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(PUC-SP)
São Paulo
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
(PUC-SP)
São Paulo
2012
São Paulo, ____/____/_______
BANCA EXAMINADORA
“O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso.
Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese,
como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e,
portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação.”
A Deus, por existir concretamente em minha vida e por me dar ânimo e força todos os dias
para seguir firme na minha caminhada.
À Profa. Dra. Myrian Veras Baptista, minha orientadora, que me proporcionou discussões
importantes sobre a temática, por meio de sua sabedoria e da riquíssima capacidade de
compreensão e de leitura reflexiva, que possibilitaram várias descobertas no processo de
construção deste trabalho.
À Profa. Dra. Maria Lúcia Martinelli, pelas contribuições pertinentes no meu exame de
qualificação, pela sensibilidade e pela humildade em lidar com o saber e com as pessoas.
À Profa. Dra. Luciene Jimenez, pela disponibilidade e pelo interesse de ter participado do
meu exame de qualificação, com contribuições importantes.
Ao Prof. Jorge Enrique Mendoza Posada, pelo respeito e pelas influências na minha
militância.
À Profa. Dra. Iris Amâncio, pelo carinho e pelo incentivo nesta trajetória.
A Giana Késia, Silvério Rodrigues, Nayana Souza, Cláudia Silva, Adalete Paxeco, Patrícia da
Silva Pinto, Sinval Guedes, Milene Garcia, Lucélia Ferreira, Leandra Baquião, Aracéli Vieira,
Leandro Moreira, Júnia Costa, Evandro Passos, Rozangela Leite, Denílson Tourinho,
Anderson Feliciano, Wanderley dos Santos, Fernanda Azevedo, Ricardo Vidal, Felipe
Augusto (Bobina), Lindomar Sebastião, Renato, Clair, Li, Nikka, Moyses (A 286), Lindomar
3L, PMC, DJ Erick 12, DJ ACoisa, Alessandro Buzo, King Nino Brown (Zulu Nation Brasil),
Nelson Triunfo (Casa do Hip Hop de Diadema/SP), Vespa e Alan. A cada um, por uma razão
especial direta e/ou indireta neste trabalho e/ou na minha trajetória de vida.
À cultura Hip Hop e à literatura marginal, por terem possibilitado encontros e reencontros
com vários rappers, poetas, poetizas, B. Boys, B. Girls, DJs, grafiteiros, organizadores de
eventos e pesquisadores da área do Hip Hop. E, também, por terem contribuído na minha
leitura de vida e de mundo.
RESUMO
ARRUDA, Daniel Péricles. Espelho dos invisíveis: o RAP e a poesia no trabalho prático-
reflexivo com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação em Belo
Horizonte/MG. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2012.
ARRUDA, Daniel Péricles. Mirror of invisible: the RAP and the poetry in the practical
reflexive work with teenagers in fulfillment of measurable social-education internment in
Belo Horizonte/MG. Dissertation (Master’s Degree) – Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2012.
This dissertation had the goal of apprehend the relation of the teenager in fulfillment of
measurable social-educational internment with of the RAP and of the poetry, in view of the
use of this art as a socio-educational tool and as a way to enable the communication, the
reflection and the realization of the objectives. It is an analysis ex-post-facto about the
realized RAP and poetry workshops in the years 2007 to 2010 with teenagers that were in
fulfillment of measurable social-educational internment Center of Adolescent Treatment
(Cead) – Centro de Atendimento ao Adolescente in Portuguese. This is one of the units that
execute the social-educational measure of internment to male teenagers at Belo
Horizonte/MG. For the realization of this study, was of big importance the analysis of all
registers that were made in the period of 2007 to 2010, and it was: footages, photos,
production of RAP lyrics and poetry lyrics of the teenagers, reports, records, annotations in
the field diary, etc. Were also interviewed a teenager and two young adults that, when
teenagers, participated in the workshops; two professionals that accompanied this practice of
work with the teenagers and one DJ for being one of the oldest references of the Hip Hop
Culture at Minas Gerais state. The realized interviews with a teenager and two young adults
aimed to apprehend the resulting of the workshops in the perspective of their subjects. The
realized interviews with the professionals have had as objective the apprehension of the
meanings that they attributed to its realization. And, the interview with the DJ, was in reason
of him subsidize the historical apprehension of the influence of the Hip Hop at the city and in
your relation with the teenager. The realized analytical course demonstrated that the RAP and
the poetry workshops can propitiate the apprehension and the tract of objective and subjective
questions of the teenagers, related to your lives and to the measurable social-educational of
internment that they are experiencing, with bigger approximation to their reality.
