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s Agricultores do Vale do Mondeg¢ ——— Saberes e Sabores do _Arrox Carolino do Baixo Mondego Breve historial sobre a Cultura do Arroz nos Campos do Mondego Irene Vaquinhas Ascii ds Agrares do Vale do Monde Il - Breve historial sobre a Cultura do Arroz nos Campos do Mondego ‘A cultura do arroz.no Baixo Mondego:sua evolugio histérica "Anda hi meio século desconhecida nos eamposde Coimbra|a eultra do aro prineipion a crescer ea desenvolverse em tio rid eseala, que bi dex anos ocupava ase a décina parte dt ‘asta superficie sujeta ds inundagdes do Mondego” ei in ire Min 56 Ag 174, pp 38-32. 1 Acultura do arrox.é muito antiga, tendo sido, segundo alguns autores, introduzida ina Peninsula Ibérica pelos arabes, havendo referéncias 20 seu consumo desde a época medieval 2. Nao ha datas precisas quanto 4 introdusio da cultura do arroz nos Campos do Mondego. Fontes historiogriticas diversas permitem concluir que o arroz ja cra cultivado na segunda metade do século XVIII nos campos do Mondego. Os Frades do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (Prades Crizios), um dos mais poderosos proprietitios de terras nos Campos do Mondego, praticavam a orizicultura na sua Quinta de Foja, propriedade que funconou como quinta experimental para vrias culturas, entre as quais 0 arroz. No ano de 1760, os priores dos mosteiros, de S. Teoténio de Viana, 8. Jorge ¢ S. Francisco da Ponte pediram a0 Mosteiro de Santa Cruz uma esmola de arroz “da abundincia que o Senhor fora servido dar-lhe no campo de Foja”:, No ano seguinte, em 1761, os Prades Crizios mandaram, fazer um moinho destinado a descascar 0 arroz que se produzia nessa quinta, Registe-se 0 facto de na Quinta de Poja ainda hoje persistir essa actividade. O desenvolvimento da orizicultura nos campos do Mondego, provavelmente desde 6 século XVII, teve a marca empreendedora dos Frades Crizios. 1 - Maria Margarida Sobral Neto, Tense Conflite. Rao de Caimbre 1700-1834, Visew, Palimage Eitores, 1997, p. 174 Gobre documentagio do Mosteiro de Santa Cruz, disponivel no Anquivea Nacional da Torre do Tombo). 5 Solero Sars do Arex Carlin do Ba Mond 3 - De acordo com palavras proferidas, no ano de 1804, pelo insigne botinico e professor da Universidade de Coimbra, Avelar Brotero (1744-1828), 0s terrenos pantanosos de Montemor-o-Velho eram dos mais antigos na produgio do arroz, 4A orizicultura manteve-se como cultura marginal nos campos do Mondego, até meados do século XIX, comecando a ampliarse a partir de 1856, progredindo desde entio, com avangos ¢ recuos, até se alargar ji no século XX. Em Oitocentos, ‘a extensio da cultura do arroz foi favorecida por vitios factores: a alta de pregos do arroz na segunda metade do séeulo XIX; 0 aumento do seu consumo sobretudo nos meios urbanos; os rendimentos alcangados, mais clevados do que nas culturas tradicionais, como o milho, tendo sido ainda favorecido por um sistema de pautas alfandegirias proteccionistas da produgio nacional. 5~Na segunda metade do século XIX, o alangamento da étea orizicola andou de par com os protestos das populagées por causa das doencas que aquela cultura ccausava, em particular o paludismo, de grande in-pacto na salubridade dos povos {que residiam nas cercanins. Durante este perfodo, foram iniimeros os levantamentos populares contra os efeitos perniciosos da orizicutura. As populagios recusavam- se a ver transformadas as suas aldeias "numa segunda Aftica onde as febres |... fizeram o seu quartel general", como referiam, em 1872, os representantes da Junta da Paréquia de Vila Nova da Barca (0 Conimbricnse de 29 de Abril de 1872). No entanto, a mé vontade dos povos contra esta cultura foi-se atenuando & medida «que @ insalubridade diminuia com a drenagem dos terrenos,o tratamento da maliia por meio do quinino ¢a utilizagao de larvicidas nos arrorais 6 ~ Impulsionados pelos rendimentos elevados ¢ “apadrinhados” pelo Estado, (0s campos de arroz multiplicavam-se, ocupando terrenos pantanosos, improptios para outros cultivos, ou substituindo-se a0 milho ou a outros géneros, em terrenos cultivados. Assim, se de acordo com a "Comissio de Inquérito dos Arrozais", 0 ntimero de campos de arroz existentes no concelho de Coimbra, em 1868, reduziam-se a sete propriedades localizadas em terrenos pantanosos, is ae sii dr Aeris do Vee Monde ‘enquanto em Montemor-o-Velho ocupava 561 propriedades. Mais precisamente, neste concelho, ocupava, no ano de 1871, uma dea de 99,3 hect,, subindo para 130,5 heet,, em 1881. 