capital, à medida que seu estado clínico ia
crescentemente se debilitando. Mesmo às custas de sua saúde, Marx manteve-se ainda
engajado em movimentos políticos. Na Alemanha, ele opôs-se à aliança entre seus
seguidores Karl Liebknecht e Augusto Bebel e o governo socialista de Lassalle, que procu-
rava unificar o partido socialista. O ponto de vista de Marx a respeito aparece na Crítica
ao programa de Gotha. Ele também estava atento aos eventos na Rússia; em correspon-
dência com Vera Zasulich, Marx contemplava a possibilidade de este país pular o estágio
capitalista de desenvolvimento e ir direto ao comunismo.
Durante a última década de sua vida, Marx lutava para recuperar a saúde. Ele esteve
em vários spas europeus e até na Argélia em busca de uma melhora. A morte de sua filha
mais velha, Jenny, e de sua esposa o debilitou ainda mais. Falecido em 1883, Marx foi
enterrado no Cemitério de Highgate em Londres.
Mais do que a especialização em economia, Karl Marx foi filósofo, cientista social e
historiador, além da atividade prática como revolucionário. Ele é, sem dúvida, o
pensador social mais influente do século XIX. Suas ideias sociais, econômicas e políticas
tiveram rápida aceitação no movimento socialista após sua morte. Até recentemente,
quase a metade da população do mundo vivia sob regimes que se autoproclamavam
marxistas. No entanto, em vida, Marx foi completamente ignorado nos meios acadêmi-
cos.
Veremos, no Capítulo 8 deste livro, que na época em que Marx dedicou-se a estudar
a economia clássica com o intuito de criticá-la a ciência econômica vinha atravessando
um período de crise de credibilidade. A contribuição econômica de Marx poderia ter-se
firmado como novo paradigma em substituição aos clássicos. Essa possibilidade não se
realizou, pois, seu sistema teórico deixou de atrair para si os descontentes da época com
a economia de David Ricardo e Stuart Mill. No século dele, antes da década de 1880, sua
obra em nada afetou o ambiente acadêmico dos economistas. Embora o primeiro volume
de O capital tenha sido publicado em alemão em 1867, ele só seria traduzido para o inglês
em 1887. Marx morreu relativamente desconhecido. Os expoentes da Revolução Margi-
nalista, Jevons, Menger e Walras, não conheciam suas ideias.
Alguns historiadores buscam equivocadamente interpretar o surgimento da econo-
mia marxista como reação ao marginalismo e à sua tentativa de salvar a crença na
eficiência dos mercados, dando-lhe outra roupagem teórica, alternativa aos clássicos. Ou

144
então que o marginalismo seria uma reação ao marxismo. No entanto, em seus primeiros
trabalhos, a teoria marginalista não pode ser vista como mera tentativa de defesa do
capitalismo ou como uma reação ao avanço das ideias socialistas na Europa. Somente
após a difusão do marxismo, as ideias de Marx passam a ser criticadas pelos
marginalistas, que empregam seu peculiar instrumental teórico para atacá-las. Desta-
camos, entre os críticos de Marx, os nomes de Wicksteed, Pareto, Wieser e Böhm-
Bawerk. Particularmente este último procurou refutar Marx por meio de uma nova
interpretação do conceito de exploração.
Os marxistas acusam a aparente assepsia da teoria da utilidade marginal de ser uma
defesa do status quo, pois, argumentam, nela não se pode lutar contra a propriedade
privada, já que a alocação eficiente de recursos pressupõe sua aceitação. Tal teoria
também fornece uma justificativa para a desigualdade na distribuição de renda, ao falar
em remunerações dos fatores por suas produtividades marginais.
Avaliar o impacto ideológico da Revolução Marginalista é uma questão controver-
tida. Para alguns, o conceito de utilidade marginal é ideologicamente neutro. Quem é
mais apologético ao capitalismo, a escola clássica ou o marginalismo? Algumas coisas na
economia clássica servem como instrumento para defender a propriedade privada e o
capitalismo, como, por exemplo, a teoria do fundo de salários, por razões evidentes. Por
outro lado, há certos elementos que poderiam ser considerados subversivos no
marginalismo: de acordo com ele, e se fossem possíveis comparações interpessoais, uma
distribuição igualitária da renda maximizaria a satisfação social. Tal argumento margi-
nalista apareceu no movimento socialista Fabiano. Também se argumenta que, entre os
marginalistas, Walras era um reformista social e que Pigou teria derivado conclusões
igualitaristas da teoria da utilidade marginal. Há ainda o caso de George Bernard Shaw,
que tentou construir um socialismo vulgar com base nos trabalhos de Jevons e Menger.
Então o marginalismo foi tido como até mesmo mais “progressista” do que a escola
clássica. No estágio inicial de desenvolvimento da análise marginalista, tal análise não
foi usada para criticar a teoria de Marx. Contudo, socialistas radicais não interpretavam
assim, e a teoria marginalista da utilidade foi atacada por eles como sendo meramente
uma nova versão da economia ortodoxa, nova linha de defesa, necessária em face do
ataque bem-sucedido de Marx ao argumento clássico do laissez-faire. No entanto, hoje
sabemos que ela não foi uma resposta burguesa às teses de Marx.
O sucesso das ideias de Marx no meio político não significa que ele tenha sido
completamente assimilado no contexto do desenvolvimento lógico das teorias econô-
micas e sociais. Com efeito, o sistema marxista angariou adeptos mais em função de seus
apelos humanistas e da promessa de um mundo melhor do que em função de uma
compreensão verdadeiramente científica de suas ideias. O mito de Marx pesou mais do
que critérios racionais de substituição de teorias. A interpretação nebulosa e pontos
obscuros do sistema marxista resultaram no processo em que várias de suas ideias
originais foram frequentemente modificadas e seu significado adaptado a uma grande
variedade de circunstâncias políticas. Adicionalmente há o fato de muitos dos escritos de
Marx terem sido publicados com grande atraso, de modo que apenas em décadas
recentes os acadêmicos tiveram a oportunidade de apreciar a estatura intelectual de
Marx.
Marx é um economista bastante singular no desenvolvimento do pensamento
econômico. Sua obra vastíssima (Boxe 7.2) abrange não apenas questões econômicas,
mas também uma ampla variedade de temas.

145
Boxe 7.2 Livros, artigos e entrevistas de Karl Marx.*

1843 Crítica à filosofia do direito de Hegel


1843 Cartas a Arnold Ruge
1844 Introdução à crítica à filosofia do direito em Hegel
1844 A questão judaica
1844 Notas críticas sobre o “Rei da Prússia”
1844 Excertos dos elementos de economia política de James Mill
1844 Manuscritos econômico-filosóficos
1844 A sagrada família
1845 Teses sobre Feuerbach
1845 A ideologia alemã (com Engels)
1847 Liga comunista (com Engels)
1847 A miséria da filosofia
1848 Discurso: sobre a questão do livre comércio
1848 O manifesto comunista (com Engels)
1848 Discurso: comunismo, revolução e Polônia livre
1848 Demandas do partido comunista na Alemanha (com Engels)
1849 Salário, trabalho e capital
1850 A revolução do século 17 na Inglaterra (com Engels)
1850 A luta de classe na França: 1848 a 1850
1852 Revolução e contrarrevolução na Alemanha
1852 O dezoito brumário de Luís Bonaparte
1852 Revelações sobre a colônia comunista de Trial
1857 Introdução à contribuição para a crítica à economia política
1857 Formações econômicas pré-capitalistas
1857 Grundrisse
1859 Contribuição para a crítica à economia política
1861-63 Teorias da mais-valia, v. 1
1861-63 Teorias da mais-valia, v. 2
1861-63 Teorias da mais-valia, v. 3
1863 Proclamação na Polônia
1865 Valor, preço e lucro
1867 O capital, Livro I
1869 A abolição da propriedade da terra
1871 New York World: entrevista com Marx
1871 Resolução da conferência de Londres sobre a ação política da classe trabalhadora
(com Engels)
1871 A guerra civil na França
1872 A alegada ruptura na Internacional (com Engels)
1872 Relatório para o Congresso de Hague
1875 Conspectos do livro de Bakunin “Estatismo e anarquia”
1875 Para a Polônia (com Engels)
1875 Crítica ao programa de Gotha
1879 Chicago Tribune: entrevista com Marx
1879 Reformistas no partido social-democrático da Alemanha (com Engels)
1879 Carta circular a Bebel, Liebknecht, Bracke, et. al. (com Engels)
1880 Notas marginais sobre o Lehrbuch der politischen Oekonomie de Adolph Wagner
1880 Introdução ao programa do partido dos trabalhadores franceses
1885 O capital, Livro II
1894 O capital, Livro III

* Anos em que foram escritos e não necessariamente publicados.

O que torna a interpretação econômica de Marx particularmente afastada da


ortodoxia é a peculiar maneira como ele combina diferentes raízes de seu pensamento

146
na interpretação da economia. Há o fundamento filosófico alemão, alicerçado na visão
de Georg Hegel, com a dialética, a noção de ideias objetivadas e sua teoria do progresso.
Dele Marx extrai a interpretação econômica da história e certas teses ontológicas e
metodológicas. Há também o materialismo de Ludwig Feuerbach e o conceito de
alienação. Da economia política, Marx serviu-se de fontes tais como Smith e Ricardo,
donde encontrou inspiração para sua teoria do valor trabalho e outras noções: a divisão
de classes sociais, a noção de arbitragem entre mercados que iguala as taxas de lucro, a
preocupação com a evolução do capitalismo na teoria da queda tendencial da taxa de
lucro e uma miríade de conceitos. Finalmente dos socialistas utópicos ele extrai a ideia
de construção de uma nova sociedade com a abolição parcial da propriedade privada.
Essa confluência em um único autor de diferentes matrizes de pensamento
espalhadas em pelo menos três países (Alemanha, França e Inglaterra) era novidade na
evolução da ciência econômica. Ao mesmo tempo em que tal fato confere originalidade e
brilhantismo aos escritos de Marx, torna-o uma espécie de corpo estranho na tradição
ortodoxa da economia. Resultam dele dificuldades de interpretação em face do problema
conceitual e de pressupostos ontológicos nem sempre explícitos da análise de Marx.
Todavia, mesmo nutrindo-se de fontes alienígenas ao ambiente inglês, o pensador
alemão seguiu certos modismos da Inglaterra. Um exemplo é a admiração que sentia por
Darwin e a crença de que a economia deveria seguir o paradigma da biologia. É possível
que o trabalho desse biólogo tenha servido como uma base natural científica para a ideia
de luta de classes na história. De fato, Marx acreditou que a teoria do materialismo
dialético estaria destinada a fazer pela história o que a teoria de Darwin fez pela
biologia.19

O CAPITAL
A obra econômica principal de Marx, O capital, está dividida em três livros, além do
quarto livro compilado por Engels. O Livro 1 tem por foco a explicação da natureza do
capital e da origem do lucro; não se preocupa em explicar preços reais. Os valores são os
únicos determinantes do valor de troca, abstraindo-se a diferença na relação entre
capitais. Trabalha inicialmente com o conceito de mercadoria, depois analisa a
transformação do dinheiro em capital e a teoria do mais-valor. O Livro 2 começa por
considerar as variações na intensidade e na produtividade do trabalho e seus efeitos
sobre o mais-valor, discute a questão dos salários e o processo de acumulação do capital,
em que distingue a reprodução simples da acumulação capitalista. Também discute a
colonização. O Livro 3 explica preços reais; ele não foi totalmente terminado por Marx.
O Livro 4 reúne uma série de materiais de conteúdo mais histórico do que teórico.
A interpretação dessa obra requer situá-la no contexto das crenças filosóficas
básicas de Marx e de seu enfoque peculiar da ciência econômica. Marx vê a economia de
uma perspectiva histórica. A produção é atividade social que assume diferentes “modos”,
dependendo da organização social e das técnicas. O capital não é um elemento universal
presente em todos os estágios da história; é trabalho passado acumulado, não só
instrumento de produção; é fonte de geração do lucro de uma classe social no
capitalismo. A atividade econômica não se resume apenas à esfera das trocas: há também

19 Após examinar A origem da espécies, Marx escreve a Engels que o livro “apesar de desenvolvido
de maneira grosseiramente inglesa, contém a base histórico-natural da nossa concepção [a
filosofia materialista da história]”. Apud. J. P. Netto, Karl Marx: uma biografia, p. 281. Os
historiadores das ideias investigam se Marx teria dedicado o Livro I de O Capital a Darwin.
Especula-se que Marx pensou mesmo em dedicar-lhe o livro. Alguns sustentam que uma filha de
Marx cogitou dedicar o Livro II a Darwin. Nada disso está demonstrado. O Livro I, de fato, é
dedicado, por Marx, ao seu “inesquecível amigo, o impávido, leal e nobre vanguardeiro do
proletariado Wilhelm Wolff ”.

147
a esfera da produção. É na produção em que se evidenciam os papéis sociais, a
desigualdade das classes; enquanto a troca, ou esfera da circulação, é o sistema da
igualdade formal sob o império da mão invisível de Smith.
Mercadoria é um conceito básico em Marx e apresenta duas características essen-
ciais: valor de uso, por possuir propriedades que satisfazem a necessidades humanas ou
qualidades físicas que geram utilidade, e valor de troca, por serem as mercadorias
depositárias materiais de valor. O valor de troca pressupõe um elemento comum a todas
as mercadorias: o tempo de trabalho socialmente necessário à produção. A mercadoria
apresenta-se como incorporação material e social do trabalho empregado na produção.
É a cristalização de valores.
O conceito de trabalho também é central. Marx separa trabalho útil, que cria valor
de uso ou utilidade, de trabalho abstrato, que cria valor de troca ou simplesmente valor.
O trabalho abstrato é medido pelo tempo de trabalho socialmente necessário, com o grau
médio de habilidade e intensidade em dada época.
No capítulo 1 do Livro 1 de O capital, intitulado “A Mercadoria”, começa-se dizendo
que a propriedade corpórea da mercadoria que gera utilidade define seu valor de uso e
que a mercadoria também é portadora material de outro conceito, o valor de troca,
expressão de um conteúdo diferente da própria mercadoria. O valor de troca é a forma
de manifestação de um processo social. Marx exemplifica, se um quarter de trigo é
trocado por a quintais de ferro, deve haver algo em comum nessas duas mercadorias. A
troca pressupõe a igualdade, e a igualdade pressupõe a comensurabilidade. Certamente,
o elemento comum não são as propriedades corpóreas que geram valor de uso ou
utilidades, pois não há nada fisicamente que aproxima trigo e ferro. Ao se analisar o valor
de troca, deve-se abstrair o valor de uso, pois se trata de diferenças de quantidade e não
de qualidade entre as mercadorias. Ao se abstrair o valor de uso, desconsidera-se
também o caráter concreto ou útil do trabalho associado. Importa agora serem elas
produto de trabalho humano abstrato ou cristalizações de uma substância social comum
que é o valor:
“O que há de comum que se revela na relação de troca ou valor de troca da
mercadoria é, portanto, seu valor.” (Karl Marx, O capital)
O valor de troca é a forma de manifestação do valor. O trabalho abstrato é a
substância do valor, gerada com base no tempo de trabalho enquanto força média de
trabalho social ou tempo de trabalho socialmente necessário com o grau médio de
habilidade e de intensidade de trabalho.
“Enquanto valores todas as mercadorias são apenas medidas determinadas de
tempo de trabalho cristalizado.” (ibidem)
Mercadoria representa valor de uso somente para os outros que a obtêm no mercado
e não para seu próprio produtor. É um valor de uso social transferido pela troca. O
trabalho representado nas mercadorias possui duplo caráter: é o trabalho produtor de
valor de uso e é o trabalho expresso no valor. O primeiro é o trabalho útil, trabalho cuja
utilidade está representada no valor de uso. A troca sempre ocorre entre mercadorias
com valores de uso qualitativamente diferentes. O trabalho representado no valor é
trabalho abstrato: mero dispêndio de força humana de trabalho, mero dispêndio
produtivo de cérebro, músculos, nervos e mãos humanos.
É preciso ter em mente o tipo de sociedade identificada por Marx. Grosso modo, ele
separa o capitalismo das sociedades tradicionais. Enquanto nestas as relações entre os
homens na produção estão pré-estipuladas e são mantidas pela tradição, e mesmo o
destino dos bens produzidos é estabelecido pelo sistema de obrigações recíprocas, no
capitalismo os homens estão livres das amarras sociais e se afirmam como indivíduos.
Com a divisão social do trabalho no capitalismo, as unidades produtivas tornam-se

148
autônomas e independentes da totalidade social. Tal condição é um requisito para a
produção de mercadorias. A relação entre produtores transforma-se em relação entre
mercadorias:
“Apenas produtos de trabalhos privados autônomos e independentes entre si
confrontam-se como mercadorias.” (ibidem)
As mercadorias têm como característica comum serem resultado da produção, na
qual ocorre a mudança na forma da matéria, e também serem confrontadas no mercado
umas com as outras. Em sua forma natural, ela é objeto de uso e em sua forma valor é
portadora de valor. O valor não existe fora do contexto social:
“A objetividade de valor (da mercadoria) é puramente social – relação social
de mercadoria para mercadoria.” (ibidem)
Marx dedica os dois primeiros capítulos de O capital a discutir o processo de
sociabilidade na produção das mercadorias, contrapondo a sociedade tradicional à socie-
dade de produtores privados independentes e autônomos, em que a socialização se dá
via mercado. Discorrendo sobre tal processo, ele desenvolve a teoria dos desdobramentos
das formas valores até a generalização do dinheiro.
A forma valor das mercadorias mais usual e comum é a forma dinheiro, na qual os
valores estão expressos em unidades monetárias. Marx analisa o que entende como a
gênese dessa forma dinheiro do valor, partindo do estudo de uma forma mais simples na
relação de valor das mercadorias. A relação de valor de uma mercadoria com uma única
outra mercadoria de um tipo diferente é o que denomina de “forma simples, singular ou
acidental de valor”. Se x unidades da mercadoria A valem y da mercadoria B, ou x. A = y.
B, A  B, A expressa seu valor em B, ou B serve de material para essa expressão de valor.
A é ativo e B, passivo. O valor de A é a “forma valor relativa” e o de B é a “forma
equivalente” ou permutável, e a própria relação das mercadorias expressa o caráter de
valor de A. A e B não podem inverter os papéis, pois aí já seria outra relação.
O trabalho humano cria valor, porém ele mesmo não é valor. No caso anterior, o
valor de A é uma objetividade concretamente diferente de A e comum a B. Marx diz que
o valor da mercadoria A é expresso no corpo da mercadoria B, ou no valor de uso desta.
No processo, a forma natural de B torna-se a forma de valor de A, o corpo de B espelha o
valor da mercadoria A. Na relação x. A = y. B , x e y dependem do valor contido em A e
B, medido em trabalho abstrato. Se 10 varas de linho valem um casaco, o linho expressa
seu valor no valor de uso do casaco, enquanto forma de valor equivalente. O valor de uso
torna-se forma de manifestação do valor.
A forma natural da mercadoria torna-se forma de valor para outra mercadoria na
relação de troca entre elas.
“Expressando a forma relativa de valor de uma mercadoria, por exemplo, do
linho, sua qualidade de ter valor como algo inteiramente distinto de seu corpo e
suas propriedades [...] esta expressão mesma indica que nela se oculta uma
relação social.” (Karl Marx, O capital)
Na forma equivalente, dá-se o contrário; o corpo da mercadoria expressa valor
enquanto corporificação do trabalho humano abstrato:
“Trabalho concreto se converte na forma de manifestação de seu contrário:
trabalho humano abstrato.” (ibidem)
O trabalho concreto privado produz mercadorias que, ao serem confrontadas com
outras, confronta-se também trabalho com outro trabalho. O trabalho privado converte-
se em forma diretamente social de trabalho.
Bem compreendida essa forma simples de valor, Marx avança para a “forma de valor
total ou desdobrada”. Agora diversas mercadorias confrontam-se ao longo da cadeia: z

149
mercadorias A = u mercadorias B = v mercadorias C etc. É a forma relativa de valor
desdobrada. Agora, a mercadoria A está em relação social com todo o mundo das merca-
dorias. Evidencia-se que:.
“Não é a troca que regula a grandeza de valor, mas, ao contrário, é a grandeza
de valor da mercadoria que regula suas relações de troca.” (ibidem)
Invertendo-se a série, Marx chega à “forma geral de valor” em que todas as merca-
dorias em questão (um casaco, 10 libras de chá...) são trocadas por 20 varas de linho.
Nesse caso, esta última funciona como equivalente geral, em que todas as mercadorias,
exceto ela mesma, representam seus valores de modo simples e unitário, isto é, na mesma
mercadoria. O linho funciona como forma de valor simples e comum a todas as
mercadorias, que também permite relacionar todas elas entre si por meio do linho.
“Essa forma é a primeira a relacionar realmente as mercadorias entre si como
valores, ou as deixa aparecer reciprocamente como valores de troca.” (ibidem)
Finalmente, Marx chega à forma dinheiro na qual todas as mercadorias têm seu
valor representado numa mercadoria de aceitação geral que assume a função de
dinheiro: um casaco, 20 varas de linho (...) = duas onças de ouro. A forma dinheiro é o
desdobramento da forma mercadoria simples e esta é o gérmen da forma dinheiro. O
dinheiro
“[...] é a forma de manifestação do valor das mercadorias, no qual as grandezas
de valor das mercadorias se expressam socialmente.” (ibidem)
O dinheiro é mercadoria geral que funciona como materialização do trabalho
humano abstrato:
“A forma dinheiro é apenas o reflexo aderente a uma única mercadoria das
relações de todas as outras mercadorias.” (Karl Marx, O capital)
A forma dinheiro é a manifestação de relações humanas ocultas. Ela fornece à
mercadoria não seu valor, mas sua forma valor específica. Se o dinheiro, como valor, é
apenas um invólucro reificado do trabalho humano despendido na mercadoria, ele pode
ser pensado como um mero signo. No entanto, o signo é um produto arbitrário da
reflexão dos homens, enquanto o valor expresso no dinheiro é tempo de trabalho, um
processo social verdadeiro e não arbitrário.
Após esse arrazoado, Marx discute, também no capítulo 1, o que denomina de
segredos do caráter fetichista da mercadoria. Sua argumentação adquire tom bastante
peculiar. Diz que a mercadoria é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza
metafísica e manhas teológicas. Os homens trabalham uns para os outros, e o trabalho
adquire uma forma social. O trabalho ganha caráter enigmático quando assume a forma
mercadoria. As relações entre produtores tornam-se relação social entre mercadorias,
uma relação existente fora deles, uma relação entre objetos. O complexo de trabalhos
privados transforma-se em trabalho social total e o fetichismo adere aos produtos do
trabalho. No capitalismo, temos relações reificadas entre as pessoas e relações sociais
entre as coisas, pois
“[...] somente dentro da troca os produtos recebem uma objetividade de valor
socialmente igual, separada da sua objetividade de uso, fisicamente diferen-
ciada.” (ibidem)
Na sociedade de troca, na produção já se considera o caráter de valor das coisas. Há
um duplo caráter dos trabalhos privados: por um lado, satisfazem a determinada necessi-
dade social enquanto trabalho útil e são participantes do trabalho total na divisão social
do trabalho. Por outro lado, só satisfazem à necessidade do produtor quando o trabalho
privado útil é permutável por toda espécie de trabalho privado que lhe equivale.

150
Em outras formas de produção pré-capitalistas não existe o misticismo do mundo
das mercadorias. Na Idade Média, a relação entre mercadorias é substituída pela depen-
dência pessoal. No almejado comunismo, acredita Marx, a associação de homens livres
com meios de produção comunais irá conferir transparência nas relações entre os
homens, e a distribuição de riquezas se dará pelo tempo de trabalho de cada qual.
No capítulo 2 do Livro 1, Marx explicita o modelo de uma sociedade na qual os
homens representam meras funções subordinadas às exigências das mercadorias no
processo de troca. Eles são reduzidos ao papel de guardiões ou possuidores das merca-
dorias. Para que as mercadorias se refiram umas às outras como tal, é necessário que
seus guardiões se relacionem entre si como pessoas. A troca pressupõe um ato de vontade
comum a ambos os participantes dela e o reconhecimento recíproco como proprietários
privados. As relações de vontade expressam-se num contrato, reflexo da relação econô-
mica que por sua vez dá conteúdo à relação jurídica.
As pessoas são representantes de mercadorias, são personificações das relações
econômicas ou personagens econômicos encarnados. Para a mercadoria, a outra mercadoria
que se contrapõe a ela é tão somente forma de manifestação de seu próprio valor. O valor de
uso da mercadoria confere a ela ser portadora de valor de troca. A troca realiza a mercadoria
como valor. Para o possuidor dela, a troca é um processo individual; ele visa ao valor de uso da
outra mercadoria, não se importando se sua mercadoria tem valor de uso para o outro. A
relação entre mercadorias M-M’ é um processo genericamente social. M’ funciona como
equivalente particular de M, M é o equivalente geral de qualquer M’. M para o outro portador
é M’, o equivalente particular. Qualquer M pode entrar na forma valor geral relativa, para
comparar-se valores. As mercadorias defrontam-se como produto ou valor de uso. A ação
social faz de M um equivalente geral, como representação universal de valores. A forma natural
de M é a forma equivalente socialmente válida. Para a circulação, a mercadoria necessita de
uma representação externa, que pode dar-se em outra mercadoria ou em dinheiro; a forma de
representação independe do valor de M, no que Marx denomina de processo de duplicação da
mercadoria.
Quando se representa: x da mercadoria A é trocada por y da mercadoria B, a troca
direta possui só por um lado a forma da expressão simples do valor. Na forma de troca
direta dos produtos, x objetos de uso de A são trocados por Y objetos de uso de B, em que
A e B não são mercadorias antes da troca. Há um processo de alienação recíproca: os
homens como proprietários privados, como pessoas independentes, veem-se diante de
um estranhamento recíproco. Na tribo primitiva, a relação de troca era inteiramente
casual; os produtos eram permutáveis pela vontade dos possuidores de aliená-los, as
mercadorias tinham utilidade para as necessidades imediatas e para a troca. Dissolve-se
nela a separação entre valor de uso e valor de troca; valor não é independente de valor
de uso na troca, a relação de troca já está estabelecida antes da produção e a grandeza de
valor é fixada pelo costume.
Explicada a natureza do processo de socialização subjacente às trocas, Marx lança-
se no Livro 1 a descrever os esquemas de circulação. No sistema não capitalista, a
produção simples de mercadorias é representada por M-D-M’, ou seja, o dinheiro D é
mero intermediário das trocas. No sistema capitalista, ocorre a sequência D-M-D’, na
qual D’ > D. A circulação começa e termina com dinheiro, e termina com um valor maior
do que o inicial. A diferença é o mais-valor. Qual o papel que ele representa no capita-
lismo e qual a sua origem? Marx começa dizendo que:
“A busca de quantidades cada vez maiores de mais-valor é a força motivadora
que move todo o sistema capitalista.” (ibidem)
Sobre a origem do mais-valor, ele não é formada na esfera da circulação, mas na
produção. Os capitais comerciais e financeiros (que ganham juros) são meras formas
parasitárias de rendas que não estão envolvidas no processo da verdadeira criação do

151
mais-valor. A fonte dele é a diferença entre o valor da força de trabalho, ou trabalho
potencial, como mercadoria e o valor da mercadoria produzida que incorpora o trabalho
concretizado, ou o valor de uso consumido da força de trabalho. A força de trabalho é a
única mercadoria que gera valor em seu consumo ou uso. A força de trabalho é diferente
do trabalho executado ou incorporado à produção. A primeira é mercadoria, e a última,
seu valor de uso. O valor da mercadoria trabalho corresponde ao valor da subsistência
da família de um operário, não estritamente no sentido biológico (Boxe 7.3). Há de se
levar em conta também os diferentes trabalhos entre as diferentes ocupações. Marx cria
as terminologias “trabalho simples” e “trabalho complexo” como trabalho simples
potencializado ou multiplicado. Um pequeno quantum de trabalho complexo conteria
uma grande quantidade de trabalho simples. O antigo problema da heterogeneidade do
trabalho, já enfrentado por Ricardo, também fica mal resolvido em Marx, a despeito de
seus exercícios conceituais.

Boxe 7.3 O valor da mercadoria força de trabalho: por que o mais-valor não é
um roubo.

Marx aponta o mais-valor como produto da exploração da força de trabalho, mas não se
trata de roubo. O fato de o trabalho ser remunerado abaixo do que ele é capaz de transferir de
valor às mercadorias não viola as regras do jogo capitalista. Como toda mercadoria, a força de
trabalho vale a quantidade de trabalho incorporada em sua produção, no caso a subsistência
do trabalhador. O que há de especial nessa mercadoria é que ela é capaz de criar valor quando
posta em uso na produção, transferindo ao produto mais do que foi pago por ela. Trata-se de
uma peculiaridade do trabalho, de exploração e não roubo.

Marx fala em trabalho necessário e trabalho excedente. O primeiro representa o


número de horas diárias necessárias para pagar o valor do trabalho, ou seja, é o montante
de horas trabalhadas que remunera a subsistência do operário. Por exemplo, de oito
horas diárias trabalhadas suponha que quatro remunerem o trabalho. As demais quatro
horas representam o trabalho excedente. No trabalho necessário, ocorre o processo de
produção do valor da força de trabalho. O trabalho excedente é apossado pelo capitalista,
representa o mais-valor. Assim, Marx desvenda a fórmula da circulação do capital
industrial como sendo M-D ... P ... D’-M’. A origem do mais-valor está na esfera da
produção, representada por P. Todos os instrumentos de produção transferem ao
produto seu valor, ou o trabalho incorporado neles, mas isto não ocorre com a
mercadoria força de trabalho. Essa é a fonte do mais-valor, ao transferir ao produto mais
do que ela vale.
Marx identifica dois tipos de capitais: capital constante c e capital variável v. O
primeiro representa os gastos com os meios de produção, e o segundo, gastos com a força
de trabalho. O capital total C é expresso como a soma de capital constante e variável C =
c + v. O valor no final da produção C’ é maior que C. A diferença entre eles é o mais-valor
s. Portanto, C’ = c + v + s. A taxa de mais-valor define-se como s/v, igual à razão entre
trabalho excedente e trabalho necessário. Essa taxa mede o grau de exploração da força
de trabalho pelo capital: quantas horas o operário trabalhou para gerar lucros para o
capitalista em relação a cada hora que ele trabalhou para gerar o valor equivalente à sua
própria subsistência.
Definida a noção de taxa de mais-valor, Marx identifica outro conceito-chave na
formulação da teoria da acumulação capitalista: a composição orgânica do capital, nada
mais que a relação entre capital constante e variável c/v. De posse desses conceitos, Marx
passa a descrever os fatos que acompanham a acumulação crescente de capital, tendência

152
inexorável do capitalismo. Simultaneamente a ela, o processo de concorrência entre
capitalistas leva à concentração econômica, pela ruína dos pequenos capitalistas que não
podem concorrer com os grandes que se valem das economias proporcionadas pela
maior escala de produção, adaptando-se melhor ao ambiente de pressão para aumento
de produtividade. Marx mostra como, no processo, a taxa de lucro tende a decrescer com
o tempo. A acumulação leva, com o tempo, ao aumento na composição orgânica do
capital c/v. O valor total dos meios de produção tende a aumentar em ritmo mais rápido
que o valor da força de trabalho, isto porque as novas tecnologias de produção
concentrada empregam mais máquinas, equipamentos, insumos e instrumentos físicos
de produção do que mão de obra. Marx demonstra que decorre então a queda na taxa de
lucro. O argumento é simples. A taxa de lucro é medida pela razão s/C entre o trabalho
excedente e o capital total. Ora, podemos escrever:
s/C = s/(c + v) = (s/v)/(c/v + v/v) = (s/v)/(1 +(c/v))
Portanto, álgebra das mais simples mostra que a taxa de lucro é a razão entre a taxa
de mais-valor e 1 mais a composição orgânica do capital. Logicamente se a razão do mais-
valor for constante, um aumento em c/v leva à queda na taxa de lucro. Marx acredita
que, na prática, a taxa de mais-valor s/v é constante ou só aumenta até certo limite. O
declínio na taxa de lucro não implica a queda do lucro total, pois este depende não só da
taxa de lucro, mas também da quantidade de capital. Marx acredita que a massa de lucro
total tende a aumentar mesmo com a queda na taxa de lucro.
Diversas influências compensatórias podem postergar o processo de queda na taxa
de lucro. Marx discorre extensamente sobre elas no Livro 3. De início, há de se considerar
que a taxa de lucro pode ser mantida mesmo com aumento na composição orgânica do
capital, por meio de expedientes que elevam a taxa de mais-valor, tais como o aumento
na intensidade da produção, ou seja, a intensificação no trabalho pelo controle e admi-
nistração científica dele por via de novas técnicas de produção em massa: taylorismo,
fordismo etc. Há ainda a possibilidade de aumentar-se a jornada de trabalho. A taxa de
mais-valor pode crescer também quando os salários caem abaixo do valor da força de
trabalho, o que ocorre no curto prazo pela superpopulação relativa de operários e a
presença de um grande exército de desempregados. Outro expediente para sustentar a
taxa de lucro seria o barateamento do capital constante pelo progresso técnico, que
tornaria a razão c/v mais estável. Finalmente temos o comércio exterior. Nesse ponto,
Marx incorpora o que seria depois a base da teoria do imperialismo. O capitalismo
necessita de um mercado sempre em expansão para elevar as taxas de mais-valor. A
possibilidade de explorar trabalhadores do mundo inteiro faz com que o capital variável
v caia, pela queda de salários, e se eleve o coeficiente s/v.
Para explicar como os salários são mantidos no nível de subsistência, Marx não
aplica a teoria da população de Malthus, já que para ele a própria lei que comanda o
crescimento da população é condicionada historicamente. Ao rejeitar uma teoria da
população tida por ele como pretensamente universal e a-histórica, Marx escreve:
“Todo modo de produção histórico especial tem suas próprias leis especiais de
população historicamente válidas apenas dentro de seus limites.” (Karl Marx, O
capital).
A teoria do salário de subsistência de Marx parte do seguinte esquema (Figura 7.2):

153
Figura 7.2 A teoria dos salários de Marx.

Excesso de Reserva de
Acumulação
de
trabalhadores operários

Salário de Concorrência entre operários


subsistência

A acumulação do capital faz-se acompanhada de uma população excedente de


trabalhadores que, não conseguindo emprego, irá compor um exército de operários
de reserva vivendo abaixo do nível de subsistência. A concorrência entre os que
conseguem uma colocação comprime as taxas salariais até o nível de subsistência.
Como para o patrão o nível de salários é dado enquanto variável de mercado, a
resposta à tendência de queda nas taxas de lucro dá-se pelo aumento na produ-
tividade do trabalho associando-o a mais capital. Mudando-se as técnicas de
produção, máquinas poupadoras de mão de obra elevam a relação entre capital e
trabalho empregados. Essa resposta dos capitalistas recompõe o contingente de
desempregados, forçando a queda salarial.
Se tal estratégia parece convir aos interesses de cada capitalista, surge aí, para o
sistema todo, um problema de desequilíbrio setorial. Com a queda de salários e da
massa salarial relativa, há um problema de insuficiência de demanda para bens de
consumo. Marx visualiza a produção na sociedade estando dividida em setores: o setor
produtor de bens de consumo ao lado do setor produtor de bens de capital. Para a
expansão tranquila e contínua da economia, necessita-se de uma troca equilibrada
entre eles. A queda de salários gera um excesso de capacidade no setor de bens de
salário. A resposta natural a esse excesso é a redução na demanda por máquinas e
equipamentos. Com isso, o excesso de capacidade é exportado para o setor de bens de
capital. O desequilíbrio recorrente entre setores seria, para Marx, a causa da grande
depressão na década de 1870.
Nos Livros 1 e 2 de O capital, Marx discorre sobre tais temas, apresentados aqui
sumariamente, intercalando importantes e extensas digressões históricas. Marx também
apresenta, nesses dois livros iniciais, sua versão da teoria do valor-trabalho. Ele acredita
que os preços reais poderiam se desviar dos preços previstos pela teoria do valor-trabalho
mais pura e simples. No entanto, a questão da formação dos preços só seria atacada por
ele no Livro 3 da obra em questão.
Ainda no Livro 1 de O capital, Marx expõe as condições do caso simples em que os
preços são iguais ao valor de produção. O valor da mercadoria é a soma de dois compo-
nentes: o trabalho morto e o trabalho vivo, ou seja, o trabalho passado que aderiu aos
fatores físicos de produção e o trabalho corrente. O trabalho morto é associado ao capital
constante c. O trabalho vivo desdobra-se em trabalho necessário que produz o capital
variável v e trabalho excedente que gera o mais-valor. Portanto, o valor w é expresso
como w = c + v + s. Na hipótese simplificadora de que s/v e c/v sejam o mesmo em
qualquer indústria, a taxa de lucro r, como vimos r = (s/v)/(1 + (c/v)), é a mesma em
todas elas. Definindo os preços de produção como a soma dos custos dos fatores

154
produtivos c, mais o custo do trabalho usado na produção v e mais a margem de lucro
total r . C, demonstra-se trivialmente que:
p = c + v + r (c + v) = c + v + [(s/v)/((c + v)/v))](c + v) = c + v + s = w
Ou seja, o valor é igual ao preço de produção.20 Marx sabia, no entanto, que o preço
de produção de uma mercadoria em particular poderia diferir do valor, e que uma análise
mais detalhada teria de examinar, em cada setor, os desvios do preço de produção em
relação ao valor e como os preços de produção são formados com base em uma taxe de
lucro média da economia. Ele visualiza que o mercado se encarregaria de formar uma
taxa de lucro média e os preços de produção; no entanto, ele não descreve em detalhe
todo o processo, e oferece uma explicação um tanto nebulosa nesse sentido. Marx se
preocupou mais em demonstrar a igualdade na totalização de valores e preços de
produção para a economia como um todo.
Conforme já visto, para Marx o trabalho abstrato é a substância do valor. Os preços
são a forma empírica dessa substância. Preços apresentam diversas causas
empiricamente observáveis. Mas há uma ligação quantitativa entre valores e preços. No
famoso “problema da transformação”, tratado no Livro 3 de O capital, trata-se de
destrinchar causas e efeitos sobre os preços a fim de encontrar teoricamente a relação
quantitativa entre a substância (valor) e sua manifestação empírica (preço). No processo
concreto de determinação dos preços, os capitalistas calculam os custos de produção e
somam uma margem percentual (= taxa socialmente média de lucro). Na fórmula do
preço de produção, p = c + v + r(c + v), tem-se a expressão em termos de custos
monetários e taxa de lucro. Voltando-se agora aos conceitos de trabalho vivo (LV) e
trabalho morto (Lm), Lm é o valor incorporado nos meios de produção, LV representa o
trabalho empregado no período corrente de produção, tem-se que w = Lm + Lv . Em
termos de trabalho necessário (Ln) e trabalho excedente (Le), Lv= Ln+ Le e, sendo assim,
w = Lm + Ln+ Le.
Marx examina a correspondência entre fórmulas, entre a fórmula com os vários
tipos de trabalho (w = Lm + Ln+ Le) e a fórmula com os componentes de custo do preço:
p = c + v + r(c + v). Ele examina possíveis falhas nessa correspondência. Se a taxa de
lucro é dada por r = (s/v)/(1 + (c/v)), as jornadas de trabalho e os salários são uniformes,
tem-se então a mesma taxa de mais-valor (s/v) entre diferentes setores. Tem-se ainda a
taxa de lucros uniforme dada a arbitragem entre setores. Sendo assim, pela fórmula da
taxa de lucro, também a composição orgânica (c/v) teria de ser a mesma entre eles!
Marx sabia, entretanto, que as várias indústrias trabalham com diferentes composi-
ções do capital c/v de modo que p  w. Mostra-se, de início, que a mesma taxa de mais-
valor em diferentes indústrias com diferentes composições do capital leva a diferentes
taxas de lucro. No exemplo numérico da Tabela 7.1, supõe-se o mesmo capital total C
para todas elas e que em cada caso somente uma parcela do capital total é consumida.
Observa-se na Tabela 7.1 que em todas as indústrias a taxa de mais-valor é de
100% já que s = v. O capital total é $ 100 como aparece no cálculo da taxa de lucro
na última coluna, então apenas uma parcela dele é consumida durante um período
de produção, já que c + v < 100. Note que cada indústria apresenta diferente relação
c/v e que em cada qual calcula-se uma taxa de lucro diferenciada das demais.

20Note que a taxa de lucro r é a taxa de lucro média da economia e não a taxa específica ao capital
particular empregado em certo setor. Ou seja, o valor equivale ao preço de produção para o capital
como um todo, ou num setor que tem a composição orgânica igual à composição média da
economia.

155
Tabela 7.1 Exemplo numérico em que a taxa de mais-valor é a mesma em diferentes
indústrias.
Indústria Capital Capital Composição Mais- Custo de Valor da Taxa de
constante variável orgânica do valor produção mercadoria lucro
c v capital c/v
s c +v c+v+s r=
s/100

I 40 20 2,0 20 60 80 0,20
II 45 25 1,8 25 70 95 0,25
II 50 17 2,9 17 67 84 0,17
IV 40 15 2,7 15 55 70 0,15
V 24 30 0,8 30 54 84 0,30

O problema para a teoria de Marx, que este simples exemplo numérico coloca,
é que a hipótese realista de diferentes composições de capital entre as indústrias
leva à desigualdade nas taxas de lucro, mesmo que as taxas de mais-valor sejam
iguais. Esse resultado é incompatível com o modelo de concorrência que tende a
igualar a taxa de lucro de todas as indústrias (os capitais particulares). Se fixarmos
uma mesma taxa de lucro para todas, digamos de 20%, o mais-valor s seria de 20
em todas as indústrias e neste caso as taxas de mais-valor ficariam conforme
indicado na Tabela 7.2.

Tabela 7.2 Caso em que as taxas de lucro são iguais entre as indústrias.
Indústria Capital Capital Mais- Taxa de Taxa de
constante variável valor mais-valor lucro
c v
s s/v r = s/100

I 40 20 20 1 0,2
II 45 25 20 0,8 0,2
II 50 17 20 1,18 0,2
IV 40 15 20 1,33 0,2
V 24 30 20 0,67 0,2

Se as taxas de salários e a duração da jornada de trabalho são iguais entre todos os


setores, respectivamente pela arbitragem entre mercados e por imposição legal, as taxas
de mais-valor teriam que ser iguais e não diferentes como na tabela acima. A solução a
esse aparente paradoxo consiste em separar dois conceitos de taxa de mais-valor: como
relação s/v (relação de valores) e como a relação entre trabalho excedente e trabalho
necessário (relação de tempos). A taxa de mais-valor expressa em tempo de trabalho
excedente/tempo de trabalho necessário é o mais-valor realizada na esfera da produção
(tende a ser a mesma entre todos os setores apesar das diferenças em c/v). O mais-valor
como s/v é criada na esfera da circulação (quando diferem c/v entre setores, as próprias
forças da concorrência que igualam as taxas de lucro asseguram que s/v não seja igual
entre eles). A razão tempo de trabalho excedente/tempo de trabalho necessário é sempre
a mesma em todos os setores independentemente das diferenças nas composições
orgânicas do capital. O mais-valor na esfera da circulação (s/v) não precisa ser igual entre
os setores. Se a razão s/v é diferente entre os setores, isto não está em contradição com

156
o modelo de Marx, pois ele só iguala as taxas de mais-valor medidas em tempo de
trabalho!
No Livro 3 de O Capital, Marx elabora um quadro no qual os preços são
proporcionais aos valores, mas a composição orgânica do capital difere entre os setores.
Ele calcula a taxa média de lucro da economia e elabora novo quadro em que tais preços
foram alterados. A Tabelas 7.3 mostra quais as taxas de lucro diferentes que seriam
obtidas se cada setor vendesse sua produção a um preço suficiente apenas para realizar
todo o mais-valor gerado nesse setor.

Tabela 7.3 Taxas de lucro quando os preços são iguais aos valores.
Indústria Capital Capital Capital Capital Mais- Custo de Valor da Taxa
total C constante constante variável valor produção mercadoria de
utilizado v lucro
s c +v c+v+s
c
r=
s/100

I 100 80 50 20 20 70 90 0,20
II 100 70 51 30 30 81 111 0,30
II 100 60 51 40 40 91 131 0,40
IV 100 85 40 15 15 55 70 0,15
V 100 95 10 5 5 15 20 0,05
Média = 0,22

A Tabela 7.4 mostra a situação depois que a concorrência entre empresas tenha
uniformizado as taxa de lucros entre diferentes setores.

Tabela 7.4 Desvios dos preços em relação aos valores com taxas de lucro iguais.
Indústria Capital Taxa Lucro Custo de Preços de Mais- Desvio Valor Desvio dos
total C de produção produção valor do lucro preços de
lucro em produção
relação em
ao mais- relação ao
valor valor

I 100 0,22 22 70 92 20 +2 90 +2
II 100 0,22 22 81 103 30 −8 111 −8
II 100 0,22 22 91 113 40 −18 131 −18
IV 100 0,22 22 55 77 15 +7 70 +7
V 100 0,22 22 15 37 5 +17 20 +17

Na construção das tabelas, foram observadas as seguintes condições: 1. Cada setor


tem uma taxa de lucro igual à taxa média de lucro agregado. 2. Os aumentos e as reduções
dos preços nos vários setores se compensam perfeitamente, de modo que o total de todos
os preços (ou nível médio de preços) é o mesmo nas duas tabelas. 3. Como efeito das
mudanças nos preços, o mais-valor aumenta em alguns setores e se reduz em outros, mas
o mais-valor agregado permanece constante quando de passa de uma tabela à outra. As
tabelas anteriores ilustram o processo em que diferenças nas composições orgânicas do

157
capital levam os preços a se desviar dos valores, de tal modo que se opera um rearranjo
das quantidades existentes de mais-valor gerado previamente no processo de produção.
Embora convincente, a análise de Marx tinha problemas. Isso porque ele transfor-
mara os preços de produção mantendo os preços dos insumos proporcionais aos valores.
Assim, cada mercadoria ficou com dois preços diferentes, um como produto e outro como
insumo. Marx alerta quanto à dificuldade nesta passagem do Livro 3 de O Capital:
“Da mesma forma que o preço de produção de uma mercadoria [preço do
produto] pode divergir de seu valor, também o preço de custo [preço dos
insumos] de uma mercadorias no qual estejam incluídos os preços de produção
de outras mercadorias pode se situar acima ou abaixo daquela parte de seu valor
total que é formada pelo valor do meios de produção que entram em sua
composição. É preciso ter em mente este significado modificado do preço de custo
e, portanto, ter em mente também que se o preço de custo de uma mercadorias
for igualado ao valor dos meios de produção usados em sua fabricação é sempre
possível errar. Nossa presente investigação não exige que entremos em mais
detalhes neste ponto.” (O Capital, Livro 3)
Conforme se percebeu depois, tal dificuldade afeta substancialmente os resultados
apontados por Marx. Pouco depois da publicação do Livro 3 de O Capital, foi encontrada
uma solução matemática que transformava os preços tanto do produto como do insumo.
Contudo, à luz da solução inicial, só duas das três condições de Marx se mantinham: as
taxas de lucro setorial eram iguais e o montante total do mais-valor nos preços não
transformados era igual ao total nos preços transformados. No entanto, a transformação
dos preços alterava o nível de preços de modo que o total dos preços transformados
divergia do total dos preços não transformados.
As soluções que vieram depois mostram que era geralmente verdade que as várias
soluções matemáticas que transformavam tanto os preços dos insumos quanto os dos
produtos deixavam intactas apenas duas das três igualdades de Marx. Surge uma ampla
literatura com numerosas formulações, cada qual procurando resgatar o espírito da
análise original.
A Tabela 7.4 mostra que os vários desvios observados dos preços de produção em
relação ao valor cancelam-se entre todos os setores. Portanto, o total das mercadorias
produzidas conjuntamente consideradas apresenta valor e preço de produção igualados.
Os desvios em cada caso só ocorrem porque as composições orgânicas do capital são
diferentes da média. Uma mercadoria que tem uma proporção entre insumos fixos e
variáveis igual à da economia em sua totalidade tem seu preço determinado exatamente
pelo valor. Ela poderia ser usada como um numerário, já que seu preço não se desvia do
valor. Então o numerário é qualquer mercadoria produzida com a composição média de
capital da economia.
A solução de Marx ao problema do numerário foi criticada por marxistas que se
debruçaram no problema. Piero Sraffa, no século XX, demonstrou que sem uma medida
invariável do valor não se estabelece necessariamente o vínculo apropriado entre valores
medidos em trabalho e preços. O Livro 3, de fato, não chegou a ser completado, e lacunas
na construção de Marx foram percebidas por seus seguidores.

A VISÃO DA HISTÓRIA
Esta seção propõe-se a discorrer não tanto sobre a economia e a filosofia de Marx,
suficientemente tratadas nas seções anteriores para os propósitos do capítulo, mas sobre
a visão histórica subjacente a suas crenças básicas. Antes de tecermos comentários mais
críticos e analíticos a respeito dela, veremos em detalhes o discurso de Marx
exemplificado no Manifesto comunista.

158
No começo do Manifesto comunista, Marx (e Engels) escreve que existem duas
classes sociais básicas no capitalismo, burgueses e proletários. Os primeiros são os
proprietários dos meios de produção e os segundos os que vendem força de trabalho. Em
seguida, assevera que a história da sociedade tem sido a história da luta de classes, que
sempre termina pela reconstituição da sociedade com a destruição das classes
envolvidas. A divisão da sociedade em diferentes classes sempre existiu e os
antagonismos de classe permanecem na sociedade burguesa, agora simplificados pelas
duas classes de que falamos. Antes, havia outras classes; em Roma, patrícios, guerreiros,
plebeus e escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres, companheiros,
aprendizes e servos. A expressão burguês vem de burgos, feiras em volta de castelos ou
no encontro de rotas que depois se transformaram em cidades. A colonização, a
navegação, o comércio, o uso generalizado da moeda, a indústria e um número de outros
desenvolvimentos desestabilizaram a sociedade feudal. O sistema manufatureiro
substituiu as velhas guildas no atendimento de novos mercados e a divisão entre as
guildas deu lugar à divisão do trabalho dentro de cada oficina.
Marx continua o “Manifesto” dizendo que com a revolução industrial e o surgimento
de máquinas irrompe-se a grande indústria. A indústria cria excedentes e em busca de
novos mercados foi dado impulso à navegação e a outros meios de transporte e de
comunicação. A consequência de tudo isso foi o desenvolvimento da burguesia, um longo
desenvolvimento com uma série de revoluções nos modos de produção e de troca. A
projeção econômica da burguesia fez-se acompanhar do progresso no campo da política.
Associando-se ao rei, a burguesia conquista o poder. O absolutismo da primeira fase do
poder burguês transformou-se no Estado representativo moderno, que Marx avalia:
“O governo do Estado é apenas um comitê para gerenciar os negócios de toda
a burguesia.” (Karl Marx, Manifesto comunista)
Marx enaltece o papel revolucionário da burguesia ao romper a antiga tradição em
troca de relações impessoais de mercado. Mesmo as profissões mais nobres transfor-
mam-se em trabalho assalariado; até relações familiares viram relações monetárias. Nas
palavras de Marx, a burguesia está sempre revolucionando os meios de produção, as
relações de produção e as relações sociais. Ela invade todo o globo em busca de mercado
e globalização da produção, promovendo também o intercâmbio das criações intelectuais
e criando, com isso, a impossibilidade do isolamento nacional também no campo da
cultura. Todas as nações são arrastadas para a civilização. Na guerra de conquista de
mercadorias a baixo preço, a burguesia submete o campo à cidade. Irrompe tendência de
concentração não só demográfico-espacial, mas também da propriedade dos meios de
produção e concentração política, promovendo a criação dos Estados nacionais.
Marx enfatiza o progresso tecnológico trazido pela burguesia. Escreve que no
passado as relações feudais tornaram-se incompatíveis com o desenvolvimento das
forças produtivas. Quando tais relações viram entraves, elas são despedaçadas, surge o
livre comércio com suas instituições sociais e políticas próprias. Agora, no momento em
que vive Marx, a propriedade burguesa tinha-se tornado um entrave para as forças
produtivas. A burguesia destrói as forças produtivas com as crises de superprodução do
capitalismo e busca desesperadamente novos mercados. Ela produz o proletariado que a
matará.
Lê-se no “Manifesto” que no capitalismo só há emprego aos trabalhadores ingres-
santes com ampliação do capital. Para o capital o trabalhador é uma mercadoria, um ser
alienado que funciona como apêndice da máquina e que se submete a um trabalho
enfadonho em troca de salários cada vez menores. Cada vez mais, diagnostica Marx,
acentua-se a exploração com o aumento das horas trabalhadas. Homens, mulheres e
crianças são igualados no chão apertado das fábricas. Os trabalhadores também são
vítimas de outros variados membros da burguesia, como proprietários, varejistas e usuá-

159
rios. Mesmo a classe média vira proletariado, à medida que sucumbe à concorrência e
aos novos métodos de produção.
Ao mesmo tempo em que foram reunidos nas fábricas sob a sanha do capital, a
organização militar dos operários no interior das fábricas facilitou a evolução de sua luta,
aproximando-os de modo que evidencie a unidade de propósitos e de interesses. De
início, os proletários estiveram ao lado da burguesia, combatendo os inimigos dos
inimigos. A burguesia, em sua luta contra a aristocracia e contra a burguesia de países
estrangeiros, conta com a ajuda da classe trabalhadora. A vitória da burguesia também
foi a vitória dos trabalhadores. No amadurecimento da consciência de classe do
proletariado, as diferenças de tarefas e salários são igualadas. Surgem conflitos indivi-
duais que vão assumindo o caráter de conflito de classes. Surgem sindicatos, depois a
luta transforma-se em motim. Ela não tem êxito imediato, mas une os trabalhadores.
Embora parte da burguesia venha a juntar-se ao proletariado, a pequena burguesia
jamais perde seu caráter conservador; só o proletariado é a classe revolucionária,
exclama Marx. Em sua luta, sem se identificar com os valores de sua sociedade, ele volta-
se contra a propriedade privada. A luta primeiro adquire caráter nacional, visando à
derrubada violenta da burguesia local e, depois, alcance mundial. Assim, conclui Marx:
a burguesia produz seus próprios coveiros.
Marx continua sua pregação no “Manifesto”: somente os comunistas identificam-se
com os proletários. Não enfatizam a nacionalidade e sim o interesse comum de todos os
proletários e visam à conquista do poder político por eles. A teoria dos comunistas,
acredita Marx, é a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente
no atual momento histórico. Tal luta visa à abolição da propriedade privada burguesa,
não da propriedade em geral, e o fim da exploração. Os trabalhadores não têm nada a
perder, pois a propriedade pessoal deles já foi abolida pelo capitalista, trata-se agora de
extinguir a propriedade burguesa dos meios de produção, a fim de que a apropriação de
produtos da sociedade não seja destinada a subjugar o trabalho alheio.
O comunismo, assevera Marx, também prega o fim da hostilidade entre as nações:
a nacionalidade é uma ilusão, e trabalhadores não têm pátria. Todos eles devem lutar por
uma causa comum e manter-se unidos a despeito das diferentes nacionalidades, conclui
Marx com a famosa frase:
“Trabalhadores de todo o mundo: uni-vos.” (Karl Marx, Manifesto comunista)
Dessa união, profetiza Marx, surgirá uma nova sociedade que porá fim ao antago-
nismo de classe; em que o desenvolvimento de cada um é a condição do livre desen-
volvimento de todos.
Então o Manifesto comunista é, além de um panfleto para a mobilização dos
trabalhadores pela causa comunista, notável texto de interpretação da história e da
sociedade escrito numa linguagem simples e direta. É difícil fazer-se uma avaliação
isenta da visão da história apregoada por Marx, já que ela é carregada de elementos
normativos que envolvem juízo de valor. Decorridos mais de 150 anos desde que ele foi
escrito, tendo o mundo percorrido um longo caminho de guerras e de revoluções, alguma
coisa pode ser dita com relação à visão da história de Marx sem ferir suscetibilidades de
seus admiradores.
Primeiramente é preciso situar o lugar de Marx na história do pensamento econô-
mico. É um autor importante, mas cujo alcance de suas ideias no desenvolvimento da
economia como ciência tem sido por vezes exagerado. É dito que ele influenciou J. M.
Keynes e outros da escola keynesiana. O maior intervencionismo das políticas keyne-
sianas foi interpretado como uma concessão a Marx, ao reconhecer que o capitalismo
tem falhas e não funciona de modo automático. No entanto, entender como uma
concessão a Marx o intervencionismo das políticas keynesianas é no mínimo extrema-

160
mente polêmico, por várias razões, a começar pela confusão entre intervencionismo e
socialismo, pelo significado teórico e político da concepção de Estado subjacente a cada
autor e pela própria existência de vários intervencionismos não-socialistas importantes
anteriores a Keynes. O intervencionismo, aliás, sempre foi coevo ao liberalismo,
servindo-lhe como contraponto; e isto não só na história do capitalismo, pois de forma
embrionária, o debate remonta à Grécia antiga. O que marca o intervencionismo
keynesiano (o uso da política econômica para estabilização como forma de reativar a
demanda agregada, em uma racionalidade instrumental) fatalmente não está na obra de
Marx nem é a visão dominante de seus seguidores. E ainda vale lembrar que Keynes não
manifestou simpatias à obra de Marx e considerava O capital semelhante ao Alcorão dos
mulçumanos ao propagar fervor e violência (certamente, uma interpretação unilateral
também em relação a este livro religioso). É certo que sementes do pensamento de Marx
estão em Schumpeter e muitos outros grandes economistas do século XX. Não se pode
deixar de reconhecer, entretanto, que a contribuição de Marx não se incorporou ao
núcleo teórico principal da economia como ciência, e Marx permaneceu “marginalizado
pelos marginalistas”, esta última sendo a principal via teórica da economia científica
moderna. Tão perigoso como exagerar o impacto do pensamento marxista na economia
é negá-lo em relação às ciências sociais. Ao lado de Max Weber, o sistema de Marx é a
principal fonte de referência à análise do fenômeno social. A obra de Marx compõe um
respeitável sistema de análise e erudição, de modo que é sempre recomendável cautela e
mesmo humildade diante de suas proposições.
Fora do campo científico, as ideias políticas de Marx continuam a despertar inte-
resse e adesão. Hoje, está-se firmando uma avaliação de que o comunismo marxista
representa uma vertente da esquerda política que se havia constituído muito antes, na
época da revolução francesa do fim do século XVIII. É uma reação aos princípios
democráticos que deitaram raízes nas nações do chamado capitalismo desenvolvido. A
democracia moderna ensejou reações que se conformaram a um padrão comum: o apelo
à união em torno de uma causa, a ideia de luta social identificando-se um inimigo comum
e estabelecendo uma separação nítida entre grupos antagônicos. Nessa interpretação, o
comunismo seria uma modalidade entre outras linhas políticas de inspiração totalitária.
Não se pode dizer que a visão da história de Marx seja falsa, no sentido de que os
fenômenos que analisa são reais, como no famoso capítulo 24 do Livro 1 de O capital
intitulado “A assim chamada acumulação primitiva”. A violência e a exploração identifi-
cadas por Marx ocorreram de fato na história. No entanto, a história é um fenômeno
complexo que enseja diversas leituras. Marx é uma das leituras possíveis, certamente
com elevado grau de idiossincrasia e unilateralidade. Ele deve ser estudado e não tomado
como objeto de fé. Mais importante para a evolução da economia como ciência foi a
emergência do marginalismo.
Hoje, há três correntes de pesquisa que procuram resgatar o pensamento de Marx:
a análise estruturalista, especialmente forte décadas atrás por ocasião do lançamento de
escritos inéditos de Marx, como os Grundrisse, e do influente movimento do estrutu-
ralismo francês de Althusser; a leitura de Marx com base na dialética hegeliana resgatan-
do a base filosófica de seu pensamento e o chamado “marxismo analítico”, especialmente
forte nos países anglo-saxões, em que se mistura Marx com teoria dos jogos e modernas
técnicas matemáticas de análise. O programa de pesquisa marxista continua a gerar
novos frutos.

161
Questões

1. Como os socialistas do século XIX avaliam a propriedade privada? É correto dizer


que todos eles pregam a completa eliminação dessa instituição social?
2. Qual a diferença entre trabalho útil e abstrato na teoria de Marx?
3. O que é o materialismo filosófico?
4. Comente a respeito das principais influências filosóficas e teóricas que afetam o
pensamento de Marx.
5. Compare a concepção dialética da história tal como aparece em Hegel e em Marx,
apontando as especificidades no pensamento em cada qual.
6. O que significa o princípio da não-contradição presente na lógica tradicional? Em
quais circunstâncias o uso dessa lógica pode levar a resultados contraditórios? Como
a filosofia hegeliana busca contornar tais dificuldades?
7. Como a dialética de Hegel foi aplicada por Marx na construção do materialismo
histórico?
8. Discuta os seguintes conceitos de Marx: forças produtivas, relações de produção e
modo de produção.
9. Explique em que consistem as categorias do pensamento de Marx, quais são e como
elas se formam? Por que em Marx a consciência não tem existência independente da
matéria?
10. Sobre o conceito de alienação em Marx: de qual autor ele extraiu esse conceito? Qual
a diferença entre alienação micro e macro?
11. Por que no Manifesto comunista Marx diz que os antagonismos de classe são
simplificados no capitalismo?
12. No Manifesto comunista, como o rápido progresso tecnológico veio a desestabilizar
a sociedade feudal?
13. Para Marx, qual o papel do estado no capitalismo? Você concorda com essa
interpretação? Por quê?
14. Comente a frase: “A burguesia é retrógrada por ser incapaz de proporcionar
quaisquer avanços tecnológicos.” Essa frase aparece no Manifesto comunista?
15. Marx e Engels escrevem que, embora os comunistas sejam contra a propriedade
privada, ela já foi em grande parte abolida pelo próprio capitalismo e transformada
em capital. Explique essa ideia.
16. No Manifesto comunista, seus autores escrevem: “Vossas próprias ideias são apenas
uma decorrência do regime burguês de produção e de propriedade, assim como
vosso direito é apenas a vontade de vossa classe erigida em lei, vontade cujo
conteúdo é determinado pelas condições de existência de vossa classe.” Você
interpretaria essa passagem como significando que os indivíduos na sociedade
capitalista não têm ideias próprias, mas pensam de acordo com sua posição
particular dentro da totalidade social? Critique Marx nesse aspecto.
17. Se o valor para Marx é determinado pelos custos em trabalho, como ele resolve o
dilema, já reconhecido por Ricardo, de que mercadorias produzidas com diferentes
composições de capital podem ser vendidas a preços normais diferentes, mesmo
tendo custado a mesma quantidade de trabalho?
18. No que consiste o fetichismo da mercadoria apontado em Marx?

162
19. Comente a passagem do capítulo: “Para Marx, no capitalismo o vínculo social entre
as pessoas se transforma em relação social entre coisas.”
20. Qual o papel do mercado na determinação do valor de troca em Marx? Podemos
dizer que essa grandeza é determinada pelas forças de oferta e demanda no
mercado? Se não, que elementos estão subjacentes ao valor de troca?
21. Definir os conceitos marxianos de: valor de uso, valor de troca e valor. Qual deles é
objetividade natural, qual é objetividade social e qual é mera expressão do valor?
22. Explique os conceitos de trabalho útil e trabalho abstrato em Marx. Como, para
Marx, seria possível mensurar o trabalho abstrato?
23. No capítulo 1 de O capital, Marx descreve o conceito de valor e seus desdobramentos
analíticos em “forma de valor relativa”, “forma equivalente” e “forma dinheiro”.
Explique esses conceitos.
24. De que forma, para Marx, os trabalhos dos produtores independentes tornam-se
parte do trabalho social total, numa sociedade em que o destino da produção não é
do conhecimento do produtor.
25. No esquema de circulação capitalista, o capital termina com um valor maior que o
inicial. Como Marx explica a origem desse processo de acumulação?
26. Qual a diferença entre força de trabalho e trabalho incorporado?
27. Marx, diferentemente dos socialistas anteriores a ele, não diz que os capitalistas
roubam os trabalhadores. Se não há roubo, então como os capitalistas apropriam-se
do mais-valor?
28. Descreva a explicação marxiana para a queda da taxa de lucros. Que fatores pode-
riam retardar essa queda?
29. Por que em Marx a concorrência entre capitalistas leva à concentração econômica?
30. Se Marx rejeita a teoria da população, então por que os salários são mantidos ao
nível de subsistência?
31. Reproduza a explicação marxiana da crise econômica capitalista gerada pelo
desequilíbrio setorial.
32. O que acontece com os preços de produção quando há uma diferença na composição
dos capitais entre diferentes indústrias? Qual o efeito da concorrência sobre os
lucros de cada indústria?
33. Se as taxas de lucros entre diferentes indústrias são igualadas entre si pela concor-
rência, isso não implicaria necessariamente a igualdade das taxas de mais-valor?

163
Leitura Adicional

Literatura Primária

MARX, Karl. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 2 v.

MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto comunista. Rio de Janeiro: Garamond, 1998.

Leitura Secundária

DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Lisboa: Horizonte, 1993.

HUNT, E. K. História do pensamento econômico: uma perspectiva crítica. Rio de Janeiro:


Campus, 2005.

PRADO, Eleutério F. S. Economia como ciência. São Paulo: IPE-USP, 1991. (Ensaios
Econômicos.)

NETO, José P. Karl Marx: uma biografia. São Paulo: Boitempo, 2020.

164
8
Século XIX: a Escola Histórica e a
Evolução do Marginalismo e do
Subjetivismo Econômico

A ESCOLA HISTÓRICA
A economia política clássica de David Ricardo e Stuart Mill tem uma posição
destacada na evolução das ideias econômicas e pode-se considerá-la a principal vertente
no pensamento teórico e doutrinário dessa disciplina no século XIX. No entanto, não se
pode esquecer de outras contribuições para a ciência econômica que, embora com
alguma influência do legado de Adam Smith, não participam do classicismo nem
compartilham com ele os mesmos elementos teóricos, conceituais e metodológicos. Pelo
contrário, fazem-lhe oposição sistemática ou simplesmente ignoram a escola clássica.
A principal alternativa aos clássicos foi a escola histórica de economia, especial-
mente importante no contexto alemão. Nesse período, o pensamento historicista
dominou amplamente as escolas na Alemanha. Tal fato é especialmente importante
levando-se em conta a grande tradição acadêmica desse país. A economia clássica, de
grande domínio e autoridade na Inglaterra, não havia, de fato, conquistado prestígio
similar em toda a Europa. O pensamento econômico ao longo do século XIX encontra-se
bastante dividido entre diferentes doutrinas que disputavam hegemonia entre os países
europeus. Essa segmentação da ciência era reforçada diante da escassa comunicação
entre a Inglaterra e o continente europeu. Em particular, entre 1840 e 1860, auge do
classicismo na Inglaterra, praticamente não se verifica intercâmbio de ideias entre uma
região e outra. É notório o isolamento da economia clássica inglesa no período. Na
França, o classicismo tornou-se conhecido pela obra de Jean-Baptiste Say, Pierre-Joseph
Proudhon etc., mas em geral os franceses não foram muito influenciados por David
Ricardo e Stuart Mill. Auguste Comte, notável pensador francês, trocava correspon-
dência com Stuart Mill, conhecia-o, mas criticava o trabalho dele. Na Itália, David
Ricardo era pouco lido e, quando lido, mal compreendido.
Na Alemanha, a economia clássica teve pouca penetração. Ricardo era muito critica-
do, embora conhecido. Mesmo discordando dele, alguns importantes autores alemães o
tinham como ponto de referência e de interlocução. Contudo, a academia alemã seguia
um caminho próprio. Havia nela o paradigma dominante da escola histórica, ao lado de
outras correntes. Identificam-se, ao lado do historicismo de Wilhelm Roscher, Bruno
Hildebrand e Karl Knies, o nacionalismo de Georg Friedrich List e Adolph Wagner, e as
contribuições independentes de Karl Heinrich Rau, Friedrich Benedikt Wilhelm von
Hermann, Hermann Hans von Mangoldt e Johann Heinrich von Thünen, que deram
importantes passos no desenvolvimento da teoria econômica sem se vincularem à escola
histórica, esta mais preocupada com coleta e tratamento de dados históricos do que com
teoria abstrata. Os historicistas foram muito influentes também fora da Alemanha. Nos

165
Estados Unidos, sobrepujavam a autoridade da escola clássica inglesa conquistando
amplamente o meio acadêmico. De fato, em muitas áreas o pensando americano estava
alinhado ao dos alemães. No fim do século XIX, havia 10 mil estudantes oriundos da
América em universidades alemãs. Em economia, os fundadores e o primeiro presidente
da American Economic Association receberam treinamento universitário na Alemanha.
Karl Knies influenciou diretamente Richard Ely, que em 1893 publicou o mais influente
livro-texto nos EUA, os Esboços de economia.
Em que pese o relativo isolamento da escola clássica, não se pode negar que as ideias
dos economistas ingleses tenham marcado a história do pensamento econômico no
período mais do que qualquer outra corrente. Afinal de contas, a Inglaterra foi, na época,
a maior potência mundial e o maior centro cosmopolita. As ideias econômicas inglesas
espalharam-se não só pela Europa, mas por todo o mundo, inclusive com adeptos no
Brasil, como evidenciam as obras de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, e Irineu
Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, autores que seguiam os métodos e o receituário
do pensamento dos clássicos ingleses. Entretanto, havia contestações ao predomínio da
escola clássica, e os opositores agiam até mesmo dentro da Inglaterra. De fato, a
ortodoxia econômica inglesa reagia contra a presença da escola histórica dentro e fora de
seus domínios. Como os clássicos, a escola histórica alemã firmou raízes no século XIX,
embora ela tenha praticamente sucumbido tempos depois. No estudo dessa escola, é
usual separá-la em dois períodos: a velha e a nova escola histórica. No primeiro deles,
situa-se o grupo mais antigo dos autores que originaram o movimento, Wilhelm G. F.
Roscher (1817-1894), Bruno Hildebrand (1812-1878) e Karl Knies (1821-1898). Na nova
escola histórica, um grupo mais jovem de autores tratou de aplicar o método a estudos
concretos, dando uma contribuição mais substantiva. Destaca-se entre eles a figura de
Gustav von Schmoller (1838- 1917), o economista alemão mais importante do fim do
século XIX.
Após a derrota de Napoleão, o Sacro Império Romano Germânico deu origem à
Confederação Germânica de 38 estados, cada qual dominado por um nobreza feudal. A
livre navegação do Reno (imposição do Congresso de Viena de 1815), dava aos ingleses a
hegemonia comercial na região. Contudo, ideias a favor do intervencionismo estiveram
muito presentes na Alemanha do século XIX. Um Estado alemão forte era defendido no
contexto em que esse “país” se encontrava numa posição inferior em relação à Inglaterra
e necessitava desenvolver sua indústria de modo a compensar o atraso.
Como estratégia de se opor ao domínio inglês, busca-se a integração comercial entre
os Estados germânicos. Ao lado da ênfase no papel ativo do Estado, a escola histórica era
nacionalista. Como tal, ela se opunha ao individualismo e ao espírito cosmopolita dos
economistas ingleses da época. Caberia ao Estado estimular a industrialização, investir
na melhoria do transporte e fortalecer a posição do país no comércio internacional.
Não obstante isso, noções dos economista britânicos Adam Smith e David Ricardo
eram usadas pela burguesia germânica na crítica ao sistema corporativo e às inúmeras
regulamentações envolvendo a produção. Com efeito, a nobreza tradicional temia o
liberalismo dos britânicos. Condena o individualismo na linha dos filósofos Fichte e
Hegel, nos quais o indivíduo pleno só existe com base na sua relação orgânica com o
Estado. Defendem certo romantismo associado a um ideal de Estado aristocrático e
feudal. Outra reação ocorrera no campo dos nacionalistas, que acreditam no papel de um
governo forte na industrialização alemã.
Os historicistas alemães eram críticos vorazes do método abstrato-dedutivo dos
clássicos e estavam sob influência das ideias filosóficas mais em voga no período: o
sistema de Hegel e o evolucionismo associado ao estudo da jurisprudência e da filologia.21

21 Hegel via ahistória como o desenvolvimento do espírito objetivo (Geist) por meio das diferentes
instituições sociais. O curso da cultura seria a manifestação de um espírito em busca de auto-

166
Tais ideias sugeriram àqueles autores o método histórico de estudo da economia. Método
que parte do pressuposto de que a vida econômica não é isolada da vida política e social.
Assim, o que acontece com o homem depende da sociedade, da nação e das
circunstâncias históricas. O historicismo cuida de estudar prioritariamente a nação, a
moral e o papel do governo, opondo-se, com seu método, ao pensamento abstrato da
economia clássica.
Preocupação com o desenvolvimento econômico e reflexão sobre as melhores
políticas para tanto aparecem na obra do nacionalista alemão Georg Friedrich List (1789-
1846). Economista, partidário do protecionismo, matéria sobre a qual teorizou,
precursor do nacionalismo alemão e um dos precursores da escola histórica, até meados
do século XX a sua obra era a mais traduzida de qualquer economista alemão com
excepção de Karl Marx. Dentre seus diversos escritos, destaca-se O sistema nacional de
economia política, de 1841.
O ataque ao laissez-faire, no contexto de um país que necessitava recuperar o atraso
e desenvolver-se, foi contribuição importante da escola histórica. No entanto, algumas
das teses defendidas lhe eram anteriores. Elas estavam presentes, por exemplo, em List
que propôs a famosa ideia da defesa de indústrias nascentes: o governo deveria cobrar
uma tarifa elevada de importação de bens manufaturados para proteger novos ramos
industriais domésticos. List dizia que as nações mais adiantadas tendem a criar
obstáculos para o desenvolvimento dos países atrasados e que o livre-comércio perpe-
tuaria a desigualdade. O país que deseja passar de uma fase a outra do desenvolvimento
deve contar com o auxílio do governo. Trata-se da teoria das fases do crescimento em
que o livre-comércio seria bem-vindo apenas depois que o país atingisse a maturidade
industrial.
No plano da doutrina moral, os historicistas alemães apregoavam que a atividade
econômica deveria ser moralmente justificada. A produção deveria se dar em volume
adequado e o padrão de distribuição de renda e de riqueza, atender a um critério de
justiça. O Estado alemão deveria estar vigilante na promoção dos valores morais na vida
econômica. O Estado não apenas favorece o desenvolvimento material do país, mas
também as condições do cidadão comum. Com tal ação, o Estado fortalece a lealdade do
público, que via nele o zelador da eficiência econômica e o protetor de seu bem-estar.
Schmoller, por exemplo, defende abertamente que o Estado patrocine reformas sociais
paternalistas de modo a promover a justiça econômica. O principal objetivo da política
social é uma distribuição de renda mais justa.
Vejamos algo mais dos três expoentes da velha escola histórica alemã. Wilhelm
Roscher trata-se do primeiro representante da escola. Das suas obras destaca-se o
Esboço de um curso de economia política segundo o método histórico, de 1843. Nela
evidencia-se o papel da história na investigação economia. Sem descartar o método
dedutivo. De outro autor que vem na sequência, Bruno Hildebrand, destaca-se a obra A
economia política do presente e do futuro, de 1848. Contrário às leis naturais universais
na economia, Bruno oferece um estudo do desenvolvimento evolutivo de cada povo,
história econômica integrada às estatísticas.
Finalmente outro autor, Karl Knies, formula com mais detalhes o método histori-
cista. Ademais, ele pratica a metodologia em estudos históricos. Citemos o seu livro A
economia política do ponto de vista do método histórico, de 1853, em que argumenta
não existir leis naturais na economia. Knies defende o papel das analogias na orientação
das políticas.

desenvolvimento, em um ciclo inato e determinado. Os historicistas alemães não seguem tal


noção de história. A jurisprudência mostra a validade relativa do sistema jurídico. A filologia é o
estudo da evolução das palavras.

167
Também na nova escola histórica, um grupo mais jovem de autores tratou de aplicar
o método a estudos concretos, dando, inclusive, uma contribuição mais substantiva. Em
destaque, Schmoller, de grande atuação política. Nesse sentido, teve decisiva influência
na criação da Associação do economistas alemães (Verein für Socialpolitik). De fato, ele
dominou a academia em economia e política pública. Influenciou reformas econômicas
e fiscais. Era um dos Socialistas de Cátedra: economistas que propunham reformas
sociais. Ao cabo, forneceu grande impulso na pesquisa em história econômica. Ele não
acreditava em leis com validade universal na economia. Enfatizava trabalhos monográ-
ficos aplicados ao estudo da indústria, do comércio, da administração pública etc.
Schmoller dizia que o economista deve compreender o contexto geral, além de ter
poder de síntese a fim de estabelecer inter-relações entre os fatos examinados na história.
Em sua principal obra, o História econômica geral, de 1853, nota-se a aplicação de seus
princípios metodológicos. A escola história não advogava teses socialistas; pelo contrá-
rio, esperava que as reformas sociais afastassem os trabalhadores da ideologia socialista.
Por assumir posições de reforma social fruto meramente de suas reflexões acadêmicas e
não do embate social das ruas, os professores adeptos da mudança social moderada eram
chamados de “socialistas de cátedra”.
Até a unificação alemã em 1871, o ambiente acadêmico era dominado pelo governo
da Prússia, o mais forte dos 38 estados separados a que a Alemanha foi dividida depois
das guerras napoleônicas. Os principais representantes da escola histórica tinham
estreita relação com os oficiais do governo prussiano. Cargos elevados da vida acadêmica
eram alcançados com a indicação governamental. O governo controlava a maioria das
universidades. Por sua influência no ministério da educação, Schmoller pôde exercer
uma presença política esmagadora no ambiente universitário. Os principais cargos
acadêmicos eram indicação sua, tanto que ele se tornou conhecido como o “fabricante
de professores”.
Os economistas históricos retribuíam o apoio do governo às suas pretensões de
poder na academia defendendo teses que beneficiavam o governo imperial da Alemanha,
tal como o fortalecimento da presença deste em um Estado nacionalista. Para tanto,
Schmoller foi um dos fundadores e principal líder do Verein für Sozialpolitik, a organi-
zação já citada que defendia uma legislação social que favorecesse a maior presença
pública em assuntos sociais e econômicos. Em vez de uma democratização da sociedade,
os adeptos da escola histórica difundiam valores como a lealdade a um governo que, em
troca, faria concessões paternalistas.
Alguns elementos da crítica dos economistas históricos à escola clássica são aqui
considerados. Argumentam que as leis econômicas não são absolutas e não podem ser
deduzidas abstratamente de postulados ideais. As leis são sempre relativas às instituições
e são obtidas pelo método indutivo a partir de dados históricos. Assim, não há verdade
absoluta nas leis econômicas, cada povo e cada época têm suas peculiaridades. Hilde-
brand assevera que a economia clássica erra ao tentar aplicar sua teoria a todos os
momentos e lugares.
As ações humanas são dotadas de valor. Elas têm um sentido, não são como fatos
naturais. Não podem ser totalmente quantificadas como na física. Há um sentido na
causalidade histórica. Assim sendo, melhor falar-se em tendências ou regularidades do
que falar em leis. Não há leis universais na vida social. Como forma de conhecimento, os
historicistas separam as “ciências do espírito” (ciências humanas) das “ciências da
natureza”, na linha do filósofo Wilhelm Christian Ludwig Dilthey, conferindo àquela
pouco papel para o método dedutivo.
O homem é produto da história e, como tal, seus desejos, seu caráter e sua relação
com os bens são sempre mutáveis e as doutrinas econômicas são relativas. Roscher
acredita em leis de causa e efeito na história e na existência de princípios gerais aplicáveis

168
com a ajuda da estatística. Outros, como Knies, negam que a história possa fornecer leis
e princípios gerais e lançam a noção de “analogia”, que acabou prevalecendo entre os
historicistas. No uso da analogia, não se supõe completo paralelismo entre passado e
presente, dada a eterna mutação da realidade histórica. As situações históricas são
apenas similares, não idênticas e, portanto, não é possível estabelecer leis de causa e
efeito, só se podem buscar analogias entre elas.
Como entre os clássicos, os economistas históricos alemães também insistiam no
lado social da economia. Diferentemente deles, entretanto, para os historicistas a
dimensão social do fenômeno econômico não estaria contida no âmbito estrito dessa
ciência, sendo necessário buscar outros ramos do conhecimento social e do homem: a
política, a sociologia e a psicologia dentre outros, pois, é preciso estudar o homem tal
como ele é; e isso só é possível levando-se em conta a interdependência dos fenômenos
sociais e das ciências que os estudam. Os historicistas não condenam por inteiro o uso
do método abstrato e dedutivo. Roscher reconhece o valor da abstração em certos
estágios preparatórios do estudo. Entretanto, eles conferem à abstração apenas um papel
complementar.
Leis imutáveis da natureza humana estão fora de cogitação, mas pode-se fazer
deduções de propriedades conhecidas e relativamente estáveis da natureza humana.
Chega-se a elas pela observação específica, generalizando-se a partir disso, e não pelo
caminho da abstração atemporal da escola clássica. O material histórico passa a ter uma
importância crucial para a ciência e todos os outros métodos ficam subordinados ao
método histórico de indução estatística. A economia política é incorporada à sociologia
geral.
A escola histórica objetiva explicar os fenômenos econômicos deduzindo-os de ele-
mentos empiricamente conhecidos da natureza humana. Não seria correto apenas
postular o homem econômico (homo economicus) autointeressado, hipótese consagrada
nos clássicos pelos escritos metodológicos de Stuart Mill. Os economistas históricos
enfatizam a observação empírica, mas não eram radicalmente empiristas, pois, além da
investigação empírica concreta eles utilizam elementos do idealismo hegeliano
compondo um peculiar amálgama de ideias. A combinação dessas duas matrizes parecia-
lhes propiciar perfeito casamento entre filosofia e história.
A sociedade é percebida como uma totalidade orgânica. Não é a soma de indivíduos
autointeressados atuando mecanicamente, mas a interação complexa que resulta num
todo orgânico, um todo em permanente interação. A escola histórica, de fato, não aceita
a noção hegeliana da racionalidade histórica como o desenvolvimento dialético de um
espírito absoluto. Ela não utilizava a dialética hegeliana nem se preocupou com lógica.
Até que ponto os historicistas veem a história como um processo significativo no
qual os eventos históricos possuam significados a serem desvendados, que se formam
socialmente e são expressos pela ação humana? Tais significados variam no tempo e com
o tipo de sociedade? A fim de desvendá-los, a história deveria prestar atenção em como
as pessoas pensam e vivem. E, também, em como instituições específicas são afetadas
por tendências ou condições gerais da sociedade. Dessas observações, a história chegaria
às regularidades ou condições fundamentais presentes na sociedade. Pelo método empí-
rico, ações e eventos concretos são observados e estudados.
Na visão da escola histórica, a investigação social deve preocupar-se com o mecanis-
mo em que as ideias são formadas. Não é aceitável a mera postulação do homem
econômico racional e onisciente. As ideias são moldadas na consciência individual por
meio de um processo histórico e social. Fatores sociais modelam a consciência dos
indivíduos e essa consciência se manifesta nas instituições. As crenças individuais dos
membros da sociedade incorporam-se nas convenções sociais e passam a comandar a
vida social.

169
Estas são as características fundamentais do pensamento historicista alemão. Pode-
mos incluir outros autores como representantes da escola histórica alemã. Dentre eles,
Arthur Spiethoff (1873-1957), aluno de Schmoller que se envolve na Batalha dos Métodos
(ver adiante). Menos hostil à abordagem dedutiva dos economistas clássicos e de
Menger, Spiethoff percebe a importância das hipóteses iniciais e serem testadas na
pesquisa histórica. Deu importante contribuição na teoria dos ciclos econômicos.
Finalmente, ainda no contexto alemão, citemos Werner Sombart (1863-1941) e Max
Weber (1864-1920), que, de fato, eram mais sociólogos que economistas. Ambos perce-
biam a relação entre a vida econômica e a estrutura social. Sombart escreve a obra
Capitalismo Moderno (1902) e Weber se tornaria um dos maiores sociólogos de todos os
tempos, de quem falaremos mais logo adiante.
É preciso considerar que, embora os economistas britânicos tenham repudiado o
enfoque historicista em economia, um punhado de autores da ilha aderiu a uma
concepção similar, mesmo sem pertencerem a uma escola bem-definida. Na literatura,
aparecem como membros da “escola histórica inglesa”, também composta por autores
irlandeses. No entanto, não se trata propriamente de uma escola, mas de um apanhado
de trabalhos isolados. Tal “escola” inicia-se com Richard Jones, autor do começo do
século XIX. Ensaio sobre a distribuição de riqueza e as fontes da inflação, de 1831, é seu
principal trabalho. Nele, critica o pensamento econômico da época, apresenta o método
indutivo e fornece exemplos de como aplicá-lo. Não acredita em leis de validade universal
na economia. No entanto, leis econômicas são possíveis quando se observam vários casos
ao longo da história. Jones enfatiza o papel das formas originais de organização econô-
mica, bem como as estruturas econômicas das sociedades, dentre elas as relações entre
classes.
Jones oferece uma incipiente teoria dos fundos de trabalho, que anos depois seria
aperfeiçoada por Stuart Mill. Nela, tais fundos são classificados em: renda consumida
pelos produtores diretos, renda dos que vivem do próprio trabalho sem atuar na
agricultura e renda acumulada e utilizada na obtenção de lucro. Nesta última classe de
fundo, Jones teoriza sobre o papel da acumulação. Percebe o problema da renda
diferencial, que seria mais explorado por David Ricardo. Fala em “renda absoluta”, dos
que são obrigados a pagar para trabalhar na terra dos proprietários.
A lista de participantes da “escola histórica inglesa” inclui também John Kells
Ingram, William Whewell, Thomas Edward Cliffe Leslie, Walter Bagehot, J. E. Thorold
Rogers, Arnold Toynbee, William Cunningham e William James Ashley. Pode-se ainda
incluir nessa “escola” o jurista e estatístico inglês Leone Levi. A corrente historicista
inglesa guarda certa proximidade com os estadunidenses da chamada Escola Institu-
cional Americana, em especial com as teses de Thorstein Bunde Veblen (1857-1929),
autor que enfatiza aspectos psicológicos e institucionais da economia prática. Veblen
estuda o impacto e as condições para a industrialização e, como aqueles, também critica
os clássicos e os utilitaristas.
É difícil caracterizá-la em sua totalidade, passando ao largo de especificidades nas
contribuições particulares de cada um. Há, contudo, elementos comuns dentre eles. Em
geral, são mais otimistas que os clássicos, até por serem hostis às ideias de Malthus.
Como os alemães, eles consideram a escola clássica excessivamente abstrata e irrealista.
Em troca, desejam relacionar a economia com outras ciências sociais, espelhados no
evolucionismo de Charles Darwin e Herbert Spencer, aplicando-o no exame da socie-
dade.
Contrários ao método abstrato e a priori, tais economistas enaltecem o papel da
observação dos fatos. Contra o postulado clássico do homo economicus, apelam para o
homem real com suas paixões, seus desejos e seus condicionantes históricos. Todos eles
criticam o viés ideológico implícito na noção estilizada oferecida pelo postulado, e enfati-

170
zam, em troca, o progresso moral e a solidariedade humana. Ingram, em particular,
avalia o sistema a priori como antiquado, individualista e amoral.
Leslie e Ingram são leitores de Comte e dos alemães Roscher e Knies. Bagehot é
menos crítico do método abstrato de Ricardo e lança a famosa proposição metodológica
de restringir sua aplicação a estágios desenvolvidos da sociedade.22 Os historicistas
ingleses fazem também críticas teóricas, embora em geral compreendam mal os
clássicos, propondo inclusive teorias alternativas. Richard Jones critica a teoria da renda
da terra de Ricardo e sua lei dos rendimentos decrescentes. Em troca, desenvolve uma
melhor definição de renda. Bagehot propõe um novo e equivocado conceito de custo de
produção. Ele aprofundou a compreensão do papel do empresário e contribuiu
positivamente na análise da função dos bancos. Leslie desenvolve uma nova teoria de
preços e salários. Discute problemas agrários e a distribuição de metais preciosos.
Toynbee estuda a legislação trabalhista e o modo como ela afeta os salários. Em comum,
todos eles criticam a teoria do fundo de salários de Stuart Mill. Também era usual
criticarem o movimento relativo de salários e lucros na teoria ricardiana. Imaginavam
erroneamente que, em Ricardo, haveria sempre uma relação inversa entre essas duas
variáveis. Em suma, os economistas da escola histórica inglesa forneceram alguma
inovação teórica, contudo, seus trabalhos eram, em geral, fragmentados e apresentavam
inconsistências. Isso explica em parte por que tal escola acabou não prevalecendo no
ambiente acadêmico inglês. Também se deve ter em conta as controvérsias metodo-
lógicas que enfraqueceram essa via.
Na Inglaterra, o principal ataque ao historicismo partiu de Neville Keynes (1852-
1949), que incutiu a necessidade de se aceitar a pluralidade de métodos. Neville era
economista e tornou-se mais conhecido por seus escritos versando sobre lógica e método.
Ele lecionou em Cambridge. É pai de John Maynard Keynes, o célebre fundador da
macroeconomia. Em seu famoso livro, O escopo e o método da economia política, Neville
afirma que o método indutivo não pode excluir a dedução:

“De acordo com departamento especial ou o aspecto da ciência sob investiga-


ção, o método apropriado pode ser o abstrato ou realista, o dedutivo ou indutivo,
o matemático ou estatístico, hipotético ou histórico.” (Neville Keynes, The scope
and method of political economy)

Neville acusa o historicismo por este se apegar unilateralmente ao método indutivo


e critica também a preocupação da escola histórica em estudar a formação de ideias na
consciência individual. Para ele, a identificação dos elementos subjetivos que compõem
o conhecimento humano não é tarefa da economia como ciência. Isso pertence ao âmbito
da psicologia, uma ciência à parte. A economia política, ele escreve, é uma ciência social
e não psicológica. As leis econômicas dizem respeito a fatos sociais complexos que não
podem ser deduzidos de leis psicológicas. Exemplificando leis que não são derivadas da
psicologia, ele cita a lei explicativa da determinação da renda da terra, a lei que relaciona
volume de moeda e nível de preços na teoria quantitativa da moeda, a que descreve o
efeito dos impostos sobre os lucros e as leis que regem os fenômenos industriais em geral.
Neville Keynes afirma que os fatos psicológicos são apenas assumidos e não investigados
nos domínios da ciência econômica. Eles são a base do raciocínio econômico, e mesmo
os raciocínios que partem de dados psicológicos requerem suplementação pela
observação direta de fatos sociais complexos que constituem a vida econômica.
Curiosamente a crítica de Neville Keynes atinge tanto os historicistas quanto a
figura de Stuart Mill, central entre os clássicos. Keynes lembra que Mill, em duas obras,
os Ensaios sobre questões não assentadas em economia política e o livro sexto da obra

22O economista francês Antoine A. Cournot, precursor do marginalismo, também escreve que sua
teoria só é aplicável a estado avançado da civilização.

