CAPITULOT
CIENCIA E IDEOLOGIA
Discursos ideoldgicos e eficdcia critica da ciéncia
Denominani-se discursos ideolégicos os discursos que se dio
conhecer como uma representagio adequada do mundo, mas
que possuem mais um cardter de legitimagao do que um cardter uni-
amente descritivo (sobre os discursos ideol6gicos, ver Fourez,
1979; também Mannheim, 1974; Gramsci, 1959; Habermas,
973; Bloor, 1973; Douglas, 1970). Considerar-se-4 entéio que
uma proposicao é ideolégica se ela veicula uma representacao
do mundo que tem por resultado motivar as pessoas, legitimar certas
braticas e mascara uma parte dos pontos de vista e crtérios utilizados.
Dito de outro modo, quando tiver como efeito mais 0 reforgo da
coesto de um grupo do que uma descrigio do mundo.
Assim, as proposigdes “as mulheres sio seres frageis", “o ho-
mem é mais inteligente do que o macaco”, ou “os pafses desen-
volvidos exploram o Terceito Mundo” sio proposicdes ideolégicas
na medida em que 0 que é visado principalmente por elas é uma
certa legitimacio. Ao dizer que o homem é mais inteligente do180 GERARD FOUREZ
neira geral a um conceito
de inteligencia mal definido. Do mesmo modo, quando se diz que
0s paises desenvolvidos exploram o Terceiro Mundo, 0 conceito
de exploragio € também vago. E nfo precisamos falar da repre-
sentagdo do mundo veiculada quando se fala das mulheres como
seres frégeis.
Os efeitos dos discursos ideol6gicos podem, por vezes, ocul-
tar a semelhanca de praticas que possuem importantes pontos
em comum. Assim, caso se pega uma descrig&o de uma pratica
mediante a qual as pessoas deixam alguém dispor de uma parte
intima delas mesmas, de sua criatividade profunda, e isto por
dinheiro, muitos sao levados a pensar na prostituigo. E de fato
essa pratica corresponde muito bem A descrig&o proposta. Mui-
tos poucos, porém, se dio conta de que o contrato de trabalho
também corresponde ao mesmo esquema: pelo dinheiro, as pes-
soas aceitam vender a sua ctiatividade e deixar outra pessoa a
decisdo do que fazer com ela. A maneira pela qual se mascaram
essas semelhangas € tipica de um efeito ideoldgico. O mesmo
corre ao se falar da prética de um governo que envia milhares
de pessoas a milhares de quilémetros, em um clima pouco familiar
e onde muitos perderio a vida. A maioria dos ocidentais pensaria
‘no campos da Sibéria; mas o envio de jovens americanos ao Vietn’,
durante os anos 60, corresponde & mesma descrigéo. O que faz
‘com que essas priticas parecam diferentes € um efeito ideolégico
Por meio do qual as oposic6es entre as duas situagdes sio privi
giadas e as semelhancas dilufdas,
Critica da ideologia pela ciéncia
Fala-se de uma critica da ideologia quando se coloca em evie
dencia os pontos de vista, as origens ¢ 0s critérios subjacentes aos
discursos ideoldgicos. Se observo, por exemplo, que a proposico
sobre a fragiiidade das mulheres esta ligada & representagio domi-
A. CONSTRUGAO DAS CIENCIAS 7
inante que faz a seu respeito ut
im funcionamento ideol6gico, criticando-o. Nos capftulos ante-
riores, fizemos a critica ideoldgica de uma concepgo absoluta da
tividade cientifica e vimos como ela se ligava A diluigao dos
projetos humanos e dos interesses veiculados pelos paradigmas
icientificos.
O discurso cientifico pode servir para
(Kemp, 1977; Fourez, 1979b; Rasmont, 1987). Pode-se assim, por
“meio de uma ruptura epistemol6gica, definir de maneira operacio-
rnal o que se entende por “inteligente”. Pode-se estabelecer, por
- exemplo, uma bateria de testes da qual dit-se-4 que mede a
_ gencia. Torna-se possivel entdio medir se, nesse Ambito especifico,
ohomem é mais inteligente do que 0 macaco. Existe, porém, uma
distancia entre 0 conceito global de inteligéncia que funcionava de
~ maneira ideol6gica para legitimar uma certa relagio entre o homem
~ eomacaco eo conceito de inteligéncia definido de maneira precisa
~ e pontual gracas a uma bateria de testes. O segundo é apenas uma
rradugdo parcial do primeiro. $6 se refere a testes locais ¢ no pode
jamais fornecer uma proposigio mais geral.
‘O mesmo ocorre com o conceito de exploragio. Se, por exem-
plo, define-se uma explorago de um pafs por um outro como uma
situagio na qual se transfere uma quantidade maior de délares
do pais explorado ao pats explorador do que o contrério, pode-se
construit um teste experimental para verificar se existe de fato
explorago. Contudo, essa definigdo “cientifica” (apés a ruptura
epistemolégica) néo recobre a proposigio geral anteriormente
dada. Assim mesmo, o seu interesse consiste em que, A questo
precisa de saber se hé uma maior quantidade de délares indo da
‘América do Sul para a do Norte do que o contrério, posso respon
der com certa preciso, ao passo que a proposigio ger
rica do Norte explora a América do Sul?” nao pode ser testada.