7- A-cultura voltou a beneficiar, a partir dos anos 1930, de um regime pautal que Ihe era favorivel e da garantia dos precos do escoamento da producio através da “Comissio Reguladora do Comércio do Arroz”. De 1933 ao final da década de 1940, as areas cultivadas mais que duplicaram. Foi, porém, a partir de 1950, com as obras de regularizacio do Mondego que o acréscimo da rea cultivad acentua. No campo da Carapinhira (coneelh de Montemor-o-Velho) considerava- se que 0 desenvolvimento da cultura, nos anos ‘Trinta, fora de tal ordem “que parece loucura” como escreviam alguns autores?, reconhecendo-se, a0 tempo, ser co arroz considerado uma “cultura siea”, por oposigio ao milho, tido como “cultura pobre”. Por volta de 1950, 0 arroz, no Baixo Mondego, ocupava “a volta de 42% = 6000 heet. ~ da sua ftea. A partir dos anos setenta hi um aumento significativo, subindo para 54% da sua area total, chegando nos anos noventa a 61%", Em termos de rea de exploragio e em niimero de produtores, o concelho de Montemor- o-Velho é aquele que contribui com a maior parcel, sendo coriserado 0 “coragio” da orizicultura do Baixo Mondego, crude Avambuja, “A cultura doattoz no Vale do Mondego. Suas vantagens © 51, p37 2- José Antonio F inconvenient, Gage das Adis 1” 2212, 5 Carlos Silva, Clima «ong we Bator Mong, Faculdade de Letras ea Universidade de Coimbea, Coimbra, 1995 (Dissertagio de Mesteado em Geogratia), p. 29-32. Sabres Sabors do Arex Carle de Baixo Mando 2-A orizicultura no Baixo Mondego: métodos e teconologias “EHavendo sd requerido por Masi no Monteiro Gr |... eenga para monta um estabelecimento desta a descaca arvox por mia de uma machina e cali de bisa pressor um terreno se | 2 de Deseo de 1895 Angi dvd dc Caimi, Gar Chil dc Cit, i de Abii 2-2 1 - As referéncias mais antigas a0 arroz cultivado nos campos do Mondego referem tratar-se de duas variedades: 0 arroz.“‘vulgarmente denominado praganudo” e “a orysa nautical, Vand”, ou seja, “0 arroz conherido no mercado pelo nome de Caroline” Alls as religiosas do Convento de Nossa Senhora do Carmo de Tentiigal consumiam sta qualidade de arroz, sendo intimeras as referéncias a0 “arsos Carolino” nos seus Livros de Receitas e Despesas da segunda metade do Séc. XIX. Apenas a titulo exemplificativo refir-se que, em Julho de 1855, as ditas religiosas aduiriram, pelo prego de 1920 réis, “huma Artoba” de Arros Carolino”®. Sao também comuns as referéncias a0 “arros da terra”, ou seja, 20 arroz. produzido na localidade ou nas suas imediagies. 2- Accultura do arroz veio alterar a economia de base agro-pastoril praticada na zona do Baixo Mondego, fundamentada na cultura do milho e na c iio de gado ‘manadio, fazendo inclusive desaparecer antigas priticas comunitii compiscuo. Desde a sua difusio, no século XIX, no Baixo Mondego, a cultura do arroz.teve um papel preponderante no tecido econdmico da regio, fazenclo nascer ¢ desenvolver a indistria do respectivo deseasque iste tanto se efectuava em ppequenas unidades (moinhos e azenhas) como em fabricas. A maior parte dessas tunidades fabris estava integrada em exploragdes agricolas. Entre outros casos que se poderiam mencionar refira-se o caso das ftbricas Names ¢ Nunes, em Gates, em. 4 Henrique da Cunha Mattos de Mencla, 1 Catan de Arn wo Ditto de Coimbra, Relator ds “Tralee Commis mend or Praia de 16 de Sctombr ch 1882 gpresentae a Sa Erle 0 Senor Mini dat Oras Pablias, Lisboa, Imprensa Nacional, 1883, p51 5 - AUC, Live Magizra de Reta e Despesa do Canveto de Nossa Senbor do Carmo de Tega 1852. 