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a WN LOW VNEA KON | ma Yoraoie b | oe deverigho dos ie demoeratinacie em ‘anos 10. Notével do material 0 rine, em Samuel P. Huntington A TERCEIRA ONDA A democratizagao no final do século XX Tindugao Sergio Goes de Paula fe “ ste Temas volume 39 Politica esociedade Tito original: The shind wave: democraizaton a she lae ewemierh comary Copyright 1991 © by Same! P. Huntington Publicado conforme acordo com University of Oklchoma Pres ¢ Seat Meredith TLicerary Ageney, Lib. 49 Third Avenue, New York, NY 10 Proibida a exportagio para os outros paises de Mingus portugues, Editor Femando Paixio Asssténcia editorial ‘Masia Villa Preparago de testo Renato Nicola Edigdo de arte (miolo) Eero cei Divine Rocha Core Capa Exore Bown ISBN 85.08 04692 8 1994 Todos os direitos reservados Editora Atica S.A. Rua Bars de Iguape, 110 CE? 01507-900 Tel.: (PABX) (011) 278-9322 — Ceixa Postal 8656 End. Telegeifico “Bomlivro” — Fax: (011) 277-4146, Sio Paulo (SP) ‘A memoria de Warren e de Anita eee OO” | eee oe Sumario PREEACIO. 7 1.0 QUE? 13 O inicio da tereeira onda 13 O significado da democracia 15 As ondas de democratizagao 22 As questoes da democratizagio 35 2, PORQUE? 40 Explicagio para as ondas 40 Explicagao para as ondas de democratizagio 43 Explicagao para a terceira onda 49 O declinio da legitimidade c 0 dilema do desempenho 55 Desenvolvimento econdmico ¢ crises econdmicas 67 Mudangas rligiosas 80 Novas politicas de atores externos 91 Efeitos-demonstragio ou de bola-de-neve 105 Das causas aos eausadores 110 COMO? FROCESSOS DE DEMOCRATIZAGAO. 113, Regimes autoritirios 114 124 Guias de agi para democratizadores 1: A reforma dos sistemas autoritarios V43 Substituicoes 144 Guias de agio para democratizadores 2 A derrubada des regimes autoritérios 151 Transtituigoes 152 Guias de agio para democraticadores 3: A negociagto das mudangas de regime 12 4, COMO? CARACTERISTICAS DA DEMOCRATIZACAO 164 A sindrome da democratizagio da terceira onda 164 Compromisso e a relagio participagio-moderagio 165 Eleigées: surpreendentes ou nao 174 Baixos niveis de violéncia 191 5. POR QUANTO TEMPO? 206 Consolidagao ¢ seus problemas 206 O problema do torturador: provessar e punir ts, perdloar eesquecer 209 Guias de ago para democratizadores 4: O tratamento dos crimes autovitérios 228 problema pretoriano: militares rebeldes e poderosos 228 Guwias de acio para democratizadores 5: Para domar 0 poder militar e promover o profisionalismo militar 247 Problemas contextuais, desilusso ¢ nostalga autoritiria 248 Desenvolvimento de uma cultura politica democritiea 253 Institucionalizacio do comportamento politico democritico 259 Condigdes que favorecem a consolidagio das novas, democracias 264 6. ATE QUANDO? 272 CCausas da terceira onda: continuando, enftaquecendo, mudando? 273 Uma terccira onda reverse? 281 Mais democratizagio: obstaculos ¢ oportunidades 286 Desenvolvimento econémico ¢ lideranga politica 306 NOTAS 308 Prefacio Eocetivro tata de um importante — talvero mais imporsan- te— desenvolvimento politico global do final do século XX: a tran- sicio de cerca de tinta paises de sistemas politicos nao-democriticos para sistemas politicos democrdticos. E um esforgo para explicar por qué, como ¢ com que conseqiiéncias imediatas essa onda de demo- cratizagio ocorren entre 1974 € 1990. Este livro langa mao tanto da teoria como da histéria, mas nao énem uma obra de teoria, nem uma obra de histéria. Esté em algum lugar entre as duas; é primariamente explicativo, Uma boa teoria é piecisa, austera, elegante, ¢ destaca as relagdes entre algumas varid- vyeis conceituais. Ineviravelmente, nenhuma teoria pode explicar ple- namente um evento tinico ou um grupo de eventos. Uma explica- (0, a0 conttirio, € inevitavelmente complexa, densa, confusa e int lectualmente insatisfatéria. Ela é boa nao quando é austera, mas quando ¢ abrangente. Uma boa histéria descreve