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Alexsandra Sinnott

Pierre Bourdieu é definitivamente um dos mais importantes e prestigiados cientistas sociais


de seu tempo. Sua proposta metodológica de uma união entre teoria e pesquisa deu nova
luz à produção teórica nas ciências sociais, rejeitando a idéia, encarnada por Sartre, de um
“intelectual total”, capaz de opinar sobre todos os assuntos sem questionar sua posição
social e privilégios e sem fazer o uso de pesquisas empíricas para embasar sua tese.
Bourdieu trabalha com temas de pesquisa bem delimitados e com alto rigor metodológico,
abrangendo as mais diversas áreas a situações da vida social. Sua origem, que parte de um
meio majoritariamente camponês com traços pequeno-burgueses, para o topo do sistema
acadêmico francês o inspira a construir uma sociologia crítica da instituição escolar e
contribui para a formulação de uma teoria geral do “poder simbólico”, que se refere ao
processo de dominação presente nas relações sociais, que cria desigualdade e a
naturalização da mesma tanto para os dominantes como para os dominados.
Através das obras de Marx e Durkheim, o autor ressalta a influência das estruturas sociais,
que delimitam e impõem uma realidade que escapa à vontade e consciência dos indivíduos,
porém, o autor também frisa a importância das intenções e representações sociais para a
explicação sociológica, fato esse que era ignorado pelos autores acima citados.
Buscando articular subjetividade e objetividade, através de uma relação dialética, Bourdieu
apresenta os conceitos de campo e habitus. Todos os indivíduos são socializados em
condições próprias de seu meio social, algo que independe de sua vontade e que antecede
a sua existência, por exemplo, quando conhecemos alguém podemos presumir sua classe
social através de seu vestuário, gesticulação, modo de falar, pensar, etc. tais traços da
condição de existência são internalizados, compondo a subjetividade dos indivíduos, e é a
partir disso que o autor fundamenta seu conceito de habitus. Ao contrário das noções
estruturalistas clássicas presentes nas teorias de Marx e Durkheim, na visão de Bourdieu os
agentes individuais deixam de ser apenas o resultado das estruturas objetivas e passam a
fazer parte também da própria estrutura, podendo circular de um campo social a outro,
adaptando-se a situações específicas, e resultando em mudanças na objetivação estrutural
em que estão submetidos, seja para subverter o status quo ou sucumbir à ele. Podemos
pensar o exemplo de uma pessoa de uma comunidade de origem humilde, que tem sua
ascensão social através da política, e a partir disso começa a incorporar o jeito de agir,
pensar, se apresentar e se comunicar de uma classe mais abastada, contemplando seus
interesses e vontades, e, a partir disso, começa a relegar os interesses e necessidades de
sua classe de origem.
Considerando o sentido vago que dá-se a noção de “sociedade”, o autor pensa o mundo
social através da noção de espaço de posições, onde a desigual distribuição de bens e
recursos que vai delimitar as diferentes posições sociais, esses bens e recursos, que
podem ser materiais ou simbólicos, são disputados por diferentes agentes em diferentes
posições, e é através da análise dessas espaços de disputa que Bourdieu conceitualiza a
noção de campo, esses campos podem compreender o âmbito religioso, artístico, científico
e econômico. Essa competição e escassez de recursos, que está intrinsecamente ligada a
cada campo, faz com que alguns tenham mais poder sobre os outros, a essa espécie de
poder o autor denomina como “capital”.
Os principais tipos de capital, para o autor são o capital econômico, referente a posses
materiais e poder aquisitivo e o capital cultural, relacionado à educação formal socialmente
valorizada, e pode tanto representar uma forma incorporada (p.ex habilidades verbais), uma
forma institucionalizada (p.ex um diploma em uma universidade) ou objetivada (p.ex possuir
uma vasta biblioteca em casa.) (PETERS, Gabriel. Pierre Bourdieu (1930-2002). Porém, o autor
afirma que o funcionamento de qualquer capital depende de sua aceitação enquanto forma de
poder legítimo pelos agentes em um determinado campo, o que ele chama de capital simbólico,
este capital é capaz de dar reconhecimento e prestígio para quem está no topo em um
determinado campo. Os diferentes tipos de capitais nem sempre estão associados ao poder
aquisitivo, porém é impossível dissociar sua legitimação e manutenção da classe social
dominante.
A competição dentro dos campos faz com que muitos agentes aspirem acúmulo de diferentes
modalidades de capital ou também a conversão de um tipo de capital para outro (p.ex o
investimento em educação a fim de conseguir um emprego com melhor remuneração,
convertendo o “capital cultural” em capital econômico). Os diferentes campos e a alta
pluralização dos mesmos, advindas da modernidade, faz com que cada um deles opere a partir
de suas próprias regras e lógica e compreendam diferentes tipos de investimento (p.ex agentes
ligados ao campo político terão diferentes aspirações e modos de operar de agentes ligados ao
campo acadêmico), e essa relativa autonomia dos campos contribuem para a produção
diferentes formas de subjetividade, ou habitus.
As diferentes posições que os agentes ocupam em um campo, advindas da distribuição
desigual de capital em um campo específico, causa uma divisão entre dominantes e dominados,
onde os dominantes desenvolvem estratégias para a manutenção da ordem que os favorece, e
os dominados ficam entre a escolha da reprodução de uma lógica que tenta excluir os novos
aspirantes ou uma tentativa de subversão desse status quo.
Os dois grandes objetivos da teoria de Bourdieu, era de, através da relação entre habitus e campo
poder traçar uma relação dialética entre objetividade subjetividade, buscando superar as
limitações contidas nessas duas abordagens teóricas e descobrir como as relações de
dominação são legitimadas e reproduzidas através do poder simbólico, ou seja, como o poder
opera através de elementos subjetivos como a arte, cultura, ciência, religião, linguagem, etc.
fomentando uma teoria sociológica crítica. Outra grande contribuição do autor foi uma reflexão
quanto a própria produção teórica nas ciências sociais, trazendo à tona a influência da trajetória
do pesquisador na elaboração de suas pesquisas e teorias, tanto para sua elaboração como
para sua legitimação e enfatiza a necessidade da utilização de instrumentos de objetivação,
como a etnografia, estatística e investigação histórica em conjunto da elaboração teórica.