1955, 1. 40, is spi dos Agrees do Vale do Mondo laboragio desde 1917; da empresa Pairio Rosete Suers, Lala, fundada em 1929, também na freguesia de Gatdes, ou ainda, dla sociedade Figjas¢ Irma, instalada na localidade de Pedrogio do Pranto, em 1940, tendo o seu equipamento tecnologico sido adquitido a0 anterior proprietario de uma fibrica de deseasque que ji Iaborara no local 3—A cultura do arror.constituia para a populigio ribeirinha uma importante fonte de rendimento. A ceifa do arroz era feita manualmente, por ranchos de homens € de mulheres. De um modo geral, enquante os homens preparavam os terrenos € 08 semeavam, as mulheres ceifavam o artoz. Tanto para eles como para elas, 0 trabalho era arduo, Esse trabalho fatigante foi no raro amaldigoado, como se pode verificar em versos populares alusivos as terras de Montemor ¢ recolhidos por Santos Conceigio: "O inferno que ai vai / Rails parta o sol", 6 Augusto dos Santos Conceicio, Tera dt Monteware Vib, Coimbea, 1944, p. 271, 5 Taber Sabor de Aree Carle do Baise Monde 3-O impacto da orizicultura no patriménio local "0 arroz, am de iment, hoje qunee impressive, patra cultura, € arte, elemento Festiva | oo ¢ um forte factor de ientidade || sae jt, Cia Mal de Neen oe, 28, p62 1.-O arroz esti na regiio do Baixo Mondego associado a uma gastronomia rica, aqui ¢ akém sobrevivente de velhos sabores, em que entram as sopas suculentas, associando aos peixes do tio, as carnes variadas e que terminam invariavelmente na dos: saberes e hibitos culi gulosa de tradicfio conventual. Entre a grande pandplia de receitas, -se, entre outtos, a canja de arroz frios desta frea regi com bacalhau, 0 arroz de azedos, 0 artoz de lamprei de pato, o arroz de sardinha ou, no campo dos doces, 0 arroz doce de casamentos. Iguaria de antanho seria o “arroz de leite”, consumido pelas frei de Nossa Senhora do Carmo de Tentiigal que tantas vezes 0 mencionam nos seus do Convento documentos contabilisticos. Assim aconteceu em Julho de 1854, aludindo-se a “Acros de Leite, e Doce p* o Cha’. 2. Os campos de arroz ja fazem parte do patriminio do Baixo Mondego: da sua paisaggem, da sua gastronomia, do seu folelore, da sua etnografia, da sua economia, sendo representativo da identidade local. Unge preservar, entre tantos outros testemunhos materiais e imateriais, as dangas das mondadeiras, as tradigoes, associadas is colhcitas (a “penhora do arro2”, 0 ensacamento...), 0s testemunhos orais da realidade vivida pelos trabalhadores, 0 que resta do espélio laboratorial do antigo posto de combate ao sezonismo de Montemor (a “Casa das Si ou tio 56 utensilios, as maquinas agricolas ou a a ntigas unidades industria descasque que podem ser reactivadas como niicleos muscolbicos. Irene Vaguinbas Professora asociada com otto de Agregada da Faculdade de Letras da Universidade ce Coimbra 7 AUG, Litre Magitral de Resta © Depeca do Convene de Nosca Senhora do Carmo de Ventigal 1852-1855, 1.25. Mit aes cia der Aeatres da Valk do Mone Bibliografia A Cultura do Arroz, no Distrito de Coimbra, Relatorio dos Trabalbos da Commissio no -meada por Portaria de 16 de Setembro de 1882 apresentado a Sua Exeellencia 0 Senbor Ministro das Obras Publicas, por Henrique da Cunha Mattos de Mendia, Lisboa, Imprensa Nacional, 1883. As nossas receitas de arrox., Rotary Club de Montemor-o-Velho, 2004. AZAMBUJA, José Ant6nio Ferreisa de, “A cultura do arroz no Vale do Mondego. Suas vantages € inconvenientes”, Gaeta das Aldeas, 0" 2212, 1951 Sugenio de Castro, A Agriautura Portuese através dos tempos, LNIC, Lisboa, CASTRO, Armando de "Onigiultur, Dicioninio de Histiria de Portugal, Dirigido por Joel Serro, vol. III, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1968, pp. 243-245. CORREIA, Angela Pinto, Patio Rost Ss Ll. Hist de na npren de descque de arroz, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2003. 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