Figura 7 – King Nino Brown e Áfrika Bambaataa, na Casa do Hip Hop de Diadema/SP,
em 2003 .............................................................................................................................. 86
Figura 12 – Graffiti feito por Vespa, representando o rapper Sabotage, na Casa do Hip
Hop, em Diadema/SP ......................................................................................................... 92
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 14
Capítulo 1
O CONTEXTO DA AÇÃO QUE NORTEOU A PESQUISA ....................................... 19
Capítulo 2
A RELAÇÃO ATO INFRACIONAL E VIOLÊNCIA .................................................. 59
Capítulo 3
A PESQUISA: O RAP E A POESIA COMO MEDIADORES DA TEORIA NA
PRÁTICA ........................................................................................................................... 82
Anexo A - Poesia – Ver e não ser visto – Autoria: Daniel Péricles Arruda (Vulgo
Elemento) ..................................................................................................................... 135
INTRODUÇÃO
Uma História
Refrão:
Quero que a minha história tenha um final feliz
Final feliz, final feliz
Refrão:
Quero que a minha história tenha um final feliz
Final feliz, final feliz
(Letra de RAP escrita por um adolescente, sujeito da pesquisa)
Ao abordar a sua história o jovem apresenta as várias faces de sua vida: como foi,
como é, e como ele gostaria que fosse. A letra trata de questões sobre o sofrimento, a
felicidade, a saudade, a família, a relação com Deus, os motivos que o levaram ao
envolvimento com a criminalidade e o que ele considera necessário para não voltar a praticar
atos infracionais, entre outras.
O RAP e a poesia1 são tidos como possibilidades de múltiplas expressões, que
demonstram ao sujeito a sua capacidade de manifestar sonhos, revoltas e rebeldias, e
inquietações subjetivas. Isto é, trata-se de uma possibilidade de manifestar a sua própria vida
e também uma forma de absorver a realidade.
Aqui, o uso do RAP e da poesia, como apoio ao trabalho socioeducativo, é discutido
numa perspectiva crítica2. Meu intuito é apreender os pontos relevantes dessa abordagem para
a construção de uma metodologia de trabalho com adolescentes que cumprem medida
socioeducativa de internação, considerando três categorias essenciais: cultura, violência e
invisibilidade. A cultura, como formação de valores e de constituição identitária; a violência,
tendo em vista a prática do ato infracional como uma de suas modalidades de expressão; e a
invisibilidade, como forma de ver (ou não ver) o outro como tal.
Dessa maneira, este estudo teve por finalidade apreender a relação do adolescente em
cumprimento de medida socioeducativa de internação com as oficinas de RAP e de poesia,
considerando o uso dessas artes como instrumento socioeducativo e como uma metodologia
para possibilitar a comunicação, a reflexão e a efetivação dos objetivos da medida. E,
também, como apoio para a leitura e para a ação direta dos profissionais da Comunidade
Socioeducativa3.
1
A sigla RAP vem do inglês rhythm and poetry, ou seja, ritmo e poesia. No Brasil, alguns a
consideram também como Revolução Através das Palavras. Assim, o RAP é constituído de poesia,
mas cabe ressaltar que durante o trabalho serão mencionados os termos RAP e poesia, devido à
metodologia desenvolvida e aplicada, e por considerar as especificidades de cada um deles, uma vez
que podemos ter a poesia independentemente do RAP. A poesia é referenciada por suas várias
linhas, principalmente, pela literatura marginal, conhecida e/ou chamada também de literatura
periférica, literatura suburbana, literatura do oprimido ou literatura do “excluído”.