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Luc Boltanski foca no estudo da sociologia da capacidade crítica, pontuando que diversas
situações sociais podem ser analisadas a partir do requisito de justificação da ação. Devido
à pluralidade de modos de justificação, esse acaba sendo um terreno de disputas, e a partir
dessas disputas se torna possível uma reflexão quanto aos modos de justificação e novos
acordos podem ser estabelecidos, que contemplam um maior número de agentes, podem
ser estabelecidos.
Divergindo da “sociologia crítica” de Pierre Bourdieu, Boltanski fundamenta seu quadro
teórico em função de uma “sociologia da crítica”, mostrando como as pessoas recorrem à
“ordens de grandeza” (cités) para legitimar suas elaborações críticas em situações
específicas. Ao contrário de Bourdieu, que estabelece a importância das relações de
dominação e de interesses estratégicos para a produção da legitimidade, Boltanski encara
essa produção como resultante da habilidade cognitiva dos atores em ao seus meios de
justificação para embasamento da crítica.
Para poder fundamentar sua crítica, o indivíduo, ou o coletivo, precisa elaborar justificações
que sustentem essa crítica, para que a disputa seja feita a partir de pressupostos
inteligíveis, a fim de possibilitar os acordos dentro de uma ordem pré-estabelecida. Para
que esses acordos sejam possíveis, as pessoas precisam abdicar de sua singularidade e
concentrar-se em uma generalidade que vá além das situações e pessoas a qual elas estão
habituadas.
As disputas sobre o justo sempre estão atreladas a um desacordo e a importância ou
grandeza relativa dos diferentes agentes que vai delimitar o que é aceitável ou não em uma
determinada situação e para discutir isso o autor elabora a noção de grandezas ou “cités”
para sustentar sua tese. As cités estão presentes em diferentes esferas da vida, por isso é
necessário um modelo comum (modele de cité) para explicitar os requerimentos comuns à
diferentes ordens e poder estabelecer ordens de equivalência.
Essas diferentes esferas da vida, são categorizadas por Boltanski como “mundos comuns” e
estão divididos em:, o mundo da inspiração, o mundo doméstico, o mundo do renome, o
mundo cívico, o mundo mercantil e o mundo industrial. Esses mundos operam a partir de
sua própria lógica de ordem e grandeza, onde diferentes aspectos da vida social são mais
valorizados. No mundo da inspiração a grandeza está relacionada a qualidades como
criatividade, paixão, não conformismo e ingenuidade; No mundo doméstico a grandeza das
pessoas depende de uma hierarquia de confiança que baseia-se em uma cadeia de
dependências pessoais (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2007) e para avaliar a grandeza de
alguém é necessário saber qual lugar nessa rede a pessoa se encontra (por exemplo, em
um modelo de lar patriarcal tradicional a figura do pai será dotada de maior grandeza do
que a do filho); No mundo de renome a grandeza é baseada na opinião alheia, no
reconhecimento dos outros sobre o agente; No mundo cívico, as disposições pessoais ficam
em segundo plano, a prioridade é paz civil, que depende da autoridade de um soberano que
assegura o bem comum e essa autoridade é representada não por um indivíduo, mas sim
pelas federações, comunidades públicas, representantes ou responsáveis; Já o mundo
mercantil estabelece relações entre os indivíduos a partir da mediação de bens escassos,
que é necessária a todos, esse mundo é composto por compradores e vendedores, e a
grandeza recai aos mais ricos; No mundo industrial é a eficiência que confere grandeza e os
especialistas são os estimados.
As cités são resultado da interpretação de algumas obras clássicas da filosofia política,
todos esses “mundos” possuem sua própria lógica de funcionamento, hierarquia e valores, e
seu próprio senso de justiça, e a crítica pode vir de dentro desses mundos, ou também
podem vir do seu exterior, por isso a capacidade crítica pode ser vista também através de
uma perspectiva antropológica.
Hoje, a maior parte das críticas relaciona dois ou mais mundos, já que os agentes circulam
entre esses mundos distintos. Podemos pensar o exemplo de algum líder político que
confere cargos públicos para familiares, colidindo o “mundo doméstico” e “o mundo cívico”,
criando assim uma situação de injustiça que estará passível de crítica perante seus pares e
eleitores. Essas situações ambíguas são mais propensas a críticas e através do
intercruzamento das cités pode-se extrair uma matriz da qual se pode construir críticas
legítimas sobre a hierarquia e injustiça dentro e fora desses mundos comuns, e como a
grandeza se dá dentro e entre esses mundos.