171
Lógica, usa a expressão “ciência moral ou psicológica” ao se referir à economia. De fato,
Mill definiu a economia política como “a ciência que se relaciona às leis morais ou
psicológicas da produção e distribuição de riquezas”.
Neville Keynes é incisivo em apontar o que seria um grave equívoco de Mill e mostra
como essa acepção acabou comprometendo a escola clássica, deixando-a vulnerável às
investidas dos historicistas. Podemos resumir a posição de Keynes como um ataque
metodológico à escola histórica, mostrando a necessidade de se combinarem todos os
métodos de investigação, e uma crítica sobre a definição do objeto da economia que a
confunde com psicologia.
De fato, as provocações da obra de Keynes atingem tanto a escola histórica quanto
os clássicos, mas na prática acabou abalando mais a credibilidade da primeira aos olhos
da comunidade científica em geral. É importante assinalar, no entanto, que os próprios
historicistas não se sentiram incomodados com Keynes, já que os praticantes do método
histórico eram relativamente indiferentes a discussões puramente metodológicas.
Mesmo que as controvérsias metodológicas tenham sido de importância secundária, elas
tiveram um papel na ruína da escola histórica no início do século XX.
No mundo inglês, mais importante como recusa do historicismo foi a publicação da
primeira edição dos Princípios de economia de Alfred Marshall em 1890, mesmo ano do
lançamento da obra metodológica de Neville Keynes. Em matéria de doutrina econômica,
os ensinamentos de Marshall em pouco tempo dominaram completamente a academia
inglesa. É bem verdade que ele fez concessões à escola histórica, evitando criticá-la por
inteiro. Nem por isso, entretanto, deixou de restringir o alcance do método indutivo. Ele
tinha clara predileção por teorias abstratas, embora concedendo um papel para a
história.
Com as ideias de Marshall e Neville Keynes, a visão estritamente historicista foi
descartada. Não só na Inglaterra. Isso vale para a França onde a escola histórica nunca
chegou a ser realmente importante. Também a Áustria ficou parcialmente isolada da
influência da escola histórica alemã, graças à contribuição de Carl Menger, que edificou
sua visão filosófica da economia científica na obra Investigações sobre o método das
ciências sociais e da economia política, de 1883. Menger envolveu-se em ruidosas
querelas metodológicas com Schmoller, o principal expoente da escola histórica, no que
ficou conhecido como Batalha dos Métodos (Methodenstreit).
O descrédito contra a economia historicista teve um teor local específico a cada
região, envolvendo críticas diferenciadas. A escola histórica foi atacada em outras áreas
do conhecimento, além da econômica. Mesmo porque os historicistas definiam-se como
cientistas sociais sem dividirem o saber social em ramificações específicas. Eles viam-se
tanto como economistas quanto como cientistas políticos, sociólogos etc. Essa natureza
interdisciplinar no tratamento que davam a qualquer fenômeno socioeconômico levou-
os a se projetarem não só entre os economistas: também conquistaram certa autoridade
em outros campos da ciência social, como notadamente verificou-se na ciência política.
Figuras expressivas da escola histórica alemã, como Johann Droysen e Leopold Ranke,
eram mais conhecidas entre cientistas políticos do que entre economistas.
Na Alemanha e nos Estados Unidos, a abordagem histórica, embora tenha fincado
raízes mais profundas, também acabaria, tempos depois, sendo sobrepujada. O histori-
cismo, que no século XIX dominou a economia científica nesses países, desapareceu de
cena quando a concepção de ciência social de Max Weber tornou-se dominante. A base
da crítica metodológica de Weber aos pressupostos da escola histórica é de que ela não
dá conta dos aspectos verdadeiramente sociológicos do fenômeno social. Os historicistas
acreditam retratar a realidade tal como ela é, mas para Weber nunca podemos conhecê-
la. Como aqueles, Weber também acredita que a fim de se construir uma ciência social

172
da realidade cabe investigar prioritariamente o significado cultural dos eventos indivi-
duais, vendo até que ponto eles são determinados historicamente.
No entanto, Weber considera absurda a pressuposição historicista de realidade
estruturada, isto é, de que exista alguma estrutura orgânica ou um sistema propositado
funcionando como uma totalidade ou uma entidade concreta. A visão dos processos
socioeconômicos em Roscher e Knies, para exemplificar, parte de uma visão bioantropo-
lógica da sociedade, duramente criticada por Weber. No historicismo, os eventos
históricos e as ações particulares adquirem significados apenas no quadro referencial de
uma realidade já estruturada. Esse pressuposto oferece aos historicistas uma base
ontológica para analisar fenômenos sociais específicos. Weber, porém, refuta tal pressu-
posto ontológico; seria, em sua acepção, como se apoiar em essência misteriosa, uma
entidade metafísica hegeliana. Em troca, ele propõe a utilização de novos conceitos,
sendo o principal a noção de “tipos ideais” (Boxe 8.1).

Boxe 8.1 Weber e os “tipos ideais”.

Max Weber não crê que se possa demonstrar cientificamente a existência, no fenômeno
social empírico, de entidades concretas estruturadas em uma totalidade orgânica. O complexo
social não se apresenta como um mundo organizado em uma rede de relações causais. A
realidade projetada pelas lentes dos historicistas seria, portanto, uma mera invenção, criada
por uma suposta intuição do investigador. Os historicistas tomam ideias que existem apenas
na cabeça do analista como um fator real na história. Com isso, criam-se dogmas que
dificultam a prática da boa ciência, pois, para Weber, não viceja na realidade uma
racionalidade ou uma teia de causalidades que lhe seja inerente. Pelo contrário, em Weber a
realidade apresenta-se como uma inexaurível avenida caótica de eventos, uma infinita
multiplicidade de fenômenos ou um vasto oceano de fatos empíricos.
Se a realidade socioeconômica para Weber é um caos, somente é possível enquadrá-la
teoricamente em um ordenamento compreensivo pelo uso de construções mentais não
empíricas. Conceitos não ambíguos, sistematicamente definidos, impõem ordem ao caos. E,
para tanto, Weber constrói seus “tipos ideais”, um instrumento heurístico empregado na
investigação dos fatos sociais, que ordena o fluxo caótico de ações concretas tomadas pelos
indivíduos, mas não deve ser confundido com a própria realidade histórica. Tal instrumento
permite um tipo de reconstrução abstrata do fenômeno social, um ordenamento analítico da
realidade que depende explicitamente de julgamentos particulares do cientista.

Para Weber, a ação do homem em sociedade é orientada pelos significados que


carrega em mente. Tais significados dependem previamente de valores. Portanto, o saber
social deve-se preocupar com a compreensão de valores individuais. Isso leva ao
entendimento teórico da ação. O elemento-chave na compreensão do fato social é a ação,
e é ela que deve ser prioritariamente investigada pela teoria. Todos os conceitos devem
ser reduzidos à ação. Não há estruturas supraindividuais ou personalidades coletivas
atuantes; a explicação deve partir apenas da ação individual. Uma postura que se
denomina modernamente de individualismo metodológico: a visão que permite apenas
indivíduos serem os tomadores de decisão em qualquer explicação dos fenômenos
sociais. A escola histórica, por outro lado, estava presa a representação de entidades
coletivas dotadas de racionalidade, e foi então descartada. As ideias de Weber foram
decisivas nessa rejeição, principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha.
Portanto, no século XX, a escola histórica alemã foi perdendo importância. Em
especial, a partir de 1917, com a morte de Schmoller, tal escola praticamente deixou de
existir como entidade própria. Não apenas no debate metodológico, mas em questão de

173
política econômica as contribuições desses alemães foram sendo absorvidas. Em
especial, os trabalhos dessa escola forneceram apoio teórico à ideologia de um Estado
intervencionista na economia.

A CRISE DA ECONOMIA CLÁSSICA


A economia política clássica começou a ser desacreditada bem antes do declínio da
escola histórica. Muitos pensavam que esta última poderia vir a substituir a antiga
hegemonia dos clássicos na comunidade científica inglesa. Quando nos anos 1870 eclode
a chamada Revolução Marginalista, a ciência econômica encontrava-se em crise
pronunciada. O entendimento das controvérsias teóricas que levaram a essa crise é o
propósito desta seção. Também conta, para o agravamento dela, a situação econômica e
social na Inglaterra na época, tema que será examinado na próxima seção. A análise do
episódio terá, portanto, limites nacionais, concentrando-se no cenário, acadêmico e
socioeconômico, britânico.

Na Inglaterra, entre 1840 e início dos anos 1860, a ortodoxia econômica tinha
conquistado a confiança da opinião pública e o sistema teórico de David Ricardo,
aperfeiçoado e ampliado por John Stuart Mill, imperava como autoridade suprema.
Além do rigor teórico, elementos externos proporcionavam-lhe tal prestígio. Os clássicos
contaram com o respaldo conferido pelos escritos metodológicos de Mill na exposição
dos princípios da disciplina, que reforçavam o clima de confiança. Também a
prosperidade econômica que se seguiu à implementação da proposição clássica de se
abolir a lei dos cereais ajudou a aceitação. Contudo, entre meados dos anos 1870 e início
da década seguinte, mudanças em fatores ambientais reverteram as expectativas,
levando à crescente crítica e rejeição da teoria clássica pela opinião pública.
Nessa época começa a se destacar, entre os economistas ingleses, um grupo de
jovens autores unido pela repulsa às teorias ortodoxas de valor e salário. Seus ataques
abalaram a confiança na economia clássica ao longo dos anos 1870; uma década, de fato,
apropriada para o aparecimento de novas ideias na Inglaterra. Nesse período, contudo,
predominam as críticas destrutivas. Em seu pior momento, a economia política quase foi
eliminada da respeitada Associação Britânica para o Avanço da Ciência, quando Francis
Galton tentou excluir a seção F, a ela destinada. Em meio a um interregno confuso de
duas décadas, não se firmou um acordo entre os economistas sobre o que deveria
substituir as teorias ortodoxas.
Dois aspectos do arcabouço clássico eram severamente contestados: a teoria do
valor e a da distribuição. De fato, a análise da distribuição em David Ricardo e Stuart Mill
estava apoiada em dois pilares que entraram em colapso: a teoria do fundo de salários e
a doutrina da taxa natural de salários. A primeira assevera a existência de um montante
de capital anual na sociedade destinado à manutenção dos trabalhadores. Os salários
médios seriam então determinados pela comparação entre o fundo de adiantamento e o
número de trabalhadores a serem mantidos por ele. Parte-se da hipótese de trabalho
homogêneo, assumida explicitamente por Mill no capítulo “Os salários” de seus
Princípios de economia política, embora em capítulos subsequentes Mill discuta os
diferenciais de salário, rompendo com ela. Para efeito de uma teoria geral dos salários,
entretanto, permaneceu a noção de trabalho homogêneo e isso era o que contava nas
controvérsias políticas da época. A doutrina da taxa natural de salários utiliza as
implicações da teoria da população de Malthus, mostrando que certo nível de salário
manteria inalterada a oferta de trabalho e que qualquer outro nível não se sustentaria no
longo prazo.

174
No fim dos anos 1870, apareceram vários ataques à teoria do fundo de salários,
desferidos por economistas ingleses de variadas filiações, alguns ligados à escola
histórica. Tais críticas reforçaram o descrédito dos clássicos. Deficiências eram
apontadas por Cliffe Leslie, da escola histórica, e por economistas não historicistas como
Fleming Jenkin, Francis D. Longe, John Elliot Cairnes, William T. Thornton e o margi-
nalista William Stanley Jevons. Nesse sentido, Jevons afirma:

“Outras doutrinas geralmente aceitas têm-me parecido sempre ilusórias, espe-


cialmente a assim chamada Teoria do Fundo de Salários. Essa teoria aparenta
fornecer uma solução para o principal problema da ciência – determinar os
salários do trabalho; contudo, num exame mais minucioso descobre-se que sua
conclusão não passa de mero truísmo qual seja, que a taxa média de salário é
encontrada pela divisão do montante total destinado ao pagamento dos salários
pelo número daqueles entre os quais esse montante é dividido.” (W. S. Jevons, A
teoria da economia política, prefácio)

Na busca de uma interpretação alternativa que pudesse substituir a teoria do fundo


de salários, o grupo de autores desenvolve novas ideias. Francis Longe resgata o conceito
malthusiano de demanda geral de trabalho. Thornton propõe suas curvas de demanda e
oferta pretendidas de trabalho, que são curvas que dependem de estimativas subjetivas
do futuro. Ele também discute o conceito de excedente do consumidor e avalia a ação dos
sindicatos. Seu trabalho foi pioneiro no tratamento gráfico. Cairnes (1823-1875), em seu
livro Nova exposição dos princípios líderes da economia política, estabelece uma impor-
tante distinção entre demanda e oferta realizadas (ex post) e estimadas (ex ante). Ele
também propõe a separação entre demanda e oferta gerais da sociedade e demanda e
oferta para uma mercadoria específica. Defende a igualdade entre demanda e oferta em
nível geral (Lei de Say) e mostra que a partir delas não se pode determinar o que recebem
capitalistas e trabalhadores. Para Cairnes, entretanto, é possível fazê-lo pelo uso da teoria
dos salários agregados médios, que ele propõe e que é uma versão modificada da teoria
do fundo de salários. A nova teoria dos salários analisa como são determinados os
investimentos em geral e os diferentes tipos de investimentos, em particular a
contratação de trabalhadores. Ela investiga o que condiciona, no agregado, a proporção
investida em capital fixo, matéria-prima e salários.
Cairnes procurou restabelecer a teoria do fundo de salários flexibilizando a hipótese
de trabalho homogêneo. Em sua defesa, ele introduziu o modelo multifatores de
trabalho, no qual indivíduos diferenciados competem entre si, preferindo cada um as
profissões mais bem pagas. No equilíbrio, os salários relativos seriam explicados pelas
diferenças de talento e qualificação individual. O mesmo autor também propôs uma
teoria ad hoc sobre a existência de grupos não competitivos dentro do modelo de
multiplicidade de fatores de trabalho. Cairnes era excessivamente malthusiano e sua
defesa de Mill acabou comprometendo ainda mais o sistema teórico clássico.
Na Alemanha, a teoria do fundo de salários já tinha sido demolida, muito tempo
atrás, por Friedrich von Hermann em 1832. Karl Heinrich Rau e Hans von Mangoldt, em
1863, fizeram a ligação teórica do salário com a produtividade. Ideia que acabou
prevalecendo na economia moderna, mas que ainda era pouco usual à época. A produ-
tividade determina a distribuição de renda e esta afeta a demanda do consumidor.
Comentando o período, o célebre Schumpeter nos diz que, nos anos 70, “assassinar a
teoria do fundo de salários tornou-se o esporte favorito entre os economistas”. O próprio
Mill, em 1869, acabou abandonando-a.
A teoria da taxa natural de salários considerava o crescimento da população uma
variável endógena. Os salários eram mantidos no nível de subsistência pela pressão
demográfica. Nas décadas de 1850 e 1860, o crescimento demográfico na Inglaterra e a
concomitante melhoria no padrão de vida resultaram na crescente falta de credibilidade

175
tanto da teoria populacional clássica quanto da noção de salário de subsistência. O
crescimento permanente no padrão de vida da classe trabalhadora tornava obsoleta a
noção de nível de subsistência. Nassau W. Senior, William Edward Hearn, J. R.
McCulloch e Robert Torrens, mesmo aceitando a base conceitual da economia clássica,
criticaram a teoria da população de Malthus e propuseram, em troca, interpretações mais
flexíveis do problema. Nos anos 1870, poucos economistas ainda não haviam rejeitado
por completo a teoria da taxa natural de salários por parecer inconsistente com os fatos.
Por exemplo, ela não explicava o efeito sobre os salários do grande aumento de
importações pela Inglaterra de alimentos provenientes dos Estados Unidos. Mesmo na
nova versão, proposta por aqueles autores, a teoria da população tinha pouco conteúdo
empírico. Contudo, os economistas não abandonam essa teoria, e os autores da nova
escola marginalista ainda mantêm a crença na existência dela. Eles tão somente optam
por não a investigar, tratando a população como variável exógena. Nomes como Jevons,
Marshall, John Bates Clark e Knut Wicksell, expoentes da nova economia, não deixaram
de acreditar na teoria da população.
Os críticos viam a existência de muitas exceções às teorias de salário de Ricardo e
Mill, exceções que se tornam mais importantes que o caso geral. No entanto, não havia
algo mais elaborado que pudesse substituir as teorias vigentes. Nessa época, inicia-se o
desenvolvimento de explicações que elaboram pensamentos na direção da análise da
produtividade marginal. A partir de então, cada vez mais, populariza-se a explicação dos
salários pela produtividade do trabalho.
A teoria do valor-trabalho em sua versão ricardiana, outro pilar da economia
clássica, naqueles anos também começou a ser vista por muitos como inadequada.
Embora quase todos criticassem essa teoria, não havia algo muito articulado que a
substituísse. Modificações superficiais foram tentadas. Mill e Cairnes, no estudo das
trocas internacionais, abriram uma exceção na explicação clássica do valor em troca de
uma teoria do valor dependente da demanda. Havia uma estreita ligação teórica entre as
mudanças na teoria do salário e o descrédito para com a teoria do valor.
Os nomes que seriam consagrados na história do pensamento econômico como
expoentes da Revolução Marginalista, William Stanley Jevons, Carl Menger e Léon
Walras, centraram suas críticas aos clássicos na questão do valor. Jevons apontou três
tipos de deficiências na abordagem do valor em David Ricardo:

1. Ela requer uma teoria especial para mercadorias com oferta fixa, como
estátuas raras. O que prova que o custo em trabalho não era essencial para o
valor.
2. Elevados custos em trabalho não conferem alto valor à mercadoria se a
demanda futura for erroneamente prevista.
3. O trabalho é heterogêneo e só pode ser comparado pelo valor do produto.

Menger critica a divisão clássica dos fatores de produção, entre terra, trabalho e
capital, na determinação do valor. Pergunta então por que, em Ricardo, o valor da terra
não dependeria também do custo em trabalho para mantê-la e por que então seria
necessária uma teoria particular para a renda da terra.
Walras aponta para a falta de generalidade da teoria de Ricardo e não aceita a
diferenciação ricardiana entre bens raros e bens reproduzíveis. Outro argumento de sua
crítica é o de que os preços dos produtos e dos fatores produtivos têm efeitos recíprocos
e mesmo o valor de um fator afeta o de outro. Portanto, assevera Walras, a ideia clássica
da causalidade do valor como indo do custo dos fatores para o preço do bem não se
sustenta.

176
Temos, em suma, três pilares básicos da economia política clássica que foram
bastante criticados: a doutrina da população de Malthus, a teoria do fundo de salários e
a teoria do valor-trabalho.23
Em decorrência da crise da economia clássica, a escola histórica conheceu certo
domínio na Inglaterra entre 1870 e 1890. No entanto, a ortodoxia ainda tinha um público
cativo. Tentativas de revitalizá-la foram feitas por Cairnes e Henry Sidgwick (1838-1900)
em suas obras, respectivamente, Nova exposição dos princípios líderes, de 1874 (já
citada), e Princípios de economia política, de 1883. A primeira delas faz uma síntese das
principais doutrinas da economia clássica. Ambas ainda seguem a antiga moldura
clássica. Essas duas décadas foram bastante profícuas em discussões metodológicas. O
“Escopo e método” de Keynes e os Princípios de economia de Marshall acalmaram o
debate. Também reduziram o prestígio dos historicistas e conseguiram aplacar a
crescente insatisfação com a ortodoxia na Inglaterra pelas novas teorias marginalistas,
inteligentemente acopladas aos velhos conceitos e noções clássicos nos escritos de
Marshall.
Podemos buscar outras doutrinas que, no período, poderiam vir a ocupar o espaço
hegemônico da economia clássica. Além da economia historicista que não foi muito
longe, poderíamos citar o institucionalismo e o marxismo como possibilidades. A
primeira escola conquistou certo prestígio nos Estados Unidos, principalmente nos
escritos de Veblen. Nada que impedisse a aceitação da economia marginalista e seu
aprimoramento em trabalhos de brilhantes economistas americanos como Irving Fisher
e John Bates Clark. O institucionalismo, que foi nos Estados Unidos o sucessor da escola
histórica, padeceu da fraqueza de não propor uma compreensão alternativa dos proble-
mas teóricos.
O legado de Marx seria outra alternativa à escola clássica se tivesse atraído para si
os descontentes dela. Entretanto, na década de 1880, sua contribuição em nada afetou o
ambiente acadêmico dos economistas. Embora o primeiro volume de sua obra máxima
O capital tenha sido publicado em 1867, ele só foi traduzido para o inglês em 1887. Marx
morreria desconhecido em 1883. Jevons, Menger e Walras pouco sabiam das contribui-
ções dele.

CRISE ECONÔMICA E MUDANÇAS SOCIAIS NA INGLATERRA


Ao lado das críticas em teoria e método, na crescente hostilidade para com a escola
clássica contribuíram elementos que se relacionam ao ambiente social e econômico da
época. A descrença estava voltada não apenas aos aspectos teóricos da ortodoxia, a
própria orientação política derivada dos princípios da doutrina econômica clássica era
contestada pela opinião pública. A breve exposição dos eventos sociais que marcaram
esta época na Inglaterra, que faremos adiante, facilita a compreensão de como fatos extra
teóricos impulsionaram a crise na economia política.
Os anos de 1850 a 1870 foram marcados por uma notável prosperidade econômica
na Inglaterra impulsionada pelo crescimento da industrialização. As técnicas produtivas
executam grandes saltos, com o aumento no tamanho das fábricas, especialmente na
indústria mecânica e nos setores de aço, ferro, transporte e comunicação. A companhia
limitada é substituída pela firma de sociedade anônima, propiciando um novo e privi-
legiado instrumento de mobilização e controle do capital. Essa prosperidade, no entanto,

23Poderíamos acrescentar a teoria da renda. Ela era contestada por não se acreditar na lei da
produtividade decrescente da terra ou porque alguns autores, como Richard Jones, criticavam o
próprio conceito ricardiano de renda da terra.

177
não se refletiu positivamente nas relações sociais; pelo contrário, os problemas sociais só
se agravaram no período.
Ocorrem inovações organizacionais trazidas pelos novos métodos na administração
das empresas. Tais inovações resultam em uma relação mais hierárquica e mais
burocrática no interior das firmas, simbolizada pela introdução da figura do gerente de
fábrica. Não só no plano interno das empresas, mas também em toda a sociedade, o
período assiste ao agravamento nas relações sociais. Ao lado da deterioração das
condições de trabalho e do prolongamento de sua jornada, novas mudanças são
propiciadas pela incorporação no mercado de trabalho de mulheres e crianças. A
resposta dos trabalhadores fez-se sentir no avanço da organização sindical. Os sindicatos
conquistaram grande poder de mobilização, o que parecia ameaçar interesses econômi-
cos de grupos organizados. Por outro lado, as firmas intensificam o uso de práticas de
conluios, com fusões e formação de cartéis. Há um crescimento generalizado no poder
de monopólio. A vida social, exacerbada por uma configuração mais conflituosa entre as
classes, que se traduzia em tensões crescentes na política, levou a uma ação mais incisiva
do Estado na economia.
Os anos 1870 acentuaram as contradições da sociedade inglesa. O processo de
mudança estrutural mantém sua continuidade e até se intensifica. A economia desse país
enfrenta agora uma reversão cíclica com o aparecimento de dificuldades econômicas.
Trata-se da Grande Depressão, vista por alguns autores como o primeiro sinal da crise
geral do capitalismo, cujo epicentro se localiza no ano de 1873. Esse grave período da
economia fez aumentar ainda mais a intervenção do Estado. Os problemas da economia
inglesa afetaram a outros países, especialmente a Alemanha. A Inglaterra já não
consegue exercer com a mesma eficácia seu papel de coordenadora internacional do
mercado de capitais. Graves crises financeiras verificam-se, em diferentes países, nos
anos de 1873, 1882 e no começo da década de 1890. O sistema bancário inglês, o
emprestador em última instância, não mantém o controle da situação.
A situação na agricultura também não é boa. O trigo inglês não consegue competir
com a produção dos Estados Unidos, gerando grande queda na renda dos agricultores. O
crescimento no comércio internacional, sob a égide do padrão-ouro, acirra a competição,
o que leva parte da opinião pública inglesa a clamar por um maior protecionismo. A
intervenção do Estado aumenta em consequência desses eventos, não só para dirimir os
conflitos sociais internos, mas também visando melhorar o desempenho da economia e
restabelecer a competitividade internacional daquela nação europeia.
Outro movimento pode ser observado no plano das ideias. O laissez-faire cedia cada
vez mais espaço para a necessidade de uma doutrina que regulasse a intervenção do
Estado com base em princípios racionais de ação da esfera pública inspirados nos
avanços das ciências. Já nos anos 1860, nota-se a eclosão de um interesse renovado pela
ciência social. A crença generalizada nas potencialidades dessa ciência em modelar a vida
social leva a uma proliferação de várias seitas sociais. Os pensamentos de Mill, Comte,
Spencer, Thomas Hill Green, Henry George e Marx, o evolucionismo de Darwin e outras
correntes proporcionam um rico painel de ideias, de cores variadas, que na época
iluminou as mentes dos entusiastas da reforma social. Ao mesmo tempo, a doutrina do
livre mercado, ainda forte, passa a encontrar rivais a altura, que se valeram do mau
resultado da competição no lado da distribuição para galvanizar os descontentes. Há, no
fim do século XIX, uma crescente ênfase no problema da distribuição. A economia
clássica era admoestada por ter-se preocupado em demasia com o lado da produção.
Acreditava-se na existência de um amplo escopo para políticas de distribuição.
A questão da acumulação de capitais, central entre os clássicos, pareceu, aos olhos
da época, menos importante. O problema da má alocação de recursos tornou-se mais
relevante. Em sintonia com o clima da época, a teoria marginalista iria priorizar a

178
questão da eficiência alocativa. Sem contestar o laissez-faire, a análise marginalista
explica que a inabilidade do capitalismo em controlar a anarquia de mercado era apenas
aparente e que tal controle poderia ser restabelecido se o governo combatesse as
coalizões internas feitas por trabalhadores e patrões. Em síntese, ao lado dos problemas
internos à teoria clássica, há razões externas que explicam sua crise. O ressurgimento de
um conflito social claro e endêmico tornou a comunidade acadêmica e os círculos
políticos e culturais críticos à teoria clássica e particularmente receptivos à nova teoria
marginalista. O fato de o livro de Hermann Gossen, que não encontrou público em seu
lançamento em 1854, ter alcançado extraordinário sucesso, quando em 1889 um editor
de Berlim o republicou com um breve prefácio, demonstra que havia uma grande
demanda pela visão proporcionada pela teoria marginalista.

PRECURSORES DO MARGINALISMO
A escola marginalista certamente pertence ao século XX. O uso do cálculo marginal
e o conceito de utilidade foram-se firmando gradualmente, ao longo de muitos anos. De
modo que somente a partir dos anos 1930 começam a aparecer, em número significativo,
artigos em revistas especializadas embasados nos modernos métodos e conceitos
marginalistas. No entanto, o século XIX viu germinar, de modo gradual e não muito
aparente ao público da época, ideias que propõem o uso do cálculo marginal em teoria e
o conceito de utilidade na questão do valor. No final do período, há também o conhecido
episódio da Revolução Marginalista, entre 1871 e 1873, e o lançamento do livro de
Marshall em 1890. O movimento revolucionário não foi realmente muito sentido à época,
pois Walras e Menger eram relativamente desconhecidos e permaneceriam ocultos por
um bom tempo. Jevons tornou-se conhecido por seu trabalho em estatística, não tanto
em teoria. Então o termo “revolução”, para caracterizar o episódio, tem um caráter
retrospectivo e modernamente tem sido contestado pelos historiadores. Marshall foi o
grande marco na aceitação do marginalismo pela academia. No entanto, seu livro ocorre
bem no fim do século e o impacto maior dele se fez sentir apenas no século XX.
Noções marginalistas seriam paulatinamente plantadas e a teoria subjetiva do valor
resgatada. Passos nesse sentido foram dados por autores pertencentes a diferentes
países, a maioria não era economista, desconhecia os clássicos da disciplina e viveu
isolada entre si. Esta seção procura identificar tais contribuições esporádicas.
O primeiro aspecto a ser assinalado é o de que os autores em questão, em sua quase
totalidade, tinham formação matemática e, como tal, propuseram o tratamento de
questões econômicas apoiado no cálculo matemático. Os clássicos, em geral, não
aventaram a possibilidade do uso da matemática em economia; exceção importante em
Malthus, que em 1814 tinha sugerido o uso potencial do cálculo diferencial para a
economia e as ciências correlatas. No ano seguinte, Georg von Buquoy analisa o lado
gerencial da economia, aconselhando os fazendeiros a maximizarem sua renda no ponto
de máximo da função lucro total, dado pelas conhecidas condições de derivada primeira
igual a zero e derivada segunda negativa do cálculo diferencial. Pouco depois, em 1824,
Perronet Thompson emprega o cálculo marginalista no estudo da receita pública. No ano
de 1839, Charles Ellet já discute a tarifa ótima que maximiza o lucro na linha de trem.
William Whewell também foi um dos primeiros autores a associar matemática e
economia. Essa tendência de uso da matemática foi então lentamente se difundindo.
Contudo, o grande precursor da análise marginalista foi Antoine Augustin Cournot
(1801-1877), importante economista francês do século XIX. Seu livro, de 1838, Princípios
matemáticos da teoria das riquezas, foi pioneiro no uso da matemática na teoria do
preço de equilíbrio. Pela primeira vez um autor desenvolve concepção moderna de oferta

179
e demanda como conceitos funcionais, representados por símbolos e gráficos, e como
curvas de planejamento ótimo. De modo inédito, ele assevera que o estudo da demanda
pode partir diretamente de relações empíricas entre preços e quantidades, sem a
necessidade de uma fundamentação na subjetividade do agente. Propõe então o exercício
de se representar a demanda pela função contínua F(p), com F´(p) < 0. Tal função seria
obtida empiricamente. Tempos depois, Léon Walras iria empregar o método de
representação algébrica de oferta e demanda de Cournot e usar a matemática na solução
de problemas econômicos, tendo reconhecido sua dívida para com ele.
Cournot desenvolveu uma função em que a demanda é expressa algebricamente
como dependente do preço D = F(p). Tal função agrega as demandas individuais de todos
os participantes de determinado mercado. O formato de F dependeria da utilidade, do
tipo de serviço, de hábitos e costumes do povo, da riqueza média e da distribuição de
riqueza. Também seria afetado por causas morais. Cournot argumenta que a relação
entre preços e quantidades demandadas poderia ser obtida empiricamente; no entanto,
aceita que o simples uso de relações entre símbolos de valores indeterminados seria útil
por assinalar ligações entre as grandezas, mesmo que o valor numérico das variáveis
fosse desconhecido. Cournot faz hipóteses sobre F(p): é contínua e diferenciável. Analisa,
em seguida, a receita total p.F(p), quando investiga as expressões algébricas da condição
de máximo obtidas pela derivada primeira da receita p.F’(p) + F(p) = 0 e sua derivada
segunda 2F’(p)+p.F”(p) < 0. Mostra que com F(p) côncava (F”< 0) a existência de pelo
menos um máximo estaria assegurada. Trabalha então a noção de elasticidade da
demanda, embora a denominação “elasticidade” seja de Marshall. A noção é utilizada
para saber se o preço corrente está acima ou abaixo do ponto de receita máxima. Cournot
introduz também a função custo e analisa os rendimentos de escala. Mostra que com
lucro máximo a receita marginal iguala-se ao custo marginal (Boxe 8.2). Estuda ainda o
monopólio, o duopólio (aqui lança sua conhecida hipótese em que um dos participantes
imagina que o concorrente não reagirá às variações de preço pela oferta de novas
quantidades) e chega finalmente ao modelo de n produtores em concorrência. Nesse
modelo, constrói curvas de oferta e demanda para o mercado, envolvendo a agregação
das curvas individuais, e em sua intersecção determina o preço de equilíbrio. Cournot foi
o primeiro a aplicar o cálculo diferencial à economia, em trabalhos sobre monopólio e
oligopólio.

Boxe 8.2 A condição de lucro máximo em Cournot.

Esta condição implica maximizar a expressão p.F(p) –  (F), isto é, receita total menos
custo total. Cournot procura então um ponto com derivada igual a zero (condição de máximo),
deriva toda a expressão anterior em relação a p. A derivada do primeiro termo é F(p) +
p.dF/dp. Isto ainda não é a receita marginal, pois Rmg = d(p.F)/dF, ou seja, a derivada da
receita total em relação às quantidades e não em relação a preços como na expressão de
Cournot. Portanto, Rmg = (dp/dF).F + p = dp/dF (F + (dF/dp).p). Vemos então que a
derivada do primeiro termo da expressão de Cournot, receita total menos custo total, é
Rmg.(dF/dp) e não simplesmente a receita marginal.
Já o segundo termo, da mesma expressão, quando derivamos em relação a p, fica sendo
– (d/dF). (dF/dp) = – Cmg.(dF/dp). É importante assinalar que o custo marginal (Cmg) é a
derivada da função custo total ( (F)) em relação às quantidades e não em relação aos preços.
Reunindo as duas expressões já obtidas temos que d(pF(p) –  (F))/dp = Rmg.(dF/dp) –
Cmg.(dF/dp). Igualando a zero, temos demonstrada a condição receita marginal igual a custo
marginal para o lucro máximo.

180
Outro pioneiro na aplicação do cálculo marginal a problemas econômicos foi o
alemão J. H. von Thünen (1783-1850) em sua obra O Estado solitário, publicada
postumamente em 1850.24 Ainda alinhado ao tratamento clássico em alguns aspectos,
Von Thünen não se preocupou com a demanda, empregando o marginalismo apenas na
esfera da produção, particularmente na agricultura, em que mostra que a renda máxima
do produtor é alcançada quando o acréscimo marginal de renda obtida por meio do
último fator empregado torna-se igual ao preço do fator. Preços e salários são
determinados basicamente pelos custos de produção, mas não da mesma maneira que
nos clássicos. Há curiosas hipóteses incorporadas a seu modelo.
Thünen introduz novos conceitos mantendo, no entanto, pontos básicos da doutrina
econômica clássica. Sua obra influenciou J. B. Clark e A. Marshall. Suas teorias de salário
e juro, embora levem a conclusões absurdas, são importantes historicamente pelo
método que empregam. O autor alemão parte de um modelo simples de economia
espacial no qual em solo homogêneo localiza-se um centro urbano no ponto central e as
atividades econômicas distribuem-se em torno dele ao longo de círculos concêntricos.
No círculo vizinho à cidade produzem-se vegetais e leite, com cultivo e pecuária inten-
siva, usando técnicas como fertilizantes e rações especiais.25 A localização espacial de
outras atividades dependerá do custo de transporte. Dessa forma, as pastagens ficam nos
círculos mais externos e as florestas cobrem o entorno.26
Com esse esquema espacial, Von Thünen propõe uma teoria da renda dependendo
não da qualidade do solo como em David Ricardo, já que por hipótese ele é homogêneo,
mas da localização e da intensidade do cultivo. O preço do bem de consumo final, vendido
nas cidades, é igual à soma do custo de produção mais o custo de transporte. Este último
é crescente para lugares cada vez mais distantes. O custo de produção depende de salário
w e juro i. As terras de melhor localização economizam custo de transporte. A economia
de transporte é paga na forma de renda da terra ao proprietário das terras mais bem
situadas. A renda também surge dos retornos decrescentes associados ao cultivo
intensivo, como em Ricardo. Quando toda a terra é utilizável, ponto de partida da análise
de Von Thünen, as terras inframarginais produzem um excedente de valor sobre os
custos de produção, pago na forma de renda.
Falta uma explicação mais fundamentada para salários e juros em Von Thünen, mas
vale a pena repassar os pontos básicos de sua teoria. Ele imagina um grande país tropical,
rico em recursos naturais e favorecido pelo clima. O conhecimento tecnológico está
distribuído uniformemente entre os trabalhadores, mas só alguns deles possuem capital
suficiente para tocar o negócio por conta própria. Os trabalhadores, se forem os donos
do negócio, contratam outros trabalhadores sempre que o salário pago ao último
contratado supere a variação da produção proporcionada por ele, descontando-se os
juros do capital adiantado ao trabalhador contratado. Os juros do capital, portanto,

24 A obra está dividida em dois volumes. Em 1826 foi publicado o primeiro volume no qual o autor
desenvolve sua famosa teoria da localização espacial das atividades econômicas em círculos
concêntricos ao mercado em que o produto é vendido. A data 1850 corresponde à publicação do
volume 2 em que Thünen esboça sua teoria da produtividade marginal sobre salário e capital.
25 Nas vizinhanças da cidade produzem-se produtos frágeis de jardinagem e horticultura como

morango, alface, couve-flor etc. Os fazendeiros também criam vacas alimentadas em celeiros para
a produção de leite. Porque o custo de transporte do leite é difícil e caro.
26 Florestas cultivadas aparecem no círculo mais próximo das cidades, depois do cinturão de

vegetais e leite. Tais florestas fornecem à cidade combustível e materiais de construção. Tais itens
são cultivados próximos à cidade porque são pesados em relação a seu preço. Depois desses dois
anéis, começa o cinturão de cereais, ora de cultivo mais intensivo, ora intercalados tempora-
riamente com o descanso da terra e o seu uso como pastagem. A floresta externa é usada como
área de caça.

181
também entram na análise e eles representam a contrapartida a três aspectos:
compensação pela espera, prêmio pelo risco e salário da gerência.
No modelo do Estado solitário, Thünen chega a um curioso resultado em que o
salário de equilíbrio w é igual a a. p , a é o consumo anual de subsistência de uma
família de trabalhadores e p, o produto médio anual de uma família com q quantidades
de capital, expresso em unidades físicas de trigo. Thünen considerou essa fórmula tão
importante para a economia científica que pediu que ela ficasse gravada na lápide de seu
túmulo. Vejamos as hipóteses do modelo: uma comunidade isolada, com terras
homogêneas e que toma vantagem da divisão do trabalho tão logo exista capital
suficiente. As terras, de mesma qualidade, são adquiridas sem custo, mas os
trabalhadores só atuam por conta própria se tiverem capital suficiente, caso contrário
empregam sua força de trabalho como assalariados. A quantidade anual para a
subsistência da família é 100c, em unidades físicas (c é a centésima parte desse
montante). Anualmente é produzido por família um excedente de 10c, de modo que em
10 anos a soma do excedente poupado, que não rende juros, corresponderá ao consumo
anual de subsistência.
O salário anual em trigo é a + y, onde a é o nível de subsistência e y o excedente que
pode ser acumulado ano a ano. O trabalhador pode permanecer na condição de
assalariado ou decidir explorar a terra por conta própria. Nesse caso, ele necessita de um
capital q, expresso em unidades do produto anual da família. O salário e o juro na orla
periférica determinam o salário e o juro em todo o sistema. A cada ano, o trabalhador
com patrão recebe duas formas de rendimentos: o salário anual e os juros anuais (a taxa
z) que incidem no capital previamente acumulado por ele. Ele decide explorar uma nova
terra por conta própria sempre que o produto anual da terra periférica p, quando
empregadas q unidades de capital, for maior que o custo de oportunidade em
permanecer como assalariado, ou seja, o salário w e os juros do capital acumulado z.k.
Na condição de equilíbrio p = w + z.k, demonstra-se que w = a. p na hipótese
comportamental de que o indivíduo busca maximizar a renda gerada pelo excedente
anual z.y. A demonstração desse resultado é feita no Boxe 8.3.

Boxe 8.3 Demonstração da equação fundamental dos salários em Von Thünen.

Primeiramente escreve-se o capital acumulado k necessário para a exploração da nova


terra, em termos de unidades de salário em trigo, de modo que k = q.(a + y) representa o
capital em trigo. q representa unidades do trigo anual da família (a + y). Escreve-se, portanto,
p = (a + y) + q.(a + y).z. Isolando-se os juros, z = (p –(a+ y))/q.(a + y). Maximiza-se a
(𝑝−(𝑎+𝑦))𝑦 𝑝𝑦−𝑎𝑦−𝑦2
𝑑[ 𝑞(𝑎+𝑦)
] 𝑑[ 𝑞(𝑎+𝑦) ]
expressão z.y, ou seja, = = 0. O que implica (𝑝 − 𝑎 − 2𝑦)(𝑞(𝑎 + 𝑦)) −
𝑑𝑦 𝑑𝑦
(𝑝𝑦 − 𝑎𝑦 − 𝑦 2 )𝑞 = 0, 𝑝𝑞(𝑎 + 𝑦) − 𝑎𝑞(𝑎 + 𝑦) − 2𝑞𝑦(𝑎 + 𝑦) − 𝑝𝑞𝑦 + 𝑎𝑞𝑦 + 𝑞𝑦 2 = 0. Desen-
volvendo-se a expressão, chega-se a 𝑝𝑞𝑎 − 𝑞𝑎2 − 2𝑞𝑎𝑦 − 𝑞𝑦 2 = 𝑝𝑎 − 𝑎2 − 2𝑎𝑦 − 𝑦 2 =
0. Note que (𝑎 + 𝑦)2 = 𝑎2 + 2𝑎𝑦 + 𝑦 2 . Portanto, p.a = (a + y)2. Como a + y = w, w = a. p , a
famosa expressão de salários de Von Thünen.

O resultado do modelo de Von Thünen é evidentemente pouco convincente, mas


representa uma importante etapa na evolução das teorias de salário. O salário já não
depende apenas do nível de subsistência a, como nos clássicos, e há agora a ligação do
salário com o produto anual, um passo importante na evolução da moderna teoria do
salário como determinado pela produtividade marginal. Pode-se interpretar a expressão
de Von Thünen como um meio-termo entre a interpretação clássica e a moderna,

182
tomando-se uma média geométrica das variáveis relevantes em cada caso, respecti-
vamente subsistência e produtividade. O modelo tem pontos que não são justificados.
Ele expressa a unidade de capital em salário anual, como se todos os itens de custo se
resumissem a salário. Ele maximiza o retorno do excedente anual z.y, mas deveria levar
em conta todo o capital acumulado até certo ano. Em suma, é um modelo simplificado e
errôneo, com excesso de abstração, mas ele é bastante inovador e sofisticado para a
época.
Embora Cournot e Thünen tenham-se notabilizado pela adoção da técnica margi-
nalista na solução de problemas econômicos particulares, eles não incorporaram a noção
de utilidade ou propuseram uma teoria subjetiva do valor em oposição aos clássicos.
Entretanto, tal teoria tornar-se-ia, tempos depois, um dos pilares do marginalismo.
Sabemos que a ideia de que o valor depende da avaliação humana do bem remete à
Antiguidade, e foi articulada pela corrente de escolásticos medievais seguidores de
Tomás de Aquino, que partem do conceito de Indigentia e elaboram a ideia até a síntese
de Geraldo Odonis, menos unilateral. Então, desde tempos antigos podem-se encontrar
ao menos esboços de um reconhecimento dos determinantes subjetivos e psicológicos
dos preços. Aristóteles, na exposição dos critérios de justiça comutativa, já falava na
consideração das necessidades humanas para uma definição dos parâmetros envolvidos
na troca justa. No entanto, a escola clássica, exceção a Malthus, conferira absoluta
primazia na questão do valor aos custos em trabalho. O que, de certo modo, foi um
retrocesso.
A medida da importância da necessidade atendida ou do grau de satisfação remete
ao conceito de utilidade. A palavra “utilidade” é recorrente no vocábulo da economia
clássica inglesa, mais com o significado de capacidade de um bem de satisfazer a desejos
do que medida subjetiva de satisfação ou necessidade. Certa teoria da utilidade é
recorrente nos escritos de Jean-Baptiste Say, mas os clássicos, em geral, acreditavam que
a utilidade não seria uma causa do valor, e sim um mero pré-requisito para a existência
dele.
Os clássicos demonstravam sentir-se embaraçados diante do aparente paradoxo
envolvendo as noções de valor de troca e valor de uso. Adam Smith exemplifica-o
comparando a água com o diamante. O primeiro bem é indiscutivelmente mais útil na
satisfação de nossas necessidades. No entanto, seu valor de troca é consideravelmente
menor que o do diamante. Então, concluía ele, o fundamento do valor só pode estar no
valor de troca. O que o levou a essa solução simplista era que ele não possuía, de fato, as
ferramentas teóricas e conceituais para desvencilhar-se completamente do problema,
como os clássicos de modo geral (Boxe 8.4).

Boxe 8.4 As deficiências de Adam Smith na solução do paradoxo do valor.

Sem muita crítica dos conceitos, Smith recebe e passa a seus leitores a distinção clássica
entre valor de uso e valor de troca. A passagem em que descreve o paradoxo do valor entre
água e diamante revela sua dificuldade ao lidar com esses conceitos. De fato, não tem sentido
algum afirmar que, para um mesmo bem, o valor de troca possa exceder ou estar abaixo do
valor de uso. Smith não possui os conceitos de utilidade marginal do bem e da renda que lhe
possibilitariam comparar quantidades heterogêneas. Smith aponta que a razão dos valores de
duas mercadorias não coincide com a razão entre suas utilidades totais, o que é correto, mas
a base de seu raciocínio peca por considerar implicitamente unidades heterogêneas de água e
diamante e por não introduzir a noção de utilidade marginal. Ele parece estar fazendo uma
condenação moral ao fato de o valor de uso poder estar abaixo do valor de troca.

183
É provável que o filósofo moral Jeremy Bentham (1748-1832) tenha sido o primeiro
inglês a usar a técnica de maximização individual e o conceito de utilidade. Ele também
mantinha implícito em seus raciocínios a importante noção de utilidade marginal. Em
1789, em sua obra Introdução aos princípios da moral e da legislação, escreve:

“A quantidade de felicidade produzida por uma partícula de riqueza (cada qual


de mesma magnitude) será menor a cada nova partícula.” (J. Bentham,
Introdução aos princípios da moral e da legislação)

Bentham explorou o princípio da utilidade decrescente da riqueza, distinguindo


claramente o significado para o consumidor de unidades fisicamente similares. Sua
análise conduz diretamente ao conceito de utilidade marginal. No entanto, Bentham
propôs a abordagem da utilidade no campo da ética e não induziu os economistas
clássicos de seu tempo à aplicação dela na economia. Isso não foi tentado nem por
pessoas com claras inclinações pela filosofia utilitarista, como James Mill. David Ricardo
era amigo de Bentham, mas por ser um reformador pragmático, com pouca propensão à
filosofia, nunca incorporou a noção ética de utilidade em seus escritos econômicos. De
fato, Ricardo não dominava o conceito de utilidade marginal. Na França, J. B. Say tentou
dar à utilidade um papel mais destacado na economia científica, mas não foi muito longe.
Não se pode confundir, entretanto, a noção ética de utilidade com o uso do mesmo
conceito na teoria econômica do valor. A análise marginalista possibilita a plena solução
do falso paradoxo do valor ao olhar para o lado da demanda e compreender que ela pode
ser derivada do antigo conceito de utilidade. O valor de uso relaciona-se com a utilidade
total do estoque de bens previamente possuído. O valor de troca refere-se aos acréscimos
nessa utilidade, proporcionados pelo consumo sucessivo do bem. Se a solução
marginalista parece evidente, o caminho para chegar a ela foi sendo desvendado muito
lentamente.
Daniel Bernoulli, em 1738, usou a noção de utilidade marginal decrescente na
solução do chamado “paradoxo de São Petersburgo” (Boxe 8.5):

“A utilidade resultante de qualquer pequeno incremento na riqueza será inver-


samente proporcional à quantidade de bens previamente possuídos.” (Apud R.
Howey, The rise of the marginal utility school)

Auguste Walras, pai de Léon Walras, em 1831, e Mountifort Longfield, em 1834,


aplicaram a noção de utilidade a eventos econômicos sem desenvolverem muito o
princípio de utilidade marginal. A distinção entre utilidade total e utilidade marginal
aparece nos escritos de William Forster Lloyd, em 1833. Ele foi seguido por Senior três
anos depois, embora este economista ainda fizesse pouco uso do conceito. Jules Dupuit
em 1844, na França, Gossen em 1854, na Alemanha, e Richard Jennings no ano seguinte,
na Inglaterra, chegaram de modo independente ao conceito de utilidade e empregaram-
no na análise do consumidor. Hearn voltou a enunciar o princípio da utilidade marginal
em 1864. No entanto, entre eles apenas Dupuit e Gossen aplicaram o princípio da
utilidade marginal diretamente na solução de problemas econômicos. Porém, eles não
convenceram o público da importância de seus trabalhos.
Registra-se um fato curioso, mas recorrente também na evolução de outras ciências:
ao longo do século XIX, o conceito de utilidade na economia e sua aplicação foram sendo
articulados e propostos simultaneamente por pessoas que não tiveram nenhum
conhecimento das contribuições similares dos contemporâneos. Vários autores,
trabalhando em diferentes ambientes, são levados simultaneamente à mesma descober-
ta. Os historiadores da ciência investigam, neste tocante, como é possível a descoberta
simultânea de teorias muito próximas entre si em contextos isolados. Os casos são
conhecidos, citemos alguns: o cálculo diferencial (Newton e Leibniz), a teoria da evolução
(Darwin e Wallace), o princípio da conservação de energia (Mayer, Joule e Helmholtz) e
184
a aplicação da equação do movimento browniano (Louis Bachelier aplicou essa equação
na descrição dos preços de ativos financeiros e Einstein fez o mesmo na física). Será que
se trata de mera coincidência ou se pode identificar algum fator na história da ciência
que torna o próximo passo previsível e, como tal, ele é dado simultaneamente por
diferentes autores independentes ao mesmo tempo?

Boxe 8.5 O Paradoxo de São Petersburgo.

Bernoulli, quando propôs discutir esse “paradoxo”, estava tratando de teoria da


probabilidade. Ele imaginou quanto alguém estaria disposto a pagar para disputar um jogo de
lançamentos de moeda se ganhasse $ 2 para a ocorrência cara na primeira jogada, $ 4 na
segunda, $ 8 se o terceiro lançamento desse cara e assim por diante. Enfim, paga-se $ 2n
quando a primeira ocorrência de cara ocorre na enésima jogada. Em cada jogada, temos a
probabilidade de 50% de ocorrência de um resultado cara ou coroa. Multiplicando-se a
probabilidade de cada jogada na sequência pelo ganho, temos um retorno esperado sempre
igual a um: na primeira jogada 0,5.2 = 1, na segunda 0,25.4 = 1 e assim por diante. A somatória
de todos os retornos esperados nas n possíveis jogadas é i2-n. 2n = i1, valor infinitamente
grande já que n pode crescer de modo ilimitado. O paradoxo é que, como o ganho esperado é
infinito, esse jogo valeria a pena ser jogado pagando-se qualquer preço para participar dele.
Na prática, porém, certamente poucas pessoas estariam dispostas a pagar um preço elevado
para entrar no jogo, já que uma simples cara no lançamento inicial poria a perder tudo o que
ultrapassasse irrisórios $ 2. Bernoulli percebeu, no entanto, que a decisão de pagar ou não
para participar do jogo não depende do ganho esperado, mas da utilidade da riqueza esperada,
definida como a somatória do produto da utilidade do ganho pela probabilidade em cada
lançamento: i 2-n.U(2n). Demonstra-se que esta somatória será finita mesmo com n tendendo
a infinito se a inclinação da função utilidade for decrescente. Daí o contexto da citação de
Bernoulli em que ele antecipa a noção de utilidade marginal decrescente. Se a somatória é
finita, a decisão de pagar ou não o preço do jogo só depende de comparação entre a utilidade
esperada e a utilidade do dinheiro despendido.
A moderna teoria da escolha com risco mostra que na função de utilidade convexa a
utilidade esperada é finita, por exemplo para a função de utilidade logarítmica i2-n.log(2n) =
log 2𝑛 𝑛 1 2 3 4 1 1 1 1 1 2
∑𝑖 = log 2∑𝑖 . Note que, se + + + + ⋯ = 𝑥, 𝑥 = ( + + + +⋯)+( + +
2𝑛 2𝑛 2 4 8 16 2 4 8 16 4 8
3 1
+ ⋯ ) = 1 + 𝑥. Portanto, 0,5𝑥 = 1, 𝑥 = 2, e assim i2-n.log(2n) = 2.log 2  0,602. Funções
16 2
de utilidade convexa indicam que o indivíduo apresenta aversão ao risco.

No exemplo que estamos analisando na economia, podemos identificar algo que


estaria no ar e que fatalmente convergia os esforços na direção do conceito de utilidade?
Do que vimos, a função de demanda já estava incorporada como instrumento da análise
econômica. Postulava-se sua inclinação negativa, mas a explicação disso era meramente
intuitiva. Não se ignorava o efeito da renda no consumo. A teoria da utilidade marginal
proporcionou uma explicação da demanda ancorada na subjetividade do consumidor.
Nem todos os autores conseguiam desenvolver logicamente a teoria de modo a aplicá-la,
não trivialmente, aos problemas econômicos. Muitos economistas resistiam a aceitar
uma teoria cuja aplicação, no entendimento do fenômeno da demanda, aparentava
deixar muito a desejar.
Precisar o que levou a ciência econômica a caminhar em direção à teoria margi-
nalista não é tarefa simples para o historiador. Se ela apareceu em vários autores
independentes, fica difícil imaginar que tenha sido um mero acaso. Não se pode afirmar,
entretanto, que problemas internos à teoria clássica tenham conduzido naturalmente ao
marginalismo. Um passo nessa direção não era algo que poderia ser claramente perce-
185
bido em meados do século XIX. A economia política clássica dos anos 1870 não parecia
indicar isso. Para onde iria a economia ricardiana ninguém poderia prever. É verdade
que o conceito de utilidade marginal e de utilidade estavam no ar. Tais conceitos são tão
básicos e importantes para a análise econômica que eles apareceriam cedo ou tarde. Os
desenvolvimentos mais fáceis de imaginar, no entanto, eram outros. Por exemplo, uma
generalização da análise marginal de Ricardo da teoria da renda da terra para uma
explicação do preço de qualquer fator de produção ou a transformação da teoria do valor
ricardiana em análise insumo-produto, tal como feita no século XX por Wassily Leontief.
Talvez mais importante que disputas teóricas foram os problemas práticos que
demandavam solução e não eram nem de longe atendidos pela economia clássica, tais
como cobrança de pedágio, preços de monopólio, preços do serviço de transporte
ferroviário e pagamento de salários. Muitos perceberam que essas questões iriam
requerer um tratamento matemático. O uso da matemática propiciou um caminho para
a incorporação do marginalismo à economia e explica o aparecimento deste em vários
autores isolados.
Ao lado das novas técnicas marginalistas, outro passo simultâneo foi a redescoberta
da noção de utilidade na interpretação do valor econômico. Ao se preocuparem em
desenvolver uma teoria que explique a demanda do consumidor, os economistas irão
buscar considerações de natureza psicológica sobre os agentes. A princípio isto poderia
ter relação com o desenvolvimento da psicologia como ciência, que de fato ocorre
também no século XIX, acentuadamente nos Estados Unidos. Diversos argumentos já
foram lançados por historiadores das ideias para mostrar que o caminho da economia
científica no fim desse século foi inspirado pelo exemplo da física, da biologia e da
psicologia. Atualmente reconhece-se que tais teses são algo exageradas. No caso da
crença na influência da psicologia, definitivamente ela não foi significativa. Pelo
contrário, os psicólogos americanos foram os mais veementes críticos da teoria da
utilidade marginal, dizendo que ela não tem base empírica. Os teóricos da economia
marginalista nunca pretenderam uma incursão nos domínios da psicologia. Seus
proponentes, de fato, não se interessaram pelos avanços nesta ciência. A assimilação da
teoria subjetiva do valor, assentada na noção de utilidade, foi lenta e não se deu sem
dificuldades. Na reconstrução histórica desse caminho, aprofundam-se a seguir as
contribuições de Dupuit e Gossen, dois dos precursores do marginalismo que mais
avançaram na articulação da teoria da utilidade.
Arséne Jules Emile Dupuit (1804-1866), engenheiro francês, publica em 1844 seu
mais importante livro: Sobre a medida da utilidade nos trabalhos públicos. Sua
contribuição concentra-se no desenvolvimento dos fundamentos teóricos para a
economia do bem-estar, as finanças públicas e a microeconomia. Engenheiro consa-
grado, teve vários trabalhos premiados entre 1837 e 1848 envolvendo o problema do
transporte rodoviário, de navegação e de sistema de águas municipais enquanto
trabalhava na prefeitura de Paris. A economia tornou-se seu hobby. Dupuit morreu antes
de concluir o grande projeto de um amplo tratado de economia política aplicada ao setor
público. Em 1861, publica um importante panfleto, Liberdade comercial. Trabalhou em
revistas especializadas. Antes do “Sobre a medida”, tinha lido os clássicos. Não conheceu
Cournot, mas teve influências de Pellegrino Rossi e Joseph Garnier.
Dupuit combina, em sua análise econômica, estatística e matemática com lógica
dedutiva e uso de gráficos. Além da lógica e do desenvolvimento de conceitos, destaca-se
pela investigação empírica de fatos concretos. O principal problema econômico
identificado por ele era o de como mensurar a utilidade de bens públicos, ou seja, o nível
de bem-estar social proporcionado por eles. Ao se preocupar com esses problemas,
desenvolve os conceitos de utilidade marginal (distinguindo-o de utilidade total),
demanda, excedente do consumidor e análise do monopólio com técnicas de discrimi-
nação de preços. Assevera corretamente que o preço dos bens públicos deve estar relacio-

186
nado ao custo marginal de produzi-los, e na análise da demanda é o primeiro autor a
relacioná-la com utilidade marginal; diz que a utilidade de um estoque de bens depende
da importância da última unidade. Exemplifica essa ideia com o problema da
distribuição de água: cada incremento na oferta de água satisfaz a uma necessidade
menos importante. A necessidade menos essencial atendida pelo bem, quando multi-
plicada pela quantidade do bem envolvido, define o valor de uso de todo o seu estoque.
Dupuit identifica a utilidade marginal com a curva de demanda, um grande
equívoco. A curva de demanda Qd = f(p) é obtida empiricamente. Pontos à esquerda e
abaixo correspondem a situações de desequilíbrio, em que a utilidade marginal é maior
que o preço. É sempre possível deslocar-se verticalmente para algum ponto situado na
curva de demanda com ganho nas utilidades totais. Dupuit reconhece que a área à
esquerda da curva de demanda, entre zero e certa quantidade Qd, determina a utilidade
total no consumo de Qd unidades.
O excedente (“une espèce de bénefice”) é a parte da utilidade total que excede a
multiplicação da utilidade marginal pelo número de unidades da mercadoria. Ou seja,
como a curva de utilidade marginal, para ele, é idêntica à curva de demanda, o excedente
do consumidor é a área à esquerda da curva de demanda entre zero e Qd menos a despesa
com a mercadoria p. Qd = Umg. Qd (Figura 8.1).

Figura 8.1 Determinação gráfica do excedente do consumidor em J. Dupuit.

Quantidade

Excedente do consumidor
𝑄𝑑

p Preço ou utilidade marginal

Dupuit errou ao interpretar as funções de demanda como funções de utilidade


marginal. Se isso fosse possível, mas não o é, uma série de dificuldades que envolve o
conceito de utilidade seria imediatamente solucionada. Nesse caso, a própria função
empírica da demanda individual, obtida pela relação observada entre preços e
quantidades, permitiria quantificar a utilidade marginal. Tal utilidade seria igual ao
preço associado a cada nível de quantidade ao longo da curva de demanda. O problema
da medida da utilidade estaria prontamente solucionado.
Certo de sua solução, Dupuit não teve cerimônia em fazer comparações inter-
pessoais de utilidade, sob a hipótese de que a utilidade é mensurável por meios monetá-
rios.27 Dupuit não se apercebeu de que ele tinha assumido, o tempo todo, que utilidade
total e renda movem-se proporcionalmente (Boxe 8.6).

27Esse procedimento já havia sido, muito antes, aventado por Bentham, que procurou medir o
prazer por meio dos preços que ele comanda.

187
Boxe 8.6 O equívoco de Jules Dupuit (uma demonstração algébrica).

Mostra-se que as funções de demanda e as de utilidade marginal não são as mesmas, ao


contrário do que pensava Dupuit, ao examinar-se o problema de maximização condicionada
da função utilidade U, dada a restrição orçamentária, aos preços 𝑝1 , 𝑝2 , … , 𝑝𝑛 , de n bens, e
renda R. A maximização de U, na escolha de n bens 𝑥1 , 𝑥2 , … , 𝑥𝑛 , pode ser calculada pelo uso
da função de Lagrange Φ = U(𝑥1 , 𝑥2 , … , 𝑥𝑛 ) + 𝜆(𝑅 − 𝑥1 𝑝1 − 𝑥2 𝑝2 − ⋯ ).
𝜕Φ 𝜕Φ 𝜕𝑈
Na condição de máximo =0e = 0, 1 ≤ 𝑖 ≤ n, o que implica = 𝜆. 𝑝𝑖 . Se xi é o
𝜕λ 𝜕𝑥𝑖 𝜕𝑥𝑖
𝜕𝑈
numerário, pi = 1 e λ = . Portanto, λ é a utilidade marginal da moeda. Os preços só
𝜕𝑥𝑖
substituem as utilidades marginais, 𝑈𝑖 = 𝑃𝑖 , como o faz Dupuit, se λ = 1, ou seja, na situação
𝜕𝑈
em que = 1 , M é a moeda total disponível (a renda monetária do indivíduo). Nesse caso,
𝜕𝑀
vale dizer, toda variação de moeda (ou renda) deve ser igual ao incremento de utilidade.
Contudo, não podemos supor a constância na relação, nem que ela é sempre unitária, embora
isso possa ser válido para pequenas variações.

Nos anos seguintes à publicação de “Sobre a medida”, Dupuit escreveu uma série de
artigos analisando os problemas de mensuração dos benefícios sociais envolvidos na
provisão de bens e serviços públicos. Embora tenha aclarado questões de finanças
públicas e operacionalizado, para tanto, o conceito de utilidade marginal, seu trabalho
apresenta sérias deficiências teóricas. Dupuit não foi o único a confundir curvas de
demanda individual com curvas de utilidade expressas em termos monetários. Lloyd e
Gossen eram mais acurados e não incorreram nesse erro. Léon Walras e seus seguidores
logo apontaram o equívoco de Dupuit. Walras foi bem-sucedido em estabelecer a relação
correta entre utilidade e demanda. Marshall viria a discutir esse problema em seus
Princípios de economia. O equívoco teórico de Dupuit foi sendo sanado com o desenvol-
vimento futuro da teoria da utilidade.
Hermann Heinrich Gossen (1810-1858) propiciou acentuado desenvolvimento às
noções de utilidade e de utilidade marginal. Além da boa exposição algébrica, ele
procurou articulá-las a uma teoria psicológica de conteúdo hedonista. Pela primeira vez,
a teoria da utilidade marginal é consistentemente aplicada na investigação dos
problemas da troca de mercadorias e da determinação dos preços. Gossen propõe-se
fundamentar toda a economia na noção de prazer e dor. Para tanto, publica em 1854 o
livro Desenvolvimento das leis das trocas entre os homens e as regras resultantes para
a ação humana. Essa obra permaneceu desconhecida entre os seus contemporâneos,
mas é inegável seu valor. Nela já estão demonstrados os principais teoremas da doutrina
subjetiva do valor tal como apareceriam, anos depois, em Jevons. Este admitiu a
proximidade a Gossen, contudo, Jevons só conheceu a obra dele depois de desenvolver
ideias semelhantes de modo independente (mais um exemplo de descoberta simultânea
na ciência).
Gossen tinha consciência do conteúdo revolucionário de seus escritos. Sua obra,
porém, teve pouca repercussão enquanto ele viveu, e isso só fez piorar sua condição de
homem amargurado. O legado de Gossen foi ignorado por três décadas, até ser
redescoberto por Jevons em 1878. Jevons reconheceu que a obra de Gossen precedera-o
em importantes aspectos. Em sinal a esse reconhecimento, o livro de Gossen foi
reeditado em 1889.
Embora o Desenvolvimento das leis das trocas seja um livro razoavelmente bem
escrito, no qual o autor procura sempre ilustrar suas ideias com exemplos fictícios e ajuda
de tabelas, ele não foi talhado para a época em que surgiu e não encontrou respaldo no

188
público leitor. O livro tem alguns pontos negativos: a apresentação pesada e as deduções
matemáticas são complicadas e fatigantes. Gossen acabou sendo uma das figuras mais
trágicas na história do pensamento econômico. Pensador profundo e original que foi,
acabou desenvolvendo seu pensamento em exercícios, às vezes deficientes, de álgebra e
de aritmética complexa. Não sabemos o grau de intimidade desse autor com as obras de
Bentham, mas o fato é que Gossen desenvolveu um cálculo econômico imediatamente
aplicável aos princípios benthamitas. Os interesses intelectuais e o temperamento de
Gossen permanecem ocultos.
Gossen propõe-se a explicar o fenômeno dos preços numa base inteiramente
subjetivista. Em seu esquema teórico, ele parte do exame dos sentimentos humanos de
prazer ou satisfação. Para ele, o homem é inexoravelmente movido pelo intento de
aumentar sua satisfação ao longo de toda a vida até o máximo alcançável. Os homens
organizam, portanto, as possibilidades de derivar prazer de tal forma que se maximiza a
somatória do prazer de toda a vida. Até mesmo o asceta sente prazer em seguir seus
hábitos excêntricos na expectativa de uma recompensa no Além, e, portanto, ele não
rompe com o princípio hedonista da busca do prazer (Boxe 8.7).

Boxe 8.7 O hedonismo do asceta.

Escreve Gossen: “Mesmo o asceta, que aparentemente se distancia o mais possível desta
finalidade, pensando alcançar o reino dos céus pelas mortificações e privações de todo o gênero
que se impõe voluntariamente, demonstra a verdade deste princípio. Abstraindo o fato de que,
até certo ponto, ele até pode ter prazer em seguir tais hábitos, de qualquer modo só é levado a
tais ações porque está convencido de que as privações que se impõe voluntariamente nesta vida
lhe serão muitas e muitas vezes recompensadas no Além; e se esta convicção lhe for tirada,
imediatamente, adotará uma maneira de atuar inteiramente oposta à anterior. Aliás, a História
nos fornece exemplos abundantes de pândegos frívolos que se tornaram ascetas e, ao contrário,
de monges penitentes que se tornaram grandes pândegos. Em relação àquele princípio, o asceta
só difere do pândego porque é um egoísta muitíssimo mais insaciável; o que a terra oferece não
basta como soma de prazer; quer mais e pensa obtê-lo com seu procedimento.” (Apud E.
Schneider, Teoria econômica).

Gossen diz-nos que os homens atuam de modo diferente porque têm opiniões
diferentes sobre a grandeza dos diferentes prazeres da vida, o que varia com a cultura
individual, dife-renças nas preferências intertemporais etc., e avaliam distintamente a
grandeza da restrição presente, do sacrifício atual, requerida para a obtenção de maior
prazer futuro, ou seja, o balanço entre o prazer a se alcançar no futuro e o tempo e as
forças a se sacrificar. No entanto, todos, enfim, pretendem aumentar sua satisfação na
vida até o máximo.
Para Gossen, o prazer é a força que move a humanidade. Diz que essa força está
sujeita a leis determinadas e específicas que fornecem ordem e coesão entre os homens,
de modo análogo às leis da gravitação, que conferem harmonia aos movimentos celestes.
Mesmo a pregação moral não poderia eliminá-la. Ela é um fato natural além de qualquer
consideração ética. Diz ele que tal força é feita pelo criador, do mesmo modo como ele
proporciona as forças físicas que comandam o movimento dos corpos, e que é um engano
querer suprimi-la, pois...

“O criador também este engano previu, e deu a esta força uma intensidade tão
extraordinária que toda a luta do homem contra os seus efeitos pode enfraquecê-
la, mas não pode paralisá-la, e por mais que o homem se esforce por destruí-la

189
em uma de suas manifestações, sempre surge novamente com maior força, numa
outra direção inesperada e imprevista.” (Apud E. Schneider, Teoria econômica)

A busca do prazer leva os homens a agir de modo essencialmente autointeressado


e, em consequência, gera-se o benefício público por meio das trocas. O mundo
econômico, regulado pelas trocas de mercado, é coeso e ordenado porque nele atua uma
força particular que é a busca individual do prazer.
Vale destacar alguns aspectos da teoria de Gossen. Ele acredita que os elementos
subjetivos que comandam a ação dos homens não são arbitrários, mas estão sujeitos a
leis de operação. É possível, portanto, dar-lhes um tratamento teórico sistemático, de
modo a utilizá-los na explicação do fenômeno das trocas. O que se passa na mente de um
indivíduo é semelhante ao que se verifica em outras mentes. As forças que impelem ao
prazer estão sujeitas a características comuns de atuação que são investigadas pelo autor
alemão.
Na exposição dos elementos comuns a todo sentimento de prazer, Gossen enuncia
o fundamento da lei da utilidade marginal decrescente: no consumo ininterrupto do bem,
a grandeza do prazer derivado cai até a saturação. Essa proposição tornou-se conhecida
na literatura como Primeira Lei de Gossen. O mecanismo de geração de prazer também
é apresentado em seu aspecto dinâmico. Ele investiga como a intensidade do prazer
obtido dependeria do número de repetições do evento gerador de prazer e dos intervalos
entre uma e outra repetição. Supõe que o prazer varie em razão da frequência e da
duração em que ele é sentido. Gossen assevera que, em cada repetição sucessiva, o prazer
inicialmente sentido reduz-se em relação à intensidade manifestada na ocorrência
anterior. Também a duração do tempo em que algo é sentido como prazer, ou o período
de manifestação do prazer, abrevia-se com a repetição. Então, para cada prazer, Gossen
acredita na existência de uma frequência ótima que garante um máximo de prazer em
sua soma total. Aumentando-se essa frequência, o prazer total diminui até o ponto em
que, com repetições contínuas e infinitesimais, passa-se a não se sentir prazer nenhum
proveniente de seu objeto gerador, como no caso de contemplar-se um quadro por muito
tempo.
Bentham chamou atenção para o fato de a capacidade de derivar prazer de uma
circunstância depender da sensibilidade do indivíduo, a qual é afetada por fatores como
idade, gênero, educação e firmeza de vontade, dentre outros. Gossen também expõe o
modo como a maior ou menor acuidade dos sentidos afetaria os prazeres proporcionados
pelos objetos: quando os educamos nesse intuito, aumenta nossa capacidade de derivar
prazeres. O exercício dos sentidos aumenta o prazer proporcionado pelos objetos, diz ele.
A utilidade marginal é denominada por Gossen de “grandeza final do prazer”.
Partindo desse conceito, ele examina a situação em que se pretende combinar a posse de
diferentes objetos no intuito de maximizar a soma dos prazeres proporcionados. Na
solução do problema, ela estabelece a chamada Segunda Lei de Gossen, mais propria-
mente um teorema deduzido utilizando-se a lei anterior. Afirma que a maximização de
prazer recomenda que se escolha o tempo dedicado ao usufruto de cada objeto de forma
a se igualar, dentre todos os objetos, a grandeza final de cada prazer singular ou o valor
do último átomo de prazer (Boxe 8.8). Essa lei equivale à condição de equilíbrio nas
trocas que modernamente se enunciam como a igualdade entre razões de utilidade
marginal por unidade monetária despendida. Já está presente em Gossen, portanto, a
ideia de que as utilidades marginais comandam as relações de troca entre os bens.

190
Boxe 8.8 Demonstração geométrica da Segunda Lei de Gossen.

Gossen demonstra essa lei com base em argumentos puramente geométricos. Os triângulos
a seguir descrevem a evolução do “grau final do prazer” no consumo de dois bens, representado
verticalmente, em função do tempo transcorrido de consumo, assinalado na base horizontal dos
triângulos. Inicialmente, todo o tempo t disponível para consumo é alocado no triângulo da
esquerda e nada é consumido do outro bem, representado no triângulo à direita. Gossen
demonstra que, no equilíbrio, o tempo de consumo é distribuído entre os dois bens em questão
de modo a se obter o mesmo grau final de prazer nos dois casos.

Começa-se então a diminuir o consumo do bem A e alocando o tempo economizado no


consumo do bem B, até que a grandeza final do prazer nos dois bens seja a mesma. Até este ponto,
sabemos que há um ganho de prazer total, o que se demonstra facilmente comparando-se a área
de prazer perdido em A (ttaaa’) com o trapézio em B (tbobb’), conforme a figura a seguir. Uma vez
que t – ta = tb – o, isto é, os dois trapézios têm a mesma base, e taa = tbb’, isto é, o lado vertical
menor do trapézio representando o prazer marginal ganho em B é igual ao lado vertical maior do
trapézio associado à perda marginal de prazer em A, claramente há um ganho de prazer líquido
representado pelo triângulo cbb’ (por construção, oc = ta’).

Para uma demonstração geométrica rigorosa, falta mostrar que, se o tempo alocado em A
for menor que ta, haverá uma perda líquida de prazer em relação à situação descrita
anteriormente. No próximo gráfico, diminuindo-se ainda mais o consumo em A, há uma perda
de prazer representada no trapézio (tata’a”a). O ganho de prazer em B é o trapézio (tb’tbb’b”). Como
o lado vertical maior deste último é o lado vertical menor do primeiro trapézio, claramente há
uma perda líquida de prazer: a área do prazer adquirido em B (tb’tbb’b”) é menor que a área do
prazer perdido em A. Então fica demonstrado que a maneira de repartir o tempo de consumo de
modo a maximizar o prazer total é tal que o prazer final (grau final do prazer) seja o mesmo nos
dois bens.

191
Gossen elabora alguns outros insights que reaparecerão no advento da economia
marginalista. Por exemplo, a regra para a repartição do tempo entre lazer e trabalho a
fim de obter-se o máximo de prazer. Nesse caso, a utilidade marginal, ou “o último átomo
criado em cada prazer”, deve ser igual ao sacrifício para criar este átomo no último
momento. É a tese da desutilidade marginal do trabalho que também aparece na obra de
Jevons.
Gossen teoriza sobre a origem do valor econômico, na qual conclui que um bem
adquire valor quando a demanda por ele excede a oferta. A tese de que a escassez
subjetiva é a fonte do valor é conhecida como Terceira Lei de Gossen. Sem pretensão de
rever tudo o que se encontra no livro de Gossen, pode-se afirmar que, antes de Jevons,
ele foi o autor que mais ênfase dera à dimensão subjetiva do fenômeno econômico.
Gossen e, depois dele, Jevons foram os autores marginalistas que mais se
aproximaram do hedonismo filosófico de J. Bentham. Trata-se da crença de que os
homens são movidos pela busca do prazer e pela aversão à dor. Sem negar essas
influências, não se sabe ao certo até que ponto eles podem ser considerados adeptos
totais do hedonismo filosófico.

A REVOLUÇÃO MARGINALISTA
Ao longo do século XIX até o início de sua década de 1870, uma leva de autores
trabalhou isoladamente com o cálculo marginalista. Cournot e Dupuit na França; Von
Thünen e Gossen na Alemanha; W. F. Lloyd, M. Longfield, W. T. Thornton, F. D. Longe,
F. Jenkin e R. Jennings, na Inglaterra. Nem todos eles tiveram a ideia de explorar a
demanda do consumidor com o uso da ferramenta da teoria da utilidade. No entanto,
todos compartilhavam entre si um núcleo comum de noções econômicas espalhadas em
diversos países da Europa. Eles compreenderam a importância do ferramental
marginalista, embora tenham percebido sua aplicação somente em relação a um grupo
restrito de problemas. Por conseguinte, deixaram de desenvolvê-lo como instrumento
analítico geral. Em suma, não houve até os anos 1870 uma aplicação mais geral da técnica
de variação na margem às teorias da utilidade, do custo, da receita e da produção.
A proposta de um sistema teórico marginalista mais geral estivera em germinação
entre 1862 e 1873. Ela tinha-se desenvolvido nas mentes de três jovens autores, todos
novatos na economia política e em três países diferentes: William Stanley Jevons na
Inglaterra, Carl Menger na Áustria e Léon Walras na França. Todos eles representantes
de certa classe média moderadamente bem de vida e com elevada educação escolar. Eles
não tinham, até então, nenhum compromisso com a economia política e, embora não se
conhecendo mutuamente, estavam unidos pela missão comum: enaltecer a parte que
cabe à subjetividade e o papel que desempenham os conceitos de necessidade, desejo,
satisfação, utilidade etc. na compreensão dos fatos econômicos. Eram adeptos, portanto,
de uma consideração maior do subjetivismo do agente na teoria econômica. Os três
autores sentiam-se livres e sem nenhum compromisso com a visão prevalecente da
economia política até então.
Jevons, Menger e Walras são os nomes associados ao episódio do início dos anos
1870 que se tornou conhecido como Revolução Marginalista. Os historiadores hoje em
dia consideram um exagero chamá-lo de revolução. Verifica-se, no período, a publicação
das obras máximas desses autores: Jevons em 1871 lança sua Teoria da economia
política, no mesmo ano em que aparecem os Princípios de economia política de Menger.
Três anos depois é publicado Elementos de economia pura de Léon Walras.
Não se trata propriamente de uma revolução porque suas ideias básicas haviam-se
desenvolvido gradualmente ao longo do século XIX e porque o impacto delas na

192
comunidade acadêmica não foi imediato. Levaria mais de uma década para receber uma
acolhida maior por parte de importantes economistas. A Revolução Marginalista
permaneceu desconhecida a seus contemporâneos e só no século XX essa expressão
tornou-se mais frequente, graças aos historiadores. De qualquer modo, não se trata de
revolução, mas de mudança gradual. O termo “revolução” é inapropriado também
porque alguns aspectos da antiga ortodoxia sobreviveram ao ataque revolucionário.
Outros aspectos nunca foram atacados. Houve ainda uma restauração contrarrevo-
lucionária da ortodoxia com a retenção de conceitos e terminologia clássicos na obra de
Marshall. Outro aspecto a se considerar é que as teses desses economistas não foram
desenvolvidas por eles na mesma época. O que houve, de fato, foi uma coincidência na
proximidade das datas de publicação de seus trabalhos, o que ampliou o impacto do
evento numa visão retrospectiva.
Jevons, Menger e Walras, mesmo compartilhando certos elementos teóricos,
pertenciam a diferentes visões da economia. Eles estavam inseridos em contextos
culturais distintos entre si e permaneciam ligados a raízes filosóficas inteiramente
díspares: o utilitarismo na Inglaterra, ainda a filosofia aristotélica na Áustria e o racio-
nalismo cartesiano na França. Três países que possuíam diferentes níveis de desenvolvi-
mento socioeconômico.
A crise econômica dos anos 1870, que afetou não só a Inglaterra, pode ter facilitado
a aceitação, mesmo lenta e gradual, da economia marginalista, mas não podemos
explicar sua eclosão a partir dessa crise. Permanece pouco plausível relacionar direta-
mente os trabalhos de Jevons, Menger e Walras com mudanças na estrutura de produção
nacional ou nas relações entre classes sociais.
O momento histórico das três últimas décadas do século XIX é bastante conturbado.
Anteriormente discorremos sobre as mudanças sociais e tecnológicas verificadas no
período e o concomitante agravamento das tensões sociais. É difícil precisar até que
ponto esses fatos explicariam a ascensão gradual do marginalismo na teoria econômica.
É necessário ter-se em conta que o marginalismo foi aparecendo aos poucos em diversos
países que em nada se assemelhavam no tocante ao ambiente econômico e social. E ele
surgiu de modo muito lento e gradual a partir de iniciativas que partiram de diversos
autores espalhados entre diferentes épocas e nações ao longo daquele século. Se as
primeiras iniciativas teóricas em direção ao marginalismo não podem ser entendidas
como o desdobramento de elementos externos, sua posterior aceitação e difusão nas
primeiras décadas do século XX foram impulsionadas pelo debate ideológico presente
nas controvérsias políticas. É que, com o passar do tempo, a teoria clássica aproximou-
se cada vez mais de uma visão crítica ao livre mercado. Esse movimento culmina com a
obra de Marx, mas antes dele correntes teóricas do socialismo usaram a teoria de Ricardo
para criticar o capitalismo.
Podemos buscar razões internas às teorias que ensejaram a ocorrência da Revolução
Marginalista em determinado momento. Havia, de fato, um vazio teórico que
acompanhou o descontentamento com a escola clássica. Os críticos apontavam a inabili-
dade da ortodoxia clássica em resolver uma série de problemas teóricos. As teorias
clássicas de valor e distribuição pareciam insatisfatórias.
Na época da revolução, o problema da escassez tornou-se central para a opinião
pública. Ele passou a representar o que há de essencialmente econômico no compor-
tamento dos indivíduos e na descrição de um sistema social. Talvez a ênfase na escassez
tenha alguma correlação com a época histórica de crise econômica em que tal conceito
fora alçado ao primeiro plano. Podemos associar o problema alocativo, e seu corolário, a
escassez, à crise no sistema econômico nos países dos autores que os suscitaram para a
teoria. Imaginamos que essa crise tenha tornado mais escassos os bens e mais premente
seu uso adequado, sinalizando certos elementos teóricos para a nova escola econômica

193
que emergira no período. No entanto, é temerário atribuir um significado histórico
concreto que teria condicionado os aspectos básicos da análise marginalista, já que
outras crises também ocorreram anteriormente no século XIX e nem por isso o margina-
lismo se havia consolidado nessas ocasiões. Além disso, o problema da escassez nem
sempre conduziu no passado ao tratamento marginalista das variáveis econômicas. De
qualquer modo, no fim desse século a teoria marginalista funcionou como modelo
aceitável para a escolha alocativa ótima de recursos escassos.
Nessa mesma época, a economia conhece um processo de profissionalização, com o
desenvolvimento de associações, de revistas e de profissionais especializados, dedican-
do-se a ela em tempo integral. Antes desse período, constata-se a ausência de comunica-
ção entre economistas de diferentes países. Após o lançamento de seus livros, Jevons e
Walras demoraram mais de 10 anos para se corresponder. Walras trocou correspon-
dência com Menger, mas Jevons jamais o conhecera. A profissionalização não antecedeu
à revolução e sim com ela encontrou seu caminho.
A economia marginalista deve seu triunfo, no século XX, a certos aspectos teóricos
que a tornaram atraente e a colocaram em vantagem competitiva em relação aos
clássicos. Ela restringiu o escopo da economia direcionando sua ferramenta de análise
para o estudo de problemas de alocação de recursos. Este é um importante ponto em
comum entre os marginalistas. Todos eles buscam estreitar o âmbito dos modelos
teóricos, perguntando basicamente como o processo alocativo poderia ser otimizado em
uma economia de mercados operando no ponto de equilíbrio, ou como os recursos
seriam substituídos entre si na margem.
De maneira nenhuma a teoria marginalista pode ser vista como uma defesa do
capitalismo no plano do pensamento ou como uma reação ao avanço das ideias
socialistas na Europa. A teoria marginalista, fortemente apoiada em conceitos rigorosos
e técnicas analíticas, transmitia aparente assepsia e neutralidade em face das questões
políticas. Anos depois da revolução, seguidores de Marx irão acusá-la de ser uma defesa
camuflada do status quo capitalista, pois no sistema teórico marginalista não se pode
lutar contra a propriedade privada, já que a alocação eficiente de recursos pressupõe sua
aceitação. Também a acusam de fornecer uma justificativa para a desigualdade na
distribuição (estratificação) de renda ao falar em remunerações dos fatores por suas
produtividades marginais. A nova teoria foi atacada pelos socialistas da época como mera
versão atualizada da ortodoxia econômica, uma nova linha de defesa necessária diante
do ataque marxista bem-sucedido ao argumento clássico do laissez-faire. Ela permitiria
a demonstração de um tipo quase perfeito de organização social, realizável numa
economia competitiva, na qual os mercados propiciam a alocação ótima e a harmonia de
interesses, maximizando a consecução de objetivos individuais.
Avaliar o impacto ideológico da revolução marginalista é uma questão
controvertida. Há alguma inclinação ideológica, por exemplo, no conceito de utilidade
marginal? Aparentemente não, embora não se pretenda aqui uma resposta conclusiva.
Vale considerar alguns fatos: os desdobramentos da nova teoria não são inequivo-
camente a favor do laissez-faire. A própria trajetória pessoal de seus proponentes não
demonstra tal engajamento. Walras, por exemplo, sempre esteve ligado às causas sociais
e era tido como socialista em sua defesa do cooperativismo rural.
Outro aspecto que deve ser considerado é que as ideias marginalistas, à época em
que foram lançadas, não afetaram o debate político e os grandes problemas práticos em
questão. Não havia recomendações políticas da teoria marginalista que destoassem do
receituário clássico. O enfoque eminentemente técnico da nova teoria esteve voltado
inicialmente para a explicação do comportamento do consumidor e do produtor, apenas
secundariamente ela seria utilizada para recomendar ou justificar políticas econômicas.
Em termos práticos, a teoria da utilidade pouco acrescentou à doutrina clássica, mesmo

194
com os trabalhos posteriores de Vilfredo Pareto e Irving Fisher. A nova teoria teve pouco
a dizer sobre os problemas da época, tais como os que eram debatidos nas controvérsias
sobre livre comércio, flutuações do mercado monetário, política tributária, pobreza,
conflito trabalhista, distribuição de renda, colonização e superpopulação. A teoria da
utilidade não tomou parte nas controvérsias orientadas por políticas até a Primeira
Guerra Mundial, e a adoção dela em trabalhos práticos só surgiu a partir dos anos 1840.
Então, de início, o marginalismo era irrelevante aos problemas concretos. As possíveis
consequências práticas que se poderiam extrair da teoria estavam em continuidade às
dos clássicos.
As novas técnicas de análise trazidas com a Revolução Marginalista não foram
adotadas para a solução dos grandes problemas de política econômica, embora os margi-
nalistas propusessem soluções a questões específicas de tarifação e precificação de bens
públicos. O impacto maior desse movimento, em um primeiro momento, foi a proposta
de novos conceitos dentro de uma renovada visão. Somente num segundo estágio a teoria
marginalista tornou-se operacional na pesquisa econômica substantiva.
Os marginalistas edificaram uma nova visão da ciência econômica, no que diz
respeito tanto a aspectos teóricos quanto a método e natureza do objeto de estudo. A
economia clássica está voltada à compreensão de relações socioeconômicas entre os
homens em sua capacidade como produtores. A ênfase nas relações de classe confere o
caráter político dessa ciência, daí o nome “economia política”. As relações entre classes
sociais é que determinam, em última análise, relações de mercado. A nova economia
marginalista abstrai as classes sociais e, com elas, as relações sociais, estando voltada
para a relação psicológica entre indivíduos e bens de consumo. Ela julga necessário
separar relações puramente econômicas de relações de natureza política e, em sua ótica,
seria possível para a ciência econômica um trabalho essencialmente analítico sem
referência a questões políticas. Os marginalistas utilizam-se de uma retórica de
neutralidade política, contudo, suas ideias foram mais do que uma inovação técnica.
Entre a nova escola marginalista e os economistas clássicos há uma mudança na própria
maneira de caracterizar o objeto da ciência econômica. Ela deixa de ser uma ciência social
voltada para a explicação das relações entre pessoas e passa a ser considerada uma
ciência natural que estuda a relação entre pessoas e bens materiais. No entanto, a
demarcação entre clássicos e marginalistas é mais sutil. Mesmo autores clássicos
reconhecem que leis econômicas têm o caráter das leis físicas em sua exatidão, embora
na economia suas leis exatas sejam leis de tendência, que na prática só se verificam na
ausência de certas causas perturbadoras não incorporadas à teoria. Os marginalistas não
negam que a economia tenha também uma dimensão social, eles acreditam, entretanto,
na existência de um núcleo teórico que desconsidera os aspectos sociais do fenômeno. A
economia aplicada deve levar em conta o lado social, mas ele é abstraído na economia
puramente teórica.
Entre os clássicos, Stuart Mill expressou que a ciência econômica não trata apenas
de realidade física. Consente que, na produção de bens, a relação que se estabelece entre
homens e coisas tem uma dimensão física atrelada às propriedades dos objetos com suas
leis de rendimento. Leis físicas exatas intervêm na produção. Já o fenômeno da
distribuição depende somente de relações entre homens e suas leis são condicionadas
pelas instituições. Dadas as instituições, também aqui fica garantida a exatidão das leis.
Se elas são conhecidas, a consequência de qualquer conjunto de regras para a
distribuição tem o caráter das leis físicas.
A economia clássica procurou-se firmar como ciência social, mesmo aceitando a
ação de leis naturais em seus elementos de análise, enquanto a economia marginalista
enfatizou o lado de ciência natural com a ressalva de que questões sociais também
interessam, no entanto metodologicamente requerem um tratamento à parte em

195
economia aplicada, matéria que complementa a análise teórica pura, mas não se
confunde com ela.
A estratégia de separar o conhecimento teórico da economia prática é explicita-
mente reconhecida por Jevons, Menger e Walras, embora o tratamento filosófico da
questão seja diferente entre eles. Iremos detalhar essa questão nos próximos capítulos.28
A aproximação entre o núcleo teórico da economia e a ciência física ou natural
facilita o emprego da ferramenta matemática. A lei do rendimento decrescente, já
conhecida dos clássicos, mas usada como elemento ad hoc especificamente na teoria da
renda da terra, e a nova lei da utilidade marginal decrescente são elementos centrais da
teoria marginalista que equivalem matematicamente a funções côncavas. A presença
dessas funções em problemas de alocação de recursos ou bens de consumo leva à
conclusão lógica pela substituição dos fatores ou bens na margem, aplicando-se, para
tanto, o princípio da equimarginalidade, consequência da ideia de maximização de lucro
ou utilidade. Tal princípio facilitou a aplicação do aparato matemático à economia,
principalmente do cálculo diferencial.
Nos clássicos, também existe a ideia de maximização individual e o princípio de
substituição. No entanto, ela é aplicada na determinação de equilíbrios sucessivos ao
longo do tempo e não na alocação eficiente de recursos no curto prazo. David Ricardo
descreve a maximização de lucro como um processo temporal em que os agentes
arbitram entre mercados, transferindo constantemente os recursos de um setor a outro
da economia. Entretanto, ele não desenvolve os teoremas de alocação ótima dos recursos
no curto prazo e o comentado processo de arbitragem não conduz aos princípios
equimarginais.
Os marginalistas, com o uso da matemática, nada mais fizeram do que seguir a
tendência do século XIX de cultivar as técnicas reforçadas pelo triunfo da física. Com
isso, lograram obter grande unidade em suas estruturas teóricas centrais, mesmo que às
custas de substituir o agente como dado sociológico e histórico pelo indivíduo
maximizador. Ao isolar um núcleo lógico das considerações sociais que afetam o processo
econômico, o marginalismo resume o problema econômico a um exercício de maximi-
zação condicionada. Qualquer preço é explicado como efeito da aplicação desse princípio
geral a um caso particular. A ideia de um agente maximizador confere unidade e
universalidade ao processo de escolha envolvido nas diferentes situações econômicas.
A nova roupagem da ciência econômica consiste, portanto, em um renovado
conjunto de conceitos e instrumentos que poderiam ser aplicados a vasta gama de casos.
Os marginalistas edificam uma eficaz técnica de análise que poderia ser posta em uso.
Temas preciosos para os clássicos, como acumulação de capital e o consequente
crescimento econômico, não os preocupam tanto. Também não consideram a teoria da
população como variável endógena. O núcleo teórico da nova economia interessa-se
principalmente pela busca da melhor alocação de meios escassos entre fins alternativos.
Questões de crescimento econômico aparecem nos trabalhos práticos de Jevons e
Walras, mas para eles não são assuntos da economia teórica. Jevons preocupou-se com
o problema do crescimento na obra A questão do carvão. Jevons e Walras traçam novas
fronteiras para a economia, mais confortáveis para os profissionais. No entanto, fora da
economia pura não se esquivam de tratar outros domínios, como os escritos estatísticos
e políticos de Jevons e o interesse de Walras na reforma social liberal-socialista. A teoria
pura torna-se mais defendida de um ponto de vista profissional.
Marshall também trata de desenvolvimento econômico em seus Princípios de
economia. Ele aceita que o bem-estar econômico dependa da acumulação de capital, do

Mill, em seus escritos metodológicos, chama atenção para a necessidade dessa demarcação,
28

mas não a utiliza em seu livro de economia stricto sensu.