2
O sentido de perspectiva crítica assumido nesta dissertação é o da dialética marxista – a leitura
racional dos fatos, com vistas à superação de seus condicionamentos e limites, por meio do
desvelamento de suas determinações sócio-históricas. Ou seja: “Não se trata, como pode parecer a
uma visão vulgar de ‘crítica’, de se posicionar frente ao conhecimento existente para recusá-lo ou, na
melhor das hipóteses, distinguir nele o ‘bom’ do ‘mau’. Em Marx, a crítica do conhecimento
acumulado consiste em trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, os seus fundamentos, os
seus condicionamentos e os seus limites – ao mesmo tempo em que se faz a verificação dos
conteúdos desse conhecimento a partir dos processos históricos reais.” (NETTO, 2009, p. 6)
3
Segundo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), a Comunidade
Socioeducativa “é composta pelos profissionais e adolescentes das Unidades e/ou programas de
atendimento socioeducativo, [que] opera, com transversalidade, todas as operações de deliberação,
planejamento, execução, monitoramento, avaliação e redirecionamento das ações, que devem ser
16
5
Os nomes dos autores das letras de RAP e de poesia não serão revelados, embora se tratem de
produções próprias. Todas estão relacionadas aos direitos autorais, Lei 9.610/1998, nos termos do
artigos 11, 24 e 108. Optei também por não revelar os nomes, em conformidade com o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069/1990, artigo 247, em virtude de um dos sujeitos da
pesquisa ter idade inferior a 18 anos.
6
É importante destacar que ao longo deste trabalho utilizarei as notas de rodapé para relatar,
esclarecer ou mencionar pontos importantes e detalhes ocorridos durante o meu diálogo com os
autores, considerando que “nenhuma pessoa culta pode sentir-se perturbada com a existência de
uma nota em tipo miúdo ao fundo de uma página, e todas as pessoas, sejam elas profissionais ou
leigas, precisam conhecer as credenciais de um fato quando este é mencionado. As notas de rodapé
são também um índice expressivo do cuidado posto no estudo de um determinado assunto.”
(GALBRAITH apud NETTO, 2009a, p. 9). Assim, utilizarei os nomes completos das instituições, dos
setores, etc. acompanhados com a sigla entre parênteses para melhor compreensão do leitor, com
exceção das siglas/categorias: RAP – Rhythm and Poetry (Ritmo e Poesia); DJ – Disc-Jóquei (sem
tradução literal); e MC – Master of Ceremony (Mestre de Cerimônia), que são mencionadas com mais
frequência neste trabalho.
18
Capítulo 1
O CONTEXTO DA AÇÃO QUE NORTEOU A PESQUISA
7
Naquele contexto, os adolescentes utilizavam o espelho, mediante solicitação do agente
socioeducativo, que ficava na recepção. Tal procedimento era realizado por medida de segurança e
por razões de estrutura física da unidade. Outra forma de se olharem, era pelos vidros das janelas da
sala dos técnicos quando atravessavam ou estavam no pátio. As janelas tinham uma película escura
na superfície, do tipo insulfilm, possibilitando, então, o reflexo. Um dia, ao ver um adolescente se
arrumando diante da janela, eu escrevi a poesia “Ver e não ser visto” (Anexo A). Assim, Espelho dos
Invisíveis chama a atenção para o estudo da invisibilidade e seus fatores.
20
Para proceder a uma tal reflexão e se deixar contagiar por uma perspectiva
inovadora e radicalmente democrática, é preciso antes de tudo se
despojar do sentimento de vingança, enquanto marca da cultura
e razão punitiva existente no Brasil.