cronologicamente e analisa convincentemente uma seqiiéncia de acontecimentos € mostra por que um acontecimento leva a outro, Este estudo também nio faz iso, Nao apresenta o curso geral da democratizagao nas dé- cadas de 1970 e 1980, nem descreve as democratizagbes de cada pais, Em vez disse, tenta explicar € analisar um grupo particular de sransigées de regimes que ocorreram num perfodo limitado de tem- po. No jargio das ciéncias socias, este estudo nfo é nem nomotéti- co nem idiogrifico. E possivel, assim, que tanto os tedticos como os historiadores achem-no insatisfatério. Ele nao apresenta as generali- zagées que os primeiros valorizam nem a profundidade que os dilti- mos preferem. Em sua abordagem, este estudo difere significativamente de vi- sos de meus outros livos. Em tais obras tentei desenvolver generaliza- cs ou teorias sobre as relagoes entre varkéveis-chaves, tais como 0 po- der politico e o profisionalismo militar. participagio e a institucio- nalizagao politica, e os ideais politicos e 0 comportamento politico. As proposicdes sobre ras elagdes sio geralmente apresentadas como ver~ dades atemporais. Neste livro, no entanto, as generalizagdes esto limi- tadas a uma classe discreta de acontecimentos das décadas de 1970 e 1980. Um ponto-chave do livro, na verdade, € 0 de que as democrati- zagoes da terceira onda diferiram das ocortidas nas ondas anteriores. Enquanto escrevia este livro,&s vezes fiquei tentado a propor verdades atemporais, tais como “As substicuigoes sao mais violentas do que as transformages". Tinha ento que me recordar que minhas evidéncias vyinham das casos historicamente limitados que havia estudado e que cu escava escrevendo um trabalho explicatvo, nao tesrico. De modo que tinha de abjurar o presente do indicativo, atemporal, e, 20 invés disso, escrever no pretérito: “As substituigdes foram mais violentas do queas transformagées'. Com muito poucas excecdes, fiz isso. Em al- guns casos, a universalidade da proposigio parecia tio clara que no pude resist & tentacio de apresentd-la em termos mais atemporais, Além disso, no entanto, quase nenhuma proposigdo se aplicava 2 to- dos os casos da terceira onda. Por isso, o letor vai encontrar, espalha- cas por todo o texto, palavras como “tendia a ser”, “geralmente”, “qua- se sempre”, ¢ outros qualificativos semelhartes. Em sua forma final, a citada proposicio deveria ser: “As substtuigdes normalmente foram mais violentas do que as transformagics’. Este livro foi escrito em 1989 © 1990, enquanto a classe de acontecimentos com que ele se preocupava ainda estava se desdo- brando, © livro, assim, sofre de todos os >roblemas da contempo- raneidade e deve ser visto como uma avaliagao ¢ explicacao preli- minares de tais transicées de regime. Ele recorre a obras de histo- riadores, cientistas politicos e outros estudiosos que escreveram monografias detalhadas sobre acontecimentos particulares. Tam- bbém se apdia extensamente em reportagens jornalisticas sobre tais * etic 9 acontecimentos. Quando a erccira onda de democratizagio chegar a9 fim, seri possivel uma explicagio mais completa e mais satista- ‘ria desse fendmeno. Meu estudo anterior sobre mudanga politica, Political order in changing socieries, centrava-se no problema da estabilidade politica. Escrevi tal livro perque achava que a ordem politica era uma coisa boa. Meu propésito eta desenvolver, no campo das ciéncias sociais, uma teoria geral sabre por qué, como e sob que circunstancias a ordem po- dia — e nao podia — ser alcangada. O presente livro centra-se na de- ocratizagio, Eu o escrevi porque acredito que a democracia €boa em simesma e que, tal como argumento no capitulo 1, tem conseqiiéncias positivas para liberdade individual, a estabilidade interna, a paz inter- nacional e pata os Estados Unidos da América. Como em Political o- Ger, centei manter minha andlise o mai afastada possivel de meus valo- res; pelo menos