196
crescimento demográfico e do uso eficiente dos recursos. Tinha uma visão do processo
econômico como crescimento biológico. Mesmo mantendo certo compromisso com as
prioridades da teoria clássica, Marshall não foge de uma análise econômica estática e seu
trabalho está centralizado em estudar o equilíbrio estático em mercados competitivos.
O eixo da análise marginalista reside na escolha individual, sua categoria teórica
central. A decisão de consumo, o processo de produção e a repartição dos rendimentos
são fenômenos subsidiários derivados dessa escolha. Na produção, a teoria destaca a
alocação dos insumos maximizadora de lucro; na distribuição da renda, o elemento-
chave é a recompensa pela contribuição marginal dos fatores à geração do valor. Não
existe na nova economia uma teoria de distribuição específica para cada fator, como nos
clássicos.
Os três expoentes da Revolução Marginalista enfatizam o problema da escassez e
buscam um refinamento da lógica econômica, fornecendo um tipo de lógica da escolha
econômica racional. Entretanto, não se pode concluir que esses autores compartilhem o
mesmo método. Pelo contrário, suas posições em muitos outros aspectos são bem
diferentes e subsistem diferenças filosóficas importantes entre eles. Nem todos aceitam
o uso da matemática na economia. Jevons e Walras aplicam a análise matemática à teoria
econômica. Já Menger evita o emprego de formulações matemáticas, limitando-o so-
mente a casos extremos. Menger substitui a análise da interdependência de variáveis pela
análise de causalidade: é por isso que a matemática, para ele, não ajuda. Jevons acha
que a economia deve ser testada empiricamente, seus termos matemáticos referem-se a
quantidades mensuráveis; enquanto em Menger há um abismo separando as ciências
teóricas das ciências históricas e estatísticas, a economia não é testada empiricamente
como não se testa a geometria.
Jevons e Walras esforçaram-se no desenvolvimento de uma exata teoria dos preços;
Menger desconfia de qualquer teoria dos preços e enfatiza a barganha, a incerteza e a
descontinuidade na determinação dos preços de mercado. Também há diferenças
importantes entre Jevons e Walras. Apenas o primeiro utiliza a análise psicológica das
sensações de prazer e dor, seguindo o mesmo procedimento de Bentham. O fato de
Jevons, Menger e Walras representarem contribuições bem distintas ao pensamento
econômico é unanimemente aceito entre os historiadores. William Jaffé cunhou a
expressão “desomogeneização” para acentuar essas diferenças.
Em uma avaliação global, a Revolução Marginalista pode ser vista em seus aspectos
positivos ou negativos: de um lado, ela representou um estágio crucial na criação de uma
teoria unificada do comportamento econômico genuinamente científica e que poderia, a
princípio, ser empiricamente testável. Ela é criticada, porém, como uma desastrosa fuga
dos problemas reais pertinentes à economia socialmente relevante, em prol de um
formalismo estéril. O mais importante a ser assinalado é que na revolução há uma
mudança de estrutura e método na análise econômica. Surgem novos princípios
unificadores, integrando-se as teorias do consumidor e da firma, do valor e da produção,
que estavam fracamente conectadas no pensamento clássico. O princípio do cálculo
marginalista entra como elo unificador aplicado na teoria de preços. A teoria guia-se pela
busca do estabelecimento de posições ótimas de equilíbrio, em que consumidores e
produtores maximizam respectivamente a satisfação e o lucro. Dá-se menos ênfase ao
crescimento econômico em troca do objetivo de localizar posições de equilíbrio, com as
quantidades totais de recursos dadas. A economia é tão somente a ciência que trata da
alocação de dada quantidade de recursos totais, não se perguntando como o quantum é
determinado e como ele poderia crescer.
A busca de posições ótimas, dados os recursos, leva ao desenvolvimento de
argumentos matemáticos. Relações funcionais são estabelecidas entre variáveis econô-
micas por meio de equações e gráficos. A ênfase da análise econômica desloca-se das

197
quantidades totais para pequenas variações nessas quantidades. Isso conduz ao emprego
sistemático do cálculo diferencial. De início, os economistas em geral resistiram ao uso
da matemática, o que dificultou a aceitação das ideias de Jevons e Walras, porque havia
de fato uma oposição ao uso dela ou porque os economistas eram muito ignorantes de
matemática para entender o que se passava. Com o tempo, viram que a matemática
representava, na verdade, um atrativo, pois, com ela, a economia estava espelhando-se
na boa reputação das ciências físicas, que apoiavam toda a explicação dos fenômenos
pertinentes a seu campo em uma base matemática. Nem todos os adeptos do
marginalismo eram matemáticos. Os austríacos Menger e seguidores, como Eugen von
Böhm-Bawerk, eram avessos ao uso desse ferramental. O economista americano John
Maurice Clark também era não-matemático. Alguns fizeram uso limitado da matemática,
como Marshall, K. Wicksell, Jevons, Philip Henry Wicksteed e Gustav Cassel. Cournot,
Walras, Francis Ysidro Edgeworth e Vilfredo Pareto, por outro lado, eram bastante mate-
máticos.
O modelo explicativo dos clássicos assumia hipóteses bastante restritivas, principal-
mente na teoria de preços industriais, na qual trabalhavam com coeficientes insumo-
produto fixos e custos unitários constantes, indiferentes às proporções estabelecidas
entre os insumos combinados. Não havia, portanto, necessidade de separar custo médio
de custo marginal, já que, nesse caso, eles são identicamente iguais.
No caso da produção agrícola, assumiam explicitamente os efeitos da escala e a lei
dos rendimentos decrescentes, associando esta última basicamente não às proporções
dos insumos, mas às diferenças de fertilidade do solo. Só na agricultura aparece o
descompasso entre um e outro conceito de custo. Os modelos clássicos concentram-se
também na análise de mercados competitivos em que, por definição, receitas médias e
marginais são idênticas para as firmas. Não é à toa que a análise marginal não aparece
nos clássicos, pois sua importância é mais claramente percebida quando unidades
sucessivas similares de um bem ou fator têm significado diferente no que diz respeito ao
retorno monetário ou físico. Isso explica por que trabalhos pioneiros que empregaram o
conceito marginal apareceram no estudo de problemas agrícolas e na análise do
monopólio.
A teoria econômica clássica não fornecia uma explicação simétrica e unificada dos
preços. Havia a teoria dos preços agrícolas em contraposição aos preços industriais. A
teoria dos preços dos fatores era tida como um caso especial e diferente da explicação
dos preços dos bens de consumo. Enfim, não há explicação unificada nos clássicos,
diferentemente da escola marginalista que forneceu uma teoria da determinação de
todos os preços a partir de um único princípio. A teoria marginalista mostrou suas
vantagens ao proporcionar uma explicação unificada do valor. Enquanto os clássicos não
fizeram aplicação sistemática do postulado da maximização, utilizando-o explicitamente
mais no âmbito das firmas, os marginalistas estenderam tal princípio a fim de cobrir
também o comportamento dos consumidores.
Os clássicos preocupam-se principalmente com o crescimento dos recursos produti-
vos ao longo do tempo. Suas teorias giram, portanto, em torno da questão do crescimento
econômico. No modelo simples, dados dois fatores de produção, terra e trabalho, e um
montante de produtos previamente acumulados, pergunta-se como a taxa de
crescimento da produção agregada dependeria da proporção em que terra e trabalho se
combinam. O que por sua vez é função dos vários tipos de rendimentos. Assim, questões
como preços dos fatores e distribuição dos produtos seriam elementos-chaves de seu
sistema teórico, sistema esse construído admitindo-se certo contexto institucional.
A teoria marginalista fornecera, em relação aos clássicos, não uma nova solução à
antiga questão teórica, mas um desvio de foco, iluminando, por conseguinte, novos
problemas, que passaram a fazer sentido dentro de uma renovada visão da ciência

198
econômica e da sociedade. O problema econômico central para os marginalistas é a
alocação de recursos em função de preços e de fatores com oferta fixa. Os fatores de
produção são dados e são escassos. Sua oferta é determinada de modo independente.
Pergunta-se então qual sua forma ótima de emprego. Agora, a ênfase recai na ideia de
alocação eficiente, mantido o marco institucional anterior. Partindo desses interesses
nucleares, enfatizam elementos distintos: para os clássicos, a oferta e a produção; para a
nova escola, a demanda e o consumo. Não se analisa mais como a oferta de fatores afeta
o crescimento. Prioriza-se a construção de um modelo de equilíbrio estático. Os clássicos
viam a competição como um processo ao longo do tempo. Trabalhavam com capitais com
estruturas modificáveis para produzir qualquer combinação de produtos, e que possuem
mobilidade, sendo transferidos de um setor a outro no processo de equalização de lucros
arbitrado pelos agentes. Os marginalistas enfatizam mais uma situação estática com um
montante de capital fixo.
Os marginalistas procuram explorar uma notória deficiência teórica dos clássicos,
qual seja, a assimetria na teoria do valor-trabalho que não tratava, com a devida ênfase,
o lado da demanda. Trata-se de um defeito evidente nos clássicos. Eles não possuíam
uma teoria da demanda e, portanto, a teoria de determinação dos preços deles seria cedo
ou tarde vista como tendo peculiar assimetria. No processo de estudo do fenômeno da
demanda, os marginalistas concluíram que a análise econômica deveria remeter e
penetrar na noção de utilidade. Eles uniram o cálculo na margem com o antigo conceito
de utilidade para chegar à noção de utilidade marginal, o ápice no desenvolvimento da
nova visão.
Com a Revolução Marginalista, temos uma mudança na agenda e nos métodos dos
economistas. Surgem novos problemas e velhos problemas são reavaliados, subsumidos
ou simplesmente postos de lado. Os marginalistas acreditam que tais mudanças
possibilitam avanço científico com teorias mais rigorosas e gerais sobre valor e
distribuição. O âmbito dos problemas tidos como logicamente relevantes estreitou-se, e
tal estratégia contribuiu para a difusão da ciência econômica e sua consolidação como
disciplina acadêmica.

O SIGNIFICADO DO CONCEITO DE UTILIDADE


Entre 1871 e 1889, a comunidade acadêmica reconhece a centralidade do conceito
de utilidade na teoria econômica. Na literatura, tal conceito apareceu muito antes desse
período; no entanto, no passado ele não é utilizado de modo satisfatório, enfatizando-se
sobremaneira a utilidade total da mercadoria. Somente agora a noção de utilidade
marginal passa a ser bem compreendida e a partir de então será crescentemente
empregada na análise econômica. A noção de utilidade marginal decrescente é aceita
como fato empírico da experiência comum, congruente com a introspecção casual.
No conceito de utilidade marginal, temos duas expressões: o adjetivo “marginal” e
o substantivo “utilidade”. Este último pavimentou o caminho à perspectiva subjetivista
em economia, mas o “marginal” também foi importante, retrospectivamente talvez até
mais do que o “utilidade”, já que, tempos depois, este seria substituído pela ideia de
preferência revelada, até ser novamente alçado a primeiro plano, em período mais
recente. À época que estamos analisando, a noção de utilidade somente em período breve
teve papel substancial na teoria econômica. Ela não é importante, por exemplo, em
Wicksteed, Fisher e Pareto.
A relevância maior do cálculo marginalista é que ele conduziu a economia científica
à análise matemática da maximização. O adjetivo “marginal” passou a ser aplicado
combinando-se ao substantivo “utilidade” na teoria do consumidor e à palavra “produti-

199
vidade” na teoria da produção. Com o tempo, ele foi aderindo a outras expressões: custo,
receita, taxa marginal de substituição, propensão marginal a consumir etc. Nesse
interregno, a partir de 1870 as universidades começam a aceitar a economia como
matéria de estudo. A utilidade marginal é o bloco fundamental de um novo tipo de
microeconomia estática. Ela localiza a fonte da conduta econômica individual, ou o que
subjaz às escolhas, em elementos subjetivos. Não é necessariamente hedonista como a
filosofia de Bentham, que vê o princípio de prazer e dor governando tudo. No entanto,
há a construção do homem que age após antecipar as consequências de seus atos,
governando sua ação pelo saldo entre o desejado e o indesejado. O cálculo econômico
marginalista fornece o curso de ação ditado pela razão. Seu alvo é a escolha racional
derivada dos elementos subjetivos. Combina-se nele a noção de utilidade com o cálculo
diferencial.
Essa maneira de usar o conceito de utilidade foi sistematizada e integrada a uma
série de problemas econômicos entre 1862 e 1887. Diversos autores fizeram-no
utilizando vários nomes: grau final de utilidade, utilidade final (o termo mais usado em
1887), utilidade terminal, importância da menos importante das satisfações (em Carl
Menger), utilidade intensiva, intensidade do último desejo satisfeito e rareté (todos eles
empregos por Léon Walras). Em 1888, a expressão “utilidade marginal” foi utilizada por
Wicksteed, que a tomou emprestada do economista austríaco Friedrich Freiherr von
Wieser. Este último usava o termo alemão “Grenznutzen” como utilidade final ou
utilidade marginal, mas também usava “Grenze”, que é limite e não margem. Wicksteed
foi o primeiro a usar a expressão “utilidade marginal”. O segundo autor a incluir a palavra
“marginal” foi Marshall nos Princípios de economia. Ele diz que a tirou de Von Thünen;
depois, volta atrás e diz que este autor apenas a sugeriu. Curiosamente nenhum dos
membros pioneiros da escola da utilidade marginal usou o termo “utilidade marginal”.
Tal expressão entrou no alemão em 1884, no inglês em 1888 e demorou ainda mais para
estar em voga no francês. Seu uso amplo, portanto, só ocorreu na década de 1880, após
a morte de Jevons. Walras ainda preferia sua nomenclatura original e Menger, embora
tenha vivido por muitos anos no tempo em que o termo se tornou comum, nunca usou
tal expressão.
Outro problema posto na evolução do conceito de utilidade diz respeito à forma da
presumível função utilidade. Os três líderes da Revolução Marginalista tomam a
utilidade como independente e aditiva. Tempos depois, Francis Ysidro Edgeworth,
Rudolf Auspitz e Richard Lieben introduzem, cada qual por si, relações de complemen-
taridade entre os bens. Jevons, Menger e Walras tratam a utilidade de uma mercadoria i
como função somente das quantidades xi, de modo que a utilidade total Ut do consumo
de n mercadorias seria simplesmente uma função aditiva Ut = u1(x1 ) + u2(x2 ) +...+ un(xn ).
Edgeworth introduziu uma função de utilidade total mais geral e mais congruente com a
introspecção, em que as utilidades de cada bem são dependentes entre si. Tal função
agora seria expressa por Ut = U(x1 , x2 , ..., xn ). Tal mudança trouxe importantes
implicações para a medida da utilidade. Edgeworth desenvolve o conceito de “linhas de
contorno”, que vieram a se tornar conhecidas como “curvas de indiferença”: a
combinação de cestas de bens que produzem a mesma utilidade total de modo que U(x1 ,
x2 , ..., xn ) = C, na qual C é uma constante. Com a inter-relação das utilidades das
mercadorias, não seria mais possível desenhar a utilidade total no gráfico de duas dimen-
sões, como função de uma única variável.
A nova teoria demonstrou que a distribuição ótima da renda gasta entre os diversos
bens seria univocamente determinada em curvas de indiferença estritamente convexas.
A lei da utilidade marginal garante tal convexidade com utilidades independentes e
aditivas, mas no caso de utilidades dependentes, como viria a demonstrar Eugene

200
Slutsky, essa lei não é necessária nem suficiente para assegurar convexidade estrita (Boxe
8.9).
Mesmo com curvas de indiferença convexas, não se pode garantir que todas as
curvas de demanda associadas aos respectivos bens envolvidos tenham inclinação nega-
tiva, embora a demonstração desse teorema não seja muito simples.
Outras ampliações na teoria da utilidade foram tentadas por Irving Fisher. Ele não
só chegou à função de utilidade generalizada de Edgeworth de modo independente, como
também, em 1892, propôs incluir as quantidades consumidas por outros na função de
utilidade do indivíduo. Arthur Cecil Pigou também falou na inter-relação das utilidades
individuais, usando esse argumento para mostrar que os excedentes do consumidor de
diferentes indivíduos não são aditivos. A menos que se suponha a estabilidade dessa
inter-relação, o que se verifica para pequenas variações nos preços.

Boxe 8.9 A relação entre curvas de indiferença convexas e a lei da utilidade


marginal decrescente.

Nem sempre a utilidade marginal decrescente para cada bem implica a convexidade
estrita das curvas de indiferença, ou seja, a existência de uma solução ótima única à alocação
da renda do consumidor. No caso de apenas duas mercadorias, as inclinações dessa curva,
𝑑𝑥 𝑢 (𝑥 , 𝑥 )
ponto a ponto, são determinadas por 2 = − 1(𝑥1 2 ) , pela equação de Jevons. Tomando-se a
𝑑𝑥1 𝑢2 1 , 𝑥2
𝑢 (𝑥 , 𝑥 )
𝑑 2 𝑥2 𝑑(−𝑢1 (𝑥1 , 𝑥2 )) (𝑢22 𝑢11 −𝑢1 𝑢2 𝑢12 +𝑢12 𝑢22 )
derivada segunda, = 2 1 2
=− . A condição de convexidade
𝑑𝑥12 𝑑𝑥1 𝑢23
impõe que essa derivada segunda seja maior que zero. No caso de funções de utilidade aditivas,
supõe-se que para cada bem i a utilidade marginal seja decrescente uii < 0. Nesse caso, também
temos u12 = 0, pela condição de independência das utilidades. A expressão acima seria então
positiva e a convexidade das curvas de indiferença estaria garantida. Com funções de utilidade
aditivas, portanto, a utilidade marginal decrescente já garante essa convexidade. Slutsky,
entretanto, analisou um caso excepcional em que tal hipótese não é necessária, obtendo-se a
curva de indiferença convexa mesmo com uma das mercadorias apresentando utilidade
marginal crescente. No caso das funções de Edgeworth, com utilidades dependentes, a
condição uii < 0 não é necessária para a convexidade, já que mesmo em caso contrário u12
positivo e grande ainda tornaria a expressão positiva; e nem suficiente, uma vez que se deve
admitir adicionalmente que u12 não possa ser negativo e grande.

A noção de curvas de indiferença parecia afastar a teoria do consumidor das


dificuldades relativas à medida da utilidade inerentes a uma função utilidade. Os
economistas da época, porém, mantiveram adesão a funções aditivas. Elas aparecem nos
escritos não matemáticos de Bawerk, Wieser e J. B. Clark. Wicksell utiliza a utilidade
aditiva em seu livro de 1894, embora ele veja mais realismo na função generalizada.
Depois, viria a incorporar tal função na obra Lições de economia política. Marshall e
Pareto foram influenciados pela função de utilidade de Edgeworth, muito embora o
professor de Cambridge só lhe tenha dado maior atenção na terceira edição dos
Princípios de economia. Antes, dizia preferir as utilidades aditivas, ignorando a interde-
pendência das utilidades no tratamento matemático. O que o levou a mudar de posição
foi a leitura do trabalho de Fisher em que este discute a natureza dos bens rivais e
complementares. Pareto trabalhou inicialmente com a aditividade e veio a perceber,
depois, que tal hipótese levaria a conclusões que são refutadas pela experiência.
O instrumental das curvas de indiferença permitiu a Edgeworth e depois a Pareto
analisarem de modo conveniente o comércio de duas mercadorias entre dois indivíduos.

201
O equilíbrio se daria nos pontos em que as curvas de indiferença de um indivíduo
tangenciam a de outro. A combinação desses pontos configura uma “curva de contrato”.
Os equilíbrios possíveis ocorreriam ao longo dessa curva, e o ponto exato só poderia ser
determinado por fatores imponderáveis. Na análise de troca simples, Pareto introduz o
revolucionário conceito de “eficiência de Pareto”: uma forma de alocar recursos entre os
agentes é dita “eficiente de Pareto” (ou “ótimo de Pareto”) se não existir outra alocação
que deixe todo mundo ao menos tão bem quanto antes e torne alguma pessoa
estritamente melhor. Se uma situação não é “eficiente de Pareto”, isso significa que existe
alguma forma de melhorar a situação de alguém sem prejudicar nenhuma outra pessoa.
O tratamento de Edgeworth torna a utilidade um conceito mais nebuloso,
contrariando sua intenção inicial. Ele foi pioneiro na análise de curvas de indiferença,
que de certa forma elimina a necessidade de uma medida cardinal da utilidade.
Edgeworth ainda acredita na noção de utilidade, mas a técnica de curva de indiferença
atribui peso menor ao conceito. Entre 1892 e 1900, Fisher e Pareto vão procurar excluí-
lo completamente da teoria do valor, alegando que, como ele não é mensurável, vem a
ser supérfluo. Os dois autores usam as curvas de indiferença de Edgeworth com o fito de
uma análise não-utilidade do comportamento do consumidor. No entanto, eles não
sabem definir complementaridade e lei da utilidade marginal decrescente em termos
estritamente não-utilidade. Isto só seria feito mais tarde por Slutsky, em 1915, e por John
R. Hicks e Roy G. D. Allen em 1934.
Não há, portanto, relação lógica, só histórica, entre as técnicas das curvas de
indiferença e a exclusão do conceito de utilidade: quem propõe curvas desse tipo não
exclui tal conceito; quem exclui, por vezes, não as propõe. Cassel e Wicksteed excluíram
a noção de utilidade em troca da análise direta da demanda do mercado. Também o faz
Barone em seu célebre artigo que proporá a aplicação do modelo walrasiano no controle
da economia. Nos Estados Unidos, Herbert J. Davenport também combateu a utilidade
e outros conceitos que seriam para ele não científicos; e Frank A. Fetter procurou elimi-
nar o hedonismo inerente, para ele, à utilidade e atualizar a teoria pelos conhecimentos
recentes da psicologia. A escola austríaca procurou livrar-se do hedonismo e do
utilitarismo, embora retendo o conceito de utilidade (“Nutzen”). Os austríacos são
críticos aos ataques de Cassel e Pareto.
Em 1915, o russo E. Slutsky publica um artigo na revista italiana Giornale degli
Economisti, intitulado Sobre a teoria do equilíbrio do consumidor. Nele, exclui
definitivamente o conceito de utilidade da análise do comportamento do consumidor,
até seu renascimento anos depois. Também distingue o efeito renda do efeito
substituição, proporcionado por variação de preços. Desenvolve, para tanto, o modelo de
renda real constante que consiste na técnica de compensar as variações de preços com
variações na renda monetária e manter o consumidor no mesmo nível da curva de
indiferença original. O artigo de Slutsky tornou-se famoso com a divulgação dos
trabalhos teóricos independentes de Hicks e Allen, sintetizados no artigo Uma
reconsideração da teoria do valor, publicado na revista Economica, em 1934, os quais
levavam aos mesmos resultados de Slutsky.
Nos anos 1930, a análise das preferências do consumidor e as técnicas das curvas
de indiferença e das isoquantas, desenvolvidas por Pareto e Fisher, começam a ser
amplamente adotadas na Inglaterra e na América do Norte. Até então, predominava a
análise da demanda de Marshall, com sua simplicidade analítica baseada nas utilidades
aditivas. Marshall conhecia o instrumental de Edgeworth, mas dizia que ele não seria
adequado para expressar fatos da vida econômica cotidiana, tendo apenas atração por
seus aspectos matemáticos.
Por fim, a teoria da preferência revelada de Paul A. Samuelson foi a pá de cal que
sepultou um subjetivismo mais enfático na teoria, muito embora não se possa dizer que

202
o conceito de utilidade tenha desaparecido. O conceito de utilidade e a ideia de
cardinalidade foram revigorados em trabalhos teóricos no campo da teoria dos mercados
financeiros.
John von Neumann e Oskar Morgenstern introduzem a função utilidade cardinal
na maximização da utilidade esperada (a utilidade no ambiente com incerteza). Se U(xi)
é a utilidade do evento xi com probabilidade de ocorrência i, o problema consiste em
maximizar i  i . U(xi). Em que U(xi) tem todas as propriedades de qualquer função de
utilidade ordinal, em adição tem uma medida cardinal, ou seja, o valor numérico da
utilidade possui significado preciso (a menos de mudanças na escala). Ela não serve
apenas para o simples ordenamento de ocorrências. Apenas U(x) e a + b.U(x) são
equivalentes, isto é, só se permite uma transformação linear positiva. A introdução da
teoria da utilidade cardinal na escolha com incerteza mostra que dois consumidores que
sempre fazem a mesma escolha no ambiente com conhecimento perfeito podem, em caso
de incerteza, fazer escolhas de “loterias” diferenciadas. Isso ocorre porque as respectivas
funções de utilidade cardinais podem ter a mesma propriedade ordinal e ser diferentes.
Por exemplo: U1(x, y) = x. y e U2(x, y)= –1/(𝑥. 𝑦)2 em termos ordinais são equivalentes,
já que uma é transformação da outra U2 = –U1–2, o que implica terem U1 e U2 a mesma
propriedade ordinal.
Antes de finalizar o capítulo, são investigadas duas questões cruciais para a teoria
da utilidade e que, desde suas primeiras formulações, geraram importantes debates que
se estenderam no tempo. A primeira diz respeito ao problema da comparação
interpessoal das utilidades. A outra gira em torno da possibilidade de sua medida e do
formato da função de utilidade. Étienne Dumont, discípulo de Bentham, escreveu o livro
Tratado de legislação, de 1802. Nele, lança-se a fazer aplicações econômicas do conceito
ético de utilidade na solução do problema de distribuição desigual da renda. Dumont
acreditava que tal solução só poderia ser teoricamente calculada admitindo-se a
comparação interpessoal de utilidade. O próprio Bentham, no entanto, reconheceu a
dificuldade em se comparar utilidades de pessoas que diferem entre si em tantas
circunstâncias. Justifica, ainda assim, tal procedimento pela conveniência prática:
mesmo com todas as suas limitações, não há nada melhor que a aplicação da noção de
utilidade para determinar leis sociais. É evidente o fracasso do projeto benthamita de
fornecer uma base científica para a política social, pois não se pode justificar a
cientificidade da análise pela eficácia da política que ela conduz. Em Bentham, a hipótese
da comparação interpessoal é mera simplificação, e as conclusões políticas a que leva
podem ser alcançadas sem ela. O filósofo moral reconhece que o excesso de riqueza não
corresponde a um proporcional excedente de felicidade do rico em relação ao pobre.
Riqueza e alegria não caminham sempre juntas, o que o afastou de tentar explorar as
implicações econômicas de seu sistema ético que centralizou o conceito de felicidade.
Contudo, Bentham acreditava que a maior igualdade de renda incrementaria a massa
total de alegria na sociedade, embora tal igualdade tenha sido por ele rejeitada em favor
da propriedade privada. Ele também postulou que a utilidade teria uma magnitude
numérica.
É discutível até que ponto a teoria da utilidade, tal como se apresenta em Jevons,
Menger e Walras, implica ou não a mensurabilidade de prazeres, desejos, necessidades
e utilidades. O fato é que nenhum deles tentou medi-los. Todos sabiam que a nova teoria
iria requerer, nesse tocante, uma defesa contra os críticos. Até hoje a questão da
mensurabilidade de quantidades subjetivas é importante alvo de ataques contra a análise
da utilidade. Podemos afirmar que, em geral, os subjetivistas só superficialmente tomam
a utilidade como mensurável. Jevons vale-se, em algumas passagens, da utilidade men-
surável, embora negue isso em outras. Um fragmento encontrado em seu livro afirma:
“não há uma unidade de trabalho, ou de sofrimento ou de contentamento”. O ataque de

203
Jevons ao problema da mensurabilidade é confuso, embora não lhe falte franqueza. Diz
que não é possível medir diretamente unidades de prazer e de dor, que os efeitos desses
sentimentos são perceptíveis nas transações comuns da vida econômica cotidiana e que...

“É a partir dos efeitos quantitativos dos sentimentos que devemos estimar seus
montantes comparativos.” (W. S. Jevons, A teoria da economia política)

Jevons dá a entender que não precisamos empregar unidades de medida para


quantidades de sentimentos, porque os próprios indivíduos fazem comparação direta em
suas mentes. Jevons afirma também que a utilidade até seria mensurável em tese, mas
ela não pode no presente ser mensurada. A medida do conceito é algo que viria depois
em aprofundamento do estudo, assim como ocorreu nos estudos da física envolvendo
calor e eletricidade. Há uma profusão de dados na economia que estariam disponíveis
para essa tarefa. Na segunda edição da Teoria da economia política, Jevons mostra-se
ainda mais otimista a esse respeito. Ele suprimiu nessa edição de 1879 uma passagem
contida na edição anterior, em que escrevia:

“Eu confesso que seria para mim difícil até mesmo imaginar como tais
estimativas [da utilidade] poderiam ser feitas com alguma proximidade da
exatidão. Embora eu admire bastante a clareza e a precisão das noções de
Bentham, não saberia onde seus dados numéricos seriam encontrados.” (Apud K.
Howey, The rise of the marginal utility school)

A visão de Gossen sobre a medida da utilidade também é vaga e ambígua. Ele


acredita que se poderia buscar uma unidade básica de prazer que seria usada na
mensuração de diferentes prazeres. Preferencialmente tal unidade seria a própria
moeda. Jevons também crê nisso. Ambos se filiam à corrente de autores que pensam que
os preços monetários são uma medida indireta das variações de prazeres. Dessa
perspectiva, os sentimentos são medidos pela estimativa de seus efeitos quantitativos.
Não é possível se medir o prazer total ganho ao se adquirir uma mercadoria, a teoria
apenas expressa que...

“Quando um homem comprou o suficiente obteria tanto prazer da posse de


uma pequena quantidade adicional quanto do preço monetário desta.” (W. S.
Jevons, A teoria da economia política)

Há na Teoria de Jevons um capítulo intitulado “Sobre a medida de sentimentos e


motivos”, em que o autor nega a existência de uma medida para quantidades de
sentimentos. Trata-se de uma contradição com o que ele dissera capítulos atrás nessa
mesma obra. Às vezes, Jevons é quase um ordinarista, isto é, acredita na possibilidade
de estabelecer comparações entre as utilidades, mas não em uma medida numérica
cardinal do mesmo conceito. Na prática, ele não faz distinção entre utilidade cardinal e
ordinal. De qualquer modo, trata a questão da mensurabilidade da utilidade com muita
precaução. Em 17 de outubro de 1872, numa carta dirigida a J. L. Shadwell, Jevons
responde ao crítico da medida da utilidade dizendo que muitas coisas se prestam
somente a uma medida indireta por meio de seus efeitos. Diz que dados sobre preços e
quantidades permitiriam medir a lei de variação da utilidade.
Léon Walras assume a existência de uma medida-padrão da intensidade dos
desejos, ou uma medida da “utilidade intensiva”. No entanto, ele não justifica a medida
cardinal da utilidade, ela é tão somente assumida. Walras mantinha-se incerto com
relação a esse problema, por isso adotou a estratégia de dizer o menos possível sobre ele.
A correspondência trocada entre Walras e o célebre filósofo e matemático Henri Poincaré
mostra que o primeiro propôs a questão da utilidade cardinal ao segundo, que tentou
convencer o outro de que a utilidade não seria mensurável. Para o desenvolvimento do

204
modelo de trocas em Walras, contudo, só há necessidade de uma função empírica da
demanda. Walras não cai no erro de Dupuit, reconhecendo que não se pode medir a
utilidade pelo sacrifício do consumidor expresso pela curva de demanda. O austríaco Carl
Menger associa números às utilidades e diz que eles só expressam magnitudes relativas
da importância das satisfações. Diz ainda que não é importante o ponto zero da escala,
mas faz afirmações como “a utilidade de A é duas vezes a utilidade de B”, que mostram
que ele não se desvencilhou completamente da cardinalidade.
Os marginalistas de modo geral negam a possibilidade de comparação interpessoal
de utilidade. A condição de equilíbrio na troca simples em Jevons e Walras não requer
tal comparação. Menger evita essa questão e não se engaja em tais comparações. Walras
só incidentalmente faz comparações interpessoais. Jevons também as considera
impossíveis, embora fazendo-as eventualmente, como ao comparar a satisfação do rico à
do pobre. Em geral, admite que...

“Numa mente, um impulso é comparado apenas em relação a outros impulsos


na mesma mente, nunca em relação a impulsos em outras mentes. Cada pessoa é
para as outras pessoas uma porção do mundo exterior – o não-ego, como os
metafísicos denominavam. Assim, os impulsos na mente de A podem dar lugar a
fenômenos que possam ser representados por impulsos na mente de B, mas entre
A e B há um abismo. Em consequência, a comparação dos impulsos deve estar
sempre confinada ao âmago do indivíduo.” (W. S. Jevons, A teoria da economia
política)

Ele diz que as utilidades de diferentes pessoas não precisam ser comparadas e de
fato não podem, pois...

“Toda mente é inescrutável para toda outra mente, e nenhum denominador


comum de sentimento parece ser possível.” (ibidem)

Outra crítica que se fazia ao conceito de utilidade diz respeito a como avaliar os bens
que não são diretamente consumidos, mas funcionam como fatores de produção. Jevons,
Walras e Menger reconheceram que tais bens geram utilidade por produzir outros bens
que satisfazem aos desejos dos consumidores. O trabalho do último é o mais elaborado
nesse sentido. Menger divide os bens em ordens. Os bens de alta ordem, os fatores de
produção, têm seu valor determinado pelo valor dos bens de primeira ordem, os que são
consumidos. O austríaco desenvolve um modelo que realça relações de causa e efeito
entre bens que satisfazem direta ou indiretamente a necessidades humanas e o
atendimento dessas mesmas necessidades. Já o modelo de Walras vai no sentido da
determinação simultânea das variáveis, interconectando os valores de todos os produtos
e de todos os fatores num modelo de equilíbrio geral. Jevons fala em utilidade mediata e
imediata, relacionando o preço do fator com a utilidade marginal do bem de consumo
que com ele se produz. A partir da última década do século XIX, essas discussões do
problema da imputação de utilidades iriam tomar parte essencial na teoria do capital que
começara a surgir.
Além dos bens poderem ser utilizados diretamente no consumo ou como recursos
produtivos, eles podem servir simplesmente para comandar outros bens na troca. Há
uma diferença entre o bem que produz satisfação direta e o que é considerado apenas por
proporcionar poder de compra. Walras chega a cunhar a expressão “utilidade específica”
para o primeiro bem, não fazendo nenhum uso subsequente dessa distinção. Jevons fala
em “utilidades adquiridas” para o segundo caso. Ele também não fornece um tratamento
teórico que desenvolva tal separação de conceitos. Menger ataca a questão dizendo que,
quando há a possibilidade de derivar utilidade do bem direta e indiretamente na troca, o
valor econômico do bem é dado pela maior delas.

205
Questões

1. Quais os principais argumentos metodológicos utilizados pela escola histórica alemã


em sua crítica à economia clássica?
2. Descreva a situação econômica e social na Inglaterra a partir dos anos 1860 e procure
relacioná-la com o aparecimento da Revolução Marginalista.
3. A Revolução Marginalista foi, de fato, uma revolução científica? Se não, justifique.
4. Quais as principais críticas que se fazia à teoria clássica nos anos que antecederam a
Revolução Marginalista? Você é capaz de apontar alguma relação entre as mudanças
na sociedade inglesa e a crise da economia clássica?
5. Qual variável o trabalhador procura maximizar no modelo de Von Thünen?
Demonstre que nesse modelo o salário de equilíbrio é igual a √𝑎. 𝑝, no qual a é o
salário de subsistência que não permite ao trabalhador acumular capital e p é a
produção anual obtida pelo trabalhador, usando certa quantidade de capital.
6. Descreva o modo como as atividades econômicas distribuem-se espacialmente no
modelo do Estado solitário de von Thünen.
7. Enuncie as duas leis de Gossen. Demonstre-as seguindo o mesmo argumento
utilizado por ele.
8. Representando a receita total por p.D(p), no qual p é o preço do bem e D(p) é a
função de demanda, e por (D) a função de custo, Cournot demonstrou
matematicamente que, na condição de lucro máximo, a firma iguala a receita
marginal ao custo marginal. Prove esse resultado usando o mesmo procedimento
algébrico adotado pelo francês.
9. Cournot foi um dos pioneiros na formulação algébrica da demanda como D = F(p).
a. Obtenha a condição de primeira ordem para a receita máxima.
b. Discuta a condição de segunda ordem avaliando todas as hipóteses que
asseguram a existência de um preço que maximiza a receita.
c. Aplique essa análise no caso do produtor monopolista com custo (D).
10. Prove a Segunda Lei de Gossen por meio de uma demonstração geométrica a la
Gossen. Os triângulos a seguir descrevem a evolução do “grau final do prazer”,
representado verticalmente, em razão do tempo de consumo transcorrido,
assinalado na base horizontal dos triângulos. Inicialmente, todo o tempo t disponível
para consumo é alocado no triângulo da esquerda e nada é consumido do outro bem,
representado no triângulo à direita. Mostre como Gossen demonstra que, no
equilíbrio, o tempo de consumo é distribuído entre os dois bens em questão, de modo
a obter o mesmo grau final de prazer nos dois casos (raciocine em termos de ganhos
e perdas líquidas cada vez que o tempo de consumo é reduzido num bem e ampliado
no outro e utilize argumentos geométricos de congruências de áreas).

11. Como as funções de demanda são obtidas no modelo de Cournot?

206
12. Explique o conceito de excedente do consumidor em Dupuit. Como ele obtém a curva
de utilidade marginal a partir da função de demanda?
13. Critique a teoria de Dupuit que afirma serem os preços das mercadorias iguais às
respectivas utilidades marginais.
14. Qual o princípio que confere coesão à sociedade na visão de Gossen? Um asceta não
poderia violar esse princípio? Por quê?
15. Em que os novos problemas estudados pelos marginalistas diferem das antigas
preocupações dos economistas clássicos? Qual o papel dos problemas práticos na
aceitação inicial do marginalismo? Entre Jevons, Menger e Walras:
a. Qual deles sofreu maior influência do hedonismo filosófico?
b. Que autor rejeitava a matemática como método de análise econômica? Justifique.
16. Descreva a controvérsia entre os economistas que defendiam a função utilidade
aditiva e os que propuseram as utilidades dependentes entre si.
17. O que são “curvas de indiferença” e “curvas de contrato”, e quem as propôs?
18. Qual o papel de Slutsky, Hicks, Allen e Samuelson no desenvolvimento do conceito
de utilidade e sua relação com a análise do comportamento do consumidor?
19. Os marginalistas acreditam que as utilidades podem ser comparadas entre diferen-
tes indivíduos?
20. A existência de solução única à alocação da renda do consumidor está assegurada na
presença de utilidade marginal decrescente? Comente.

207
Leitura Adicional

Literatura Primária

BENTHAM, Jeremy. Introdução aos princípios da moral e da legislação: sistema de


lógica dedutiva e indutiva e outros textos. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

CAIRNES, John Elliot. Some leading principles of political economy newly expounded.
New York: Kelley, 1967.

JEVONS, William S. A teoria da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

KEYNES, John Neville. The scope and method of political economy. Londres: Macmillan,
1917.

Literatura Secundária

ASCHCRAFT, R. German historicism and the history of political theory. History of Political
Thought, v. 7, 2, 1987.

BLAUG, Mark. Was there a marginal revolution? History of Political Economy, v. 4, 2,


1972.

_____. Economic theory in retrospect. Cambridge: Cambridge University Press, 1978.

COATS, A. W. The economic and social context of the marginal revolution of the 1870’s.
History of Political Economy, v. 4, 2, 1972.

_____. Retrospect and prospect. History of Political Economy, v. 4, 2, 1972.

COLLINNI, S.; WINCH, D.; BURROW, J. That noble science of politics: a study in
nineteenth-century intellectual history. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

HOWEY, R. S. The rise of the marginal utility school. Lawrence: University of Kansas
Press, 1960.

_____. The origins of marginalism. History of Political Economy, v. 4, 2, 1972.

HUTCHISON, T. W. The marginal revolution and the decline and fall of English classical
political economy. History of Political Economy, v. 4, 2, 1972.

JAFFÉ, W. Menger, Jevons and Walras De-Homogenized. Economic Inquiry, v. 14, 4,


1976.

MEEK, R. L. Marginalism and marxism. History of Political Economy, v. 4, 2, 1972.

SCHACKLE, G. L. S. Marginalism: the harvest. History of Political Economy, v. 4, 2, 1972.

SCHNEIDER, Erich. Teoria econômica: capítulos selecionados da história da teoria


econômica. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1968.

STIGLER, George, J. The development of utility theory. The Journal of Political Economy,
v. 58, 4, 1950.

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2, 1972.

TARASCIO, Vicent J. Vilfredo Pareto and marginalism. History of Political Science, v. 4,


2, 1972.

209
210
9
O Marginalismo na Inglaterra:
as Contribuições de
Jevons e Marshall

INTRODUÇÃO
William Stanley Jevons (1835-1882) e Alfred Marshall (1842-1924) são, sem dúvida,
os dois principais nomes responsáveis pela introdução e a popularização, tempos depois,
das noções marginalistas na Inglaterra. O peso de Marshall é incomparavelmente maior
até porque Jevons morreu jovem e sua contribuição, anterior à de Marshall, ocorre numa
época em que as teses marginalistas ainda eram mal compreendidas pela opinião
pública. Jevons tornou-se mais conhecido como estatístico do que como teórico do
marginalismo. Marshall representou um marco na história da moderna economia
científica. Introduziu o nome “Economics” em substituição ao antigo “Political Econo-
my”, para designar o novo estilo de se fazer ciência econômica; fundou o primeiro curso
especializado de economia e seu livro de 1890, Princípios de economia, foi o principal
manual da disciplina por mais de 30 anos. Marshall sentia-se pessoalmente incomodado
com a figura de Jevons. E não lhe deu o devido crédito. Entretanto, sabemos hoje da
relevância das ideias de Jevons, embora elas não tenham repercutido muito a sua época.
Jevons é considerado um dos descobridores da teoria da utilidade marginal. Marshall
também é citado no descobrimento, na aplicação e no desenvolvimento dessa teoria na
análise da demanda e das trocas. Ele aplicou tais ideias em 1890 e reivindicou
originalidade, remetendo-nos a seus trabalhos entre 1867 e 1870. Durante essa época,
entretanto, Marshall não havia derivado sua curva de demanda da maximização de
utilidade. Com efeito, somente após tal período ele se aproximou da análise marginalista
do comportamento do consumidor.
Marshall e John Bates Clark, economista norte-americano, são considerados por
alguns historiadores como descobridores independentes da teoria da utilidade marginal,
e, portanto, também teriam seus direitos de paternidade na nova teoria. No entanto,
nada publicaram sobre isso antes da Revolução Marginalista. Particularmente, é difícil
sustentar que Marshall tenha descoberto a teoria da utilidade marginal de modo
independente de Jevons, muito embora a biografia de Marshall, escrita por John
Maynard Keynes, diga o contrário. Nada de Marshall foi publicado, antes de Jevons, que
fizesse referência ao “valor terminal da utilidade”, termo que Marshall diz ter empregado
nesse interregno. Em sua revisão da Teoria da economia política de Jevons, o
economista de Cambridge nada disse sobre sua anterioridade e só falou de utilidade três
vezes. Não se pode negar, porém, o seu mérito por ter construído os seus Princípios de
economia, a obra que mais contribuiu para a difusão da noção de utilidade marginal.

211
O DESENVOLVIMENTO DAS IDEIAS DE JEVONS
Por ocasião do centenário da publicação da Riqueza das nações, de Adam Smith,
reuniu-se um grupo de economistas, em 31 de maio de 1876, no Clube de Economia
Política de Londres, para debater o legado de Adam Smith, a situação atual dessa ciência
e suas perspectivas futuras. Jevons estava presente. Ele resumiu os principais problemas
práticos a serem enfrentados pelos economistas: a pobreza, o conflito trabalhista, a
distribuição de renda, o papel do Estado e a dificuldade de se fazer uma política
monetária esclarecida. Tais problemas, diz ele, não levaram a um acordo entre os
economistas sobre o que deveria nortear o desenvolvimento da teoria econômica. Meses
depois, numa aula inaugural no University College de Londres, Jevons escreveria um
ensaio intitulado O futuro da economia política, em que são discutidos o papel da
história na economia, a importância do conceito de escassez, os limites do laissez-faire e
as flutuações do mercado monetário. É provável que em suas contribuições ele não tenha
conseguido esclarecer todos esses problemas, até porque Jevons morreria relativamente
cedo, mas suas ideias são um marco importante na evolução do pensamento econômico.
O economista britânico William Stanley Jevons foi, de fato, um dos que mais
contribuíram para o desenvolvimento da teoria subjetiva do valor. Fatos que marcam sua
vida e trajetória intelectual elucidam alguns dos elementos que estão presentes na gênese
da nova visão. O pensamento original e independente de Jevons é fruto de
acontecimentos em sua vida. Nasceu em Liverpool. Inicialmente estudou química e
botânica, e depois lógica e economia no University College de Londres. Personalidade
tímida e pensativa, voltado à introspecção e possuído por mente bastante inquiridora,
dos 19 aos 24 anos morou em Sydney, na Austrália, movido por necessidade financeira.
Jevons abandona seu estudos em ciências naturais em Londres em 1854 para trabalhar
como avaliador de metais (assayer) em Sydney, onde adquire interesse por economia
política. Então lá ele trabalhou como avaliador de metais, mais propriamente um
trabalho de químico ou metalúrgico. A economia política já despertara atenção na mente
de Jevons, embora tal ciência nunca lhe tenha sido matéria de interesse exclusivo. À
época, ele era meteorologista de formação, aliás, um competente meteorologista que
sabia lidar, como poucos, com dados e estatísticas. Todos esses assuntos de que se
ocupava, sua formação, seu trabalho e seu interesse por economia levaram-no ao estudo
da relação entre oferta de ouro e moeda. Escreve, então, suas Investigações em moeda
e finanças.
Após a leitura em 1857 do livro Economia da estrada de ferro, de Dionysius
Lardner, Jevons inclina-se definitivamente para questões econômicas e começa a desta-
car-se como economista, escrevendo seus primeiros artigos na matéria nos jornais de
Sydney. Neles critica a política agrária e de transporte de trens do governo de Nova Gales
do Sul. Desenvolve, na ocasião, ideias interessantes sobre curvas relacionando preços
com receitas e custos. Mostra que o lucro máximo é obtido quando as inclinações das
duas curvas são iguais, indício de que ele viria a empregar a análise marginalista em
estudos futuros.
Aventa-se que Jevons tenha sido influenciado por Cournot e Dupuit, pelo fato de ter
lido o livro de Lardner, no qual aparece algo deles. Sob influência desses dois autores,
Jevons teria chegado à técnica de empregar-se a análise marginalista e a de combiná-la
com a noção dupuitiana de utilidade, obtendo assim o conceito de utilidade marginal.
Não há, entretanto, nada de muito expressivo ou reconhecível das mensagens de Dupuit
e Cournot no livro de Lardner. Ademais, antes mesmo de conhecer Lardner, a atenção
de Jevons já se voltava às mesmas questões debatidas por esses dois precursores.
Convencera-se de que os problemas econômicos puros eram problemas de alocação
ótima e de que a investigação econômica consistia essencialmente num tipo de
matemática que calcula a causa e o efeito da ação humana produtiva e mostra como ela
pode ser mais bem aplicada. Os primeiros trabalhos de Jevons em economia teórica

212
lidam com controvérsias práticas sobre fixação de tarifas de trem. Neles, deu-se conta de
que tais problemas não seriam elucidados pela teoria do valor com base no custo de
produção. Tempos depois, ele adere completamente à noção de utilidade marginal.
Problemas práticos, como a fixação da tarifa de trem, o teriam conduzido à economia
marginalista.
O cálculo marginal havia surgido naturalmente em suas investigações teóricas sobre
problemas práticos, mas a noção de utilidade tem em Jevons uma origem ligada princi-
palmente às influências de Bentham; muito embora não se possa dizer que ele se tenha
filiado completamente ao utilitarismo ético. O próprio Jevons indica os autores, além de
Bentham, que o ajudaram a formular a noção de utilidade. Nassau Senior e Richard
Whately prepararam a cabeça de Jevons com seus escritos repudiando a teoria do valor
trabalho. Aos nove anos de idade, sua mãe lera para ele a passagem de Whately na qual
se escreve que:
“Não é o trabalho que qualquer coisa tenha custado que ocasiona a sua venda
por um elevado preço, mas o contrário, é a sua venda por um alto preço que
acarreta aos homens trabalharem na procura dela.” (Apud. R. Howey, The rise of
the marginal utility school )
Na verdade, Senior e Whately não escreveram muita coisa sobre valor. Senior
afirma que, das três condições requeridas para o valor, utilidade, transferibilidade e
limitação na oferta, a última é a mais importante. Senior escrevia principalmente sobre
direito e o arcebispo Whately sobre religião. Não conheciam a fundo Ricardo e manti-
nham ideias originais mais porque desconheciam o conteúdo da teoria do valor de
Ricardo do que em virtude de perceberem seus defeitos e procurarem remediá-los. No
retorno de Jevons a Londres, em 1859, o principal economista defensor da teoria da
utilidade era William Forster Lloyd, que também deve tê-lo influenciado.
De volta à Inglaterra, volta a estudar na University College de Londres até conseguir
o bacharelado e o título de mestre. Passa a se dedicar às ciências morais, contudo,
mantém o interesse por ciências naturais e por lógica. Obtém um cargo de tutor no
Owens College, em Manchester. Nove meses após a volta à Inglaterra, Jevons escreve a
seu irmão afirmando ter descoberto a verdadeira teoria da economia:
“Tão profundamente e com tamanha consistência que eu não posso mais ler
outros livros sobre a matéria sem me sentir indignado.” (ibidem)
Tal afirmação está contida nas Cartas e artigos, coletânea de escritos de Jevons
editada postumamente, por sua esposa, em 1886. Um dos livros que causaram repúdio
em Jevons fora o de Jacob Waley, que tinha inclinações pela obra de Stuart Mill. Jevons
dedica-se a desenvolver sua própria versão da teoria do valor também como forma de se
opor a essas ideias.
A tendência manifestada no pensamento de Jevons de desenvolver posições não
ortodoxas e de não se conformar ao argumento da autoridade, duvidando sempre que
possível, é apontada por alguns como influência da religião unitarianista de seus pais. O
unitarianismo também o teria levado a uma visão racionalista e analítica do homem e da
natureza, a um “desejo de resolver situações em suas partes componentes elementares”
que seria aplicado à teoria da utilidade marginal.
Em 1866, é eleito professor de lógica e filosofia mental e moral. Também passa a
atuar como professor de economia política, cadeira que assume até se aposentar, em
1880, com apenas 45 anos por problemas de saúde. Torna-se conhecido pela origina-
lidade de suas teorias. Tinha, também, conhecimentos práticos de física, metalurgia e
meteorologia. Morreu em Bexhill, Inglaterra, com apenas 47 anos, vítima de um afoga-
mento acidental.

213
Em 19 de fevereiro de 1860, Jevons, com 24 anos e estudando na Universidade de
Londres, escreve em seu diário ter descoberto o significado da utilidade marginal. Este
fato parece indicar uma anterioridade de Jevons em relação a Menger e Walras. Nos dois
anos seguintes, Jevons não trabalhou com teoria econômica, voltando-se apenas aos
estudos sobre estatística aplicada ao comércio. Em 1862, ele enviou dois artigos à
Associação Britânica para o Avanço da Ciência. Em um primeiro artigo, intitulado
“Teoria matemática geral da economia política”, com óbvia inspiração em Bentham,
escreve que:
“A verdadeira teoria da economia somente pode ser alcançada buscando-se de
volta a mola sublime da ação humana: os sentimentos de prazer e dor.” (ibidem)
Essa foi a primeira publicação de Jevons em teoria da utilidade. A recepção do
público não foi muito boa. Os secretários da referida Associação Britânica não aprovaram
o texto de Jevons. H. D. Macleod, E. Macrory, H. Fawcett, W. Thornton, H. Merivale e E.
Chadwick eram os secretários. Mais tarde, na introdução de sua obra máxima, a Teoria
da economia política, Jevons diria que todos os principais pontos de sua teoria do valor
foram esboçados nesse artigo. Já o outro artigo, “Sobre o estudo das flutuações
comerciais periódicas”, teve a aprovação dos avaliadores. Nesse mesmo ano, Marshall
chegou em Cambridge. Na ocasião, toma conhecimento do ensaio de Jevons. Não se sabe
se chegou a lê-lo por inteiro, mas demonstrou desinteresse, o que reforça a tese de que
Marshall não havia desenvolvido uma teoria da utilidade marginal por essa época.
Contrários à essa tese, os amigos de Marshall disseram que ele havia descoberto a teoria
de modo independente.
Na “Teoria matemática geral”, Jevons apresenta a essência de seu sistema teórico,
sem uso de notação matemática e sem gráfico. No primeiro parágrafo, afirma que os
principais problemas da economia devem ser tratados de forma matemática rigorosa. Do
segundo ao sétimo parágrafos, desenvolve sua teoria do prazer e da dor. Admite, no
entanto, a existência de outros motivos que comandam a ação humana. Termina com a
noção de utilidade marginal decrescente. No oitavo parágrafo, identifica dor com
trabalho, no nono critica a teoria do valor trabalho e no décimo apresenta o seu modelo
de equilíbrio da troca simples. No restante do artigo, estende o modelo para muitos
indivíduos e muitas mercadorias. Chega a insistir no sistema de equilíbrio geral, embora
nunca o tenha desenvolvido. Também analisa a produção, conectando-a ao problema da
troca. Discute a relação entre juros e capital.
A “Teoria matemática geral” é finalmente publicada em 1866 pelo Journal of the
Statistical Society of London, agora com o nome de “Breve consideração sobre uma
teoria matemática geral da economia”. Embora essencialmente o mesmo trabalho,
Jevons incorpora algo de novo nele. Discute com mais detalhe como é feita a comparação
da intensidade do sentimento no ato de escolha. Prolonga a análise da intensidade e da
duração do prazer. Aprofunda o tema do papel da previsão e da estimativa da utilidade
futura. Faz também algumas mudanças terminológicas ao discutir a ideia de utilidade
marginal decrescente: substitui o “grau final de utilidade”, na “Teoria matemática geral”,
pelo termo “coeficiente de utilidade”. Na “Teoria matemática geral”, o grau final de
utilidade é definido como “a razão da utilidade do último incremento”. Na década de
1870, ele usará as expressões “razão da utilidade” e “utilidade ou benefício derivado da
última porção usada”.
A ideia de utilidade no artigo de 1866 foi pouco difundida. O próprio Jevons dera
pouca atenção ao problema do valor, preocupando-se com outras questões econômicas
até começar a escrever em 1871 a Teoria da economia política. A teoria do valor, que
seria notabilizada nesse livro, é a mesma já desenvolvida nos dois ensaios anteriores.
Jevons somente retomara o interesse por teoria abstrata e decidira completar seu
trabalho em economia teórica porque considerou importante refutar as teses de Fleming

214
Jenkin, um professor de engenharia de Edimburgo, apresentadas na Representação
gráfica das leis da oferta e da demanda. A crítica ao trabalho de Jenkin apressou Jevons
a fazer sua “Teoria”. O esforço para escrevê-la foi tanto que ele teve a saúde seriamente
abalada. Após a primeira edição da “Teoria”, de fato, Jevons ficou bastante doente. O seu
medo era de que o uso da matemática por Jenkin pudesse tirar-lhe a precedência no
método. Nota-se que Jenkin não trabalhou com a teoria da utilidade, só se preocupando
com curvas de oferta e demanda.
Antes de escrever a Teoria da economia política, as principais publicações de
Jevons foram: como vimos, os estudos “Teoria matemática geral da economia política” e
“Sobre o estudo das flutuações comerciais periódicas”, ambos de 1862. Tem também o
ensaio “Uma queda importante no valor do ouro”, de 1863, e o livro A questão do Carvão
de 1865.
A obra A questão do Carvão deu a Jevons grande reconhecimento da opinião
pública. Nela introduz o conhecido “paradoxo de Jevons” (ou efeito Jevons). Tal
paradoxo ocorre quando o progresso tecnológico aumenta a eficiência com a qual um
recurso é utilizado (reduzindo a quantidade necessária para qualquer uso), mas a taxa de
consumo desse recurso aumenta devido ao aumento da demanda. É talvez o paradoxo
mais conhecido na economia ambiental. Ao reduzir o custo relativo do uso de um recurso
aumenta-se a quantidade demandada dele. Pois, a eficiência aprimorada aumenta a
renda real e acelera o crescimento econômico, aumentando ainda mais a demanda por
recursos. O paradoxo de Jevons ocorre quando predomina o efeito do aumento da
demanda, e a eficiência aprimorada aumenta a velocidade com que os recursos são
usados.
Existe, de fato, tal paradoxo? Muitos ambientalistas assumem que os ganhos de
eficiência diminuirão o consumo de recursos, ignorando a possibilidade de o paradoxo
surgir. Em sua época, Jevons observa que melhorias tecnológicas que aumentam a
eficiência do uso do carvão levam ao aumento do consumo dele em uma ampla gama de
indústrias. Ele argumentou que, ao contrário da intuição comum, não se podia confiar
no progresso tecnológico para reduzir o consumo de combustível.
Na data da primeira edição da “Teoria”, o consagrado Princípios de economia
política de Stuart Mill tinha 23 anos e seu autor ainda era considerado grande autoridade
na matéria. Contudo, a escola clássica atravessava uma crise. Jevons era crítico de Mill.
Sua “Teoria” buscou ser uma visão completamente alternativa da economia científica.
Começa escrevendo que sua teoria
“[...] deve ser apresentada como a mecânica da utilidade e do interesse indivi-
dual.” (W. S. Jevons, A teoria da economia política)
Para Jevons, as leis últimas que comandam a utilidade seriam obtidas por intuição
ou seriam fornecidas por outras ciências.
“A ciência da economia, contudo, é de alguma forma peculiar, devido ao fato,
indicado por John Stuart Mill e Cairnes, de que conhecemos suas leis fundamen-
tais imediatamente pela intuição, ou, de qualquer forma, nos serão fornecidas já
elaboradas pelas outras ciências psicológicas ou físicas.” (ibidem)
De qualquer modo, a “mecânica da utilidade e do autointeresse” seria uma teoria
verdadeira, tão autoevidente quanto os Elementos de Euclides.
A “Teoria” foi feita um tanto às pressas e por isso contestada por ser uma obra mal-
acabada. De fato, em sua primeira edição, Jevons não se mostrou seguro sobre o
significado e o uso da teoria da utilidade. Nas edições seguintes, foi melhorando a obra,
ao mesmo tempo em que transparecia um entusiasmo cada vez maior pelo método
matemático. Jevons acreditava que as formulações matemáticas da teoria poderiam ser
enriquecidas preenchendo-as com conteúdo estatístico.

215
“Não hesito em dizer, também, que a economia pode ser gradualmente elevada
à condição de ciência exata, desde que as estatísticas comerciais sejam bem mais
completas e exatas do que são no presente, de sorte que a doutrina possa ser
dotada com um sentido preciso por meio do auxílio dos dados numéricos [...] A
ciência dedutiva da economia deve ser comprovada e tornada útil pela ciência
puramente empírica da estatística.” (ibidem)
A influência de Bentham, tanto nos ensaios anteriores quanto na “Teoria”, é
explícita: no prefácio da segunda edição do livro, em 1879, ele diz que as ideias desse
filósofo moral são o ponto de partida de sua teoria. Anteriormente, no ensaio de 1862,
Bentham é citado em quase metade dos parágrafos. É interessante investigar quando e
como Jevons deu-se conta de que o trabalho de Bentham poderia ser usado na análise
econômica. Bentham morrera três anos antes do nascimento de Jevons, no entanto, sua
teoria moral era facilmente acessível: em 1843 aparece uma coletânea de seus escritos no
livro Trabalhos. Jevons, contudo, só se interessou por Bentham após seu retorno da
Austrália.
Podemos avaliar até que ponto o desenvolvimento da teoria da utilidade em Jevons
tomou emprestado elementos de Bentham. A técnica geral do cálculo do prazer e da dor
é a herança mais importante. A discussão das dimensões do prazer e da dor, feita nos
primeiros capítulos da “Teoria”, não é tão relevante. Mais significativas foram duas
considerações feitas por Jevons que já estavam em Bentham:
1. Jevons focaliza a discussão do prazer no consumo de um bem particular;
2. Ele toma para si a essência da noção de utilidade marginal elaborada por
Bentham.
Esses dois pontos, entretanto, representam uma parte pequena da obra econômica
de Jevons, que por sua vez é uma parte menor de seus escritos.
Na terceira edição da “Teoria”, Jevons escreve que o escritor que melhor
compreendeu a natureza e a importância da lei da utilidade foi Richard Jennings, que
publicou pela primeira vez suas opiniões sobre utilidade marginal em 1855. É certo que
eles não se conheceram pessoalmente. Não se sabe muito bem em que ano Jevons lera
algo de Jennings, parece que não foi antes do artigo de 1862. Jennings afirma que a ideia
de que o valor é derivado do trabalho humano é a falácia fundamental da economia
científica. Ele se liga a Whately, a quem considera o verdadeiro fundador da teoria da
utilidade. Jennings, de fato, fornece indícios de conhecer a noção de utilidade marginal,
por exemplo, quando ele diz que...
“Na proporção em que os objetos são menos abundantes, qualquer quantidade
limitada deles deve ser mantida como mais valiosa, e na proporção em que eles
são mais abundantes, eles devem ser mantidos como menos valiosos; o valor de
toda mercadoria vai sendo dissipado à medida que ela cresce em quantidade,
como um círculo na água, quanto mais espalhado mais ele se dispersa.”
(Jennings. Apud. R. Howey, The rise of the marginal utility school )
Jennings também é citado por Jevons como precursor da noção de “desutilidade”
marginal crescente do trabalho. Jennings tentou tratar a economia como matéria de
desenvolvimento da psicologia. Jevons não chegou a tanto.
Quando Jevons propôs a nova doutrina dos preços na “Teoria”, encontrou forte
resistência conservadora contra ela. Pela falta de adesão, a doutrina teve progresso lento.
Marshall, em sua revisão desse livro, e ainda Bagehot, Sidgwick e Cairnes, não foram
grandes entusiastas da obra de Jevons. Marshall afirma que o livro de Jevons tem como
principal propósito
“[...] substituir a Teoria do Valor de Mill pela doutrina de que ‘o valor depende
inteiramente da utilidade’. ” (ibidem)

216
Ele nega originalidade à ideia de Jevons e, contra ela, sustenta a teoria clássica do
valor afirmando que, em última instância, é o trabalho que determina o valor, já que a
utilidade marginal depende de variações na oferta; por sua vez proporcionadas pelo
próprio trabalho. Bagehot afirma ser a teoria de Jevons muito inferior à antiga. Sidgwick
deplora seu apelo revolucionário. Cairnes não viu originalidade no trabalho de Jevons.
Ele diz que se trata da mesma teoria do valor de Frédéric Bastiat em Harmonias
econômicas. Diz ainda que Jevons não tem uma medida válida do grau final de utilidade
exceto o valor de troca do bem, já que o prazer não é, por ele, medido diretamente.
Cairnes não entendeu o sentido da teoria da utilidade marginal. Apenas ironiza dizendo
que para Jevons o valor depende da utilidade e a utilidade é qualquer coisa que afeta o
valor. Thornton também criticou o conceito de utilidade de Jevons. O problema para sua
aceitação era que, a princípio, a teoria do comportamento do consumidor parecia não ter
nenhum significado operacional.
É interessante rever os comentários e críticas ao livro de Jevons que apareceram na
imprensa britânica na época em que foi lançado. Artigos elogiosos surgem em revistas
como Athenaeum, British Quarterly Review, Westminister Review, The Manchester
Daily Examiner, Fortnightly Review e Times. O Manchester Guardian tenta reconciliar
Jevons com os clássicos. O Glasgow Daily Herald critica o conceito de utilidade dizendo
que não podemos conhecer a razão dos graus finais de utilidade sem conhecer a razão de
troca. Sendo assim, aquela razão não pode ser usada para explicar esta. A função de
utilidade, portanto, não é independente das equações de troca. O Saturday Review
também faz uma crítica contundente: em Jevons, a quantidade total do bem não pode
ser aumentada ou diminuída. Cada comerciante é um monopolista. “Suponha que o
Museu Britânico tenha todas as obras restantes de esculturas gregas e o Louvre de
esculturas romanas. A qual taxa trocarão as coleções?” Trata-se, afirma a revista, de um
problema descolado da realidade.
Se os artigos sobre utilidade e valor dos anos 1860 e mesmo a “Teoria” não
chamaram a atenção do público, Jevons já se havia notabilizado em meados daquela
década graças a seu trabalho estatístico em A questão do carvão, no qual desenvolve uma
explicação, inspirada em Malthus, para o problema do esgotamento da energia derivada
do carvão. O conjunto de trabalhos estatísticos de Jevons, que ele vinha desenvolvendo
nos últimos anos, torna-se objeto de admiração de todos: seu artigo sobre flutuações
sazonais, seu estudo sobre movimentos seculares no valor do ouro, os trabalhos em eco-
nomia monetária, nos quais defende o bimetalismo, e até sua curiosa teoria das manchas
solares para explicar o ciclo econômico.
No fim do século XIX, poucos ingleses mostram-se tão entusiasmados com o uso da
matemática como Jevons. Para ele, a ciência econômica exata deve tratar seus termos
com matemática...
“Minha teoria de economia é de caráter puramente matemático. Mais ainda,
acreditando que as quantidades com as quais lidamos devem estar sujeitas a
variação contínua, não hesito em usar o ramo apropriado da ciência matemática,
não obstante envolva a consideração ousada das quantidades infinitamente
pequenas. Como a teoria perfeita de quase todas as outras ciências envolve o uso
daquele cálculo [diferencial], não podemos, então, ter uma verdadeira teoria da
economia sem seu auxílio.” (W. S. Jevons, A teoria da economia política)
Jevons, no início da Teoria, não se furta a usar expressões algébricas para distinguir
os conceitos total e marginal de utilidade. Na exposição da “lei da utilidade marginal
decrescente”, Jevons representa o “grau final de utilidade” pela expressão 𝑑𝑢⁄𝑑𝑥,
simbolizando a derivada da função utilidade 𝑢(𝑥) em relação à quantidade do bem
consumido 𝑥. A Segunda Lei de Gossen também foi expressa matematicamente: um bem
𝑠 possui dois usos 𝑥1 e 𝑥2 , tal que 𝑠 = 𝑥1 + 𝑥2 . Δ𝑢1 e Δ𝑢2 são os respectivos incrementos

217
marginais na utilidade. A distribuição do consumo é ótima quando Δ𝑢1 = Δ𝑢2 ou
𝑑𝑢⁄𝑑𝑥1 = 𝑑𝑢⁄𝑑𝑥2 , para variações infinitesimais, de modo que se iguala o grau final de
utilidade nos dois usos. Isto equivale à condição moderna de equilíbrio (𝑑𝑢⁄𝑑𝑥 )𝑝𝑥 =
(𝑑𝑢⁄𝑑𝑦)𝑝𝑦 , para bens 𝑥 e 𝑦, com a hipótese de que 𝑝𝑥 = 𝑝𝑦 .. Na linguagem atual, a razão
entre as utilidades marginais iguala-se à razão dos preços e a isso se denomina de “taxa
marginal de substituição no consumo”.
Jevons não demonstra muita habilidade em traduzir seus pensamentos à linguagem
matemática. Exemplificando, a equação anterior é satisfatória para um indivíduo
confrontado com preços fixos, mas é de difícil aplicação na descrição de mercados não
competitivos. Antes dele, também Gossen analisa a troca de um ponto de vista similar
valendo-se de expressões algébricas. Jevons emprega a álgebra ainda em outros
problemas, como no seu conhecido tratamento da troca simples (Boxe 9.1).

Boxe 9.1 Análise matemática da troca simples em Jevons.

O indivíduo 𝐴 troca a parte 𝑥 de suas 𝑎 unidades iniciais de trigo por 𝑦 unidades de


carne pertencentes a 𝐵, que possui um estoque inicial total de 𝑏. Após o intercâmbio, 𝐴
possuirá 𝑎 − 𝑥 unidades de trigo e 𝑦 de carne. 𝐵 possuirá 𝑥 de trigo e 𝑏 − 𝑦 de carne. Para o
indivíduo 𝐴, seus “graus finais de utilidade” são 𝜙1 de trigo e 𝜓1 de carne, 𝜙2 e 𝜓2 para 𝐵. A
relação de equilíbrio das trocas é representada por 𝜙1 (𝑎 − 𝑥). 𝑑𝑥 = 𝜓1 (𝑦). 𝑑𝑦, para 𝐴, e por
𝜙2 (𝑥). 𝑑𝑥 = 𝜓2 (𝑏 − 𝑦). 𝑑𝑦 para a pessoa B. Isolando-se 𝑑𝑦⁄𝑑𝑥 e igualando as duas
expressões, Jevons apresenta a sua equação fundamental das trocas 𝜙1 (𝑎 − 𝑥)⁄𝜓1 (𝑦) =
𝜙2 (𝑥)⁄𝜓2 (𝑏 − 𝑦) =
𝑑𝑦⁄𝑑𝑥 Pela lei da indiferença, 𝑑𝑦⁄𝑑𝑥 = 𝑦⁄𝑥 .
A “lei da indiferença” assevera existir um único preço no mercado. Pela lei da
indiferença, no mesmo mercado toda porção de um bem homogêneo é trocada à mesma taxa,
isto é, qualquer porção do bem é usada indiferentemente no lugar de outra porção do mesmo
montante. Existe, portanto, um único preço no mercado. Jevons discute a lei da indiferença
no capítulo IV de sua Teoria da economia política.

A Teoria da economia política repete os procedimentos analíticos dos ensaios


anteriores de Jevons. Em seu início, começa-se por apresentar os fundamentos da análise
das sensações de Bentham e, logo em seguida, no capítulo 3, intitulado “A Teoria da
Utilidade”, Jevons afirma coisas como: o “grau de utilidade” de uma mercadoria é função
somente da quantidade dessa mercadoria ou a utilidade de diferentes pessoas não pode
ser comparada. Ele também usa a noção de utilidade marginal na exposição de suas leis
de variação da utilidade, embora se valendo da expressão grau final de utilidade, que é,
para ele, a utilidade do incremento marginal dividida pelo tamanho deste incremento.
No início do capítulo 3 da “Teoria”, Jevons apresenta o gráfico (Figura 9.1). O eixo
𝑜𝑥 indica quantidades de um bem consumido, divididas em oito partes iguais que
representam idênticos acréscimos do bem a ser consumido. O eixo 𝑜𝑦 indica a
intensidade do prazer produzido pelo consumo. Cada retângulo (canaleta vertical)
representa a utilidade do acréscimo do bem consumido. Cada nova porção contribui para
um acréscimo de utilidade cada vez menor. As porções I e II têm utilidade indefinida,
pois representam montantes indispensáveis à vida (podemos falar em utilidade
infinitamente grande), por isso desenha-se, nos dois casos, a base superior sem limite
(aberta).

218
Figura 9.1 Representação das utilidades de cada nova porção do bem consumido.

O que determina o valor é o grau final de utilidade. Contudo, a escassez afeta a


utilidade marginal. O cálculo da utilidade almeja suprir as necessidades ordinárias do
homem ao menor custo de trabalho. A ideia básica do gráfico é que o sentido de prazer
ou dor possui duas dimensões ou modos de variar em relação à quantidade e, enquanto
durar, poderá ser mais ou menos intenso. No valor do pão, viceja...
“[...] a utilidade quase infinita de manter a vida e, quando se torna uma
questão de vida ou morte, uma pequena quantidade de comida excede em valor
todas as outras coisas. Mas, quando desfrutamos de nossos suprimentos comuns
de alimento, um pão tem pouco valor, porque a utilidade de um pão a mais é
pequena, estando nossos apetites saciados por nossa refeições costumeiras.” (W.
S. Jevons, A teoria da economia política)
Como varia a intensidade do sentimento? Altera-se de um momento para o outro,
porém, permanece constante nos intervalos:
“[...] podemos imaginar que a intensidade varia ao fim de todo minuto, mas
que permanece constante nos intervalos. A quantidade observada em cada
minuto pode ser representada, como na figura acima, por um retângulo cuja base
deve corresponder à duração de um minuto e cuja altura é proporcional à
intensidade do sentimento observado no minuto em questão. Ao longo do eixo 𝑜𝑥
medimos o tempo e, ao longo das paralelas ao eixo 𝑜𝑦, medimos a intensidade.
Cada um dos retângulos entre 𝑝𝑚 e 𝑞𝑛 representa o sentimento de um minuto. A
quantidade total de sentimento gerada durante o tempo 𝑚𝑛 será então repre-
sentada pela área total dos retângulos entre 𝑝𝑚 e 𝑞𝑛.” (Ibidem)
Ainda no mesmo capítulo, Jevons discute a alocação de uma mercadoria capaz de
diferentes usos. Conclui que na alocação ótima igualam-se os graus finais de utilidade
em cada uso. Expõe, também, o problema de escolha intertemporal. Introduz a noção de
taxa de preferência no tempo. Enquanto um indivíduo perfeitamente neutro em relação
ao tempo aloca os bens ao longo de uma sequência de períodos de modo a igualar as
utilidades marginais u1, u2, u3..., as preferências temporais são incorporadas nos fatores
q1, q2, q3..., tal que o equilíbrio intertemporal passa a ser q1u1=q2u2=q3u3=... Jevons
também introduz a análise da escolha com risco na qual as utilidades marginais do
consumo em cada período também são ponderadas pelas respectivas probabilidades p1,
p2, p3... do bem conservar-se em perfeito estado até a data futura, e o equilíbrio intertem-
poral fica sendo p1q1u1 = p2q2u2=p3q3u3=...
Finalmente, no Capítulo IV, a análise de Jevons culmina na teoria da troca simples;
ele conclui que, nesse problema, a distribuição de duas mercadorias entre dois agentes
que produz o máximo de satisfação para cada um corresponde à condição na qual a razão
dos graus finais de utilidade equivale ao inverso da razão de troca das mercadorias. Esta
condição valeria para todo tipo de mercado, do monopólio bilateral à concorrência

219
perfeita. Na equação básica de trocas de Jevons, os mesmos princípios controlariam
todos os mercados, independentemente do número de compradores e vendedores. Em
mercados com mais de um comprador ou vendedor, Jevons trabalha com a noção de
“entidades na troca” (trading bodies) do lado da oferta e da demanda, em que um
agregado de indivíduos se comporta como um sujeito único. A conclusão a que chega
Jevons não é aceita pela teoria moderna. Por exemplo, no monopólio bilateral o preço é
indeterminado dentro de uma faixa. A equação básica de Jevons permite relacionar
preços com utilidades marginais. Para derivar curvas de demanda das curvas de
utilidade, no mercado de concorrência, ainda são requeridos passos intermediários. Esse
problema só seria resolvido depois por Walras e Marshall.
A fórmula de Jevons é essencialmente estática, já que nela as mercadorias possuem
quantidade fixa. Jevons parece ter superestimado seu alcance. Conclui a partir dela,
precipitadamente, que a liberdade de troca é vantajosa a todos. Uma generalização que
não se sustenta apenas com essa análise. Lacunas na teoria de Jevons foram preenchidas
por outros autores da revolução marginalista. Walras desenvolve um modelo dinâmico
das trocas que não existia em Jevons, descrevendo o caminho na direção do equilíbrio,
não explicado pela fórmula estática.
Jevons apenas sugeriu elementos da teoria da produtividade marginal, como a
noção de desutilidade, mas não a desenvolveu. Além de não ter derivado curvas de
demanda das curvas de utilidade, ele também não deduziu curvas de oferta com base nos
custos monetários. Ele trabalha, na verdade, com uma teoria do custo real expresso em
termos de sentimentos de desutilidade ou dor, uma análise que, embora não produzisse
uma teoria da firma, lançou luz sobre os determinantes da oferta de trabalho. Jevons
apresenta uma incipiente teoria do capital, essencialmente capital variável, isto é, um
agregado de mercadorias que sustenta os trabalhadores. Ele tentou organizar diversos
fatos em uma fórmula precisa, e aplicar essa fórmula a amplas generalizações sobre
período de produção, produtividade, quantidade de capital e juros. Böhm-Bawerk
desenvolveria depois os insights de Jevons sobre as relações entre diferentes métodos de
produção e a duração do período envolvido.
Vejamos outras publicações de Jevons: “Lógica pura, ou a lógica da qualidade além
da quantidade”, de 1864; “A substituição de similares, o verdadeiro princípio do
raciocínio”, de 1869; o livro Lições elementares de lógica de1870; o ensaio “A taxa de
‘Match’: um problema em finanças”, de 1871; Os princípios da ciência de 1874, seu
principal trabalho como lógico. Schumpeter gostava desse livro. Temos ainda: “Moeda e
o mecanismo da troca”, de 1875, e Uma cartilha sobre economia política, publicado em
1878. Constam também 21 artigos publicados em diversas revistas (Journal of the
Statistical Society of London, The Contemporary Review, Fortnightly Review, Journal
of Social Science, Journal of The Statistical and Social Inquiry e Nature).
Das obras póstumas, aparecem: “O Estado em relação ao trabalho”, de 1882;
Métodos de reforma social e outros artigos , de 1883; Investigações em Moeda e
Finanças, como vimos escrito já na fase juvenil na Austrália, mas publicado apenas em
1884; Estudos em lógica dedutiva , de 1884, e Cartas e diário de W. Stanley Jevons,
publicado dois anos depois.

JEVONS E A CRÍTICA AO HEDONISMO


O conceito de utilidade marginal em Jevons aproxima-o da investigação psicológica,
com sua apreensão de leis no estudo das sensações e a busca de um substrato ao
fenômeno dos preços com base nelas. Jevons dá a entender, porém, em algumas
passagens, que tais sensações não seriam diretamente observadas e sua atuação seria
percebida pelas escolhas individuais.

220
“Admito que dificilmente possamos criar o conceito de uma unidade de prazer
ou sofrimento, de forma que a expressão numérica de quantidades de sentimento
pareça estar fora de questão [...] Os prazeres, em suma, são, por ora, da maneira
que a mente os estima; de forma que não podemos fazer uma escolha ou
manifestar o desejo em qualquer sentido, sem indicar desse modo um excesso de
prazer em alguma direção.” (W. S. Jevons, A teoria da economia política)
Jevons cita uma passagem do livro de Alexander Bain, As emoções e a vontade, em
que se diz:
“É uma simples proposição equivalente afirmar que o maior de dois prazeres,
ou o que parece como tal, dirige a ação resultante, pois é essa ação resultante que,
sozinha, determina qual é o maior.” (ibidem)
A ação indica para onde aponta o excesso de prazer. Tal argumento lembra a
moderna teoria da preferência revelada.
De fato, a noção de utilidade, desde o começo do século XIX, esteve associada à
filosofia hedonista. Essa filosofia assevera, grosso modo, que os homens são criaturas
movidas pela busca do prazer. O princípio da utilidade foi trazido à tona por meio do
debate ético ocorrido, naquela época, na Inglaterra. Portanto, ele foi empregado num
sentido mais amplo que o estritamente econômico. Bentham, em sua obra de 1789,
introduziu o princípio da utilidade como o mote responsável pela coesão de seu sistema
ético. A partir de suas considerações sobre ética, propõe a construção de um sistema de
leis mais racional. Bentham é adepto do hedonismo. Ele não defende sua vertente
egoísta, mas segue o chamado “hedonismo universalista”. Em síntese, a ética de Bentham
consiste em avaliar a conduta humana, como sendo um bem ou um mal, pela observação
de suas consequências sobre a felicidade coletiva; portanto, não só sobre a felicidade do
próprio indivíduo que age, daí seu caráter universalista. A ação é tida como boa, ou
portadora do bem ético, se levar, pelos efeitos repercutidos na coletividade, a máxima
felicidade ao maior número de pessoas.
Essa tradição de pensamento ético, de fato, é muito antiga e suas sementes já se
encontram em autores gregos da Antiguidade. Ela é uma das duas vertentes principais
associadas ao liberalismo político e filosófico que se desenvolve a partir do século XVIII.
Difere da outra tradição liberal, a ética dos direitos naturais ou, como viria a tornar-se
conhecida naquele século, ética dos direitos do homem. Esta última acredita na
existência de preceitos éticos de valor absoluto, como o direito à vida, à propriedade, à
liberdade etc., que funcionariam como axiomas de partida num sistema ético dedutivo.
Já a ética a que se filia Bentham, e da qual foi um dos maiores expositores naqueles
tempos, mede o valor de uma ação por seus efeitos. Diz-se, portanto, que ela é uma ética
“consequencialista”, na qual se mede o grau em que uma ação é desejada por sua
utilidade na geração de prazer para a coletividade. Daí tornar-se conhecida como
utilitarismo ético. Não se deve confundi-lo com a escola da utilidade marginal em
economia. É incorreto afirmar que os marginalistas sejam utilitaristas. E nem é correta
a crítica dos opositores dessa escola econômica de que ela se filia necessariamente ao
hedonismo.
O sistema ético de Bentham depende, para sua operação, de uma medida das
quantidades de prazer e de dor, a fim de se aferir a desejabilidade ética de certa ação. Tal
preocupação reme-te a dois problemas teóricos: como medir a dimensão do prazer e
como as circunstâncias gerais afetariam a produção desse prazer. Tais questões, que no
utilitarismo ético eram investigadas na solução do problema do bem e do mal, são
novamente levantadas no subjetivismo econômico de Gossen e Jevons. Não é sem motivo
que os dois autores são os que aparentam terem sofrido maiores influências do
hedonismo de Bentham. Embora haja um longo intervalo entre Bentham e Jevons, o
hedonismo deste ainda é significativo para Jevons.

221
Seguindo o que já escrevera o filósofo utilitarista, Jevons analisa as sete dimensões
responsáveis pela grandeza do prazer no capítulo II da Teoria, intitulado “A teoria do
prazer e do sofrimento”. Quatro delas são distinguidas pelos indivíduos: intensidade,
duração, certeza e proximidade. Três servem ao investigador para avaliar a satisfação
total repercutida de um ato: fecundidade, pureza e amplitude, respectivamente, a chance
de um sentimento (prazer ou dor) levar a outro sentimento do mesmo tipo, a chance de
não ser seguido por sentimento contrário e o número de pessoas afetadas por ele. Dentro
do primeiro grupo, o das dimensões que afetam diretamente a ação do indivíduo, para
Jevons e para Bentham intensidade e duração são as dimensões mais relevantes na
avaliação do prazer. Jevons considera que somente as dimensões identificadas nesse
grupo são importantes para a economia, outras dimensões revestem-se de importância
apenas à investigação ética. Partindo da descrição do mecanismo que condiciona os
sentimentos de prazer e dor, Jevons afirmou pretender fundamentar toda a análise
econômica.
Era uma avaliação unânime entre os críticos que a teoria da utilidade, o núcleo da
economia de Jevons, repousa numa psicologia obsoleta e não razoável. Duas proposições
de caráter psicológico são centrais na doutrina econômica de Jevons: a “lei da utilidade
marginal decrescente” e a “lei da desutilidade crescente”.29 A primeira diz que qualquer
pessoa ao consumir unidades sucessivas de um bem, sem a intervenção do tempo,
derivará de cada unidade sucessiva menos “utilidade” do que a derivada na unidade
anterior. A segunda proposição psicológica diz respeito a um custo psicológico do
trabalho, uma espécie de dor. Jevons e Gossen desenvolvem essa ideia. Com ela,
pretendem explicar a oferta de mão de obra pela análise das sensações de prazer e dor.
O esforço do trabalho é inicialmente desconfortável, depois produz prazer ao indivíduo.
Com a continuação do processo, há um ponto no qual é gerada crescentemente dor ou
desutilidade líquida, quando o prazer começa a perder para a dor. O trabalhador
maximiza sua utilidade aplicando-se até o momento em que a desutilidade gerada do
último esforço (desutilidade marginal do trabalho) iguala-se à utilidade marginal do
salário aferido. Embora a análise da oferta de trabalho contribua para a elucidação de
aspectos da produção, Jevons não tem uma teria da produção baseada na utilidade. Ele
se limita a igualar a utilidade marginal do produto com a desutilidade marginal da
produção na explicação da oferta de trabalho.
As duas proposições psicológicas anteriores concorrem na explicação do fenômeno
do preço. Dado um estoque de bens em posse de cada consumidor, o problema da troca
simples, entre dois indivíduos e duas mercadorias, tem como solução a equivalência
exata entre as proporções em que os bens são trocados, seu preço relativo, e o inverso da
relação, que se estabelece para cada indivíduo, entre a utilidade marginal da quantidade
restante do bem inicial e a utilidade marginal do estoque acumulado do novo bem obtido
pela troca. Resta ainda explicar como os dois parceiros da troca obtiveram o estoque
inicial do respectivo bem. Ora, cada qual permanecera no trabalho da sua obtenção até o
ponto em que a crescente desutilidade pareceu não mais compensar a utilidade esperada
que se possa obter da mercadoria produzida quer no seu consumo direto quer pela troca.
Walras e os economistas austríacos rejeitaram veementemente a noção de desutili-
dade ou “custo do sofrimento” como determinante independente do preço. Em especial,
para a escola austríaca o custo seria derivado da demanda. Só a utilidade marginal do
consumo apareceria então como determinante último dos preços. No entanto, Böhm-
Bawerk, dessa escola, em 1894, também reconheceu o papel da desutilidade. Hoje em
dia, os expoentes da teoria da utilidade aceitam a desutilidade como um fator
determinante dos preços, em coordenação com a utilidade. Na verdade, a teoria da

29
Depois de Jevons, diversos termos são usados pelos teóricos da utilidade marginal quase como
sinônimos entre si: utilidade, prazer, gratificação, satisfação, benefício, ofelimidade, capacidade
para satisfazer a desejos e outros.

222
desutilidade de Jevons foi apenas uma explicação da oferta de mão de obra, sem
pretender ser diretamente um elemento de sua teoria dos preços.
Jevons reconheceu a insuficiência da noção de utilidade marginal para uma explica-
ção completa dos preços em sua famosa afirmação envolvendo trabalho, quantidade do
bem, utilidade marginal e preços. Ele enunciou essas relações dizendo:
“Para que não haja erro possível, vou expô-las num quadro a seguir:
O custo de produção determina a oferta;
A oferta determina o grau final de utilidade;
O grau final de utilidade determina o valor.” (W. S. Jevons, A teoria da economia
política)
A ênfase no custo de produção remete à noção de trabalho. Diferentemente dos
clássicos, no entanto, o trabalho, nesse contexto, não precisa ser pensado em termos de
custos reais, como número de horas trabalhadas; pode ser visto em termos psicológicos
como quantidade de dor desprendida no esforço. Alguns autores consideram que Jevons
teria feito concessões à teoria do valor com base nos custos de produção dos clássicos, e
que ele não pode explicar preços baseado na relação entre utilidades marginais, pois esta
relação é, ela mesma, resultado do processo de troca que se dá a um preço
predeterminado. Entretanto, no início do capítulo 1 da “Teoria”, ele diz que “o valor
depende completamente da utilidade”. Essa aparente contradição leva-nos a pensar que
Jevons talvez tenha reconhecido que é impossível uma explicação causal unidirecional
do fenômeno dos preços, já que o cálculo do montante ótimo de trabalho requer, de
antemão, o conhecimento dos preços do bem produzido, a fim de se chegar às utilidades
marginais que são comparadas com o esforço adicional do trabalho. Já esses preços são
teoricamente obtidos a partir dos estoques disponíveis do bem que, por sua vez,
dependem das horas trabalhadas. O trabalhador não escolhe, na prática, o tempo de
trabalho e, mesmo se escolhesse, não poderia fazê-lo racionalmente, já que somente a
posteriori conheceria as utilidades que estão sendo geradas. Assim, os estoques iniciais
e os preços de mercado determinam-se reciprocamente, sem uma sequência temporal
explicativa claramente definida. Além disso, diversas outras dificuldades se assomam na
tentativa de fornecer uma explicação subjetiva dos preços: o volume do estoque não
depende apenas da quantidade de trabalho medida em dor, mas da disposição dos outros
fatores e da função de produção.
Jevons afasta-se das implicações hedonistas do conceito de utilidade quando diz
que qualquer motivo que nos atraia a certo curso de conduta deve ser chamado de prazer,
e de dor qualquer motivo que nos afaste dele. Dos marginalistas, apenas Jevons e Gossen
têm alguma influência do hedonismo, ela não existe nas teorias de Walras e Menger. A
crítica ao hedonismo, portanto, não poderia abalar, isoladamente, a confiança na
economia marginalista. O hedonismo estivera, no fim do século XIX, totalmente
desacreditado pela nova psicologia. Os avanços nesse campo também serviram para
atacar o conceito de homo economicus: agente estilizado que possui uma escala mental
de preferências estável e consistente, e que calcula racionalmente a estratégia de
maximização das satisfações empregando as técnicas marginalistas. O economista
americano John Maurice Clark considera que os achados da pesquisa psicológica de sua
época evidenciavam que o comportamento humano raramente é racional e frequen-
temente é impulsivo, instintivo, inconsistente e instável. Ele não entendia, portanto,
porque a escola marginalista insistia em sua “paixão irracional pelo cálculo racional
desapaixonado”. Contrapondo-se à visão econômica do homem como um ser estático e
passivo, psicólogos e filósofos da época, como Charles Peirce, William James e John
Dewey, destacam, no comportamento humano, a natureza ativa, dinâmica e empreende-
dora.

223
Não obstante isso, a nova psicologia teria demonstrado àquela época, na visão dos
críticos, que o comportamento humano apresenta aspectos objetivos e mensuráveis. A
ciência que o estuda deveria medir tal comportamento e seus estudos serem modelados
pela metodologia seguida nas ciências naturais. A nova teoria econômica, no entanto,
estaria baseada num subjetivismo desacreditado e em noções não científicas, tais como
a introspecção enquanto método de entendimento das escolhas humanas. Por seguir essa
estratégia, a ciência econômica não pode responder a muitas questões relevantes na
compreensão dos fenômenos que estuda: como os consumidores respondem a novas
situações? Como as preferências são formadas e alteradas com o tempo? Como a
propaganda influencia as vendas? Como as forças sociais interferem no comportamento
do agente? Qual o papel dos hábitos, dos costumes e da emulação social?
Os marginalistas em geral não se preocupam com esses aspectos psicológicos do
agente quando formulam ou seguem a teoria da utilidade. Entretanto, não se pode acusar
todos eles de assumirem o hedonismo como hipótese comportamental. Não há nada de
hedonismo em supor que as ações humanas são conduzidas pelo desejo individual. Que
os homens são guiados pelo desejo é até tautológico, se definirmos o desejo como o
impulso que conduz a determinado curso de ação. O hedonismo adentra a teoria no
momento em que se supõe serem os homens guiados pela busca de satisfação,
ignorando-se o problema das diferenças entre desejos e satisfações. Assumir que a
intensidade do desejo despertado por um bem é comandada pela satisfação do consumo
é aceitar o hedonismo. Que o desejo seja sempre proporcional à satisfação, ou seja, que
a utilidade do bem, entendida como seu poder de satisfação, determine o desejo por ele,
tal raciocínio pressupõe o hedonismo, um raciocínio criticável pelos psicólogos da época
por não ser dominante no comportamento humano.
No entanto, dizer que os preços estão relacionados ao desejo e não à satisfação é
suficiente para operacionalizar-se o instrumental fornecido pela teoria da utilidade.
Marshall é um dos que aceitou a possível disparidade entre desejo e satisfação. Enquanto
a satisfação tem uma base fisiológica imediata, tal como eliminar algum desconforto,
suprir a sede e a fome, o desejo humano é movido por forças imponderáveis, pela ação
de impulsos, hábitos, morbidez, autoabnegação, expectativas erradas etc. O professor de
Cambridge acredita não ser possível uma medida direta da satisfação e considera que a
teoria da utilidade deve limitar-se a considerar a ação movida por desejos. Claramente
ele não aderiu ao hedonismo.
É difícil incorporar na teoria econômica essa separação entre desejo e satisfação.
Böhm-Bawerk evitou levá-la adiante, pois acreditava que tal ênfase conduziria a um
agnosticismo, uma vez que não há princípios gerais que comandem a relação entre esses
dois conceitos. Arthur Cecil Pigou (1877-1959), procurando contornar o problema,
simplesmente postulou que os bens ordinários são desejados pela satisfação que propor-
cionam. Isso seria válido, para ele, especialmente no caso de bens de primeira neces-
sidade: nosso desejo por roupa e comida é simplesmente o desejo por instrumentos para
a satisfação de nossas necessidades primárias.
Nem sempre se pode admitir que o desejo se fixa no objeto de satisfação. Na maioria
das vezes, o indivíduo depara-se com uma certa ignorância a respeito da efetividade do
consumo em atender a certos propósitos. Constantemente fazemos falsas represen-
tações. Os homens não buscam utilidades ou prazeres; simplesmente almejam objetos.
Para tanto, eles não se engajam com frequência em comparações deliberadas e cuida-
dosas ou em cálculos de unidades de prazer associadas quer às unidades sucessivas do
mesmo bem, quer às unidades de diferentes bens, ou às unidades a diferentes estágios
no futuro. A ideia de que as potencialidades hedonistas de diferentes mercadorias são os
elementos que comandam a ação foi ridicularizada pelos psicólogos. Para eles, os ho-
mens não perseguem prazeres ordinariamente como objeto consciente de seus desejos.