(SALES, 2007, p. 49)
[...] os juízos ultrageneralizadores são todos eles juízos provisórios que a prática
confirma ou, pelo menos, não refuta, durante o tempo em que, baseados neles,
formos capazes de atuar e de nos orientar [...]. Isso poderá ser feito quando o juízo
se apoiar na confiança, mas não quando se basear na fé. Os juízos provisórios que se
enraízam na particularidade e, por conseguinte, se baseiam na fé são pré-juízos ou
preconceitos.
8
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) contrapõe as ideias baseadas na Doutrina da
Situação Irregular – destinada a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade – com a
Doutrina da Proteção Integral a todas as crianças e adolescentes no País, considerados sujeitos de
direitos. O reconhecimento dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil ocorreu a partir da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e foi confirmada pela Lei 8.069/1990. O
Estatuto da Criança e do Adolescente: “Passa a vigorar, pela nova legislação, a chamada doutrina de
proteção integral que, partindo dos direitos das crianças reconhecidos pela ONU [Organização das
Nações Unidas], procura garantir a satisfação de todas as necessidades das pessoas de menor
idade, nos seus aspectos gerais, incluindo-se os pertinentes à saúde, educação, recreação,
profissionalização, etc.” (CURY apud BAPTISTA, 2000, p. 15). Para essas palavras, Cury baseia-se
na Convenção Internacional acerca dos Direitos Humanos da Criança, ratificada de forma unânime
pela Assembleia Geral das Nações Unidas, no ano de 1989.
9
Vide Decreto 17.943-A, de 12/10/1927, e Lei 6.697/1979. Instrumentos jurídicos voltados ao
atendimento à criança e ao adolescente em situação irregular até 1990.
22
A prática de declarar direitos significa, em primeiro lugar, que não é um fato óbvio
para todos os homens que eles são portadores de direitos e, por outro lado, significa
que não é um fato óbvio que tais direitos devam ser reconhecidos por todos. A
declaração de direitos inscreve os direitos no social e no político, afirma sua origem
social e política e se apresenta como objeto que pede o reconhecimento de todos,
exigindo o consentimento social e político.
I Advertência;
II Obrigação de reparar o dano;
III Prestação de serviços à comunidade;
IV Liberdade assistida;
V Inserção em regime de semi-liberdade;
VI Internação em estabelecimento educacional;
VII Qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI11
§ 1o A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-
la, as circunstâncias e a gravidade da infração.
§ 2o Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho
forçado.
§ 3o Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão
tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições.
10
De acordo com o artigo 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “Considera-se ato
infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.”
11
Art. 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “Verificada qualquer das hipóteses
previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes
medidas: I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II -
orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e freqüência obrigatórias em
estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de
auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou
psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário
de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.” Os outros incisos desse mesmo
artigo são: VII - acolhimento institucional; VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar; IX -
colocação em família substituta.
23
Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios
de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento.
§ 1o Será permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe técnica
da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário.
§ 2o A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser
reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses.
§ 3o Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.
§ 4o Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser
liberado, colocado em regime de semi-liberdade ou de liberdade assistida.
§..5o A liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade.
§ 6o Em qualquer hipótese a desinternação será precedida de autorização judicial,
ouvido o Ministério Público.
§ 7o A determinação judicial mencionada no § 1o poderá ser revista a qualquer
tempo pela autoridade judiciária.
12
Chamo a atenção do leitor, pois farei menção à Lei 12.594, de 18/1/12, que entrou em vigor após
90 dias de sua publicação, em 18/4/12, e também utilizarei seu documento original, Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo (Sinase), posto a público em 2004, que serviu de guia na
implementação e na operacionalização de ações, em prol do atendimento aos adolescentes autores
de atos infracionais.