em 95% deste Livro, esse é 0 caso. No entanto, pareceu- ‘me que ocasionalmente seria Gel apresentar explicitamente as implica- «Ses de minha andlise para os povos que desejassem democratizar suas sociedades, Conseqiientemente, em cinco lugares de livro abandonei ype de cientsta social, assumi o de eonsultor politico, e apresentel al- gins “Guizs de aczo para democratizadores”. Se isso me fizer parecer ‘um aspirante a Maquiavel democrdtico, que assim seja. O eestimulo imediato para escrever este lio foi 0 convite para fazer as Conferéncias Julian J. Rothbaum na Universidade de Oklahoma, em novembro de 1989, Nelas apresentei os principaiste- ras do livro sem, & claro, todas as evidéncias empiricas que lhes da- vam esteio, O grosso do manuscrito foi escrito no final de 1989 e em. 1990, e nao tentei incluir na andlise quaisquer acontecimentos ocor- redos depois de 1990. Tenho uma enorme divida com 0 Centro de Estudos e Pesquisas Parlamentares Carl Albert, da Universidade de Oklahoma, e com seu diretor, Dr. Ronald M. Petes, Jt» por me ter convidado para apresentartais conferéncias. Minha esposa, Nancy, € eu também queremos registrar 0 quanto apreciamos a infaliveis cor- tesia e hospitalidade que na Universidade de Oklahoma recebemos do Dr, Peters, de Julian e Irene Rothbaum, de Joel Jankowsky e do Orador e sra, Cail Albert. Sc 0 convite para as conferéncias precipitou a escrita deste li- ‘ro, seu material jf vinha germinando em minha cabega havia algum tempo. Em alguns lugares do manuscrito aprovcitci dois artigos an- 10 reacts avn teriores: Will more countries become democratic?” (Political Science Quarterly, 99, Summer 1984, p. 191-218) e “The modest meaning, of democracy’, in Robert A. Pastor, ed., Democracy in the Americas: stopping the pendulum (New York: Holmes and Meier, 1989, p. 11- 28). Entre 1987 ¢ 1990 uma Bolsa John M. Olin sobre Democracia € Desenvolvimento permitiu que eu dedicasse & pesquisa sobre 0 te ma deste livro muito mais tempo e esforco do que de outro modo seria possivel, Muitas pessoas também contribuiram, canto conscientemente como sem o saberem, para este manuscrito, Desde 1983 venho dan- do em Harvard um curso sobre democracia moderna que focaliza os problemas das transigdes democriticas. Tanto os estudantes como os professores assistentes reconhecerio que muito do material deste li- ‘yo veio do cursoy seus comentirins ecrticas melhoraram em muito meu pensamento sobre o asunto. Mary Kiraly, Young Jo Lee, Kevin Marchioro ¢ Adam Posen dram uma ajuda indispensivel na pesqui sa do material para este livzo e na organizacio de meus arquivos so- bre o tema, Jeffrey Cimbalo no apenas cesempenhou essas tars como, além disso, reviu cuidadosamente a precisio do texto e das rnotas nos estigios finais da preparagio do manuscrto. Juliet Blackeet e Amy Engleharde aplicaram sua consideravel pericia em processa- mento de textos a esse manuscrito, produzindo com eficigncia, rapi- deze precisio muitos rascunhos e evisbes aparentemente interminé- veis dos rascunhos. O manuscrito foi lido por inteiro ou em partes por varios colegas. Houchang Chehabi, Edwin Corr, Jorge Domin- ‘guez, Frances Hagopian, Eric Nordlinger e Tony Smith escreveram comentarios ricos em idéias, bastante criticos e muito construtivos. Os membros do grupo de discussio sobre politica comparada de Harvard. ajudou com uma discussio muito estimulante da primeira metade do manuscrito. Estou muito grato a todas essas pessoas por seu interesse em meu trabalho e pelas importantes contribuigbes que fizeram & melhoria da qualidade de meu esforgo. No final, no entanto, continuo responsivel pela argumentagio, pelas evidéncias e pelos erros deste estudo. SAMUEL PR HUNTINGTON Cambridge, Massachusetts Fevereiro de 1991 =f A TERCEIRA ONDA eens ream CapiruLo 1 O qué? O inicio da terceira onda A teresia onda de democratizaeSo no mundo moderno exe mecou, implausfvel e involuntariamente, 25 