224
No mercado, não se verifica o cálculo hedonista. Nele, a ação humana é o resultado
de um complexo instável e irracional de instintos, impulsos, hábitos, costumes, modis-
mos, ações reflexas, histeria de grupo e outros elementos. O comportamento humano,
portanto, raramente é racional, e frequentemente é impulsivo, instintivo, inconsciente e
instável. À luz dessas críticas, o economista americano Thorstein B. Veblen propôs um
novo e revolucionário programa de pesquisa que emprega a teoria psicológica do
instinto. Embora tal programa tenha tido grande influência na geração de economistas
americanos do fim do século XIX, tal tentativa mostrou-se um fracasso.
Outros críticos consideram o raciocínio da nova teoria microeconômica circular, já
que a curva de desejo é inferida da curva de demanda e, portanto, não serve para explicá-
la. A lei das utilidades marginais decrescentes não precisa significar mais do que a noção
de desejos decrescentes. E essa ideia não necessita ser nada além de uma mera hipótese
de trabalho que serve para explicar a recorrência geral do fenômeno. No mais, evidências
baseadas na introspecção e na observação do comportamento humano em outros campos
só têm confirmado a hipótese em tela.
A economia marginalista, ponderam os críticos, não pode determinar o valor de
troca partindo somente dos desejos individuais. Uma vez que, para tanto, suas teorias
consideram também o poder de compra dos agentes ou o estoque inicial, como no
modelo da troca simples, que são, em si mesmo, um valor. Assim, a teoria parece explicar
valor de troca por valor de troca. Entretanto, pode-se contra-argumentar que embora se
diga que o valor da variável w seja função dos valores de x, y e z, não se deve dizer que
essa teoria explica valor por valor. Os marginalistas, principalmente na tradição de
Walras, simplesmente aceitam a mutualidade nas relações entre valores de troca,
compondo um modelo no qual os valores estão relacionados uns com os outros: cada
valor é um item num sistema de valores interdependentes. A análise da utilidade não se
preocupa com os elos causais entre as variáveis, mas tão somente com a estabilidade na
estrutura de relações entre elas.
Os críticos, destacadamente os economistas austríacos seguidores de Carl Menger,
apontam esta não-identificação de causalidades entre as variáveis como uma fraqueza do
modelo. Os austríacos aceitaram a nova abordagem fornecida pela teoria da utilidade,
mas consideram-na um enfoque incompleto. Ela seria apenas uma foto instantânea do
processo de determinação do valor. Essa teoria trata apenas, dizem, da “lógica pura da
escolha”, sob supostos estáticos relativos aos parâmetros dos agentes. Esse é o
argumento fundamental desenvolvido por Friedrich A. von Hayek em seus escritos dos
anos 1940. Já na década anterior, a teoria da utilidade alcançara uma forma final, não
sofrendo nenhuma grande modificação a partir de então. Por essa época, torna-se uma
teoria corrente em todos os grandes trabalhos em economia científica.

VIDA E OBRA DE MARSHALL


Alfred Marshall (1842-1924) nasceu em Bermondsey, um subúrbio de Londres, em
26 de julho. Ele era de família devotada à religião, com muitos sacerdotes entre eles.
Cresceu no bairro londrino de Clapham; na infância foi educado na escola de Merchant
Taylor onde revelou precoce aptidão para a matemática. Lia livros de matemática desde
menino e foi um dos mais brilhantes estudantes de sua geração na matéria. Em
reconhecimento ao talento de Marshall, o Banco da Inglaterra proporcionou-lhe bolsa de
auxílio financeiro. O aprendizado concentrou-se, de início, em letras e línguas clássicas;
em anos seguintes a ênfase foi deslocando-se para a matemática, da qual os
conhecimentos de Marshall avançaram até o nível de cálculo diferencial. Predestinado a
seguir carreira sacerdotal na Igreja Anglicana, como requisito teria de passar pelos
estudos clássicos na Universidade de Oxford. Sem dificuldade, ele adquire nova bolsa de
estudo em tempo integral e transfere-se a esse centro.

225
Desde pequeno, os pais de Marshall combateram a inclinação dele pela matemática,
temendo que trocasse a carreira religiosa pelas ciências. Obrigado a estudar hebraico,
Marshall foi impedido de praticar seu esporte favorito, o jogo de xadrez. No entanto, o
que sua família receava acabou acontecendo e Marshall não demorou a trocar o ensino
clássico por um curso superior de matemática no St. John’s College, em Cambridge. A
troca de escola em 1862 custou-lhe abdicar da bolsa e ele precisou tomar emprestado
dinheiro de um tio, pagando a dívida por meio de ganhos com aulas particulares.
Marshall superava todos os seus competidores na disputa por posições na escola;
em apenas três anos, tornou-se “Second Wrangler”, exaltado posto nos quadros da
instituição. O único colega que estava em condições de disputar com ele era Lord
Rayleigh, cujas habilidades matemáticas eram ainda maiores que as de Marshall. O
sucesso angariou ser eleito “Fellowship” em St. John. Na ocasião, tendo perdido suas
convicções religiosas, abandona completamente as pretensões anteriores à carreira
clerical. Em troca, aprofunda-se cada vez mais no estudo dos fundamentos filosóficos da
moral, para ele, a base do comportamento humano e da organização social.
Frequentando as reuniões fechadas do Grote Club, uma sociedade de debates, afasta-se
da metafísica e acaba abandonando a religião.
Concluído com distinção o curso de matemática em 1865, Marshall passa a lecionar
tal disciplina como professor do Clifton College. No entanto, as reflexões em filosofia
moral desviaram o interesse da matemática para outras disciplinas. Em 1868, em St.
John, ele torna-se College Lecturer em ciências morais, especializando-se no ensino de
lógica e economia política. Dois anos depois, ele havia-se convencido de que sua carreira
seria dedicada a conferir à economia política o status de ciência. Por muitos anos,
trabalhou com afinco a fim de desenvolver e refinar ideias econômicas, procurando
aprofundar sua compreensão da literatura preexistente no assunto e da realidade
econômica como tal.
Preocupado com os problemas sociais de sua época, Marshall encontrou na
economia um instrumento para lidar com eles, pois para ele o combate à pobreza é a
razão de ser da economia. A formulação de seu pensamento econômico apoiou-se
inicialmente em duas fontes de influência: os economistas alemães e Stuart Mill. Atraído
pelas ideias de W. Roscher, ele viaja à Alemanha, também preocupado em aperfeiçoar
seus conhecimentos da língua alemã. Tendo a economia como opção prioritária, Mar-
shall não abandona o interesse por filosofia, especialmente pelos filósofos alemães Hegel
e Kant. Ambicionava, inclusive, ler Kant no original. No mesmo biênio de 1867 e 1868,
Marshall debruça-se na leitura da obra de Mill e, munido de sólida bagagem lógica e
matemática, procura traduzir as principais concepções deste em exercícios com equações
diferenciais até onde pudesse ir, rejeitando aquelas que não se prestassem a isso.
Ao longo de uma década dedicada à economia, Marshall foi elaborando as bases de
seu pensamento econômico, enquanto lecionava a disciplina. Costumava viajar nas
férias. Ia com frequência aos Alpes suíços onde aproveitava o descanso para ler literatura
alemã (especialmente Goethe) e Herbert Spencer. Em 1875, visita os Estados Unidos;
fica bem impressionado com a realidade econômica desse país e se convence ainda mais
de que a aplicação de bons princípios econômicos pode levar à melhoria geral das
condições de vida da população. De volta à Inglaterra, Marshall estreita o contato com
M. G. Fawcett e Henry Sidgwick, somando com eles esforços a fim de dar ao ensino de
economia política maior autonomia e prestígio. Também se unem a esse grupo de
trabalho H. S. Foxwell e Neville Keynes. Em 1877, ele casa-se com Mary Paley, sua antiga
aluna que foi uma das primeiras mulheres da Inglaterra a obter o grau universitário e
que se tornou professora de economia e sua ativa colaboradora intelectual. Mary fez parte
da primeira turma do Newnham College (conceituada escola superior só para mulheres,
de Cambridge, que até hoje mantém seu prestígio). Marshall conheceu-a na condição de

226
responsável por um arranjo informal de aulas para mulheres em Cambridge, ensinando
economia política.
Com o casamento, ele foi obrigado a afastar-se de St. John, já que não poderia mais
pleitear o celibato, requisito da carreira clerical. Transfere-se para Bristol como diretor
do colégio universitário estabelecido em Oxford, onde prossegue a carreira de professor
de economia política. Antes de 1879, ele não havia publicado nada de muito significativo.
Tinha colaborado num livro de comércio internacional e problemas do protecionismo em
meados da década e, antes disso, ele tinha elaborado muitas de suas teorias na forma de
um curto ensaio publicado como apêndice em um volume sobre comércio internacional,
de circulação restrita com poucas cópias encontradas fora de Cambridge, lançado por
Henry Sidgwick sob o título de A teoria pura do comércio exterior: a teoria pura dos
valores domésticos. Tal ensaio foi depois parcialmente incorporado nos Princípios de
economia, obra máxima de Marshall.
O mesmo ano de 1879 assiste à publicação do primeiro livro de Marshall, A
economia da indústria, escrito juntamente com sua esposa Mary Paley. O livro, de fato,
tem mais da contribuição de Mary do que de Marshall. Foi escrito no formato de manual
e destinado a servir como material de apoio aos cursos de extensão da Universidade de
Oxford. O livro foi publicado pela Macmillan, que continuou nos anos seguintes a ser a
editora exclusiva das obras de Marshall. Embora aparentando ser um tratado elementar
de economia, ele contém os primeiros esboços da emergente teoria de Marshall e
considerável sofisticação de ideias subjacentes à superfície de simplicidade. A economia
da indústria projetou o nome dele como estrela crescente no firmamento da economia.
Com a morte de W. S. Jevons em 1881, torna-se aos olhos do público a figura líder, na
Inglaterra, da nova escola de economia.
Marshall adaptou-se bem à posição de responsável pelo recente colégio
universitário de Bristol, principalmente diante do bom suporte financeiro da instituição.
Ele ansiava por continuar seus escritos, tendo já concebido o plano para o livro que se
tornaria os “Princípios”. No entanto, desde o início de 1879 sua saúde vinha-se debili-
tando, o que o impedia de exercer uma atividade mais intensa. Ainda começando a
exercer o novo cargo, a continuação dos problemas de saúde, diagnosticados como
cálculo renal, obrigou-o a pedir afastamento, quando então viaja à Palermo, na Itália,
onde passaria um ano tratando a moléstia. Em Palermo, Marshall inicia a composição de
novo livro. A saúde debilitada reforça os antigos complexos, herança de forte controle e
repressão paternal, e acentua a tendência para a hipocondria. Tratada a doença, Marshall
tem assegurado o retorno a Bristol em 1882, graças à generosidade do amigo Benjamim
Jowett, diretor do colégio Balliol. Também se deve creditar à ajuda de Jowett a transfe-
rência para Oxford em 1883 com a vagância da cadeira de Arnold Toynbee.
O considerável sucesso como professor em Oxford não foi suficiente para fazê-lo
resistir ao retorno a Cambridge a fim de ocupar uma posição de grande potencial para a
liderança acadêmica. Levado pela oportunidade de substituir o falecido Henry Fawcett,
Marshall volta a Cambridge em 1884 como professor titular de economia política. Ele
permaneceria por lá, na cátedra de economia, por 23 anos, lecionando essa disciplina e
ampliando seus escritos até aposentar-se em 1908 a fim de dedicar-se exclusivamente à
sua obra de economista. Marshall é fundador e depois nomeado vice-presidente da
associação econômica britânica (“Royal Economic Society”). Morre em Balliol Croft, sua
casa em Cambridge por muitos anos, em 13 de julho de 1924, aos 81 anos.
A obra de Marshall é bastante ampla. A bibliografia completa conta mais de 81 itens,
a maioria constituída de folhetos, artigos e depoimentos. De livros, publicou alguns,
sendo os mais importantes: Economia e indústria, curiosamente retirado de circulação
pelo próprio Marshall que dizia que “não se pode vender barato a verdade”. Há também
os Princípios de economia (1890) e os Elementos de economia e indústria (1892). O

227
segundo seria uma versão dos “Princípios” adaptada a iniciantes. Em 1919, aparece o
Indústria e comércio que seria, segundo Marshall, a continuação dos “Princípios”.
Dinheiro, crédito e comércio é de 1923; obra já completada em 1875 que reúne material
dos primeiros estudos, especialmente forte em teoria monetária. Os Artigos oficiais de
1926 são obra póstuma que contém os escritos de Marshall entre 1886 e 1903, e os
Memoriais de Alfred Marshall (1925) representam uma coletânea de ensaios de
Marshall editadas por A. C. Pigou, seu sucessor na cadeira de Cambridge. Uma relação
parcial dos escritos de Marshall aparece no Boxe 9.2.

Boxe 9.2 Relação de obras de Alfred Marshall.

1862 Relatório da Associação Britânica para o Avanço das Ciências


1871 Academia (editado por A. C. Pigou 1925)
1872 A teoria da economia política do Sr. Jevons
1874 Uma nota sobre Jevons
1874 O futuro das classes trabalhadoras (editado por A. C. Pigou 1925)
1876 A teoria do valor de Mill (Fortnightly Review )
1879 A teoria pura do comércio exterior, a teoria pura dos valores domésticos
1879 A economia da indústria (com Mary Paley)
1884 Onde moram os pobres de Londres
1885 A posição atual da economia política
1885 O quanto é possível remediar as causas que influenciam de modo prejudicial a
continuidade do emprego e a taxa de salário
1885 Sobre o método gráfico da estatística
1887 Remédios para a flutuação dos preços gerais
1889 Cooperação
1890 Princípios de economia
1890 Revisão contemporânea dos princípios de economia : texto introdutório
1891 Alguns aspectos da competição
1892 Elementos de economia da indústria
1892 A lei dos pobres em relação às pensões de ajuda do Estado
1893 Sobre a renda (Economic Journal )
1897 A velha e a nova geração de economistas (Quartely Economic Journal )
1898 Analogias mecânicas e biológicas em economia (Economic Journal )
1898 Distribuição e troca (Economic Journal )
1902 Uma defesa para a criação de um currículo em economia e ramos associados da
ciência política
1907 As possibilidades sociais do cavalheirismo econômico (Economic Journal )
1917 Impostos nacionais depois da guerra
1919 Indústria e comércio
1923 Dinheiro, crédito e comércio
1925 Memoriais de Alfred Marshall (editado por A. C. Pigou)
1926 Artigos oficiais
1980 Primeiros escritos econômicos de Alfred Marshall (editado por J. K. Whitaker)
1994 Maquinário e vida (editado por T. Raffaelli)
1994 Uma nota (editado por J. K. Whitaker)
1996 Sobre Arnold Toynbee (editado por J. K. Whitaker)
1996 Notas tomadas durante as discussões nos encontros do Grote Club (editado por T.
Raffaelli)

228
Marshall tornou-se conhecido como líder da chamada escola neoclássica de
Cambridge que exerceu influência dominante no pensamento econômico até os anos
1930. Ele é considerado um marco na transição da antiga para a moderna economia. O
pedigree das influências intelectuais que se exerceram sobre ele é complexo e difícil de
ser reconstituído. De modo geral, suas ideias estão inseridas no contexto histórico e
cultural da era vitoriana. Marshall reúne nelas valores éticos do protestantismo e da
Igreja Anglicana, aliados ao espírito vitoriano típico com sua crença no papel civilizatório
do vasto império britânico. Em filosofia, é um apreciador dos alemães Kant e Hegel,
embora tenha com o tempo se afastado dos aspectos mais metafísicos desses sistemas
filosóficos. A preocupação social de Marshall deve-se, em parte, à influência de Henry
Sidgwick e seu círculo intelectual em Cambridge. A sensibilidade para com os problemas
sociais também se pode creditar às influências dos escritos filosóficos de Stuart Mill e
Herbert Spencer, bem como a aspectos do utilitarismo de J. Bentham. A raiz do
pensamento econômico marshalliano nutre-se do mercantilista W. Petty e do economista
clássico Stuart Mill, na Inglaterra; de Von Thünen, na Alemanha, e Cournot na França,
conforme o próprio autor reconhece no prefácio dos “Princípios”. Também se deve
reconhecer o papel do evolucionismo de Darwin na formação de Marshall. No início da
carreira de economista, ele chegou a cultivar certa admiração pelo historicismo alemão
de Roscher. Até mesmo Karl Marx, F. Lassalle e outros socialistas eram lidos por
Marshall na fase madura de sua trajetória intelectual. No entanto, ele nunca aderiu ao
socialismo revolucionário. Em suma, Marshall herdou o arcabouço intelectual de
economistas e pensadores do século XVIII e XIX dentro e fora da Inglaterra.
Marshall herdou e transformou substancialmente ideias disponíveis em sua época.
Homem culto, exímio matemático, versado em ciência natural, filosofia, história e
clássicos da Antiguidade greco-romana, ele propõe grandes inovações doutrinárias e
metodológicas na análise econômica. Procura tornar os princípios da economia clássica
mais operacionais. Ao mesmo tempo em que é um dos precursores do tratamento
matemático na economia, ele humaniza a ciência, criticando a universalidade e
atemporalidade dos postulados clássicos. Marshall é contra a noção simplificadora de
homo economicus e procura sempre tomar o indivíduo no contexto sociocultural de cada
época e lugar. Os seguidores de Marshall configuram, de fato, uma verdadeira escola de
economia, hegemônica por algumas décadas.
Antes de Marshall, em Cambridge a economia era ensinada apenas como parte das
ciências históricas e morais, e não era objeto de trabalhos mais avançados. Marshall fez
da economia uma profissão. Durante muitos anos ele lutou, nem sempre com sucesso, a
fim de ampliar o âmbito dessa ciência, e só em 1903 inaugurou-se um novo curso
especializado em economia, o primeiro curso, de que se tem notícia, exclusivamente
dedicado à formação do profissional nesse campo.30 Com ele, tal ciência adquire o status
de saber autônomo cientificamente qualificado, uma área técnica repleta de conceitos
não acessíveis ao não iniciado. Todavia, Marshall não se deixou levar pela matemática a
ponto de encobrir a preocupação social básica da economia; ele não se perdeu na
linguagem técnica cifrada e considerava que o uso da matemática deveria ser feito
sempre de uma forma consciente e equilibrada. Embora a matemática fosse o principal
instrumento analítico e metodológico de Marshall, ele era contra seu uso abusivo em
economia. Para ele, trata-se de um método válido de análise, mas não de exposição de
resultados.
Há uma famosa carta em que Marshall relata sua experiência pessoal com a mate-
mática; ele escreve:

30Na verdade, a nova Escola de Economia de Cambridge intitula-se Escola de Economia e Política
(Faculty of Economics and Politics), conservando essa denominação até hoje. Conforme indica o
nome da escola, trata-se de especialização também em ciências políticas.

229
“Um bom teorema matemático relativo a hipóteses econômicas é altamente
improvável de ser boa economia.” (Apud Introdução de Ottomy Strauch, A.
Marshall, Princípios de economia)
E diz que ele conduz seu trabalho em economia, seguindo as regras:
“1. Use a matemática como uma linguagem estenográfica, antes do que como
um instrumento de investigação.
2. Empregue-a até que se obtenham resultados.
3. Traduza para a linguagem corrente.
4. Ilustre com exemplos que tenham importância na vida real.
5. Queime a matemática.
6. Se não obtiver êxito em 4, queime 3.” (A. Marshall, Princípios de economia)
Para Marshall, a matemática deve expressar de modo preciso os métodos de análise
e raciocínio que as pessoas comuns adotam, mais ou menos inconscientemente, nos
negócios do dia a dia.
Marshall deixou importantes seguidores; os dois mais conhecidos são o economista
que o sucedeu na cadeira de Cambridge, Arthur Cecil Pigou e John Maynard Keynes, o
fundador da macroeconomia que foi também seu principal biógrafo. Keynes não poupou
elogios à obra de Marshall; para ele, trata-se da “descoberta de um complexo sistema
copernicano no qual todos os elementos do universo econômico são mantidos em seus
lugares por mútuo contrapeso e interação”. Nele, os fatores econômicos mantêm entre si
posições mutuamente dependentes em analogia ao sistema solar em que o movimento
de qualquer corpo afeta os de todos os demais e é afetado por eles.

OS PRINCÍPIOS DE ECONOMIA
Os Princípios de economia são a magnun opus de Marshall. Publicado em 1890, ele
ganhou oito edições completamente revisadas pelo autor. A oitava edição de 1920 é
considerada a edição definitiva com as mais importantes alterações. Da quinta à oitava
edição não se fez alterações estruturais. Há também uma nona edição póstuma. Trata-se
da obra mais influente de sua era e que foi, por muitos anos, a bíblia dos economistas
britânicos, introduzindo muitos conceitos hoje familiares a estudantes de graduação.
Para gerações de estudantes, professores e economistas profissionais, os “Princípios”
foram a suma econômica e o compêndio básico no ensino da matéria. O livro teve sucesso
imediato e ajudou a restabelecer na opinião pública o prestígio e a credibilidade da
economia política. Voltado principalmente aos homens de negócio, políticos e
profissionais liberais, ele não se descuidava da preocupação didática de servir de livro-
texto a estudantes especializados. É uma tentativa de síntese dos postulados da economia
clássica e da doutrina marginalista em um todo coerente. Os “Princípios” tornaram-se
livro de consulta obrigatória para profissionais e compêndio básico no ensino de
economia. A obra foi escrita em nove anos com base nas aulas, e reescrita ao longo de
trinta anos. Marshall era lento e temeroso em escrever. Conta-se que ele tinha o hábito
de fazer circular oralmente entre colegas e alunos suas produções intelectuais. Ele só
publicava trabalhos bem documentados e cheios de reservas e restrições. Isso explica o
fato de que, embora os fundamentos da teoria de Marshall estivessem prontos em 1870,
tenha demorado 20 anos até surgirem na forma de livro.
As aulas e a escrita tomavam boa parte do tempo de Marshall. Mesmo ocupando
posição destacada na Universidade, ele não tinha tempo disponível para participar mais
ativamente dos negócios dela. Ainda assim, teve participação proeminente na campanha
de 1896 e 1897 contra a integração das mulheres na vida universitária. Isso criava uma
tensão em seu casamento, já que Mary Paley era professora universitária. A afeição pela

230
mulher não foi suficiente para fazê-lo abandonar o antifeminismo profundamente
arraigado em sua formação conservadora vitoriana. Acredita-se, no entanto, que ele
tenha, com o tempo, se tornado mais flexível em sua posição em relação ao papel das
mulheres. De fato, Marshall não se opunha à educação formal das mulheres, pelo
contrário, ele também se tinha dedicado a isso; o que ele se opunha era contra a
assimilação de mulheres em um sistema educacional desenhado para homens.
Voltando aos “Princípios” de Marshall, é difícil encontrar todos os adjetivos da obra,
seus méritos estão tanto na forma quanto no conteúdo. Na forma, destacam-se elegância
estilística, metáforas literárias bem empregadas e uso, com prudência e destreza, de
magnífico aparato matemático e diagramas expressando conceitos complexos de modo
inovador e enxuto. Há claramente preocupação didática com introduções, remissões e
notas explicativas. A leitura do livro não é árida, ele não tem a aparência dos modernos
manuais introdutórios de economia. Entremeando conceitos e procedimentos técnicos,
há uma ampla discussão dos problemas sociais. Logo no início da obra, Marshall explicita
sua preocupação social básica. Ele pergunta se há necessidade de existirem pobres para
que haja ricos e diz que a economia deve elucidar essa questão central. A economia é
importante não apenas porque tal ciência oferece caminho racional para otimizar o
sustento da humanidade, mas também porque ao combater a pobreza ela elimina as
fontes de degeneração do caráter individual associadas ao estado de privação.
Quanto a seu conteúdo, os Princípios de economia são a análise microeconômica de
uma economia de mercado. Ele articula em novas bases conceituais o antigo paradigma
clássico de uma economia com crescimento gradual e tendência natural ao equilíbrio.
Marshall busca complementar e generalizar pelo uso da matemática as teorias de David
Ricardo e Stuart Mill. O problema geral da distribuição econômica dos recursos é
resolvido pela ideia de que a renda dos fatores produtivos é a contrapartida de suas
contribuições marginais. A teoria do valor-trabalho é complementada pela introdução da
análise de curto prazo, na qual os determinantes do lado da demanda prevalecem sobre
os custos de produção. Outra peculiaridade da contribuição de Marshall é a introdução
do método de análise parcial, no qual assume a famosa condição “tudo o mais constante”
(ceteris paribus). A análise do valor, da distribuição e dos mercados é feita de modo
essencialmente verbal. Marshall remete todos os gráficos e demonstrações matemáticas
a notas de rodapé. Mesmo os raciocínios verbais têm subjacente a eles uma sólida
estrutura matemática. Nas palavras de Edgeworth: “sob a roupagem da literatura a arma-
dura da matemática”.
Muito do sucesso dos ensinamentos de Marshall deriva de seu uso eficiente de
diagramas, que logo foram imitados por outros professores em todo o mundo (a Figura
9.2 mostra exemplos desse diagramas).
Vejamos agora as principais contribuições à teoria econômica encontradas nos
Princípios de economia. O primeiro aspecto que vale a pena destacar é de natureza
metodológica: a análise do equilíbrio parcial estático. Introduzindo esse método,
Marshall escreve:
“A função da análise e da dedução em economia não é forjar longas cadeias de
raciocínio, mas forjar seguramente muitas pequenas cadeias e simples elos de
ligação.” (A. Marshall, Princípios de economia)
A técnica consiste em começar analisando um mercado em particular sob o suposto
de que variáveis afetadas pela ação de outros mercados não se alteram. Depois, pelo
método de composição, vai-se acrescentando mais elementos à análise, com o fito de
elucidar problemas maiores. O método “ceteris paribus” não faz mais do que empregar o
procedimento rotineiro de análise dos homens práticos.

231
Figura 9.2 Exemplos de diagramas criados por Marshall.

Outra ideia fundamental dos “Princípios” reside na reformulação da teoria clássica


do valor com o uso do marginalismo e das noções de curto e longo prazo. O marginalismo
de Marshall fora herança de Von Thünen e não de Jevons, e o uso do fator tempo é ideia
original do professor de Cambridge. Veremos adiante que Marshall reconcilia a teoria do
valor-trabalho com a noção de que o valor depende da demanda ou da utilidade marginal
pela mediação do fator tempo. No curto prazo, a oferta é inelástica e a demanda
determina os preços; no longo prazo, a oferta é horizontal e é ela que determina os preços.
Veremos logo mais o porquê desses formatos das curvas. Então clássicos e subjetivistas
não estavam totalmente errados, contudo, suas teorias eram enfoques parciais do
fenômeno do valor. A teoria clássica do valor prevalece no longo período e a teoria do
valor subjetivo é uma análise de curtíssimo prazo.
Os “Princípios” representam uma contribuição importante também pela articulação
de conceitos já propostos por outros autores, agora dentro de uma roupagem analítica
mais completa, casos do conceito de elasticidade da procura (já apresentada por Cournot,
mas cujo nome elasticidade é de Marshall), bem como a noção de margem e substituição,
que explica como o equilíbrio é estabelecido na teoria do consumidor e da produção. No
caso da teoria da utilidade, Marshall retoma e aperfeiçoa conceitos que foram
antecipados por Jevons, Gossen e Walras, dentre outros autores, da substituição na
margem entre bens alternativos de consumo. Na teoria da produção, pode-se imputar
certa originalidade a Marshall, embora a substituição na margem entre fatores de
produção apareça em Von Thünen. Em todo caso, porém, o tratamento analítico não
tinha alcançado anteriormente a elegância e a consistência que vemos em Marshall. O
conceito de excedente do consumidor, popularizado por ele, também não é inteiramente
original, já que ele aparece anteriormente em Jules Dupuit e William Thornton. Todavia,
somente nos “Princípios” o conceito é ostensivamente usado para mostrar que por meio

232
da técnica de discriminação de preços pode-se alcançar vantagem maior do que no
modelo de concorrência imperfeita com preço único. A análise da economia do estado
estacionário segue a de Mill, mas as considerações particulares de Marshall merecem
atenção.
Há outras inovações conceituais absolutamente originais: a ideia de firma
representativa, a quase-renda (Boxe 9.3) e a doutrina do lucro normal. Além dos novos
conceitos, a revisão da economia científica em base mais formal e rigorosa projeta a obra
do professor de Cambridge muito acima de outras contribuições que lhe são
contemporâneas. Vale ainda destacar a análise do monopólio, com rendimento crescente
e economias externas, que aperfeiçoa descrição anterior de Cournot. Os méritos dos
aspectos técnicos dos “Princípios”, com suas inovações metodológicas e conceituais, não
devem encobrir outras peculiaridades: o modo como as considerações éticas
condicionam, na obra, o raciocínio econômico e as propostas de implementação prática
de reformas sociais.

Boxe 9.3 Conceito de quase-renda em Marshall.

Marshall propõe uma distinção mais rigorosa entre renda e uma categoria criada por
ele, denominada quase-renda. A renda seria um excedente econômico derivado do uso de
fatores naturais escassos como terra. Pelo fato de sua oferta ser fixa, qualquer variação na
procura irá se refletir obrigatoriamente em seu preço, gerando uma receita acima dos custos
de produção. Desse modo, a renda conceituada por Marshall é designada renda da escassez
que caracteriza os rendimentos derivados dos bens diretamente oferecidos pela natureza. Por
outro lado, a noção de quase-renda serve para descrever o retorno líquido dos insumos
produtivos que estão temporariamente fixos em curto prazo (líquido porque se subtrai custos
de manutenção e de substituição). A quase-renda caracteriza os rendimentos oriundos de
máquinas e outros equipamentos, que, embora sejam inelásticos no curto prazo, podem ter
sua oferta ajustada no longo prazo. O termo também é empregado para retornos anormais
próprios de determinadas atividades, como as de alto risco. O gráfico a seguir ilustra o
raciocínio de Marshall: sendo dado exogenamente o preço p, a curva de custo marginal fornece
a quantidade ofertada de equilíbrio q. A curva de custo variável médio define a área oabq
associada ao custo variável total. A receita é naturalmente a área opcq. Subtraindo essa área
da outra, obtém-se a região preenchida apcb, que representa a quase-renda associada ao
retorno atri-buído aos insumos fixos.

A quase-renda contém em si dois componentes. O que se deve acrescentar ao custo


variável total para obter-se o custo total é a medida do custo de oportunidade do insumo fixo.
O que sobra além do custo total é o lucro econômico puro.

233
Marshall acredita que a ciência econômica vinha-se desenvolvendo gradualmente à
época e suas ideias seriam então mais um passo nessa evolução. Não haveria saltos na
progressão da economia científica. No prefácio da primeira edição dos “Princípios”,
escreve:
“Alguns dos melhores trabalhos da presente geração têm, de fato, parecido, à
primeira vista, antagônicos aos de passados autores; no entanto, à medida que,
com o tempo, vão se colocando em suas devidas proporções e suas arestas mais
ásperas vão sendo desbastadas, pode se ver que não envolvem nenhuma solução
de continuidade no desenvolvimento da ciência. As novas doutrinas têm
completado as antigas, as têm estendido, desenvolvido e, algumas vezes mesmo,
corrigido, e frequentemente lhes têm dado outro aspecto, insistindo de modo
diferente sobre os diversos pontos; porém muito raramente as têm subvertido.”
(A. Marshall, Princípios de economia)
No mesmo prefácio, crítica a decantada noção de Homo economicus, que para ele é
insuficiente por não levar em conta o papel da ética na análise econômica. Em seguida,
esclarece, já nesse prefácio, a noção de valor normal, empregada no conceito citado de
lucro normal, distinguindo-a do conceito de valor corrente de mercado:
“Estes últimos são aqueles em que os acidentes do momento exercem uma
influência preponderante, ao passo que valores normais são os que seriam afinal
atingidos se as condições econômicas que se têm em vista tivessem tempo de
produzir, sem perturbações, os seus efeitos completos. Mas não há nenhum
abismo intransponível entre uns e outros: eles projetam as suas sombras uns nos
outros, por gradações contínuas.” (ibidem)
Ainda nesse prefácio, Marshall reconhece os créditos para com Spencer, Hegel e os
economistas Cournot e Von Thünen. Fala do uso da matemática e do emprego da
expressão “marginal”.
Pulando o que escrevera nos prefácios das outras edições, vale a pena destacar o
teor do prefácio da oitava e última edição em vida dos “Princípios”. Nele, diz que o
Indústria e comércio é a continuação da obra. Diz também que a evolução econômica é
gradual, pois a natureza não dá saltos (Natura non facit saltum) e que a Meca da
economia está na biologia. Sobre o método ceteris paribus, de que falamos, esclarece que
ele não faz mais do que empregar o procedimento rotineiro de análise dos homens
práticos:
“As forças a serem encaradas [na análise econômica] são tão numerosas que o
melhor é tomar poucas de cada vez e elaborar um certo número de soluções
parciais como auxiliares de nosso estudo principal. Começamos assim por isolar
as relações primárias de oferta, procura e preço em relação a uma mercadoria
particular. Reduzimos as outras forças à inércia com a frase ‘todos os outros
fatores sendo iguais’: não supomos que sejam inertes, mas por enquanto
ignoramos sua atividade. Esse expediente científico é bem mais velho do que a
ciência: é o método pelo qual, conscientemente ou não, homens sensatos
trataram desde tempos imemoriais cada problema difícil da vida ordinária.” (A.
Marshall, Princípios de economia)
Vejamos agora um breve apanhado da obra percorrendo capítulos selecionados. Ela
está dividida em cinco livros. No primeiro deles, Marshall tece análise preliminar com
definições do objeto da economia e discussão de pontos conceituais como o significado
de lei econômica. O livro segundo é a exposição das noções fundamentais nesse campo,
tais como riqueza, produção, consumo, trabalho, bens de primeira necessidade, renda e
capital. O livro terceiro centraliza o tema das necessidades e satisfações individuais no
consumo. Aparece aí o cerne da teoria do consumidor, em que se discute utilidade,
elasticidade da demanda, alocação dos bens no consumo e intertemporalmente, e ainda:

234
excedente do consumidor e preço de demanda. O livro quarto trata de aspectos da teoria
da produção e temas sobre trabalho e organização industrial. O livro quinto apresenta a
teoria do valor de Marshall.
Percorrendo o livro primeiro, no capítulo 1 começa-se por definir a economia como
ciência. Diz que ela estuda a humanidade nas atividades correntes da vida, e que examina
a ação no que diz respeito à obtenção de bens materiais. Situa o estudo da riqueza como
uma parte do estudo do homem. Parte essa só igualada em importância ao estudo dos
impulsos de natureza religiosa, assevera Marshall. Por que combater a pobreza?
Responde ele que estudar as causas da pobreza é estudar as causas da degradação de uma
parte da humanidade. A pobreza, além de afetar diretamente a possibilidade de
continuar existindo, também exerce impacto nas condições mentais e morais dos
homens. Pergunta também se é necessário existirem pobres.
“Nos dispomos seriamente a investigar se é necessário haver as ditas ‘classes
baixas’, isto é, se é preciso haver um grande número de pessoas condenadas desde
o berço ao rude trabalho a fim de prover os requisitos de uma vida refinada e culta
para os outros, enquanto elas próprias são impedidas por sua pobreza e labuta de
ter qualquer quota ou participação nessa vida.” (ibidem)
A resposta, diz Marshall, não depende só da economia, mas também da moral e da
política. No entanto,
“A solução depende em grande parte de fatos e inferências que estão na
província da economia, e isto é o que dá aos estudos econômicos seu principal e
mais alto interesse.” (ibidem)
Na compreensão desse problema, embora se tenha verificado algum progresso no
século XIX, assevera Marshall que a economia científica está quase na infância.
Em seguida, identifica as características fundamentais da moderna vida industrial.
Enumera-as então: independência, deliberação, projeção do futuro, concorrência e
cooperação. A existência de concorrência é vital para o bom funcionamento da economia,
mas a cooperação é ainda mais importante. Mesmo a concorrência pura envolve postura
ética dos agentes, embora não se possa negar a existência de fraudes e abusos nos
negócios do dia a dia. Embora um ideal superior, a cooperação entre os homens nunca
seria plena, dadas as imperfeições da natureza humana (Boxe 9.4).
No mesmo livro primeiro, o capítulo 2 trata da definição do objeto da economia
científica. Começa dizendo que a economia é o estudo dos homens nos assuntos
ordinários da vida; como vivem, agem e pensam e quais os motivos que afetam a conduta
comercial. Marshall pede que não se compare a economia com as ciências físicas, pois
aquela se relaciona com as “forças sutis e sempre mutáveis da natureza humana”. A
economia deve preocupar-se com os motivos que impelem os homens no comércio. Tais
motivos podem ser medidos em dinheiro. O dinheiro permite mensurar a força dos
motivos pela remuneração pecuniária, conferindo à economia o caráter de ciência quan-
titativa. Mede-se, por exemplo, quanto será pago para obter dada satisfação ou quanto
será pago para induzir alguém a suportar uma fadiga. Assim, medimos as inclinações dos
espíritos indiretamente e por conjectura por meio de seus efeitos. Diferentes prazeres ou
sofrimentos são comparados entre si, e um prazer com um sofrimento, indiretamente
por seus respectivos efeitos. Só se comparam prazeres e sofrimento na mesma pessoa e
no mesmo tempo. Satisfações e desconfortos físicos são comparados pelo incentivo que
oferecem à ação. Não se estudam os estados de espírito em si mesmos: se oferecerem à
ação incentivos de força igual, o estudioso os trata como iguais para fins de análise.
Assim, não se penetra nas características mentais dos indivíduos. Satisfações igualmente
poderosas como incentivo à ação têm idênticas medidas econômicas, não se levando em
conta outras peculiaridades.

235
Boxe 9.4 Marshall discorrendo sobre a possibilidade de a cooperação vir a
substituir a concorrência entre os homens.

Escreve Alfred Marshall: “Se a concorrência é posta em contraste com a enérgica


cooperação de trabalho não egoísta para o bem público, então as melhores formas de concor-
rência são relativamente perniciosas, e suas formas mais grosseiras e baixas são abomináveis.
Em um mundo no qual todos os homens fossem perfeitamente virtuosos, a competição não
teria lugar, mas o mesmo aconteceria com a propriedade particular e qualquer forma de direito
privado. Os homens pensariam só nos seus deveres, e nenhum desejaria ter uma quota maior
de conforto e luxo do que os seus vizinhos. Os produtores mais fortes facilmente suportariam
o fardo mais pesado e admitiriam que os seus vizinhos mais fracos, embora produzindo menos,
elevassem o seu consumo. Felizes nesta maneira de pensar, eles trabalhariam para o bem geral
com toda a energia e espírito inventivo, e a iniciativa arrebatada que tivessem, e o gênero
humano seria vitorioso na luta contra a natureza em todas as ocasiões. Tal a Idade de Ouro que
poetas e sonhadores podem visionar. Mas, numa conduta responsável da vida, é pior do que a
loucura ignorar as imperfeições ainda imanentes da natureza humana.” (A. Marshall,
Princípios de economia).

Marshall escreve que dada soma de dinheiro representa diferentes variações de


prazeres para diferentes pessoas e para a mesma pessoa em circunstâncias diferentes.
Cita como exemplo o caso hipotético de um imposto que duas pessoas com a mesma
renda são obrigadas a pagar. Cada um abre mão de certo montante, igual para os dois,
que representa diferentes somas de prazeres com diferentes intensidades. Para alguns o
dinheiro do imposto representa mais, para outros, menos prazer abdicado. No entanto,
Marshall considera que na média de um agregado de indivíduos, no caso com
distribuição igualitária, o dinheiro dissipado é uma boa medida do dano (ou benefício,
no caso oposto de uma transferência do governo para o indivíduo). Outra situação é
quando se tem distribuição desigual da riqueza, pois uma unidade monetária representa
menos satisfação para o rico do que para o pobre. Mesmo nesse caso, entretanto, as
diferenças são atenuadas quando se pensa em riqueza média, na hipótese de grande
número de pessoas.
Para Marshall, o dinheiro é um meio conveniente para medir motivos humanos,
qualquer motivo e não apenas o desejo egoísta da riqueza. A economia lida com fatos que
podem ser observados e com quantidades que podem ser medidas e registradas. Os
problemas agrupados como econômicos focalizam a conduta humana sob a influência de
motivos mensuráveis em dinheiro. Pressupõem ações que visam o autointeresse
individual como as únicas que podem ser reduzidas à lei. Só interessam à economia ações
que são resultados de um cálculo deliberado do esforço despendido e do resultado por
ele obtido, em que os pesos de cada parte são atribuídos em dinheiro. É claro que muitas
das ações humanas não se enquadram como ação deliberada resultante de cálculo.
No capítulo 3, na sequência do livro primeiro, aborda-se o método da investigação
econômica. A economia observa, descreve, define e classifica. Marshall cita o economista
da escola histórica alemã G. Schmoller na defesa do uso simultâneo tanto do método
indutivo quanto do dedutivo. De Schmoller, extrai a passagem em que se escreve:
“A observação e a descrição, a definição e a classificação são as atividades
preparatórias. Mas o que desejamos alcançar por seu intermédio é um conhe-
cimento da interdependência dos fenômenos econômicos. A indução e a dedução
se fazem tão necessárias para o pensamento científico como os pés direito e
esquerdo são necessários para a marcha.” (G. Schmoller, apud. A. Marshall,
Princípios de economia)

236
A economia usa os mesmos recursos das ciências naturais para descobrir relações
de causa e efeito. Marshall traça uma analogia dessa ciência com seu jogo predileto, o
xadrez. Como as ciências naturais, a economia busca leis cada vez mais gerais testadas
com rigor. Também, como elas, busca medidas crescentemente exatas de modo a ampliar
o alcance dos assuntos científicos. Da causa identificada pela análise decorre
necessariamente o resultado se nada ocorrer para extraviá-lo.31 Marshall foi infeliz em
justiçar lei de tendência apoiando-se na física, mas o que importa assinalar é que ele
acreditava em leis desse tipo na economia, como Mill e os economistas clássicos em geral.
Por serem leis de tendência, as leis econômicas não possuem muita precisão. Como
fazem os estudiosos do fenômeno da maré, usa-se em economia a palavra “provavel-
mente”, pois ações humanas são variadas e incertas. Assim, a economia elabora leis
provisórias das tendências da ação humana. Na medida em que nessa ciência as forças
dos motivos são medidas em dinheiro, as leis econômicas são mais precisas que as leis
obtidas em outros ramos do saber social.
As leis econômicas podem ser alteradas pela ação do homem. Elas são apenas
hipotéticas e pressupõem que “outras coisas sejam iguais”. Ocorrem se houver tempo
para que as tendências se manifestem, mas nem sempre esse é o caso. De qualquer modo,
a teoria deve explicitar as causas condicionais implícitas na lei econômica para não dar
margem a maus entendidos. Ela também deve prestar a máxima atenção a mudanças nas
condições sociais, acompanhando sua evolução e atualizando o material teórico.
Ainda no mesmo capítulo, Marshall discorre sobre o conceito de ação normal. A
reação a se esperar, sob certas condições, é a ação normal. O caso normal ocorre quando
predominam certas tendências que se afiguram ser mais ou menos firmes e persistentes
em sua atuação sobre outras relativamente excepcionais e intermitentes. Assim, a ação
econômica normal é a que se pode esperar no longo prazo, não se aplicando o termo
apenas ao caso em que há concorrência.
A continuação do mesmo tema metodológico verifica-se no último capítulo do livro
primeiro dos “Princípios”. Lá se escreve, de início, que a ciência econômica é a aplicação
do senso comum ajudado pelos procedimentos organizados da análise e do raciocínio
abstrato. As leis econômicas são hipotéticas e como tais dependem de condições muitas
vezes difíceis de se estabelecer. Portanto, não são leis simples, bem definidas ou clara-
mente constatáveis. Elas tratam da parte das ações humanas mais exatas e mensuráveis.
Não medimos os motivos diretamente, mas a força motriz. A meta da análise econômica
é o conhecimento útil a fim de esclarecer os acontecimentos da vida prática. Para tanto,
é importante agrupar os fatos e raciocínios análogos de modo a evidenciar quais os
efeitos de diferentes causas em sua ação isolada e em conjunto. O Boxe 9.5 reproduz a
passagem na qual Marshall discorre sobre as questões estudadas pelos economistas.
A economia, portanto, trata de responder às questões mais urgentes da vida prática.
Ao lado delas, Marshall arrola o que seriam os problemas mais urgentes de sua época:
basicamente é a tensão entre o livre mercado, com a eficiência alocativa a ele associada,
e o atendimento das necessidades das classes pobres. Até que ponto deve-se aceitar a
intervenção em prol de excluídos e mais necessitados, mesmo quando tal política

31Nesse ponto, Marshall faz uma interpretação equivocada das leis da física para dizer que elas
são apenas enunciados de tendência. Cita o caso da lei da gravitação. Sabemos, porém, que a lei
da gravitação não tem nada de lei de tendência. É uma lei exata de que a matéria atrai a matéria
na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias entre pontos centrais
de cada corpo em questão. Se o movimento será de queda de um na direção do outro (aproximação
recíproca) ou se manterão uma distância mais ou menos constante, como a lua ao redor da terra,
depende da posição e da velocidade iniciais. Não há nada de lei de tendência e sim de previsão
determinística nas leis da mecânica.

237
compromete a riqueza geral da sociedade? Os princípios da propriedade privada e da
concorrência podem ser violados em nome de um objetivo social?

Boxe 9.5 Principais questões que o economista estuda, segundo Marshall.

Marshall cita as principais questões formuladas e respondidas pelos economistas:


“Quais são as causas que, particularmente no mundo moderno, afetam o consumo e a
produção, a distribuição e a troca de riquezas; a organização da indústria e do comércio; o
mercado monetário; a venda por atacado e a varejo; o comércio exterior e as relações entre
empregadores e empregados? Como agem e reagem esses fenômenos uns sobre os outros?
Como diferem seus resultados mediatos dos imediatos?
Dentro de quais limites o preço de uma coisa é uma medida de sua desejabilidade? Que
acréscimo de bem-estar deve, à primeira vista, resultar de dado aumento de riqueza em uma
classe da sociedade? Em que medida a eficiência de uma classe é enfraquecida pela
insuficiência de suas rendas? Como se sustentaria o aumento da renda de qualquer classe
social por efeito de um incremento proporcional de sua eficiência e de seu poder aquisitivo?
Até onde, de fato, alcança a influência da liberdade econômica em tal época, em tal
lugar, em tal classe social ou em tal ramo de produção? Que outras influências são aí mais
poderosas e como se combinam todas essas influências? Em particular, até que ponto a
liberdade econômica tende, por si mesma, a fazer nascer consórcios e monopólios, e quais
são seus efeitos? Como as diversas classes da sociedade podem, a longo prazo, ser afetadas
pela ação da liberdade econômica; quais os seus efeitos intermediários enquanto não se
produzem seus efeitos remotos e, levando em conta a duração de uns e outros, qual a
importância relativa dessas duas categorias de efeitos imediatos e finais? Qual será a
incidência de qualquer sistema de impostos? Que ônus imporá ele à comunidade e que rendas
dará ao Estado?” (A. Marshall, Princípios de economia)

Além de procurar resolver esses problemas de ordem prática, a ciência econômica


também deve cultivar o conhecimento pelo amor ao conhecimento. A economia tem os
dois lados: de ciência pura e aplicada; não sendo tão somente um guia final para o
político, já que ela abstrai circunstâncias que ele não pode ignorar. Conclui Marshall
propondo a mudança do nome dessa ciência:
“Ela é, portanto, uma ciência ao mesmo tempo pura e aplicada, mais do que
uma ciência e uma arte. E é melhor, para designá-la, servir-se da expressão lata
de ‘economia’, do que da mais restrita ‘economia política’.” (A. Marshall, Princí-
pios de economia)
Por fim, na conclusão do livro primeiro, Marshall apresenta o que seriam as três
grandes faculdades intelectuais do economista: percepção, imaginação e razão. O estudo
econômico demanda do pesquisador qualidades puramente intelectuais, bem como
espírito de crítica e de empatia, mas também requer imaginação (a fim de que o
economista possa seguir as pistas das causas ocultas e de seus efeitos), precaução e
reserva. Esta última para que a defesa dos ideais não ultrapasse sua compreensão do
futuro.
Marshall reconhece que nem sempre no passado os economistas souberam ser
isentos e objetivos em sua análise e tornaram-se impopulares. No entanto, para ele, essa
situação está mudando:
“Os economistas, em consequência, aprenderam agora a considerar com vistas
mais amplas e esperançosas as possibilidades do progresso humano. Aprende-
ram a confiar em que a vontade humana, guiada pela reflexão cuidadosa, pode
modificar as circunstâncias a ponto de alterar o caráter e, assim, realizar novas

238
condições de vida ainda mais favoráveis ao caráter e, por conseguinte, ao bem-
estar tanto moral quanto econômico das massas populares. Agora, como sempre,
é dever deles se oporem a todos os açodamentos em relação a esse grande
objetivo, que enfraquecem os impulsos da energia e da iniciativa.” (ibidem)
O livro segundo prossegue a apresentação de conceitos e discute as noções de
riqueza, consumo, produção, trabalho, renda e capital. O livro terceiro dos “Princípios”
contém a essência da teoria da demanda e do valor, discorrendo sobre noções como
elasticidade da demanda e utilidade. Dele, veremos em mais detalhe o capítulo 6
intitulado “Valor e Utilidade”. Marshall afirma no início do capítulo que a economia tem
pouco a dizer em que medida o preço de uma coisa representa a vantagem proveniente
de possuí-la. Em todo caso, essa é uma questão central que deve ser respondida por ela.
Se o preço que se paga por um bem nunca excede e raramente atinge o que se estaria
disposto a pagar por ele, a satisfação que se obtém na compra é maior do que a satisfação
do dinheiro que se priva ao pagar o preço dele. De modo que se pode inferir logicamente
que há um preço, além do valor pago no mercado para adquirir o bem, que o comprador
consentiria em pagar para não se privar dele. A diferença entre o preço que o comprador
pagaria para não se privar do bem e o que de fato pagou é definida como o excedente do
consumidor. Tal excedente varia de artigo para artigo. Corresponde ao benefício que o
consumidor tira de suas oportunidades e do meio ambiente. Marshall ilustra essa noção
com o exemplo do consumidor na compra de chá. O gráfico adiante aparece em nota de
rodapé do capítulo e sintetiza a teoria do excedente do consumidor de Marshall (Figura
9.3).

Figura 9.3 Gráfico de Marshall mostrando o excedente do consumidor.

Na Figura, DD’ representa a procura do chá num grande mercado. Seja OH a


quantidade vendida nesse mercado ao preço HA. Escolhendo-se um ponto M no
segmento OH e desenhando a perpendicular MB, essa reta se divide em dois segmentos.
O primeiro segmento MR representa o preço unitário pago pela quantidade M e RB o que
o consumidor estaria disposto a pagar a mais, totalizando assim o preço fornecido pela
curva de demanda. Então, a área PP’BR representa um excedente de satisfação que
ultrapassa o valor total pago por M unidades. De modo geral, a área PDA é o excedente
total do consumidor no consumo de H unidades. OPAH é o montante total pago por elas
e a diferença entre a área sob a curva de demanda, compreendida entre o eixo da
ordenada e o segmento AH, e o retângulo OPAH do montante pago é o excedente total
do consumidor. Trata-se da mesma ideia de Dupuit vista no capítulo anterior, lembrando
que Dupuit trabalha com o eixo dos preços na horizontal.

239
Os conceitos que compõem boa parte da teoria da produção dos modernos manuais
introdutórios de microeconomia aparecem no livro quarto de Marshall. Queremos, no
entanto, concluir o capítulo indo diretamente ao livro quinto (intitulado Os agentes da
produção: terra, trabalho, capital e organização), o cerne da obra que apresenta a
teoria marshalliana de oferta e demanda; também mostra como os preços são formados
no mercado e o fundamento de sua teoria do valor.
No capítulo 2 do livro quinto, Marshall apresenta o modelo de equilíbrio temporário
de oferta e demanda. Diz ele que nossas ações econômicas são comandadas pelo
equilíbrio entre o desejo pelo bem de consumo e o esforço para obtê-lo. No caso em que
o bem é alcançado pelo trabalho direto, ilustra com o exemplo de um menino colhendo
amoras. O equilíbrio ocorre quando o desejo de brincar e a aversão ao trabalho de colher
contrabalançam o desejo de comer (Boxe 9.6).

Boxe 9.6 O famoso exemplo de Marshall do menino colhendo amoras.

“O caso mais simples de balanço ou equilíbrio entre desejo e esforço é encontrado


quando uma pessoa satisfaz um desses desejos por meio de seu próprio trabalho direto.
Quando um menino colhe amoras para comer, a ação de colher provavelmente é prazerosa por
um tempo; e por mais algum tempo o prazer de comer é mais que suficiente para compensar
o trabalho de colher. Mas depois de ter comido bastante, o desejo por mais amora diminui; ao
passo que a tarefa de colher começa a causar cansaço, o que pode ser mais um sentimento de
monotonia do que de fadiga. O equilíbrio é alcançado quando, por fim, sua ânsia de brincar e
sua aversão ao trabalho de colher contrabalançam o desejo de comer. A satisfação que ele pode
obter ao colher frutas chegou ao seu máximo: até então, cada nova colheita acrescentou mais
a seu prazer do que o afastou dele.” (A. Marshall, Princípios de economia)

Posto isto, Marshall apresenta o modelo de determinação do valor de equilíbrio com


a ressalva de que ele só vale em mercados “mais civilizados”. Exclui também o caso de
objetos raros e singulares em que o valor é afetado pela influência moderadora de
compradores profissionais. Exemplo do tipo de mercado que está considerando na
determinação do equilíbrio é o mercado de cereais ou trigo de mesma qualidade:
“A quantidade que cada agricultor ou outro vendedor oferecem à venda a qual-
quer preço é determinada pela sua própria necessidade de dinheiro em mão, e
pelo cálculo das condições presentes e futuras do mercado ao qual está ligado.”
(A. Marshall, Princípios de economia)
Nesse mercado, o processo do regateio faz com que o preço nunca fique distante de
certo valor, por exemplo, 36 xelins. Este é o verdadeiro preço de equilíbrio e quando dele
o mercado se afasta os agentes esperam os preços se ajustarem. Nesse modelo, não é
necessário conhecimento perfeito por parte dos agentes, mas há a hipótese tácita de que:
“A soma que os compradores estavam dispostos a pagar, e que os vendedores
se dispunham a receber pelo sétimo quarter de trigo não seria afetada pelo fato
de as primeiras transações terem sido feitas a uma taxa elevada ou baixa.”
(ibidem)
Marshall enuncia a seguir a lei da utilidade marginal decrescente. O aumento na
quantidade consumida de trigo reduz sua necessidade. Outra hipótese do capítulo é a de
que quando se compra para consumo próprio despende-se uma pequena parcela dos
recursos totais. Nesse caso, não existe uma mudança apreciável na disposição de vender
moeda, tornando a utilidade marginal da moeda constante. Finalmente há a ideia de que
o modelo de equilíbrio não se aplica integralmente ao mercado de trabalho, no qual o
trabalhador aceitaria um salário abaixo do equilíbrio para não morrer de fome.

240
O capítulo 3 parte das hipóteses anteriores na determinação do “equilíbrio de
demanda e oferta normais”. Começa então investigando as causas que regulam os
“preços de oferta”, isto é, os preços que os negociantes estão dispostos a aceitar por
diferentes quantidades. Parte da hipótese de que os negócios são de apenas um dia e os
estoques oferecidos à venda já existiam no início do período. É claro que esse estoque
depende da quantidade de trigo plantada no ano anterior, o que, por sua vez, é
influenciado pelas conjecturas dos agricultores. No dia do pregão, o preço de equilíbrio
é afetado pelo cálculo das futuras relações entre produção e consumo. Isso porque
também se considera o caso dos negócios a termo que dependem da perspectiva de
consumo mundial, dos estoques existentes e das safras esperadas.
Assim, as expectativas incorporam a área semeada, o avanço das colheitas, a oferta
de bens substitutos, a perspectiva de os agricultores perderem dinheiro, a queda da área
semeada e os aumentos no preço do trigo. As previsões de uma eventual alta exercem
influência nas vendas atuais para entrega futura, o que também afeta o preço à vista. O
volume de produção ajusta-se às condições do mercado. O preço normal que se
determina dessa forma em uma posição de equilíbrio está no encontro da oferta com a
demanda.
O preço de oferta vale para dada unidade de tempo. É o preço que é preciso pagar
para conseguir o esforço necessário, a fim de produzir dada quantidade de uma
mercadoria. A produção de certa mercadoria exige o emprego de muitas espécies
diferentes de trabalho e o uso de capital sob muitas formas. Há então o custo real de
produção da mercadoria que depende dos esforços dos fatores e da abstinência do
proprietário do capital. Há também o custo monetário de produção dela que são as
quantias a serem pagas por esses esforços e sacrifícios. São as despesas de produção, e
são elas que determinam o preço de oferta.
O preço de oferta é aquele ao qual será entregue certa mercadoria para a venda ao
grupo de pessoas cuja procura dela estamos a considerar. É o preço no mercado que
temos em vista. Pode incluir fretes e outras despesas mercantis. Cada fator tem seu
próprio preço de oferta. No fator trabalho, cada espécie de trabalho tem seu preço de
oferta, dependendo das despesas passadas com educação etc. Variações na quantidade
produzida dependem de mudanças nas quantidades proporcionais dos diversos fatores
de produção. Marshall enuncia o “princípio de substituição” em que a escolha de com-
binações mais apropriadas dos fatores ocorre no ponto em que a somatória dos preços
de oferta dos fatores individuais é menor do que a de qualquer outra combinação.
Enuncia-se agora o equilíbrio de oferta e demanda na hipótese de que cada um age
por si, e seu conhecimento do que os outros estão fazendo supõe-se ser geralmente
suficiente para evitar que ele aceite um preço menor ou pague um preço maior do que os
dos outros. Assume-se a veracidade da proposição anterior para todo tipo de artigo
elaborado, bem como na determinação de preços de fatores produtivos, preços
envolvidos na contratação de mão de obra e o preço de empréstimo de capital, isto é,
juros. Há em cada mercado e para todos eles um único preço em determinado instante
do tempo.
Antes da análise do equilíbrio, Marshall define o “preço de procura” como o preço
ao qual determinada quantidade de mercadoria pode encontrar compradores em certo
período. A curva de demanda, relacionando preços de demanda e quantidades
demandadas, supõe ser negativamente inclinada: os preços de procura são menores para
cada incremento na quantidade demandada. Marshall trabalha com a hipótese ceteris
paribus :
“Deve-se supor que as circunstâncias gerais do mercado permanecem
inalteradas durante esse período, que não há, por exemplo, alteração na moda ou

241
no gosto, novo substituto que possa influir na procura, novo invento que perturbe
a oferta.” (A. Marshall, Princípios de economia)
Definido o preço de demanda, o próximo passo de Marshall na análise do equilíbrio
de mercado consiste em determinar as condições de oferta de acordo com a duração do
período. O tamanho do período é importante já que parte do capital é fixa no curto prazo
e tem crescimento lento com o tempo, só sendo flexível em longo prazo. O estudo das
condições da oferta requer também que se trabalhe com a noção de “firma represen-
tativa”: uma empresa típica cujas economias de produção internas e externas dependem
do volume total de produção da mercadoria que ela fabrica.
O preço normal de oferta é igual à soma das despesas normais de produção, em que
se inclui também o ganho bruto da direção do negócio. A Figura 9.4 mostra no eixo x as
quantidades de uma mercadoria. Os preços de oferta estão registrados ao longo de y. As
curvas de oferta de cada fator de produção aparecem próximas do eixo x. Elas são
positivamente inclinadas porque as quantidades ofertadas respondem diretamente ao
incremento dos preços de oferta dos fatores. A curva de oferta do bem final é a soma
vertical dos preços dos fatores. Dadas as quantidades OM do bem, p é o preço de oferta
do bem e pa o preço de oferta necessário para disponibilizar o insumo a na quantidade
adequada, dadas as combinações ótimas dos fatores. A curva de oferta é, em geral,
positivamente inclinada, mas para Marshall ela pode ser em alguns trechos
negativamente inclinada.

Figura 9.4 Gráfico com a curva de oferta do bem final e oferta dos fatores (à direita,
desenho original de Marshall em seu livro).

Na condição de equilíbrio, o preço de procura iguala-se ao preço de oferta. Nessa


condição, há a quantidade associada de equilíbrio. Se o preço de procura for maior que o
de oferta, a quantidade transacionada crescerá, caso contrário ela é decrescente com o
tempo. A Figura 9.5 representa o equilíbrio estável quando as curvas de oferta SS e
demanda DD apresentam inclinações características: sempre que a quantidade estiver
abaixo do equilíbrio, o preço de procura será maior que o de oferta e vice-versa.
Na Figura 9.5, se o preço de demanda é maior do que o de oferta, isso significa que
a produção é excepcionalmente lucrativa, atraindo novos ofertantes que deslocam a
quantidade ao longo de x para a direita. Se o preço de oferta é maior que o de demanda,
o excesso de oferta medido pela distância vertical entre as curvas desloca as quantidades
para a esquerda à medida que os ofertantes que não conseguiram colocar as mercadorias

242
se retiram do mercado. Assim, temos um processo de ajuste em direção ao equilíbrio por
variações na quantidade ofertada.32
O formato da curva de demanda, com sua peculiar inclinação negativa, é assegurado
pela maximização da utilidade individual. Há exceções, como os chamados “bens de
Giffen”, não contempladas na análise de Marshall, porém, tais exceções foram bem
expressas na equação de Slutsky. Marshall tinha uma compreensão clara dos chamados
“efeito renda” e “efeito substituição”, mas não formulou analiticamente a questão e não
chegou a contemplar o caso de bens inferiores a la Giffen, cujo efeito renda predomina
sobre o efeito substituição, criando assim uma exceção à lei da demanda, com curva de
demanda positivamente inclinada em certo trecho.

Figura 9.5 Gráfico com o equilíbrio estável entre oferta e demanda (à direita, desenho
original de Marshall em seu livro).

Mais ricas foram as discussões de Marshall sobre o formato das curvas de oferta.
Vimos que as curvas de ofertas dos bens dependem das respectivas curvas de oferta dos
fatores individuais. No curto prazo, com alguns dos fatores fixos, atua a lei dos
rendimentos decrescentes na maioria dos casos. Isso torna as funções de ofertas da
maioria dos fatores positivamente inclinadas e, por composição, a própria curva de oferta
do bem final é também de inclinação ascendente. No caso de um fator que obedeça a uma
lei de rendimentos crescentes no trecho em questão, sua curva de oferta seria
negativamente inclinada. Se predomina esse tipo de inclinação, a própria curva do bem
em questão pode ficar negativamente inclinada. Se nesse trecho ocorre o cruzamento
com a demanda, o equilíbrio que se estabelece é do tipo instável.
No longo prazo, a análise é diferente. Todos os insumos são variáveis e o ponto
relevante de equilíbrio que define as curvas de oferta está na curva de custo médio de
longo prazo. O equilíbrio ocorre no ponto mínimo dessa curva, que coincide também com
a curva de custo marginal. O preço de oferta é estabelecido nessa curva e não depende da
quantidade ofertada, pois, se essa quantidade viesse a aumentar, na curva de custo médio
de longo prazo com formato de “u” aumentariam os preços de equilíbrio que atrairiam
novas firmas ao mercado, resultando em nova curva de custo médio mais à direita, de
modo que, deslocando-se as curvas, o novo ponto mínimo dela estaria exatamente na
vertical da nova quantidade e na mesma linha horizontal da situação anterior,
restabelecendo o preço de oferta anterior. Uma explicação mais completa pode ser
encontrada em qualquer livro-texto introdutório de microeconomia e não se pretende
aqui alongar nesse ponto.

32
Veremos no Capítulo 10 que o modelo de convergência ao equilíbrio de Léon Walras trabalha
com ajuste via preços.

243
Com tais considerações teóricas, Marshall pode criar uma tipologia de curvas de
oferta. No curtíssimo prazo, que ele denomina de período de mercado, o estoque da
mercadoria é rigorosamente fixo. Como no mercado de peixe não refrigerado e não
salgado que deve ser vendido até o final do dia a qualquer preço. Ou seja, nesse caso a
curva de oferta é vertical e o preço só depende da demanda como na Figura 9.6.

Figura 9.6 Equilíbrio no curto prazo: o preço só depende das curvas de demanda.

No longo prazo, a curva de oferta é horizontal pelas alegações feitas anteriormente


e sua posição corresponde ao custo de produção associado (Figura 9.7). Então, no longo
prazo a demanda é irrelevante na determinação do preço e ele é em última análise
determinado inteiramente ao sabor da oferta, ou seja, só depende dos custos de
produção. Em uma gradação contínua, quanto maior o prazo, maior a importância do
custo de produção, e quanto menor esse prazo maior o papel representado pela demanda.
Marshall cunha a famosa analogia com a tesoura para explicar como o valor depende do
tempo considerado. Em última análise, diz ele, querer saber quem de fato determina os
preços, se é a oferta como nos clássicos ou a demanda como em Jevons, é uma busca
inútil, pois ambos os fatores concorrem na determinação dos preços, assim como não se
pode dizer qual das duas lâminas de uma tesoura realmente corta o papel. No curto
prazo, o fundamento do valor está na demanda, como em Jevons, e no longo prazo nos
custos de produção, como nos clássicos.
Uma das maiores contribuições teóricas de Marshall foi a introdução do fator tempo
na análise do valor e, de resto, em todo o seu raciocínio econômico, como a separação
entre curvas de curto e de longo prazo aplicadas em diversos campos da análise
econômica. O tempo também tem o efeito de alterar os dados do problema, as posições
das curvas e os pressupostos da análise ceteris paribus. Diz Marshall:
“Em verdade as tabelas de procura e da oferta, na prática, não permanecem
inalteradas longo tempo, mas são constantemente alteradas e cada variação nelas
altera a quantidade de equilíbrio e o preço de equilíbrio, e assim desloca os
centros em torno dos quais a quantidade e o preço tendem a oscilar.” (A.
Marshall, Princípios de economia)

244
Figura 9.7 Equilíbrio no longo prazo: o preço só depende das curvas de oferta.

As importantes contribuições de Marshall não se encontram apenas nos Princípios


de economia. Em economia monetária, por exemplo, na qual ele foi um dos que mais
contribuíram para a compreensão do papel da moeda, destacam-se os escritos reunidos
nos Artigos oficiais, e em Dinheiro, crédito e comércio. Aí está a essência de sua teoria
monetária. Marshall examina em detalhes a equação de Cambridge, versão da teoria
quantitativa da moeda, e explica o ciclo de crédito por meio de um desequilíbrio entre
taxas de juros reais e monetárias. Na hipótese de uma função de procura estável de
moeda, só dependendo da renda ou da riqueza média, os preços guardariam
correspondência direta com mudanças no volume de moeda. No entanto, ele reconhece
que variações em outros fatores como nível de atividade econômica e deslocamentos na
demanda de moeda podem dominar a relação em períodos de crise. Marshall explica a
corrente causal pelo qual, nos modernos sistemas de crédito, uma oferta adicional de
moeda influencia os preços. Também analisa a parte desempenhada pela taxa de
desconto. Em suma, Marshall foi grande expoente na evolução da teoria monetária. Seu
sucessor em Cambridge, Pigou, tratou de formalizar a abordagem monetária de Marshall
e Keynes a reelaborou em seu Um tratado sobre reforma monetária. De fato, Keynes foi
um admirador da teoria monetária de Marshall.
Outras contribuições de Marshall em seus escritos de teoria monetária foram a
proposta da teoria da paridade do poder de compra na análise do comércio internacional,
como determinante da taxa de câmbio entre países com moedas inconversíveis entre si,
e a proposta de papel-moeda lastreado em ouro e prata. Em teoria para lidar com
inflação, destaca-se sua contribuição na elaboração dos números-índices e na proposta
de um indexador para contratos de longo prazo.
Em outros campos da economia, Marshall também deixou sua marca. Ele é pioneiro
na teoria do capital humano e apresenta uma teoria do salário bastante peculiar.
Reconhecendo que diversas contribuições de Marshall não serão reportadas neste
espaço, vejamos, para concluir o capítulo, algo de sua teoria de salários. Marshall não
aderiu integralmente à teoria dos salários como sendo determinados pela produtividade
marginal do trabalho. Essa teoria, para ele, não explica tudo, não era útil para entender
a questão da pobreza. Em troca, ele propõe a teoria do exército dos desempregados como
uma das causas principais dos baixos salários. No entanto, os salários poderiam crescer
se o crescimento da economia e a taxa de mudança tecnológica e organizacional
trouxesse, de fato, benefícios aos trabalhadores. Ou seja, os trabalhadores não estão mais
condenados à miséria como um fato natural. Contudo, a teoria da produtividade, quando
abordada de maneira estática, é falha na explicação dos salários porque o preço do

245
trabalho depende do preço do produto (para o cálculo do valor da produtividade
marginal), caindo-se então numa circularidade não muito esclarecedora: no longo prazo,
o próprio salário é determinante do preço do produto. Na avaliação do professor de
Cambridge, é melhor entender os salários a partir do papel da concorrência e do exército
de desempregados. Nem o instrumental de oferta e demanda é totalmente eficaz na
explicação dos salários: no mercado de bens, oferta e demanda têm a mesma força; já no
mercado de trabalho, o poder tende a estar com o patrão. Assim, a solução para os
salários fica muitas vezes fora do campo econômico com a ação de sindicatos e a
intervenção do governo. Para atenuar os conflitos trabalhistas, Marshall defende salá-
rios-mínimos.
Em suma, Marshall procurou desenvolver a economia para ajudar o homem a
libertar-se dos sofrimentos da pobreza e “das influências entorpecentes do labor
excessivamente mecânico, de modo que possa levar uma vida civilizada”.
Como poucos na história do pensamento econômico, ele pôde aliar excelente
formação matemática a uma sólida bagagem filosófica e humanística, deixando para
gerações mais novas de economistas a mensagem: “Não será provavelmente um bom
economista quem não seja nada mais do que isso.”

246
Questões

1. Para Jevons, a magnitude total da sensação de prazer ou dor depende de algumas


variáveis. Quais são? Explique cada uma delas e o modo como afetam essa sensação.
2. Comente a relação de Jevons com o hedonismo de J. Bentham.
3. É correto afirmar que, para Jevons, a utilidade representa uma qualidade intrínseca
dos bens? Por quê?
4. Represente graficamente, à maneira de Jevons, a utilidade total e o grau final de
utilidade.
5. Na teoria de Jevons, como é feita a distribuição ótima de um bem passível de usos
diferentes? Demonstre o resultado.
6. Na teoria da troca simples, Jevons conclui que “a proporção da troca de quaisquer
bens será a proporção inversa dos graus de utilidade dos bens que estão disponíveis
para consumo depois da realização das trocas”. Como Jevons demonstra esse
resultado?
7. Observe a figura abaixo, idêntica à que Jevons apresenta em seu livro:

Usando a terminologia de Jevons, explique o que está representado em cada eixo x


e y, o significado de cada “canaleta” vertical, por que as duas primeiras têm a base
superior aberta e a lei de consumo subjacente ao gráfico.
8. Como Marshall conceitua a economia e qual o conceito de riqueza desenvolvido por
ele?
9. Como Marshall justifica o emprego da hipótese metodológica do ceteris paribus na
análise econômica?
10. Identifique as principais filiações intelectuais de Marshall em filosofia e teoria
econômica.
11. Marshall acredita que no estudo de questões econômicas deve-se separar metodolo-
gicamente análise de exposição de ideias. Em que aspecto a matemática teria um
maior papel? O que para ele é mais importante em teoria: a abstração ou a solução
de problemas econômicos concretos?
12. Descreva o ambiente inglês em que Marshall se formou e seus ideais sociais e huma-
nos.
13. Liste as principais contribuições de Marshall em análise econômica.
14. De que forma Marshall acreditou ter reconciliado a teoria do valor clássica com o
marginalismo? Comente a analogia da tesoura utilizada por ele.

247
15. Marshall aderiu totalmente à teoria do salário determinado pelo valor da
produtividade marginal? Se não, comente mais sobre a interpretação marshalliana
da questão dos salários.
16. Por que Marshall não aceita a hipótese do homo economicus ?
17. Explique o significado da expressão natura non facit saltum no contexto das ideias
de Marshall.
18. Por que para Marshall a economia é uma ciência mais quantitativa do que as demais
ciências sociais? De que modo o teórico poderia medir a força dos motivos que
comandam as ações dos agentes econômicos?
19. Se os indivíduos são diferentes entre si, como fica a resposta da questão anterior?
20. Explique o conceito de normal em Marshall.
21. Explique o conceito de preço de demanda em Marshall.
22. No argumento de Marshall, como a teoria econômica pode focalizar o problema de
maximização individual de utilidade e ao mesmo tempo não ser adepta do hedonis-
mo moral?
23. O que é o preço normal de oferta na definição de Marshall?
24. Explique como se dá o processo de equilibração entre oferta e demanda no modelo
de Marshall.
25. Marshall tenta reconciliar a teoria do valor clássica com a teoria do valor apregoada
pelos subjetivistas. Demonstre graficamente como o valor é determinado na teoria
dele. Para tanto pede-se que sejam observados alguns pontos: desenhar dois
gráficos, um para o curto prazo e outro para o longo prazo. Em cada qual desenhar
curvas de preço de oferta e preço de demanda, explicando o significado de cada curva
e o porquê de seus formatos e inclinações. Mostrar por que a oferta ou a demanda
não podem determinar, simultaneamente em ambas as situações de curto e longo
prazo, por si mesmas o valor do preço de equilíbrio.

248
Leitura Adicional

Leitura Primária

JEVONS, William S. A teoria da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

MARSHALL, Alfred. Princípios de economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

Leitura Secundária

BLACK, R. D. C. W. S. Jevons and the marginal utility theory. History of Political


Economy, v. 4, 2, 1972.

COATS, A. W. Economics and psychology: the death and resurrection of a research


programme. In: LATSIS, S. J. Method and appraisal in economics. Cambridge:
Cambridge University Press, 1976.

CORRY, B. Marshall, Alfred. In: International Encyclopedia of the Social Sciences. D. L.


Sills (Ed.). New York: Macmillan/Free Press, v. 10, 1968.

HENNINGS, K.; SAMUELS, W. J. (Ed.). Neoclassical economic theory, 1870 to 1930.


Boston: Kluwer Academic, 1990.

HOWEY, R. S. The rise of the marginal utility school. Lawrence: University of Kansas
Press, 1960.

HUTCHISON, T. W. A review of economic doctrines 1870-1929. Westport: Greenwood


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250
10
Léon Walras e a
Tradição do Equilíbrio Geral

ORIGEM DAS IDEIAS DE WALRAS


Marie-Ésprit-Léon Walras (1834-1910) é um nome de importância fundamental no
desenvolvimento da microeconomia. As opiniões a respeito dele são sempre exaltadas.
Schumpeter considera-o o maior dentre os economistas em matéria de teoria. O papel
proeminente que os historiadores atuais atribuem a Walras não deixa de ser uma ironia,
já que em sua época ele foi pouco compreendido e aceito. Originalmente publicado em
francês em duas partes, em 1874 e 1877, o seu principal trabalho em teoria econômica,
os Elementos de economia política pura, permaneceu desconhecido na França por quase
25 anos após a publicação. Walras teve pouco reconhecimento profissional nesse país.
Só em meados do século XX os franceses mudaram de atitude radicalmente. Em vida,
Walras não obteve emprego acadêmico em seu país. Antes de firmar-se como economis-
ta, ele tentou diversos trabalhos. De início, estudou engenharia de minas. Contudo, não
gostou da escola. Depois, como escritor, publicou em 1858 a novela Francis Sauveur, um
romance panfletário sob influência da revolução de 1848. O livro não foi um sucesso. Em
seguida, trabalhou como jornalista, empregado do ministério das linhas de trem do
nordeste; também foi diretor de um banco popular para cooperativas de produtores e,
por fim, empregou-se num banco privado em Paris. Ainda tentou a carreira acadêmica
na escola politécnica, mas foi recusado. Só se firmou como professor fora de seu país, em
Lausanne, Suíça.
Também fora da França a recepção ao trabalho de Walras foi fria e até mesmo hostil.
Os “Elementos” só foram traduzidos para o inglês em 1954, por William Jaffé. As relações
entre Walras e Jevons, Edgeworth, Wicksteed e Menger não eram muito cordiais.
Marshall, nos Princípios de economia, cita Walras apenas três vezes. Walras foi mais
bem acolhido entre os italianos Maffeo Pantaleoni, Enrico Barone e Vilfredo Pareto.
O tratamento bastante matemático presente em sua obra dificultou a compreensão.
Os críticos consideravam o texto muito abstrato e afastado da vida cotidiana. O
historicismo na Alemanha havia criado uma barreira contrária à aceitação de Walras. Na
Áustria, Menger considerava inadequado tratar matematicamente problemas
econômicos como propõe Walras. Na Inglaterra, a cena acadêmica seria dominada, anos
depois, por Alfred Marshall, que remetia as demonstrações matemáticas a notas de
rodapé dizendo:
“O lugar correto da matemática em um tratado de economia é no pano de
fundo.” (A. Marshall, Princípios da economia)
Mesmos os italianos, que melhor acolheram Walras, diziam que os “Elementos”
eram...
“Uma tentativa de resolver o problema de habitação construindo castelos no
ar.” (Apud. W. Jaffé, Léon Walras’s role in the marginal revolution)
Também diziam tratar-se de uma idealização equivocada do laissez-faire.

251
A grande popularização da teoria do equilíbrio geral dos mercados, a ideia-chave de
Walras, só viria tempos depois com o trabalho do reputado economista sueco Gustav
Cassel (1866-1945). No entanto, por muito tempo seria atribuído apenas a Cassel o
mérito da apresentação original da teoria, permanecendo Walras desconhecido.
As principais influências exercidas na mente de Walras vieram de autores franceses,
notadamente Cournot e o pai Antoine-Auguste Walras que estudou com Cournot na
mesma turma, na École Normale Supérieure. Diferentemente de Cournot, entretanto, A.
Walras não tinha formação matemática, tendo-se dedicado mais à filosofia e às
humanidades. Na primeira parte dos “Elementos”, de 1874, Léon Walras credita a origem
de suas ideias aos autores Antonio Genovesi, Nassau Senior, Étienne de Condillac e J. B.
Say. Na edição de 1877, a segunda parte dos “Elementos”, chama atenção sobre Dupuit.
Cournot ensinou a Walras o emprego da matemática na solução de problemas
econômicos. A noção de equilíbrio, os conceitos de oferta e demanda e a ideia de merca-
dos relacionados interdependentes também foram herança de Cournot. No entanto, este
não se mostrou muito entusiasmado com o livro de Walras, interpretando-o como uma
exaltação da liberdade de mercados e da concorrência desenfreada. Isso se deriva desta
passagem encontrada numa correspondência pessoal:
“Eu tenho um grande medo de que suas curvas de utilidade conduzam
somente a um laissez-faire puro, isto é, na economia doméstica a uma terra
desnuda de suas florestas, e na economia internacional à subjugação dos esforços
comuns das pessoas a uma direção privilegiada em linha com a teoria de Darwin.”
(Apud. W. Jaffé, op. cit.)
Walras formou sua visão básica do que deveria ser a boa ciência econômica em seus
vinte e tantos anos. Na juventude, já se familiarizara com as ideias de Cournot. Também
nessa época o pensamento de seu pai, Auguste, marcara sua concepção da natureza dos
problemas econômicos.
Auguste Walras foi um administrador educacional que escreveu sobre economia,
muito embora seu trabalho tenha tido pouca penetração nos meios acadêmicos.
Seguindo as trilhas deixadas pelo pensamento de John Locke, colocou a propriedade
privada como princípio supremo e procurou justificá-la a partir da discussão do valor
econômico. Ele achava que o economista poderia lançar mais luz no conceito de
propriedade do que o jurista. O valor é representado pela escassez dos bens em relação
aos desejos humanos, que Auguste denomina de rareté, termo depois empregado pelo
filho. Léon Walras adotou a palavra rareté do pai e usou-a no sentido de utilidade
marginal, mas Auguste não tinha a interpretação de Léon em mente. Auguste buscou um
critério para dizer se dado bem forma ou não uma parte da riqueza do país. Para isso
desenvolveu o conceito de rareté, e não para investigar preços relativos. Tal conceito era,
para ele, a razão entre a quantidade do bem disponível e o número de possíveis consumi-
dores, cada um usando uma unidade do bem. É o número médio de bens por consumidor,
índice que também indica a fração da população que pode ter satisfeitos seus desejos por
um bem específico. Por exemplo, 100 unidades de um bem são oferecidas a 100
consumidores o índice de rareté é 1: 100% da população tem seu desejo satisfeito. Se 50
bens são oferecidos aos mesmos consumidores, o índice de rareté é 0,5, a indicar que
apenas a metade da população tem seu desejo por uma unidade do bem específico
satisfeito. Vemos, portanto, que o conceito de rareté em Auguste não diz respeito a
trabalho e nem a utilidade.
Léon Walras seguiu o pai sendo também um reformador social. Suas ideias sociais
tinham afinidades com as de J. S. Mill, H. George e os fabianos. Ele clamava pela nacio-
nalização das terras, na qual o Estado deveria comprá-las de seus proprietários. As terras
seriam valorizadas com o progresso da sociedade e o Estado seria então ressarcido de
seus gastos em adquiri-las. A renda da terra substituiria os pagamentos de impostos.

252
Walras defendeu a criação de cooperativas de produtores. Ele era a favor de um
moderado reformismo socioeconômico, misturando liberalismo com intervenção do
Estado. Considerava a si mesmo um “socialista científico”. Dentre as medidas interven-
cionistas que defendia, consta também a nacionalização dos monopólios naturais, a
intervenção das autoridades monetárias para estabilizar os preços e o controle do merca-
do de capitais.
Ninguém antes de Léon Walras havia construído um modelo teórico e um método
analítico tão vasto e versátil. Não se conhece outro autor, antes dele, que tenha dado uma
explicação igualmente completa sobre a noção de equilíbrio de mercado, mostrando
como as curvas de oferta e demanda explicam a determinação dos preços de equilíbrio e
como se dá a dinâmica dos preços em torno do ponto de equilíbrio. Mesmo o modelo de
troca simples de Walras é mais satisfatório que o de Jevons. Entretanto, não somente
aqui seu trabalho é tido como superior ao do inglês. Walras desenvolveu um sistema
algébrico na explicação da estrutura do equilíbrio geral levando em conta os entrelaça-
mentos entre todos os mercados de uma economia.
A noção de interdependência dos mercados já havia sido aventada antes de Walras.
No século XVIII, o Quadro econômico de François Quesnay contém o cerne da ideia de
equilíbrio geral. Cournot tinha clara consciência do problema e mesmo Jevons chegou a
discutir sua importância na compreensão da economia real. Contudo, tais autores não
foram além de suas intuições iniciais e deixaram de sistematizar um sistema algébrico
descritivo do processo. Cournot, no entanto, sabia perfeitamente que sua análise algébri-
ca e gráfica era parcial, tendo uma concepção clara da interdependência geral de todos
os mercados, contudo, ele pensava que seria impossível explicar analiticamente tais
relações globais, como se vê nesta passagem:
“Na realidade, o sistema econômico é um conjunto no qual todas as partes são
interdependentes e influem umas sobre as outras. O aumento da renda dos
produtores da mercadoria A influenciará a procura das mercadorias B, C etc., e
sobre a renda dos produtores destas mercadorias, o que novamente, por ação
recíproca, provocaria uma modificação na procura da mercadoria A. Parece,
portanto, que na solução completa e rigorosa de problemas relativos a partes do
sistema econômico não se pode deixar de considerar o sistema em seu conjunto.
Mas isso ultrapassaria as forças da análise matemática e dos nossos métodos
práticos de cálculo, mesmo que todos os valores das constantes pudessem ser
numericamente assinalados.” (Apud. E. Schneider, Teoria econômica)
Cournot, embora tenha avançado na exploração de posições particulares de
equilíbrio em mercados separados de outros mercados, sabia que sua análise era
incompleta em não considerar a interdependência entre mercados e a compatibilidade
entre posições de equilíbrio particulares. Cournot, entretanto, não estendeu sua análise
nessa direção porque tinha dúvidas quanto à possibilidade de resolver-se o problema do
equilíbrio geral. É que ele pensava o equilíbrio geral como um problema aritmético, em
que se deveriam atribuir valores numéricos às variáveis.
Somente Walras desenvolveu a ideia de equilíbrio geral expressa na forma de um
sistema de equações simultâneas que ligariam os vários mercados da economia. É
verdade que as relações entre diferentes mercados foram aventadas por teóricos
anteriores, mas apenas ele manipulou e construiu uma estrutura teórica geral capaz de
dar conta de uma multiplicidade de relações ligando um mercado a outro. Para tanto,
diferentemente das preocupações de Cournot, não procurou medir nada. Procurou tão
somente a construção de um sistema logicamente consistente, de validade teórica ou
formal. Tal tarefa foi possível realizar sob hipóteses restritivas: ela requer concorrência,
liberdade de entrada, mobilidade de fatores e flexibilidade de preços.

253
Walras também se filia à corrente de autores que procurou aproximar a economia
científica das ciências físicas. A analogia com a física não era inteiramente usual no início
dos anos 1870. Ela provavelmente foi sugerida por seu pai. Cournot tornou-se um crítico
do uso dessa analogia e do uso da matemática em economia. Em 1909, mesmo Walras
muda sua analogia; fala agora na economia como ciência psicológico-matemática.
Mesmo não muito treinado em matemática – nessa disciplina tinha nível interme-
diário –, Walras adotou o método matemático com fervor. No entanto, ele não confundia
boa apresentação matemática com boa teoria. Veja, por exemplo, a resposta que fornece
ao artigo do grande economista italiano Enrico Barone:
“Aqui está a formulação (matemática) da produtividade marginal, mas o
fundamento econômico é ruim.” (Apud. W. Jaffé, op. cit.)
Walras, no início de seus “Elementos”, distingue a economia pura da economia aplicada
e da economia social. A primeira é uma ciência físico-natural neutra, trata da teoria da
riqueza social, o que para ele concentra-se na teoria dos preços no mercado em concorrência
perfeita. Tal ciência procura demonstrar matematicamente as condições de equilíbrio na
economia de mercado. A economia aplicada é um conjunto de estudos de casos no qual são
apontadas, em cada um deles, as condições técnicas e econômicas mais favoráveis à
produção da riqueza social. Por último, a economia social envolve julgamentos éticos sobre
que grupos serão favorecidos pelas decisões políticas. Na terminologia própria de Walras,
fala-se em ciência natural pura, que só depende de fatos naturais (o conteúdo mesmo de
seus “Elementos”), julgada pela sua verdade; depois em arte da economia, que observa,
expõe e explica (é a economia aplicada), e tem como critério a sua utilidade. Fala-se ainda
em ciência moral ou histórica, que aconselha, prescreve e dirige (é a economia social), e é
julgada por sua justiça.
A teoria pura em Walras é análoga às ciências físicas, ela trata de relacionar coisas; lida
com fatos naturais, cujo teatro é a natureza, e não com os fatos humanitários, que dizem
respeito aos homens. A estratégia walrasiana de demarcação do conhecimento econômico
procura isolar a economia da ciência social. Os fatos humanitários são de dois tipos: os que
“[...] resultam da vontade e da atividade do homem exercendo-se em relação às
forças naturais...” (L. Walras, Compêndio dos elementos de economia política
pura)
e são reportados pela ciência aplicada, e os que
“[...] resultam da vontade e da atividade do homem, exercendo-se em relação à
vontade e à atividade de outros homens.” (ibidem)
E dizem respeito à ciência social. Já o núcleo da teoria econômica trata de fatos naturais
sobre a relação entre coisas.
Há então a separação metodológica que faz Walras entre economia como teoria
stricto sensu e seus ramos aplicado e social. Enquanto ciência pura, cabe à economia
analisar o fenômeno da troca e a proporção em que os bens são trocados. Para ela, os
bens adquirem valor de troca no mercado como fato natural independente da vontade de
compradores e vendedores. A naturalidade do valor de troca, diz Walras, está presente
em sua origem, em sua manifestação e em sua maneira de ser. As coisas adquirem valor
não pela vontade do homem, mas por serem úteis e raras, isto é, limitadas em quanti-
dade.
Dadas certas circunstâncias sobre o aprovisionamento e o consumo dos bens, o
valor de troca resulta naturalmente delas. Se 5 hectolitros de trigo são, no mercado,
trocados por 600 gramas de prata, esta relação tem caráter eminentemente matemático
e pode ser cientificamente expressa por meio da equação 5vb = 600.va ou vb = 120.va, onde
va é o valor de troca de 1 grama de prata e vb o valor de troca de 1 hectolitro de trigo.

254
Walras afirma que o uso do método matemático permite abstrair dos tipos reais os tipos
ideais definidos por ele, e com base nessas definições construir a priori todos os
andaimes do conhecimento em teoremas e demonstrações. O valor de troca é...
“A propriedade que têm certas coisas de não serem obtidas nem cedidas
gratuitamente, mas de serem compradas e vendidas, recebidas e dadas em certas
proporções de quantidade, contra outras coisas.” (ibidem)
A relação numérica entre dois desses valores, estabelecida na troca, traduz uma
situação presente. Hoje e agora é isto, nem mais nem menos. Para Walras, um valor
natural não pode ser substituído por outro ao bel-prazer. Só podemos modificá-lo agindo
sobre seus fundamentos, isto é, sobre suas causas naturais.

O EQUILÍBRIO NA TROCA SIMPLES


Na seção II dos Elementos, Walras estuda a troca de duas mercadorias entre si. A
investigação precede a análise do equilíbrio geral. Nessa seção estão contidos os
fundamentos de sua teoria de oferta e demanda e o significado dos preços de equilíbrio.
Essa é uma parte importante do livro de Walras porque evidencia qual é exatamente o
papel que dá à noção de rareté. No capítulo inicial da seção, o capítulo 5 da obra, Walras
apresenta o mecanismo de equilibração dos mercados. Ele define mercado generica-
mente como “o lugar onde se trocam as mercadorias” e diz sobre o valor de troca que ele
“produz-se no mercado e é ao mercado que se deve ir para estudá-lo”. No entanto, de que
modo exatamente o valor de troca é produzido no mercado? Responde o professor de
Lausanne:
“O valor de troca abandonado a si mesmo produz-se naturalmente no
mercado, sob o império da concorrência. Como compradores, os permutadores
aumentam os lances, como vendedores, oferecem em liquidação, e seu concurso
produz assim certo valor de troca das mercadorias, ora ascendente, ora
descendente, ora estacionário. Segundo essa concorrência funcione de forma
melhor ou pior, o valor de troca produz-se de maneira mais ou menos rigorosa.”
(L. Walras, Compêndio dos elementos de economia política pura)
A ênfase no estudo das condições mais rigorosas em que o valor é produzido no
mercado leva Walras a tratar apenas do mercado hipotético
“[...] perfeitamente organizado em relação à concorrência, como em mecânica
pura primeiro supõem-se máquinas sem atrito.” (ibidem)
Walras toma emprestado de Cournot as funções e as curvas de demanda, mas
apenas neste autor tais funções são um dado empírico, enquanto em Walras há a
preocupação de também derivá-las da função utilidade, embora, como veremos adiante,
a noção de utilidade não seja essencial para ele. Walras define então, para o mercado,
oferta e demanda efetivas. Em seguida, investiga como os excessos de oferta e de
demanda provocam o movimento dos preços na direção do equilíbrio, em que procura e
oferta igualam-se. Nesse capítulo, só há uma narrativa genérica do processo, depois, nos
capítulos posteriores dessa mesma seção, ele vai desenvolver uma demonstração algébri-
ca rigorosa.
Para tanto, analisa a troca de duas mercadorias A e B presentes num mercado no
qual convivem pessoas que possuem a mercadoria A, e que estão dispostas a dar uma
parte dela para obter a mercadoria B, e pessoas que têm B e que estão dispostas a trocar
parte dela por A. Na teoria da troca de duas mercadorias, uma por outra, Walras deriva
curvas de oferta e demanda, discute seus formatos e o significado do ponto de interseção.
Faz também a distinção entre equilíbrio estável e instável. Só depois introduz a análise

255
da utilidade. Neste tópico, busca revelar a natureza da troca. Já a curva de utilidade é
introduzida depois, em outra parte do livro, para examinar a causa da troca.
Walras imagina que no início do dia há um lance inicial, em conformidade com o
fechamento do mercado no dia anterior, de modo que um agente se dispõe a ceder n
unidades de B contra m unidades de A. Equaciona então m.va = n.vb; logo em seguida
introduz preços, ou relações de trocas, como sendo “iguais às relações inversas das
quantidades de mercadorias trocadas: são os recíprocos uns de outros”. Em termos
simbólicos, pa = va /vb = n/m e pb = vb /va = m/n; se chamarmos pb = , então pa = 1/,
isto é, pa. pb = 1.
O próximo passo foi definir oferta e demanda no modelo de troca simples. Como até
aqui não existe moeda, o agente oferta com o intuito de receber em troca o bem que
almeja adquirir. A oferta é apenas um elemento que sanciona a demanda. Walras define
duas ofertas Oa e Ob e duas demandas Da e Db sob o suposto de que as quantidades
ofertadas resultam das quantidades demandadas no fenômeno da troca in natura de
duas mercadorias uma pela outra. Afirma:
“A demanda deve ser considerada o fato principal e a oferta, um fato acessório.
Não se oferece por oferecer, oferece-se apenas porque não se pode demandar sem
oferecer, a oferta não passa de uma consequência da demanda.” (L. Walras,
Compêndio dos elementos de economia política pura)
Ao preço pa, demanda-se uma quantidade Da e oferta-se a contrapartida Ob = pa. Da.
O outro lado da troca almeja a mercadoria B estabelecendo-se uma relação análoga Oa =
pb. Db ou, já que pa. pb = 1, Db = pa.Oa.
A introdução dessas equações permite a Walras enunciar algebricamente o processo
de equilibração entre oferta e demanda. Seja Da = .Oa, as equações anteriores garantem
que nesse caso também teremos Ob = .Db. Portanto, Ob /Db = Da /Oa =  e conclui Walras
que...
“Sendo dadas duas mercadorias, a relação entre a demanda efetiva de uma e
sua oferta efetiva é igual à relação entre a oferta efetiva da outra e sua demanda
efetiva.” (ibidem)
Conclusões importantes são extraídas desse modelo básico das trocas:
1. Se  = 1, ambos os mercados estão em equilíbrio, no sentido de que Da = Oa e
Db = Ob. Se um mercado está em equilíbrio, o outro necessariamente também
estará.
2. Se  > 1, então Ob > Db e Da > Oa e se  < 1, Oa > Da e Db > Ob. Sempre que
ocorrer um excesso de oferta num dos mercados existirá, ao mesmo tempo,
excesso de demanda no outro mercado e vice-versa.
Walras demonstra que na troca simples os excessos de demanda num mercado
cancelam exatamente os excessos de oferta em outro mercado, de modo que se igualam
as ofertas e demandas globais. A presença de algum excesso de demanda ou de oferta
indica que os sujeitos no mercado não estão maximizando suas satisfações. O processo
de mercado deve prosseguir pela ação dos agentes, o excesso de oferta para eliminar
algum excesso de demanda, até que eles alcancem, por meio da troca, o equilíbrio, isto é,
o ponto de maximização.
Na seção II de seus “Elementos”, Walras desenvolve a teoria da troca de duas merca-
dorias entre si. Na lição VI da seção, veremos como ele determina as curvas de demanda
e oferta efetivas e como ele interpreta o significado da igualdade entre oferta e demanda.
Depois percorrem-se os outros capítulos da mesma seção até a lição X.