24
O Capítulo II, que mostra as competências da União, dos estados e dos municípios; o
Capítulo III, que apresenta as articulações necessárias e os aspectos relevantes para a
elaboração do Plano de Atendimento Socioeducativo; o Capítulo IV, que aborda questões
sobre a inscrição de programas de atendimento no Conselho Estadual ou Distrital da Criança e
do Adolescente, entre outras questões. Nesse capítulo, destaco o artigo 12:
Ainda no capítulo IV, são abordadas também as competências dos Programas de Meio
Aberto e dos requisitos específicos para a inscrição de Programas de Privação de Liberdade
(Semiliberdade e Internação). O Capítulo V reza sobre a avaliação e a gestão do atendimento
socioeducativo; o Capítulo VI fala sobre a responsabilização dos gestores, operadores e
entidades de atendimento; e o Capítulo VII versa sobre o financiamento e as prioridades.
O Título II – Da Execução das Medidas Socioeducativas – apresenta o Capítulo I, que
mostra, nas disposições gerais, os princípios que regem a execução das medidas
socioeducativas; o Capítulo II, que aborda os procedimentos para jurisdicionar a execução das
medidas socieducativas; o Capítulo III, que aponta os direitos individuais, a saber:
Também compõe o Título II, o capítulo IV, que trata do Plano Individual de
Atendimento (PIA), do qual destaco os seguintes artigos:
13
O artigo 41 da referida lei afirma que: “A autoridade judiciária dará vistas da proposta de plano
individual de que trata o art. 53 desta Lei ao defensor e ao Ministério Público pelo prazo sucessivo de
3 (três) dias, contados do recebimento da proposta encaminhada pela direção do programa de
atendimento.” Caso não seja impugnado o Plano Individual de Atendimento (PIA) será homologado.
Há questionamentos acerca do prazo para a elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA). O
tempo exigido deveria ser o tempo estipulado para o início de sua realização, pois, nós, profissionais
que atuamos na área, sabemos que é preciso de um tempo maior para conquistar a confiança do
adolescente, em alguns casos para localizar a família, etc.
14
A visita íntima, no sistema prisional, iniciou-se em meados da década de 1980, como uma forma de
combater a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis. Em 2010, realizei um projeto
socioeducativo, por meio da poesia – Projeto Reinvenção –, em parceria com o Programa de
Reintegração Social do Egresso do Sistema Prisional de Contagem/MG (Presp), na Penitenciária de
Segurança Máxima Nelson Hungria, em Contagem/MG, com um grupo de 12 pré-egressos que
estavam cumprindo pena – educandos que estavam prestes a serem liberados ou a receberem
alguma progressão de regime. Em uma oficina, cujo tema era família, um dos educandos me disse:
“Pra gente, toda visita é íntima”, ou seja, para eles, independe que sejam visitados pela esposa ou
pela namorada. Em outras palavras, o jovem quis dizer que toda visita é o momento íntimo de eles
conversarem e trocarem afetos com os seus; e, para isso, é necessário privacidade. Faço essas
colocações somente a título de reflexão, pois não pretendo mudar o foco do assunto. Na medida
socioeducativa de internação, mesmo com as restrições apresentadas pela lei em questão, é sabido
26
Em seguida vêm as razões determinantes de sua não aplicação, conforme o artigo 75:
“Não será aplicada sanção disciplinar ao socioeducando que tenha praticado a falta: I - por
coação irresistível ou por motivo de força maior; II - em legítima defesa, própria ou de
outrem.”
Por fim, o Título II traz o Capítulo VIII, que apresenta a possibilidade de ofertas de
vagas do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial (Senac), Serviço Nacional de Aprendizagem Transporte (Senat) e
Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), por meio de articulações de operadores
dessas instituições com os gestores dos Sistemas de Atendimento Socioeducativo.
Já o Título III – Disposições Finais e Transitórias – ressalta aspectos de
regulamentação e de regularização de entidades, do qual destaco o artigo 83:
política de oferta dos programas aqui definidos.” Além de trazer as alterações realizadas em
alguns artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
A partir dessa leitura acerca dos ordenamentos jurídicos que envolvem a medida
socioeducativa, apresentarei como é o seu funcionamento prático em Belo Horizonte/MG,
onde, a partir de dezembro de 2008, os casos de adolescentes que cometem atos infracionais
são apurados pelo Centro de Atendimento Integrado ao Adolescente Autor de Ato Infracional
(CIA/BH)15.