minutos depois da mela-noite, numa quinta-feira, 25 de abril, em Lisboa, Portugal, quando uma estacdo de ridio cocou a musica Grandola Vila ‘Morena. A transmissio era o sinal de partida para as unidades mili- tares nos arredores de Lisboa levarem adiante os planos para um golpe de Estado cuidadosamente elaborados pelos jovens oficiais que lideravam 0 Movimento das Forgas Armadas (MFA). O golpe foi levado a cabo com eficiéncia ¢ sucesso, ¢ com resisténcia minima da policia de seguranca. As unidades militares ocuparam os princi- pais ministérios, estagoes de ridio, corrcios, aeroportos ¢ centros te- lefénicos. No final da manhé, multidées enchiam as ruas, saudando 68 soldados e colocando cravos nos canos de seus fuzis. No final da tarde, 0 ditador deposto, Marcelo Caetano, rendeu-se a0s novos, chefes militares de Portugal. No dia seguince voou para o exflio. E assim morreu a ditadura que havia nascido de um golpe militar se- melhance, em 1926, e fora governada por mais de 35 anos por um austero civil, Antonio Salazar, em estreita colaboragio com os sol- dados portugueses!. golpe de 25 de abril foi um comeco implausivel de um am- plo movimento mundial na diregio da democracia porque & mais, freqiicnte os golpes de Estado derrubarem do que iniciarem os regi- mes democriticos. Foi involuntério porque no passava pela cabega dos lideres do golpe implantar a democracia, muito menos iniciar um movimento democrético global. A morte da ditadura nao ga- rantia o nascimento da democracia. Entretanto, liberou um enorme conjunto de forgas populares, sociais e politicas que a ditadura ha via reprimido. Nos 18 meses que se seguiram ao golpe de abril, Portugal viveu em tumulto. Os oficiais do MFA se dividiram em facgGes concortentes — conservadora, moderada e marxista. Os partidos politicos cobriam um espectro igualmente amplo, desde a linha dura do Partido Comunista, & esquerda, até os grupos fascis- tas, a diteita, Seis governos provisérios se sucederam, cada um com menos autoridade do que o anterior. Foram tentados golpes e con- tragolpes. Trabalhadores e camponeses fizeram greves, manifesta- goes, ¢ tomaram fibricas, fazendas e meios de comunicagio. Em 1975, no aniversério do golpe, os partidos moderados ganharam as leigies nacionais, mas no outono daquele ano parecia possivel uma ‘guerra civil entre 0 Norte conscrvador e 0 Sul radical O levante revoluciondrio em Portugal parecia, sob muitos as- pectos, uma repeticio da Riissia de 1917, tendo Caetano como Nicolau II, 0 golpe de abril como a revolugao de fevereiro, os grupos dominantes no MEA como os bolcheviques; havia igualmente um grande cumulto na economia ¢ revoltas populates, € até mesmo o equivalente da conspiragio de Korlinoy, com o fracassado golpe de diteita do general Spinola, em marco de 1975. A semelhanga nao passou despercebida para observadotes argutos. Em secembro de 1974, Mario Soares, ministro do Exterior do governo provisério e It- der do Partido Socialista Portugués, encontrou-se em Washington com o secretirio de Estado Henry Kissinger. Kissinger repreendeu Soares ¢ outros modcrados por nao agirem com maior firmeza para afistar uma dicadura marxista-leninista. Vocé é um Kerenski. [...] Actedito em sua sinceridade, mas vocé ¢ ingénuo — disse Kissinger a Soares Posso garantir que nao quero ser Kerenski — replicou Soares. aw? — Kerenski também nao — retrucou Kissinger’ No entanto, Portugal revelou-se diferente da Russia. Os Kerenski ganharam; a democracia triunfou, Soares tornou-se pri- meiro-ministro e, mais rarde, presidente. Eo Lénin da revolugio portuguesa, a pessoa cue no momento crucial se utilizou de forga disciplinada para produzir o resultado politico desejado, foi um taci- turno coronel favordvel a democracia chamado Anténio Ramalho Eanes, que, no dia 25 de novembro de 1975, subjugou os elementos radicais de esquerda nas forcas armadas e garantiu 0 futuro da demo- cracia em Portugal Em