256
Walras começa definindo a demanda efetiva como uma relação entre os preços da
mercadoria em questão e a quantidade dela que o indivíduo pedirá a cada nível de preço.
Considerando dois indivíduos na troca simples, um deles possui inicialmente apenas
trigo e quer trocar parte dele por aveia, a posse exclusiva e única do outro indivíduo. Este
último também está disposto a trocar parte de sua mercadoria, almejando diversificar
seu consumo adicionando-lhe trigo. O indivíduo que inicialmente possui somente trigo
guardará dele uma parte e cederá a outra dependendo do preço da aveia em relação ao
trigo e de sua função de demanda de aveia. Se o preço da aveia for nulo (pa = 0), o
indivíduo poderá se dar ao luxo de pedir toda aveia de que necessita sem ter de ceder
nada de trigo. À medida que o preço daquele cereal subir, a demanda efetiva do indivíduo
pelo mesmo sofrerá um declínio. Nessa trajetória, de início a demanda de aveia atinge
quase o ponto de saciedade do consumidor, porém, como o seu preço começa baixo, ele
poderá trocar pouco trigo por grande montante de aveia. Sabemos que a oferta de trigo
se relaciona com a demanda de aveia pela equação Ob = Da. pa. Temos movimentos
contrários em cada um dos dois fatores no segundo membro dessa igualdade. Enquanto
o aumento de pa mais do que compensar a queda na demanda Da a oferta de trigo crescerá
com o aumento do preço da aveia. Em certo ponto, a queda mais pronunciada na
demanda predominará sobre a elevação dos preços, de modo a fazer, daí em diante, a
oferta de trigo reduzir-se até voltar a zero.
Assim, Walras obtém, na troca simples, curvas de oferta em forma de sino (Figura
10.1). As curvas de oferta são obtidas com base nas curvas de demanda do outro bem.
Walras não busca um fundamento da oferta a partir dos custos de produção, já que os
estoques iniciais são dados, e nem baseia suas curvas de demanda na noção de rareté.
Simplesmente diz que elas traduzem as disposições a trocar dos agentes e que isto é
suscetível de determinação rigorosa.
“Todo portador de uma mercadoria qualquer que se dirige ao mercado leva
para aí disposições a leiloar, virtuais ou efetivas, suscetíveis de uma determinação
rigorosa.” (L. Walras, Compêndio dos elementos de economia política pura)

Figura 10.1 Curvas de oferta em forma de sino.

As curvas de demanda são, nesta parte da obra de Walras, meros resultados


empíricos. Trata-se, claramente, de uma curva de planejamento, isto é, o sujeito associa
mentalmente valores demandados a cada nível hipotético de preços. O professor de
Lausanne não esclarece como seriam feitos os levantamentos empíricos para a curva,
evitando problemas práticos. Ele não discute os elementos subjacentes à curva de
demanda negativamente inclinada.
Na linguagem algébrica de Walras, o portador da mercadoria B tem inicialmente qb
e, no fim das trocas, demandou da. Valores iguais são trocados, de modo que da.va = ob.vb.
De B, resta ao indivíduo y = qb – ob = qb – da.va/vb = qb – da.pa; então, dado pa, temos a

257
correspondente demanda da e o estoque final y, em sequência. A função de demanda
associada ao indivíduo 1 é da = fa,1(pa). Walras considera que as curvas de demanda
individuais podem não ser contínuas. Sendo assim, determinar o equilíbrio de mercado,
na troca envolvendo apenas dois agentes, teria o inconveniente da descontinuidade das
curvas. Walras contorna-o optando por um modelo agregativo da troca simples, no qual,
para cada mercadoria, há um grupo de portadores e não um único indivíduo. Em vez das
curvas de demanda individual, trabalha-se agora com demandas totais de mercado, que
seriam contínuas pela “lei dos grandes números”. Walras faz uma soma vertical em que
“todas as ordenadas são adicionadas numa mesma abscissa”. Os preços são por ele
representados na horizontal e o eixo da demanda é desenhado na vertical, dife-
rentemente do que é convencionado nos modernos livros-textos. Quantidades totais são
representadas por letras maiúsculas, de modo que Da = fa,1(pa ) + fa,2(pa ) + fa,3(pa ) +... =
Fa(pa). Como as demandas individuais são avaliadas no mesmo preço pa, podemos
escrever as relações já conhecidas no caso individual para o caso agregado Ob = Da. pa.
A curva de demanda total de A forneceria a oferta total de B, e vice-versa. A um
preço pa, a área do retângulo projetado sob a curva de demanda de A seria igual à
correspondente oferta da mercadoria B fornecida em troca dela. Tal conclusão
geométrica demonstra-se facilmente pelo uso da relação Ob = Da. pa. Se Da = Fa(pa ) e Db
= Fb(pb ), como Oa = Db.. pb = Fb(pb ). pb e pa. pb = 1, temos que Oa = Fb(1/pa ). 1/pa e
analogamente Ob = Fa(1/pb ). 1/pb. Os respectivos preços de equilíbrio estariam na
interseção das curvas Da com Oa e Db com Ob. A Figura 10. 2 retrata esse problema. A
demanda Da é indicada pela curva dada e a demanda Db por dbdb. A oferta Oa é a curva
KLM e a oferta Ob está representada em NPQ.

Figura 10.2 Equilíbrio entre oferta e demanda em dois mercados relacionados (a curva
de demanda total de A fornece a oferta total de B, e vice-versa - é só ver que Qb =
Qa.pa).

Os formatos particulares das curvas de oferta dependem dos formatos das curvas
de demanda da outra mercadoria, mas ambas as curvas de oferta seguem o desenho de
um sino. O mercado em A equilibra-se no ponto A e na mercadoria B o equilíbrio ocorre
no ponto B. Sabemos que o preço que equilibra o mercado em A (Da = Oa) tem um
correspondente preço pb que equilibra o outro mercado em B (Ob = Db), tal que pa.pb = 1.
Nos gráficos anteriores, uma das curvas de oferta cruza a respectiva demanda no
segmento crescente e a outra no trecho decrescente da oferta, o que equivale a dizer que
uma das curvas atinge o máximo depois da intersecção e a outra fá-lo antes.

258
Nota-se que o preço de equilíbrio na troca simples não foi determinado usando-se a
noção de rareté. Há outro aspecto em que a análise de Walras difere e vai além da análise da
troca simples feita por Jevons. Na lição VII dos Elementos, o francês aceita a possibilidade
de equilíbrios múltiplos na troca, como vemos no gráfico abaixo, à esquerda (Figura 10.3).
Nem sempre as curvas de oferta e demanda encontram-se num único ponto. Os dois
gráficos representam uma situação em que há vários pontos de intersecção e outra em
que não existe solução para o problema da troca simples. Jevons não se tinha apercebido
desses casos. Walras demonstrou que o equilíbrio que se estabelece na troca simples
dependerá do formato das curvas de oferta e demanda e do preço em que se começa a
troca. Tal análise é feita na lição VII dos Elementos, na qual Walras também discute, no
caso de equilíbrio múltiplo, a estabilidade de cada um dos três pontos de equilíbrio A, A’
e A”, no gráfico anterior à esquerda. Mostra então que A’ e A” representam equilíbrios
estáveis e que somente em A as forças equilibradoras são divergentes.

Figura 10.3 Mercado com equilíbrio múltiplo e mercado sem solução de equilíbrio.

Essa notável discussão da troca simples é feita por Walras sem utilizar o conceito de
rareté. Apenas na lição VIII, após todo esse arrazoado, é que introduz a discussão das
“curvas de utilidade ou necessidade”, chegando a seu “teorema da utilidade máxima das
mercadorias”. Diz, no começo da lição, que
“Quando um homem troca um objeto por outro é porque o objeto que compra
lhe é mais útil que o objeto que vende e que o motivo determinante da troca
decorre da consideração de nossas necessidades.” (Léon Walras, Compêndio dos
elementos de economia política pura)
Então a troca é movida pelo melhor atendimento das necessidades. Para dar um
“caráter rigoroso e científico” à análise da troca, Walras desenvolve a noção de rareté,
que permite expressar matematicamente tais necessidades. Walras reconhece a
dificuldade em se medir a intensidade da utilidade, embora seu nome esteja
historicamente associado ao enfoque cardinalista da utilidade. Isto não o impede de
lançar a hipótese de que
“Exista um padrão de medida da intensidade das necessidades ou da utilidade
intensiva comum não apenas às unidades similares de uma mesma espécie de
riqueza, mas às unidades diferentes de diversas espécies de riqueza” (idem).
Aceitando a existência de uma medida comum da utilidade, Walras intui que à
medida que o portador da mercadoria consome sucessivamente, em certo tempo, unida-
des adicionais dela, as utilidades derivadas do consumo são seguidamente de intensi-
dades cada vez menores. Ilustra graficamente essa ideia, representando as intensidades
no eixo horizontal r das utilidades intensivas e as quantidades consumidas no eixo
vertical q da extensão das necessidades ou das utilidades extensivas (Figura 10.4).

259
Figura 10.4 Curvas de Walras das utilidades intensivas.

As curvas anteriores representam as utilidades intensivas para cada montante da


mercadoria A, no gráfico à direita, e B, à esquerda. Suponhamos que inicialmente o
indivíduo só possua o estoque qb da mercadoria B. A área 0qbr representa a soma das
“necessidades satisfeitas em extensão e em intensidade por uma quantidade consumida
da mercadoria”. É o que Walras denominou de utilidade efetiva, nada mais do que a
utilidade total derivada do consumo de qb unidades. A curva qr permite determinar,
pela área interior, a utilidade total em função da quantidade consumida de B, para cada
indivíduo. Walras também a expressa algebricamente: u = b(q). A “intensidade da
última necessidade satisfeita por uma quantidade consumida da mercadoria” é a rareté.
Na lição X dos “Elementos”, Walras diz que a rareté é, para dado indivíduo, a derivada
da utilidade em relação à quantidade possuída.
A curva qr é a própria curva de rareté, e o eixo da abscissa pode ser associado ao
eixo da rareté. Em termos algébricos, escreve-se ra = a(q) e rb = b(q), as equações das
raretés das mercadorias A e B, respectivamente.
Um indivíduo resolve abrir mão de ob = qb – y em troca da quantidade da da
mercadoria A. Ou seja, ele guarda apenas y unidades de B e troca o excedente ob contra
da unidades de A. O indivíduo poderá satisfazer a uma soma total de necessidades
representadas pelas superfícies 0yr e 0dar. Essa soma deve ser maior do que a área
0qbr das necessidades inicialmente satisfeitas, senão o indivíduo não teria aceitado a
troca de ob por da aos preços pa. Walras demonstra, por argumentos algébricos e geomé-
tricos, que as intensidades ra e rb das últimas necessidades satisfeitas pelas quantidades
da e y, isto é, as relações entre as raretés após a troca, são iguais ao preço pa,
algebricamente ra = pa. rb. Essa é a condição de maximização da utilidade efetiva para
cada portador: a relação que se estabelece entre as intensidades das últimas necessidades
satisfeitas, ou a razão das raretés, é igual ao preço. Portanto, ao preço pa, se o indivíduo
oferecer uma quantidade de B superior a ob, ultrapassa-se o limite estabelecido pela
equação anterior de tal modo que ra < pa. rb.
A condição do máximo de utilidade de Walras é essencialmente a mesma relação
estabelecida por Jevons no equilíbrio da troca simples. Todavia, esse autor, ao
desenvolver suas curvas de oferta e demanda, dá a esse resultado uma demonstração
mais completa. Quando as curvas de raretés são determinadas e conhecidas, só
precisamos conhecer as quantidades possuídas. Esses dados são os elementos
necessários e suficientes para estabelecer quais serão os preços de equilíbrio. Em cada
um dos dois mercados, só deve haver um único preço para o qual a demanda total efetiva
iguala a oferta total efetiva. Naturalmente, esse preço corresponde a um dos pontos de
equilíbrio estável, dependendo da condição inicial do problema. Mais raramente, o
equilíbrio pode ocorrer no ponto de equilíbrio instável. Tais preços são iguais às relações
entre as raretés, ou “os valores de trocas são proporcionais às raretés”. Estas são a causa

260
do valor de troca. Um “fato absoluto” determina um “fato relativo”. Um elemento
“pessoal e subjetivo” determina um elemento “real e objetivo”, é o que diz Walras. Tais
expressões aparecem na lição X.
É curioso como Walras insiste em identificar nos preços um fato objetivo, muito
embora tenham eles uma causa subjetiva ao dependerem das raretés. Não resta dúvida
de que para Walras as utilidades determinam os preços; em uma passagem dessa mesma
lição ele diz:
“Sendo dadas duas mercadorias no estado de equilíbrio de um mercado, se
todas as coisas permanecerem iguais e a utilidade de uma dessas duas mercado-
rias aumentar ou diminuir para um ou para vários permutadores, o valor dessa
mercadoria em relação ao valor da outra, ou seu preço, aumentará ou diminuirá.”
(Léon Walras, Compêndio dos elementos de economia política pura)
Assim, por que Walras atribui um caráter objetivo aos preços? Mesmo acreditando
que os preços tenham uma base psicológica subjetiva, Walras considera o preço como
sendo “objetivo” porque imputa objetividade ao comportamento expresso na função de
demanda empírica. Expliquemos melhor. No início da lição XI, ele conta-nos que a
equação de demanda individual não passa da equação de equilíbrio que relaciona as
raretés. Uma vez que ra = pa. rb. Walras escreve a(da) = pa. b(y) = pa. b (qb – ob) = pa.
b(qb – dapa). Assim, conhecendo-se as funções de rareté a e b, os preços e as
quantidades envolvidas, isola-se da = fa(pa ). Nesta e na lição anterior, ele diz explicita-
mente que a função da pode ser obtida empiricamente caso as utilidades não sejam
determinadas. O economista de Lausanne parece estar precavendo-se quanto à
possibilidade de que sua noção de utilidade seja meramente um conceito quimérico, sem
contrapartida real, de modo que os resultados de sua análise seriam alcançados
independentemente da validade do referido conceito. De fato, antes da lição VIII toda a
análise do equilíbrio na troca simples parte diretamente das funções de demanda. Poder-
se-ia, de fato, suprimir as lições de VIII a X e as conclusões obtidas na primeira parte da
obra de Walras permaneceriam as mesmas.
Para Walras, a rareté é um conceito análogo à noção de calor na física; é um
construto teórico útil enquanto organizador de ideias, mas sem um estofo real concreto,
objetivamente observado e medido. Não totalmente confiante de seu uso, a análise de
Walras aponta para a estratégia alternativa de obter os preços de equilíbrio diretamente
das curvas de demanda, sem fundamentá-lo subjetivamente na noção de utilidade. Com
isso, o autor desliza sub-repticiamente para a mera observação da demanda.
A análise da troca simples visa tão somente fornecer o fundamento do valor. As
proposições derivadas com base nela devem ser generalizadas numa “teoria da riqueza
social” que se aplicaria ao caso de mais de duas mercadorias e na livre-concorrência, em
matéria de troca e produção.

MODELO DE EQUILÍBRIO GERAL


A análise da troca simples funciona apenas como preâmbulo à análise mais geral de
n mercados inter-relacionados. Walras sempre soube que a oferta e a demanda de um
mercado em particular dependeriam das relações estabelecidas em muitos outros
mercados, e que, portanto, se faria necessária uma análise geral. Tal análise procura
compreender de que forma as escolhas de todos os sujeitos econômicos tornam-se
compatíveis entre si. Temos então uma concepção do sistema econômico que focaliza
uma coleção de agentes que atuam no mercado como consumidores, ofertantes de
serviços produtivos ou empresários. O processo econômico origina-se do encontro de
vários agentes no mercado. Serviços produtivos são transformados em bens que são

261
comprados por outros empresários ou pelos consumidores. Apenas como primeira
aproximação, Walras não considera a poupança e o processo de acumulação de capital
na edição de 1874 de seus “Elementos”. Também inexistem incertezas que induziriam à
retenção de moeda. O sistema é fechado, não afetado por transações externas ou pelo
governo.
Walras trata de uma economia de caráter geral não condicionada por um sistema
social particular. Seu funcionamento independe do quadro institucional. Claramente não
há lugar, no modelo, para a noção de classe social. Só há consumidores, que também
ofertam serviços produtivos, e empresários. Tais grupos de agentes tomam decisões
diferentes. Os primeiros decidem a composição e o nível de consumo, bem como o nível
de poupança. Os empresários, por sua vez, escolhem o nível e a composição da produção
e do investimento; são os agentes que exercem a função de coordenador. Ambos são
proprietários de recursos. A análise de Walras é feita por períodos. No início de um
período, cada agente possui uma quantidade de bens e serviços e tenta alcançar o melhor
resultado da troca. Enquanto consumidores, eles tomam decisões entre consumir e
poupar, de modo que sejam satisfeitas suas preferências intertemporais, e ainda decidem
como gastar sua renda entre vários bens de forma a maximizar a satisfação. Como
empresários, os agentes buscam alcançar o lucro máximo em sua atividade e
determinam, para tanto, os níveis de oferta, levando em conta a renda recebida e o
sacrifício para ofertarem.
A busca do objetivo individual obriga os agentes a trocar coisas no mercado. Os
consumidores oferecem fatores e recebem, em troca, a renda usada a fim de comprar
bens e serviços ou para poupar. A poupança retorna às firmas pela atividade dos
intermediários financeiros. A renda do consumidor depende das quantidades de bens e
serviços que ele vende a outros e dos respectivos preços. A firma usa o estoque de fatores
fixos que possui de início e compra também outros fatores de outras firmas ou dos
consumidores. A venda do produto final possibilita as receitas; subtraindo-se os custos,
temos o lucro das firmas. Parte dele é repartida e parte é investida. Os consumidores
possuem, direta ou indiretamente, todos os fatores. A renda nacional equivale ao poder
de compra dos consumidores. A produção total do sistema é a somatória das produções
líquidas de cada firma e a renda global ganha pelos fatores é o total que lhes é pago por
todas as firmas.
A riqueza social é o conjunto de coisas materiais ou imateriais que são escassas, isto
é, que, por um lado, são úteis e, por outro, não estão disponíveis a não ser em quantidades
limitadas. Para uma coisa ser tida como riqueza, ela deve possuir a capacidade de
satisfazer a alguma necessidade e deve ser possuída em quantidade limitada em relação
a essa necessidade. Portanto, os elementos da riqueza social apresentam três proprie-
dades: são apropriáveis, são objetos de troca e objetos da atividade produtiva. A teoria
econômica pura de Walras é, por definição, a teoria da riqueza social. Nela, procura-se
determinar essencialmente preços e quantidades produzidas e trocadas. A solução do
problema da determinação do equilíbrio geral deve ser precedida por minuciosa
classificação dos elementos que compõem essa riqueza social. Com isso, distinguem-se
preliminarmente as várias funções e os vários tipos de comportamento que ocorrem no
sistema econômico.
Considerando-se tal descrição básica do sistema econômico, o problema central da
teoria de Walras é determinar como as trocas voluntárias entre indivíduos bem-
informados, autointeressados, maximizadores e racionais levarão à organização sistemá-
tica da produção e à distribuição da renda eficiente e mutuamente benéfica. A única
forma de interação social é a que é realizada no mercado por meio de trocas voluntárias.
A concorrência perfeita dita o funcionamento dos mercados. Não existem sindicatos,
cartéis ou qualquer prática intervencionista no mercado.

262
Enquanto no modelo da troca simples não se introduz moeda e preços monetários,
em sua análise do equilíbrio geral Walras elege certa mercadoria como numerário e passa
a preocupar-se com o vetor de preços que permita a qualquer indivíduo maximizar
utilidade, bem como equilibrar os mercados (inexistência de excessos de demanda e
oferta). A análise de Walras confere papel central à teoria dos preços. Preços são
parâmetros com base nos quais as escolhas individuais são feitas, entretanto, não são
independentes das escolhas. Ao se tomarem escolhas que satisfaçam às necessidades
individuais, haverá um único vetor de preços que possibilita ação vantajosa para todos
os indivíduos simultaneamente. Tal vetor permite que, em cada mercado, haja equilíbrio
entre oferta e demanda, que cada agente compre e venda o que planejou e que firmas e
consumidores troquem efetivamente as quantidades de bens que maximizam satisfação
e lucro. A condição de equilíbrio geral determina um conjunto de relações bem
articuladas entre preços e quantidades trocadas de fatores e de bens de consumo, de tal
modo que seja permitida a máxima satisfação para cada agente e que isso se torne
mutuamente compatível com a maximização de outros agentes.
Para obter o resultado do modelo, é necessário conhecer apenas o número de
consumidores, o número de firmas, a dotação inicial de recursos, as preferências dos
consumidores e as técnicas de produção disponíveis. Conhecidos esses elementos, o
comportamento maximizador dos agentes e o mecanismo competitivo conduz a todo o
restante. Assim, determinam-se as quantidades de bens produzidos e trocados, e o vetor
de preços. Na análise da produção, Walras toma emprestado de seu pai a terminologia
que busca separar o capital fixo, ou capital em geral:
“Qualquer bem durável, qualquer espécie de riqueza social que não é
consumida ou apenas é consumida a longo prazo, qualquer utilidade limitada em
quantidade que sobrevive à primeira utilização que se faz dela, em uma palavra,
que serve mais de uma vez: uma casa, um móvel.” (L. Walras, Compêndio dos
elementos de economia política pura)
Do capital circulante ou rendimento:
“Qualquer bem fungível, qualquer espécie de riqueza social que é consumida
imediatamente, qualquer coisa rara que não mais subsiste depois do primeiro
serviço que presta, em suma, que serve apenas uma vez: pão, carne etc.” (ibidem)
Exemplos de rendimentos são matérias-primas, bens intermediários não duráveis
e serviços produtivos oferecidos por capitais em cada período de produção.
O processo de produção utiliza serviços dos capitais fixos e outras formas de rendi-
mento, e não capitais em si mesmos. Terra, trabalho e capital são os fatores de produção
que oferecem os serviços comprados pelo empresário a cada período. No modelo de
Walras, há diferenciação entre mercados de produtos (em que consumidores demandam
produtos ofertados pelas firmas) e mercados dos serviços produtivos (em que os mesmos
consumidores, enquanto proprietários dos recursos produtivos de terra, trabalho e
capital, vendem os serviços produtivos para as firmas e, em troca, recebem pagamentos
que são suas rendas). Na configuração de equilíbrio geral, são alcançadas posições de
equilíbrio para as quais tendem os vários agentes.
Dentro desse esquema analítico, Walras analisa as condições de equilíbrio geral;
primeiro as condições de maximização para cada indivíduo em particular:
“O primeiro problema que temos a resolver consiste em determinar, para cada
consumidor, a oferta dos serviços e a demanda quer dos serviços a título de
serviços consumíveis, quer dos produtos, a preços [...] anunciados ao acaso [que
correspondem ao ponto de máxima utilidade efetiva].” (ibidem)
E, depois, o equilíbrio entre oferta e demanda para todos os mercados da economia.

263
Assim, a análise do equilíbrio geral em Walras requer o atendimento de uma dupla
ordem de condições: a condição subjetiva, analisada em primeiro lugar, que é a
maximização de utilidade de cada agente, e a condição objetiva, que é a compatibilização
das condições de máximo individual com o equilíbrio simultâneo nos mercados. No
primeiro caso, temos, em cada período, m produtos consumidos A, B, C, D..., e n serviços
produtivos relativos ao emprego dos fatores terra, trabalho e capital.33 Os serviços
fornecidos pelo fator terra distribuem-se ao longo de muitos períodos até que o fator
esteja completamente depreciado, simboliza-os, na sequência temporal, por T, T’, T”...,
idem para os serviços do fator trabalho P, P’, P”... e para os serviços do capital K, K’, K”...
Walras constrói funções individuais de rareté para todos os bens e também para os
serviços: r =  (q).34 Os preços dos serviços e dos bens de consumo são dados para os
indivíduos: pt, pt´, pt”, ...; pp, pp’, pp” , ...; pk, pk’, pk” ..., para os serviços, e pa, pb, pc ... para os
bens finais. Ele elege a mercadoria A como numerário, de modo que pa = 1. Considera a
seguir uma dotação inicial dos fatores que determinam os serviços produtivos qt, qt’, qt”,
...; qp, qp’, qp”, ...; qk, qk’, qk”, ... (alguns dos 𝑞𝑗𝑖 podem ser zero) e uma quantidade
demandada ou oferecida para cada serviço ot, ot’, ot”, ...; op, op’, op”, ...; ok, ok’, ok”, ... (se oj >
0, temos bens e serviços oferecidos e se oj < 0, temos bens e serviços demandados). As
quantidades de produtos finais demandadas aos preços de equilíbrio são representadas
por da, db, dc, ... Os coeficientes técnicos de produção, isto é, a quantidade do serviço
requerida para a produção de uma unidade do produto são: at, at’, at”, ...; ap, ap’, ap”, ...; ak,
ak’, ak”, ..., para o bem A; bt, bt’, bt”, ...; bp, bp’, bp”, ...; bk, bk’, bk”, ..., para o bem B, ct, ct’, ct”, ...;
cp, cp’, cp”, ..., ck, ck’, ck”, ..., para o bem C, e assim por diante.
Na primeira edição dos “Elementos”, os coeficientes técnicos são fixos. Todavia,
sabe-se que a quantidade de cada serviço combinado na produção de uma unidade do
produto depende do preço dele. Ciente disso, economistas outros, como Barone, em
1894, e, tempos depois, Pareto, relaxarão a hipótese de coeficientes fixos. O próprio
Walras, a partir da terceira edição do livro, passa a considerá-los variável em sua teoria
da produção.
O famoso livro de Walras foi publicado em duas partes, a primeira edição em
francês, é de 1874, a primeira parte, sob o título “Éléments d'économie politique pure ou
théorie de la richesse sociale”, e sua capa original aparece na Figura 10.5, na reprodução
à esquerda. A segunda parte é publicada em 1877. Outras edições completas da obra
aparecem em 1896 (c0nsiderada a terceira edição) e 1926, a quarta e definita edição (vide
Figura 10.5 na reprodução à direita).
Vejamos ao cerne do modelo e à técnica de solução dele. Dadas as variáveis, deter-
minam-se duas condições de equilíbrio requeridas na maximização de todos os indiví-
duos:
1. Que o total de gastos seja igual à soma da renda dos consumidores indivi-
duais:
da + db + dc + ... = ot pt + ot’ pt’ + ... + op pp + op’ pp’ + ... + ok pk + ok’ pk’ + ...
2. As condições para a satisfação máxima dos indivíduos implicam que, nos
serviços produtivos:

33 Os n serviços produtivos dos fatores correspondem à soma de subperíodos em que são emprega-

dos os serviços de algum fator. Cada fator oferece serviços em diversos subperíodos, não
necessariamente contíguos, que cabem, na soma, dentro do período em questão.
34 Walras relacionou a utilidade marginal (rareté) também a fatores produtivos, desconsiderando

o fato de que os serviços de fatores não geram utilidade imediata, apenas contribuem para a
obtenção de um bem final que, por sua vez, proporcionará utilidade ao ser consumido.

264
t(qt – ot ) = pt a(da ),
t’ (qt’ – ot’ ) = pt’ a(da ), ...;
p(qp – op ) = pp a(da ),
p’ (qp’ – op’ ) = pp’ a(da), ...;
k(qk – ok) = pk a(da ),
k’ (qk’ – ok’) = pk’a(da), ...
E, para os bens finais, b (db ) = pba(da ), c(dc ) = pca(da ), ...

Figura 10.5 Capas originais do famoso livro de Léon Walras.

Já vimos que a solução da maximização individual condicionada leva à equação


algébrica ui =  pi, em que a constante de Lagrange  representa a utilidade marginal da
moeda. Se a mercadoria A é o numerário, pa = 1 e  = a (da ). Assim, ficam demonstradas
as equações de Walras que maximizam a satisfação individual. Entretanto, ele não
demonstra suas equações dessa maneira, pois não utilizara a moderna técnica
matemática de maximização condicionada. Na lição XVIII, Walras parte de uma
demonstração puramente algébrica e conclui:
“É evidente que, no estado de satisfação máxima, as raridades serão propor-
cionais aos preços.” (ibidem)
Walras preocupou-se em saber se, a princípio, existiria ou não uma solução para
esse sistema de equações. Para tanto, não se limitou a contar o número de equações,
comparando-o ao número de incógnitas (condição necessária, mas não suficiente para a
existência da solução). De fato, se o número de equações for igual ao número de
incógnitas, Walras considera demonstrada apenas para modelos lineares a possibilidade
do equilíbrio geral do ponto de vista dos indivíduos. Contudo, o autor francês não se
limita à análise de sistemas lineares. Neste capítulo, a técnica de solução para o caso mais
geral será apresentada adiante, em outra seção.
Vamos à simples contagem: temos então a equação que iguala gastos à renda e as
equações resultantes da condição de satisfação máxima (n equações em termos de preços

265
dos fatores e m – 1 para os preços dos bens finais), totalizando 1 + n + m – 1 = n + m
equações para o equilíbrio geral de um indivíduo em particular. O número de incógnitas
no sistema de equações é n + m – 1, correspondente à oferta e demanda de bens e
serviços, em que oj = fj (pt’ , pt” , ..., pp’ , pp” , ..., pk’ , pk” , ..., pb’ ,pc’ , ...), j podendo ser t, t’, ...,
p, p’, ..., k, k,’... e di = fi (pt’, pt” , ..., pp’ , pp”, ..., pk’ , pk” , ..., pb’ , pc’ , ...), i que pode ser b, c, ...,
m; mais a demanda da mercadoria A, o numerário, da. Portanto, temos n + m incógnitas.
Como o número de equações é igual ao número de incógnitas, Walras considera
demonstrada uma das condições necessárias, do ponto de vista de indivíduos maximi-
zadores de utilidade, à possibilidade do equilíbrio geral.
O próximo passo de Walras consiste em enunciar as condições de equilíbrio geral
nos mercados (o chamado equilíbrio objetivo). Para tanto, as seguintes equações foram
construídas:
1. Oferta e demanda global dos fatores são a soma horizontal das ofertas e
demandas individuais. Ot , Ot’ ,..., Op, Op’ , ..., Ok, Ok’ , ... são respectivamente as
somatórias de ot , ot’ , ..., op, op’ , ..., ok, ok” , ..., que são as ofertas e demandas
individuais de fatores. As demandas totais dos bens de consumo Da, Db, ... são
as somatórias de da, db, ..., as demandas individuais de cada bem final.
2. Em termos agregados, podemos expressar diretamente as ofertas de fatores e
as demandas de bens finais como função dos preços: Ot = Ft (pt’ , pt” , ..., pp’ , pp”
, ..., pk’ , pk” , ..., pb’ , pc’ , ... ), e assim por diante para t’, t”, ..., p, p’, ..., k, k’, ... E
as demandas finais representadas por Db = Fb (pt’ , pt” , ..., pp’ , pp” , ..., pk’ , pk” ,
..., pb’ ,pc’ , ... ) e também por Dc, Dd, ... Como estamos considerando o agregado,
devemos impor o equilíbrio global entre oferta e demanda: Da = Ot Pt + ... +
Op Pp + ... + Ok Pk + ... – (DbPb + Dc Pc + Dd Pd + ... ).
3. A quantidade de serviços oferecidos deve ser igual ao montante empregado
desses serviços, de modo que não subsistam recursos ociosos. Assim, temos
que:
Ot = at Da + bt Db + ...,
Ot’ = at’ Da + bt’ Db + ..., ...;
Op = ap Da + bp Db+ ...,
Op´ = ap’ Da + bp’ Db+ ..., ...;
Ok = ak Da + bk Db + ...,
Ok’ = ak’ Da + bk’ Db + ...; ...
4. O empresário não aufere lucros ou perdas de tal modo que podemos
equacionar pb = bt pt + bt’ pt’ + ...; pc = ct pt + ct’ pt’ + ...; ... bi, ci, ... são os
coeficientes técnicos, que representam a quantidade de cada serviço produ-
tivo requerida para a produção de uma unidade do produto B, C,... e a
somatória fornece o valor total dos insumos necessários para produzir uma
unidade do produto. A equação diz-nos que o preço do bem é igual ao custo
unitário ou médio. Se a firma não tem lucros, a renda do empresário deve-se
apenas à propriedade dos recursos. Todavia, enquanto proprietários eles são
consumidores e não propriamente empresários.
5. pa é o numerário, pa = 1.
Em termos de contagem de equações e incógnitas: no modelo de equilíbrio geral
para o mercado em conjunto, temos n equações de oferta de fatores, m - 1 equações de
demanda de bens finais, uma equação para o equilíbrio global entre oferta e demanda; n
equações que igualam demanda com oferta dos serviços e m - 1 equações que igualam os
preços dos bens finais aos respectivos custos; e a condição para o preço do numerário pa
= 1. Uma das equações do sistema é linearmente dependente, de forma que podemos

266
eliminá-la. Temos, portanto, 2m + 2n – 1 equações e o mesmo número de incógnitas: n
quantidades ofertadas de serviços produtivos, m quantidades demandadas de produtos
terminados, n preços de serviços e m – 1 preços de produtos, supondo que os coeficientes
técnicos sejam fixos e dados; caso contrário, teríamos n×m incógnitas a mais e n×m
equações adicionais que relacionam os coeficientes técnicos aos preços dos insumos. O
número de incógnitas continuaria sendo igual ao número de equações. Assim, mais uma
vez, como no caso do equilíbrio geral para o indivíduo, temos um sistema de equações
que representa o equilíbrio dos mercados, que pode, ao menos em princípio (satisfeita
uma condição necessária) ser determinado.
Enquanto em autores como Gossen e Jevons elementos psicológicos e subjetivos
são alçados a um lugar privilegiado na determinação do valor, Walras contrariou tal
tendência. A teoria subjetivista anterior a Walras atribui papel efetivo ao mundo dos
fenômenos internos aos indivíduos. Ela determina que se parta da mente de cada qual
para a compreensão da totalidade da vida econômica. A ênfase no subjetivismo, no
entanto, é enfraquecida nos domínios de Walras. Muito embora o trabalho dele tenha, à
sua época, permanecido relativamente desconhecido (exceto na Suíça e na Itália), seu
programa de pesquisa do equilíbrio geral tornou-se, pelos desenvolvimentos de Gustav
Cassel, Knut Wicksell e outros autores, a principal tradição que viria gradualmente, ao
longo do tempo, a dominar a cena acadêmica. Nessa trajetória, muitos teóricos em
economia foram persuadidos a descartarem o subjetivismo, trocando-o pela simples
determinação das condições que tornam as ações individuais globalmente consistentes
pelo uso dos sistemas de equações de oferta e demanda; a situação em cada um dos vários
mercados presentes na economia seria expresso por meio dessas equações, que
traduziriam as condições objetivas em que os recursos produtivos estão disponíveis (os
estados da natureza) e refletiriam gostos e preferências dos indivíduos.
Os elementos subjetivos somente subsistem no modelo por estarem subjacentes às
equações de mercado. A teoria de equilíbrio geral, todavia, deixa efetivamente de
incorporar a antiga análise psicológica das estruturas das crenças individuais, tal como
defendida por Gossen e Jevons, considerando-a apenas um dado de partida. No mais, a
estratégia de análise de Walras toma os dados subjetivos como algo que se soma aos
fatores objetivos que comandam a produção e o consumo, sem problematizar a relação
entre elementos subjetivos e objetivos. Não pergunta, por exemplo, como a percepção
individual poderia alterar a própria natureza dos dados objetivos.
Walras não foi além no exame das consequências ulteriores da aplicação do subjeti-
vismo. Acreditou no alcance da noção de equilíbrio de mercado e que os dados
econômicos poderiam ser tratados como dados objetivos, como simples condições
paramétricas que particularizam o estudo de determinadas relações econômicas. Na
tradição do equilíbrio geral, desenvolvem-se teorias altamente abstratas, estáticas e
gerais. Em vez de se preocuparem com o realismo de seus supostos, seus adeptos
postulam hipóteses comportamentais simplificadoras e uniformizantes. Os agentes são
meros seres que maximizam a satisfação pelo cálculo racional dos usos alternativos da
renda, em que os gastos são ajustados na margem. Embora reconheçam a independência
das decisões individuais, os agentes são analiticamente igualados: arrimando-se numa
renda limitada, vale para todos o princípio da utilidade marginal (eventualmente)
decrescente. A análise concentra-se apenas nos valores de troca, ignorando-se, na
medida do possível, questões sobre a origem e a natureza das preferências, sua
estabilidade, os processos de avaliação e outros mais. Podemos concluir, portanto, que o
subjetivismo haveria de sofrer considerável refluxo eclipsado pelo desenvolvimento da
análise do equilíbrio geral.

267
A EXISTÊNCIA DE EQUILÍBRIO
Afirmamos na seção anterior que Walras não se limita-se a contar o número de
equações comparando-o ao número de incógnitas. Como o número de equações, de fato,
é igual ao número de incógnitas, Walras considerou demonstrada a possibilidade do
equilíbrio geral apenas para sistemas lineares. Contudo, ele trabalha com o caso mais
geral de sistemas não lineares. Então sua tentativa de demonstrar a existência de
equilíbrio vai além da mera contagem. Vejamos a sua técnica.
Tomemos a lei de Walras: o valor total do excesso de demanda é zero para a soma-
tória de todos os mercados a qualquer nível de preços P. Os excessos de demanda são
neutralizados pelos excessos de oferta. Portanto, quando se pensa na equação que iguala
o excesso de demanda a zero em cada mercado, a um nível de preço P*, se n é o número
de bens na economia, há apenas n – 1 equações independentes. Dada a lei de Walras!
O que Walras buscou fazer? Ele investiga se haveria um conjunto de preços P* que
equilibra simultaneamente a todos os mercados (todos os excessos de demanda se
anulam em P*). Temos n – 1 equações independentes e n – 1 incógnitas (pois um dos P’s
é numerário), então a álgebra elementar de sistemas de equações lineares sugere que a
solução de equilíbrio deve existir. Walras sabia disso!
Walras também sabia que a solução de P* não consiste apenas em contar equações
e incógnitas. Sabia que as equações não são necessariamente lineares. Portanto, as
condições tradicionais para a existência de uma solução de equilíbrio em equações
lineares simultâneas não se aplicam a esse caso. Sabia ainda que só faria sentido a
solução com preços não negativos.
Como Walras enfrentou tais dificuldades? De fato, ele oferece um aprova cansativa
que envolve soluções sucessivas de preços de equilíbrio ao longo de uma série de
aproximações. Começa-se com um conjunto arbitrário de preços. Mantém n – 1 bens com
seus preços constantes e encontra o preço de equilíbrio para o bem 1. Chama isso de
preço provisório de equilíbrio p1’. Mantém p1’ e outros n – 2 preços constantes. Resolve
para o preço de equilíbrio do bem 2.
Chama esse preço de p2’. Quando o preço do bem 2 vai de sua posição inicial p2 para
a nova posição em p2’, o preço inicial do bem 1 não deve permanecer um preço de
equilíbrio, pois, este bem 1 pode ser um substituto ou um complemento do bem 2.
Usando os preços provisórios p1’ e p2’, obtém-se o preço provisório p3’. Prossegue-se
assim até se obter o conjunto completo de preços relativos.
Na segunda iteração, p2’, ..., pn’ são mantidos constantes enquanto um novo preço
de equilíbrio é calculado para o primeiro bem, o novo preço provisório p1’’. Assim, o novo
conjunto de preços relativos provisórios pode ser calculado: p1’’, ..., pn’’. A prova
continua com novas iterações. Walras acreditava que, com essa técnica, poder-se-ia
alcançar uma aproximação razoável em direção a um conjunto de preços de equilíbrio
definitivo. Contudo, ele não tinha certeza se o equilíbrio, de fato, seria alcançado nessa
iterações.
Não obstante isso, a tentativa de Walras de provar teoricamente a existência do
equilíbrio geral não deve ser subestimada. O autor francês, com efeito, exibe notável
habilidade em demonstrar a natureza simultânea do problema de se encontrar preço de
equilíbrio. Ele oferece uma tentativa de prova dificultosa, puramente verbal. Walras não
se propôs a fazer demonstração rigorosa e definitiva. Apenas intuiu como seria o proces-
so de prova matemática do equilíbrio geral.

268
A CONVERGÊNCIA AO EQUILÍBRIO
Vimos que a igualdade entre o número de equações e incógnitas não assegura a
existência de equilíbrio para sistemas não lineares. Mesmo em sistemas lineares, não se
assegura uma solução que seja única e que tenha significado econômico, isto é, que tenha
preços e quantidades positivas. A solução pode ser de equilíbrio múltiplo, o sistema pode
não apresentar soluções (quantidades demandadas e ofertadas diferentes para qualquer
preço) ou apresentar soluções com valores negativos sem significado econômico.
Outros problemas, que serão examinados pelos herdeiros da tradição de Walras,
dizem respeito a como o equilíbrio geral advém do comportamento maximizador dos
agentes e de que modo o mercado corrige as situações de desequilíbrio, isto é, como os
excessos de oferta e demanda são eliminados. Supondo a existência do equilíbrio, o que
garante a convergência a ele? Walras não analisa questões sobre existência, unicidade e
estabilidade do equilíbrio e também não explica o caminho em que o equilíbrio é
alcançado. Economistas do século XX, como Nicholas Kaldor, John Richard Hicks e Paul
Samuelson, discutiram tais questões nos anos 1940.
Walras, com a exposição matemática das condições de equilíbrio geral, acreditou
ter razoavelmente demonstrado que, em concorrência perfeita, o pleno emprego dos
recursos é compatível com o desejo de cada indivíduo de maximizar a satisfação no gasto
em consumo dos rendimentos obtidos com a venda desses mesmos recursos. Todavia,
sua demonstração não é rigorosa, pois a igualdade entre o número de equações e
incógnitas e a técnica iterativa proposta não asseguram a existência de uma solução ao
equilíbrio geral. E nem que essa solução seja única e que tenha significado econômico,
isto é, que tenha preços e quantidades positivas.
Wilhelm Lexis, em 1881, dissera que o sistema de equações de Walras não necessa-
riamente possuiria soluções positivas reais ou únicas, o que poderia tornar o modelo sem
interesse. Passou muito tempo até que Abraham Wald (1902-1950) encontrasse uma
solução ao problema. Wald aprofundou a natureza do sistema de Walras, sem conhecê-
lo, e concluiu que a técnica proposta não asseguraria resultados significativos em termos
econômicos. Com base nela, pode-se obter equilíbrio múltiplo, o sistema pode não
apresentar soluções (quantidades demandadas e ofertadas diferentes para qualquer
preço) ou apresentar soluções com valores negativos sem significado econômico.
Determinar as equações de equilíbrio e o vetor de preços que aparece na solução do
sistema de equações significa tão somente fornecer a configuração de preço e quantidade
que se estabelece no equilíbrio. Outro problema é explicar como esse equilíbrio advém
do comportamento maximizador dos agentes e de que modo o mercado corrige as
situações de desequilíbrio, isto é, como os excessos de oferta e demanda são eliminados.
Supondo a existência do equilíbrio, o que garante a convergência a ele? A explicação do
processo equilibrador só é possível, no modelo de Walras, pela hipótese da existência de
um mecanismo intitulado tateamento. Tal mecanismo é desenvolvido primeiro na troca
pura, depois é estendido à produção, à formação de capital e à moeda. Trata-se de uma
lei ex machina, imposta artificialmente para o sistema econômico alcançar o equilíbrio
geral. Walras trabalha com um modelo de barganha competitiva que vê o mercado como
um leilão em que os agentes se dividem em compradores e vendedores proprietários dos
bens e um controlador das transações, chamado de leiloeiro.
No início da transação, o leiloeiro lança um vetor de preços e deixa os agentes
formularem suas propostas de compra e venda. Se houver, para esses preços, igualdade
entre oferta e demanda, a barganha é declarada fechada pelo leiloeiro e o vetor de preços
é o de equilíbrio. Se não, o leiloeiro ajusta os preços de acordo com a regra: os preços
aumentam para eliminar excessos de demanda e reduzem para eliminar os excessos de
oferta. O leiloeiro age por um processo de tentativa-e-erro (tateamento) continuamente
até que ocorra a completa eliminação dos excessos. Até esse ponto, os preços são apenas

269
virtuais e as trocas não são efetivamente realizadas. São as chamadas “trocas falsas”, pois
só no equilíbrio as trocas ocorrem de fato. E não poderia ser diferente. Se no curso do
processo equilibrador os agentes trocarem seus bens aos preços de desequilíbrio, a
dotação individual variará continuamente e não será possível alcançar um equilíbrio
walrasiano, já que este se refere a uma dada alocação de recursos. Então no sistema de
Walras as transações não ocorrerão enquanto o sistema estiver procurando o ponto de
equilíbrio.
Questões sobre existência, unicidade e estabilidade do equilíbrio, e também sobre o
caminho em que o equilíbrio é alcançado, foram muito discutidas nas décadas de 1930 e
1940, principalmente por Kaldor, Hicks e Samuelson. Outro problema do modelo de
Walras diz respeito ao papel do empresário. Se a competição entre empresários, na
condição de equilíbrio, produz um lucro final nulo, o que eles ganham para exercer sua
função? Na literatura especializada, cunhou-se a expressão “empresário Sísifo” para
descrever que tal agente atua como mero coordenador que organiza a produção, toman-
do as técnicas e os preços como dados.35
Enquanto a receita exceder ou estiver abaixo dos custos, haverá respectivamente
lucros e perdas que afetarão a escala de produção de modo que sejam eliminados os
excessos. No equilíbrio, o lucro econômico é zero, apenas subsiste o lucro contábil,
semelhante a um juro pago pelo uso do serviço do capital. No caso, remunera-se o
proprietário do capital e não a função empresarial. Parece não existir identidade socio-
econômica para o empresário Sísifo. No entanto, na interpretação de William Jaffé, o
maior especialista em Walras, haveria um papel para o empresário, nesse modelo, na
situação de desequilíbrio: ele age quando há diferença entre preços de venda e custo de
produção.

TEORIA DO EQUILÍBRIO GERAL APLICADA AO


PLANEJAMENTO SOCIALISTA
Uma implicação do modelo de Walras que viria a ter consequências importantes no
desenvolvimento da economia científica é a de que a solução do problema de cálculo
posta pelo sistema de equações, isto é, a relação de equilíbrio geral, não depende de se
verificar um ato efetivo de troca em um mercado. O economista Enrico Barone, no início
do século XX, apercebeu-se disso e propôs fundamentar a economia socialista
planificada em bases racionais. O sistema teórico desenvolvido por Walras permite
quantificar, desde que se estipulem os parâmetros das equações, o quanto de um bem
pode ser produzido, mediante a renúncia à produção de uma unidade de outro bem. Essa
relação é denominada de “taxa marginal de substituição entre produtos”.36 O sistema de
Walras permite estabelecer uma espécie de equivalência tecnológica entre dois bens
quaisquer, transformando-se um bem em outro, segundo certa lei definida.
O processo de concorrência que se verifica pela ação do mercado é tal que a taxa
marginal de substituição dos fatores na produção é igualada à taxa marginal de substi-
tuição dos bens no consumo; esta última é a inclinação das, assim chamadas, curvas de
indiferença. Então o equilíbrio é o ponto em que essas duas taxas apresentam um valor
comum, situação em que prevalece o preço relativo que se estabelece no mercado
concorrencial. Em Walras, portanto, os preços não são nada além de uma medida das
relações de equivalência técnica e psicológica entre os vários bens presentes no sistema.

1. Segundo a lenda grega, Sísifo, rei de Corinto, tendo escapado astuciosamente a Tânatos, o deus
da morte, enviado por Zeus para castigá-lo, foi levado por Hermes ao Inferno, onde o condenaram
ao suplício de rolar uma rocha até o cimo de um monte, donde ela se despencava, devendo o
condenado recomeçar incessantemente o trabalho.
2. Modernamente é a inclinação da curva de possibilidade de produção em dado ponto.

270
Assim, conhecendo a disponibilidade dos recursos e o formato das funções de
oferta, um órgão planejador central poderia determinar o vetor de preços de equilíbrio e
impor a vendedores e compradores que efetuem suas transações a esses preços. O
processo de mercado seria substituído pelo planejamento.
Procura-se, a seguir, focalizar as mudanças políticas e sociais que culminaram na
tese do planejamento econômico centralizado eficiente e nos modelos de economias
socialistas. Os modelos de equilíbrio geral mostraram-se importante instrumento auxi-
liar na tarefa de controle centralizado da atividade econômica.
Já no início do século XX, o socialismo estava posto como uma realidade histórica.
Movimentos socialistas proliferavam principalmente na Europa Central e, depois, na
Rússia. Grandes partidos políticos cobiçavam o poder em nome de um projeto socialista
de sociedade. Alguns lograram êxito, ainda que temporário. O socialismo era, na prática,
um terreno inteiramente inexplorado e os partidos simpáticos à causa muito agradece-
riam se algum teórico lhes desse um embasamento científico que fundamente suas im-
plicações na economia. O paradigma do equilíbrio geral foi então aplicado à economia
socialista pela primeira vez por Enrico Barone (1859-1924), em seu artigo “O ministério
da produção no estado coletivista”, originalmente publicado em italiano na revista Il
Giornale degli Economisti, em 1908. Utilizando o critério de eficiência de Pareto, Barone
acreditou provar que tal economia poderia atingir uma alocação ótima de recursos. Este
italiano não era socialista e estava interessado simplesmente em demonstrar uma possi-
bilidade teórica.
A obra de Barone teve instantaneamente grande acolhida por parte dos colegas
socialistas, principalmente alemães. Na opinião deles, Barone teria demonstrado que o
vetor de equilíbrio calculado pelo modelo walrasiano de interdependência geral dos
mercados poderia ser estabelecido na prática, de modo a forçar a economia a trabalhar,
desde o início, num ponto de eficiência, sem os desgastantes processos de convergência
ao equilíbrio que se observam em mercados competitivos. É possível, portanto, operar
eficientemente a economia planejada por meio de um cálculo racional.
O ensaio de Barone é tecnicamente complexo, contudo vale a pena uma apresenta-
ção sumária. Barone começa expondo suas hipóteses e a questão chave do modelo: como
a produção deve ser dirigida em um regime coletivista? Fornece então as soluções gerais
que o Ministério da Produção deveria seguir. Para tanto, utiliza matemática, mas não
emprega o conceito de utilidade. Discute aspectos dinâmicos na análise do bem-estar em
dois tipos de regimes econômicos: regime individualista, que inclui as estruturas de
mercado com competição livre, mas também monopólios e cartéis; regime coletivista, o
Estado controlando a economia. Lança a pergunta central:
“De que maneira o Ministério encarregado da produção deve direcioná-la com
o fito de alcançar a máxima vantagem em suas operações.” (E. Barone, O ministério
da produção no estado coletivista)
Barone elege os seguintes dados para o modelo do regime individualista: quantidade
de capital possuído por cada indivíduo; relações input-output; gostos individuais
(escolha de cada qual entre consumir e poupar); quantidades demandadas e ofertadas a
cada vetor de preços. O autor italiano desconsidera a noção de utilidade:
“Nós nos desvencilhamos de todo conceito metafísico ou sutil de utilidade e das
funções de indiferença, e apoiamo-nos apenas na autenticidade dos fatos.” (ibi-
dem)
Representa as variáveis do modelo da seguinte maneira: quantidade demandada e
produzida: Ra, Rb, ... (m incógnitas); custo de produção: a, b , ... (m custos); preços: 1,
pb, ... (m – 1 incógnitas); diferentes tipos de capital S, T, ... (n capitais); quantidade total
desses capitais: Qs, Qt, ... . Barone distingue dois tipos de capital: capital em processo de

271
produção H, K, ... (n’ incógnitas), e capital existente: quantidade de seus serviços
diretamente consumidos: Qs, Qt, ... (n incógnitas). Os preços dos serviços são expressos
em ps, pt, ... (n serviços). As quantidade em produção de capital novo são representadas
por Qh, Qk, ... (n’ capitais). O vetor do custo de produção é  h,  k, ... (n’ custos). Pode
haver excesso E de renda sobre o consumo.
O economista italiano introduz no modelo os coeficientes técnicos: as, at, ... , bs, bt,
... (m×n coeficientes). Primeiramente Barone trabalha com coeficientes técnicos dados;
depois, introduz um modelo em que eles são determinados pela condição de custo
mínimo. Estima-se então o número de incógnitas: 3m – 1 + 2n + 2n’ + 1 = 3m + 2n + 2n’.
As equações do modelo perfazem o seguinte número: R’s e E como função dos preços;
para cada indivíduo (letras minúsculas) pa ra + pb rb + ... ps rs + pt rt + ... + e = ps qs + pt qt
+ ... Em que r’s e e são funções de todos os preços. Conhecidos os preços, os r’s e e são
determinados e também as quantidades agregadas R’s e E como função dos preços (m +
n + 1 quantidades). Cada uma das m + n + 1 quantidades é função de todos os m + n – 1
preços de produtos e de serviços. Equações de equilíbrio:
(1) Qs = Rs+ asRa + bsRb + ... + hsRh+ ksRk + ...;
(2) Qt = Rt + atRa + btRb + ... + htRh+ ktRk + ... (n equações).
A poupança E é usada para produzir capital novo E = h Qh+ k Qk+ ... . O custo de
produção de bens finais e de capitais novos é a = as ps + at pt + ..., b = bs ps + bt pt +...; h
= hs ps + ht pt +..., k = ks ps + kt pt +... (m + n’ equações). Outro sistema de equações
expressa uma das características da livre competição, o fato de os preços dos produtos
finais e dos serviços dos capitais novos serem iguais aos respectivos custos de produção:
a = 1, b = pb ... e h = ph /pe, k = pk /pe, ... (m + n´ – 1 equações, o menos 1 é porque
numa destas equações de  há um “capital novo em processo” cujo preço é pe e, sendo
assim, não aparece no sistema de equações). Portanto, o número de equações do modelo
é igual a n + 1 + m + n’ + m + n’ – 1 e, em acréscimo, m + n + 1 (R’s e E em função de
todos os preços); isto totaliza 3m + 2n + 2n’ + 1 equações. Na medida em que uma das
equações é o resultado das outras, ela pode ser eliminada, o que resulta na igualdade
entre número de equações e de incógnitas.
Barone também admite a hipótese de coeficientes técnicos variáveis. Analisa três
situações:
1. Caso em que todos os competidores trabalham nas mesmas condições (firmas
similares, produzem com o mesmo custo);
2. Caso com ganhos diferenciais das firmas (condições diferentes em cada firma)
e
3. Caso em que os coeficientes técnicos são determinados de tal modo que os
custos de produção são minimizados.
Em seguida, os coeficientes técnicos são determinados no caso de livre competição
(firmas iguais) e de lucro zero. Na situação com limitação no uso da combinação ótima
dos fatores, os lucros são transitórios; provisoriamente os preços de cada bem cobrem
um termo de lucro. Os coeficientes são diferentes em cada firma, e somente a firma
marginal tem lucro zero.
Barone equaciona a produção máxima no regime de livre concorrência: equação das
necessidades físicas da produção pa ra + pb rb + ... ps rs + pt rt + ... + e =ps qs + pt qt + ...
Chega então ao seguinte sistema de equações:
(1) 1 = as ps + at pt + ...;
pb = bs ps + bt pt + ...; … e
(2) ph = pe (hs ps + ht pt + ...);
pk = pe(ks ps + kt pt + ...); ...
272
Os coeficientes técnicos são tais que os custos são mínimos. São as seguintes as
caracterís-ticas do equilíbrio, em termos de um conjunto de equações:
(1) Ra + pb Rb + ... ps Rs + pt Rt + ... + E =  ;
(2) E = h Qh+ k Qk+ ...; h = ph/pe, ...
Portanto,  = Ra + pb Rb + ... ps Rs + pt Rt + ... + 1/pe (ph Rh+ pk Rk+ ...).
Se p é constante   = 0, uma propriedade do equilíbrio:
“Precisamente em virtude das condições em que se caracteriza a livre
competição (que o custo de produção se iguala aos preços no ponto em que tais
custos são mínimos), dada a quantidade de serviços disponíveis, a diferencial
parcial de  quando os preços são considerados constantes é zero.” (ibidem)
Em seguida, Barone compara o resultado com o de outros regimes. Conclui que o
máximo de produção no regime de livre competição não implica que qualquer indivíduo
tenha um leque de escolha maior do que seria possível em outros regimes. Ou seja, alterar
as condições em que ocorre a livre competição poderia conduzir a uma melhoria
paretiana. Barone conclui que o método de transferências diretas ditadas pelo
Ministério da Produção pode funcionar melhor que a livre concorrência em mercados
(desde que não se alterem as condições da produção). Antes de analisar o caso da
produção dirigida, Barone investiga o resultado para o regime de livre iniciativa com
monopólios e cartéis: o indivíduo não é mais tomador de preço. Em monopólios e cartéis,
variações na oferta podem afetar os preços e estas últimas afetam os custos: b = pb +
Rbpb/Rb ... . O monopólio de fatores leva à estratégia de maximização do monopolista:
maximizar Qs ps resultando em ps + Qsps/Qs = 0. No caso do cartel, viceja um sindicato
de  indivíduos. Os Q’s são distribuídos entre esses indivíduos. Preço e quantidades são
determinados, dado o tipo de acordo entre os membros do cartel.
Agora para o regime coletivista, alguns recursos permanecem propriedade de
indivíduos M, N... (l recursos); parte dos recursos torna-se propriedade coletiva do
Estado S, T... (n – l recursos). O Ministério da Produção tem de resolver o problema de
combinar recursos coletivos e individuais a fim de maximizar o bem-estar das pessoas.
Trabalha-se com as seguintes hipóteses do modelo: não há moeda; não há preços; o
Ministério determina razões de equivalência entre produtos, serviços etc. As pessoas
levam seus produtos às lojas em troca de bens de consumo ou ganham permissão para
usar algum recurso do Estado. As equivalências ditadas pelo Estado são representadas
por 1, b, ..., m, n, ..., s, t, ... Denomina-se quantidade X a soma Qss + Qtt + ... que
pertence ao Estado. Ele pode redistribui-la aos indivíduos i’s determinando uma quota i
em X como um suplemento na renda individual. ’s diferem entre os indivíduos e  = 1.
Lembrando-se ainda que uma parte do produto é destinada à poupança, e que há um
prêmio para consumo adiado, prêmio calculado por tentativa e erro, a condição de
liberdade nas economias individuais implica em ra + b rb + ... s rs + t rt + ... + e = m qm
+ n qn + ... +  X. A condição de máximo de bem-estar coletivo resulta em ra + b rb +
... + s rs + t rt + ... + e = . Sendo que  = 0 para cada indivíduo. A condição  
= 0 para todos os indivíduos é suficiente para que o máximo de bem-estar seja alcançado.
Barone argumenta que, na prática, seria possível ao planejador manipular os ’s e os ’s
de modo a obter tal condição. Portanto, também a economia centralmente planejada
seria eficiente.
A receita de Barone consiste em ajustar os preços de modo que seja aproximada a
economia real do equilíbrio teórico. O conceito de equilíbrio com que trabalha descreve
situações de preços e quantidades em que as equações de oferta e de demanda para cada
mercado são todas atendidas ao mesmo tempo. Mudanças nos parâmetros deslocam os
pontos de equilíbrio. O modelo trata as variações paramétricas como exógenas e analisa

273
o resultado final alcançado por meio de exercícios de estática comparativa. Barone
também tece considerações sobre o tratamento dinâmico do problema.
O modelo de Barone não leva em conta instituições sociais específicas. Pelo
contrário, na determinação da alocação ótima no socialismo, pretende ser neutro em
relação às instituições. Admite a existência de moeda, preços, juro e demais instrumentos
típicos de uma economia de mercado. O modelo exclui, no entanto, a propriedade
privada, o mercado de capitais e o mercado de insumos, o que o caracteriza como um
modelo socialista. Barone trabalha com preços, moeda e mercados, admitindo que esses
instrumentos operam igualmente bem em qualquer sistema econômico, hipótese
conhecida como de “instrumentos neutros”.
A teoria de Barone recebeu críticas dos que não acreditavam na possibilidade de uma
eficiente economia planejada. Contudo, opiniões favoráveis eram majoritárias nos anos
1930, época em que quase todos os acadêmicos que trabalhavam com modelos de equilíbrio
geral viam com simpatia as teses do economista italiano. Barone inaugurou uma tradição em
economia do planejamento que a partir dele viria a angariar para si novos adeptos. Entre
eles, destacam-se F. M. Taylor, H. D. Dickinson e principalmente os trabalhos de Oskar
Lange (1904-1965) e Abba Lerner (1903-1982). Tais autores não se limitam a seguir o
modelo básico e enxertam nele diversos elementos da visão teórica de Alfred Marshall.
O consenso criado entre os economistas sobre a validade dessa linha de pesquisa
foi, naqueles anos, tão vigoroso que até seus críticos, em geral defensores do livre
mercado, reconheceram a possibilidade do cálculo racional no socialismo. Eles, porém,
só admitiam ceder em seus pontos de vista no plano da teoria, já que dificuldades de
implementação impossibilitariam, na prática, o modelo de equilíbrio geral. Afinal,
diziam eles, como seria possível coletar os dados necessários para a solução de milhares
de equações do modelo, tarefa necessária para sua aplicação? Enfim, mesmo os
economistas liberais acabaram reconhecendo que o modelo de Barone seria
teoricamente consistente, embora mantendo a objeção de ordem prática.
Oskar Lange, em seu artigo de 1936, “Sobre a teoria do socialismo”, pretendeu
demonstrar que a crítica aos modelos socialistas de mercado, que enfatizavam a impossi-
bilidade de implementá-los na prática, poderia ser enfraquecida. Para tanto, argumentou
que, a fim de se chegar a uma alocação ótima dos recursos, não seria necessário resolver
milhares de equações simultaneamente. Para atingir os preços de equilíbrio dos bens
finais, bastaria ao planejador central orientar os administradores setoriais de mercado a
adotarem um procedimento de tentativa e erro. Tais administradores estariam obrigados
a seguir um conjunto de regras ditadas pelo planejador. Se os preços dos fatores fossem
dados, bastaria usar duas regras para a alocação de recursos: (1) a fim de encontrar a
melhor combinação de fatores a empregar, escolher a que minimiza os custos de produção;
(2) encontrar a melhor escala de produção igualando-se o custo marginal ao preço exógeno
do bem final. A observância dessas duas regras permitiria atingir a condição de equilíbrio
competitivo em tempo menor e com menos desperdícios de recursos do que nos mercados
capitalistas de competição perfeita.
Além de consistente, o modelo de Lange parecia praticável. O autor, na verdade,
introduz elementos capitalistas no socialismo. Do ponto de vista teórico, ele apenas
substitui o leiloeiro walrasiano pelo planejador. Lange não considera em seus modelos
uma efetiva agência de planejamento, mas somente uma agência de fixação de preços. A
concessão ao capitalismo foi uma forma de viabilizar o modelo. Com o artigo de Lange,
novo alento foi dado ao desenvolvimento desse programa de pesquisa. Gradualmente
novos adeptos foram aperfeiçoando o modelo original. Entre os trabalhos nessa linha,
destacou-se posteriormente a contribuição de Abba P. Lerner, cuja obra A economia do
controle, de 1944, forneceu melhor elaboração e formalização para os modelos de
socialismo de mercado. Na época, teve igualmente grande reputação o trabalho de Abram

274
Bergson intitulado Economia socialista, de 1948, também sobre o cálculo em economias
planejadas.
A visão compartilhada de que uma economia socialista poderia ser racionalmente
viável fortaleceu-se também sob a influência dos acontecimentos políticos em meados
dos anos 1940. A vitória soviética imposta à Alemanha nazista, a anexação da Europa
Oriental na esfera das economias planejadas e o notável sucesso econômico obtido na
reconstrução daquelas economias persuadiram a muitos de que o socialismo poderia ser
mais eficiente e racional que o capitalismo.
O bom desempenho nas taxas de crescimento dos países de economia centralmente
planejada, nos anos do pós-guerra, contribuiu para aumentar a confiança nos modelos
socialistas de mercado que se desenvolveram de modo continuado nas décadas
seguintes. Novos modelos de equilíbrio geral para economias socialistas foram criados
por Gustav Cassel, H. Zassenhaus, A. Bilimovich e W. Krelle, e aplicados na Rússia sovié-
tica nos anos 1960 por L. V. Kantorovich e Pugachev, dentre outros.
Ao mesmo tempo em que a economia do planejamento ia desenvolvendo-se no
plano teórico, novas técnicas analíticas foram sendo criadas. Tais técnicas foram
plenamente incorporadas por toda a ortodoxia econômica teórica: desde a matriz
insumo-produto até os modernos modelos de equilíbrio geral computável. Contudo,
sofisticadas técnicas computadorizadas de planejamento, elaboradas para a solução dos
modelos de equilíbrio geral, mostraram-se inviáveis na prática. Eminentes planejadores
das economias socialistas como J. G. Zielinski e M. Augustinovics tão cedo se deram
conta desse fato. Inteiramente cépticos quanto à aplicação dos modelos de equilíbrio
geral, os planejadores preferiam métodos administrativos tradicionais, não formalizados
por uma teoria científica, aos modelos matemáticos de planejamento.
As dificuldades de implementação de um modelo teórico que se tornava cada vez
mais complexo e a ruína econômica dos países socialistas enfraqueceram o apelo dessa
linha de pesquisa. Não se pode dizer conclusivamente que, do ponto de vista prático,
tenha fracassado o modelo originalmente idealizado por Barone. Interessa-nos constatar
que a teoria do planejamento esteve, no século XX, associada ao desenvolvimento do
programa do equilíbrio geral, ajudando-o a consolidar-se como linha teórica hegemônica
na economia, ao mesmo tempo em que ocorrera o expurgo do subjetivismo na economia
marginalista.
Os críticos à possibilidade de cálculo racional no socialismo edificaram importante
conjunto de trabalhos em economia, realçando elementos como informação e conheci-
mento que vieram a ser úteis e esclarecedores na evolução do pensamento econômico.
Economistas austríacos, como Ludwig von Mises e F. A. Hayek, teceram importantes
considerações mostrando os limites do cálculo econômico socialista no que ficou conhe-
cido como “debate do cálculo socialista”, um dos mais frutíferos na história do pensamento
econômico.

TRADIÇÃO DE EQUILÍBRIO GERAL APÓS WALRAS


Léon Walras foi resgatado da quase completa ignorância apenas na década de 1950,
porém, bem antes disso a tradição do equilíbrio geral se havia firmado entre os
economistas. Em 1930, o estado do conhecimento nessa tradição girava em torno da
contribuição do eminente economista sueco Gustav Cassel. O livro de Cassel A teoria da
economia social foi o primeiro trabalho em equilíbrio geral a ganhar notoriedade
acadêmica. Como em Cournot, ele não utiliza a noção de utilidade marginal, e a demanda
é um conceito primitivo. As relações entre fatores de produção (inputs) e produto final
(outputs) são equacionadas, embora as possibilidades de substituição entre os primeiros
sejam tratadas apenas verbalmente. Cassel apresenta um sistema teórico que sugere uma

275
abordagem na questão da existência do equilíbrio. Seu modelo pode ser formalizado da
seguinte maneira:
Sejam as variáveis:
r fatores de produção;
R1,...,Rr quantidades de fatores (em dado período);
n bens, com coeficientes técnicos aij representando a quantidade j do insumo
necessário à produção do bem i;
q1,...,qr preços de fatores;
p1,...,pn preços de produtos.
No equilíbrio, os preços dos produtos igualam-se ao custo dos fatores empregados:
a11 q1 + a12 q2 + ... + a1r qr = p1
a21 q1 + a22 q2 + ... + a2r qr = p2
...
an1 q1 + an2 q2 + ... + anr qr = pn
Com base nos preços conhecidos, podem-se determinar as demandas:
D1 = F1(p1, ..., pn )
D2 = F2(p1, ..., pn )
...
Dn = Fn(p1, ..., pn )
Cassel supõe que as funções Fi são homogêneas de grau zero em preços e renda. Na
hipótese de equilíbrio de mercado, oferta S e demanda igualam-se em cada bem D1 = S1,
D2 = S2, ..., Dn = Sn. A demanda dos fatores de produção corresponde ao uso deles na
produção dos bens ofertados, em equilíbrio com as respectivas demandas finais, de modo
que:
dem1 = a11 S1 + a21 S2 + ... + an1 Sn
dem2 = a12 S1 + a22 S2 + ... + an2 Sn
...
demr = a1r S1 + a2r S2 + ... + anr Sn
em que demi representa a demanda pelo fator i. O equilíbrio nos mercados de fatores
impõe que Ri = demi em cada i.
No sistema de Cassel, a condição de equilíbrio é logicamente alcançada da seguinte
maneira: dado um conjunto de preços de fatores, determinam-se os preços dos produtos;
tais preços fornecem a demanda, e a demanda determina a oferta pela condição de
equilíbrio. A demanda total pelos fatores é a soma das suas demandas em cada setor e,
finalmente, temos a condição de equilíbrio no mercado de fatores em que se obtém a oferta
dos fatores. Cassel define formalmente bens escassos como aqueles que utilizam fatores com
preços positivos qj > 0 (ao menos um); considerando-se os coeficientes técnicos aij > 0, tem-
se preços positivos para bens escassos, pi > 0.
A solução de equilíbrio geral, no modelo de Cassel, resulta da relação causal entre
as equações. Como em Walras, nesse sistema de equações o número de equações iguala-
se à quantidade de incógnitas. Como Walras, Cassel não afirma que a solução exista por

276
causa dessa igualdade. Ele acredita que contar as equações (3n + 2r) não prova a
existência de preços relativos de equilíbrio, o que é correto, e deixa a seus seguidores a
tarefa de demonstrar formalmente a possibilidade de solução do equilíbrio geral.
O modelo de Cassel é estendido por ele na aplicação para o caso de uma sociedade
que progride à taxa constante. Nesse caso, a oferta dos fatores Ri cresce à taxa c. A taxa
de progresso c depende do volume de poupança na economia. Os elementos condicio-
nantes da poupança são analisados por Cassel, dentre eles as taxas de juros e o
crescimento real do estoque de capital vis-à-vis a demanda de capital no setor de
produção.
O livro de Cassel tornou-se o texto padrão no ensino de equilíbrio geral na década
de 1930. No entanto, havia a clara percepção de que o tratamento oferecido por ele ainda
era elementar e essa temática demandaria uso mais desinibido de técnicas de análise
matemática. Nos anos 1920 e 1930, o assunto torna-se atrativo para os bons matemáticos
radicados em Viena. Na evolução da teoria do equilíbrio geral, três expoentes aparecem
de forma destacada: Karl Menger, filho de Carl Menger, Abraham Wald e Karl Schlesin-
ger.
Nesses anos, Viena fervilhava em intensa atividade intelectual. No desenvolvimento
da matemática apareceram os conceituados trabalhos de Karl Menger, Frank Hahn e
Kurt Gödel. Viena também se destaca pelos debates em filosofia, impulsionados pela
criação do chamado Círculo de Viena que congregava eminentes filósofos, tais como
Ernst Mach e Moritz Schlick (fundadores do movimento), Otto Neurath, Rudolf Carnap
e Friedrich Waismann. Alfred Tarski, Hans Reichenbach, e Carl Hempel mantinham
relações especiais com o “Círculo”. Esporadicamente como visitantes, os filósofos Alfred
Jules Ayer e Willard van Orman Quine frequentavam-no.
A crença geral de que a ciência é central para a filosofia e de que a matemática ocupa
o primeiro lugar na filosofia influencia Karl Menger e o atrai aos pesados problemas
matemáticos suscitados pela tradição de equilíbrio geral em economia. K. Menger foi
renomado matemático que se valeu do boom de trabalhos matemáticos entre meados
dos anos 1920 e meados da década de 1930. Menger pôde contar com a ajuda e a
contribuição de outros eminentes matemáticos, como Stefan Banach e J. von Neumann,
também atraídos pela atmosfera de Viena. Também foi importante o contato com
Abraham Wald, o judeu autodidata que conviveu com ele por um breve período. Wald
foi importante na tradição de equilíbrio geral por ter, pela primeira vez na história,
oferecido uma prova matemática rigorosa da existência de solução única ao equilíbrio
geral. Wald não participara dos colóquios matemáticos de Viena e perdeu contato com
Menger. Enquanto lutava em guerra na Romênia, Wald enviou-lhe um manuscrito em
que se encontrava a solução do problema.
Outro autor que, ao lado de Wald, contribuiu para modificar as equações do modelo
de Cassel foi Karl Schlesinger (1889-1938), seguidor imediato de Walras que desenvolveu
a teoria da utilidade indireta da moeda. Seguindo o mesmo rumo de Cassel, Schlesinger
também não ocupou posto acadêmico. Em seu artigo “Sobre as equações de produção
da teoria econômica do valor”, de 1933, ele usa a linguagem matemática para expressar
o problema do equilíbrio geral numa economia. As variáveis de seu modelo são:
ri unidades disponíveis do input Ri;
m inputs e n outputs Sj (sj é quantidade produzida de Sj);
Preços dos inputs i e preços dos outputs j.
Schlesinger começa por determinar a oferta de fatores com base na demanda total
requerida na produção de n bens, tal como expressa nos coeficientes técnicos aij:
r1 = a11 s1 + a12 s2 + ... + a1n sn

277
r2 = a21 s1 + a22 s2 + ... + a2n sn
...
rm = am1 s1 + am2 s2 + ... + amn sn
Os preços dos bens finais j são obtidos com base nos preços dos inputs i :
1 = a11 1 + a21 2 + ... + am1 m
2 = a12 1 + a22 2 + ... + am2 m
...
n = a1n 1 + a2n 2 + ... + amn m
Schlesinger trabalha com funções de demanda marshalliana, nas quais os preços de
demanda dos bens finais são determinados com base nas quantidades de todos os bens
finais produzidos:
1 = f1(s1, s2,..., sn )
2 = f2(s1, s2,..., sn )
...
n = fn(s1, s2,..., sn )
Ao mesmo tempo em que satisfazem o sistema de equações anterior, ’s são tais que
os preços de demanda se igualam aos custos (conforme o segundo sistema acima).
Schlesinger reconhecia que as equações apresentadas não possuem necessariamente
solução. Mesmo que exista uma solução, não é garantido que i, j e sj sejam positivos,
ou seja, nem toda solução, se existir, tem significado econômico. Enquanto Walras e
Cassel incorporam em seus modelos quantidades de inputs Ri na hipótese de que eles
sejam escassos, para Schlesinger não se deve considerar a escassez como algo exógeno,
porque ela depende da curva de demanda, das possibilidades técnicas etc. Assim, ele
separa inputs escassos de inputs livres. No primeiro grupo, escreve
ri = ai1 s1 + ai2 s2 + ... + ain sn e i > 0
Para inputs livres:
ri  ai1 s1 + ai2 s2 + ... + ain sn e i = 0
Assim, as primeiras m equações de oferta de fatores são substituídas por ri = ai1s1 +
ai2s2 + ... + ainsn + ui , na qual ui  0 e ui > 0 implica i = 0.
As 3m + 2n equações do sistema de Cassel são substituídas por m + 2n equações
e m condições laterais com 2m + 2n incógnitas ui, j, sj e ri (i = 1,..., m e j = 1,..., n). O
equilíbrio, no sistema de Schlesinger, é caracterizado por equações e inequações. Ele
problematiza a existência do equilíbrio não apenas mostrando, como em Walras e Cassel,
que contar equações e incógnitas não resolve, mas também apontando para a
necessidade de condições complementares sobre a folga (slackness) ui.
Wald desenvolve um teorema da existência do equilíbrio geral com base no trabalho
de Schlesinger. O grande achado de Wald foi a prova da solução única ao equilíbrio geral,
desde que se garanta que as funções que conectam os preços dos produtos às quantidades
produzidas satisfaçam a certas condições implicadas pela utilidade marginal. Ele impôs
condições de não-negatividade e outras restrições à função de demanda fi de Schlesinger.
Wald desenvolve suas ideias em quatro artigos. No primeiro, “Sobre a solução única de
não-negatividade nas novas equações de produção”, de 1934, elabora um teorema,

278
provando a solução única do sistema de equações de equilíbrio geral. Formalmente,
escreve:
ri = j aij sj + ui (i = 1, ..., m)
j = i aij i , [θj = fj (sj)] ( j = 1, ..., n)
Nas quais os ψi e aij são quantidades dadas, os fj são funções conhecidas e os ui, ri, sj e θj
são valores desconhecidos. Tal sistema possui conjunto solução de valor único nos
valores ui , sj e j , quando as seguintes condições se mantêm:
1. ri  0 (i = 1,..., m).
2. aij  0 (i = 1,..., m; j = i,..., n).
3. Para cada j (j = 1, ..., n), existe ao menos um i (i = 1, ..., m) para o qual aij  0.
4. Em cada um dos valores j = 1, ..., n, a função fj (sj ) é definida para valores positivos
de sj e o valor dela é não-negativo, contínuo e estritamente monotônico
decrescente, isto é, sj’ < sj implica fj (sj’) > fj(sj ). Adicionalmente, lim sj → 0 fj(sj ) =
. A vigência dessa condição depende que se mantenham as seguintes condições
laterais:
a) sj  0 ( j = 1,..., n),
b) i  0 (i = 1,..., m),
c) j  0 ( j = 1,..., n),
d) ui  0 ( i = 1,..., m),
e) Se ui > 0 então ψi = 0 ( i = 1,..., m).
As condições 1, 2, 4a, 4b e 4c impõem restrições de não-negatividade, enquanto as
restrições 4d e 4e incidem sobre as condições complementares da folga (slackness).
A prova do teorema, tal como feita por Wald, é um tanto trabalhosa; ele usa o
princípio da indução matemática. Wald lida com questões matemáticas profundas sobre
a existência e a unicidade do equilíbrio. Nesse sentido, ele é um marco na evolução da
tradição de equilíbrio geral.
O teorema de Wald da existência da solução única do equilíbrio geral apresenta a
limitação de considerar o preço de demanda do bem j como função apenas da quantidade
desse bem. Tais funções traduzem curvas de demanda negativamente inclinadas. Em
outro artigo, “Sobre as equações de produção na teoria do valor econômico”, de 1935,
Wald, ciente da limitação, considera nova função para os preços dos outputs como
representando a demanda de mercado, agora tendo-se o preço de demanda como
dependendo de todas as quantidades dos diferentes produtos, como na função de
demanda marshalliana de Schlesinger:
j = fj (s1, s2,..., sn) ( j = 1, 2,..., n)
No mesmo artigo, ele substitui a hipótese 4, relativa à monotonicidade de fj(sj), pela
seguinte hipótese: sejam t1, ..., tn n números dentre os quais ao menos um tj < 0, e seja j
j’. tj  0; então temos que j j’. tj < 0 no qual j’ = fj (s1+ t1, ..., sn+ tn) ( j=1, 2, ..., n).
Outro axioma, que substitui o anterior, pode ser interpretado como o “axioma fraco
da preferência revelada”, muitos anos antes do famoso trabalho de P. Samuelson. Esse
mesmo axioma seria derivado do “teorema da diagonal dominante”, descoberto anos
depois na literatura. Essas antecipações de ideias mostram o poder da intuição de Wald.
Há um terceiro artigo de Wald que se encontra perdido. Ele é mencionado por Wald e

279
existe uma carta de John Chipman para Peter Morgenstern na qual se encontram
referências a ele. K. Arrow acredita que, nesse artigo, Wald tenha utilizado o importante
“teorema do ponto fixo” na demonstração do equilíbrio geral numa economia
competitiva. As provas dos teoremas foram perdidas com o desaparecimento do artigo.
O quarto artigo de Wald foi publicado na revista Econometrica, em 1951, intitula-se
“Sobre alguns sistemas de equações na economia matemática”. É um survey de
trabalhos anteriores no qual ele reconhece explicitamente não ter tratado da questão da
formação de capital e de juros, e ter restringido a tecnologia a um único método. Expressa
então curvas de indiferença por meio de equações diferenciais. Ele também trabalha com
novas hipóteses a fim de assegurar a existência do equilíbrio: nenhum indivíduo tem
estoques negativos, há estoques positivos para cada bem, todos os indivíduos possuem
uma dotação orçamentária positiva e vale a lei da utilidade marginal decrescente. Wald
exclui a relação de substitutibilidade e complementaridade entre os bens.
Outro autor importante na evolução da tradição de equilíbrio geral foi John von
Neumann (1903-1957), que também tem contribuições na mecânica quântica. O interesse
dele por economia inicia-se com a publicação de A teoria dos jogos, em 1928, em que ele
apresenta a teoria de jogos de decisão com um número finito de estratégias, bem como a
primeira prova do teorema minimax de escolha ótima em ambiente onde as ações de cada
agente são condicionadas pela expectativa do comportamento dos outros. Em 1937, ele
apresenta a versão acabada de sua contribuição em equilíbrio geral no artigo “Sobre um
sistema de equações econômicas e a generalização do teorema do ponto fixo de Brouwer”,
considerado um dos mais importantes artigos em teoria matemática de todos os tempos.
O teorema do ponto fixo é um importante teorema matemático usado na prova da
existência do equilíbrio geral. O trabalho de von Neumann contém:
1. A primeira sentença explícita do modelo de produção com análise da
atividade, a chamada teoria do capital não agregativa.
2. O primeiro uso de certas ferramentas: argumento da dualidade, técnica do
ponto-fixo para a prova da existência e argumento de convexidade.
Von Neumann assume retornos constantes de escala, que os fatores de produção
possam ser expandidos em quantidades ilimitadas e que o consumo ocorre ao longo do
processo de produção.
A sequência que começa no artigo de Schlesinger e continua com Wald e Von Neu-
mann não para por aí. Nos anos seguintes, Koopmans, Arrow, Debreu, Hicks, Hahn,
McKenzie, Lange e Samuelson contribuirão para o amadurecimento da teoria do equilíbrio
geral.
Em 1930, o equilíbrio era visto mais como definição de um balanço de forças do que
algo que deveria ser provado. Hoje, sabemos que o modelo de Cassel, em voga até então, é
insuficiente por não provar, com matemática, o equilíbrio geral e não excluir a possibili-
dade de preços negativos. Schlesinger torna as hipóteses do modelo mais coerentes ao
aventar a possibilidade de bens livres, contudo, ele ainda não havia demonstrado a
existência do equilíbrio. Wald prova o equilíbrio primeiramente na hipótese de ausência
de relação de complementaridade entre os bens, depois remove tal restrição e faz hipóteses
mais coerentes sobre a estrutura de mercado. Von Neumann segue tradição diferente e
propõe um modelo de crescimento desagregado, outra vertente de modelos de equilíbrio
geral.
Arrow e Debreu constroem a prova da existência de equilíbrio geral pelo uso de
modelos canônicos que utilizam a hipótese de convexidade no conjunto de produção e
consumo e o teorema do ponto fixo de Brouwer e Kakutani. K. Arrow e R. Hahn, no
importante artigo “Análise da competição geral”, fazem a ligação da prova da existência
do equilíbrio por Arrow e Debreu com os trabalhos de Wald e John Nash (outro expoente
em teoria dos jogos ao lado de Von Neumann). Em 1958 e 1959, a questão da unicidade da

280
solução do equilíbrio geral é tratada por Arrow, Hurwicz e Block, que demonstram que a
existência de solução única requer a substitutibilidade bruta. Hicks expande o conjunto de
interpretações permitidas até então; trabalha conceitos mais explícitos de agente, escolha
otimizadora, mercadoria e equilíbrio. Introduz, no modelo, variáveis como tempo, bens de
capital e um tipo de moeda. Hicks integra a tradição de equilíbrio geral com a teoria do
capital de Wicksell e também incorpora, nessa tradição, o trabalho de Keynes em teoria
monetária no que ficou conhecido como síntese neoclássica. Lange e Samuelson
estenderam a interpretação dos termos básicos. Hicks, em 1939, e Samuelson, em 1941 e
1942, discutem o problema da estabilidade do equilíbrio geral. A hipótese walrasiana de
tateamento é substituída por modelos menos estilizados. Outra alternativa teórica para
explicar o processo de equilíbrio dos mercados, diferente da ideia de tateamento, foi a
teoria do “recontrato” de Edgeworth, em que os contratos de compra e venda são tentativas
sujeitas a revisões que se sucedem até alcançar-se o equilíbrio.
Sobre a proposição, já presente em Walras, de que não se pode considerar transa-
ções fora do equilíbrio para efeito do modelo, Samuelson, Uzawa e Hahn demonstram
rigorosamente que não haverá solução única se houver transações desse tipo.
Ao longo dessa sequência de trabalhos de diferentes autores, a tradição de equilíbrio
geral fora amadurecendo. Em sua evolução, cada nova versão deixa um conceito não
interpretado que viria a ser interpretado pela versão sucessora. Por anos seguidos,
teóricos procuraram criar modelos em que termos como agente, preferência, otimização
e equilíbrio tenham sentido bem definido. Arrow e Debreu deram contribuições que leva-
ram ao cume o esforço de articulação.
No século XX, a tradição do equilíbrio geral, inicialmente proposta por Walras,
conhecera, de fato, grande desenvolvimento teórico, solidamente apoiado no avanço das
técnicas matemáticas. Filósofos e certos economistas tentaram desacreditar a tradição,
dizendo que ela tem pouca base empírica e que não é realmente uma teoria de equilíbrio
geral, mas tão somente uma construção estratégica a fim de se fazer análise econômica,
uma investigação puramente lógica.
O eminente metodólogo da economia, Mark Blaug, considera a ausência de testes
empíricos na teoria do equilíbrio geral grave defeito, diz que ela não constrói uma ponte
para cruzar o mundo das teorias na direção do mundo dos fatos. Tais acusações, no
entanto, são injustas e perigosas, pois, oriundas de má compreensão da natureza da
teoria em questão. Na verdade, a teoria do equilíbrio geral leva a resultados empíricos
importantes. Os exemplos de evidências empíricas são amplos. Com ela, pode-se avaliar,
por exemplo, demanda por eletricidade, fundos de seguridade social, desregulamentação
das drogas, demografia econômica etc. Deve-se reconhecer, no entanto, que a possibi-
lidade de refutar a tradição com base em resultados empíricos falsificadores não é viável
a curto prazo. Os testes empíricos recaem mais em teorias derivadas (teoria da demanda,
do capital humano, da proteção efetiva etc.) do que na estrutura central do modelo de
equilíbrio geral. Com efeito, nem de longe a teoria do equilíbrio geral é atividade
meramente matemática, de interpretação e de classificação de conceitos.
Há muito a comunidade acadêmica deu-se conta de que tentar responder a um
problema econômico qualquer, sem levar em consideração o modelo de equilíbrio geral,
só produz resultados excessivamente abstratos e de pouco poder explanatório. Por isso,
é importante o conhecimento das estruturas dos mercados relacionados de modo que se
infiram a existência de equilíbrio, a convergência global dos preços etc.

281
Questões

1. Quais as condições requeridas para o equilíbrio subjetivo e o equilíbrio dos mercados


no modelo de Walras?
2. O que significam equilíbrio estável e equilíbrio instável no modelo de Walras?
3. Por que, na solução do problema da troca simples em Walras, há a possibilidade de
equilíbrios múltiplos?
4. Sejam duas mercadorias, A e B. Walras define duas ofertas, Oa e Ob, e duas demandas
Da e Db, sob o suposto de que as quantidades ofertadas resultam das quantidades
demandadas no fenômeno da troca in natura de duas mercadorias uma pela outra.
Como  é uma constante positiva e pa e pb os preços relativos de A e B, tal que pa.pb
= 1, deduza as seguintes relações:
a. Oa = pb. Db
b. Ob =pa. Da
c. Se Da = .Oa, prove que sempre que ocorrer um excesso de oferta num dos
mercados existirá, ao mesmo tempo, excesso de demanda no outro mercado e
vice-versa.
d. Se Da = .Oa, quando  = 1, ambos os mercados de A e B estarão em equilíbrio.
5. Descreva o funcionamento circular da economia descrita por Walras.
6. Como Walras define os conceitos de “capital fixo” e “capital circulante”? Quais são
os fatores de produção no modelo de Walras e por que não se pode dizer que os
fatores são diretamente empregados na produção?
7. Quais são as condições requeridas para a maximização individual no equilíbrio geral
subjetivo? Usando a função de Lagrange, mostre que para cada bem e serviço
produtivo, as raretés são proporcionais aos respectivos preços.
8. Mostre que, no sistema walrasiano de equações que descrevem o equilíbrio
subjetivo, o número de incógnitas é igual ao número de equações.
9. Descreva as equações requeridas no modelo walrasiano de equilíbrio geral dos
mercados e mostre que o número de equações corresponde ao número de incógnitas.
10. Por que usamos a expressão “empresário Sísifo” para descrever a função dos
empresários no modelo de Walras?
11. Na análise walrasiana da troca simples, como ele deduz o formato da curva de oferta,
do bem dado em troca, com base na curva de demanda do bem desejado?
12. Descreva a atuação do leiloeiro walrasiano. É possível descrever o processo de
convergência ao equilíbrio sem a hipótese do leiloeiro?
13. Comente a passagem em que se escreve: “Em Walras, os preços não são nada além
de uma medida das relações de equivalência técnica e psicológica entre os vários
bens presentes no sistema de produção e troca.”
14. No que consiste a hipótese de “instrumentos neutros” do economista E. Barone?
15. Descreva o procedimento de “tentativa e erro” que, segundo O. Lange, possibilitaria
ao planejador central obter os preços de equilíbrio.
16. Explique como a condição de equilíbrio é logicamente alcançada no modelo de G.
Cassel.

282
17. Por que para K. Schlesinger algumas das soluções do modelo de equilíbrio geral
podem não ter significado econômico?
18. Qual o artifício algébrico usado por Schlesinger para incorporar a distinção entre
fatores escassos e livres nas equações de equilíbrio geral?
19. Comente a contribuição de Wald para o desenvolvimento da microeconomia. Por
que se diz que ele antecipou a teoria da preferência revelada de P. Samuelson?
20. Por que se argumenta que transações fora do equilíbrio impossibilitariam a conver-
gência ao equilíbrio geral?
21. Comente: “A teoria do equilíbrio geral não tem conteúdo empírico e, portanto, ela
deve ser descartada.”