De modo semelhante, diante da proposigio ideol6gica “a raga
amarela é superior & raga branca’, podemos encontrar definigoes
‘mais precisas, ligadas a testes, que fornecerdio contetidos passiveis
de verificagdo pontual a essa tese ideoléyica global. O carterGERARD FOUREZ
ideolégico do conceit geral de “taga an
desvendado quando se percebe que nao existe definigao cores.
Pondente no ambito especitico da biologia (Rasmont, 1987). Do
mesmo modo, se alguém afirma que as financas do Estado esto
em perigo por causa do excesso de desemprego, pode-se elaborar
testes para ver até que ponto semelhante proposigdo se sustenta,
Pode-se comparat, por exemplo, as perdas para as finangas pébli,
cas devidas ao desemprego aquelas devidas & fraude fiscal. Testes
como esse podem ter efeitos criticos importantes. E possivel ain-
da, diance do discurso sobre a previdéncia social ou sobre 0 isco
das centrais nucleares, elaborar testes baseados em resultados
cientfficos. Assim, pode-se demonstrar que, se uma central cor-
responde a determinado modelo tedrico, ela ndo pode atingir as
massas criticas, consideradas pela teoria como necessérias para
que ocorra uma explosio atémica.
A reducio de uma proposigdo global a uma proposigéo par
ticular precisamente definida tem vantagens evidentes mas tam.
‘bém limites. O principal inconveniente provém de que a segunda
suprime o sentimento presente no primeiro. E essa supressio acarre-
ta frequentemente um efeito de “recuperagio”. Se, por exemplo,
um estudante diz que os hordtios dos exames so malfei fos, temos
uma proposigao global exprimindo um sentimento vivido. A fim
de precisar essa proposigao dentro de um Ambito conceitual mais
elaborado, seré preciso introduzir critérios para definir o que se
entende por “horirios malfeitos". Depois desse trabalho, é pro-
vavel que os estudantes se sintam “recuperados” porque eles tém
a impressdo de que o trabalho de conceitualizagéo, com as re-
dugoes inevitaveis que ele comporta, eliminou o sentimento de
profundo aborrecimento (raslebol) que tinham, depois de todas
essas precisOes.
Herbert Marcuse, em seu livro O homem unidimensional (1968),
mostrou de que modo a nossa sociedade moderna recupera as
essoas, conduzindo os seus protestos globais ao discurso preciso
Porém unidimensional, da racionalidade dos conceitos definidos
de acordo com paradigmas. Em tempos de crise econdmica, por
18
= a traducao de seu
€ apenas uma maneira de fazé-los
se calarem, recusando escutar 0 seu sentimento de que a situa-
19 torna-se intolerdvel. O discurso racional, desse modo, pode
ir muitos protestos, pelo menos até 0 momento em que o
| sentimento explode, mas entao com violéncia.
A ciéncia €, portanto, um dos métodos poderosos para
“ctiticar as proposigdes ideolégicas: se estas nfo podem jamais ser
wadas ou falseadas em sua globalidade, pode-se, dentro de uma
xspectiva voluntarista popperiana, decidir efetuar determinados
stes que podem colocar em evidéncia os limites de certos discur-
ol6gicos.
a Coatteagie cientifico-t6cnicas podem ser mais ou menos
“convincentes na critica ideologica. Blas 0 so com frequéncia me-
nos do que acontecimentos do ctiiano, Assim, se um dscuso ~
necessaiamenteideoligco~ sobre a suranga de um navo af
mava que ele no podia naufragar com um tempo calmo, be tar
im naufragio como o do Herald of Free Enterprise para que ele seja
“considerado inadequado. Porém, colocar-se-fo em diivida 0s i
¢ursos que afimam, com base em um modelo rénico-cenitico,
4 seguranga ou inseguranca de uma dada stuago: sabes bem
| como os pontos de vista entram nas argumentagies e, rincipal-
ente, aqueles que conduzem & modelizagio, a fim de dar crédito
_rapidamente a esses angumentos. Quail os intreses em jog0
__ sho importantes como no caso das centrais nucleares depo s de
‘Chernobyl — vé-se 0 tempo todo oporem-se discursos ideolégicos
baseados no cotidiano e aqueles que utilizam modelos técnico-
-cientificos. Precisaremos voltar a esse ponto ao examinarmos 0
dos especialistas.
ST crete iltimos séculos, a ciéncia se revelou instru-
mento extzemamente poderoso para erccat a deoloizs gragas
| a seus testes pontuais, puseram em questo os abusos de sal =
| presentes em muitos discursos éticos, religiosos, politicos ee
| desse modo que ela obteve o reconhecimento de sua capacidade
de luta contra muitos “obscurantismos”. Nao obstante, ela mesma