Portugal nosanos de 1974 ¢ 1975, 0 movimento em dire- fo & democracia foi dramdtico, mas nao foi o tinico, Outras agita- Ges democrdticas meros dbvias ocortiam em outros lugares. Em 1973, no Brasil, lideres do governo do gal. Emilio Médici, j4 perto do final, elaboraram planos para uma distensdo*, ou “descompressio” politica, e em 1974, o gal, Ernesto Geisel comprometeu seu novo governo com o inicio do processo de abertura politica, Na Espanha, © primeiro-ministro Carlos Arias levou, com cautela, a ditadura de Franco numa dirego liberalizadora, enquanto 0 pafs esperava a morte do ditador. Na Grécia, aumentavam as cens6es no regime dos coronéis, 0 que acabou por levar & sua queda em meados de 1974 e, no final daquele ano, 20 primeiro governo cleito democraticamente na nova onda de transizdes. Nos 15 anos seguintes, essa onda demo- critica assumiu um ambito global cerca de trinta pafses passaram do autoritarismo & democracia e pelo menos vinte outros foram afeta- dos pela onda democratiea. O significado da democracia As transig6es pata a democracia entre 1974 ¢ 1990 sao o te- ima deste livro. O primeiro passo para trarar desse tema é esclare- cer o significado de democracia ¢ de democratizagio empregado neste live, Em pornagus no original (NT: © conceito de democtacia como forma de governo remonta 405 fldsofos gregos. Seu uso moderno, entretanto, data dos levantes revolucionérios na sociedade ocidental no final do século XVIII. Em meados do século XX, erés abordagens gerais sobre o significa- do da democracia surgem dos debates. Como forma de governo, a democracia foi definida em rermos de fontes de autoridade do go- vero, propésitos do governo e procedimentas para a constituisto do governe. Existem problemas sérios de ambigiiidade e de imprecisio quando a democracia é definida tanto em termos de fortes de auco- Tidade, quanto de propésios, ea definigio utiizada neste estudo é a processual?. Em outros sistemas governamentais, as pessoas se tor- nam lideres por nascimento, destino, riqueza, violencia, cooptacio, ido, designacio ou exame. O procedimento central da de- mocracia éa selec dos lideres, através de eleigbes competitivas, pe- Jo povo que governam. A mais importante formulacio moderna des- se conceito de democracia foi feita por Joseph Schumpeter em 1942. Em seu estudo pioneiro, Capitalizmo, socialismo ¢ democracia, ‘Schumpeter apresentou as deficiéncias do que qualificou de “teoria clissica de democtacia’, que a definia em termos da “vontade do po- vo" (fonte) e do “bem comum"” (propésito). Demolindo definitiva- mente tais abordagens ao tema, Schumpeter apresenta © que cha- mou de “outra teoria de democracia’, O “método democrético”, diz cle, “€0 arranjo institucional para se chegar a decisoes politicas em que os individuos adquirem o poder de decidir através de uma luca competitiva pelos votos do povo”s. Por algum tempo depois da Segunda Guerra Mundial, travou- se um debate entre aqueles que, na linha classica, definiam democra- cia segundo fonte ou propésito eo crescente niimero de te6ricos que aderiam a0 conceito processual de democracia, & mancira schumpe- teriana, Nos anos 70 0 debate tinha terminado ¢ Schumpeter ven ra, Cada vez mais os tedricos estabeleciam distingGes entre defini racionalistas, utdpicas e idealistas de democracia, por um lado, e de- finigGes empiricas, descritivas, institucionais e processuais, por ou- tro, concluindo que somente a ultima definigao permitia a precisio analitica ¢ os referenciais empiricos que tornam utilizavel o conceito. Diminuitam sensivelmente as acaloradas discusses sobre a demo- owe 17 cctacia em termos de teoria normativa, pelo menos nas discussdes académicas dos Estados Unidos, sendo substiruidas plas tentativas de entendera naturcza das instituigbes democriticas, como funcio- nam e quais as razbes para seu desenvolvimento e colapso. O esfor- 0 principal era fazer da democracia uma palavra menos “oba-oba” ¢ de mais bom senso‘. Seguindo a ttadigao schumpeteriana, no presente estudo um, sistema poli:ico do século XX ¢ democrétioo na medida em que ne- le seus principais tomadores de decisoes coletivas sejam seleciona- dos através de eleig6es periddicas, honestas e imparciais em que os ‘candidatos concorram livremente pelos votos e em que virtualmen- te toda a poputlagio adulta renha direiwo de voro. A democracia, a sim definide, envolve duas dimensées — contestagio e participagao gue Robert Dahl considerou criticas para a sua democracia rea- lista, ou poliarquia, Implica também a existéncia daquelas liberda- des politicas e civis de expresso, publicagao, reuniao e organizagio, necessirias para 0 debate politico e para a realizagdo de campanhas leitorais. Tal deiinigao processual de democracia permite que se defina um certo nimero de “curvas de nivel” — em geral agrupadas nas dduas dimens6es de Dahl — que tornam possivel avaliar até que pon- to 08 sistemas politicos sto democriticos, comparar os sistemas © analisar se des estio se tornando mais ou menos democréticos. Na medida em que, por exemplo, um sistema politico nege o direito de voto a uma parte de sua sociedade — como o sistema da Africa do Sul fez com 70% de sua populacio, compostos de negros, como a Suga fez com 50% de sua populacio, compostos de mulheres, ou ‘como os Estados Unidos fizeram com 10% de sua populacio, com- postos de negros sulisias —, ele é nio-democritico. Similarmente, uum sistema é nao-democritico na medida em que a oposicio nfo tem permissio de participar das eeigoes, em que a oposicio € rep ‘ida ou hotilizada nas ages que pode realizar, em que os jomnais de oposigo séo censurados ou fechados, ou em que os votos so mani: pulados ou fraudados. Em qualquer sociedade, o malogto continua do do principal partido politico de oposi¢ao em chegar ao poder mpetigdo per- vanta necesiariamente quest6es quanto ao grau de c mitido pelo sistema. No final dos anos 80, 0 critério de leigdes li- 18 arencermonan vres ¢ imparciais na definigdo de democracia tornou-se mais confid- vel, devido 20 monitoramento cada vez maior das eleigées, realizado Por grupos internacionais. Em 1990 chegou-se 20 ponto em que a Primeira eleicao num pats em vias de democratizagio s6 era geral- mente accita como leg(tima se fosse observada por uma ou mais equipes razoavelmente competentes e neutras de observadorcs inter- nacionais e se estes cetficassen que a cleigao satsfaria os padroes minimos de honestidade c imparcialidade, ‘A abordagem processual de democracia esté de acordo com 0 uso do termo pelo senso comum. Todos sabemos que golpes mil cares, censura, eleigbes manipuladss, coergéo e embaragos i oposi- 520, prisio dos adversérios politicos e proibico de reunises politi- cas sZo incompativeis com a democracia, Também sabemos que observadores politicos bem informados podem aplicar as condi- sbes processuais da democracia a sistemas politicos existences ¢ fa- silmente elaborar uma lista dos paises claramente democriticos, dos claramente nio-democrdticos, dos que estao entre os dois, ¢ que, com pequenas excegies, abservadores diferentes vio compor listas idénticas. Sabemos também que podemos fazer, ¢ fazemos, julgamentos sobre as maneiras pelas quais os governos mudam com tempo, ¢ que ninguén discutiria a afirmacao de que Argentina, Brasil e Uruguai eram mais democriticos em 1986 do que em 1976, Regimes politicos nunca se encaixam perfeitamente ‘nos esquemas intelectuais e qualquer sistema de classificagio tem que aceitar a existéncia de casos ambiguos, fronteiticas e mistos, Por exemplo, historicamente, ¢ sistema do Kuomintang (KMT), em Taiwan, combinava alguns elementos de autoritarismo, de de- mocracia e de totalitarismo. Além disso, governos com origens de. mocréticas podem acabar com a democracia, abolindo ou limitan- do severamente os procedimentos democraticos, como aconteceu nna Coréia e na