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Alemão Ulrich Beck, traz uma nova teoria social ao final do século XX e início do século
XXI, através da publicação de "A sociedade de risco" (2011a) abrangendo uma nova
perspectiva reflexiva sobre o processo de modernização e introduzindo o que chama de
teoria da sociedade global de riscos. Focando na questão ambiental para a compreensão
de uma sociedade global, o autor procurou formular uma teoria geral que abarcasse a crise
ecológica, o papel do Estado, a soberania, o nacionalismo e as conjunturas da pesquisa
científica. Tirando a centralidade das classes sociais de sua análise, o autor enfatiza os
riscos ambientais como determinantes para definir a sociedade de risco, riscos esses que
ameaçam as condições de vida na terra de forma profunda, irreversível e muitas vezes de
forma invisível, que ultrapassam as divisas de classes sociais, podendo afetar toda a
humanidade. O autor revela as consequências da aliança entre ciência e indústria, que pelo
“progresso” releva ou é incapaz de calcular com precisão as consequências em curto e
longo prazo, dos avanços científicos em prol do desenvolvimento econômico, como no caso
da energia nuclear, os agrotóxicos, ou também, mais recentemente, a pandemia do
Coronavírus.
Para o autor, os riscos não simbolizam as catástrofes, mas sim sua antecipação, e isso
pode resultar tanto em graves consequências como também em novas alianças e novas
formas de se fazer política, deixando de pensar a subversão das classes sociais como a
única possibilidade de mudança social, e confiando a possibilidade de mudança estrutural
nesses novos agentes sociais e políticos e em suas alianças.
Buscando escapar da visão universalista contida em “A sociedade do risco”, Beck passa a
pensar a modernidade de forma múltipla, já que o processo da modernização não ocorre de
forma linear e semelhante em todos os lugares. O autor também pontua que os riscos
ambientais não significam necessariamente uma oposição entre natureza e sociedade,
trazendo à tona o aspecto social e arbitrário do processo de delimitação do que é ou não
um risco, o que é minimizado e que é maximizado e o que muitas vezes nem se conhece, e
também o papel da indústria nesta deliberação.
Beck traz também o conceito de cosmopolitanização, que contempla o aspecto cosmopolita
das sociedades, que se dá de forma compulsória e involuntária. O processo de
cosmopolitazação significa globalização desde dentro das sociedades nacionais, com
transformações importantes nas identidades cotidianas, já que os problemas globais
passam a ser parte de nosso dia a dia, e das estruturas de governança global. (GUIVANT,
Julia, 2016)
Apesar da pretensão de uma união entre nações para uma possível resolução para os
problemas ambientais, o autor pontua que quem toma as decisões sobre essas questões
não são as mesmas que sentem os efeitos, e é preciso sinalizar a discrepância entre os
países do hemisfério norte e sul, visto que muitos destes riscos são resultantes de uma
lógica econômica que privilegia o hemisfério norte, e que as consequências das catástrofes
climáticas e possíveis pandemias afetam de forma muito mais significativa os países
periféricos, e principalmente as classes desfavorecidas, como no caso das enchentes
provocadas por fortes chuvas no estado do Rio Grande do Sul em 2023 e início de 2024.
Contudo o autor mantém uma visão otimista quanto à situação, acreditando que essa nova
modernidade ambiental e cosmopolita pode resultar na superação de fronteiras e que novas
formas de se entender a prosperidade, a economia e o fazer político podem surgir desse
novo arranjo, desde que os “excluídos” sejam contemplados nesses processos de decisões,
assim, potencializando a ação coletiva.