283
Leitura Adicional

Leitura Primária

BARONE, E. The ministry of production in the collectivist state. In: HAYEK, F. A. (Ed.).
Collectivist economic planning. New York: Augustus M. Kelley, [s.d.].

LANGE, O. On the economic theory of socialism. The Review of Economic Studies, v. 4, 1,


1936.

WALRAS, Léon. Compêndio dos elementos de economia política pura. São Paulo: Nova
Cultural, 1988.

CASSEL, Gustav. Economia social e teórica. Madri: Aguilar, 1960.

Leitura Secundária

BLAUG, M. Metodologia da economia ou como os economistas explicam. São Paulo:


Edusp, 1993.

JAFFÉ, William. Léon Walras’s role in the ‘marginal revolution’ of the 1870’s. History of
Political Economy, v. 4, 2, 1972.

_____. Essays on Walras. Editado por Donald A. Walker. Cambridge: Cambridge


University Press, 1983.

KEIZER, W. Recent reinterpretations of the socialist calculation debate. Journal of


Economic Studies, v. 16, 2, 1989.

MIROWSKI, Philip. More heat than light: economics as social physics; physics as nature
economics. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

NAPOLEONI, Claudio. O pensamento econômico do século XX. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1979.

WEINTRAUB, E. Roy. General equilibrium analysis: studies in appraisal. Cambridge


University Press, 1985.

SCHNEIDER, Erich. Teoria econômica: capítulos selecionados da história da teoria


econômica. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1968.

284
11
Carl Menger, Schumpeter e a Escola
Austríaca

MENGER: VIDA, FILOSOFIA, CONCEITOS BÁSICOS,


VISÃO DA ECONOMIA
Carl Menger (1840-1921), o pai da escola austríaca, nasceu em Nova Sandec, cidade
que hoje pertence à Polônia. Tornou-se um dos economistas mais influentes de todos os
tempos. Suas ideias afetaram sensivelmente o pensamento econômico do século XX,
principalmente pela influência exercida por discípulos diretos que deram renome à
escola austríaca de economia. No entanto, os escritos de Menger permaneceram, na
época, pouco lidos e mal compreendidos. De fato, seu principal livro em teoria,
Princípios de economia política (“Grundsätze der Volkswirthschaftslehre”), de 1871, foi
reimpresso somente após 52 anos de seu lançamento e demorou 79 anos para ser
traduzido ao inglês, sob o nome de “Principles of economics: first general part ” (a
Figura 11.1 mostra a capa da edição original da obra). Outro livro igualmente importante,
mais sobre método do que teoria, Investigações sobre o método das ciências sociais e da
economia política em particular (“Untersuchungen über die Methode der Social-
wissenschaften und der politischen Oekonomie insbesondere”), de 1883, também
demorou a ser traduzido e apenas em 1963 ganhou versão em inglês com o título
“Problems of Economic and Sociology”. Uma nova edição em inglês, de 1985, aproxima
o título do nome original em alemão: “Investigations Into the Method of the Social
Sciences With Special Reference to Economics” (a Figura 11.2 mostra as capas da duas
traduções ao inglês).

Figura 11.1 Capa original do famoso livro de teoria econômica de Carl Menger.

285
Figura 11.2 Capas de duas traduções ao inglês da obra metodológica de Carl Menger.

Menger resume a principal tese da obra metodológica:


“O direito, a linguagem, o Estado, a moeda, o mercado, todas essas estruturas
sociais, em suas várias formas empíricas e em suas mudanças constantes, são, em
grande extensão, o resultado não intencional do desenvolvimento social [...] Nós
somos aqui confrontados com o aparecimento de instituições sociais que, em
grande medida, servem o bem-estar da sociedade. De fato, elas são muito
frequentemente de importância vital para ela e ainda não são o resultado da
atividade social comunal. É aqui que encontramos um problema significativo,
talvez o mais significativo, das ciências sociais: como é possível que instituições
que servem o bem-estar comum e são extremamente importantes para seu
avanço possam surgir sem uma vontade comum visando sua criação?” (Carl
Menger, Investigações sobre o método das ciências sociais...)
Vimos no Capítulo 8 que, embora o nome de Menger esteja associado à Revolução
Marginalista, ao lado de Jevons e Walras, historiadores das ideias reconhecem, hoje, a
necessidade de separar a contribuição de cada um deles; procedimento conhecido na
literatura como “desomogeneização”. Também há diferenças entre as teses de Menger e
de seus seguidores da escola austríaca.
O pensamento de Menger afigura-se bastante original, e é difícil identificar
influências que se exerceram sobre ele; todavia, sua vida e a reconstituição do ambiente
intelectual de Viena ajudam a entendê-lo. Menger decidiu, de início, seguir a mesma
carreira do pai, um advogado atuante que lhe proporcionou acesso à literatura sobre
questões econômicas e sociais presente na biblioteca particular da família. Herdou do pai
o hábito de colecionar livros e montou uma biblioteca com mais de 25 mil exemplares.
Tal acervo encontra-se atualmente na Universidade de Hitotsubashi, no Japão. Menger
estudou direito na Universidade de Viena, em 1859 e 1860, e em Praga, de 1860 a 1863.
Doutorou-se em Cracóvia, em 1867, dedicando-se, em seguida, ao jornalismo, em que
pôde escrever sobre economia, dentre outros assuntos. Depois tornou-se servidor civil.
Na condição de funcionário público, atuava como jornalista econômico, cabendo-lhe,
entre outras coisas, a tarefa de escrever, a um órgão oficial, resenhas ou relatórios sobre
a situação dos mercados. A tarefa despertou nele interesse por uma teoria dos preços que
estivesse próxima da experiência quotidiana dos homens práticos. Friedrich A. von
Hayek (1889-1992), da mesma escola, escreve sobre Menger dizendo que ele,
“[...] ao estudar os relatórios de mercado, se deu conta do marcante contraste
existente entre as teorias tradicionais sobre os preços e os fatos que pessoas de

286
experiência prática consideravam decisivos para a determinação dos preços.” (F.
A. Hayek, Carl Menger, International encyclopedia of the social sciences)
Menger preocupou-se com o problema da determinação dos preços a partir de 1867,
tendo trabalhado em sua solução até a publicação de sua única obra em teoria econômica,
Princípios de economia política. Na ocasião, era ainda jovem, tendo 31 anos. Trata-se da
primeira parte de um tratado que se propunha amplo. A primeira edição, de 1871, seria
apenas uma parte introdutória de uma obra mais extensa. A edição lida com as condições
gerais que originam a atividade econômica, o valor, as trocas, os preços e a moeda. O
plano completo da obra fora idealizado em quatro volumes: a segunda parte trataria de
juro, salário, renda, receita, crédito e papel-moeda; outra parte seria sobre economia
aplicada, versando sobre temas como teoria da produção e do comércio. A parte final
conteria uma crítica à ordem econômica vigente e sugestões para uma reforma
econômica. Menger nunca elaborou as três partes seguintes do tratado. Uma segunda
edição dos “Princípios” foi lançada postumamente por seu filho, o matemático Karl, em
1923.
Hayek conta que Menger “escrevera os Princípios em um estado de excitação doen-
tia”, e não poupa elogios a esse trabalho:
“Poucos são os livros que passaram por uma preparação mais cuidadosa do
que esse, e raramente qualquer esboço de ideia foi planejado e seguido mais
conscienciosamente em todas as suas ramificações e detalhes.” (ibidem)
Menger foi levado a desenvolver sua própria teoria baseado na crítica à obra de Karl
Heinrich Rau (1792-1870). Estudou cuidadosamente o livro de Rau antes de escrever os
“Princípios”. Aquele livro contém diagramas usando curvas; contudo, a teoria de Rau e
as outras que prevaleceram nesse período ofereciam duas explicações diferentes para a
determinação dos preços, dependendo de o bem ser reproduzível ou não. No primeiro
caso, ainda mantinha a explicação clássica do valor com base no custo de produção, sem
explicar como os preços dos fatores seriam determinados.
Após escrever seu principal livro em economia, Menger torna-se professor de
economia política na Universidade de Viena, onde permaneceria de 1873 a 1903. Em
1878, o imperador austríaco Franz Josef nomeou-o para a cadeira de economia política
em Viena, sob o título de Hofrat (algo como Conselheiro do Tribunal).
Cabe aqui uma breve consideração do ambiente intelectual de Viena nessa época. A
cidade era importante centro de ideias. A física moderna, a literatura, a psicanálise e
tantos outros campos do conhecimento científico e artístico devem seu desenvolvimento,
no século XX, em parte às discussões que fervilhavam, naquela época, nos círculos
intelectuais vienenses. Verifica-se, entretanto, pouco interesse em teoria econômica. A
economia científica era ensinada por professores alemães que tinham formação em
sociologia. Em consequência, não se poderia esperar de Viena grande contribuição à
teoria econômica. Até 1846, o ensino de economia nas universidades austríacas usava o
livro do cameralismo do século XVIII, de Joseph von Sonnenfels, ou então o trabalho
mais recente de J. Kudler, o qual continha alguma discussão da relação do valor com
utilidade e o significado dos diferentes graus de necessidades atendidos por várias
mercadorias.
Não é fácil identificar quem teria fornecido a Menger a sugestão decisiva para o
desenvolvimento de sua teoria. A literatura alemã devotava mais atenção à relação entre
valor e utilidade em relação aos escritores ingleses. Nenhum dos trabalhos alemães,
porém, chegou próximo à solução do problema que ele propôs. O austríaco não conhecia
o trabalho de Gossen e é improvável que o ambiente local em que ele trabalhava tenha
fornecido muito estímulo à percepção dos problemas que estava interessado. Trabalhou
em completo isolamento, não tendo quando jovem oportunidade de discussão.

287
A formação de Menger como economista está intimamente ligada ao pensamento
alemão. A escola histórica alemã influenciou os “Princípios”, muito embora ele, anos
depois, tenha contraposto suas ideias metodológicas às dessa escola, criticando
principalmente a crença de Gustav Schmoller de que seria possível identificar leis histó-
ricas.
Com relação ao seu livro de metodologia, o “Untersuchungen” causou uma celeuma
durante a qual membros da Escola Histórica, em especial Schmoller, começaram a
chamar ironicamente Menger e seus alunos de "Escola Austríaca", para enfatizar o
afastamento destes do pensamento econômico dominante na Alemanha. Em 1884,
Menger responde com o panfleto Os Erros do Historicismo na Economia Alemã e lança-
se à infame controvérsia de métodos (a batalha dos métodos ou “Methodenstreit”).
Durante esse período, Menger começa a atrair discípulos com ideias semelhantes
que continuariam a deixar sua própria marca no campo da economia, principalmente
Eugen von Böhm-Bawerk e Friedrich von Wieser, a chamada “segunda geração da escola
austríaca”.
As ideias de Menger foram consolidadas dentro do espírito do pensamento
romântico-historicista típico do século XIX, o que explica certas particularidades de sua
terminologia, obscura para os padrões da microeconomia do século XX. Dessas
influências, Menger extrai a visão de um mundo de ignorância do agente e de informação
incompleta, dando papel de relevo ao conceito de expectativa (mais do que em Jevons e
Walras), bem como toma emprestado os blocos básicos para a construção de sua teoria
econômica. Herda o conceito alemão de desejos e necessidades humanas (“Bedürfnis”37),
que ocupa um papel central em sua teoria, representando o ponto inicial da atividade
econômica voltada à satisfação deles.
Se o atendimento de desejos e necessidades é o propósito da atividade econômica,
um elemento externo se interpõe entre necessidades, desejos e sua satisfação: o bem
econômico. Menger procura estabelecer a origem e a natureza dos bens e de outras
noções econômicas como riqueza, escassez, moeda e valor.
No capítulo 1 dos “Princípios”, Menger examina a natureza dos bens. Busca iden-
tificar um princípio de causalidade subjacente a todas as coisas. Para ele, uma lei de causa
e efeito comanda todos os fenômenos econômicos e rege também nossa personalidade e
a passagem da mente de um estado para outro. No indivíduo, as causas operam na
transformação de um estado de necessidade para outro de satisfação. Os bens são:
“Coisas capazes de serem colocadas em nexo causal com a satisfação de nossas
necessidades humanas.” (Carl Menger, Princípios de economia política)
Na medida em que reconhecemos esse nexo causal,
“[...] temos a possibilidade e a capacidade de utilizar as referidas coisas para
satisfazer efetivamente às nossas necessidades.” (ibidem)
As coisas adquirem a qualidade de bem não apenas em função de uma propriedade
inerente a elas, mas levando-se em conta também o conhecimento e o imaginário
humanos.
No capítulo 2 de seu livro, Menger define bens econômicos. Antes ele discute o fenô-
meno da demanda. A demanda de uma pessoa é
“[...] a quantidade de bens necessária para satisfazer às suas necessidades no
período de tempo em que se estende a previdência.” (ibidem)
Bens econômicos são bens cuja demanda é maior que a quantidade disponível. Tem-
se, portanto, como resultado inevitável, que parte das necessidades existentes terá de

37 Precisar, necessitar etc.

288
permanecer desatendida. Quando o bem é econômico, as pessoas procuram adquirir
qualquer quantidade possível deles. Cuidam a fim de que os bens não percam a qualidade
de coisas úteis; escolhem dentre as necessidades as mais importantes que serão
atendidas, e utilizam os bens de maneira mais adequada no atendimento delas.
Dois elementos da visão de Menger destacam-se nessa definição de bem: o papel do
conhecimento e a ênfase na explicação causal. Se a preocupação com o conhecimento
humano tem uma raiz alemã, onde buscar a importância que ele atribui à causalidade?
Sem dúvida em Aristóteles.
O pensador grego é citado muitas vezes em notas de rodapé nos “Princípios”,
contudo há outros indícios da influência peripatética em Menger, que podem ser
encontrados no clima intelectual da Áustria no período. Aristóteles era muito ensinado
na escola secundária do país. Além de Aristóteles, eram influentes na Áustria: Tomás de
Aquino, Leibniz, Bolzano, os católicos heréticos, Jansen e Miguel de Molinos. Também
eram muito consideradas as ideias do imperador Josef II, do estadista Klemens Wenzel
von Metternich e dos poetas Franz Grillparzer, Ludwig Anzengruber e Adalbert Stifter.
A fim de se contrapor às principais correntes do pensamento científico e filosófico do
século XIX, Menger empregou ideias de Aristóteles, mais do que qualquer uma das
outras fontes. Com o aristotelismo, combate a doutrina positivista da ciência (Francis
Bacon, A. Comte e J. S. Mill). Também se opõe a à teoria do conhecimento da escola
histórica alemã e certos aspectos da economia política clássica.
O historicismo alemão concebe a sociedade como totalidade orgânica e natural.
Considera o corpo social um dado e procura examiná-lo empiricamente pelo método
indutivo e comparativo. Por esse caminho, pretende chegar às leis da sociedade e da
história. Já Menger, constrói uma ontologia antagônica ao historicismo. Sua ênfase recai
no papel dos indivíduos na formação social. Vê a sociedade como produto involuntário
das escolhas individuais. Suas instituições são consequências não intencionais da ação
humana. A história da humanidade aparece como incessante evolução, embora ao longo
dela permaneça a mesma naturalidade ou essência do homem e sempre opere o mesmo
princípio de causalidade. O conceito de sociedade de Menger é o de Aristóteles, agora
aplicado a todo o devir histórico. Como o estagirita, Menger pensa a economia como um
processo orgânico vivo, não mecânico, mas biológico, o que entretanto não implica a
igualdade metodológica entre ciência econômica e biologia. Aliás, uma das críticas
centrais que desfere contra certa vertente do historicismo alemão é a insistência em
tratar a economia pelos métodos empíricos da biologia.
Menger segue também as ideias da escola histórica do direito de F. Carl von Savigny,
Jacob Grimm, Gustav Hugo e Barthold G. Niebuhr. Tais autores apoiam-se em Edmund
Burke e, como ele, aderem à jurisprudência inglesa e reagem contra o chamado
pragmatismo no campo do direito. O pragmatismo acredita ser possível uma recons-
trução do direito pela via da compreensão puramente abstrata. Burke, pelo contrário,
busca entender o significado das estruturas sociais orgânicas e da origem não intencional
delas. Como ele, a escola histórica do direito interpreta as leis sociais como resultado não
intencional da grande sabedoria, fruto do desenvolvimento histórico das nações. Menger
segue-os ao pretender uma abordagem teórica das questões sobre a origem das insti-
tuições à luz da história, sem defender, no entanto, a aplicação do método da ciência
econômica na interpretação do nascimento e desenvolvimento de toda a sociedade.
Opõe-se, dessa forma, ao racionalismo abstrato, enfatizando a sabedoria e a flexibilidade
das instituições moldadas pelo curso da história.
Então Menger buscou reconhecimento lutando em duas frentes: seu aristotelismo
foi usado contra a escola história alemã e, depois, contra os novos métodos matemáticos
apresentados por Walras. Menger e a maioria dos economistas austríacos da época eram
avessos ao tratamento matemático dos problemas econômicos. Não por falta de treino

289
matemático, pois, nos ginásios da velha Áustria, os estudantes tinham um bom
treinamento nessa disciplina, e sim pela convicção dos austríacos de que equações e
curvas não teriam lugar na teoria econômica. Menger repudiou o grande trabalho
matemático sobre teoria de preços do economista, também austríaco, Rudolf Auspitz.
Em carta a Léon Walras, de fevereiro de 1884, escreve que o método matemático é
errado. Outro austríaco, Böhm-Bawerk, duvida que os eleitores devam seguir a expli-
cação algébrica e geométrica num livro de teoria econômica. Comentando os escritos de
Wicksell, ele diz que “começar com álgebra faz o leitor desinteressar-se pelo livro”.
A convicção de Menger era de que a economia científica não deveria investigar as
quantidades presentes no fenômeno econômico, mas as essências de conceitos como
valor, renda e lucro. Enquanto Jevons e Walras expressam as leis da troca em equações
matemáticas, Menger não o faz na crença de que elas podem levar tão somente a
sentenças arbitrárias e não às leis exatas do fenômeno. Walras usa a matemática para
lidar com a relação entre variáveis mensuráveis, preocupando-se com a dependência
funcional que se estabelece entre elas na configuração de equilíbrio. Seu sistema de
equações procura mostrar a interdependência dos fenômenos num quadro de
determinação simultânea das variáveis. O uso de funções algébricas era bastante estra-
nho à filosofia de Menger, que se valia do método genético-causal. No prólogo dos
“Princípios”, escreve:
“Na exposição que segue procuramos reduzir os complexos fenômenos da
economia humana aos elementos mais simples, ainda acessíveis à observação
segura, dar a cada um desses elementos simples o peso que por natureza lhes cabe
e, com base nisso, investigar novamente como os fenômenos mais complexos
evoluem novamente a partir de seus elementos mais simples.” (Carl Menger,
Princípios de economia política)
Para Menger, a teoria econômica deve construir um sistema como uma casa de
tijolos. Os tijolos são os elementos simples da vida econômica, tais como necessidades,
satisfações e bens, que existem independentemente da decisão humana e compelem os
homens forçando-os à troca de bens.
Modelos matemáticos funcionais não focalizam a essência econômica. Por essência,
o austríaco entende a realidade subjacente ao fenômeno estudado. Só o método genético-
causal daria conta de explicá-la. Trata-se da crença no princípio do realismo filosófico
que diz que qualquer conhecimento pressupõe um objeto que está fora da mente e que
pode ser tocado, copiado e refletido por ela. Muitos dos filósofos austríacos eram realis-
tas. O realismo filosófico separa a escola de Viena do historicismo alemão e da escola de
Jevons e Walras. A influência da filosofia aristotélica na Áustria arrefeceu-se no fim do
século XIX, substituída pelo empirismo (hipótese de que a forma primária do conheci-
mento é a simples consciência dos dados dos sentidos) de Ernst Mach e seguidores.
Menger acredita na existência de um padrão eterno na estrutura e nos eventos do mundo
socioeconômico. O modelo teórico é uma fotografia da realidade subjacente às
aparências da vida diária.
Se em Aristóteles a mente do filósofo deve chegar ao âmago das coisas, Menger, do
mesmo modo, define uma essência na vida econômica. Somente podemos entender o
fenômeno econômico se reconhecermos a razão de sua existência. Razão que repousa na
existência de uma estrutura imutável na economia. O material de construção da
estrutura consiste apenas dos elementos que são suficientes para o simples funciona-
mento da economia. Os fatores elementares são necessidades humanas, recursos
naturais e desejo pela perfeita satisfação dessas necessidades. A natureza física, ao lado
da natureza humana, determina a estrutura do mundo econômico de modo indepen-
dente de peculiaridades históricas.

290
A tradicional dicotomia aristotélica entre forma e matéria é aplicada à economia. A
matéria contém o ser de uma coisa, o material a ser modelado. Em oposição a ela está a
forma, que é a realização das potencialidades da matéria. A teoria lida com a matéria,
com os tipos exatos e as relações típicas, e identifica leis exatas, que são sentenças sobre
sequências invariáveis que não são influenciadas pelo tempo e nem pelo espaço. Tais leis
não representam construções de nossa mente, mas são descrições das configurações
eternas da vida econômica. A história e a estatística lidam com a forma aristotélica.
Tratam de casos concretos, as formas que realizam o potencial, enquanto as leis exatas e
os tipos exatos contêm apenas potencialidades; fornecem leis e conceitos universalmente
válidos.
As coisas que são bens possuem tal qualidade não por uma propriedade interna,
mas pela existência de uma relação entre a coisa e o indivíduo. A efetividade dessa relação
depende da existência concreta de uma necessidade, de a coisa ter a propriedade que a
habilite à satisfação da necessidade, do reconhecimento dessa propriedade e do fato de
podermos dispor da coisa. As duas primeiras condições definem o que são coisas úteis,
enquanto todas as quatro condições, em conjunto, determinam a qualidade de bem. A
ausência ou perda de qualquer uma das quatro condições acarreta a perda da qualidade.
Trata-se, portanto, de quatro condições necessárias e conjuntamente suficientes para a
existência do bem que, como em Aristóteles, podem ser identificadas como as causas
material (existência concreta), eficiente (ter a propriedade), formal (reconhecimento
dela) e final (poder dispor da coisa).
Os desejos humanos não precisam ser racionais. Os desejos irracionais até tornam-
se mais importantes com o progresso da civilização. A crença de que a coisa possui o
poder de satisfação de desejos pode até ser equivocada e ela ainda ser, de fato, um bem.
Não só os bens materiais, mas os serviços pertencem à categoria de bens.
O aristotelismo presente na definição mengeriana de bem também aparece no trata-
mento do tempo. Tempo e causalidade estão inseparavelmente ligados. Os processos de
mudanças são sempre frutos de causalidades e só podem ser pensados como processos
no tempo. Menger escreve que
“[...] é, pois, certo de que nunca compreendemos plenamente o nexo causal
existente entre os diversos fenômenos desse processo – e o processo como tal –,
enquanto não o situarmos no tempo.” (Carl Menger, Princípios de economia
política)
A causalidade ocorre no tempo e não se confunde com a necessidade lógica atempo-
ral. A essência da atividade econômica tem sua natureza existencial ligada a essa noção
de tempo. A introdução do tempo como elemento essencial introduz incertezas na base
da teoria econômica. Incertezas do indivíduo quanto ao curso de ação a ser tomado, o
que leva a teoria a enfatizar a importância da aquisição de informações por parte dele. A
hipótese de conhecimento perfeito ou de informação completa é inteiramente incompa-
tível com o modelo teórico de Menger.
No início dos “Princípios”, Menger identifica o “nexo causal entre os bens”. Diz que
a teoria deve
“[...] ordenar e concatenar as coisas segundo critérios internos, conhecer o
lugar que cada uma delas ocupa no encadeamento causal dos bens e pesquisar as
leis que as comandam sob esse aspecto.” (ibidem)
A presença de necessidades humanas leva à aquisição de bens visando à obtenção
do bem-estar.
Bens de primeira ordem são coisas que se pode colocar em nexo direto e imediato
com a satisfação de necessidades. Coisas que servem para produzir bens de primeira
ordem atendem às necessidades humanas somente de modo indireto e são chamadas de

291
bens de segunda ordem. Indo além, podemos definir as ordens superiores terceira,
quarta etc. no encadeamento causal dos bens. A definição dos nexos causais entre os
bens, isto é, sua classificação em bens de primeira, segunda, terceira e de ordens
superiores, é uma definição da relação entre indivíduos e coisas com respeito à
contribuição destas na satisfação de desejos e necessidades. As ordens não são proprie-
dades dos bens.
Escreve o austríaco que
“[...] todo processo de mudança ou transformação significa um vir a ser, um
surgir, um tornar-se, e isso só é possível dentro do tempo.” (C. Menger, Princípios
de economia política)
Ao longo do processo de conversão, há espaços de tempo em cada um dos vários
processamentos intermediários. Em cada etapa, o tempo pode ser abreviado pelo pro-
gresso da técnica e da comunicação, mas nunca se elimina o fator. O bem superior faz
valer sua qualidade de bem em relação a necessidades futuras. Quem dispõe direta e
imediatamente de certos bens tem certeza quanto a sua quantidade e qualidade; quem
dispõe de maneira indireta ou mediata não pode contar com a mesma segurança ao
determinar a quantidade e qualidade dos bens de ordem inferior que só poderá dispor
ao término do processo de produção. Eis um dos elementos de incerteza de que fala
Menger. A outra incerteza está ligada à existência de fatores cujo nexo causal com nosso
bem-estar desconhecemos, ou dos quais conhecemos sua influência sobre o produto
final, mas cujo controle escapa-nos por uma razão ou outra. Quanto maior o número de
elementos que interferem no processo causal maior a incerteza quanto às características
do bem final.
A dicotomia aristotélica entre essência e aparência também serve para compreen-
dermos a natureza do valor em Menger. O valor é a essência e o preço, a aparência do
fenômeno. O valor não é algo inerente aos bens, mas
“[...] é simplesmente a importância que determinados bens concretos – ou
quantidades concretas de bens – adquirem para nós, pelo fato de estarmos
conscientes de que só podemos atender às nossas necessidades na medida em que
dispusermos deles.” (ibidem)
O valor é, portanto, a importância que primeiro atribuímos à satisfação de nossas
necessidades e que transferimos aos bens.
Menger parte de uma concepção estática da natureza humana e procura reconstruir
os fatos econômicos pelas leis de causalidade. O objeto da economia científica são as
essências, a realidade subjacente ao fenômeno. Ela lida com essências aristotélicas e tipos
puramente teóricos. Menger não investiga as leis intrínsecas das sensações humanas, no
estilo de Jevons, e não considera o indivíduo um átomo imperscrutável, como em Walras.
Seu ponto de partida é a naturalidade das necessidades. A ênfase recai no complexo de
leis da natureza que formam a base da satisfação das necessidades humanas e sua evolução
com o tempo, à medida que o campo das atividades humanas e das necessidades se
expande. Não é a explicação do fenômeno de preços com base no comportamento maximi-
zador individual movido por impulsos psicológicos, segundo determinadas leis de sensa-
ções subjetivas. As leis da natureza, de que fala Menger, são leis de causalidade entre
necessidades, bens e satisfações, que dizem respeito não às regularidades no movimento
das sensações humanas, mas às relações que se estabelecem entre uma estrutura natural
de necessidades e o encadeamento que ocorre, a partir daí, entre elementos internos e
externos à mente.
Trata-se de uma epistemologia que não procura impor uma ordem racional na
realidade humana, antes disso, visa descobrir como a ação humana dirigida a um fim
conhecido, influenciada pelo conhecimento humano limitado, é bem-sucedida na

292
produção de uma ordem. Pergunta-se pela essência genética última do processo. Menger
identifica uma ordem na composição de fenômenos sociais que são derivados de um
complexo de ações individuais. Essa composição advém geneticamente, de acordo com
certa regularidade na sucessão de fenômenos baseada na naturalidade das necessidades.
É porque existe uma ordem social que se pode falar em leis exatas da natureza. A afinidade
maior de Menger é com o aristotelismo e não com o direito-natural kantiano e a filosofia
positivista. Tal filiação permite-lhe abarcar a teoria do valor, dos bens e das necessidades
numa construção coerente.
Há elementos comuns nas teorias do valor de Menger, Jevons e Walras. Todos ambi-
cionam a universalidade da teoria, e em todos esses sistemas poderíamos, de alguma
forma, traduzir suas proposições na linguagem moderna de maximização condicionada da
função de utilidade, embora a técnica não se coadune muito bem com o espírito da
contribuição de Menger. Entretanto, a discussão do valor é apenas o capítulo 3 dos
“Princípios”. O livro de Menger expõe outros elementos antes e depois do capítulo. O que
vemos, ao longo dessa obra, são hipóteses epistemológicas, metodológicas e teóricas
fundamentais para um projeto sui generis de construção da ciência econômica.
Jevons e Walras constroem seus modelos tomando mercadorias homogêneas e
infinitamente divisíveis. Menger trabalha com mercadorias homogêneas, porém, com
unidade discreta. Nos primeiros, tempo e espaço são apenas noções lógicas estilizadas,
enquanto para Menger são noções essenciais. Aqueles trabalham com informação livre e
completa, e ausência de incerteza e risco; este incorpora ignorância, busca de informa-
ção, incerteza e risco. Nele a informação é escassa. Nos modelos de Walras e Jevons, os
ajustamentos são instantâneos e sem custos. Em Menger, eles levam tempo. Naqueles
autores, os agentes são tomadores de preços; no austríaco enfatizam-se custos de
transação; os preços vigentes são acidentais, os valores são a essência relevante e o
modelo pretende-se aplicar em qualquer estrutura de mercado: do monopólio bilateral à
concorrência perfeita.
A compreensão da epistemologia e do método de Menger pode ser obtida seguindo-
se os passos desenvolvidos nos “Princípios”. De fato, os escritos econômicos de Menger
são a única expressão direta de sua metodologia. O livro de 1883, Investigações sobre o
método das ciências sociais..., é somente uma crítica à metodologia econômica, não
representa diretamente a metodologia positiva de Menger. Tal crítica originou o famoso
episódio histórico conhecido como “Methodenstreit”. A compreensão do episódio é útil
no estudo da visão austríaca e merece alguma consideração logo adiante. Na próxima
seção, apresentaremos cuidadosamente as teses de Menger no debate, tais como apare-
cem nas “Investigações” e no ensaio publicado anos depois intitulado Em direção a uma
classificação sistemática das ciências econômicas.

OS ESCRITOS METODOLÓGICOS DE MENGER


Nos anos que se seguiram à publicação dos “Princípios”, Menger passou a exercer
uma crescente influência na vida pública austríaca. Em 1876, conquista a respeitada
posição de tutor do príncipe Rudolf e em 1879 é aceito como professor catedrático na
Universidade de Viena. Nesse interregno, a doutrina de seu primeiro livro começa a
despertar maior atenção, graças à clareza de seu estilo e à sua não-aceitação do método
matemático, pouco compreendido entre os economistas da época. Sua teoria, entretanto,
não conseguia penetrar nos círculos acadêmicos alemães. Nas publicações desse país,
havia pouca aceitação à sua obra. De fato, a economia política teórica praticamente fora
banida das universidades alemãs, completamente submetidas ao domínio da escola
histórica sob influência de Schmoller. O célebre economista alemão considera inútil o
tipo de análise desenvolvida por Menger. O austríaco, porém, não se sentia confortável

293
com essa situação, já que admirava a tradição alemã e sempre sonhou penetrar nesse
círculo acadêmico.
Menger não poupa esforços em mostrar àquele país a importância de suas pesquisas
teóricas. Para tanto, achou por bem afastar-se da investigação teórica e passa a concen-
trar-se em questões metodológicas. Após os “Princípios”, dera pouca contribuição
literária à teoria pura, exceto no campo de teoria monetária, dedicando-se mais ao novo
livro sobre filosofia e método. No entanto, no final das “Investigações” escreve o seguinte:
“Agora eu também sou da opinião de que uma metodologia, não importando
o quanto bem elaborada, não é suficiente em si mesma para o desenvolvimento
da ciência.” (Carl Menger, Investigations into the method of the social sciences
with special reference to economics)
Torna-se, para ele, mais importante defender seu método contra a pretensão da
escola histórica de possuir o único instrumento adequado à pesquisa econômica. Começa
então a trabalhar em sua segunda grande obra, “Investigações”, a partir de 1875,
publicando-a finalmente em 1883. Hayek considera-a tão importante quanto os
“Princípios” para o desenvolvimento da escola austríaca, embora reconheça que os
detalhes de sua visão metodológica não tenham sido completamente aceitos até entre
seus seguidores diretos. Menger queria mostrar a importância de uma teoria geral e
abstrata que unificasse as partes fragmentadas do conhecimento econômico existente. O
livro, de fato, sensibilizou alguns teóricos alemães, demonstrando uma profunda
compreensão da natureza dos fenômenos sociais à luz do individualismo metodológico.
Ao mesmo tempo, sua crítica ao historicismo alemão desperta a reação irada de
Schmoller, dando origem à querela do “Methodenstreit”. Menger e seus seguidores
acabaram perseguidos e excluídos de qualquer atividade acadêmica na Alemanha.
As “Investigações” contêm argumentos de significância geral ampla, contudo o livro
está relacionado à controvérsia intelectual particular que envolvera alemães e austríacos.
A disputa que se estabeleceu então entre os historicistas alemães e a escola austríaca não
era apenas metodológica, mas envolvia também argumentos filosóficos e motivações
políticas. Pode-se identificar cinco temas principais na disputa: a natureza e a origem das
instituições sociais, o método pelo qual elas deveriam ser estudadas, a natureza e os
propósitos da ciência econômica, as conclusões políticas da investigação nesse domínio
e o papel da escola histórica na política econômica alemã. Tais pontos temáticos
aparecem em parte nas “Investigações” e são desenvolvidos e completados no ensaio Os
erros do historicismo na economia política alemã, primeira resposta de Menger às
críticas de Schmoller, publicado um ano após as “Investigações”, e, tempos depois, no
Em direção a uma classificação sistemática.
As “Investigações” são uma crítica aos propósitos e o método da escola histórica
alemã como ela desenvolveu-se entre 1840 e a década de 1870; e o livro, conforme
Menger já anuncia no prefácio, fornece um caminho unificador principal que une amplo
e variado leque de ideias filosóficas e metodológicas. A obra é composta de quatro partes,
em que são de interesse especial a Parte I, “Economia e história”, que trata da natureza
da teoria e das leis econômicas, e a Parte III, “A visão orgânica dos fenômenos sociais”,
sobre as consequências sociais não previstas da ação individual. A Parte II apresenta o
papel da análise histórica e a Parte IV é um estudo sobre a escola histórica e a evolução
do historicismo.
A escola histórica alemã critica o método abstrato da economia política clássica. A
proposta austríaca também era vista pelos historicistas alemães como igualmente
abstrata e inútil. Eles não distinguem os austríacos dos economistas clássicos e não
reconhecem que Menger representa uma quebra em relação aos clássicos uma vez que a
nova teoria de Menger muda não apenas a estrutura conceitual e metodológica das
ciências sociais teóricas, mas também a própria maneira de interpretar a história e a

294
política. As “Investigações” deram os primeiros passos no exame de questões epistemo-
lógicas ainda hoje não resolvidas. Ao mesmo tempo em que o livro mostra as implicações
metodológicas e políticas do historicismo, denuncia o equívoco dele e busca explorar as
perspectivas trazidas pela nova teoria na interpretação da motivação humana e na
predição dos resultados da ação.
Em filosofia e método, a discordância principal separando austríacos e alemães
consiste na escolha entre uma perspectiva empirista e um tratamento teórico da
disciplina. A discussão centrava-se, portanto, em torno da historicidade ou teoricidade
do método das ciências sociais. Menger, em seus escritos metodológicos, aprofunda as
implicações trazidas pelos “Princípios”. Nas “Investigações”, ele estabelece as premissas
para uma nova estrutura conceitual e metodológica nas ciências sociais teóricas, partindo
da crítica ao método indutivo que procura estabelecer leis gerais para os fenômenos
sociais. Se o historicismo acredita que por meio do estudo de eventos históricos seria
possível descobrir o significado deles e derivar leis que regulam o desenvolvimento da
história, para Menger e seus seguidores a crença historicista trata-se de mera especu-
lação das razões do desenrolar histórico, que lhe atribuía um desígnio absoluto ao
interpretá-lo como totalidade dominada por causa primeira e movida na direção de uma
meta transcendente ou imanente. Os austríacos opõem, a essa visão, a crença exclusiva
no desígnio individual, e veem a história universal apenas como o entrelaçamento
aleatório dos caminhos individuais na perseguição de fins subjetivos.
Assim, não há um enredo secreto na história revelado pela especulação filosófica.
Também não há uma razão que, acima dos indivíduos, dita a história. É impossível
conhecer o significado do processo do tornar-se, pois não há significados além do
conjunto de significados individuais que os próprios indivíduos atribuem à sua existên-
cia. Assim, para Menger, não é possível fundar uma ciência econômica na acumulação e
classificação de dados relativos a fatos históricos; o que não significa que a história seja
uma disciplina inútil para a economia.
Menger confere um papel primordial para a história; ele apenas critica a interpre-
tação dela feita pela escola alemã, que lhe atribui significados e leis gerais. Em Os erros
do historicismo, Menger tece críticas às ideias de Schmoller, mostrando o verdadeiro
papel da história nas ciências econômicas. Não se pode, diz, deduzir regras práticas de
ação com base no estudo comparativo da história e da descoberta de supostas leis. A
comparação entre diferentes sistemas políticos e econômicos é importante ao estabelecer
uma visão global dos fenômenos econômicos, entretanto não se deve, com isso, pretender
estudar o campo das ciências humanas entendendo-o em analogia a um organismo
natural, em que se pudesse aplicar o método da anatomia e da fisiologia. As ciências
humanas não podem ser compreendidas pelos métodos da biologia, embora Menger
pense a economia como um processo orgânico. O mundo econômico não configura uma
unidade especial diferente dos fenômenos singulares das escolhas individuais. Para o
austríaco, todos os fenômenos econômicos são reduzidos aos fatos singulares dos
indivíduos; são simplesmente o resultado de inúmeros esforços econômicos individuais.
Os “Princípios” são um livro diplomático no qual seu autor, embora crítico, respeita
a escola histórica alemã. No máximo, almeja Menger uma teoria alternativa; prova disso
é que ele o dedicou a Roscher. No entanto, o tom conciliatório foi abandonado nas
“Investigações”. No estudo metodológico, Menger procura, com base numa classificação
da ciência econômica e de seu método, esclarecer a relação entre a orientação empírico-
realista, calcada em estudos históricos, e a orientação exata ou teórica. O austríaco
identifica três grupos de estudos nos domínios da economia:
1. a ciência histórica e estatística da economia, que tem a tarefa de investigar e
descrever a natureza individual e a conexão individual do fenômeno econô-
mico;

295
2. a economia teórica, cuja tarefa consiste em investigar e descrever a natureza
geral e a conexão geral dos fenômenos;
3. a ciência prática da economia nacional, que investiga e descreve os princí-
pios básicos para a ação, adaptados às várias condições, no campo da econo-
mia.
Menger pretende resolver um problema de demarcação da pesquisa. Não quer
demonstrar que o método da escola histórica é não científico, apenas busca esclarecer as
diferenças fundamentais entre a abordagem dos “Princípios” e outras. A teoria abstrata
deve ocupar um lugar ao lado da economia empírica e aplicada. Menger segue a máxima
metodológica: a cada meta, um método. Conhecidas as diferentes metas da ciência
econômica e reconhecendo-se a necessidade de um método a cada meta, a classificação
de estudos nesse domínio é a própria identificação de suas metas. Trata-se, portanto, do
pluralismo metodológico. A escola histórica alemã erra ao não o aceitar e confundir as
diferentes vias de investigação, procurando deduzir normas de ação prática de uma
concepção equivocada da ciência econômica. Para Menger, porém, não incorreremos no
erro historicista se soubermos separar as três orientações principais da pesquisa citadas
anteriormente.
Os “Princípios” lidam com o objeto econômico sob orientação teórica ou geral.
Portanto, o livro examina a essência do fenômeno econômico, fornecendo um conheci-
mento que transcende a experiência imediata. Preocupa-se em identificar as relações, a
estrutura interna e as leis de fenômenos típicos geneticamente determinados. Para tanto,
vale-se do método genético-causal, também chamado de método analítico-compositivo,
que consiste em dissecar analiticamente o fenômeno real complexo em seus elementos e
reagrupar tais elementos em fatos econômicos elementares.
O problema metodológico posto pela epistemologia de Menger é, de fato, muito
complexo. Ele quer especificar a relação entre teorias explicativas gerais e modelos
empíricos. O método empírico convive lado a lado com o método teórico exato. A econo-
mia teórica é uma ciência em tudo semelhante às ciências naturais. Não há contrastes
metodológicos entre uma e outra. Para ambas, é possível uma orientação realista e exata.
No prólogo dos “Princípios”, Menger diz que está aplicando, em sua análise teórica, “o
método de pesquisa utilizado nas ciências naturais”, que na verdade “é comum a todas
as ciências baseadas na experiência”, e que “os fenômenos da vida econômica se regem
por leis iguais às leis da natureza”.
Tais leis, entretanto, não são leis empíricas obtidas pelo método empírico-realista.
As leis exatas da natureza, reconhecidas na economia teórica, são encontradas pelo
caminho exato. Leis que têm garantia do absoluto são obtidas pela investigação teórica
que começa dos elementos mais simples e estritamente típicos. Os fenômenos econômi-
cos são compreendidos quando o teórico se volta a seus fatores constitutivos, simples e
originais, pensados isoladamente. As leis exatas não podem ser pensadas de outra
maneira. São regularidades que descrevem a essência ontológica da realidade externa.
A teoria pura contida nos “Princípios” tem a tarefa de estudar a natureza geral e as
interconexões gerais do fenômeno econômico. Isso significa que ela não deve simples-
mente analisar conceitos e chegar a conclusões lógicas resultantes da análise. O objeto
de pesquisa teórica é o próprio fenômeno, ou aspectos dele, e não sua imagem linguística,
isto é, os conceitos que fazemos dele. Para Menger, os representantes da escola histórica
têm uma má compreensão da pesquisa teórica, porque só veem análise de conceitos na
investigação da natureza dos fenômenos econômicos. Para eles, teoria exata é apenas um
arranjo de um sistema de conceitos e julgamentos. Também se engana Léon Walras ao
conceber a teoria como mero conjunto de teoremas, obtidos dedutivamente de axiomas
a priori, e ao preocupar-se em estudar apenas relações quantitativas e não as causas dos

296
fenômenos. O aristotelismo de Menger leva-o à ênfase na abordagem causal e à rejeição
da matemática.
A leis exatas não admitem exceção, sendo irrelevante e equivocado testá-las
empiricamente. São obtidas logicamente, por dedução, de condições e hipóteses assumi-
das. Nas “Investigações”, Menger diz que essas leis
“[...] não são apenas sem exceções mas de acordo com nossas leis de pensamento
não podem ser pensadas de outra maneira que não sendo sem exceções.” (ibidem)
E que
“[...] testar a teoria exata da economia pelo método empírico completo é simples-
mente um absurdo metodológico, uma falha em reconhecer as bases e os
pressupostos da pesquisa exata. Ao mesmo tempo, ele é uma falha em se
reconhecer os propósitos particulares a que serve a ciência exata. Querer testar a
teoria pura da economia por experimentos em sua plena realidade é um processo
análogo ao dos matemáticos que querem corrigir os princípios da geometria pela
medida de objetos reais.” (ibidem)
Na investigação do fenômeno econômico, as proposições analíticas exatas da teoria
pura, não testáveis empiricamente, são complementadas pela ciência histórica da econo-
mia, que estabelece generalizações empíricas testáveis. A observação histórica permite
estabelecer leis empíricas sobre as atividades humanas. Tais leis estão sempre sujeitas a
exceções, já que os homens possuem liberdade de escolha. Nas “Investigações”, Menger
diz que:
“Admitimos quase sem reservas que os fenômenos humanos reais não são
estritamente típicos. Nós admitimos que, por essa razão e também como um
resultado da liberdade da vontade humana (e, é claro, não temos intenção de
negar isso como uma categoria prática), leis empíricas de validade absoluta estão
fora de questão no reino dos fenômenos da atividade humana.” (ibidem)
Menger considera que as leis empíricas não dependem de hipóteses ou condições
especiais assumidas de antemão e que, portanto, são testadas pela realidade vista em sua
total complexidade. Assim, são sempre falseáveis. Tal realidade complexa, no entanto,
pode ser depurada mais e mais até chegarmos a seus elementos mais simples. A leis que
regem a ação isolada desses elementos são exatas.
Há um ponto de vista apropriado para a pesquisa exata que torna a lei
absolutamente verdadeira. A lei exata não é a negação da realidade pela imposição de um
modelo abstrato; pelo contrário, ela dá conta da essência do fenômeno ao abstrair os
fatores acidentais que também condicionam as ocorrências. Menger não ignora, porém,
os demais elementos da realidade complexa. Sua teoria atribui, por exemplo, grande
importância à ignorância dos agentes e à incerteza. A teoria econômica exata concentra-
se em estudar a ação racional movida pelo autointeresse. Todavia, o teórico deve
reconhecer situações nas quais o indivíduo erra por não perceber seus próprios interes-
ses econômicos ou por ignorar as condições econômicas que rodeiam sua ação. O homem
pode perfeitamente afastar-se do caminho rigoroso previsto pela lei exata. As predições
da lei exata quanto ao comportamento do agente têm um limite de aplicabilidade.
Contudo, isso não nega sua existência ontológica, apenas afirma a necessidade de
justapor a análise histórica à teoria econômica pura. Mostra que Menger, de fato, confere
importante papel à história.
O livro “Investigações”, em suma, desenvolve argumentos visando à defesa do
método abstrato e ao uso adequado da pesquisa histórica. Também critica o historicismo
alemão na elaboração da teoria das instituições. No mesmo ano de sua publicação, o
autor tido como principal alvo de suas críticas, G. Schmoller, lança-se a fazer conside-
rações. Menger considera os escritos dele uma tentativa de refutação às suas teses e

297
decide então estender sua investigação metodológica em Os erros do historicismo na
economia política alemã, que apareceu no ano seguinte. Polêmico e sarcástico ao
identificar explicitamente Schmoller como seu alvo principal, o ensaio teve repercussões
indesejáveis. Toda a escola histórica alemã é taxada de historicista e Menger procura
mostrar que a história não seria a base empírica para as ciências práticas da economia.
O ensaio não apresenta inovações significativas e, deixando de lado sua forma efetiva-
mente polêmica, contém poucas inovações conceituais. Em vez disso, os novos elementos
são de natureza diferente. O primeiro recai na escolha por Menger de Schmoller como o
alvo de suas polêmicas. Menger estava consciente de que o sucesso de suas próprias
ideias entre a cultura alemã ligava-se ao resultado de sua disputa com a figura que se
havia tornado o expoente com maior autoridade e influência entre os alemães.
Infelizmente tal estratégia estava fadada a envolver uma série de repercussões altamente
indesejadas. Menger sabia das diferenças entre Schmoller e os primeiros expoentes da
escola histórica alemã. Na verdade, o principal assunto da controvérsia, ao lado dos
temas metodológicos usuais, diz respeito à possibilidade de considerar a história como a
base empírica das ciências práticas da economia, um assunto apenas tangenciado nas
“Investigações”. Inovação adicional consiste em estender o termo historicismo, usado
para designar o pensamento de Georg G. Gervinus, para toda a escola histórica.
Mais importante foram as ideias contidas no ensaio “Em direção a uma classifi-
cação sistemática das ciências econômicas”, só publicado cincos anos depois, em 1889.
Com ele, objetiva definir um esquema de classificação da ciência econômica que elimine,
em definitivo, qualquer dúvida sobre o papel relativo da teoria abstrata e da pesquisa
empírica.
Argumenta Menger que a escola histórica não presta a devida atenção ao caráter
diferenciado dos problemas que confrontam as ciências da história e da estatística, de
um lado, e a teoria econômica e a economia aplicada, de outro; e também não leva em
devida consideração as diferenças essenciais entre esses ramos de investigação dentro do
campo da economia política. Confundem o método da investigação histórica com o
método histórico em teoria econômica e em economia aplicada. Também interpretam
mal o lugar específico das questões de economia aplicada dentro do complexo de
problemas a serem resolvidos pela análise teórica.
Menger lança-se a fazer uma detalhada classificação das ciências econômicas entre
seus ramos de investigação. Primeiramente identifica os domínios de investigação da
realidade pelas ciências em geral, com base em dois princípios de classificação essencial-
mente distintos:
1. Um primeiro princípio separa os diferentes campos da realidade, ou dos
objetos da cognição científica, levando em conta a natureza desses objetos da
investigação;
2. Outro princípio assevera que esses objetos comportam diferentes linhas de
investigação científica, cada qual associada a um método particular de se
abordar a realidade.
Temos, portanto, nessa divisão, um primeiro princípio de classificação que
distingue as ciências da natureza das ciências do homem (direito, política, sociologia,
economia etc.). Desses campos específicos da realidade, desenvolveram-se gradualmente
diferentes linhas de abordagem. Estas se constituíram em diferentes disciplinas científi-
cas de acordo com a necessidade de uma apresentação independente de seus resultados.
Dentro de cada disciplina, a concentração crescente em problemas especializados permi-
te uma classificação adicional com base em novos princípios que orientam a pesquisa
pela compreensão da realidade...
1. Na direção de um conhecimento do fenômeno concreto e de suas relações
concretas no tempo e no espaço;

298
2. Na direção de um conhecimento de sua natureza geral e de suas relações
gerais, identificando-se determinadas regras que comandam as relações de
coexistência e de sucessão entre fenômenos.
No primeiro caso, a pesquisa lida com fenômenos concretos de campos particulares
da realidade de um ponto de vista estático, pelo uso da estatística, ou evolucionista,
quando se utilizam as ciências históricas. No outro, vale-se das ciências morfológicas, se
o que se procura é o conhecimento da forma genérica ou estrutura comum do fenômeno
em dado campo, ou das ciências teóricas, se o objeto do conhecimento são suas relações
e conexões internas (as leis do fenômeno).
As duas estratégias de pesquisa permitem a exploração e a compreensão da
realidade. Todavia, o interesse da ciência não se resume apenas nesses aspectos. Tam-
bém se busca, em cada campo, estabelecer princípios e procedimentos para uma
interferência efetiva no curso dos eventos. Os resultados desses esforços, organizados
sistematicamente, estão caracterizados nas ciências práticas ou aplicadas. Menger
identifica, portanto, diferentes linhas de abordagem, cada qual associada a certo campo
específico da realidade.
Menger assevera que a separação de abordagens é amplamente reconhecida e
adotada nas ciências naturais. Nenhum investigador da natureza, diz ele, defenderia o
desenvolvimento de uma única e ampla ciência natural abrangendo todo o conhecimento
da natureza. Lamenta, entretanto, que na economia tal desenvolvimento esteja, em
muitos aspectos, em um estado imperfeito e até embrionário. Muitos economistas não
reconhecem a classificação da ciência econômica entre estatística, história, morfologia,
teoria e ciência aplicada. Isso se deve, talvez, continua ele, ao estado ainda rudimentar
da ciência econômica.
A escola histórica alemã é criticada em pretender ser uma ciência universal da
economia que não separa suas várias disciplinas específicas. Menger considera absoluta-
mente necessário o tratamento independente da história e da teoria econômica, muito
embora fatos históricos e estatísticos devam ser utilizados como ciências auxiliares na
construção dos fundamentos da teoria. Também defende a separação entre teoria
econômica e economia aplicada. A função da ciência econômica não é a de fornecer uma
coleção incompleta e arbitrária de informações teóricas úteis, organizadas em princípios
externos; pelo contrário, ela tem a tarefa de organizar todos os resultados da investigação
científica relacionados à economia em um sistema bem-articulado intrinsecamente
coerente. E o melhor meio de alcançar a meta é separando-se as ciências teóricas das
aplicadas.
A separação entre história, teoria e aplicação já se fazia presente nas “Investiga-
ções”; só que agora, no “Em direção a uma classificação”, Menger aperfeiçoa a classifica-
ção anterior isolando também uma ciência morfológica da economia. Seus argumentos
nesse tocante são bastante reveladores. Ele identifica um lugar para os resultados da
investigação morfológica dentro do sistema geral da ciência econômica.
Assim, no “Em direção a uma classificação” classifica-se o sistema completo da
ciência econômica, que deveria compreender os seguintes ramos:
1. a ciência histórica da economia, formada pela estatística econômica e pela
história econômica. A primeira investiga fenômenos econômicos concretos de
um ponto de vista estático dentro de limites espaciais definidos. A última
estuda-os de um ponto de vista evolucionista e combina-os em uma estrutura
orgânica unitária;
2. a morfologia dos fenômenos econômicos, cuja função consiste na classifi-
cação dos fatos econômicos de acordo com gênero, espécie e subespécie, bem

299
como na demonstração de sua forma genérica, isto é, a descrição de estruturas
comuns entre diferentes grupos de fenômenos homogêneos;
3. a teoria econômica, que possui a tarefa de investigação e estabelecimento das
leis dos fenômenos econômicos, isto é, das regularidades em sua coexistência
e sucessão, bem como sua causação intrínseca;
4. a economia prática ou aplicada, que nos ensina os princípios e os procedi-
mentos por meio dos quais propósitos econômicos genericamente determi-
nados podem ser mais efetivamente realizados em diferentes circunstâncias
e à luz do conhecimento científico existente.
A teoria econômica estuda certos lados de todos os fenômenos, eliminando-se
sempre os fatores perturbatórios. A ciência histórica estuda todos os lados de certo
fenômeno. A economia aplicada não é um conjunto de prescrições para casos concretos
e não oferece receitas para a tomada de ação em todo caso concreto singular. Dada a
riqueza do mundo, é impossível prescrever o procedimento a ser seguido em cada
situação individual.
O homem prático deve sempre agir com inventividade e ter insights sobre os
fenômenos envolvidos num contexto e suas relações. Tem de se adaptar às exigências
únicas de cada caso concreto. Nas ciências práticas, só encontra metas e condições
determinadas de um modo geral. Somente em combinação com sua avaliação individual
criativa da situação seu conhecimento da economia aplicada possibilita-o especificar, em
cada caso concreto, o procedimento apropriado. A ação econômica eficaz deve associar
conhecimento teórico com poder de síntese e inventividade. A economia aplicada oferece
um acervo de casos. Representa conhecimento científico aliado a um estoque de práticas
acumuladas.
A economia de Menger começa dos indivíduos com seus impulsos fundamentais. As
ciências humanas devem fornecer explicações causais que, partindo desses impulsos,
deem conta, em última instância, de todos os fenômenos sociais, reduzindo-os a eles.
Menger reconhece que existem na realidade muitos motivos fundamentais para o
comportamento humano. Quatro impulsos são mencionados por ele: o econômico, o
senso moral comum, o altruísmo e a justiça. Os impulsos básicos delineiam as fronteiras
entre as disciplinas científicas. A economia, a sociologia, a ética e a jurisprudência, cada
qual estuda o comportamento humano sob um aspecto diferente. Em cada disciplina, o
trabalho dos impulsos fundamentais pode ser estudado em vários graus de pureza,
abstraindo-o dos fatores perturbatórios que operam na realidade.
Menger reconhece certas causas fundamentais operando sobre tudo o que é
observado; no caso das ciências do homem, seriam seus vários impulsos. Todos eles
operam conjuntamente. O teórico, em cada disciplina científica, tem a tarefa de isolar a
operação de uma única causa, a fim de ganhar uma melhor compreensão da realidade
subjacente às aparências. O exercício de abstração e isolamento de um aspecto da reali-
dade serve-se do método analítico-compositivo e é levado a cabo, em geral, pelas ciências
morfológicas. A morfologia é a identificação nos fenômenos econômicos de suas formas
elementares ou tipos, como resultado de uma síntese com base em uma análise real dos
fenômenos complexos, decompondo-os em seus fatores elementares.
O isolamento de uma única causa fundamental não garante que se possa estudar o
fenômeno em sua forma pura; para tanto, devemos abstrair também os fatores que
inibem o trabalho pleno dessa causa única. Menger, nas “Investigações”, identifica
quatro fatores perturbadores: ignorância, erro, força externa e grau em que as pessoas se
deixam guiar pelo impulso. À ciência econômica cumpre abstrair todos os impulsos
fundamentais, exceto o de natureza econômica. A disciplina teórica exata da economia
abstrai os fatores perturbadores. Erros, incertezas e acidentes determinam preços e não

300
podem ser descartados da economia histórica e empírica. A teoria exata do valor subtrai
esses elementos.
No final do “Em direção a uma classificação”, Menger discute a natureza da teoria
abstrata, retomando os pontos que já apresentamos anteriormente. Ele diz que é contra
a ideia de que a teoria abstrata seja apenas um jogo de conceitos ou um sistema de
teoremas derivados dedutivamente de axiomas a priori. A teoria econômica tem o
mundo real como objeto e deve fornecer uma compreensão da natureza dos fenômenos
econômicos, fornecendo não apenas conhecimento de regularidades externas na
coexistência e sucessão desses fenômenos, mas também a compreensão deles em suas
relações intrínsecas.

O PROBLEMA DO VALOR ECONÔMICO


Vejamos agora aspectos da teoria econômica de Menger ligados diretamente à
questão de valor e preços. Outros temas da teoria mengeriana não serão considerados
diretamente, tais como a teoria da distribuição, do capital, dos juros e a relação da teoria
da moeda com a teoria do valor. Menger não poupou esforços na construção dos
fundamentos da teoria econômica; nesse sentido, dedica-se com esmero a apresentar
uma adequada teoria do valor; para ele tarefa de vital importância a fim de que a
economia emule o sucesso das ciências naturais. Não seria o caso de copiar o método
dessas ciências, mas o de fornecer um fundamento exato sui generis à economia. No
núcleo da análise teórica fundamental estariam as condições que governam a atividade
econômica na direção da satisfação de necessidades sob condições de escassez.
No capítulo 3 dos “Princípios”, Menger apresenta sua teoria do valor, que essencial-
mente seria adotada por seus seguidores diretos Wieser e Böhm-Bawerk. Na acepção de
Menger, o valor não expressa uma propriedade inerente dos bens, não é uma qualidade
do objeto material, mas algo que os indivíduos lhes atribuem subjetivamente.
A importância atribuída aos bens confere-lhes valor. O indivíduo tem consciência
de suas necessidades e de que precisa dos bens para atendê-las. O que é importante não
é o bem, mas a satisfação de nossas necessidades. O bem tem valor à medida que
determinado contexto o torna condição sine qua non para a consecução do fim a que se
presta. Se o bem for escasso é bem econômico, nesse caso, os indivíduos almejam dispor
de uma quantidade dele, num dado horizonte de tempo, e essa quantidade não se
encontra prontamente ao alcance deles. São obrigados a economizar, ou seja, a decidir
que parte de suas necessidades ficará sem atendimento.
O valor, na concepção de Menger, é simplesmente
“[...] um juízo que as pessoas envolvidas em atividades econômicas fazem sobre
a importância dos bens de que dispõem para a conservação de sua vida e de seu
bem-estar.” (C. Menger, Princípios de economia política)
E, portanto,
“[...] só existe na consciência das pessoas em questão.” (ibidem)
Todos os bens úteis e escassos são bens econômicos. Utilidade é a
“[...] aptidão que uma coisa tem para servir à satisfação de necessidades
humanas, constituindo, portanto (a utilidade reconhecida como tal), um
pressuposto básico para que uma coisa seja um bem.” (Ibidem)
Utilidade não é o valor de uso do bem, pois essa aptidão do bem para satisfazer a
necessidades não coincide com o valor mesmo da coisa.
Valor é produto do imaginário do homem, que reconhece que a manutenção de seu
bem-estar só será assegurada pela posse e usufruto do bem econômico. Os bens que possuem

301
utilidade, ou capacidade de satisfazer a desejos, se tornam bens econômicos se estiverem
sujeitos a alguma limitação externa nas quantidades disponíveis, o que implica a limitação
sobre as utilidades totais. Isso obriga os indivíduos a dependerem de quantidades específicas
para a satisfação de algum desejo particular. Com isso, as utilidades desdobram-se em
valores econômicos. Utilidade, portanto, é só capacidade de levar ao bem-estar, enquanto
valor é a condição positiva que torna o bem indispensável para a satisfação de necessidades
concretas. Necessidades insatisfeitas provocam em nós um sentimento doloroso de vazio
que aponta para algum bem como condição a certo bem-estar. Estabelece-se uma relação de
dependência entre pessoas e coisas e disso emerge o valor. Embora só se manifeste
dependendo de uma situação, o centro do valor está no indivíduo e transfere-se o valor aos
bens por associação. Se o bem existe em abundância, a vida não depende de nenhuma porção
individual dele; caso contrário, estabelece-se a dependência e passa-se a atribuir-lhe valor
econômico. Só os bens insuficientes para atender a nossos desejos até a saciedade são
economizados. A ciência econômica trata das atividades humanas voltadas ao fim da
economização.
O valor que conferimos aos bens depende de nossas necessidades atuais. Os capri-
chos e as peculiaridades pessoais, bem como hábitos e costumes, podem ajudar a deter-
minar tais necessidades; entretanto,
“[...] uma vez presente essas necessidades, o valor que os bens têm para nós não
pode ser mais algo de arbitrário, mas simplesmente a consequência necessária do
conhecimento de sua importância para nossa vida ou para nosso bem-estar.” (C.
Menger, Princípios de economia política)
A relação entre o conhecimento humano e o valor é direta e natural, regida por leis
exatas que produzem resultados que só dependem da escala de valor que construímos
previamente em nossas mentes. O indivíduo com suas necessidades concretas e o
contexto de relações em que ele opera são a essência do fenômeno do valor. Dadas as
estruturas de necessidades, de relações entre elas e os objetos e a disponibilidade destes,
determinam-se os valores dos bens de modo natural e exato.
Anteriormente, no capítulo dois de seu livro, Menger havia definido as assim
chamadas ordens dos bens. Antes de fazê-lo, o austríaco tece interessante digressão
sobre os cuidados humanos com o futuro e a necessidade de previsão num ambiente em
que o futuro não é inteiramente conhecido. A preocupação com a demanda futura de
bens cresce com o progresso da humanidade. Em culturas mais avançadas é maior o zelo
pelo atendimento das necessidades futuras. As demandas futuras são antecipadas e o
atendimento delas depende do tempo do processo de produção, que tende a crescer com
o avanço tecnológico. Os povos civilizados, assevera Menger, desenvolvem um
“complexo sistema de previsão para o atendimento das necessidades humanas”. No
entanto, a previsão nunca é perfeita pois o futuro é incerto:
“[...] a experiência nos ensina que, em relação a períodos futuros, não raro nos
falta a certeza de que determinadas necessidades concretas existirão”. (Ibidem)
Mesmo quando se conhece as necessidades futuras podemos não conhecer a quantidade
de bens necessária para satisfazê-las.
Bens de primeira ordem são bens econômicos prontamente disponíveis para
consumo e que dizem respeito às necessidades concretas imediatas que temos deles.
Preocupamo-nos em tê-los disponíveis no momento atual, mas também em dispor deles
em qualquer momento futuro em que o desejarmos. Para tanto, é necessário o concurso
atual de bens de ordem superior. Bens desse tipo são bens de produção que demandamos
a fim de, com eles, obtermos, em tempo futuro, o bem de primeira ordem prontamente
consumível.

302
“Toda vez que a demanda de um bem de ordem inferior não for atendida, ou só
for atendida parcialmente, ocorre sempre a demanda de cada um dos bens
complementares de ordem superior.” (Ibidem)
Menger examina a seguinte questão: em cada estádio da produção, quais os bens de
ordem superior indispensáveis para atender à demanda de bens de primeira ordem?
Preocupados com isso, os indivíduos, na vida economia, procuram estar em condições
de dispor das quantidades complementares dos demais bens de ordem superior, de modo
a combiná-los adequadamente e no tempo certo a fim de prover o atendimento de
necessidades futuras. Surgem, nesse âmbito, três tipos de demanda: (1) demanda total
por bens de ordem superior: quantidades de cada um dos bens de ordem superior
necessários à produção, e suficientes para a produção da quantidade necessitada de bens
de primeira ordem; (2) demanda efetiva em cada etapa da produção: a demanda pela
quantidade de bens complementares que poderão ser empregados, dada a limitação na
oferta de um dos bens que se combinam em cada etapa do processo e (3) demanda
latente: a demanda restante que se tornaria efetiva quando viéssemos a dispor também
das quantidades complementares que no momento nos faltam.
Assim, a característica econômica dos bens de ordem superior é condicionada pela
característica econômica dos bens de ordem inferior para cuja produção eles concorrem.
Diz Menger que o bem de ordem inferior não é econômico porque o correspondente bem
de ordem superior o é, mas o contrário, tudo gira em torno da demanda por aquele bem,
ou seja, centralizam-se as necessidades humanas diretas. Escreve Menger:
“O homem, com suas necessidades e seu controle sobre os meios de satisfazê-
las, constitui o ponto de partida e de chegada, a meta de toda a economia
humana.” (Ibidem)
Em suma, na passagem abaixo Menger esclarece as características dos bens de
ordem superior:
“Posteriormente a reflexão e a experiência conduzem as pessoas a
conhecimento mais profundo do nexo causal entre as coisas, sobretudo do nexo
causal delas com seu bem-estar, travando, então, conhecimento com os bens de
segunda, de terceira e de outras ordens superiores. Também em relação a esses
bens de ordem superior, as pessoas constatam que alguns deles estão disponíveis
em quantidade superior à necessária, ao passo que, em outros casos, constatam a
relação contrária. Ao fazer essa constatação, as pessoas passam a distinguir entre
bens de ordem superior (que constituirão objeto de sua atividade econômica) e
aqueles bens para os quais não existe essas necessidades. Essa, e não outra, é a
origem da característica econômica dos bens de ordem superior. (Ibidem)

A ESCALA DE NECESSIDADES
O valor do bem é medido pela importância do desejo satisfeito, isto é, pela
“[...] variação do grau de importância das diversas necessidades a serem
atendidas.” (C. Menger, Princípios de economia política).
As necessidades mais importantes são as que preservam a vida. O grau de
importância das demais necessidades
“[...] escalona-se de acordo com o grau (duração e intensidade) do bem-estar que
depende do atendimento das respectivas necessidades.” (Ibidem)
Temos não só o atendimento de necessidades diferentes, mas também a
possibilidade do atendimento em diferentes graus de plenitude da mesma necessidade.
Assim, deve-se levar em conta a variação no grau de importância no atendimento de

303
necessidade específica, à medida que se aproxima do ponto de saciedade. É possível,
portanto, classificar os vários desejos e arranjá-los em algum tipo de escala.
Os austríacos reconhecem a dificuldade em classificar desejos. Há os que requerem
satisfação periódica ou contínua, desejos fundamentais e universais. Há também uma
superestrutura de outros tipos de desejos necessários para o desenvolvimento individual
ou social do ser humano, que inclui até caprichos e extravagâncias. O progresso da
civilização enseja a expansão do antigo círculo de desejos e a criação de novos desejos.
Existe uma longa e complexa graduação, quase infinita, de desejos, o que torna
impossível sua classificação pelo teórico. Para Menger, porém, o fato de os bens serem
adquiridos a preços prova que os indivíduos, antes das trocas, classificam seus desejos
de algum modo. A troca pressupõe o arranjo prévio dos desejos individuais numa escala
que mostra se o grau de satisfação deste ou daquele desejo é maior ou menor que o de
outro desejo.
Todo indivíduo cujas riquezas são limitadas em relação aos desejos tem uma escala
em sua mente quando organiza os gastos. Não se pode, entretanto, estabelecer um
princípio externo que possa dividir os desejos em classes que abrangem de desejos de
necessidades básicas (alimentação, moradia e vestuário), passando pela classe de
necessidades de conforto (boa comida, boa roupa etc.), até outra com desejos de luxúria
(refinamentos ou apetites artificiais da vida, tais como música, pintura, cinema etc.).
Cada indivíduo, rico ou pobre, faz sua própria escala de desejos. Não adianta postular
uma gradação de desejos em classes ou tipos; além do mais, os princípios que, em cada
indivíduo, norteiam a escala operam por sanção negativa: não são baseados na
satisfação, mas nas consequências para a vida se o desejo permanecer insatisfeito. Com
base na escala, o indivíduo procura satisfazer ao que são seus desejos mais urgentes,
deixando os menos urgentes insatisfeitos. O desejo é um sentimento de incompletude.
Um desejo sempre satisfeito deixa de ser um desejo.
A escala de valores depende do ponto em que os desejos estão satisfeitos. Se a neces-
sidade de água é satisfeita, situação corriqueira na maioria das situações, o diamante
passa a ter, de fato, mais importância econômica aos indivíduos.
Ciente das dificuldades para o teórico em construir uma escala completa de desejos
e necessidades, que em cada mente se revela segundo um princípio particular de
classificação, Menger só se lança a construir explicitamente a escala de valor para o caso
de um único bem satisfazendo a diferentes finalidades. Por exemplo, o pão satisfaz aos
diferentes desejos de alimentação. Ele diz-nos que
“[...] é muito diferente a própria importância que cabe aos diversos atos com que
as pessoas atendem à necessidade de alimentação.” (Ibidem)
A escala de importância dos diferentes graus de atendimento das necessidades é
obtida expressando-se as grandezas envolvidas em números. As diferentes necessidades
a que se destina a alimentação (manutenção da vida, da saúde e para o atendimento de
prazeres sucessivamente mais luxuosos) são dispostas em números romanos, e o grau de
importância de cada atendimento é quantificado por números inteiros de 0 a 10. Esses
números expressam a importância decrescente de atos sucessivos de atendimento de
cada necessidade. Menger não acredita que se possa comparar números entre diferentes
colunas e só os introduziu para indicar ordens de importância. Ele não é preciso quanto
ao significado desses números, mas seus comentadores atuais consideram-no um
ordinarista.
Se tivermos um suprimento de alimentos que permita atender às necessidades
correspondentes a seis graus de satisfação entre todos os que estão identificados na
Tabela 11.1, a necessidade I é atendida até o terceiro grau de plenitude, a II até o segundo
e a III é preenchida apenas no primeiro quantum. Qualquer outra estratégia alocativa
seria menos proveitosa. O indivíduo economizador procura igualar todas as margens

304
dentre as necessidades atendidas, com o fito de maximizar sua satisfação. Pode-se dizer
que ele iguala as satisfações marginais em cada desejo. Para um bem que satisfaça a
diferentes tipos de desejos, todos os desejos concretos são satisfeitos em um mesmo nível
de importância.

Tabela 11.1 Escala das necessidades e dos graus de satisfação, segundo Menger.
I II III ... X
10 9 8 ... 1
9 8 7 ... 0
8 7 6 ...
7 6 5
6 5 4
5 4 3
4 3 2
3 2 1
2 1 0
1 0
0

A solução de Menger é clara e correta, mas sabemos hoje em dia que sua conclusão
só é válida para um único bem com vários usos. Se a satisfação de um tipo de desejo é
obtida pelo consumo de diferentes bens, não podemos fazer a comparação proposta pelo
austríaco.
A Tabela 11.1 permite-nos dizer que o valor de seis porções de alimentos é seis vezes
a importância que tem o atendimento da necessidade de menor grau de importância
dentre as necessidades que puderam ser atendidas. A última porção de necessidade, que
não seria atendida se a quantidade disponível fosse reduzida, fornece o valor de cada
porção individual do bem de que a pessoa ainda dispõe. Isso explica por que o diamante
tem grande valor, uma vez que só atende às necessidades mais importantes para cujo
atendimento esse material se presta. O fenômeno do valor está ligado à existência prévia,
em cada mente individual, dessa escala de necessidades que independe do arbítrio,
embora se possa errar na avaliação do grau de importância das diversas necessidades.
Diz Menger:
“Para nós, a importância do atendimento das diversas necessidades não
encontra sua medida em nosso arbítrio, mas antes na importância que, inde-
pendente de o querermos ou não, tem o atendimento de cada necessidade para
nossa subsistência ou para nosso bem-estar. Entretanto, quem avalia a importân-
cia das diversas necessidades a serem atendidas (...) é o próprio indivíduo, e esse
juízo obviamente está sujeito a erro.” (Ibidem)
Se dissermos que em Menger o valor é determinado pela utilidade marginal, é
importante prestar atenção nos conceitos e na terminologia particular do austríaco. A
expressão “utilidade marginal” nunca foi empregada por Menger; dentre os austríacos,
Friedrich von Wieser (1851-1926), 30 anos depois, foi o primeiro a cunhar essa terminologia
(“Grenznutzen” em alemão). Para Menger, utilidade é a capacidade geral do bem em
proporcionar bem-estar. Valor é uma relação mais limitada, na qual parcela do bem-estar
humano é condicionada pela posse de um bem particular, em que se estabelece uma relação

305
de dependência real entre a satisfação do desejo e o bem. Os bens em geral são capazes de
satisfazer a vários desejos, porém os usos de que fazemos deles têm diferentes importâncias.
Algumas das utilidades dos bens são determinantes para o valor. Qual delas? Se existe um
bem em quantidade limitada, o indivíduo aloca-o dentre seus vários desejos de acordo com
sua escala particular, tomando o cuidado para que o desejo mais urgente seja satisfeito antes
do menos urgente. A utilidade marginal seria uma linguagem, estranha a Menger, para se
falar no desejo dependente, isto é, aquele que deixa de ser satisfeito se uma unidade do bem
é retirada. É a relação de dependência que determina o valor. O valor de um bem é, portanto,
medido pela importância do desejo concreto menos urgente dentre os desejos satisfeitos.
Menger não se vale do conceito de margem de modo tão explícito quanto em Jevons e
Walras.
A importância do último desejo satisfeito na escala mede o valor que se atribui ao
bem. É o que na teoria da utilidade tradicional se conhece por utilidade marginal.
Tomando essa terminologia, pode-se dizer que, em Menger, o valor é determinado pela
utilidade marginal em dada circunstância. É preciso, no entanto, resguardar a natureza
dos argumentos mengerianos. Em Menger, o valor determinado na margem é um resul-
tado substantivo do argumento econômico, não faz parte de um cálculo. A abordagem do
austríaco difere do enfoque de Walras no qual o cálculo econômico marginalista possui
um caráter apenas instrumental, que surge na própria lógica de formalização da teoria
dos preços e só entra no plano substantivo da teoria econômica como hipótese.
Se a utilidade marginal determina o valor de uma porção concreta do bem, deve deter-
minar o valor de todas as unidades do estoque, pois todas são iguais e cambiáveis entre si. O
último desejo suprimido determina a última satisfação e esta determina o valor de todo o
estoque como um múltiplo dela.
A meta última do esforço econômico não é a obtenção de bens, mas a satisfação de
desejos humanos. Só os bens finais permitem o atendimento de necessidades,
entretanto, para obtê-los contamos com a produção de bens de ordens superiores.
Menger também procura explicar o valor dos bens de ordens superiores com base na
avaliação subjetiva dos consumidores. Todavia, como esses bens não são consumidos
diretamente, e sim usados na obtenção de bens de primeira ordem, devemos olhar para
estes últimos. Assim, fica definido por Menger que
“[...] o valor dos bens de ordem superior é sempre, e sem exceção, determinado
pelo valor previsível dos bens de ordem inferior para cuja produção os mesmos
servem.” (Ibidem)
O valor previsível do bem de ordem inferior pode ser diferente do valor atual de
bens similares, pois ele irá depender da relação entre a quantidade disponível no futuro
e a escala futura de necessidades. A teoria do valor mengeriana só diferencia os recursos
produtivos dos bens de consumo com base na proximidade do consumo. A aplicação da
teoria do valor também a bens de produção leva a proposições corretas e adequadas sobre
a teoria da distribuição pela produtividade marginal. Quanto mais elevada a ordem do
bem, maior o tempo transcorrido até o momento em que se pode dispor efetivamente
dos bens de primeira ordem, com base na posse atual dos correspondentes bens de
ordem superior. A utilização de bens de ordem superior traz vantagens econômicas aos
indivíduos ao permitir-lhes aumentar sua produtividade. Menger denomina de “capital”
as quantidades disponíveis de bens de ordem superior. A utilização progressiva de bens
de ordem superior e o consequente aumento na quantidade de bens de consumo só é
possível à medida que a atividade de previsão individual abarca períodos de tempo cada
vez mais remotos.
Dentro do período em que a produção ocorre, o capital fica vinculado a ela. A utilização
do capital, que fica indisponível nesse intervalo de tempo, é feita pagando-se um valor por
essa utilização. Quanto maior o tempo de produção, maior a produtividade, e cresce também

306
o valor da utilização do capital. Também há um valor associado à atividade empresarial (a
remuneração a um serviço de efetuar o cálculo econômico no processo de transformação do
bem superior em bem inferior). Assim, o valor de todos os bens de ordem superior é obtido
pela equação que o iguala ao valor previsível do produto final no período futuro, descontado
o custo de utilização do capital e o pagamento pela atividade empresarial.
Menger reconhece que não se pode utilizar, para o atendimento de necessidades
humanas, um bem de ordem superior isolado, mas sempre em conjunto com outros bens de
ordem superior, os bens complementares. Diz que os bens se poderiam combinar em
proporções fixas ou variáveis, uma análise inovadora para a época. No caso em que vários
bens contribuíssem para uma satisfação, pergunta-se qual influência teria essa satisfação
sobre os valores isolados de cada bem. Um grupo de bens de ordem superior tem seu valor
determinado pela utilidade marginal do grupo. Todavia, como distribuir esse valor entre
seus membros? O valor de um único bem de ordem superior dentro do grupo, diz Menger, é
igual à
“[...] diferença entre a importância que têm as necessidades que seriam atendidas
em caso de dispormos da referida quantidade e a importância das necessidades
que, em caso contrário, seriam atendidas.” (Ibidem)
A análise de Menger, nesse tocante, não é, entretanto, suficientemente esclare-
cedora; ela seria aperfeiçoada, tempos depois, por seus seguidores diretos Wieser e
Eugen von Böhm-Bawerk (1851-1914). O passo mais importante no desenvolvimento
teórico das ideias de Menger foi a interpretação de Wieser dos custos como utilidade
sacrificada, a ideia de custo de oportunidade, e também a teoria da determinação do
valor dos fatores de produção por imputação (“Zerechnung”), também desenvolvida por
Wieser. Böhm-Bawerk destaca-se na teoria dos juros e do capital, sua contribuição
original mais importante.
Menger é um descobridor independente das duas leis de Gossen. Entretanto, o que
torna sua análise realmente inovadora é que ele aplica a noção básica do valor subjetivo
a situações em que a satisfação de um desejo é apenas parcialmente dependente de um
único bem de ordem elevada em particular. Isso o conduz a desenvolver uma meticulosa
descrição das conexões causais entre os bens e a satisfação dos desejos a que eles servem.
Permite-o também tratar relações de complementaridade entre os bens de produção,
examinando a proporção em que se combinam, e analisar os custos tendo-se em conta
os usos alternativos do bem. Traçar em detalhes os estágios na produção até de uma
mercadoria simples, na moderna economia complexa, já seria uma importante descrição
da vida econômica e de sua história.

A TEORIA DO PREÇO EM MENGER


Nos capítulos 4 e 5 dos “Princípios”, Menger discute o fenômeno da troca e o
processo de formação de preços. Aqui fica patente a natureza de seus pressupostos
epistemológicos. Fica também evidenciado que a essência do fenômeno são os valores
subjetivos, que determinam a faixa em que as relações de troca no mercado podem
estabelecer-se. O preço concreto, de qualquer modo, é um fenômeno acidental. A teoria
só demarca os limites em que ele pode vir a manifestar-se.
Menger reconhece a dificuldade em construir uma teoria universal dos preços com
base no autointeresse, sem levar em conta também os propósitos morais. Em muitos
setores, porém, as trocas ocorrem sob as antigas leis da competição. A lei do preço na
competição perfeita só leva em conta o motivo da vantagem na troca. O mercado é aberto
e orgânico. Compradores e vendedores observam as condições de oferta e a competição.
Cada parte fará uma troca se vir um ganho nela. Cada um prefere um grande ganho a um
menor. Essas são as hipóteses de qualquer mercado concorrencial ordinário.

307
Menger analisa os preços começando do caso mais simples, indo depois em direção
a situações mais complicadas. No primeiro caso, estuda a troca isolada. O vendedor S e
o comprador B tencionam transacionar um cavalo. Para S, seu cavalo vale $ 20. B estima
o cavalo em $ 60. Se p = $ 40, ambos ganham $ 20. O preço efetivo pode ir, portanto, de
$ 20 a $ 60, intervalo em que eles desejam trocar. O resultado final só é determinado
pelo processo de mercado. Ele vai do mínimo na avaliação subjetiva do vendedor a um
máximo na avaliação subjetiva do comprador.
O segundo caso analisado é o da competição unilateral de compradores ou
vendedores. No caso de compradores, há um grupo, digamos, de três indivíduos, B1, B2 e
B3, que querem o cavalo. B1 avalia-o em $ 60, B2 em $ 50 e B3 em $ 40. Como S avalia em
$ 20, qualquer um dos três poderia comprá-lo. Há, no entanto, uma disputa até que o
preço suba acima de $ 40, o que deixa B3 de fora, e mais que $ 50, descartando a intenção
de B2. B1 fica como o único comprador, pagando algo no intervalo entre acima de $ 50 e
$ 60. $ 50 mais alguma coisa é o limite inferior capaz de excluir os outros compradores
e $ 60 é o limite superior dado pela avaliação subjetiva do único comprador restante. O
preço do mercado é qualquer coisa acima da avaliação subjetiva do último comprador
sem sucesso e o preço máximo pago pelo comprador bem-sucedido. No caso de muitos
vendedores e um único comprador, ocorre o inverso.
O terceiro caso analisado por Menger trata da situação ordinária em que existe
competição completa com muitos vendedores e muitos compradores de artigos
similares. Suponha seis compradores e cinco vendedores de caixas de maçã de igual
qualidade e ofertadas simultaneamente. Os competidores de ambos os lados conhecem
seus próprios interesses e os seguem. A Tabela 11.2 sintetiza as várias avaliações
individuais.

Tabela 11.2 Situação do mercado com um número restrito de compradores e


vendedores.
Avalia a caixa Aceita vender
de maçãs a preços
Comprador pagando até: Vendedor acima de

1 18,6 1 13

2 18 2 14

3 17,6 3 15

4 17 4 16

5 16 5 17

6 15

Os primeiros três compradores aceitam o preço de qualquer um dos vendedores.


Todavia, não pagarão mais do que o necessário. A transação começa com baixas ofertas
de preços dos compradores.

308
Tabela 11.3 Mudanças na quantidade de compradores e vendedores em resposta a
variações nos preços.
Número de Número de
Com p igual a $ compradores vendedores

13,6 6 1

14 6 1

14,6 6 2

15 6 2

15,6 5 3

16 5 3

16,1 4 4

16,6 4 4

16,8 4 4

17,2 3 5

Na Tabela 11.3, os preços de 16,1, 16,6 e 16,8 representam a faixa em que há tantos
compradores quanto vendedores. Nela ocorre a troca e o preço é determinado, no caso
de variações contínuas, entre $ 16 e $ 17. Nessa faixa, a avaliação dos outros
competidores não afeta as trocas. Se p  17, o quarto comprador se retirará, e se p  16,
sairá o quarto vendedor, não se estabelecendo a igualdade entre oferta e demanda. O
preço do mercado (a teoria não permite determinar seu valor exato) estará entre a
avaliação subjetiva do último comprador e a do último vendedor, que determinam
respectivamente o limite superior e o limite inferior do intervalo de variação dos preços.
O esquema que acabamos de apresentar é típico dos economistas austríacos. O
preço ou valor de troca objetivo é apenas a superestrutura dos valores subjetivos
individuais. É a avaliação dos indivíduos, em ambos os lados do mercado, que decide
qual a capacidade de troca de cada parte, quais as partes que realmente chegam a um
termo (isto é, quem efetivamente tomará parte na transação), quem será o último
comprador e o último vendedor e, finalmente, qual será o intervalo de variação dos
preços. Preço é o resultado das avaliações subjetivas feitas em relação às mercadorias e
da utilidade marginal da renda ou riqueza que possui previamente o indivíduo, o que lhe
permite representar o equivalente em preço daquela avaliação. O valor subjetivo de
qualquer coisa é dado pela dependência da satisfação à posse dela, medida por dois
fatores: depende do desejo que a coisa é capaz de satisfazer e do estado da provisão já
existente que atende ao desejo do avaliador. A mesma avaliação pode ser feita pelo
homem rico com pouco desejo ou pelo pobre com muito desejo (ambos estão dispostos
a pagar, por exemplo, $ 16,6). O preço que finalmente se estabelece no mercado é a
resultante dessas avaliações, bem como de fatores acidentais que só podem ser
conhecidos pela história e pela estatística.
Podemos acompanhar a sequência de desenvolvimentos conceituais e teóricos feitos
nos primeiros capítulos dos “Princípios” que antecede a explicação do fenômeno dos
preços. Menger delineia uma teoria da ação humana em que os indivíduos agem

309
propositadamente para satisfazer a necessidades, encontram uma relação de escassez
entre bens e desejos e procuram alocar eficientemente os bens demandados, dada a
estruturação hierárquica prévia dessas necessidades. As pessoas agem com base em
informação incompleta em um mundo cheio de incertezas. Toda atividade ocorre no
tempo real e é um processo irreversível. A avaliação, presente no ato de satisfação das
necessidades, é inteiramente subjetiva. A teoria exata explica a verdadeira natureza do
valor dos bens, reconhecendo leis econômicas imutáveis, eternas e universais. Sem a
identificação dessas leis, o mundo econômico não poderia ser analisado nem controlado.
Tempo e incerteza definem o valor corrente dos meios de produção (bens de ordem
elevada) que são usados para a produção de futuros bens de consumo (de primeira
ordem) como valores esperados. A peculiaridade do bem de ordem elevada recai no fator
tempo. Na ausência de conhecimento completo e de controle completo sobre a natureza,
o futuro não é certo e, como a utilização do bem de ordem superior sempre consome
tempo, é o desejo antecipado do que será satisfeito pelo bem de ordem elevada, no final
do processo de produção, que determinará sua qualidade de bem.
Da interação de duas economias individuais resulta a troca, que leva em conta a
avaliação de ambos os indivíduos e suas buscas por uma situação melhor. É na esfera da
troca que aparecem os preços.
Preços, ou as proporções em que os bens são trocados, são fatos acidentais. São
apenas os sintomas que se manifestam no domínio dos fenômenos, refletindo a essência
da atividade econômica que consiste na melhoria de provisões para satisfação das
necessidades por meio da troca. Há duas esferas de discussão na obra de Menger: no
campo da essência reside a grandeza valor; na aparência vicejam preços e moedas.
A transformação de valores em preços envolve múltiplas dimensões
(epistemológicas, metodológicas e analíticas). Quando Menger discute o processo de
formação de preços, o discurso muda do valor para os preços, da essência para a
aparência, da verdade e certeza da teoria exata para os resultados apenas prováveis da
teoria empírico-realista. Ele critica a crença de que os preços são a essência da troca e só
equivalentes são trocados. Em sua teoria subjetiva do valor, não se faz troca de
equivalentes: não tem sentido econômico trocar valores iguais entre si. O indivíduo só se
engaja na troca se um valor mais alto puder ser obtido pelo bem recebido. A teoria de
preços deve explicar como o indivíduo é levado a trocar quantidades específicas de bens
com o objetivo de alcançar a mais elevada satisfação possível de suas necessidades. Para
tanto, a exposição de Menger não trabalha com a derivação tradicional de uma função de
demanda, já que ele analisa bens que satisfazem a diferentes classes de necessidades,
dispostas na hierarquia de níveis. Também não usa a matemática ou deriva teoremas de
axiomas; apenas representa a base teórica de sua análise em suas ilustrações da vida real.
Hayek acredita que o mérito maior de Menger recai mais na busca de detalhes em pontos
conceituais importantes do que na elegância formal. Embora clara, sua teoria não teria
muito apelo na forma em que ele a deixou. Coube a Wieser, indica Hayek, tornar a análise
da utilidade marginal austríaca apta a novos desenvolvimentos que culminaram na
lógica da escolha e no cálculo econômico. Menger está mais interessado em explicar o
princípio marginalista e torná-lo conhecido do que em desenvolver uma completa teoria
da utilidade marginal, incluindo sua exata formulação matemática.
Menger não resolve a questão da transformação de valores em preços. Sua solução
na teoria dos preços é sempre indeterminada, como no problema de monopólio bilateral.
Os preços não podem ser determinados, só podem ser localizados dentro de certa região
de indeterminação cujos limites são dados pelos valores subjetivos dos participantes das
trocas. É verdade que o preço pode ser determinado empiricamente após a troca, porém
a teoria não pode prever esse preço, pois sua formação depende também de fatores não-
econômicos. A teoria só pode determinar ex ante os valores subjetivos. A análise do valor
leva à região possível dos preços efetivos. É verdade que essa região pode ter seus limites

310
estreitados com um número maior de participantes. No caso limite da concorrência
perfeita, ela poderia entrar em colapso num único ponto, o que deixaria o preço
univocamente determinado pelos valores subjetivos. Todavia, isso só no caso
competitivo. No caso geral, o problema do preço só pode ser resolvido considerando-se
fatores exógenos à teoria.
Em Menger, a formação de preços não é um processo harmônico e sem conflito; os
preços não são totalmente determinados; são estabelecidos por um processo de barganha
entre limites amplos. O poder de barganha depende da informação dos agentes.
A explicação austríaca do valor não parte dos custos de produção, pelo contrário,
por meio dos preços dos produtos finais a avaliação subjetiva é trazida de volta aos meios
de produção. A conexão causal vem em sentido oposto em relação aos economistas
clássicos; nos austríacos começa do bem final e propaga-se na avaliação dos custos.
Concordam que na competição perfeita os preços são iguais aos custos marginais. Não
que aqueles sejam determinados por estes. O valor flui do produto final para os meios de
produção. A condução do valor nessa direção pode permanecer oculta para cada um dos
produtores intermediários, mas a organização da indústria, na prática, carrega a
informação de estágio para estágio. O custo para cada produtor tem de conformar-se ao
valor e não o contrário. Embora o nexo real de causa e efeito não seja visto nas
circunstâncias mais complicadas da indústria moderna, é a produção que no longo prazo
deve-se conformar com a natureza e a medida dos desejos humanos.