Turquia no final dos anos 50 e nas Filipinas em 1972, Mas, com todos esses proslemas, a classificagio dos regimes em termos do seu grau de democracia processtal continua sendo uma tarefa relativamente simples Se a eleigao popular dos pnncipais tomadores de decisoes € a esséncia da democracia, entio o ponto critico no processo de demo- ctatizacao ¢ a substituigio de um governo que nao foi escolhido des- caer 19 se modo, por um outro, selecionado através de uma eleigio aberta, lee impucl.Enuetano, 0 proceso glabl de democaiasio antes e depois de tal eleigio normalmente é complexo ¢ prolongado, Implica provocar o fim do regime nao-democritico, es Tee gime democritico e, entio, consolidar o sistema democrtico. Liberaiago, em contrast a aertra parcial de un sistema auc ritério, exceto quanto & escolha dos chefes de governo através de celeigdes competitivas ¢ livres. Os regimes autoriirins a podem soltar os presos politicos, abrir algumas questGes 20 debace publio,diminu a cesar patina cles para cargos com pouco poder, permicir alguma renovacio da sociedade civil e dar ou- tos passos na diregéo democritica, sem submeter os principals t0- adores de decisées ao teste eletoral. A liberalizagio pode, ou no, sar i democratizacao total : ee a peau doer ge sprennneie bc de ade se Primeit, a defingio de democracia em termos de eleigdes € uma definicao minima. Para alguns, democracia tem, out deveria ter, conotages muito mais abrangentes c idealista. Para eles, “a verdadeita democracia” significa liber, élite, fineernité,efecvo controle civil sobre a politica, governo responsivel, honestidade e aberura na politica, debergioraconae bem informads, part cipaso poder igalicros e vriasoutrasvirwudes cvicas Tae se, na maior parte, de coisas boas, e pode-se, caso se queita, definir democracia nesses termos. Mas isso, no entanto, traz todos 0s pro- blemas que surgem com a definico de democracia por fonre ot propésio, Normas obscuras nfo produzem anise proveton Eleigbes abertas, livres e imparciais so a esséncia da democraci inescapivel sine gua non. Governos eleitos podem set ineficientes, cortuptos, de visio estreita inesponsives, ominados por inex esses especfcs ¢incapazes de sdotr as politics exgdas plo bem piiblico. Tais caracterfsticas podem rornar tais governos inde- sejdveis, mas nao os tornam nao-democriticos. A democracia € uma virtude puiblica, mas nio a tnica, e relagao entre a democra- cia eas outras virtudes e vicios pliblicos s6 pode ser entendida se a democracia for claramente diferenciada de outras caracteristicas dos sistemas politicos. 20 ATERCEIRA ONDA, Segundo, pode-se conceber que uma sociedade escolha seus It deres politicos por meios demoerétizos, mas que taislideres nfo exersam um poder real, Talvez sejam simplesmente testas-de-ferro ou marionetes de algum outro grupo. Na medida em que os mais Poderosos tomadores de decisdes coletivas nao sejam escolhidos por cleigbes,o sistema politico nao ¢ democrético, No entanvo,as ligt ‘asGes de poder estao implictas no conceito de democracia, Nas de, ppeetecis os romadores de decisdesceitos nao exercem poder toa Eles parrilham o poder com outros grupos da sociedade. Todatvin ae se tornam simplesmente uma fachada2arao exerctcio de um poder muito maio por um grupo escolhide de forma nao-democritica, nti tal sistema politico claramente é néo-democtitico, Pode-se le, Yantar questoes legitimas como, por exemplo, se 0s governos eleitos 20 Japio ao final da década de 1920 e na Guatemala ao final da de cada de 1980 eram tao dominados pelos militares a ponto de nto screm verdadeiramente democréticos. Entretanto, também é fii] Pata 0s ctticos de um governo, tanto os de dircita como os de es- Suerday alegar que os cleitos sfo simples “instumentos”, ou que cxercem sua autoridade apenas por condescendéncia e com severas restrigdes de algum outro grupo. Tais alegacoes sao feitas com fre. giiéncia ¢ podem ser verdadeiras. Mas