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Traçando uma comparação entre os autores vemos que Bourdieu desenha sua teoria
através de um prisma crítico, contemplando as influências das estruturas objetivas na
formação da subjetividade dos agentes sociais e na manutenção de desigualdades, mas
também considerando a influência da subjetividade em possíveis mudanças que podem
desafiar ou manter o status quo, seja por um prisma individual ou coletivo.
Já Boltanski, busca, através de uma aparente neutralidade, investigar o processo cognitivo
do qual resultam os tipos de justificação dos agentes sociais quando tecem suas críticas,
tendo enfoque na subjetividade dos mesmos.
Ulrich Beck, por outro lado, ultrapassa a questão crítica e busca novas formas de se
compreender a modernidade, com enfoque na questão ambiental, e no potencial de novas
alianças entre atores sociais para uma nova configuração social, de resolução de problemas
e superação de fronteiras.
Apesar de suas oposições e contradições, os teóricos acima citados trazem grandes
contribuições para o pensamento sociológico, e a combinação dessas diferentes ideias
pode resultar em novas formas de se pensar e agir enquanto cientista social.

Referências:

PETERS, Gabriel. Pierre Bourdieu (1930-2002). In: TELLES, S.; OLIVEIRA, S. Os


sociólogos: clássicos das Ciências Sociais. PEtrópolis: Vozes, p. 188 - 215, 2018.

BOLTANSKI, L.; THÉVENOT, L. A Sociologia da capacidade crítica. Antropolitica, v. 23, n.


2, pp. 121-144, 2007.

GUIVANT, Julia. O legado de Ulrich Beck. Ambiente & Sociedade, v. 19, p. 227-238, 2016.

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