JOSEPH SCHUMPETER
Joseph Aloisius Julius Schumpeter (1883-1850) nasceu em Triesch, cidade que
pertencia então ao Império Austro-Húngaro, no mesmo ano em que nasceu Keynes e
também o ano da morte de Marx. Seu pai era Josef Alois K. Schumpeter, industrial de
classe média alta, e sua mãe chamava-se Johanna Marguerite Gruener. Era de família
católica, religião predominante na monarquia do Império. O pai faleceu quando ele tinha
apenas quatro anos de idade. No ano seguinte, muda-se com a mãe para Graz,
objetivando o seu ingresso em escola mais prestigiada. Seis anos depois, a mãe viúva se
casaria com um ex-combatente do exército, e graças à ajuda dele Schumpeter ingressaria
na escola mais seleta de Viena, o Theresianum, em que estudavam os filhos da aristo-
cracia.
Aluno de destaque, Schumpeter passa longas tardes na biblioteca estudando
idiomas, e percorrendo farta literatura em sociologia, filosofia e arquitetura. Em 1901,
ingressa na Faculdade de Direito da Universidade de Viena, onde também pôde estudar
economia, estreitamente articulada ao curso de direito. A Universidade de Viena se
firmara como um dos principais centros de excelência no assunto, principalmente devido
aos avanços teóricos de Carl Menger, e de seus discípulos Böhm-Bawerk e Von Wieser.
Estes dois últimos foram professores de Schumpeter e influenciaram o seu pensamento.
Em especial, os seminários que Böhm-Bawerk conduziu entre 1905 e 1906 constituíram
elemento importante na formação do jovem pensador.
Foi nessa época que Schumpeter definiu a sua perspectiva de interesse no campo da
economia. Forma visão dela que, uma vez consolidada, irá permear, daí em diante, todo
o trabalho subsequente. Ao concluir a graduação em 1906, ele publica o seu primeiro
artigo, intitulado Sobre o método matemático em economia teórica. Nele, faz uma
revisão das maiores contribuições em termos de métodos matemáticos para a economia.
Nota-se, entretanto, que embora enalteça o papel da matemática nessa ciência, ele
mesmo não fez e nem fará uso de formalização matemática em suas teorias. No mesmo
ano, também chama a atenção o ensaio em que ele comenta o trabalho do economista
norte-americano J. B. Clark. Mesmo discordando do colega, Schumpeter tece elogios, já
demonstrando a sua simpatia com os economistas desse país.
311
Ainda em 1906, Schumpeter participa de seminários na Universidade de Berlim,
ocasião em que trava contato direto com professores alemães que eram críticos vorazes
à metodologia econômica austríaca. Nesse ano, visita a França e depois vai à Inglaterra,
país ao qual retornaria amiúde. Permanece um tempo na London School, como
pesquisador visitante, frequentando também outras universidades inglesas. Conhece
Edgewoth e Marshall pessoalmente.
Em 1907, Schumpeter se casa com Glayds R. Seaver, filha de um clérigo anglicano,
e parte então para o Egito, onde exerceria o papel de advogado perante a Corte Mista
Internacional, criada para a defesa dos interesses ingleses na região. Torna-se consultor
econômico pessoal do rei turco que exercia poder no Egito. Mesmo com todas essas
atividades, no ano seguinte ele finaliza seu primeiro livro A Natureza e a essência da
economia política (“Das Wesen”). Pretendendo conquistar os alemães, o livro trata da
análise estática de uma economia estacionária. Combina influências de Léon Walras com
as da Escola Austríaca. O modelo de equilíbrio geral é apresentado sem formalização
matemática, entretanto Schumpeter esquematiza o fluxo circular de Walras com o
mesmo cuidado de comparar número de equações com número de incógnitas e examinar
o equilíbrio geral. Em setembro do mesmo ano, ele torna-se professor associado da
Universidade de Czernowitz. Nesta, ele termina seu segundo livro, Teoria do desen-
volvimento econômico, um livro tido como essencialmente teórico.
O primeiro capítulo da “Teoria” retoma o fluxo circular como ponto de partida para
o fenômeno de inovação, conceito que ele destacaria na obra. Inovação implica em um
processo de mudança, após o que a economia atinge novo estado de equilíbrio. Fenô-
menos fundamentais da economia de mercado como intermediação financeira, investi-
mento, lucro e flutuações econômicas são explicados pela ação do empresário inovador,
ausente no estado de equilíbrio. O fluxo circular aparece enquanto uma ficção conve-
niente, não como a essência do que ocorre numa economia capitalista.
Logo após publicar o livro, Schumpeter muda-se para Graz onde se torna o
professor mais jovem da faculdade, ocupando a cadeira que pertenceu a Richard
Hildebrand. Entre 1913 e 1914, permanece como professor visitante da Universidade de
Columbia, no meio oeste americano, e aproveita o período para visitar diversos centros
e conhecer pessoalmente Fisher, Mitchell e outros grandes economistas americanos.
Estes se tornariam bastante próximos dele e favoreceriam seu retorno a esse país ao
longo dos anos 1920, culminando na sua mudança definitiva para Harvard.
Ainda em 1914, publica Fundamentos do pensamento econômico, com vista a ser
incorporado em uma enciclopédia organizara por Max Weber. O livro trata da história
das ideias econômicas entre 1750 e 1900. Na primeira parte, discute metodologia
econômica, nas segunda e terceira partes, faz um esboço de história do pensamento
econômica (HPE), começando com os fisiocratas, passando por Adam Smith, até os
clássicos ingleses e outros economistas, de outras nacionalidades do século XIX. A última
parte do livro discorre sobre a escola história alemã e sobre o marginalismo de Menger,
Jevons e Walras. Os “Fundamentos” serviram como protótipo do seu famoso História da
análise econômica, até hoje o mais conhecido livro de HPE, que só seria publicado
postumamente em 1954.
Durante a Grande Guerra, Schumpeter se manteve ao lado dos Aliados. Discreto,
passa esses anos publicando ensaios em economia monetária, finanças públicas e
história econômica. Ao final da guerra, em 1919 ele assume o posto de ministro das
finanças da Áustria, posição na qual permaneceria por poucos meses. Desligado do cargo
público, assume a presidência de um banco privado. Foi uma passagem desastrosa como
homem de negócio. O banco faliria em 1924, e toda a fortuna pessoal de Schumpeter será
perdida nesta empreitada. Schumpeter decide então voltar a lecionar, estabelecendo-se
em Bonn, na Alemanha, entre 1925 e 1932. Com a ascensão do nazismo, ele teve de deixar

312
a Europa, vindo a se estabelecer na Universidade de Harvard. Permaneceu ali até sua
morte em 1950.
Na fase americana, destacam-se duas contribuições da máxima importância: Ciclo
de negócios, de 1939, e Socialismo, capitalismo e democracia de 1942. Este livro teve
grande impacto na forma de os economistas pensarem. Em especial, ele lançou uma nova
visão do papel das estruturas concentradas de mercado, mostrando que o monopólio
apresenta efeitos benéficos para a sociedade quando examinado em uma perspectiva
dinâmica e de longo prazo. No capítulo 8, intitulado “Práticas monopolistas”, ele confere
um novo sentido ás “práticas restritivas” quando vistas fora do estado estacionário. Na
ótica de Schumpeter, as tais práticas restritivas possibilitam à indústria lucros extraor-
dinários que irão financiar inversões no processo de inovação, caracterizado como sendo
de “destruição criadora”: abole-se a velha tecnologia em prol das novas. Práticas que
levam a restrições nos mercados, e que garantem ganhos excepcionais a inovadores,
como salvaguardas, patentes, e outros meios, funcionam como forte estímulo ao esforço
de investimento com vista à inovação. Planos ambiciosos são viabilizados ao se conter a
concorrência. Com a proteção, o inovador ganha tempo e espaço para se firmar.
Schumpeter reconhece que a análise do benefício das práticas monopolistas torna
bem mais complexa a intervenção pública no funcionamento do setor privado da
economia. Não basta ao gestor de políticas ter em conta o efeito de curto prazo do
monopólio, que é prejudicial por manter a produção abaixo do potencial, e por praticar
preços acima do custo marginal, inibindo o consumo. Há de se ver também o papel
positivo das práticas monopolistas:
“Restrições ao comércio do tipo cartel ou aquelas que consistem meramente
em reconhecer as limitações do processo de competição via preços são remédios
efetivos nas condições de depressão econômica [...] Elas devem ao final produzir
uma expansão da produção total não apenas mais estável, mas também maior e
que não poderia se assegurar em um concurso inteiramente não controlado.” (J.
Schumpeter, Socialism, capitalism and democracy)
Ou seja, o monopólio assegura uma estabilidade maior dos preços na época de
depressões econômicas. Schumpeter conceitua os preços como sendo rígidos sempre que
eles se tornam menos sensíveis a mudanças nas condições de oferta e demanda do que
seriam se prevalecesse a competição perfeita. Os preços flexíveis do livre mercado
oscilam muito no curto prazo e não têm como transmitir aos agentes o fato de que ao
longo do tempo inovações de processos e de mercadorias, que destroem as antigas
estruturas, irão satisfazer a dada necessidade a um preço inferior por unidade de serviço.
Em geral, novas melhorias levam de imediato a custos adicionais que depois serão
diluídos. Se os preços forem flexíveis, tais custos se refletirão imediatamente nos preços
e, com isso, novos bens de consumo introduzidos de modo experimental acabam não
conquistando o mercado potencial. Inibe-se então o processo de melhorias contínuas na
qualidade do produto. Já com preços rígidos, eles permanecem constantes no curto
prazo, mesmo que novas melhorias levem a custos adicionais. No longo prazo, os preços
se adaptam ao progresso tecnológico. O papel positivo da rigidez de preços consiste em
responder a tendências de longo prazo e não oscilar com causas espúrias de curto prazo.
Como a rigidez de preço de curto prazo afeta o desenvolvimento da produção total?
Os preços rígidos protegem a indústria em momentos de depressão, pois atenuam a
queda dos preços. Além do mais, na trajetória entre os ciclos a rigidez de preço acelera o
processo de inovação caracterizado pela destruição de equipamentos que irá afetar a
produção no longo prazo. Preços rígidos também têm influência no consumo total. A
queda dos preços na recessão poderia estimular o consumo e ajudar a economia a sair do
buraco. Contudo, esse efeito positivo da flexibilidade dos preços tem impacto menor. O
consumo presente depende de expectativas, se elas são pessimistas, mesmo com queda

313
de preço o consumo não aumentará. Em suma, a rigidez de preço associada à prática
monopolista tem um efeito estabilizador na economia:
“Sob as condições criadas pela evolução do capitalismo, perfeita e universal
flexibilidade de preços deve, na depressão, tornar o sistema ainda mais instável,
ao invés de estabilizá-lo como, de fato, o seria nas condições indicadas pela teoria
geral”. (Ibidem)
Então, concluindo, Schumpeter teria demonstrado que as práticas monopolistas
injetam vigor nas economias ao contrário da visão tradicional avessa ao monopólio:
“A teoria simples e genérica do monopólio ensina-nos que o preço de mono-
pólio é mais elevado e a produção monopolista é menor do que preços e produção
competitivos. Isso é verdade, contanto que o método e a organização da produção,
e tudo o mais, sejam exatamente os mesmos em ambos os casos. De fato, vicejam
métodos superiores disponíveis aos monopolistas que não estão disponíveis a
toda a gama de competidores ou, se o estiverem, não o estarão tão prontamente:
há vantagens que embora não estritamente inatingíveis às empresas
competitivas, seriam asseguradas, na prática, apenas ao monopolistas, por
exemplo, porque o monopolista se beneficia de um aporte financeiro
desproporcionalmente maior.” (Ibidem)

ESCOLA AUSTRÍACA
Menger inaugurou uma tradição dentro da economia científica que se tornou
conhecida como escola austríaca. Schumpeter, embora austríaco, não é tradicionalmente
considerado membro dessa escola, porque ele se afastou das influências de Menger e se
aproximou do tratamento walrasiano da economia. Ao longo de seis gerações de
economistas, os adeptos da escola austríaca procuraram uma via própria de pensamento
distinta da ortodoxia econômica, embora interagindo com ela e compartilhando pontos
teóricos e conceituais. O que particulariza a tradição austríaca é a ênfase que dá ao estudo
dos processos de mercado e ao subjetivismo do agente econômico. Atualmente,
poderíamos arrolar uma lista considerável de autores dessa escola: R. Ebeling, R. W.
Garrison, R. N. Langlois, D. C. Lavoie, S. C. Littlechild, G. P. O’Driscol, M. Rizzo, L. Lach-
mann, I. Kirzner, M. Rothbard e Luis Spadaro são os mais conhecidos.
Nas primeiras gerações de austríacos da escola, destacam-se Böhm-Bawerk e
Wieser, que deram renome à escola e tornaram-se muito respeitados. Suas contribuições
teóricas foram bastante aproveitadas na edificação de uma teoria do valor, da produção,
dos ciclos econômicos e da lógica da escolha entre o início do século XX e os anos 1930.
Nas décadas de 1920 e 1930 projetam-se os nomes de Ludwig von Mises (1881-1973) e
de seu colega F. A. von Hayek.
Mises tornou-se conhecido por sua teoria monetária na explicação do ciclo
econômico e também se destacou como um paladino da economia de mercado, apoiando
suas teses liberais na construção de uma nova epistemologia econômica. Hayek tornou-
se, de início, um nome conhecido por suas contribuições versando sobre aspectos
monetários do ciclo de investimento. As controvérsias teóricas em torno das questões de
ciclo econômico, capital, investimento e poupança, entre ele e opositores do porte de J.
M. Keynes e P. Sraffa, tornaram-se célebres na história do pensamento econômico.
Hayek propunha uma explicação dos ciclos econômicos em que a crise era ocasionada
por oferta desproporcional de capitais. A expansão da oferta monetária, ao reduzir as
taxas de juros, induz os agentes a investirem em excesso na obtenção de bens de
produção. A crise é provocada pela desproporção entre bens de consumo e bens de
produção. Isso levaria ao declínio dos investimentos e a uma perda de parte do capital

314
produtivo; capital este que havia sido superdimensionado em função de taxas de
investimento excessivamente altas.
O interesse de Hayek por questões técnicas em economia foi-se arrefecendo e ele
voltou-se às temáticas de psicologia e epistemologia social que ultrapassam o âmbito
mais restrito da disciplina. Os argumentos de Hayek e Mises contra a possibilidade do
cálculo racional no socialismo talvez representem a principal contribuição desses
autores.
Embora Mises e Hayek sejam seguidores de Menger, romperam com ele no que
tange ao fundamento filosófico da economia. E essa ruptura por certo levou a versões
teóricas diferenciadas em teoria do valor. Ambos repudiam o aristotelismo de Menger e
a crença em estruturas essenciais da realidade econômica como um dado objetivo. Mises
adere ao neokantismo na construção de um subjetivismo mais radical apoiado na
praxeologia: a ciência da ação humana. A filosofia econômica de Hayek fundamenta-se
em seus estudos em psicologia sensorial e na influência do filósofo Karl Popper. Hayek
não adere ao subjetivismo radical de Mises e nem ao naturalismo de Menger. Apoia-se
num subjetivismo evolucionista para explicar não apenas o processo de formação de
ideias que condicionam a ação individual, mas também o surgimento e funcionamento
das instituições sociais.

315
Questões

1. Construa uma tabela com a escala de importância das necessidades atendidas pelo
mesmo bem homogêneo e mostre como são determinadas a alocação de parcelas
dele entre os diferentes usos e o valor de uma unidade do bem em questão.
2. Em Menger, o que o leva a acreditar que o valor é a essência e o preço a aparência do
fenômeno?
3. A investigação econômica para Menger subdivide-se em pelo menos três partes:
história e estatística, teoria exata e ciência aplicada. O que estuda cada uma delas e
qual a relação entre essas áreas?
4. Quais foram as principais influências intelectuais que contribuíram para a formação
de Carl Menger no plano da teoria econômica e de seus fundamentos filosóficos?
5. Qual o papel da introspecção (Verstehen), em Menger, no estudo dos fatos
econômicos?
6. Discuta o conceito de valor em Menger, separando valor subjetivo, objetivo e
pessoal.
7. O que são bens de primeira, segunda e demais ordens?
8. Mostre que no esquema de Menger o fator tempo desempenha necessariamente um
papel fundamental.
9. Em Menger, se o valor dos bens de ordem elevada não é apenas a transferência
integral do valor do respectivo bem de primeira ordem, que elementos adicionais
devem ser considerados para se chegar ao valor do capital?
10. No que consiste o problema epistemológico fundamental em Menger? Qual a
solução de Menger tal como aparece nas “Investigações”?
11. Comente duas influências aristotélicas em Menger: a causalidade e o realismo
filosófico.
12. O que foi a Batalha dos Métodos?
13. Mostre situações em que os preços ficam indeterminados dentro de uma faixa de
variação, baseado em um exemplo com n compradores e m vendedores de uma
mercadoria homogênea. É correto dizer que não há nada em Menger para explicar
os preços e que ele só trata teoricamente os valores? Preço é apenas um fenômeno
histórico ou a teoria exata prediz sua faixa de variação?
14. Compare a análise da natureza das necessidades humanas em Marshall e Menger.
15. Por que se considera a filosofia de Menger como sendo “naturalista”?
16. No que consiste a chamada escola austríaca? Ela representa uma continuação das
ideias de Menger? Justifique.
17. Esboce sumariamente o conteúdo da obra Teoria do desenvolvimento econômico de
Schumpeter.
18. Por que, para Schumpeter, as “práticas restritivas” de mercado podem desempenhar
um papel positivo na economia?

316
Leitura Adicional

Leitura Primária

MENGER, Carl. Toward a systematic classification of the economic sciences. In: SOMMER,
L. (Ed.). Essays in european economic thought. Princeton: Van Nostrand, 1960.

_____. Investigations into the Method of the Social Sciences with Special Reference to
Economics. New York, New York University Press, 1985.

_____. Princípios de economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, socialism, and democracy. New York: Harper,


1942.

Leitura Secundária

ALTER, M. Carl Menger and homo oeconomicus: some thoughts on austrian theory and
methodology. Journal of Economic Issues, v. 16, 1, 1982.

_____. What do we know about Menger? In: CALDWELL, B. J. (Ed.). Carl Menger and
his legacy in economics. Annual supplement to vol. 22. History of Political Economy.
Durham e Londres: Duke University Press, 1990.

BIRNER, J. A roundabout solution to a fundamental problem in Menger’s methodology


and Beyond. In: CALDWELL, B. J. (Ed.). Carl Menger and his legacy in economics. History
of Political Economy. Durham e Londres: Duke University Press, 1990.

CRAVER, E. The emigration of the austrian economists. History of Political Economy, v.


18, 1, 1986.

CUBEDDU, R. The philosophy of the Austrian school. Londres e New York: Routledge,
1993.

FEIJÓ, Ricardo L. C. Economia e filosofia na escola austríaca: Menger, Mises e Hayek.


São Paulo: Nobel, 2000.

HAYEK, F. A. The Austrian school. In: SILLS, D. L. (Ed.). International encyclopedia of


the social sciences. New York: Macmillan and Free Press, v. 4, 1968, p. 458-462.

_____. Carl Menger. In: SILLS, D. L. (Ed.). International encyclopedia of the social
sciences. New York: Macmillan and Free Press, v. 4, 1968, p. 124-127.

HICKS, J. R.; WEBER, W. (Ed.). Carl Menger and the austrian economics. Oxford: Claren-
don, 1973.

HUTCHISON, T. W. The politics and philosophy of economics: marxists, keynesians and


austrians. Oxford: Blackwell, 1981.

KAUDER, E. Intellectual and political roots of the older austrian school. Zeitschrift für
Nationalökonomie, 17, p. 411-425, 1957.

317
KIRZNER, I. M. Austrian school of economics. In: EATWELL, J.; MILGATE, M.; NEWNAN, P.
(Ed.). The new palgrave, a dictionary of economics, 1987.

LITTLECHILD, S. Austrian economics. Aldershot: Edward Elgar, 1990. v. 1.

SMART, W. An introduction to the theory of value on the lines of Menger, Wieser, and
Böhm-Bawerk. New York: Kelley, 1966.

STIGLER, George, J. The economics of Carl Menger. The Journal of Political Economy,
v.45, 2, 1937.

318
12
Keynes e a Evolução
da Macroeconomia

VIDA E INFLUÊNCIAS
O economista da escola de Chicago, Milton Friedman, afirmara, certa vez, que John
Maynard Keynes (1883-1946) é o último representante de uma preciosa linhagem de
grandes economistas britânicos que vieram a exercer profunda influência na disciplina
econômica, ao lado de Adam Smith, David Ricardo, Stuart Mill, William Jevons e Alfred
Marshall. Se até os anos 1930 o mundo de língua inglesa foi dominado, no campo do
pensamento econômico, pelas ideias deste último autor, dessa década até os anos 1960 a
posição ocupada por Keynes na academia era inigualável, e até hoje ele permanece no
centro das atenções, mesmo que crescentemente também como alvo de críticas. Sua
principal obra, A teoria geral do emprego, dos juros e da moeda, de 1936, permanece
como uma das principais referências na formação do economista. Tal obra afigura-se,
talvez, o mais influente tratado em ciência social do século XX, que mudou a maneira de
olhar a economia e o papel do governo na sociedade. Nenhum outro livro, antes ou depois
dele, teve esse impacto. Sobre ele, o mesmo Friedman escreve:
“Ao listar o clássico de cada um desses grandes economistas ingleses, o histo-
riador irá se referir à Teoria Geral como a contribuição decisiva de Keynes.” (M.
Friedman, John Maynard Keynes)
Já se tornou chavão afirmar que Keynes foi produto de sua época; nasceu ainda em
tempos áureos da Inglaterra vitoriana e assistiu, ao longo de sua vida, à inacreditável
decadência de vasto império econômico e cultural; impulsionada por duas terríveis
guerras mundiais e por crises econômicas profundas que se sucediam. Era o filho mais
velho de uma família de classe média alta residente em Cambridge. Descendia de um
cavaleiro normando, William de Cahagnes. Seu avô paterno enriquecera como horti-
cultor e seu pai, já conhecemos, é John Neville Keynes, autor de célebres escritos em
metodologia econômica, que também se firmara como professor de carreira, ensinando
lógica e economia política, e ocupando cargos na Universidade. Sua mãe Florence Ada
Brown, depois Florence Keynes, foi uma notável mulher; autora de sucesso e pioneira na
proposição de reformas sociais. Foi prefeita de Cambridge. Curiosamente ambos os pais
viveram mais que o filho.
O círculo de relacionamentos paternos proporcionou a Keynes, desde cedo, contato
estreito com os mais destacados economistas e filósofos da época. Marshall, Herbert
Foxwell, Henry Sidgwick, William Ernest Johnson e James Ward eram companheiros de
Neville. De fato, em nada a atmosfera em torno do pequeno Keynes era mundana e, como
o pai, ele aprendeu precocemente a julgar a vida, sua e dos outros, por critérios
intelectuais e estéticos. A excelência acadêmica era cultuada como valor supremo.
Keynes pertencia então a essa classe média pensante que se via na obrigação de liderar
as massas.
Aos sete anos, Keynes ingressou na pré-escola de Perse, no entanto, sempre
aprendia mais do que lhe era ensinado, graças às lições que recebia em casa. Dois anos

319
depois, entrou na escola preparatória de St. Faith. Aos poucos, a criança foi revelando
seus dotes intelectuais e, em 1894, Keynes foi reconhecido como o melhor aluno da
classe, recebendo, na ocasião, prêmio pelo desempenho em matemática. Em 1897, obteve
uma bolsa para Eton, a melhor escola da Grã-Bretanha, junto com outros 20 garotos
criteriosamente selecionados. Tido como excelente aluno, passou a ganhar seguidamente
prêmios e foi aceito no clube social exclusivo do colégio. Além da matemática, demons-
trava uma variedade extraordinária de interesses e aptidões, era bom em filosofia,
literatura e história, e também conseguiu o respeito dos atletas da escola. Enquanto se
desenvolvia para ser o administrador arrogante, era também um outro Maynard para os
amigos íntimos, em geral escritores, poetas e artistas.
Em outubro de 1902, ele foi para o King’s College, na Universidade de Cambridge,
com bolsa para matemática e os estudos clássicos. Foi orientado por Ernest William
Hobson, conhecido matemático inglês, que identificou no pupilo um competente
matemático, mas não um gênio. Escreve Hobson sobre Keynes:
“Ele não tinha um gênio específico para a matemática. Ele trilhava este
caminho com certo esforço; não procurava aquelas regiões obscuras que são a
alegria no coração do matemático profissional.” (Apud O’Connor e Robertson,
John Maynard Keynes)
Embora tenha alcançado menção honrosa (Tripos) no diploma de matemática
conseguido em 1905, os estudos na disciplina não lhe proporcionavam grande prazer, e
ele passava a maior parte do tempo em outras atividades, estudando filosofia e lógica,
atuando na associação dos estudantes, jogando bridge, entregando-se à sua paixão por
amizades ou cultivando o gosto, alimentado desde os doze anos, de colecionar livros
antigos. Já havia adquirido 329 livros raros antes de ingressar na Universidade.
Imediatamente após conseguir o Tripos, Keynes torna-se um sério estudante de
economia, lendo os principais textos na matéria. Por um breve período, considerou a
possibilidade de alcançar um segundo diploma, agora em economia, no entanto, acabou
desistindo da ideia. Após umas férias na Suíça, retorna a Cambridge em outubro de 1905,
onde passa a frequentar as “lectures” de Alfred Marshall em economia. Em agosto de
1906, tira o segundo lugar no concurso para o serviço público, dentre dez que foram
aceitos, atrás de Otto Niemeyer.38 Enquanto o primeiro colocado conquistara emprego
no mais cobiçado Departamento do Tesouro, Keynes teve de se conformar ao cargo no
Escritório da Índia como funcionário em treinamento. Ficou aborrecido com o resultado
detalhado do exame; foi o primeiro colocado em lógica, psicologia e em redação. O pior
desempenho tinha sido em matemática e economia. Ele não aceitou o resultado e
comentou, na ocasião, que sabia mais sobre esses assuntos que os examinadores;
provavelmente Keynes estava certo.
O trabalho no escritório da Índia não agradava a Keynes; ele mais se dedica a
desenvolver uma dissertação sobre a teoria da probabilidade. Mesmo assim, em dois
anos de trabalho rotineiro, Keynes adquire sólido conhecimento do sistema financeiro
da Índia, o que o leva a ser nomeado membro da Comissão de Finanças e Moeda da Índia
em 1913. Antes disso, em 1909, os escritos sobre probabilidade valeram-lhe a admissão
como Fellowship no King’s College. Cambridge seria seu lar acadêmico até o fim da vida.
O processo de aprovação, no entanto, não foi fácil: examinada por Johnson e Whitehead,
a dissertação sobre probabilidade não foi imediatamente aceita. Em junho de 1908,
Keynes teve de se desligar do Escritório da Índia e pedir ajuda financeira ao pai a fim de
retornar ao King’s College na esperança de ser mais bem-sucedido em nova tentativa.
Seguindo os comentários detalhados dos mesmos examinadores, Keynes trata de

38Sir Otto Ernst Niemeyer (1883-1971) foi diretor financeiro do tesouro britânico e diretor do
Banco da Inglaterra. Trabalhou nos anos 1930 como consultor financeiro para o governo da
Austrália.

320
melhorar a dissertação, discutindo-a também com Bertrand Russell. Após submeter
nova versão, finalmente ele é aprovado com uma avaliação bastante elogiosa. Whitehead
escreve a respeito:
“Seus axiomas são bons; eles são simples e poucos, e com a ajuda de certo
simbolismo ele deduz todo o assunto pelo uso de raciocínio rigoroso. A grande
segurança e facilidade nas quais ele se habilita a resolver questões difíceis e
detectar erros e ambiguidades nos trabalhos dos seus predecessores exemplifica
e ao mesmo tempo quase esconde a vantagem que ele proporciona.” (Apud
O’Connor e Robertson, John Maynard Keynes)
B. Russell comenta, escrevendo sobre o trabalho de Keynes em probabilidade:
“O cálculo matemático é espantosamente poderoso, considerando as
premissas restritas que formam seu fundamento [...] O ensaio como um todo é
do tipo que torna impossível uma avaliação completa e espera-se que ele estimule
trabalhos adicionais em tema da maior importância, que filósofos e lógicos têm
indevidamente ignorado.” (Ibidem)
As ideias de Keynes em probabilidade vão ao encontro da crise do determinismo na
física clássica em sua época. Surgem então novas lógicas, em que filósofos e matemáticos
passam a enfatizar os conceitos de acaso e probabilidade. A possibilidade de raciona-
lização quanto ao curso dos eventos é questionada. Com ela, as novas teorias em probabi-
lidade passam a enfocar a questão da incerteza quanto às consequências das ações.
Keynes tenta expandir o campo do argumento lógico a fim de abranger os casos em
que as conclusões são incertas. Ele desmantela a teoria clássica da probabilidade e lança
o que se tornou conhecido como a teoria subjetiva ou relacional da probabilidade. O
famoso lógico Frank P. Ramsey considerou o trabalho de Keynes superior à sua própria
versão anterior da teoria subjetiva da probabilidade.
A compreensão da ação humana requer algo mais que a mera observância de fre-
quências em eventos passados. É preciso adentrar a lógica da tomada de decisão. Keynes,
em seu trabalho em probabilidade, busca compreender a conduta humana para derivar
os meios de influenciá-la. Não há um padrão preestabelecido que controle as ações
humanas. Tais ações dependem do conjunto prévio de crenças e opiniões que comanda
a racionalidade individual de quem age. No estudo do comportamento humano, contra
a aplicação da visão causal, típica da física clássica, Keynes enfatiza a visão não
determinista. O ensaio em probabilidade busca um ponto de partida na tentativa de
fundamentação probabilística das crenças individuais.
Keynes agora é o professor de economia em Cambridge. Recebe uma bolsa dada por
Marshall, dedica-se aos estudos e viaja amiúde durante as férias. Ocupa seu tempo
escrevendo e publicando papers em estatística. Em artigos que aparecem na revista da
Royal Statistical Society, ataca o trabalho de Karl Pearson. Keynes rejeita a utilização
por Pearson de métodos indutivos para estabelecer verdades sociais: por exemplo, a
influência do alcoolismo dos pais na vida dos filhos. A oposição ao indutivismo refletia
seu ceticismo quanto ao valor das deduções estatísticas, o que acompanhava sua rejeição
da teoria estatística frequencialista da probabilidade. Talvez a base científica de Pearson
fosse melhor que a dele, contudo, sem dúvida, os escritos de Keynes eram mais persua-
sivos pelo estilo e a maneira de escrever, o que injustamente obscurecia a contribuição
de Pearson. Até 1915, Keynes ministra cursos e orienta alunos em temas ligados a moeda,
crédito e preços. Ele vai ganhando reputação profissional. Na mesma época, entre 1910
e 1911, também escrevera sobre questões econômicas relativas à Índia, publicando o livro
Moeda da Índia e finanças, em 1913. Este é considerado um clássico e contém uma
primorosa descrição do câmbio no padrão-ouro; ele mostra a profundidade de Keynes
no conhecimento do funcionamento das instituições financeiras. É uma tentativa lúcida
para aplicar a teoria monetária existente à reforma do sistema monetário da Índia. Nele,

321
Keynes defende o padrão-ouro e a criação de um banco central para esse país. As ideias
do livro foram debatidas e apresentadas em maiores detalhes na Comissão de Finanças
e Moeda da Índia. Aos 28 anos, Keynes é nomeado editor do The Economic Journal.
O ensaio de Keynes em probabilidade transborda nitidamente para seu trabalho em
economia. O próprio interesse dele por questões monetárias estava conectado a suas
preocupações com o problema do conhecimento em economia. Até então, Keynes era um
adepto ortodoxo da teoria quantitativa da moeda marshalliana e pouco fizera a fim de
ampliar os limites da matéria. No entanto, havia-se dado conta de que a economia não
podia ser uma ciência exata porque o número de variáveis era grande demais e a
estabilidade das variáveis, com o passar do tempo, não podia ser garantida. No caso da
moeda, a importância da questão do conhecimento era evidente, pois os valores
monetários intertemporais estão sujeitos a incertezas relativas a ocorrências futuras; o
mesmo tipo de incerteza que contamina as previsões estatísticas, exaustivamente
discutido no tratado de probabilidade. Em trabalhos futuros, a questão da incerteza
tornar-se-ia cada vez mais importante nas reflexões de Keynes.
As preocupações com o processo da formação de crenças na questão da probabi-
lidade e o trabalho de economista não consumiam toda atenção de Keynes. Ele também
estava voltado a questões filosóficas e existenciais mais amplas. Para tanto, o melhor
ambiente de discussão estava fora da academia e das burocracias públicas. Keynes
encontrava amparo e bons interlocutores no Grupo de Bloomsbury, do qual se tornou
membro no final da década de 1900 e no qual poderia encontrar-se com seus grandes
amigos, quase todos formados pelas faculdades de Cambridge. Desse grupo faziam parte,
além de Keynes, Leonard e Virginia Woolf, e Clive Bell; e também os “Apóstolos”,
membros de uma antiga sociedade secreta de debates filosóficos fundada em 1820, da
qual Keynes fez parte quando estudante e que foi incorporada àquele Grupo. Dentre os
Apóstolos, estavam Lytton Strachey, grande amigo de Keynes, e outros nomes como
Lowes Dickison, Henry Sidgwick, John Ellis McTaggart, Alfred North Whitehead, e
Roger Fry. Eles atuavam em diferentes áreas, eram filósofos, críticos de arte, escritores
e artistas. Robert Skidelsky, importante biógrafo de Keynes, comenta a natureza do
Grupo:
“Era um círculo de jovens escritores e artistas que encontrou na vida mais
libertária do bairro pouco elegante de Bloomsbury, em Londres, um meio de
escapar às convenções tacanhas das casas dos pais. Foi nesse grupo de talentosos
amigos, em parte admiradores, em parte críticos e frequentemente maliciosos,
que Maynard Keynes encontrou seu lar emocional antes de se casar.” (R. Skidel-
sky, Keynes)
Bertrand Russel, Aldous Huxley e T. S. Eliot tiveram associação superficial com o
grupo. Em comum, os membros do círculo de Bloomsbury eram seguidores das crenças
filosóficas de G. E. Moore, também Apóstolo, e eles tinham o Principia ethica de Moore,
de 1903, como principal referência em filosofia. A fim de situar a importância dessa obra,
deve-se precisar o perfil psicológico e social do leitor típico que se encantou com sua
mensagem. Os membros do Grupo de Bloomsbury eram todos da elite dirigente não
aristocrática da Grã-Bretanha. Pertenciam a três grupos familiares distintos: evangéli-
cos, filantrópicos e quakers. Tais pessoas, em geral, só admitiam casamentos internos e
as fortunas individuais de suas famílias iam-se somando cada vez que ocorria uma união
entre eles. Amealharam grande fortuna na Inglaterra vitoriana. Deles, nasceram pensa-
dores como Huxley, Strachey, Charles Darwin e Keynes. Essa classe média culta ocupa
os postos que eram da nobreza na administração do império britânico.
Vejamos algo do conteúdo dos Principia ethica e de como ele se coaduna com o
espírito dos amigos de Bloomsbury. Com o desmoronamento da moral vitoriana que
acompanhou o declínio do império, Keynes e seu grupo buscavam novos valores que

322
poderiam substituir as antigas crenças associadas ao status quo, à monarquia, Igreja,
enfim, aos valores da Inglaterra vitoriana. Keynes e seus amigos eram todos ateus
militantes, porém o abandono das crenças que acreditavam falsas não havia removido a
necessidade de crenças que pudessem considerar verdadeiras. Buscavam-se apoiar na
filosofia moral em troca da religião e encontraram em Moore o que desejavam.
Moore ofereceu-lhes uma filosofia contra a moral vitoriana. O conceito ético central
de bem foi definido por ele em oposição ao idealismo e ao naturalismo ético. A crítica ao
idealismo tem como alvo os escritos de McTaggart, membro de Bloomsbury. O idealismo
foi identificado como linguagem obscura e que não resistiria a um exercício de
esclarecimento de conteúdo. A arte da conversação identifica critérios para a busca de
clareza na linguagem. Conceitos como amor, amizade e arte podem ser dissecados por
meio de análise de significados. “What exactly do you mean?”, perguntavam entre si. A
refutação ao idealismo não implicava definir termos como bem apenas em função de
propriedades naturais, como propunha o naturalismo ético. O bem não é um espírito,
como o concebia o idealismo, entretanto, ainda assim é uma ideia, distinta da realidade
material e algo indefinível. Embora o bem possa ser identificado e reconhecido em
experiências, os conceitos morais em si mesmos são apreendidos pela intuição.
Onde está o bem? Moore convenceu-os do valor supremo das experiências estéticas
e da amizade pessoal. Nas palavras de Skidelsky:
“Moore eliminou a melancolia da geração anterior, que não conseguia encon-
trar motivos convincentes para cumprir seu dever. Injetou novo ânimo nos
debates de cunho moral, defendendo um novo argumento baseando-se na
filosofia analítica de Cambridge a favor do desinteresse pelo mundo.” (R. Skidel-
sky, Keynes)
Arte e relações humanas eram tudo o que importava no plano moral. Os amigos de
Bloomsbury eram todos amantes da arte. Keynes interessava-se por arte, embora não
fosse artista. Ao longo de sua vida deu diversas contribuições financiando artistas,
colecionando obras de arte e patrocinando salas de espetáculo. Keynes viveu uma época
efervescente nas artes: o impressionismo já estava assimilado e as vanguardas pós-
impressionistas procuravam firmar-se. Quase no fim da vida, tornou-se chairman do
recém-inaugurado Comitê para o Estímulo à Música e às Artes, que depois da Segunda
Guerra Mundial tornou-se o Conselho Britânico de Arte.
No plano das relações humanas, a ênfase incidia em aprofundar as ligações entre
amigos, pessoas presumivelmente no mesmo patamar social e cultura similar. Keynes e
os que o cercavam eram rebeldes diante de qualquer padronização das relações pessoais
e do tipo de prazer derivado delas. Não aceitavam o enquadramento nos costumes e
praticavam entre eles certa “imoralidade”, com troca de parceiros e ligações não
convencionais. O “melhor amigo” de Keynes, de 1908 a 1911, foi o pintor Duncan Grant,
primo de Strachey. No entanto, as amizades de Keynes não excluíam a capacidade de se
apaixonar e ter um relacionamento feliz com a mulher certa, e ela apareceu em outubro
de 1918, quando o balé de Diaghilev voltou a Londres com a peça A bela adormecida, de
Tchaikovsky (e em “The Good Homored Ladies”). Keynes conheceu então a bailarina
Lydia Lopokova, descrita por Skidelsky como...
“Pequenina e esperta, de nariz arrebitado e uma cabeça que lembrava a Virgi-
nia Woolf um ovo de pássaro.” (Ibidem)
Começou a cortejá-la em fins de 1921 e se casaram em agosto de 1925.
Além de cultivar o amor no relacionamento humano e o prazer da experiência
estética, Keynes adiciona a busca do conhecimento como um dos principais objetivos da
boa vida. Essa busca implica em estudos de filosofia e de economia, mais daquela do que
desta. Moore dizia que as coisas mais valiosas que podemos imaginar são os estados de

323
consciência descritos como os prazeres do relacionamento humano e da apreciação de
belos objetos; Keynes acrescenta a esses dois o amor ao conhecimento. Os estados de
espíritos bons e maus são anteriores às boas e más ações; no entanto, as boas ações
devem reforçar bons estados de espírito. Se essa proposição serve para definir o que seria
a boa ação no plano individual, como então seria possível relacionar o bem individual ao
bem coletivo, de que forma a bondade do indivíduo e a bondade do universo podem
reconciliar-se, ou seja, qual é a base racional para o comportamento altruísta? Moore não
responde a essa questão e, portanto, não há um critério de progresso ético em sua
filosofia moral. Keynes procura suprimir tal lacuna.
Como não é possível uma inspeção direta do estado de espírito dos outros, não se
pode concluir quais atos aumentam a bondade de todo o universo. Só se pode julgar a
bondade de um estado de coisas referindo-se ao tempo e a objetos da experiência. A
totalidade é então decomposta por Keynes em estados de espírito intrinsecamente bons
e objetos convenientes ou desejáveis. Tais objetos não precisam ter valor ético próprio,
porém a existência deles valoriza a experiência individual. Assim, melhorando a
qualidade dos objetos da experiência, aumenta-se a bondade ética do universo. Segue-se
que a bondade aumenta por um aumento na quantidade de beleza.
A ideia de aumentar a beleza do mundo sempre perseguira Keynes, quer como
filantropo, quer como colecionador de pinturas ou construtor do Teatro das Artes de
Cambridge. Depois, quando passou a defender um programa de investimento público
como saída da recessão, pensava que os gastos do governo poderiam ser canalizados para
dotar as cidades da Grã-Bretanha de belos jardins e esculturas. Keynes também imagi-
nou que se poderia elevar os padrões da educação e do conforto visando à melhoria da
inteligência, da sensibilidade e da boa aparência da população, e com isso da bondade
coletiva.
A filosofia de Moore está intimamente relacionada às preocupações de Keynes no
estudo da probabilidade. Moore dizia que devemos proceder de modo a produzir a maior
quantidade possível de bem no universo. No entanto, conhecemos apenas a probabi-
lidade dos efeitos de nossos atos. Moore achava que homens e mulheres deveriam
contentar-se em seguir preceitos morais amplamente aceitos e praticados. Keynes
vislumbrou no campo da probabilidade a base racional para julgamentos individuais.
Para ele, Moore confundia probabilidade com frequência relativa de ocorrências. Não
sabemos se o bem no futuro próximo não será excedido pelo mal num futuro mais
distante, contudo, basta que não tenhamos motivos para crer que todo bem imediato que
possamos alcançar seja destruído pela consequência mais remota. O conhecimento
probabilístico tem a ver com a influência das informações sobre as conclusões. A tese
sobre probabilidade foi o resultado dessa percepção.
A teoria da probabilidade de Keynes é o resultado de uma reflexão filosófica que
pretende conciliar duas tradições ligadas, cada qual, a um dos dois maiores filósofos da
língua inglesa: John Locke e David Hume. O primeiro apega-se a um tipo de empirismo
no qual apenas pela experiência se permite conhecer a verdade. A ordem do mundo é
pressuposta e o filósofo examina então os atributos da mente humana que lhe permite a
compreensão da máquina invisível do mundo. David Hume parte de outra questão, ele
rejeita o empirismo, isto é, a crença em uma base racional para a análise de probabi-
lidades, e rejeita também a existência de uma base racional para o estudo da ética. Com
efeito, Hume aproxima a ciência positiva da ética apenas por rebaixar ambas ao status
de conhecimento incerto; enquanto Locke afasta uma da outra ao manter a certeza do
conhecimento apenas no campo da ciência, negando-a à filosofia moral, um conheci-
mento assumidamente incerto para ele.
Keynes toma elementos das filosofias de ambos os filósofos. Ele rejeita o empirismo
de Locke, mas aceita a sua teoria da mente e das conexões causais do mundo. De Hume,

324
ele aceita a aproximação entre ciência e ética, sem deixar de inverter a perspectiva
daquele: tanto um quanto outro ramo da investigação é passível de conhecimento seguro
e assentado em base racional. As raízes da filosofia de Keynes estão em G. E. Moore. Para
este filósofo, a intuição é necessária para explicar os fatos do mundo (o que é) e os ideais
(o que deve ser). Porém, enquanto em Moore a intuição não se relaciona com a ação
humana, mas apenas com a explicação do mundo, Keynes discorda dele e tenta aplicar o
conceito no estudo da ação. Nesse âmbito, Keynes procura resolver o problema da
indução. Dizia Hume que todo conhecimento apenas provável é inválido, e só são válidas
teorias matemáticas e lógicas. No Tratado em Probabilidade Keynes revela influências
do Principia Mathematica de Russell e Whitehead que lhe fornecem a base axiomática
da matemática. Contudo, a principal influência advém mesmo do Principia Ethica de
Moore do qual extrai o fundamento lógico da ética. Keynes procura conciliar dedução
lógica com filosofia moral. Assevera que a probabilidade se aplica a jogos e apostas, e
também na avaliação de resultados de ações no âmbito da economia, da política e do
direito. A indução científica pode ser validada, ao contrário do que pensava Hume, e o
processo de validação fornece argumentos comuns que quando aplicados à conduta
cotidiana das pessoas leva a uma nova ideia de probabilidade. Assegura Keynes que a
probabilidade de um evento pode ser determinada apenas como um ato de julgamento.
Refere-se ao processo mental na cabeça do agente em situações que envolvam escolhas.
Então se aplica no domínio das ações humanas algo distinto do tradicional método
axiomático da matemática. Este último apoia-se no ensinamento da escola de Laplace,
que por meio do cálculo probabilístico tradicional pretende obter resultados complexos
de grande precisão e de importância prática. Keynes fornece outra interpretação do
significado dos axiomas da teoria da probabilidade. Começa por criticar o princípio da
indiferença, abordagem probabilística usual que assume que no estado de ignorância, a
chance de um evento ocorrer ou não é de 50%. Keynes diz que tal princípio somente se
aplica a jogos de lançamento muito simples. Na maioria dos casos, leva a absurdos. Não
basta postular a igual probabilidade das possíveis ocorrências, sempre se requer uma
razão positiva que explique o fato de ocorrências do tipo sim ou não terem a mesma
probabilidade, a menos de um “ruído branco”. O princípio da indiferença leva em alguns
casos a aplicações ridículas, conforme exemplificada pelo estudioso da epistemologia
keynesiana Athol Fitzgibbons, quando reproduz o diálogo entre Mister Absolute e Sir
Antony:
“Absolute: ‘É claro, Sir, não é muito razoável criar afeição por uma lady da qual
nada conheço...’ Sir Anthony: ‘É claro Sir, mas é ainda menos razoável se você se
nega a uma lady da qual não conhece nada.’ ” (Athol Fitzgibbons, The Keynes
Vision)
No mundo probabilístico tradicional, a lady em questão, da qual nada conhecemos,
além de seus encantos, teria 50% de probabilidade de ser merecedora do afeto de algum
pretendente e os mesmos 50% de chance de não ser digna de que alguém por ela se
afeiçoe. Seria então razoável não se arriscar; porém, na prática, parece ainda mais
razoável assumir riscos e optar por conhecê-la. Parece então que na vida real o preten-
dente não avalia, em situações como essa, as probabilidades como sendo equivalentes.
Conclusão: o mundo é muito complexo para ser explicado por uma teoria que se aplica
ao lançamento de moedas, dados etc. Keynes explica que as probabilidades em geral não
são quantificáveis; não há um método para se quantificar as probabilidades. Ademais,
entre as causas do evento podem-se imputar probabilidades não comensuráveis. Mesmo
eventos que aparentemente desconhecemos não se refletem na mente humana apenas
como incertezas. Keynes acredita em certo poder da mente humana em lidar com
probabilidades não quantificáveis e fazer um julgamento razoável. A mente possui a
faculdade do “julgamento direto”, no qual se aplicam certos princípios para se chegar a

325
uma conclusão probabilística. Intuição e julgamento direto identificam probabilidades
particulares. Nas palavras de Keynes:
“O fato de que dependemos em última instância da intuição não nos leva a supor
que nossas conclusões não estão, portanto, embasadas na razão, ou que elas são
tão subjetivas na validação quanto o são na origem.” (John Maynard Keynes, Apud
Athol Fitzgibbons, The Keynes Vision)
Keynes propõe analogias entre processos de avaliação de probabilidades e julga-
mentos de similaridade. Neste último acaso, se as coisas diferem em vários aspectos, é
necessário então amplo julgamento que agrupe as que são similares. A mente julga graus
de similaridade (o julgamento não é conclusivo, mas pode ser feito) e do mesmo modo
pode julgar padrões de probabilidade para a validade de argumentos. De Keynes:
“Um argumento é mais provável que outro (i.e. próximo da certeza) do mesmo
modo que podemos descrever um objeto como mais semelhante a um objeto
padrão de comparação.” (Ibidem)
Para o economista de Cambridge, a base para julgamentos de similaridade e de
probabilidade é intuitiva, contudo é também uma base real. A mente trabalha com uma
intuição que a experiência sugere ser racional. Com efeito, enquanto na teoria frequen-
cialista da probabilidade esta é conhecida após o evento, na teoria lógica da proba-
bilidade tal conceito é tido como relação lógica. No âmbito da lógica dedutiva tradicional,
as categorias de deduções são corretas ou falsas. Entretanto, Keynes aponta para uma
lógica ampliada que lida com as categorias de conhecimento, ignorância e crença
racional. Ele estuda as bases objetivas das crenças e nesse sentido elas não são subjetivas.
Intuição e julgamento são epifenômenos fora do alcance da análise científica, e portanto
a teoria lógica da probabilidade desafia o método científico tradicional.
Hume limita-se a uma noção de probabilidade de sentido comum na qual não há um
fundamento lógico no julgamento de probabilidade. Os julgamentos são baseados em
convenções interpretadas pela imaginação e o papel da razão é restrito. Em Keynes, pelo
contrário, viceja um papel central para a razão. Propõe então uma teoria da probabi-
lidade e da incerteza que conecta as esferas da razão e da não razão. Para Hume,
raciocínios probabilísticos são como sentenças morais, ambos se baseiam na imagi-
nação, e são proposições normativas. Todo raciocínio apenas provável é fruto de
sensações. Também em Keynes os julgamentos de probabilidade e julgamentos de valor
têm o mesmo status. Só que agora, diferentemente de Hume, ambos são válidos:
“A importância da probabilidade é que é racional guiar-se por ela na ação [...]
na ação devemos nos orientar por ela.” (Keynes. Apud Athol Fitzgibbons, The
Keynes Vision)
O agente na vida cotidiana é análogo ao cientista buscando a verdade. Ambos são
guiados por um método lógico e ambos formulam conhecimento probabilístico.
Causalidade em Hume é a relação entre proposições e não entre elementos da realidade
(relação entre coisas). A lógica não se aplica à probabilidade; não sabemos o que ocorre
no complexo mundo real, apenas temos o que a teoria diz do mundo. Já a causalidade
em Keynes tem dois significados: (1) noção de causalidade na qual os objetos não
possuem conexão intrínseca estrita, apenas conexões parciais eventualmente desco-
bertas. (2) Uma noção de causa essendi – a verdadeira causa das coisas – que se
contrasta com uma noção de causa cognoscendi: causa na forma de conhecer o universo
(leis científicas teóricas).
O método causal exato (estrita conexão causal entre as coisas) apenas é alcançado
em algumas ciências físicas. O mundo das coisas do dia a dia, da mente nas suas decisões,
é o mundo probabilístico e de incerteza. Na mente do agente, princípios e analogias são
produzidos para conhecer o mundo de uma maneira não física. Os princípios na esfera

326
da ação humana começam como padrões da mente, enquanto os princípios que
governam a natureza são tendências gerais. No mundo da ação humana, as contingências
são numerosas, não sabemos se uma lei geral será refutada, o conhecimento é sempre
probabilístico. Julgamentos de similaridade e outros estão presentes em todo conheci-
mento relativo às escolhas sociais.
Na esfera da ação humana, tudo o que conhecemos é baseado em analogias e simila-
ridades. Busca-se um padrão, na complexa rede causal dos fatos, que possa chamar a
atenção da ciência. Probabilidade e incerteza estão associadas às limitações inerentes da
mente em face da complexidade do mundo. O conhecimento do universo é orgânico e
não físico. Enquanto conhecimento orgânico, não há regras rígidas que apontam uma
contradição lógica. As categorias não têm significados definidos e constantes. Contudo,
mesmo em face das limitações humanas, a predição não é totalmente impossível. Mesmo
que para prever um evento seja necessário mais conhecimento do que possamos possuir,
ainda assim esse evento teria uma chance objetiva. Keynes aponta para as analogias entre
o papel da criatividade e da intuição nas ciências e nas artes. A mente tem a capacidade
de ver em padrões e de representar sua visão em metáforas. A experiência só diz algo se
o indivíduo elabora um insight inicial que está relacionado com algo definido. O conceito
tem uma realidade que independe do fato de ser pensado pela mente, e as ideias
antecedem os julgamentos práticos. Há uma verdade além da experiência; contudo,
existe apenas conhecimento provável. O conhecimento pressupõe classificação, e como
tal depende de similaridades e de metáforas. A experiência comum é válida, embora ela
tenha que ser interpretada à luz de um modelo elevado.
Keynes em sua epistemologia aproxima da ciência o senso comum, agora são aliados
e se complementam na busca do conhecimento. Intuição e julgamento funcionam ao
mesmo tempo como guias tanto da ação quanto do conhecimento positivo. Em suma, no
campo das escolhas na vida econômica tanto quanto no campo da criação de explicações
científicas viceja um elemento de probabilidade que é subjetivo, mas apoiado em bases
racionais.
Keynes tinha 31 anos quando foi deflagrada a Grande Guerra; antes de 1914, a maior
parte de sua energia foi canalizada para transformar sua tese em livro. O Tratado sobre
a probabilidade só foi publicado em 1921, quando de seu retorno a Cambridge. Em 1920,
Keynes começou a preparar o “Tratado” para publicação. Como havia trabalhado no
ensaio seis anos antes, encontrou certa dificuldade. A ideia de se atribuir subjetivamente
valores de probabilidade aos eventos não implica que a probabilidade seja subjetiva,
enquanto pura relação lógica ela é na verdade objetiva. Assim, uma sentença envolvendo
relações de probabilidade possui um conteúdo de verdade independente das opiniões das
pessoas. Ramsey, em 1926, no artigo Verdade e probabilidade, critica o argumento de
Keynes. Outra ideia importante apresentada no “Tratado” é a de que a relação de
probabilidade apenas constitui um conjunto parcialmente ordenado no sentido de que
duas probabilidades não podem necessariamente ser comparadas entre si. Probabilidade
para Keynes é um conceito básico que não se reduz a outros conceitos.
De 1914 a 1918, Maynard Keynes foi convocado pelo Tesouro britânico a assessorá-
lo na questão do financiamento da economia de guerra. Bem-sucedido nesse trabalho, a
influência que passou a exercer valeu-lhe a posição de representante britânico na
conferência do tratado de paz em Paris, em 1918 e 1919. Nela, viveria um grande pesade-
lo. O jovem Keynes desentendeu-se com Woodrow Wilson, David Lloyd George e
Georges Clemenceau que defendiam a imposição à Alemanha de pesados pagamentos a
título de reparações de guerra. Com isso, no dia de seu aniversário (5 de junho) Keynes
comunica a renúncia ao cargo e, retornando à Inglaterra, passa a envolver-se em intensa
atividade jornalística. Acredita ele ser possível mudar a direção dos acontecimentos por
meio da persuasão e, para tanto, volta-se aos estudos sobre formação de crenças, debate
racional e outros temas do gênero. A crítica ao Tratado de Versalhes, firmado pelos

327
negociadores em Paris, resultou no livro As consequências econômicas da paz. A
introdução do livro aparece no Boxe 12.1. Nele, discute os paradoxos das pesadas
reparações de guerra: círculo vicioso de destruir a base produtiva e forçar o pagamento
de indenizações. Os alemães (escreve com veemência) não poderiam pagar o que os
vitoriosos estavam demandando. Wilson foi tido como cego, uma espécie de Don
Quixote, e Clemenceau rotulado de xenófobo. Com Lloyd George não foi menos áspero:
“[...] visitante apenas metade humano de nossa era, saído diretamente das
ocultas florestas mágicas e encantadas na antiguidade celta.” (Apud O’Connor e
Robertson, John Maynard Keynes)

Boxe 12.1 Introdução à obra Consequências econômicas da paz.

Escreve Keynes: “Em Paris, onde os que estão vinculados ao Conselho Econômico
Supremo recebem quase de hora em hora os relatórios de miséria, desordem e crescente
desorganização de toda Europa central e oriental, os Aliados e seus quase inimigos ouvem nos
lábios dos representantes financeiros da Alemanha e Áustria evidências inquestionáveis da
terrível exaustão de seus países. Numa visita ocasional à sala quente e seca do presidente da
casa, encontramos os quatro traçando seus destinos numa intriga vazia e árida, construída
com o sentido de um pesadelo. Enquanto logo ali em Paris os problemas da Europa mostram-
se terríveis e clamam nossa atenção, é um pouco desconcertante retornar ao amplo
desinteresse de Londres. Para Londres, estas questões estão muito distantes, nos
preocupamos apenas com nossos problemas que são menores. Londres acredita que Paris
esteja orquestrando uma grande confusão nessas negociações, no entanto permanece
desinteressada. É nesse espírito que o povo britânico recebeu o tratado sem sequer lê-lo. Com
o intuito de influenciar Paris, e não Londres, este livro foi escrito por alguém que, embora
inglês, se sente também um europeu, e em função de experiência recente tão vívida não pode,
ele mesmo, se desvencilhar das consequências do grande drama histórico destes dias que irão
destruir grandes instituições, mas também que poderão construir um novo mundo.” (J. M.
Keynes, The economic consequences of the peace)

Um Keynes indignado profetizava que as reparações manteriam a Alemanha


empobrecida, o que representaria uma ameaça a toda Europa.
Este livreto vendeu 84 mil exemplares e transformou instantaneamente Keynes em
celebridade. Ele adquiriu a fama de pró-germânico. As previsões de Keynes, de fato,
verificaram-se anos depois com a ascensão do nazismo e a eclosão da Segunda Guerra
Mundial. Ao final desta guerra, britânicos e americanos relembraram as admoestações
de Keynes, décadas atrás, evitando assim repetir o erro anterior. Keynes ajudou a
construir a percepção de que o caminho seguro para a paz consistia em ajudar a reerguer
a economia destruída dos países derrotados. Foram feitos então investimentos públicos
em larga escala, criando-se assim parceiros comerciais que seriam compradores
potenciais das exportações dos países vencedores; isso também ajudaria a construir uma
sólida classe média com ideais democráticos na Alemanha, no Japão e na Itália. Em 1946,
o livro “As consequências” também seria criticado, por exemplo, na obra de Etienne
Mantoux, A paz cartaginesa, na qual o autor acusa Keynes de ter estimulado o ódio dos
alemães contra o Tratado de Versalhes e, com isso, aberto as comportas para uma nova
guerra.
Antes de apresentarmos a principal obra de Keynes, a “Teoria Geral”, percorre-se a
trajetória das ideias econômicas do autor britânico desde sua origem. O estudo da
evolução das crenças de Keynes ajuda a entender questões que, depois, iriam suscitar a
revolução keynesiana no pensamento econômico. Nesta exposição de suas teses
econômicas antecedentes à “Teoria Geral”, é oportuno retroceder ao período anterior em
328
questão. No século XIX, o efeito agregado da moeda ainda não era bem compreendido,
havia maior interesse nas instituições que afetam a oferta de moeda. Duas correntes
teóricas, escola bancária versus escola monetária (currency school), concorriam na
explicação da natureza e do efeito da moeda na economia.
No começo daquele século, problemas de política monetária lançaram David
Ricardo em ativas controvérsias econômicas. A política monetária da época era falha, e
problemas de inflação e de deflação ficavam mal equacionados pelas autoridades mone-
tárias da Inglaterra. Alguns fatos marcaram a época: guerra contra a França, revolução
industrial, crescimento populacional com urbanização, problemas nas safras agrícolas.
Os principais problemas teóricos em política monetária residiam na relação entre
variações monetárias, nível da atividade econômica e câmbio; na relação entre moeda e
fluxos de pagamentos; e ainda, na relação entre oferta de crédito e expansão dos
negócios. Mudanças institucionais desafiavam a política monetária de então. A oferta de
moeda corria solta por essa época, nenhuma restrição “tecnológica” a essa oferta impedia
que os bancos continuassem a emitir notas de papel. O banco da Inglaterra tinha suspen-
dido, em 1797, a conversibilidade, ou seja, a troca automática do papel moeda por ouro.
Henry Thornton foi um dos pioneiros na teorização das relações entre moeda e
crédito. No padrão-ouro, o aumento do papel-moeda em circulação eleva o nível
doméstico de preços, aumentam as importações e reduzem as exportações. Tendo-se
moedas convertidas em barras de ouro, com o desequilíbrio na balança comercial
ocorrem saídas de ouro em barra, cai a circulação de moedas e dos papéis lastreado em
ouro; caem os preços. A contração monetária tem efeito recessivo na economia. A
deflação reduz o produto, enquanto a inflação estimula o comércio e a indústria.
Thornton acredita que o crescimento do produto e do comércio estimula o volume de
crédito concedido e de moeda corrente em circulação. Duas outras constatações eram as
de que incertezas econômicas levam ao aumento na preferência pela moeda líquida; e
que rigidez de salários monetários e escassez de moeda elevam o desemprego. O
principal problema teórico, sem dúvida, consistia em explicar flutuações no câmbio
induzidas por variações na oferta monetária. Por que, por exemplo, no biênio 1800-01
caiu o valor em ouro e prata das mercadorias inglesas no mercado externo? Surge então
a conhecida Controvérsia Bullionista. No campo dos bullionistas (que depois passou a se
chamar Escola Monetária) estavam os grandes economistas clássicos Ricardo, Malthus e
Mill, dentre outros. Para essa corrente, a elevação do preço do ouro em barra deve-se ao
excesso de papel-crédito.
Havia também o campo dos antibullionistas (depois Escola Bancária), dentre os
quais Thomas Tooke. Atribuíam eles às maciças despesas externas efetuadas pelo
governo britânico e à queda de exportações a explicação para a queda do preço do ouro
em barras. Os antibullionistas apegavam-se à tese de moeda endógena. Nessa ótica, as
notas não poderiam ser emitidas acima das necessidades de liquidez do lado real da
economia. Explicando: a demanda de crédito depende de negócios lucrativos, pois os
empréstimos são pagos em pouco tempo e são feitos com garantias das letras reais. As
expectativas de negócios rentáveis elevam a demanda por crédito, injetam liquidez na
economia. Então a moeda e o lado real da economia estariam conectados, porém sem
uma causalidade partindo da oferta monetária. De certa forma, a Escola Bancária con-
cluía pelo mesmo diagnóstico dos economistas clássicos, não viam o efeito da moeda e
do crédito no lado real da economia. A riqueza seria então determinada apenas por
fatores reais e produtividade. A moeda só afeta preços gerais, não afeta riqueza real e
preços relativos.
A Lei Bancária de 1840 estabelece um padrão de rigidez na relação entre a oferta de
moeda e o estoque de ouro no país. Optou-se pela volta do padrão ouro autorregulatório
como um antídoto à inflação, muito associada a guerras e desastres naturais. Até então

329
o abandono do padrão-ouro era responsabilizado pela inflação do período devido à
tendência a imprimir papel-moeda.
Os clássicos pensavam os problemas monetários de maneira dicotômica. Coexistiam
uma teoria do valor ao lado de uma teoria monetária, sem integração entre elas. A fusão
das duas é feita por Irving Fisher, Knut Wicksell e Cecil Pigou. Buscou-se então a
explicação do mecanismo de transmissão interligando moeda a preços. Preocupa-se em
investigar o que determina a velocidade de circulação da moeda, o que determina a
demanda por moeda e qual o papel dos juros no processo de expansão e contração
monetária. Nas primeiras formulações da teoria quantitativa da moeda (TQM),
estabeleceu-se uma ligação direta entre moeda e preços, embora autores como John
Locke e Henry Thornton tenham percebido, nesse mecanismo, um papel para as taxas
de juros e a demanda. Especialmente em Richard Cantillon, David Ricardo e Stuart Mill,
a moeda afeta preços pelo mecanismo direto, via demanda. Mas esses autores ainda não
têm condições de elucidar o processo de ajustamento na transição para um novo
equilíbrio. Não analisam as condições de estabilidade do novo equilíbrio e ainda não
compreendem bem o papel das taxas de juros.
Fisher foi o primeiro na formalização matemática da TQM na sua famosa equação
de trocas expressa por MV + M’V’ = P.T. Na qual, M é moeda e M’ são os depósitos nos
bancos; T é o índice para o volume de transações físicas (P é o nível de preços, V é a
velocidade de circulação da moeda e V’ a velocidade em que circulam os depósitos
bancários); a mesma relação que Mill tinha formulado apenas verbalmente. Com a
definição moderna de moeda, pode-se escrever M.V = P.T. Tal equação, assevera Fisher
tratar-se de uma mera identidade contábil, um truísmo. V e T são independentes da
oferta de moeda; são determinados por fatores reais – hábitos, tecnologias e instituições;
P é uma variável passiva. O efeito dos saldos monetários (efeito encaixe-real ou “real
balance”) garante a estabilidade do equilíbrio monetário. Para cada indivíduo, há uma
relação ótima entre encaixes monetários e gastos. Contudo, acréscimos de moeda
perturbam essa relação.
O modelo monetário de Fisher é simples. Dados preços constantes de início, quando
se eleva a oferta de moeda há excesso de moeda nas mãos do indivíduo. Pelo efeito dos
saldos monetários, aumentam os gastos de cada qual. Mantida a produção constante,
aumenta-se a demanda por moeda para mais gastos, o que leva a aumento nos preços até
que eles se elevem na mesma proporção do aumento de moeda. A relação ótima entre
encaixes monetários e gastos é novamente alcançada e, assim, o novo equilíbrio é estável.
Trata-se de uma ideia nova que não havia nas formulações anteriores a Fisher.
O economista americano, no entanto, não explorou a possibilidade de que o excesso
de moeda em mãos do público poderia ser usado na compra de títulos. Nesse caso, os
preços dos papéis se elevam e os juros caem; com consequente aumento na produção
estimulado pelos juros. Fisher prioriza a relação entre inflação, juros nominais, expecta-
tivas e demanda por encaixes reais. Nos escritos de Fisher, O Poder de compra da moeda
e A teoria dos juros, o autor estuda a relação entre juros e inflação. Pergunta de que modo
a inflação atual e esperada afetam juros nominais e demanda por encaixes reais. Expõe
então o conhecido “efeito Fisher”, expressando-se a demanda por encaixes reais como
md = f(y, i), isto é, como função da renda real y e da taxa nominal de juros i. Fisher
demonstra facilmente a relação entre md e velocidade da moeda v, md = 1/v. A teoria
monetária no início do século XX iria explorar tal relação.
Fisher expôs o processo pelo qual são determinadas as taxas de juros nominais in, ou
o custo de oportunidade de se manter moeda. in depende de dois fatores: (1) a taxa real
de juros que traduz as forças que afetam os empréstimos (saldos ociosos, produtividade)
e (2) a inflação esperada em algum ponto do tempo. Fisher equaciona então a famosa
equação i = r + *. Ao contrário do que tem sido erroneamente interpretado, não se trata

330
de uma aproximação da relação matemática trivial (1 + i) = (1 + r).(1+ ), extraída da
matemática financeira. Trata-se obviamente de uma teoria de como são formadas as
taxas nominais de juros: dependem do retorno real e das expectativas inflacionárias *.
Fisher já tinha notado um mecanismo em que a inflação  se autoperpetua: se  >
*, para uma dada taxa nominal, a taxa real ex post será menor. No próximo período, o
emprestador ajustará as taxas nominais para cima. Assim, quando a oferta monetária se
expande, aumenta a oferta de fundos emprestáveis e cai a taxa de juros i, no entanto, os
preços também aumentam e ainda a inflação esperada *. Com efeito, aumentam juros
nominais e inflação.
O economista sueco, Knut Wicksell, tempos depois, parte da herança das ideias de
Fisher e avança na construção da moderna teoria monetária. Ele introduz a teoria
monetária em modelos de equilíbrio geral. Toma ideias de Thomas Tooke (da Escola
Bancária), em que preços são determinados pela renda. Emprega também a teoria das
“duas taxas”, de Thornton, para analisar o papel dos juros na teoria monetária. Wicksell
integra a teoria monetária à teoria do valor, preenchendo uma laguna de até então. Para
tanto, começa investigando mudanças nos preços pelo efeito da oferta e da demanda
agregada na economia. A análise tradicional, em que variações nos preços de uma
mercadoria específica são relacionadas com distúrbios no equilíbrio entre oferta e
demanda da mercadoria em questão, passa a valer também para explicar o nível geral de
preços em termos de oferta e demanda agregadas. Por que então poderia ocorrer variação
de demanda agregada acima da variação na oferta agregada (real ou esperada)? Essa
questão fundamental é explicada por Wicksell como efeito de mudanças nos encaixes
monetários; antecipa, portanto, a visão agregativa dos mercados depois aperfeiçoada por
Keynes.
No modelo wickselliano em que o consumidor é proprietário de mercadorias, dados
preços constantes de início, quando o volume de moeda se reduz ocorrem empréstimos
ou redução na demanda por bens, ou aumenta a oferta de mercadorias. Porém, nem
todos conseguem manter o mesmo encaixe monetário. Com efeito, a demanda agregada
se reduz e a oferta de mercadorias aumenta; os preços caem até que o encaixe monetário
alcance o equilíbrio. As taxas de juros desempenham um papel na análise do equilíbrio
entre poupança e investimento, todavia o mecanismo apontado por Wicksell é mais
complexo do que se pensava até então. O economista sueco emprega a teoria, já citada,
das “duas taxas”: divergências entre taxas naturais e taxas correntes de juros. A partir
dessa dicotomia, Wicksell explicará o chamado processo cumulativo, isto é, a análise
dinâmica da maneira em que um aumento de moeda, gerando efeitos de saldos
monetários, afeta os mercados de bens que deslocam a economia para nova posição de
equilíbrio.
Na teoria do processo cumulativo, o desequilíbrio de oferta e demanda agregada
altera as taxas de juros naturais e correntes (interrelação entre mercados de bens e de
moeda). A queda nos juros, ficando abaixo do nível natural, reduz a poupança e aumenta
a demanda por bens e serviços no consumo presente. Aumentam as opções de
investimentos lucrativos, e crescem a demanda por insumos e a oferta de bens no futuro.
Os preços (salários etc.) aumentarão enquanto as taxas estiverem abaixo das taxas
naturais. O aumento de preços nos insumos é irreversível porque os preços dos bens
também aumentam. Wicksell defende a TQM no longo prazo, mas percebe o efeito da
moeda nos juros e a moeda fazendo a ligação entre juros e demanda agregada. Tais ideias
serão mais desenvolvidas e exploradas por Keynes. Sem dúvida, Keynes constrói sua
teoria monetária da herança de Fisher e Wicksell.
Em 1923, Keynes lançou o Tratado sobre a reforma monetária, contendo sua versão
do enfoque de saldos monetários (real balance) de Cambridge da teoria quantitativa da
moeda (TQM), desenvolvida por Marshall e aperfeiçoada por Pigou e Dennis H.

331
Robertson. A TQM foi empregada na discussão do desemprego britânico nos anos 1920.
Keynes acreditava que as flutuações do nível de atividade podiam ser prevenidas pela
adoção de uma política monetária esclarecida. A TQM é vista como uma teoria de
estabilização econômica de curto prazo induzida pela moeda. No longo prazo, ela
relaciona a oferta de moeda ao nível de preços dos bens de consumo, não afetando a
moeda o volume de produto e emprego. Entretanto, até os anos 1930 os economistas
tentaram empregar a TQM para explicar oscilações de curto prazo na produção, pois com
frequência eram observadas correlações entre oferta de moeda e flutuações na atividade
dos negócios.
A TQM estava assentada no motivo transacional de demanda por moeda. A moeda
é apenas um meio de troca. Variações na quantidade da moeda só afetam o equilíbrio
prévio da economia se produzirem variações não proporcionais nos saldos monetários
dos agentes. Tendo-se em conta esse efeito, a estabilização do nível de preços pelo
controle monetário parecia ilusoriamente fácil. Acreditava-se que preços flexíveis
assegurariam o rápido efeito da política monetária na estabilização dos preços, embora
se reconhecesse que os níveis salariais seriam invariáveis no curto prazo. Até o fim da
década de 1920, Keynes seguiu essa cartilha econômica.
Como a moeda poderia afetar o lado real da economia na explicação fornecida pela
TQM? À época, a TQM era explicada de duas maneiras: a versão transacional de I. Fisher
e o enfoque de Marshall dos saldos monetários. Até 1914, Keynes usava ambas as versões
em suas aulas. A equação de trocas de Fisher, MV = PT, diz que o volume de moeda M
multiplicado pelo número médio de vezes em que a moeda é gasta por período (a
velocidade de circulação da moeda V) é igual ao preço médio por transação vezes o
número total de transações T. A teoria dizia que a moeda afeta os preços, a causalidade
indo no sentido da moeda para os preços; acreditava também que a velocidade de
circulação é determinada exogenamente pelos hábitos de pagamento. Por fim, dizia-se
que somente variáveis reais afetariam o volume de transações na economia. Na versão
marshalliana, escreve-se: M = k.PT, no qual k representa a fração média da renda total
retida na forma de moeda em cada período.
Matematicamente se escrevermos k = 1/V, as duas equações anteriores seriam a
mesma coisa; no entanto, o enfoque é um pouco diferente em cada caso. A equação de
Cambridge não enfatiza o gasto da moeda, mas o papel da moeda enquanto pouso
temporário de poder de compra e se preocupava em explicar por que os indivíduos retêm
ativos líquidos. Keynes aceita os postulados da TQM, entretanto de modo intuitivo
reconhece que variações nos preços teriam efeitos temporários em V e na situação dos
negócios. Keynes pensava que a versão marshalliana tornava mais explícito o mecanismo
de transmissão da moeda para os preços. Tal mecanismo seria descrito simplificada-
mente da seguinte forma: o aumento das reservas de ouro reduz as taxas de juros,
aumentam os empréstimos contraídos pelos empresários e o gasto deles conduz à
elevação dos preços, reduzindo o volume real de transações financiado por unidade de
ouro.
O efeito da moeda no lado real da economia ocorre porque leva tempo até que uma
injeção de moeda tenha seu efeito final sobre os preços. Enquanto os preços ajustam-se
às mudanças da oferta monetária, o volume de transações pode ser incentivado ou
deprimido. No Tratado sobre a reforma monetária, Keynes argumenta que flutuações
no valor da moeda, provocadas por variações no preço do ouro, acarretam flutuações de
curto prazo nos negócios, porque alteram a participação relativa das diferentes classes
de renda e afetam as expectativas dos agentes. Com salários nominais fixos, preços
declinantes reduzem as expectativas de lucros, perturbando a produção de mercadorias.
Era importante, portanto, a estabilidade monetária e esta não poderia ser obtida com a
volta ao padrão-ouro.

332
Para Keynes, a volta ao padrão-ouro só favoreceria uma elite e não representaria
remédio eficaz para a perda da supremacia industrial da Inglaterra e contra o desem-
prego em massa verificado nos anos 1920. A falta de competitividade dos produtos
ingleses acarretaria saída líquida de ouro no financiamento às importações. Com efeito,
nas novas condições do pós-guerra o padrão-ouro só seria sustentável com a queda dos
preços internos de modo a restabelecer a competitividade dos produtos britânicos no
comércio internacional. Os que defendiam a volta ao padrão-ouro na Inglaterra, que
acabou, de fato, acontecendo em 1925, argumentavam que o mecanismo automático de
estabilização de Hume eliminaria os déficits comerciais pela queda dos preços internos
com o afluxo de ouro, e que o padrão-ouro seria uma maneira de aumentar o controle
britânico sobre o comércio mundial de dinheiro. Keynes intuiu que os processos naturais
e autorregulados de obtenção do equilíbrio na economia inglesa não estavam se
verificando e que era ilusória a crença em um ajuste harmônico entre o câmbio e preços
internos. A queda de preços só poderia ser alcançada com doses cavalares de recessão e
de desemprego.
Com a paridade fixa entre o Pound e o ouro, no padrão anterior à guerra, os Estados
Unidos absorveriam, com o tempo, todo o ouro mundial. Reconhecendo a supremacia
americana, Keynes imaginou um novo arranjo financeiro internacional em que a oferta
de liquidez pudesse ser mais bem administrada pelos bancos centrais. A estabilidade dos
preços na Inglaterra, advoga Keynes, deve ser alcançada pelo estímulo ao investimento.
O lado produtivo deve ser o foco da política econômica.
Ao longo da mesma década, Keynes permaneceu ativo nos debates sobre políticas
públicas. Seus melhores escritos do período foram reunidos nos Ensaios sobre
persuasão, de 1931. Keynes era então um homem da City de Londres. Foi assessor e
dirigente de companhias de seguro e de instituições famosas. Enriqueceu especulando
no mercado financeiro, mas também cuidou das finanças de Cambridge, trazendo
dinheiro para a escola. No entanto, criticava a subordinação do Estado aos interesses da
classe de especuladores e rentistas, e manteve a ênfase na produção.
No período, ele escreve ensaios condenando o laissez-faire em política econômica e
no panfleto eleitoral, escrito em 1929 com Hubert Douglas Henderson, defende o uso de
obras públicas para reduzir o desemprego e condena o temor do tesouro a déficits
orçamentários. No mesmo ano, participa de uma contenda com Bertil Ohlin e Jacques
Rueff sobre o problema da reparação paga pela Alemanha.
Em 1930, John Maynard Keynes publica os dois volumes do Tratado sobre a moeda.
Nele, Keynes delineia sua versão da teoria wickselliana do ciclo de crédito. Menos de um
ano após a publicação do Tratado sobre a reforma monetária, Keynes já vinha
procurando teorizar sobre a moeda no contexto de ciclo de créditos. As ideias do artigo
de 1913 foram retomadas, agora, para atacar o problema da composição dos saldos
monetários e as causas de suas flutuações. O ponto central da análise recaía na relação
entre poupança e investimento. Keynes aceitou a conclusão de D. Robertson de que o
ciclo de negócios é um ciclo de investimento originário de flutuações na rentabilidade
esperada dos bens de capital. Ambos acreditavam que essas flutuações no lado real da
economia seriam amplificadas por fatores monetários, em particular pela incapacidade
de manter a igualdade entre investimento e poupança. Para Robertson, muito embora
alguma flutuação fosse inerente ao progresso, o excesso de oscilação na atividade econô-
mica deveria ser combatido pela política monetária, mesmo que a custa de sacrificar a
estabilidade de preços.
De início, Keynes seguiu Robertson na crença de que variações no crédito poderiam
fazer o investimento divergir da poupança voluntária. Na insuficiência de poupança, a
inflação temporária poderia criar um fundo de investimento fazendo as pessoas
consumir menos e, portanto, poupar mais (poupança forçada). No novo livro, Keynes

333
afastou-se da TQM, acreditando que ela não explicaria as flutuações de curto prazo na
economia.
No Tratado sobre a moeda, poupança e investimento são efetuados por classes
distintas de pessoas com motivos diferentes, não havendo em uma economia monetária
de crédito algum mecanismo automático que as equipare. Keynes usa os conceitos de
taxa natural de Wicksell, a produtividade do capital, e de taxa de juros de mercado. Se
mantida em seu valor natural, a taxa de juros não teria impacto inflacionário. A taxa de
mercado almejada pelos emprestadores pode estar acima ou abaixo da taxa de lucro
esperada pelos investidores. Se as primeiras são demasiadamente elevadas, o
investimento fica aquém daquilo que a comunidade deseja poupar. A insuficiência do
investimento pode ser combatida se o banco central puder intervir fazendo baixar as
taxas de juros. No entanto, sob o padrão-ouro há uma rigidez para fixar uma taxa
suficientemente baixa a fim de permitir a igualdade entre investimento e poupança
desejados. A consequência disso é o desemprego em massa. Há diversos outros aspectos
interessantes no Tratado sobre a moeda; lá aparecem os rudimentos da teoria da
preferência pela liquidez e importantes definições. Embora Keynes estivesse interessado
em mostrar o efeito de taxas de juros elevadas na persistência da recessão, o foco foi
colocado nas variações do nível de preços, e não nas variações do produto.
Keynes chegou a considerar o Tratado sobre a moeda sua magnum opus. No
entanto, cedeu às críticas de F. A. Hayek e P. Sraffa na revisão da obra. O “Tratado” leva
à formação de um grupo de leitores, conhecido como “O Circo”, composto por jovens
economistas de Cambridge: Joan Robinson, Richard Kahn, Piero Sraffa, Austin Robin-
son e James Meade. Kahn entregou a Keynes o conteúdo resultante da discussão nos
encontros do Circo. Keynes utilizou muitas dessas propostas na reelaboração de suas
ideias. Considerou particularmente relevante a crítica quanto à ausência de uma teoria
de determinação do emprego e da produção agregada, um problema muito importante
dado o elevado desemprego da época.
Um pequeno artigo de Richard Kahn, de 1931, proporcionou a Keynes uma ideia-
chave: a teoria do multiplicador do gasto da renda. Tal teoria seria, anos depois, um dos
pilares da futura revolução keynesiana. Já nessa época, em artigos e panfletos de 1933,
Keynes começa a anunciar a nova ideia, ao mesmo tempo em que submetia esboços de
seu novo livro a vários colegas economistas para que eles revisassem e comentassem suas
teses. Entretanto, Keynes ainda não tinha trabalhado a noção de eficiência marginal do
investimento, outro dos pilares da revolução.
Em 1936, publica a “Teoria geral”, cuja consideração detalhada veremos na próxima
seção. A saúde de Keynes entra em colapso em torno de 1938, o que o obriga a sair de
cena e ausentar-se do debate em torno de suas ideias. Quando a Segunda Guerra Mundial
eclode, Keynes emerge novamente com a publicação do panfleto Como pagar pela
guerra. No pequeno ensaio, identificou o hiato inflacionário criado pela restrição de
recursos durante o esforço de guerra e defendeu o mecanismo de poupança compulsória
e racionamento de modo a evitar-se a inflação dos preços, proposta adotada em 1941. O
ensaio notabiliza-se também por ter fornecido uma teoria da inflação em complemento
à “economia da depressão” da “Teoria Geral”.
Em pleno andamento da guerra, Keynes, como membro do Tesouro britânico, ideali-
zou a nova ordem econômica e monetária que surgiria no pós-guerra. Em 1938,
emprestou de B. Graham a ideia de uma moeda internacional lastreada parte em reservas
e parte em commodities em substituição ao padrão-ouro.

334
Boxe 12.2 Publicações de Keynes. (artigos entre aspas e livros em itálico)

1909 “Os eventos econômicos recentes na Índia.”


1911 “Influência do alcoolismo dos pais.”
1912 “O comércio exterior da Grã-Bretanha aos preços de 1900.”
1913 Moeda da Índia e finanças.
1914 “As perspectivas da moeda.” “Guerra e sistema financeiro.” “A cidade de Londres e o
banco da Inglaterra.”
1915 “A economia de guerra na Alemanha.”
1919 As consequências econômicas da paz.
1921 Tratado sobre probabilidade.
1922 Revisão do tratado. “A inflação da moeda como método de arrecadação de impostos.”
1923 Um tratado sobre reforma monetária. “Alguns aspectos dos mercados de commodities.”
“População e desemprego.” “A medida da deflação: uma investigação sobre números
índices.” “Política de moeda e desemprego.”
1924 “O desemprego requer um remédio drástico?” “Reforma monetária.” (com Cannan, Addis
e Milner) “Um comentário sobre o professor Cannan.”
1925 “A cédula de Balfour e os débitos interaliados.” As consequências econômicas do Sr.
Churchill. “A lei do padrão-ouro.” Um breve panorama da Rússia. “Eu sou um liberal?”
1926 O fim do laissez-faire. “Liberalismo e trabalho.” Laissez-faire e comunismo.
1927 “Uma nota sobre economia.” “Um modelo formal para o registro do balanço
internacional.” “A balança comercial britânica.”
1928 “A balança comercial dos Estados Unidos.” “Amalgamação das notas britânicas emitidas.”
“Depressão do pós-guerra e a indústria de algodão de Lancashire.” “A lei de estabilização
francesa.” Reflexões sobre o Franco. “Os débitos de guerra.”
1929 Lloyd George pode fazê-lo? (com H. D. Henderson) “Respostas ao problema da reparação
de Ohlin.”
1930 Um tratado sobre moeda. “A crise industrial.” “A grande baixa de 1930.” “As
possibilidades econômicas de nossos netos.”
1931 “Uma resposta a D. H. Robertson.” “O problema do desemprego.” Ensaios sobre
persuasão. “Gasto e poupança.” “O fim do padrão-ouro.” “Após a suspensão do ouro.”
“Propostas para a cobrança de impostos das rendas.” “Algumas consequências do
relatório da economia.”
1932 “A visão econômica do mundo.” “A perspectiva do câmbio esterlino.” “O dilema do
socialismo moderno.” “Bancos membros do Banco Central dos Estados Unidos.” A crise
econômica do mundo e o caminho de escape. (com A. Salter, J. Stamp, B. Blackett, H.
Clay e W. Beveridge) “Poupança e usura.” “Uma nota sobre a taxa de juros de longo prazo
em relação ao esquema de conversão.”
1933 “Uma teoria monetária da produção.” “Sr. Robertson em poupança e entesouramento.”
“Uma carta aberta ao Presidente Roosevelt.” “O significado da prosperidade.”
“Autossuficiência nacional.” “O multiplicador.” Ensaios sobre biografias.
1935 “O futuro do câmbio exterior.”
1936 “Herbert Somerton Foxwell.” “A oferta de ouro.” “Flutuações no investimento líquido nos
Estados Unidos.” A teoria geral do emprego, dos juros e da moeda.
1937 “A teoria geral do emprego.” “Professor Pigou em salários nominais e relação com o
desemprego.” (com N. Kaldor) “Teorias alternativas da taxa de juros.” “A teoria ex-ante
da taxa de juros.” “A teoria da taxa de juros.” “Algumas econômicas do declínio da
população.”
1938 “Armazenagem e seguros.” “A política dos estoques do governo de alimentos e matéria
crua.”
1939 “O processo de formação de capital.” “O método do Professor Tinbergen.” “Movimentos
relativos em salários reais e produção.” “A renda e o potencial fiscal da Grã-Bretanha.”
1940 “O conceito de renda nacional: nota suplementar.” “Como pagar pela guerra.” “Newton,
um homem para celebrarmos.”
1943 “O objetivo da estabilidade dos preços internacionais.”
1946 “O balanço de pagamentos dos Estados Unidos.”

Em 1943, Keynes abandona sua defesa do “Bancor”, a proposta de uma câmara de


compensações internacionais. Em estreita cooperação com os americanos, ele cede em
suas ideias aceitando o plano White, proposto pelos Estados Unidos, de um fundo de
equalização internacional mantido em moedas das nações participantes. Nesse arranjo,

335
muitas das teses originais de Keynes sobre câmara de compensações foram incorporadas.
Tais elementos foram reunidos em 1944, quando Keynes liderou a delegação britânica
na conferência internacional de Bretton Woods, na qual os detalhes de seu sistema foram
trabalhados.
O plano White dos Estados Unidos foi aceito. Nele, os países-membros adotariam
taxas de câmbio fixas contra o dólar, enquanto a moeda americana seria mantida em
paridade com o ouro. Foram criadas duas instituições: o Fundo Monetário Internacional
(FMI) e o Banco Mundial, para supervisionarem o novo sistema monetário internacional.
Keynes faleceu em 1946, logo após fechar acordo que garantiu um empréstimo dos
Estados Unidos à Inglaterra no imediato pós-guerra. O mundo perdia um economista,
negociador político, patrono de artistas, um homem afeito a muitas atividades. Um dos
principais interesses de Keynes era em trabalhos científicos dos séculos XVII e XVIII; em
particular, era fascinado pelos manuscritos de Isaac Newton. Em 1936, os artigos escritos
por Isaac Newton foram arrematados pela Sotheby e estavam disponíveis para venda.
Keynes esforçou-se a fim de adquirir os manuscritos. No ano de 1942, comemorava-se o
tricentenário do nascimento de Newton. Keynes escreveu o artigo Newton, um homem
para celebrarmos. Diferentemente da ideia que se tinha da vida e do trabalho desse
físico, que se concentrava em seus feitos em matemática e física, Keynes deu importância
igual aos escritos de Newton em alquimia e religião. A razão disso é que o economista
baseou sua consideração nos manuscritos de Newton que havia adquirido e que lhe
mostravam claramente que, para Newton, seus trabalhos nestes outros temas eram tão
importantes como a contribuição em física e matemática.
Keynes foi um escritor prolífico. A relação de trabalhos, logo acima (Boxe 12.2),
somente inclui seus livros e principais artigos nas melhores revistas. Omitimos
numerosos artigos (alguns anônimos e outros assinados) em revistas como Nation &
Atheneum, Manchester Guardian Commercial, Reconstruction in Europe, The Listener,
The New Republic, The New Statesman and Nation e Times. Keynes escreveu
numerosas resenhas de livros não relacionadas no Boxe, dentre elas as dos trabalhos de
Irving Fisher, W. S. Jevons, J. A. Hobson, L. von Mises, W. Bagehot, R. G. Hawtrey, F. C.
Mill e J. E. Meade. Keynes foi um estudioso de Adam Smith e David Hume, e escreveu
várias biografias de economistas e políticos, reunidas nos Ensaios sobre biografias.
Dentre elas, as de B. Law, E. Montagu, A. Marshall, F. Y. Edgeworth, L. Trotsky, W.
Churchill, F. P. Ramsey, T. R. Malthus e W. S. Jevons.