no deveriam set considera, das verdadeiras antes que isso tenha sido demonstrado. Ive pode ser dificil, mas nao é impossivel Uma terceira questio diz respeito &fragilidace ou estabilidade de um sistema politico democratico, Seria possivel incorporar a de- Finigéo de democracia um conceito de esabilidade ow de msdtec nalizagao. Tipicamente, isso se refer ao grau de expectativa de per, manéncia de um sistema politico. Estabilidade & uma dimensio cen. tral na andlise de qualquer sistema poten. No encanto, ele porte ser ‘mais ou menos democritico ¢ mais ou menos estavel. Sistemas apro- Priadamente clasificados como igualmente democriticos podem di, ferir muito quanto & estabilidade, Assim, a Freedom House, em sas Pesquisa sobre a liberdade no mundo publicada no inicio de 1984, slassicou, adequadamente, a Nova Zelindia e a Nigéria come “It wees", Quando tal julgamento foi feito, a liberdade podia muito bem ‘nfo ser menor no ultimo pais do que no primeiro, No entanto, cla cra muito menos estével: um golpe milter no dia de ano-novo de ous 21 1984 acabou coma democraca ngeriana, Pode-se tar sistemas de- mocriticos e nfo-democriticos, «eles podem durar ou nao. A esta- bilidade de um sistema difere da narureza do sistema’, Quarto, ha aquestio de tratar a democracia ea nio-democra- cia como uma varidvel dicotémica ou como uma varidvel continua Muitos analistas preferem a tiltima abordagem e desenvolveram me- didas de democracia combinando indicadores de imparcialidade das eleigbes, resrigies aos partidos politics, libenlade de imprensa € outros criterio, Ta abordagem é iil para alguns propésios, eis como identifcar es variagdes no grau de democracia entre paises (Estados Unidos, Suécia, Franca, Japio) que normalmente sio con- siderados democréticos, ou variag6es no grau de autoritatismo em paises ndo-democriticos, No entanto, ela apresenta muitos proble- mas ais como o feso dos indicadores. Uma abordagem dicotomi- ca serve melhor ao propésito deste estudo, porque nosso interesse € a transiggo de um regime ndo-lemocritico pata um democratico Além disso, neste estudo, a democracia é definida segundo um cri- tério nico, elativamente claro e amplamence acito. Mesmo quan do os analistas usam medidas um pouco diferentes, suas avaliagbes sobre quais sistemas politicos sio democraticos ¢ quais nao 0 sio term um grau de correlagio muito alto”. Por conseguinte,o presen- te studo trata a democracia como uma varveldicotdmica,reco- nhecendo que existem alguns casos intermedidrios (e.g., Grécia, 1915-365 Tailandia, 1980; Senegal, 1974) que podem ser correta- mente clasificados como “semidemocracias'. : Quinto, regimes ndo-democréticos nao tém competi eei- toral nem ampla participago na votagao. A parte essas caracteristi- cas negativas, pouco mais im em comum., A categoria inclu mo- narquias absolurisus, impérios burocriticos, oligarquias,aiscocra regimes constitucionais com suftégio limitado, despotismos personalistas, regimes fascistas e comunistas, ditaduras militares © outros tipos de governo. Algumas dessas formas foram mais difun- didas em épocas pasadas: outas sé relativamente modemnas. Em particula, os regimes totalitérios surgiram no século XX, aps v wv- mego da democratizagio, ¢ tentaram realizar uma mobilizagdo de massa de seus cidadios para servi aos propésitos do regime. Os cientistas sociais fazer uma distingio importante ¢ apropriada en- 22___arenceis onon tte tas regimes e os sistemas autoritétios tradicionais nao-democré- ticos. Os primeiros tém como caracteristic no:malmente liderado por uma s6 pessoa; um: um partido tinico, a policia secreta po- derosae extensis uma deologia altamente desenvolvida pees ve ama sociedade ideal a qual o movimento totalitério se compro- ‘mete a realizar; ¢ penetragio governamental e controle da comuni- cagio de massa ¢ de todas ou da maior parte das organizagées s0-

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