A TEORIA GERAL DE KEYNES


A Teoria geral do emprego, dos juros e da moeda, de 1936, é de longe o trabalho
mais influente de Keynes. Curiosamente o livro não é didático. Muito denso e complexo.
Ele surge logo após a recuperação da Grande Depressão que abalou as economias
capitalistas desenvolvidas. A ideia básica de Keynes é simples: a fim de manter o pleno
emprego na economia, o governo deve gerar déficits orçamentários quando a economia
entrar em recessão. A baixa atividade econômica de então se deve ao fato de o setor
privado não estar investindo o suficiente.
Os empresários tinham reduzido os investimentos ao perceberem que o mercado
estava saturado, e a economia entrou num círculo recessivo de menos investimento,
menos trabalho, menos consumo e novos motivos para investir menos. A economia
poderia alcançar algum equilíbrio, mas à custa de elevado desemprego e miséria social.
Assim, o governo deve antecipar-se aos fatos a fim de evitar maior sofrimento,
complementando os investimentos ao sinal de insuficientes iniciativas do setor privado.
A “Teoria Geral” é um livro difícil. Ele mantém certa linha de continuidade com o
Tratado sobre a moeda, como a separação dos planos de poupança dos planos de inves-

336
timento, a ausência de equilíbrio automático na economia e a função da moeda como
reserva de valor. O novo livro, no entanto, vai além do “Tratado”, ao propor um
mecanismo unificador apoiado no princípio da demanda efetiva. Tal princípio insere-se
em uma teoria abrangente sobre demanda e oferta agregada que explica que se a
demanda estiver abaixo da oferta a produção deve diminuir para que ambas se
equilibrem, o que acarreta a possibilidade de equilíbrio estável abaixo do pleno emprego.
O esquema de demanda e oferta agregadas de Keynes parecia não apenas explicar a
recessão, como também mostrava as formas de se escapar dela.
O livro tornou-se a bíblia da profissão de economista e dos políticos assessorados
por eles. Keynes não era nada modesto em relação à sua obra e sabia perfeitamente o
potencial revolucionário dela. Em carta a G. B. Shaw, um ano antes do lançamento do
livro, escreveu:
“Eu acredito estar escrevendo um livro em teoria econômica que irá
revolucionar amplamente, não de uma vez só mas no curso dos próximos dez
anos, o modo do mundo pensar sobre os problemas econômicos.”
No prefácio de “A teoria geral”, Keynes escreve:
“Aqueles que estão fortemente casados com o que eu chamo de ‘a teoria
clássica’ irão oscilar, assim espero, entre a crença de que eu estou bastante
equivocado e a crença de que nada tenho a dizer. Deixo aos outros a incumbência
de determinar qual das opiniões está certa ou se uma terceira alternativa é a
correta.” (J. M. Keynes, A teoria geral do emprego, dos juros e da moeda)
Keynes via sua teoria como uma total ruptura com a ortodoxia corrente a que
denominou de “teoria clássica”. Os autores clássicos a que ele se refere eram simples-
mente os neoclássicos da Universidade de Cambridge, seguidores de Alfred Marshall que
representava a consolidação da Revolução Marginalista no mundo de fala inglesa (ele
parece incluir também Stuart Mill e a escola clássica inglesa do século XIX). Marshall
procurou integrar os trabalhos de David Ricardo, Stuart Mill e outros economistas
britânicos “clássicos” (no sentido usual) ao marginalismo radical de Jevons, mais
próximo da tradição continental. Keynes, no entanto, foi discípulo de Marshall, ao lado
de Arthur Pigou e Dennis Robertson, e até então comungou na mesma cartilha dele.
Keynes pretendeu produzir um novo paradigma, mas estava mais embebido das
influências do contestado modelo clássico do que admitia. Phyllis Deane, historiadora
das ideias, resumiu bem este ponto:
“Marshall mudou o modelo clássico básico mais do que estava disposto a
admitir, e Keynes reteve mais da tradição neoclássica do que poderia parecer.”
(P. Deane, Evolução das ideias econômicas)
Como os neoclássicos de Cambridge, Keynes confiava em argumentos práticos e
intuitivos, mais do que no formalismo matemático. Ele levava em consideração certos
aspectos como tempo histórico, estrutura institucional e industrial e fenômenos do
mundo real tais como incerteza, moeda e ciclo dos negócios. Essa estratégia de análise
era típica de Cambridge. Também o era o enfoque dando ênfase às condições represen-
tativas no lugar da análise sob condições ideais, típica dos economistas do continente
europeu.
Diferentemente do liberalismo mais radical da escola de Manchester, os
marshallianos alimentavam certa crítica ao laissez-faire, que era aceito somente com
numerosas qualificações. Muitos deles eram utilitaristas e, como tais, tendiam a julgar o
livre mercado com base em seus resultados. Keynes não era utilitarista, mas seu filósofo
social Moore guarda alguma proximidade com o utilitarismo. A doutrina marshalliana
era a articulação teórica das estruturas social, política e econômica da era vitoriana, um
antídoto às correntes marxistas e socialistas do período. A nova visão da economia

337
proposta por Keynes ajudou a afundar o navio da economia marshalliana nos anos 1930.
À sua crítica somam-se também os ataques desferidos por P. Sraffa, em 1926, minando
a teoria da firma de Marshall e a ascensão de V. Pareto neste período, agora estabelecido
na London School of Economics.
A “Teoria Geral” teve boa aceitação, principalmente por gerações mais novas de
economistas. Os economistas da “velha guarda”, no entanto, procuravam condenar a
nova proposta atacando alguns aspectos da teoria. Jacob Viner, Dennis Robertson e
Bertil Ohlin foram os críticos mais hábeis do trabalho de Keynes. Os membros do Circo,
aliados a Keynes (Joan Robinson era um deles), e jovens economistas espalhados por
toda a Grã-Bretanha, dentre eles Roy Harrod e Abba Lerner, elaboraram trabalhos no
sentido de esclarecer o que Keynes quis dizer. A opinião pública não especializada tendia
a receber com bons ouvidos a mensagem de Keynes. O material dele era particularmente
propício a fornecer um quadro referencial para explicações e previsões que pudessem
auxiliar os responsáveis pela formulação de políticas econômicas racionais. Os
problemas enfocados por ele eram unanimemente considerados importantes por toda a
sociedade. Na década de 1930, a recessão e o desemprego foram os principais itens na
agenda de problemas econômicos. Havia a clara percepção de que o laissez-faire parecia
agravar o problema, mas não se sabia exatamente por quê. O diagnóstico tradicional
imputando a responsabilidade da crise aos salários elevados acima do equilíbrio não
mais convencia. A teoria ortodoxa supunha uma economia tendendo ao pleno emprego,
no entanto a economia real insistia em manter a recessão. Keynes ousou qualificar o
desemprego em massa como uma situação de equilíbrio, rompendo com a crença na
eficiência dos mercados.
Keynes havia alertado o mundo quanto à possibilidade de uma severa crise antes de
1929. A eclosão do crack na bolsa de Nova York, em função da forte especulação, tornou
Keynes mundialmente famoso. A crise de 1929 foi em parte um fenômeno monetário e
financeiro, mas ela refletia também problemas no lado real da economia. Os anos 1920
foram de fusões entre empresas e expansão da produção em massa apoiada nas
indústrias de aço, vidro, máquinas, petróleo e outras. A base produtiva vinha crescendo
à medida que as expectativas eram favoráveis. Ampliava-se a capacidade produtiva para
a conquista de novos mercados. As empresas buscavam recursos externos emitindo ações
ou contraindo empréstimos. O crédito ampliava-se no financiamento aos investimentos.
Em certo ponto, a capacidade produtiva tornou-se suficiente para atender à demanda e
daí em diante tornar-se-ia cada vez mais difícil encontrar novas oportunidades para
reinvestir os lucros. Assim, os excedentes eram atraídos para aplicações financeiras e em
ações. Com a queda no investimento produtivo, parte dos recursos era desviada e passava
a ser orientada para a especulação. Como resultado, ocorre a elevação nos preços das
ações e crescente onda especulativa. Os lucros crescem a despeito da crescente fragilida-
de da base produtiva.
Dada a capacidade ociosa, o desemprego no setor de bem de capital reduzia o consu-
mo. A queda no consumo afetava as indústrias de bens de consumo, gerando nova onda
de desemprego e assim por diante até a ruptura do sistema de produção. Enquanto isso,
o setor financeiro acenava para a ilusão de prosperidade. A forte restrição monetária
levava os agentes a saldarem dívidas com novos papéis. A restrição monetária implicava
aumento na velocidade de circulação da moeda e queda nos preços. O estreitamento dos
recursos das empresas e a notícia de falências impulsionavam a corrida ao resgate das
aplicações. Muitos aplicadores foram à falência total. Um conjunto de fatos preocupan-
tes, como a queda no consumo e no investimento, a falência bancária e a fuga de capital,
conduzia inexoravelmente à depressão.
Keynes interpretava tais acontecimentos históricos como um indício de que as
instituições financeiras e a moeda podem ser danosas ao capitalismo. Ele enfatiza então
o papel das expectativas e da incerteza, mostrando que a ilusão de riqueza pode levar à

338
ruína da economia. Critica o pensamento ortodoxo que só supõe a austeridade na solução
da crise. Keynes apresenta então o paradoxo da parcimônia, em que a contenção do
consumo e o aumento da poupança, em vez de serem benéficos, podem ser danosos ao
capitalismo, pois a renda poupada deixa de gerar emprego, esfria a economia e aprofunda
a crise. O jogo das forças econômicas deveria então ser suplementado pela ação do Estado
e o dispêndio ser estimulado em momento de depressão econômica.
A expressão teórica dessa receita de política econômica é apresentada em “A teoria
geral”. A impotência da teoria neoclássica de Cambridge em explicar a Grande Depressão
na década de 1930 leva Keynes a construir uma teoria nova. Para ele, sua teoria seria
mais geral e com maior poder explicativo. A ênfase da teoria é explicar a determinação
da produção agregada e, portanto, do emprego. A ideia central é a de que o equilíbrio é
determinado pela demanda e que em certos casos é possível o desemprego prolongado.
Os preços flexíveis não seriam capazes de curar o desemprego. Do lado monetário,
Keynes também fornece nova interpretação. As taxas de juros não seriam determinadas
no mercado de fundos emprestáveis, mas no mercado de moeda no qual a demanda de
moeda dependeria da preferência pela liquidez. Outras particularidades de Keynes são a
curva de investimento determinada pela eficiência marginal deste, a ruptura com a Lei
de Say, a reversão na relação entre poupança e investimento, bem como o uso de políticas
fiscais e monetárias para ajudar a eliminar as recessões e controlar os booms
econômicos. Esses elementos compõem a construção fundamental do novo ramo da
economia que se tornou conhecido como macroeconomia.
Keynes não duvidava que no longo prazo o equilíbrio entre poupança e investimento
pudesse ser reestabelecido, no entanto ele pensava que tal processo de equilibração
conduziria a um nível particular de produção não necessariamente ótimo. Em suas
palavras, comentando “A teoria geral”:
“Devo admitir que há forças, que podemos perfeitamente chamar de automati-
cas, a operar no contesto de qualquer sistema monetário normal, que direcionam
para um restabelecimento de equilíbrio de longo prazo entre poupança e
investimento. O ponto que ponho em dúvida (embora ele seja geralmente aceito)
é se essas forças automáticas tenderão a trazer não apenas ao equilíbrio entre
poupança e investimento, mas a um nível ótimo de produção.” (Apud R.
Skidelsky, Keynes)
Vejamos então como tais ideias são articuladas em “A teoria geral”. O livro poderia
ter sido mais bem organizado por Keynes e o estilo é pesado, por vezes irônico. Keynes
em certas passagens parece zombar da inteligência do leitor. A dica de Skidelsky para a
leitura do livro merece ser reproduzida (Boxe 12.3).
A “Teoria Geral” está dividida em seis livros. O livro I, denominado de “Introdução”,
apresenta os postulados da economia clássica e o princípio da demanda efetiva. No
capítulo 2, Keynes contesta a teoria clássica do emprego. Analisa o que define como os
dois postulados clássicos: concorda com o primeiro deles de que o salário real seja
determinado pela produtividade marginal do trabalho, mas resiste a certas implicações
do outro postulado que diz ser o salário real igual à desutilidade marginal do trabalho
existente. Ele argumenta que não é verdadeiro o corolário derivado do segundo
postulado de que não existe desemprego involuntário, isto é, de que todos os empregados
poderiam conseguir emprego simplesmente aceitando uma queda nos salários.
Argumenta Keynes que se o salário real se iguala à desutilidade marginal do trabalho,
isso implica que o indivíduo pode aumentar as horas trabalhadas revendo sua noção
dessa desutilidade e aceitando um salário mais baixo. No âmbito macroeconômico, se os

339
trabalhadores como um todo concordassem com redução dos salários monetários mais
empregos estariam disponíveis.

Boxe 12.3 Guia para a leitura de “A teoria geral” de Keynes.

“O leitor que começa pelo capítulo 3 e depois lê os capítulos 8 a 13 e o 18 pode ter ideia
acurada da essência da teoria de Keynes. Os principais problemas advêm quando Keynes tenta
relacionar sua própria teoria àquela que chamava de “teoria clássica”, seja na forma de
comentários, de tentativa de reconciliação, seja, o que era mais frequente, de crítica demolidora.
As dificuldades são particularmente agudas no segundo capítulo – “Os Postulados da Economia
Clássica” –, nos capítulos 14 e 15 – em que trata a teoria clássica da taxa de juros e expõe de
forma mais acabada sua própria teoria de juros – e no livro V sobre “Moeda, Salários e Preços”.
O capítulo 12, “Algumas Observações acerca da Natureza do Capital”, o 17, “As Propriedades
Essenciais do Juro e da Moeda”, e o livro VI (capítulos 22 a 24) são lidos de forma mais
adequada enquanto ideias gerais, especulativas e visionárias, derivadas do núcleo teórico. O
livro II, “Definições e Ideias” (capítulos 4 a 7) pode ser pulado como usualmente o é.” (R.
Skidelsky, Keynes)

Alguns economistas de Cambridge, como Pigou, aceitavam o desemprego


involuntário fora do equilíbrio, situação em que mesmo com a queda dos salários reais o
desemprego iria aumentar. No entanto, Keynes argumenta que os clássicos não levam
em conta o papel da moeda e que os salários monetários não evoluem da mesma maneira
que os salários reais. As negociações salariais se dão em termos monetários, mas as taxas
monetárias de salários não determinam as taxas reais; só afetam a distribuição do salário
real agregado entre os trabalhadores. O nível geral de salários reais dependeria então de
outras forças do sistema econômico. A queda nos salários conduz ao aumento do
emprego somente sob suposições especiais a respeito da flexibilidade de salários, preços
e juros.
No capítulo que trata do princípio da demanda efetiva, Keynes critica a Lei de Say: a
noção de que a oferta agregada cria sua própria demanda para todos os níveis de preço e
emprego. Keynes relaciona essa lei com a tese do equilíbrio de pleno emprego:
“A lei de Say, segundo a qual o preço de demanda agregada da produção em
conjunto é igual ao preço da sua oferta agregada para qualquer volume de
produção, equivale à proposição de que não há obstáculo para o pleno emprego.
Contudo, não sendo esta a verdadeira lei que relaciona a demanda agregada e as
funções da oferta, falta ainda escrever um capítulo da teoria econômica, cuja
importância é decisiva e sem o qual é inútil qualquer discussão a respeito do
volume do emprego agregado.” (J. M. Keynes, A teoria geral do emprego dos
juros e da moeda)
Antes mesmo de Keynes, a Lei de Say já tinha caído em desuso, pois se afasta das
questões nas quais era relevante, não tratando o problema da relação entre demanda e
oferta agregada. É verdade que suas suposições implícitas continuavam a afetar a análise
econômica. Por exemplo, a ideia de que o investimento público desloca o investimento
produtivo privado desviando recursos para a especulação financeira e agravando o
desemprego. A Lei de Say, no novo quadro referencial analítico, só seria aplicável no caso
especial em que as condições da economia fossem tais que a demanda agregada se
ajustasse à oferta agregada no pleno emprego. Em geral isso não ocorre, assegura
Keynes.
O livro 2 da “Teoria Geral” trata de “Definições e ideias”. Convenciona a escolha das
unidades nas variáveis de análise, enfatiza o papel das expectativas como elemento
determinante do produto e do emprego e define cuidadosamente os conceitos de

340
poupança, renda, investimento e custo de uso. Este último é o conceito mais inovador
nessa parte da obra:
“Definimos o custo de uso como sendo a redução de valor sofrida pelo equipa-
mento em virtude de sua utilização, comparada com a que teria sofrido se não
tivesse havido tal utilização, levando em conta o custo de manutenção e das
melhorias que conviesse realizar, além das compras a outros empresários.”
(Ibidem)
O livro 3 (“A propensão a consumir”) introduz os novos conceitos de propensão
marginal a consumir (PMC) e multiplicador dos gastos da renda. Keynes supõe uma
função de consumo estável que só depende da renda corrente e uma PMC que varia com
o nível de renda, sendo menor no patamar elevado de renda. Com essa hipótese, ele
retoma a noção de multiplicador da renda de Kahn, estabelecendo formalmente a ideia
de que variação nos gastos da renda produz um efeito na renda de equilíbrio tanto maior
quanto mais elevada for a PMC.
O livro 4 (“O Incentivo para Investir”) apresenta dois outros conceitos-chaves na
construção analítica de Keynes: a eficiência marginal do capital e a teoria dos juros com
base na preferência pela liquidez. O primeiro conceito relaciona o preço de oferta do
capital às expectativas dos investidores e permite determinar uma curva de demanda de
investimento, supostamente estável no curto prazo, em que o volume de investimento
decresce com o aumento da taxa de juros. Na noção de preferência pela liquidez, a
demanda de moeda depende da escolha de estoques de ativos, além de depender de
fluxos de renda e despesas. Os indivíduos demandam moeda como ativo, dada a
existência de incerteza quanto ao futuro da taxa de juros. A certa taxa de juros, os
especuladores podem entrar no mercado vendendo papéis, quando esperam uma alta
nos juros, reduzindo os preços de títulos da dívida ou o valor de outras aplicações. Em
face do risco de perda de capital de se reter aplicações financeiras, os agentes mantêm
parte de sua riqueza, ou até a totalidade dela, em ativo líquido. A preferência pela
liquidez determina a taxa de juros:
“A taxa de juros em qualquer instante do tempo, sendo ela a recompensa de se
abdicar da liquidez, é uma medida do desejo daqueles que possuem moeda de
abandonar o controle sobre ela. A taxa de juros não é o preço que equilibra a
demanda de recursos para investimento com a disposição de se abster do consu-
mo presente. Ela é o preço que equilibra o desejo de manter a riqueza na forma
de moeda com a quantidade disponível dela.” (Ibidem)
Os conceitos anteriores são os elementos centrais do sistema analítico criado por
Keynes; não são inteiramente novos, mas adquirem um novo uso. O nível de emprego
depende do comportamento dessas variáveis. A propensão a consumir e o investimento
em novos equipamentos fixam um teto para o nível de atividade econômica. A moeda
desempenha o papel de ser um elo entre o presente e o futuro ao refletir as incertezas
acerca do futuro por parte de emprestadores e tomadores de empréstimo e transferi-las
para a taxa de juros e o nível de investimento. O livro 5 (“Salários Nominais e Preços”)
trata de salário e preços; o livro 6 de “A teoria geral” (“Breves Notas Sugeridas pela Teoria
Geral”), epílogo da obra, retoma a discussão do ciclo econômico.

MACROECONOMIA APÓS KEYNES


Embora Keynes pretendesse que sua teoria fosse considerada a mais geral, sendo o
caso clássico uma situação particular, a verdade é que a teoria de Keynes foi
crescentemente sendo interpretada como um caso especial de equilíbrio com
desemprego. Para os “neoclássicos”, esta teoria dá conta do caso com salários reais
rígidos e “armadilha da liquidez”: situação de baixa sensibilidade (elasticidade) da

341
demanda por moeda em relação à taxa de juros, a um nível crítico de baixa taxa de juros.
A armadilha da liquidez é uma situação em que a taxa de juros se encontra em um nível
tão baixo que todo mundo acredita que não pode cair mais. E qual é a consequência
disso? Os agentes econômicos e os consumidores em geral acabam retendo a moeda e
diminuindo o consumo na intenção de proteger suas rendas. Quando a preferência pela
liquidez é forte, o governo não consegue reduzir as taxas de juros. Se ele entra comprando
títulos para forçar um aumento dos seus preços, ou seja, uma queda nos juros, isso gera
movimento compensatório de vendas de títulos pelo setor privado, o que anula qualquer
possibilidade de diminuir a taxa de juros abaixo de certo piso. A armadilha da liquidez e
a baixa elasticidade-juro do investimento (situação em que a queda dos juros não
consegue impulsionar os investimentos) seriam válidas no caso bastante específico
tratado por Keynes. Tal situação teria relevância à sua época, contudo seria impertinente
em outras conjunturas.
A influência da obra de Keynes no pensamento econômico e na política foi profunda
e duradoura. A revolução keynesiana afetou a visão dos economistas da publicação de
seu principal livro, em 1936, até os anos 1960. Nessa época, a maioria dos economistas
profissionais, incluindo os mais proeminentes, denominavam-se keynesianos. Apenas
uma minoria considerava a si mesmo não keynesiano, e uma porção ainda menor se dizia
antikeynesiana. Os governos de vários países vangloriavam-se por adotar políticas
keynesianas. A noção de que déficits públicos são desejáveis era quase consensual nessa
época.
Nas décadas de 1970 e 1980, a maior preocupação do governo dos EUA era com a
inflação trazida pelo excesso de demanda. Na primeira década, a inflação atingiu a cifra
de dois dígitos, enquanto, depois, o déficit orçamentário seria a principal preocupação
dos anos 1980. O governo americano buscava agora obter superávits fiscais para pagar a
dívida acumulada no passado. No entanto, à época de Keynes, 50 anos atrás, quando um
em cada quatro adultos não conseguiam emprego, o problema era falta de demanda. Com
a mudança de ênfase, muitos economistas passam a rejeitar as teses de Keynes e a defen-
der orçamentos equilibrados.
Keynes não pode ser inteiramente responsabilizado pelo uso que fizeram de suas
ideias quando ele não mais existia. Tanto políticos quanto economistas abusaram do
rótulo de “keynesiano” para legitimar políticas ou persuadir quanto à adequação de
enfoques teóricos que não eram exatamente os de Keynes. As diferentes linhas de
interpretação e extensão de suas ideias ganharam nomes como neokeynesianos, novos-
keynesianos e pós-keynesianos. Por vezes, tais escolas referiam-se à corrente rival
chamando-a de keynesianos ortodoxos, fundamentalistas ou até bastardos. Keynes não
teria objeção a que políticos e conselheiros economistas do futuro fizessem uso de seu
nome, certa vez disse:
“Os homens práticos que se acreditam isentos de qualquer influência
intelectual muitas vezes são escravos de algum economista defunto.” (Apud M.
Friedman, John Maynard Keynes)
Ele se sentiria orgulhoso com o famoso pronunciamento do presidente Richard
Nixon que declarou: “agora somos todos keynesianos”.
Keynes foi acusado de ter, com suas ideias, induzido os políticos a praticarem
políticas excessivamente expansionistas que resultaram no desastre nos anos 1970.
Diziam que o grande economista não oferecera um instrumento analítico para lidar com
o problema da inflação e teria desprezado a questão. Contudo, vimos que em seu último
ensaio Como pagar pela guerra, Keynes faz diversas reservas quanto ao uso de seu
instrumental analítico em condições potencialmente inflacionárias e oferece, na ocasião,
um tratamento para o tema. Talvez crítica mais pertinente ao legado de Keynes esteja no

342
fato verídico de ter ele se preocupado muito pouco com os efeitos ulteriores remotos de
sua política. Keynes escreveu uma vez que “no longo prazo estaremos todos mortos”.
A versão da mensagem de Keynes que se espalhou não foi a de suas ideias no formato
em que encontram em “A teoria geral”. Muito mais popular tornou-se a tradução
analítica conhecida como síntese neoclássica de Keynes, inaugurada no artigo de John
Hicks de 1937, no qual é introduzido o famoso modelo IS-LM como representação dessas
ideias. Particularmente nos Estados Unidos, essa foi a forma predominante do keyne-
sianismo no período pós-guerra. No entanto, os economistas de Cambridge rejeitaram
tal interpretação seguindo uma linha diferente do neokeynesianismo de Hicks. Os
chamados neoricardianos de Cambridge e os pós-keynesianos da América buscaram
uma leitura da mensagem original de Keynes que eles acreditam ter sido distorcida.
Nos anos de 1937 e 1938, R. Harrod, J. Meade e O. Lange vinham tentando expressar
as principais relações da teoria de Keynes em equações, de modo a elucidar as interre-
lações entre a teoria da demanda efetiva e a teoria da preferência pela liquidez. Num
esforço também nesse sentido foi que Hicks, no artigo Sr. Keynes e os clássicos: uma
proposta de interpretação, publicado na revista Econometrica, propôs as duas curvas
SI-LL a fim de ilustrar essas relações. Tais curvas tornaram-se conhecidas como modelo
IS-LM e foram popularizadas pelo recém-convertido Alvin Hansen. Tal modelo tem sido,
desde então, o mais formidável exercício pedagógico e uma representação gráfica das
mais eficientes na história do pensamento econômico. Contudo, os críticos do neokeyne-
sianismo apontaram, no modelo, problemas de consistência lógica que o torna má repre-
sentação das formulações de Keynes.
Hicks, quando propôs tal interpretação, vinha trabalhando com teorias de equilíbrio
geral e pensou em enquadrar a descrição de Keynes em um modelo de equilíbrio geral
dos mercados. O aspecto crucial do sistema keynesiano, que Hicks tinha em mente
quando formulou o modelo IS-LM simplificado, era a interação entre mercados reais e
monetários. O mercado real fornece o nível de renda de equilíbrio e o mercado monetário
a taxa de juros de equilíbrio. Cada uma dessas variáveis afeta um aspecto do outro
mercado. A renda afeta a demanda de moeda e as taxas de juros afetam o investimento.
Essa interação claramente viola a dicotomia clássica entre o lado real e o lado monetário
da economia, e, com isso, a neutralidade da moeda. A interação entre o lado real e o
monetário é o aspecto central do modelo IS-LM. Seguindo o estilo walrasiano, Hicks
concluiu que seria necessário resolver simultaneamente as equações para mercados
monetários e reais.
Embora bastante aceito, muitos keynesianos da época e dos tempos atuais têm
argumentado que o sistema de Keynes não comporta um tratamento em termos de
equações simultâneas. Keynes trabalha com a ideia de causalidade entre as variáveis
econômicas e abjura o raciocínio típico do equilíbrio geral de Walras em favor do
encadeamento lógico das causações. Raciocina assim: dada a propensão a consumir, o
volume de emprego é determinado pelo montante de investimento; dada a rentabilidade
esperada, o montante de investimento é determinado pela taxa de juros; dada uma oferta
de moeda, a preferência pela liquidez origina as taxas de juros. O fundamentalista pós-
keynesiano argumenta que o raciocínio de Keynes segue uma cadeia causal.
O economista italiano Luigi L. Pasinetti argumenta que o sistema de Keynes deve ser
pensado como sendo “bloco recursivo” ou sequencial, e que, como tal, não pode ser
resolvido simultaneamente. Deve-se interpretar, continua ele, o sistema analítico
keynesiano como uma sequência em que se alternam decisões em mercados de ativos e
em mercados de bens. A taxa de juros primeiro é determinada em uma escolha de
portfólios nos mercados financeiros e somente então é determinado o nível de inves-
timento, produção e emprego no mercado real. O resultado neste último mercado origina
feedbacks em outras decisões de escolha de portfólios.

343
Diversos importantes economistas tais como Richard Kahn, Joan Robinson, Axel
Leijonhufvud e Paul Davidson enfatizam que o método de equações simultâneas do
modelo IS-LM, ao eliminar a sequência temporal, também elimina a dependência
temporal que é um ponto fundamental na teoria de Keynes e que origina os conceitos de
incerteza, expectativas, especulação e animal spirits (“espírito animal” é o termo que ele
usou em seu livro de 1936 a fim de descrever emoções que influenciam o comportamento
humano). Anos depois, o próprio Hicks, desiludido, reconheceu que as diferentes
referências temporais tornam o modelo IS-LM incongruente. Outro ponto falho no
modelo, apontado pela crítica pós-keynesiana, é que a decisão subjacente à curva LM é
feita no contexto de restrição de estoques, enquanto a decisão no mercado real é feita
tendo-se em conta uma restrição de fluxos.
Certa interpretação da economia de Keynes aparece recorrentemente em livros-
textos de macroeconomia na forma do diagrama renda-despesa, popularizado por
Samuelson, Lerner e Hansen. Nesse diagrama, pode-se verificar facilmente que no
equilíbrio, em que as despesas totais planejadas são iguais à oferta agregava, a poupança
e o investimento planejados se equiparam em valor (Boxe 12.4). O nível de equilíbrio da
produção pode dar-se em qualquer nível abaixo do pleno-emprego. Qual será exatamente
tal nível dependerá da demanda agregada. Então a demanda agregada é o fator básico a
determinar o equilíbrio. Esta é, sem dúvida, a mensagem central de Keynes: toda a
economia está sujeita a equilíbrios múltiplos, não há apenas um único nível de equilíbrio
entre oferta e demanda agregada.
O diagrama também evidencia a ideia do multiplicador, desenvolvida originalmente
por Richard Kahn. Para uma função de consumo linear, C = C0 + c.Y, em que c é a
propensão marginal a consumir, 0 < c < 1, e C0 é o consumo autônomo, supondo que a
demanda de investimento e os gastos do governo são exógenos e fixos nos valores I = Io
e G = Go, então a demanda agregada Yd é expressa na equação Yd = Co + c.Y + Io + Go.
Na figura do Boxe 12.4, a inclinação da demanda agregada é menor que 1 porque 0
< c < 1, assim esta curva é mais próxima da horizontal que a reta de 45°. O intercepto
vertical da curva é simplesmente a soma dos gastos autônomos Ao = Co + Io + Go. Na
condição de equilíbrio, a oferta agregada Y é igual a Yd. Algebricamente o valor de
equilíbrio Y* iguala-se a (Co + Io + Go)/(1 – c). Vê-se então que o nível de equilíbrio da
produção é um múltiplo dos gastos autônomos Ao, em que o fator 1/(1 – c) é o famoso
multiplicador de Kahn e Keynes no caso simples.
A ideia básica subjacente ao multiplicador é a de que gastos públicos e privados
geram renda ganha por algum segmento e que subsequentemente uma parte dessa renda
será consumida gerando-se mais dispêndios que gerarão, por seu turno, mais renda e
assim por diante. Então, dado o gasto autônomo Ao, alguns receberão esta renda, que os
levará a consumir dela c. Ao, e o processo segue em rodadas sucessivas. A renda total
gerada pelo nível inicial de gastos autônomos Ao será Y* = Ao + c. Ao + c2. Ao + c3. Ao + ...
Contudo, tal progressão geométrica não é de soma infinita, a série converge porque a
propensão marginal a consumir é menor que 1. Se 0 < c < 1 então Y* = Ao.(1 + c + c2 +
c3 +...) = [1/(1 – c)]. Ao. Há também uma explicação do processo de convergência ao
equilíbrio na qual se explicita a dinâmica do multiplicador. A produção responde ao
excesso de demanda mediante a equação dY/dt = .(Yd – Y) onde  > 0, de tal modo que
a produção cresce se há um excesso positivo de demanda agregada Yd > Y ou I > S, e
decresce com excesso negativo de demanda ou excesso de oferta agregada Yd < Y ou I <
S.

344
Boxe 12.4 Diagrama renda-despesa de Samuelson, Lerner e Hansen.

No início da década de 1950, as ideias de Keynes foram didaticamente expressas no


diagrama renda-despesa, muito popular até hoje nos manuais de macroeconomia introdu-
tória. Tal como na figura a seguir:

O gráfico mostra que apenas em Y* ocorre a igualdade entre oferta e demanda agregada.
Y > Yd equivale também a um excesso de poupança S sobre o investimento I e o contrário na
situação em que Y < Yd. Na condição de equilíbrio com a renda em Y* demonstra-se
trivialmente que I = S. Seja o gasto planejado ou demanda agregada Yd = C + I + G, em que C
é o consumo planejado, I o investimento planejado e G o gasto planejado do governo
(ignoramos o setor externo). Se o mercado de bens está em equilíbrio, Y = Yd, em que Y é a
renda ou produto agregado. A renda é consumida, poupada ou alocada no pagamento de
impostos, portanto, podemos decompor Y em Y = C + S + T (T são os impostos pagos). Por
conseguinte, no equilíbrio C + I + G = C + S +T ou simplesmente I = S, assumindo-se o
equilíbrio orçamentário do governo, G = T. Portanto, investimento planejado iguala-se à
poupança planejada.

A conclusão do diagrama de Samuelson, interpretativo de Keynes, é muito diferente


do modelo clássico que argumenta ser a taxa de juros a variável que equilibra o lado real
da economia, isto é, a poupança com o investimento. O modelo do multiplicador também
reconhece que ex-post a poupança real se iguala ao investimento real, já que I e S, em
suas equações, referem-se aos níveis planejados de poupança e investimento. Contudo,
o ajuste das variáveis é feito por mudanças no produto e não pela ação das taxas de juros.
Mudando-se a hipótese de investimento exógeno e fixo, o modelo do multiplicador segue
a ideia de Keynes de que os investimentos são função das taxas de juros reais r. O modelo,
entretanto, não explica o que determina os juros. Para Keynes, a relação entre as duas
variáveis se dá via eficiência marginal do investimento EMI. A curva da EMI é
decrescente com os investimentos: conforme estes se elevam, a EMI tende a zero. As
firmas investem até o ponto em que EMI = r, a dada taxa de juros. Assim, I = I(r) e dI/dr
< 0.
O modelo IS-LM de Hicks é mais complexo que o diagrama simples de Samuelson.
No plano que relaciona taxa de juros com o produto agregado da economia (Figura 12.1),

345
a curva IS é negativamente inclinada enquanto a LM tem inclinação positiva. A primeira
representa infinitos pontos de equilíbrio no lado real da economia (I = S, daí o nome IS),
e a curva LM indica pontos de equilíbrio monetário (L = M, isto é, a demanda de moeda
L é igual à oferta monetária M). A curva IS é um locus de pontos de equilíbrio e, como
tal, ela captura a relação entre taxa de juros e produto agregado. Quando os juros r
crescem (em termos reais), o investimento decresce e, por conseguinte, também se reduz
a demanda agregada. Assim, o nível do produto de equilíbrio Y* também deve cair
acompanhando a queda na demanda para manter a igualdade de equilíbrio. A IS é um
locus de equilíbrio e não uma curva convencional, pois todos os seus pontos representam
equilíbrio no mercado de bens (oferta agregada = demanda agregada). Pontos fora dessa
curva representam situações de desequilíbrio.

Figura 12.1 Curvas IS e LM no modelo de Hicks.

Quando Hicks idealizou a curva LM, estava pensando na alocação de um portfólio


de ativos, no qual a moeda é demandada para fins especulativos. Por simplicidade,
assume a existência de somente dois ativos: moeda, que não rende juros, mas é um ativo
perfeitamente líquido, e título do governo (bonds) que paga juros. Se a taxa de juros é
zero, ninguém irá querer manter títulos em seu portfólio, já que a liquidez da moeda é
superior. Os papéis do governo oferecem uma taxa de juros para atrair o aplicador;
maiores os juros pagos mais as pessoas migrarão da moeda para os títulos. Assim a
demanda monetária é expressa pela equação Md = L(r, Y ), onde Lr < 0 e LY > 0. Keynes,
embora aceitasse a relação, não enfatizou o papel da renda na demanda de moeda, no
entanto, Hicks e Hansen ressuscitaram este elo no modelo IS-LM.
Do lado da oferta de moeda, a oferta real é dada por Ms = M/p, em que M é a oferta
nominal de moeda, tida como exógena no nível de preço p. O modelo supõe preços cons-
tantes ou não se explica como se dão as mudanças dessa variável. O equilíbrio monetário
implica Md = Ms, ou L(r, Y) = M/p. Usando a Lei de Walras dos mercados, como o modelo
presume a existência de apenas dois ativos, o equilíbrio no mercado monetário, Md = Ms
acarreta a mesma condição no mercado de bonds: Bd = Bs. Se as taxas de juros forem
elevadas a ponto de fazer Bd > Bs, essa desigualdade traduz-se necessariamente em Md <
Ms.
Na equação para a demanda de moeda Md = L(r, Y), tal demanda é função crescente
do produto agregado Y. Quando a renda cresce, as taxas nominais de juros também
devem crescer, de tal modo a reduzir em grau suficiente a demanda monetária para fins
especulativos. Tal redução deve compensar o efeito de aumento da demanda de moeda

346
induzido pela elevação da renda, já que a oferta de moeda é fixa. Consequentemente a
curva LM foi derivada por Hicks como um locus de equilíbrio que relaciona níveis de
renda com taxas de juros de equilíbrio ao longo de uma linha crescente. Todos os pontos
fora da LM denotam um desequilíbrio no mercado monetário (e por certo em outros
ativos).
A exposição anterior, mais detalhada, do modelo IS-LM permite compreender
melhor a crítica pós-keynesiana, já comentada, de que a decisão subjacente à curva LM
é feita no contexto de restrição de estoques, enquanto a decisão no mercado real é feita
tendo-se em conta uma restrição de fluxos, e isso representa uma incoerência lógica. De
fato, não podemos superpor uma condição de equilíbrio de estoque a uma condição de
equilíbrio de fluxo, porque as referências temporais em cada caso são diferentes.
Qualquer ponto da curva LM representa um equilíbrio de estoque; a demanda por
riqueza é igual à oferta de riqueza. A IS trata do equilíbrio entre poupança e investimento
planejados, mas a poupança planejada é a demanda por riqueza adicional, enquanto o
investimento planejado se traduz em oferta adicional de riqueza; os dois casos tratam de
fluxos e não estoques como no equilíbrio monetário. Como é possível em termos lógicos
igualar uma condição de equilíbrio de fluxos a uma condição de equilíbrio de estoques?
Impor que o equilíbrio entre oferta e demanda de estoque seja obedecido a todo tempo
torna impossível que haja um desequilíbrio de fluxos, porém o contrário poderia ocorrer:
equilíbrio de fluxos com desequilíbrio de estoques. Se o lado real está em equilíbrio de
fluxos (curva IS) não necessariamente haverá um equilíbrio entre o estoque total de
ativos produtivos e os fundos totais que os pagam. Um modelo de equilíbrio geral da
economia deveria levar em conta equilíbrios simultâneos de fluxos e de estoques, no lado
real e monetário da economia.
Além das críticas que relacionamos ao modelo IS-LM, outra comumente feita é que,
de acordo com a teoria da preferência pela liquidez de Keynes, um modelo
representativo de suas ideias teria de ter duas taxas de juros: a taxa corrente e a taxa de
juros esperada para o futuro. O modelo IS-LM não incorpora tal diferença de taxas. A
despeito dessas dificuldades, certamente sérias e comprometedoras, o modelo IS-LM
permanece até hoje como um importante dispositivo pedagógico, extremamente
eficiente no ensino de macroeconomia. O modelo não é o único e, certamente, o mais
coerente ou confiável para expressar as ideias contidas em “A teoria geral”, de Keynes.
Contudo, ele é o mais simples. Permite ao estudante e ao economista em situações triviais
responder, de pronto, qual o efeito de uma expansão monetária, aumento dos gastos do
governo ou queda de impostos na renda e nas taxas de juro da economia. Como tal, ele é
imbatível. Diversos aperfeiçoamentos foram feitos no modelo inicial de Hicks e o
dispositivo ainda é muito usado em cursos de economia.
Na década de 1960, ainda triunfa a revolução keynesiana. Desde 1946, a Lei do
Emprego dava ao governo dos EUA responsabilidade pela estabilidade e pelo cresci-
mento da economia. Em 1960, o presidente Kennedy nomeia um conselho de assessores
econômicos, todos eles keynesianos, e presidido por Walter Heller. O conselho reco-
mendava déficits públicos para estimular a economia no lugar de políticas de equilíbrio
orçamentário. Corte nos impostos também foi usado para esse propósito em 1962. A
política keynesiana continuou após 1964 com o presidente L. Johnson. No entanto, no
fim dessa década a inflação começou a sair do controle, deslocando a ênfase nas políticas
macroeconômicas. Na solução teórica do problema da inflação, mesclava-se o arcabouço
neokeynesiano com o trabalho de William Phillips, que desvendou empiricamente uma
relação estável entre inflação e desemprego expressa na famosa curva de Phillips. Essa
curva é uma linha decrescente no plano que relaciona a inflação ao desemprego. O
arrazoado é simples e intuitivo: baixo nível de desemprego gera surtos inflacionários à
medida que o excesso de demanda de mão de obra no mercado de trabalho acarreta
aumento de salários. Salários em crescimento geram inflação, pois com a economia

347
aquecida os patrões podem repassar a elevação dos custos aos preços. A inflação pode
ser corrigida com alguma dose de recessão. A curva era tida como estável ao longo do
tempo e possibilitaria especificar um menu de combinações de inflação e desemprego
que seriam alcançados por um conjunto apropriado de políticas monetárias e fiscais.
A curva de Phillips possibilitava estender o modelo keynesiano básico na explicação
dos preços. Então o macroeconomista teria um aparato analítico completo. Muita
pesquisa havia sido feita até então no sentido de dotar o modelo de um fundamento
rigoroso. Buscou-se uma sustentação teórica da macroeconomia pela microeconomia
neoclássica, tornando o comportamento agregado compatível com a otimização
individual. Franco Modigliani partiu do comportamento racional dos indivíduos para
obter a função consumo e Dale W. Jorgensen construiu uma função de investimento
agregado com base na ação das empresas individuais. A curva de Phillips era usada para
analisar o lado da oferta da economia. A ênfase recaía no mercado de trabalho. A
microeconomia do mercado de trabalho dava suporte à macroteoria analisando como se
dão as decisões de produção, a contratação de trabalho e a fixação dos preços com base
nos custos.
O problema posto para a teoria no início dos anos 1970 era o de como a inflação
poderia conviver com desemprego elevado. Trata-se do fenômeno de estagflação
(“stagflation”), que desafiava a explicação tradicional. Robert Lucas escreveu anos
depois, em 1981:
“Os proponentes de uma classe de modelos que prometiam 3,5 a 4,5% de de-
semprego para uma sociedade que pudesse tolerar taxas de inflação anual de 4 a
5% tinham então de explicar o que se passou numa década tal como a que
acabamos de viver em que a inflação cresceu a 16% ao ano e o desemprego a 8%
nos Estados Unidos, a 30% e 6% no Reino Unido. A inflação cresceu a níveis tão
elevados como 25% no Japão e 7% na Alemanha, embora com desemprego
permanecendo relativamente baixo nesses países. Um erro de previsão desta
magnitude e relativo a pontos de importância central para a política tinha de ter
consequências, como de fato teve.” (Apud M. Friedman, John Maynard Keynes)
Uma curva de Phillips estável, como se supunha, parecia estar sendo violada pelos
fatos da realidade. Argumentos foram buscados no sentido de preservar a teoria padrão,
sustentando-se que o desemprego se devia a imperfeições de mercado. Problemas de
informação, heterogeneidade do trabalho e desajuste na qualificação dos trabalhadores
faziam com que as vagas não fossem preenchidas no curto prazo, mesmo com excesso de
oferta de mão de obra. Mais uma vez, como na época de Keynes, a rigidez nos salários
nominais era apontada como a vilã da história. A conclusão da explicação ainda manti-
nha válidas a curva de Phillips e a política de controle de demanda.
O agravamento da crise gerou descontentamento generalizado com a macroeco-
nomia da época. Em 1968, Milton Friedman e Edmund Phelps argumentam que era
espúrio o trade-off entre inflação e desemprego, previsto pela curva de Phillips. Eles
passam a enfatizar a importância de se separar inflação antecipada da não antecipada,
introduzindo o papel das expectativas na curva de Phillips e o conceito de taxa natural
de desemprego ao qual a economia tenderia conforme os agentes fossem ajustando suas
previsões. Ou seja, uma década de alta inflação não teria necessariamente menos
desemprego, em média, que outra década de menor inflação. A experiência na década de
1970 levou a uma desilusão com o keynesianismo, não apenas por parte dos economistas,
mas também dos políticos. James Callaghan, então primeiro-ministro da Inglaterra, o
berço do keynesianismo e o país pioneiro em adotar políticas keynesianas, disse em 1976:
“Acostumamo-nos a pensar que poderíamos sair de uma recessão e aumentar
o emprego cortando impostos e ampliando os gastos governamentais. Com toda
candura eu digo agora a vocês que essa opinião não mais existe e que esta política

348
funciona apenas quando se injeta altas doses de inflação na economia, seguida
por altos níveis de desemprego na etapa seguinte. Esta é a história dos últimos
vinte anos.” (Apud M. Friedman, John Maynard Keynes)
Friedman demonstrou que ao se introduzirem expectativas no modelo de inflação a
curva de Phillips torna-se instável. Quando o desemprego diminui, não apenas aumenta
a inflação, mas alteram-se as expectativas inflacionárias dos agentes, especialmente dos
trabalhadores ao negociarem seus contratos de trabalho. Friedman imagina que os
empregados precisariam de tempo para ajustar suas expectativas e desenvolve então um
modelo de expectativas adaptativas com a previsão inflacionária a depender da série
passada de inflação, no qual se ponderam as várias inflações que prevaleceram em
diferentes períodos passados. Quando se desloca ao longo de uma curva de Phillips de
curto-prazo, por exemplo, reduzindo o desemprego e aumentando a inflação, a nova
inflação gera um novo trade-off com a curva se deslocando para cima. O processo conti-
nua até que o desemprego retorne a um nível de equilíbrio compatível com qualquer
índice de inflação, cujo valor depende da trajetória passada e de como as expectativas
foram sendo realimentadas. Diz-se, portanto, que a curva de Phillips é vertical a longo-
prazo. A taxa de desemprego de equilíbrio, denominada de taxa natural, não é afetada
por políticas monetárias e fiscais, embora possa ser influenciada por políticas
microeconômicas que melhorem a eficiência no mercado de trabalho.
Keynes não acreditava na eficiência da política monetária nas condições econômicas
de sua época. O neokeynesianismo, no entanto, aceita a importância da moeda na política
de estabilização. No diagrama IS-LM, o ponto de pleno-emprego pode ser alcançado
tanto por políticas fiscais, que deslocam a IS para a direita, quanto por políticas
monetárias, que deslocam a LM no mesmo sentido. No primeiro caso, o pleno-emprego
é obtido com a mesma quantidade nominal de moeda. Quando a estratégia de
estabilização usa apenas a política monetária que desloca a LM, o pleno-emprego é
alcançado mantendo-se a mesma eficiência marginal do capital. Keynes rejeita essa via
monetária de política antirrecessão, tida como irrealista, visto que constata serem os
gastos autônomos insensíveis às taxas de juros e pela ideia de armadilha da liquidez que
impede a ocorrência, a partir de certo ponto, de baixa dos juros. Investimentos
perfeitamente inelásticos aos juros e preferência pela liquidez tornam a curva IS uma
reta horizontal e a LM uma reta vertical. Nesse caso extremo, a política monetária é
completamente ineficaz em seus efeitos sobre a renda de equilíbrio. Na situação menos
extrema, em que a IS é uma curva altamente inelástica (uma curva bastante inclinada) e
a LM altamente elástica (próxima à horizontal), é possível que apenas a uma taxa de juros
negativa a política monetária expansionista, que desloca a LM para baixo, possa levar ao
equilíbrio de pleno-emprego, como mostra a Figura 12.2 abaixo.
Contrário ao diagnóstico de Keynes, Friedman argumenta que a política monetária
é eficiente no curto prazo, embora a moeda seja neutra no longo prazo. Na versão simples
do diagrama IS-LM, ignora-se o efeito das políticas sobre preços e salários. Na recessão,
os salários nominais tendem a cair, fato reconhecido por Keynes, porém ele imaginava
que os demais preços cairiam pari passu, deixando os salários reais inalterados. Embora
tal fato se verifique na época, Friedman mostra que não se poderia generalizar tal
conclusão a outras situações: a queda nos salários reais pode, de fato, ocorrer e isso ajuda
a combater a recessão. Além do mais, a queda dos preços na recessão leva ao aumento
nos saldos reais de moeda retidos pelos indivíduos (o chamado efeito Pigou). Esse efeito
de saldos reais é magnificado quando se praticam políticas monetárias expansionistas
que aumentam a moeda disponível ao público. O aumento real de moeda pelo “efeito
riqueza” impulsiona os gastos privados, o que desloca a curva IS (além do efeito da
moeda nos saldos reais, Friedman fala também do efeito dos juros sobre o valor dos
ativos, que altera a riqueza e a propensão média e marginal a consumir a qualquer nível
de renda). Ou seja, Friedman aponta que a IS e a LM não são curvas independentes e o

349
impacto da política monetária também sobre a IS aumenta seu efeito estabilizador de
curto prazo.

Taxa de
juros r LM

Pleno-emprego
Produto Agregado

IS

Figura 12.2 Modelo IS-LM em que a política monetária tem solução de pleno-emprego
para taxa de juros negativa.

Apesar de poderosa no curto prazo, e justamente por isso, políticas monetárias ativas
devem ser evitadas por seu efeito desestabilizador: por reconhecer a importância da moeda,
os monetaristas (como foi rotulado Friedman e seu grupo) preferem fixar uma taxa de
crescimento constante da moeda em vez de políticas discricionárias com ela. Mesmo a
Grande Depressão ocorrida nos anos 1930 não prova a ineficácia da política monetária.
Friedman, em famoso estudo História monetária dos Estados Unidos, escrito com Anna
Schwartz, demonstra ter ocorrido, o colapso, entre 1930 e 1933, do sistema bancário dos
Estados Unidos, que resultou na drástica redução de liquidez na economia e ampliou a crise
preexistente.
Os monetaristas restabeleceram a crença no mecanismo automático de ajuste nas
economias capitalistas. Para eles, a política monetária é poderosa, pelos argumentos
anteriores, no entanto deve ser evitada, e a política fiscal é ineficiente, dada a curva de
Phillips vertical no longo prazo. A elevação dos gastos públicos apenas desloca os
investimentos privados, diminuindo a eficiência microeconômica do sistema. Voltamos
às mesmas conclusões mantidas pelos neoclássicos antes de Keynes.
Ainda resta a questão de explicar o que ocorre na recessão. Os monetaristas apontam
para os problemas no mercado de trabalho, especialmente na rigidez de salários. Econo-
mistas de outra linha, no entanto, mostraram que os mercados podem não ser eficientes
mesmo com preços flexíveis. Axel Leijonhufvud e Robert Clower estudam as falhas de
coordenação dos mercados no que se tornou conhecido como economia do desequilíbrio.
Modelos de processo de desequilíbrio foram construídos de modo a evidenciar quais
problemas de informação impedem que os mercados alcancem o equilíbrio. Importantes
economistas, como R. Solow, J. Stiglitz, R. Barro e H. Grossman, elaboram modelos
desse tipo, compatibilizando-os com o comportamento de otimização e com os resulta-
dos neokeynesianos.
Em 1961, um economista não muito conhecido, John Muth, publicou artigo com
uma teoria em que as expectativas dos indivíduos utilizam as próprias previsões do
modelo. Tais expectativas foram denominadas de “racionais”. John Muth, em
Expectativas racionais e a teoria do movimento dos preços, postula que as expectativas
dos agentes são formadas pelas previsões dos modelos da teoria econômica relevante. A
justificativa é a de que a economia não perde informação e que a informação mais
acurada está no próprio modelo teórico, no interior do qual as expectativas dependem

350
da estrutura global do sistema. Muth trabalha com a hipótese de um mercado isolado
com defasagem fixa de produção. Os agentes se envolvem na especulação com mercado-
rias.
Até então, os modelos com o uso tradicional das expectativas adaptativas explicavam
os ciclos econômicos por meio de erros nas expectativas. Sabia-se, portanto, que para as
flutuações de curto prazo eram importantes os estudos das expectativas nos negócios e
dados de intenção dos agentes. Muth identificou problemas na análise tradicional das
expectativas. Ela não explica muito bem como as expectativas são formadas e nem as
flutuações no mercado; não descreve como as expectativas são influenciadas pelo curso
atual dos eventos. Enfim, a análise não explica como trabalha a economia. No estudo da
dinâmica do processo econômico urge que se investigue que tipo de informação está
sendo usada; e como é possível o uso de informações atuais para se fazer estimativas das
condições futuras. Como as mudanças estruturais do sistema mudam as expectativas?
Deve-se, para tanto, usar a variável certa como expectativa, de modo a se evitar viés em
modelos econométricos, e ainda a fim de tornar as implicações da teoria das expectativas
consistentes com os dados.
Na hipótese de expectativas racionais, as expectativas médias numa indústria são
tão acuradas quanto as de elaborados sistemas de equações. Já os modelos com
expectativas adaptativas, tradicionais até então, subestimam a amplitude das mudanças
reais. Muth propõe um modelo no qual as expectativas sejam iguais à previsão da teoria
econômica relevante; isto é, que sejam racionais. Por “racionais” não se entende o que as
firmas fazem, mas o que as firmas devem fazer. Até então, faltava uma hipótese de
racionalidade mais forte nos modelos dinâmicos. Como são as expectativas das firmas?
Elas formam uma distribuição subjetiva de probabilidades de retorno. Estas se distri-
buem ao longo da previsão teórica ou distribuição objetiva de probabilidades de retornos.
O modelo parte da constatação de eficiência no uso da informação. Como a infor-
mação é escassa, o sistema econômico não a desperdiça. Das proposições lançadas por
Muth, cabe destacar as seguintes: o modo como as expectativas são formadas depende
da estrutura do sistema relevante que descreve a economia; a expectativa de uma única
firma está sujeita a errar mais que a teoria; a eficácia das políticas depende de “inside
information”. A racionalidade na formulação das expectativas diz respeito à conduta
média dos empresários. Na prática, evidentemente o empresário não segue a solução de
um sistema de equações do modelo econômico; as previsões não são perfeitas e não são
as mesmas entre eles. As previsões são iguais apenas no resultado médio, em cada caso
individual são processos diferentes. Muth lança também outras hipóteses dependentes
entre si: distúrbios aleatórios com distribuição normal, as variáveis a serem previstas
têm um “equivalente certo”, e equações lineares para oferta e demanda e também nas
fórmulas de expectativas.
Muth modela, a título de exemplificação, as flutuações de preços para um mercado
isolado. Começa com as hipóteses de mercadorias que não podem ser estocadas, lag de
produção fixo, número fixo de firmas e mercado isolado. As equações do mercado são
expressas da seguinte maneira: lado da demanda Ct = -  pt , Ct é o montante consumido
e pt é o preço de mercado no t-ésimo período.  é a constante de proporcionalidade. O
número de unidades produzidas em um período (mas só disponibilizadas obedecido o
lag de produção) é Pt =  pte + ut. pte é o preço de mercado que se espera prevalecer no t-
ésimo período com base na informação disponível no (t-1)-ésimo período.  é uma
constante de proporcionalidade e ut descreve um erro estocástico. No equilíbrio, Pt = Ct,
ou seja, pt = – ( /) pte – (1/) ut. Aplicando-se o “operador esperança”, E ut = 0 (desvios
não sistemáticos dos valores de equilíbrio) e obtém-se E pt = – (/) pte. Neces-
sariamente também devemos ter E pt = pte , o que traduz a hipótese de que a previsão da
teoria é igual à previsão das firmas, pois se fosse diferente, o insider iria lucrar com seu
conhecimento, especulando com estoques ou vendendo serviços de previsão às firmas.

351
Portanto, na conclusão do modelo, a equação pte = – (/) pte impõe que / = – 1. Se /
 –1 então obviamente pte = 0. Em suma, os preços esperados são preços de equilíbrio.
O trabalho de Muth permaneceu esquecido por 10 anos, até que Robert Lucas perce-
besse as implicações revolucionárias das expectativas racionais para um novo enfoque
clássico aplicado à macroeconomia. Em 1969, ele e Leonard Rapping publicam um paper
na revista Journal of Political Economy (JPE), intitulado Salário real, emprego e
inflação. Esse trabalho projetou o nome de Lucas por ter proposto um modelo de
mercado de trabalho que seria, mais tarde, a base dos modelos da nova escola conhecida
como nova economia clássica, ou simplesmente “novos clássicos”. As conclusões do
trabalho apoiam a existência de uma taxa natural de desemprego, já identificada por
Milton Friedman.
O primeiro trabalho importante no qual Lucas usou a hipótese de expectativas racionais
trata do comportamento do investimento. Investimento sobre incerteza foi publicado na
Econometrica, em 1971, escrito em parceria com Edward Prescott. No ano seguinte, na
revista Journal of Economic Theory aparece o artigo Expectativas e a neutralidade da
moeda, no qual as expectativas racionais são introduzidas no novo modelo de mercado de
trabalho. Os artigos de Lucas chegam a resultados clássicos tais como neutralidade da moeda
e a ineficácia da política econômica do governo; deriva daí a origem do nome “novos
clássicos”. Outros trabalhos de Lucas, na primeira metade dos anos 1970, submetem a
hipótese de taxa natural de desemprego e as políticas ativas a testes e avaliações econo-
métricas que levaram à conclusão de que haveria falhas irreparáveis nas economias
keynesianas e monetaristas.
Em 1975, outro artigo de Lucas na JPE, Um modelos de equilíbrio do ciclo de negócio,
contestou a ideia convencional de que a noção de equilíbrio seria incompatível com a
existência de ciclos econômicos. A proposta do artigo era a de modelar uma economia em
que o produto real flutuasse em torno da tendência. A flutuação não é explicada por
variações na quantidade disponível de fatores produtivos. Os movimentos cíclicos são
gerados por choques de políticas cujos efeitos são distribuídos ao longo do tempo devido
a lacunas de informação. Associados às flutuações, há movimentos pro-cíclicos nos
preços, na participação do investimento no gasto da renda, e nas taxas nominais de juros.
A novidade do modelo consiste na interpretação de que preços e quantidades em
qualquer ponto correspondem a um equilíbrio competitivo e na imposição da hipótese
de expectativas racionais dos agentes. Viceja informação imperfeita, pois o futuro é
desconhecido e falta informação das condições atuais. Lucas procura investigar situações
hipotéticas para estudar o efeito das políticas. Pergunta como os agentes irão se
comportar em situações hipotéticas? Estuda então o processo de tomada de decisão.
Como tem sido no passado as decisões dos agentes? Como tais decisões seriam alteradas
por mudanças hipotéticas na política?
Para Lucas, não se pode determinar regras para o comportamento do governo; parte
então para o estudo dos efeitos decorrentes de um conjunto de hipóteses de estudo. As
flutuações do produto real são provocadas por choques não antecipados nas políticas.
Não há oportunidades de lucro não exploradas. A produção e o comércio ocorrem entre
um grande número de mercados imperfeitamente ligados (física e informacionalmente).
Lucas contesta o tradicional modelo de crescimento monetário neoclássico que vê o
comércio apenas em um único mercado centralizado, e supõe grande número de
informações à disposição dos agentes a fim de tornar as flutuações cíclicas consistentes
com a racionalidade. Em oposição a esse modelo, lança a ideia de muitos mercados
imperfeitamente ligados. Era uma influência de Phelps que em 1969 tinha explorado a
hipótese em Fundamentos microeconômicos das teorias de emprego e inflação. O
influente estudo de Phelps também viria a influenciar Prescott e Barro entre 1972 e 1975.
Em todos esses modelos, decorre um conjunto de consequências. O lado real da
economia responde a distúrbios puramente nominais, e o impacto dessas flutuações é

352
apenas de curto-prazo. Como os neoclássicos, Lucas incorpora o chamado modelo do
acelerador: o estoque de capital físico acumulado afeta as decisões de investimento.
O modelo neoclássico de crescimento monetário assevera que introduzir ruídos na
política monetária não é suficiente para induzir respostas nas variáveis reais e nominais
que explicam as flutuações cíclicas. Nos modelos de único mercado, há excesso de
informações à disposição dos agentes, de modo que o ruído não os faz alterarem as
decisões sobre as variáveis reais. Já no modelo de Lucas, com múltiplos mercados
isolados, o comércio ocorre em ilhas de mercados. Os agentes são distribuídos no começo
do período entre os mercados. Os negócios anteriores determinam o estoque de capital
de cada mercado. Há um estoque de moeda nas mãos dos agentes. Nova moeda é injetada
nos mercados estocasticamente, devido a compras do governo. Os retornos são
expectativas condicionadas e se supõe novo choque monetário em cada período de
transação. O capital acumulado num certo mercado permanece nele; não há mercado
para fundos de capitais, somente financiamento interno; todas as trocas ocorrem a
preços competitivos de equilíbrio. Lucas utiliza a mesma hipótese de comportamento
racional dos agentes no sentido de Muth (uso ótimo da informação disponível). A
distribuição das variáveis é conhecida e suposta estacionária. A função de demanda de
ativos é específica a cada um dos mercados (depende de variações no estoque de capital
e de informação).
O modelo de Lucas tem conteúdo empírico: faz previsões sobre valores agregados;
descreve o efeito dos choques por meio de parâmetros que podem ser testados. Prevê
ainda desvios da média na demanda por produtos específicos, independência das
demandas in-dividuais e, em cada qual, independência ao longo do tempo. Lucas utiliza
a ideia de análise retrospectiva. Imagina um padrão e deduz qual estrutura de
covariâncias dos choques de demanda individual conduzirá ao comportamento
agregado. O método do modelo de Lucas consiste em imaginar que o choque em cada
mercado individual pode ser expresso como uma combinação linear de um grande
número de choques independentes em que se aplica a lei dos grandes números. Identifica
um único choque comum a todos os mercados: uma única variável randômica que
descreve o comportamento da demanda agregada.
As implicações de política econômica do modelo são as de que um choque nas
políticas (fiscal e monetária) gera movimento agregado na produção; todos os choques
envolvem movimentos fiscais e monetários; alguns componentes da variação da
demanda agregada são inevitáveis e que políticas reativas não parecem desejáveis. Uma
política tributária que reduza a resposta do investimento a mudanças na demanda
agregada também reduz a variância do produto e do emprego. Tal política ainda reduz a
resposta do investimento a mudanças na demanda relativa, retardando a realocação dos
recursos para as atividades mais lucrativas. Em conclusão, não é necessário falar em
falhas de mercado para se estudar os mais importantes aspectos observados nos ciclos
A partir desse artigo de Lucas, jovens economistas irão utilizar e desenvolver suas ideias.
Thomas Sargent, junto com Neil Wallace, demonstraram a ineficácia de políticas monetárias
e fiscais ativas em um modelo keynesiano tradicional, incorporando nele expectativas
racionais. Sargent desenvolveu procedimentos econométricos permitindo o teste dos
postulados da nova economia clássica. Outros economistas que se destacaram com trabalhos
na nova linha foram Bennett McCallum, Robert Barro e R. Townsend. Todos eles propondo
inovações técnicas e abandonando o enfoque de desequilíbrio.
Friedman havia evidenciado a importância de se usar as expectativas dos agentes em
modelos macroeconômicos. No entanto, conteve-se em incorporar em seu modelo a
hipótese de expectativas adaptativas em que os indivíduos ajustam suas expectativas
correntes para corrigir erros de previsão cometidos em períodos precedentes. É difícil
formular como as expectativas são construídas na mente dos indivíduos em termos

353
matemáticos. A ideia de que as expectativas quanto ao valor do preço são determinadas
apenas por observações passadas no nível de preço parecera razoável e suficiente a
Friedman. Lucas e Rapping, no artigo de 1969, ainda adotam as expectativas adaptativas,
mas na época já percebiam a limitação dela. Por exemplo, se o governo desse uma virada
na política fiscal e os indivíduos estivessem sabendo desse fato, seria interessante
incorporar esse dado no modelo, mesmo que ele não tenha afetado os preços observados.
A noção de que os indivíduos utilizam, quando formulam suas expectativas, todas as
informações disponíveis, bem como de seu entendimento de como funciona a economia,
é, de certa forma, óbvia. Contudo, é difícil concretizá-la em um modelo teórico. Nas
expectativas adaptativas, o preço esperado Pt* é função do preço passado Pt–i. Conhecido
os valores passados, pode-se calcular Pt*. No modelo com expectativas racionais, a
variável que entra como argumento para o cálculo do valor esperado do preço é ela
mesma dependente de Pt* e vice-versa. A dependência mútua de variáveis torna o modelo
matemático bem mais difícil de tratar. Muita matemática teve de ser aprendida pelos
economistas a fim de assimilarem a nova ideia na teoria econômica.
Outra inovação teórica dos novos clássicos é que eles pensam os preços observados
em mercados como já sendo preços de equilíbrio. Os monetaristas não aceitaram essa
proposição, argumentando que as expectativas quanto ao comportamento de uma
variável levam algum tempo para se adaptarem ao valor efetivo dessa variável e nesse
espaço de tempo a economia estaria em desequilíbrio. Os neokeynesianos pensam que
essa ideia tornaria impossível interpretar ciclos econômicos. Contudo, a coletânea de
estudos de Lucas e R. M. Townsend sobre a teoria dos ciclos de negócios dá um
tratamento sofisticado ao problema, mostrando que mesmo com preço em equilíbrio
pode-se explicar fenômenos que outros alegam serem de desequilíbrio.
Para os neokeynesianos, as políticas do governo afetam o nível de preço e de produto
(ou renda) de equilíbrio, porque a curva de oferta agregada da economia (no plano que
relaciona nível de preços e produção agregada) não é perfeitamente vertical, pois admitem
rigidez de preços. Para os monetaristas, o efeito dessas políticas é temporário e se deve às
expectativas adaptativas, pois os agentes levam tempo para aprenderem e se enganam no
curto prazo. Na nova economia clássica, o resultado clássico, no qual as políticas só alteram
valores nominais, é observado mesmo a curto prazo, e o produto real agregado encontra-se
sempre em seu nível natural, não sendo afetado pelas medidas do governo: variações na
demanda agregada encontram respostas imediatas na oferta agregada e o produto permane-
ce o mesmo.
Então como eles explicam o ciclo econômico? Impondo restrições às condições sob
as quais os indivíduos tomam decisões. Embora o indivíduo tenha expectativa racional,
ele não tem conhecimento perfeito. Então, eles são obrigados a adivinhar o valor presente
e futuro de certas variáveis. Mesmo com decisões racionais há o engano. Isso faz com que
na prática a curva de oferta agregada não se ajuste automática e instantaneamente a
mudanças na demanda agregada, e isso enseja o ciclo do produto real. As flutuações do
produto real devem-se a erros de previsão, que ocorrem em face da informação
imperfeita dos agentes e de variáveis estocásticas geradas pela incerteza na economia.
Os modelos novos-clássicos levam a conclusões radicais contrárias ao intervencio-
nismo, mas nem todos os grandes economistas contemporâneos pensam dessa forma.
Na macroeconomia atual, há o grupo dos novos clássicos, cujos principais expoentes são
Lucas, Sargent e Townsend, contudo os neokeynesianos da velha geração não aceitam,
ou compreendem bem, as teses mais liberais da outra escola. Dentre os últimos, os mais
famosos são James Tobin, Franco Modigliani e Robert M. Solow. Alguns neokeynesianos
mais jovens também resistem às conclusões novo-clássicas, como Alan S. Blinder e John
B. Taylor. No campo do monetarismo destaca-se, além de M. Friedman, Karl Brunner.
Pode-se identificar também outra escola de keynesianos fundamentalistas, a que

354
chamamos de pós-keynesianos. Victoria Chick, Axel Leijonhufvud, Hyman Minski e Paul
Davidson são os mais conhecidos.
Não há um consenso na macroeconomia atual, embora muitos dos conceitos e
técnicas sejam compartilhados por todos eles. Há controvérsias de natureza empírica,
teórica e filosófica. Contudo, é nítido um processo de convergência de ideias, embora
ainda não se possa ver a macroeconomia como um campo de conhecimento completa-
mente unificado.

355
Questões

1. Keynes pode ser considerado um gênio em matemática. Como o capítulo avalia os


dotes intelectuais dele nesse campo do saber?
2. O Tratado sobre a probabilidade desenvolve uma crítica à teoria da probabilidade
tradicional. Que teoria é essa? Descreva o teor da proposta de Keynes em
probabilidade. Afinal, se a teoria subjetiva da probabilidade de Keynes implica que
a probabilidade é uma atribuição pessoal de chances aos eventos, podemos concluir
que a avaliação de probabilidades é inteiramente subjetiva ou teria algum elemento
de objetividade? Explique.
3. A ética de Moore está baseada no bem do ponto de vista individual. Quais os valores
que caracterizam o bem? O que Keynes acrescenta a esses valores? Como é possível
avaliar o bem coletivo e qual a relação disso com o apego de Keynes às artes?
4. Qual a origem, em termos de influências pessoais, da ênfase dada por Keynes na
questão do acaso, das probabilidades e da incerteza?
5. Por que as ideias de Keynes se tornaram mais conhecidas, já que outros autores
também defendiam a intervenção do governo para conter a crise econômica?
6. Como o Grupo de Bloomsbury, do qual Keynes participou, posicionava-se em relação
aos valores da sociedade vitoriana?
7. Comente as críticas de Keynes ao Tratado de Versalhes.
8. Comente: “O caminho seguro para a paz consiste em ajudar a reerguer a economia
destruída.” Como essa ideia de Keynes influenciou as negociações dos Aliados com
os países derrotados depois da Segunda Guerra Mundial?
9. Descreva a teoria quantitativa da moeda (TQM) nas versões de Cambridge e em I.
Fisher. Tais versões são idênticas?
10. O que é o mecanismo de transmissão da TQM? Como a moeda pode afetar o lado
real mesmo aceitando-se a TQM?
11. Quais as críticas que Keynes fazia à volta ao padrão-ouro na Inglaterra em 1925?
12. Descreva as teses principais encontradas no Tratado sobre a moeda. Por que a taxa
de juros não garante o equilíbrio automático entre poupança e investimento? Qual
foi a principal crítica que se fez ao Tratado e que levou Keynes a reelaborar seu
pensamento?
13. Quais as raízes econômicas da crise de 1929?
14. Qual a ideia econômica básica de Keynes na “Teoria Geral”?
15. Comente as semelhanças metodológicas entre Keynes e os neoclássicos de
Cambridge.
16. Interpreta esta frase nossa: “Keynes ousou qualificar o desemprego em massa como
uma situação de equilíbrio, rompendo com a crença na eficiência dos mercados.”
17. O que é o “paradoxo da parcimônia”?
18. Para Keynes, qual o papel da preferência pela liquidez na determinação da taxa de
juros?
19. Que postulado da economia clássica foi rejeitado por Keynes e qual a relação entre
esse postulado e a ideia de desemprego involuntário?
20. Qual o teor da crítica de Keynes à Lei de Say?
21. Como Keynes define a noção de “custo de uso”?

356
22. Como é a função consumo proposta por Keynes?
23. Como a função de investimento relaciona-se com o conceito de eficiência marginal
do capital?
24. O que Hicks pensou em fazer quando propôs o modelo IS-LM e quais as críticas que
se faz a esse modelo?
25. O que vem a ser um sistema “bloco recursivo”?
26. Explique como a renda de equilíbrio é determinada no diagrama renda-despesa,
popularizado por Samuelson, Lerner e Hansen.
27. Comente esta crítica ao modelo IS-LM citada no capítulo: “Impor que o equilíbrio
entre oferta e demanda de estoque seja obedecido a todo tempo torna impossível
que haja um desequilíbrio de fluxos, porém o contrário poderia ocorrer: equilíbrio
de fluxos com desequilíbrio de estoques.”
28. Interpreta a crença de Keynes na ineficácia da política monetária em termos do
diagrama IS-LM.
29. Que fatores, para Friedman, tornam a curva IS dependente da curva LM?
30. Comente o postulado monetarista: “Apesar de poderosa no curto prazo, e
justamente por isso, políticas monetárias ativas devem ser evitadas por seu efeito
desestabilizador.”
31. O que é a hipótese de expectativas adaptativas e como ela afeta a curva de Phillips
de curto prazo?
32. Explique o modelo teórico de Friedman para a inflação.
33. Comente a ideia de expectativas adaptativas e por que elas tornam os modelos mais
difíceis de serem formulados matematicamente.
34. O que são os novos clássicos e por que suas conclusões se aproximam das dos
economistas neoclássicos?
35. Como é possível a explicação do ciclo econômico em um modelo que não aceita o
desequilíbrio de mercado?
36. “Novos clássicos, neokeynesianos, pós-keynesianos e monetaristas, na
macroeconomia as diferentes escolas não se entendem.” Você concorda?
Desenvolva sua opinião.
37. Explique o conteúdo do artigo Expectativas racionais e a teoria do movimento dos
preços de John Muth.
38. De que forma Robert Lucas explica a existência de ciclos econômicos no artigo Um
modelos de equilíbrio do ciclo de negócio?

357
Leitura Adicional

Literatura primária

FRIEDMAN, Milton; SCHWARTZ, Anna J. Monetary history of United States, 1867-1960.


Princeton: Princeton University Press, 1963.

KEYNES, John M. A teoria geral do emprego, dos juros e da moeda. São Paulo: Nova Cultural,
1985.

____. The economic consequences of the peace. Disponível em: home page da Faculty
of Social Sciences McMaster University, CA, <http://socserv.mcmaster.ca/~econ/ugcm
/3ll3/keynes/peace.htm>.

Muth, John A. "Rational Expectations and the Theory of Price Movements." Econome-
trica v. 29, p. 315-35, 1961.

Lucas, Robert; Prescott, Edward “Investment Under Uncertainty”, Econometrica, v. 39,


p. 659-681, 1971.

Lucas, Robert “An Equilibrium Model of the Business Cycle”, Journal of Political
Economy, v. 83, no. 6, p. 1113-1144, 1975.

Literatura secundária

AMADEO, Edward J. (ed.) John Maynard Keynes: cinquenta anos da Teoria Geral. Rio
de Janeiro: IPEA, 1992.

BARRÉRE, Alain. Teoria econômica e impulso keynesiano. Rio de Janeiro: Fundo de


Cultura, 1961.

DEANE, Phillys. Evolução das ideias econômicas. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

DILLARD, Dudley. A teoria econômica de John Maynard Keynes: teoria de uma


economia monetária. São Paulo: Pioneira, 1993.

FRIEDMAN, Milton. “John Maynard Keynes”, Federal Reserve Bank of Richmond.


Economic Quartely, v. 83/2, 1997.

IGLESIA, Jesús de la. Ensayo sobre pensamento económico. McGraw Hill, 1994. cap. 8 e
9.

KLAMER, Arjo. Conversas com economistas: os novos economistas clássicos e seus


opositores falam sobre a atual controvérsia em macroeconomia. São Paulo:
Edusp/Pioneira, 1988.

LEONTIEF, Wassily. “The fundamental assumption of Mr. Keynes’ monetary theory of


unemployment”. Quartely Journal of Economics, 1937.

NAPOLEONI, Cláudio. O pensamento econômico do século XX. São Paulo: Paz e Terra,
1979. cap. 5 e 6.

358
O’CONNOR, J. J.; ROBERTSON, E. F. John Maynard Keynes. Disponível em: home page
da School of Mathematics and Statistics, University of St. Andrews, Escócia,
<http://www-groups.dcs.st-and.ac.uk/~history/Biographies/Keynes.html>.

SILVA, Marcos E. Teoria geral: uma interpretação pós-keynesiana. Tese (Doutorado) –


IPE, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.

SKIDELSKY, Robert. Keynes. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

359
360
Índice de Autores e Personalidades

Addis 335. Bastiat, Claude Frédéric 217.


Agostinho 22, 23, 27. Baudeau, Abbé Nicholas 73.
Allen, Roy G. D. 202. Bauer, Bruno 139.
Althusser, Louis 161. Bawerk, Eugen von Böhm 145, 198, 201,
220, 222, 224, 288, 290, 301, 307, 311,
Ambrósio 22.
314.
Anaximandro 139.
Bailey, Samuel 111.
Anaxímenes 139.
Bebel, Augusto 144.
Anzengruber, Ludwig 289.
Bell, Clive 322.
Aquino, Tomás de 23, 27, 28, 29, 31, 183,
Bentham, Jeremy 66, 123, 124, 184, 187,
289.
189, 190, 192, 197, 200, 203, 204, 213, 214,
Aristóteles 11, 12, 13, 14, 15, 16, 23, 26, 27, 216, 218, 221, 222, 229, 241.
28, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 62, 65, 82,
Bergson, Abram 274, 275.
139, 183, 289.
Bernoulli, Daniel 184, 185.
Arrow, Kenneth J. 280, 281.
Beveridge, William H. 335.
Atenião 15.
Bilimovich, Aleksander. 275.
Augustinovics, Mária 275.
Blackett, Basil 335.
Auspitz, Rudolf 200, 290.
Blaug, Mark 281.
Austin, John 123.
Blinder, Alan S. 354.
Ayer, Alfred Jules 277. Block, H. D. 281.
Babeuf, Gracchus 137, 138. Bodin, Jean 41.
Bachelier, Louis 185. Boisguillebert, Pierre le Pesant 68, 69, 81.
Bacon, Francis 44, 57, 58, 59, 60, 62, 63, Bolzano, Bernard P. J. Nepomuk 289.
65, 66, 82, 289.
Bornitz, Jakob 47.
Bagehot, Walter 170, 171, 216, 217, 336. Brouwer, Luitzen E. Jan 280.
Bain, Alexander 221. Bruno, Giordano 139.
Bakunin, Mikhail 144, 146. Brunner, Karl 354.
Banach, Stefan 277. Buquoy, Georg von 179.
Barbon, Nicholas 50. Buridan, Jean 27, 30, 31, 56.

Barone, Enrico 202, 251, 254, 264, 270, Burke, Edmund 289.
271, 272, 273, 274, 275. Cabet, Etiènne 130.
Barro, Robert J. 350, 352, 353. Cahagnes, William de 319.
Basílio 22. Cairnes, John Elliot 111, 127, 175, 176, 177,
215, 216, 217.

361
Callaghan, James 348. D’Avenant, Charles 42.
Cannan, Edwin 335. Davenport, Hebert J. 202.
Cantillon, Richard 1, 35, 60, 68, 69, 70, 71, Davidson, Paul 344, 355.
74, 81, 94, 330.
Deane, Phyllis 337.
Carlyle, Thomas 123.
Debreu, Gerard 280, 281.
Carnap, Rudolf 277.
Demócrito (de Abdera) 139.
Cassel, Gustav 198, 202, 252, 267, 275,
Descartes, René 58, 59, 60, 63, 64, 65, 67,
276, 277, 278, 280.
82, 83, 95.
Catão, Marco Pórcio 18.
Dewey, John 223.
Chadwick, Edwin 214.
Dickens, Charles 123.
Chick, Victoria 355.
Dickinson, Henry Douglas 273.
Child, Josiah 42.
Dickison, Lowes 322.
Chipman, John S. 280.
Diderot, Denis 139.
Chuang Zi 5.
Diocleciano 17.
Churchill, Winston 335, 336.
Dithmar, Justus Christoph 49.
Cícero, Marco Túlio 17, 18.
Droysen, Johann 172.
Cipriano, Táscio Cecílio 22.
Dumont, Étienne 203.
Clark, John Bates 176, 177, 181, 201, 211,
Dupuit, Jules E. 184, 186, 187, 188, 192,
223, 311.
205, 212, 232, 239, 252.
Clark, John Maurice 210.
Durant, Will 10.
Clay, Henry 335.
Ebeling, Richard 314.
Clemente de Alexandria 22.
Edgeworth, Francis Ysidro 198, 200, 201,
Clower, Robert 350. 202, 231, 251, 281, 336.
Colbert, Jean Baptiste 38, 68, 106. Einstein, Albert 185.
Coleridge, Samuel Taylor 123. Eliot, Thomas Stearns 322.
Columella (Lúcio Júnio Moderato) 18. Ellet, Charles 179.
Comte, Auguste 123, 165, 171, 178, 289. Ely, Richard T. 166.
Condillac, Etienne Bonnot de 252. Engels, Friedrich 140, 141, 142, 143, 146,
147, 159.
Condorcet, Nicolas de Caritat 113.
Confúcio 1, 4. Epicuro 16, 139.

Copérnico, Nicolau 47, 56, 83. Espártaco 15.

Cournot, Antoine Augustin 171, 179, 180, Fawcett, Henry 214, 227.
183, 186, 192, 198, 212, 229, 232, 233, 234,
Fawcett, Millicent Garrett 226.
252, 253, 254, 255, 275, 287.
Crisóstomo, João 22. Fetter, Frank A. 202.

Culpeper, Thomas 42. Feuerbach, Ludwig 139, 140, 141, 146, 147.
Daries, Joachim Georg 49. Fisher, Irving 177, 195, 199, 201, 202, 312,
330, 331, 332, 336.
Darwin, Charles 112, 113, 114, 147, 170,
178, 184, 229, 252, 322. Fourier, Charles 130, 138, 142.

362
Foxwell, Hebert Somerton 226, 319, 335. Hawtrey, Ralph G. 336.
Friedman, Milton 319, 342, 348, 349, 350, Hayek, Friedrich August von 60, 67, 225,
352, 353, 354. 275, 286, 287, 294, 310, 314, 315, 334.

Friemar, Henry de 27, 29, 30, 31. Hearn, William Edward 176, 184.
Hegel, Georg 138, 139, 140, 146, 147, 161,
Fry, Roger Eliot 322.
166, 226, 229, 234.
Galilei, Galileu 55, 58, 59, 59, 61, 64. Heller, Walter 347.
Galton, Francis 174. Helmholtz, Hermann von 184.
Garrison, Roger W. 314. Hempel, Carl 277.
Garnier, Joseph Clement 186. Henderson, Hubert Douglas 333, 335.
Gasser, Simon Peter 49. Heráclito (de Éfeso) 7, 139.

Genovesi, Antonio 252. Hermann, Friedrich Benedikt Wilhelm von


165, 175.
George, David Lloyd 327, 328, 335.
Hicks, John R. 89, 90, 202, 269, 270, 280,
George, Henry 178, 252. 281, 343, 344, 345, 346, 347.

Gervinus, Georg G. 298. Hildebrand, Bruno 165, 166, 167.

Giffen, Robert 243. Hildebrand, Richard 312.


Hobbes, Thomas 36, 64, 65, 66, 67.
Gödel, Kurt 277.
Hobson, Ernest William 320.
Godwin, William 112, 113, 138, 142.
Hobson, John A. 336.
Goethe, Johann Wolfgang von 226.
Hodgskin, Thomas 111.
Gomberdière, Marques de La 50.
Holbach, Paul-Henri Thiry (barão
Gossen, Hermann Heinrich 179, 184, 186, d'Holbach) 139.
188, 189, 190, 191, 192, 204, 218, 221, 222, Hörnigk, Philipp Wilhelm von 47.
232, 267, 287, 307.
Hugo, Gustav 289.
Graham, Benjamin 334.
Hume, David 41, 43, 55, 58, 67, 83, 84, 85,
Grant, Duncan 323. 86, 87, 112, 125, 324, 325, 326, 333, 336.

Green, Thomas Hill 178. Hurwicz, Leonid 281.

Gresham, Thomas 41. Hutcheson, Francis 85, 86.


Huxley, Aldous 322.
Grillparzer, Franz 289.
Ingram, John Kells 170, 171.
Grimm, Jacob 289.
Jaffé, William 197, 251, 252, 254, 270.
Grossman, Henryk 350.
James Ashley, William 170.
Gruener, Johanna Marguerite 311.
Jansen, Cornelius 289.
Hahn, Frank H. 277, 280, 281.
Jenkin, H. C. Fleeming 175, 192, 215.
Hales, John 42. Jennings, Richard 184, 192, 216.
Hansen, Alvin 343, 344, 345, 346. Jevons, William Stanley 69, 144, 145, 175,
176, 177, 179, 188, 192, 193, 194, 196, 197,
Harrod, Roy F. 338, 343.
198, 200, 201, 203, 204, 205, 211, 212, 213,
Hartley, David 66. 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 222,
223, 227, 228, 232, 244, 251, 253, 259,

363
260, 286, 288, 290, 292, 293, 306, 312, Lardner, Dionysius 212.
319, 336, 337.
Lassalle, Ferdinand 144, 229.
João (o Evangelista) 22.
Lauderdale, James Maitland Earl 87.
Johnson, William Ernest 319, 320.
Lavoie, Donald C. 314.
Johnson, Lyndon Baines 347.
Law, B. 336.
Jones, Richard 170, 171, 177.
Law, John 43.
Jorgensen, Dale W. 348.
Leibniz, Gottfried Wilhelm von 184, 289.
Josef II (do Sacro Império Romano-
Leijonhufvud, Axel 344, 350, 355.
Germânico) 289.
Leontief, Wassily 186.
Joule, James Prescott 184.
Lerner, Abba P. 274, 338, 344, 345.
Jowett, Benjamim 227.
Leslie, Thomas Edward Cliffe 170, 171, 175.
Justi, Johann Heinrich Gottlob von 47, 48.
Lexis, Wilhelm 269.
Kakutani, Shizuo 280.
Lieben, Richard 200.
Kaldor, Nicholas 262, 270, 335.
Liebknecht, Karl 144.
Kant, Immanuel 139, 226, 229.
List, Georg Friedrich 50, 165, 167.
Kantorovich, Leonid V. 275.
Littlechild, Stephen Charles 314.
Kepler, Johannes 58, 60, 61, 62, 83.
Lloyd, William Foster 184, 188, 192, 213.
Keynes, Florence Ada Brown 319.
Locke, John 41, 42, 60, 65, 66, 71, 72, 82,
Keynes, John Maynard 35, 37, 39, 62, 68,
85, 88, 252, 324, 330.
103, 115, 160, 161, 171, 172, 177, 211, 230,
245, 281, 311, 314, 319, 320, 321, 322, 323, Longe, Francis D. 175, 192.
324, 325, 326, 327, 328, 331, 332, 333,
334, 335, 336, 337, 338, 339, 340, 341, Longfield, Samuel Mountiford 184, 192.
342, 343, 344, 345, 346, 347, 348, 349, Lopokova, Lydia 323.
350.
Lucas (o Evangelista) 22.
Keynes, John Neville 171, 172, 226, 319.
Lucas, Robert 348, 352, 353, 354.
Kahn, Richard F. 334, 341, 344.
Luther, Martin 47.
Kirzner, Israel 314.
Mach, Ernst 277, 290.
Klock, Kaspar 47.
McKenzie, Lionel Wilfred 280.
Knies, Karl 165, 166, 167, 169, 171, 173.
Macleod, Henry Dunning 214.
Koestler, Arthur 58.
Macrory, E. 214.
Koopmans, Tjalling C. 280.
Magno, Alberto 27, 28, 30, 31, 94.
Krelle, Wilhelm 275.
Magno, Carlos 26.
Kudler, Josef von 287.
Malestroit, M. de 50.
Lachmann, Ludwig M. 314.
Malthus, Thomas Robert 103, 111, 112, 113,
Laffemas, Barthélemy de 39. 114, 115, 116, 120, 124, 125, 126, 153, 170,
Lagrange, Joseph-Louis 188, 265. 174, 176, 177, 179, 183, 217, 329, 336.

Lange, Oskar 274, 280, 281, 343. Malynes, Gerard de 39.

Langlois, Richard N. 314. Mandeville, Bernard de 43, 66, 67.

Lao Zi 1, 4, 5. Mangoldt, Hans Karl Emil von 165, 175.

364
Mantoux, Etienne 328. Misselden, Edward 40.
Maquiavel, Nicolau 36, 64, 66. Modigliani, Franco 348, 354.
Marshall, Alfred 112, 172, 176, 177, 179, Molinos, Miguel de 289.
180, 181, 188, 193, 196, 197, 198, 200, 201,
Montagu, E. 336.
202, 211, 214, 216, 220, 224, 225, 226, 227,
228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 235, Montchrétien, Antoine de 50.
236,237, 238, 239, 240, 241, 242, 243,
244, 245, 246, 251, 274, 312, 319, 320, 321, Moore, George Edward 322, 323, 324, 325,
331, 332, 336, 337, 338. 337.

Marx, Karl 137, 138, 139 140, 141, 142, 143, Morgenstern, Oskar 203.
144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, Morgenstern, Peter 280.
153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161,
167, 177, 178, 193, 194, 229, 311. Morus, Tomas 36.

Massie, J. 50. Mun, Thomas 50.

Mayer, Julius Robert von 184. Muth, John 350, 351, 352.

McCallum, Bennett 353. Nash, John F. 280.

McCulloch, John Ramsay 111, 125, 129, Neumann, John von 203, 277, 280.
176. Nemours, Du Pont de 73.
McTaggart, John M. Ellis 322, 323. Neurath, Otto 277.
Meade, James E. 334, 336, 342. Newcomb, Simon 50.
Menger, Carl 144, 145, 170, 172, 176, 177, Newton, Isaac 55, 57, 58, 59, 60, 61, 62,
179, 192, 193, 194, 196, 197, 198, 200, 203, 63, 66, 67, 81, 82, 83, 84, 94, 95, 124, 184,
205, 214, 223, 225, 251, 277, 285, 286, 335, 336.
287, 288, 289, 290, 291, 292, 293, 294,
295, 296, 297, 298, 299, 300, 301, 302, Niebuhr, Barthold G. 289.
303, 304, 305, 306, 307, 308, 309, 310, North, Dudley 42, 65.
311, 312, 314, 315 .
Obrecht, Georg 47.
Menger, Karl 277.
Odonis, Geraldo 27, 30, 31, 183 .
Mercado, Tomás 50.
O’Driscol, Gerald P. 314.
Merivale, Herman 214.
Ohlin, Bentil G. 333, 335, 338.
Metternich, Klemens Wenzel von 289.
Oresme, Nicolau 56.
Metrie, Julien Offray de La 139.
Ortiz, Luís 39.
Mill, F. C. 336.
Ossa, Melchior von 47.
Mill, James 111, 112, 116, 123, 125, 146,
184. Owen, Robert 129, 138, 142.

Mill, John Stuart 111, 112, 123, 124, 125, Paley, Mary 226, 227, 228, 230.
126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 144, Pantaleoni, Maffeo 251.
165, 169, 170, 171, 172, 174, 175, 176, 178,
195, 196, 213, 215, 216, 226, 228, 229, 231, Pareto, Vilfredo 145, 195, 198, 199, 201,
233, 237, 252, 289, 319, 329, 330, 337. 202, 251, 264, 271, 338.
Milner 335. Parmênides (Parménides de Eleia) 7.
Minski, Hyman 355. Pasinetti, Luigi L. 343.
Mirabeau (Victor de Riqueti, Marquês de Paulo (o apóstolo) 22.
Mirabeau) 35, 73. Pearson, Karl 321.
Mises, Ludwig von 275, 314, 315, 336. Peirce, Charles Sanders 223.

365
Petty, William 1, 35, 41, 42, 44, 45, 58, 66, Roscher, Wilhelm G. F. 165, 166, 167, 168,
70, 71, 88, 94, 229. 169, 171, 173, 226, 229, 295.
Phelps, Edmund S. 348, 352. Rousseau, Jean-Jacques 65, 112.
Phillips, Alban William Housego 347, 348, Rossi, Pellegrino 186.
349, 350.
Rothbard, Murray N. 314.
Pigou, Arthur Cecil 145, 201, 224, 228,
Rueff, Jacques 333.
230, 245, 330, 331, 337, 340, 349.
Ruge, Arnold 140, 146.
Pitágoras (Pitágoras de Samos) 7.
Ruskin, John 123.
Platão 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 24, 36,
55, 91, 92, 139. Russell, Bertrand 321, 325.
Poincaré, Henri 204. Saint-Simon (Claude-Henry de Rouvroy,
Conde de Saint-Simon) 130, 138, 142.
Popper, Karl 58, 62, 315.
Salter, Arthur 335.
Prescott, Edward C. 352.
Sálvio 15.
Protágoras (Protágoras de Abdera) 6.
Samuelson, Paul A. 2o2, 269, 270, 279,
Proudhon, Pierre-Joseph 138, 142, 165.
280, 281, 344, 345.
Ptolomeu, Cláudio 55, 83.
Sargent, Thomas 353, 354.
Pugachev 275.
Savigny, Friedrich Carl von 289.
Quesnay, François 71, 73, 74, 75, 76, 77, 81,
Say, Jean-Baptiste 69, 103, 111, 129, 165,
87, 88, 106, 253.
175, 183, 184, 252, 339, 340.
Quincey, Thomas de 111, 132.
Seaver, Glayds R. 312.
Quine, Willard van Orman 277.
Shaw, George Bernard 145, 337.
Raffaelli, Tiziano 228.
Schlesinger, Karl 277, 278, 279, 280.
Ranke, Leopold 172.
Schenberg, Mário 62.
Ramsey, Frank P. 321, 327, 336.
Schlick, Moritz 277.
Rapping, Leonard 352, 354.
Schmalz 49.
Rau, Karl Heinrich 49, 165.
Schmoller, Gustav von 166, 167, 168, 170,
Rayleigh, John William Strutt 226. 172, 173, 236, 288, 293, 294, 295, 297,
298.
Reichenbach, Hans 277.
Schröder, Wilhelm von 47.
Ricardo, David 102, 111, 112, 114, 116, 117,
118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 127, Schumpeter, Joseph Aloisius Julius 124,
132, 144, 147, 152, 165, 166, 170, 171, 174, 161, 175, 220, 251, 285, 311, 312, 313, 314.
176, 181, 184, 186, 193, 196, 213, 231, 319,
Schwartz, Anna J. 350.
329, 330, 337.
Scotus, John Duns 27, 29, 30, 31.
Rivière, Paul Pierre le Mercier de la 67, 73.
Seckendorff, Veit Ludwig von 47.
Rizzo, Mario 314.
Sêneca, Lúcio Aneu 17, 18.
Robertson, Dennis H. 331, 332, 333, 335,
337, 338. Senior, Nassau W. 111, 125, 126, 176, 184,
213, 252.
Robinson, Edward Austin G. 334.
Serra, Antonio 39.
Robinson, Joan 334, 338, 344.
Seyssel, Claude de 50.
Rogers, J. E. Thorold 170.
Shadweell, J. L. 204.

366
Shaftesbury (Anthony Ashley-Cooper, Tobin, James 354.
Conde de Shaftesbury) 66.
Torrens, Robert 176.
Sidgwick, Henry 177, 216, 217, 226, 227,
Torricelli, Evangelista 55, 56.
229, 319, 322.
Townsend, Robert M. 353, 354.
Sismondi, Jean-Charles-Leonard Simonde
de 111. Townshend, Charles 87.
Skidelsky, Robert 322, 323, 339, 340. Toynbee, Arnold 170, 171, 227, 228.
Slutsky, Eugene 200, 201, 202, 243. Trosne, François Le 73, 77.
Smith, Adam 1, 9, 17, 35, 38, 41, 42, 45, 60, Trotsky, Leon 336.
67, 68, 69, 70, 71, 73, 77, 78, 81, 82, 83,
84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, Tucker, Abraham 66.
95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, Turgot, Jacques 73, 77, 87.
105, 106, 107, 111, 114, 116, 117, 121, 124,
125, 129, 132, 144, 147, 148, 165, 166, 183, Uzawa, Hirofumi 281.
212, 312, 319, 336. Varrão, Marco Terêncio 18.
Sócrates 5, 6, 8, 9, 15. Veblen, Thorstein Bunde 170, 177, 225.
Solow, Robert M. 350, 354. Viner, Jacob 338.
Sonnenfels, Joseph von 47, 48, 49, 287. Wagner, Adolph 146, 165.
Spadaro, Luis 314. Waismann, Friedrich 277.
Spencer, Herbert 170, 178, 226, 229, 234. Wald, Abraham 269, 277, 278, 279, 280.
Spinoza, Baruch 60. Waley, Jacob 213.
Sraffa, Piero 119, 158, 314, 334, 338. Wallace, Alfred Russel 113, 184.
Stamp, J. 335. Wallace, Neil 353.
Stewart, James 50. Walras, Antoine-Auguste 184, 252.
Stiglitz, Joseph E. 350. Walras, Léon 144, 145, 176, 177, 179, 180,
Stifter, Adalbert 289. 184, 188, 192, 193, 194, 196, 197, 198, 200,
203, 204, 204, 214, 220, 222, 223, 225,
Strachey, Lytton 322, 323. 232, 243, 251, 252, 253, 254, 255, 256, 257,
Strauss, David Friedrich 139. 258, 259, 260, 261, 262, 263, 264, 265,
266, 267, 268, 269, 270, 275, 276, 277,
Tarski, Alfred 277. 278, 281, 286, 288, 289, 290, 292, 293,
296, 306, 312, 343, 346.
Taylor, Fred Merchant 225, 274.
Ward, James 319.
Taylor, Harriet 124.
Weber, Max 161, 170, 172, 173, 312.
Taylor, John B. 354.
Whately, Richard 213, 216.
Thales de Mileto 7, 139.
Whewell, William 170, 179.
Thompson, Perronet 111, 179.
Whitaker, John K. 228.
Thornton, Henry 111, 112, 116, 329, 330,
331. Whitehead, Alfred North 320, 321, 322,
325.
Thornton, William Thomas 175, 192, 214,
217, 232. Woodbridge, Frederick J. E. 11.
Thünen, Johann Heinrich von 165, 181, Woolf, Leonard 322.
182, 183, 192, 200, 229, 232, 234.
Woolf, Virginia 322, 323.
Tinbergen, Jan 335.

367
Wicksell, Knut 112, 176, 198, 201, 267, 281, Yong, Arthur 43.
290, 330, 331, 333, 334.
Zassenhaus, Hans Julius 275.
Wicksteed, Philip H. 145, 198, 199, 200,
Zasulich, Vera 144.
202, 251.
Zenão de Eleia 7.
Wieser, Friedrich Freiherr von 145, 200,
201, 288, 301, 305, 307, 310, 311, 314. Zielinski, Janusz G. 275.
Winstanley, Gerrard 137. Zincke, G. H. 49.
Wordsworth, William 123.

368

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