De acordo com a Cartilha do CIA/BH, o atendimento é realizado da seguinte maneira:
o adolescente, apreendido em flagrante pela autoridade policial, por ter praticado ato
infracional, é encaminhado para o CIA/BH. Nesse primeiro momento, a autoridade policial
realiza as providências necessárias e convoca os pais e/ou responsáveis para comparecem ao
Centro, para ciência dos fatos e tomarem as providências que considerarem necessárias.
Posteriormente, o adolescente é encaminhado ao juiz de Direito da Vara Infracional para a
realização da audiência imediata, com a presença do promotor, do defensor público, do
advogado, dos pais e/ou responsáveis, em que o juiz determina as seguintes providências,
isoladas ou concomitantemente: 1) remissão16; 2) arquivamento17; 3) aplicação de medida
protetiva18.
15
O Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA/BH) foi criado por
meio da Resolução-Conjunta de 2 de setembro de 2008, em cumprimento do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), precisamente, do artigo 88, inciso V: “[...] integração operacional de órgãos do
Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social, preferencialmente
em um mesmo local, para efeito de agilização do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua
autoria de ato infracional”. O Centro tem por finalidade apurar e agilizar com maior e melhor
efetivação a jurisdição infracional cabível aos adolescentes autores de atos infracionais. Dessa forma,
é constituído pela integração de instituições públicas que compõem o núcleo de Sistema de Justiça
Juvenil: Defensoria Pública de Minas Gerais, Ministério Público, Poder Judiciário, Polícia Militar de
Minas Gerais, Polícia Civil, Prefeitura de Belo Horizonte e Secretaria de Estado de Defesa Social
(Seds). O Centro atende nos dias úteis de 8h às 22h, e nos fins de semana e feriados de 13h às 18h.
A Delegacia de Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente (Dopcad) funciona 24h nas
dependências do Centro, que também tem por objetivos: “garantir a responsabilização imediata dos
adolescentes autores de ato infracional na comarca de Belo Horizonte; reinserir (reconduzir) o
adolescente no convívio familiar e social; prevenir a reincidência (repetição de atos infracionais);
contribuir para a diminuição dos índices de criminalidade na comarca de Belo Horizonte.” (CARTILHA
CENTRO INTEGRADO DE ATENDIMENTO AO ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL –
CIA/BH, p. 8).
16
De acordo o artigo 126, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “Antes de iniciado o
procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá
conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e
consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou
menor participação no ato infracional”. No parágrafo único é esclarecido que: “Iniciado o
procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou
extinção do processo”. O Art. 127 reza que: “A remissão não implica necessariamente o
reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes,
podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a
colocação em regime de semi-liberdade e a internação.” Na sequência, o art. 128 afirma que “a
28
Entretanto, caso não seja viável a aplicação de nenhuma dessas três determinações, o
promotor poderá oferecer a denúncia (representação), assim o juiz poderá estabelecer alguma
das medidas socioeducativas em meio aberto (advertência; obrigação de reparar o dano;
prestação de serviço à comunidade; ou liberdade assistida), ou encaminhar para internação
provisória, onde o adolescente deverá permanecer no máximo 45 dias no aguardo do
julgamento. Após o julgamento, caso receba a medida socioeducativa de internação, o
adolescente é encaminhado para uma unidade de privação de liberdade19, em que não há
tempo determinado. O adolescente é reavaliado no máximo a cada seis meses e o tempo da
internação, por nenhuma razão, deverá ultrapassar três anos.
Para que seja aplicada a medida socioeducativa de internação é necessária a
concretude dos pontos descritos acima. A medida não é (ou não deveria ser) a única e nem a
primeira a ser aplicada ao adolescente que cometeu ato infracional. Daí, a importância dos
cuidados necessários para o levantamento do caso de cada adolescente.
medida aplicada por força da remissão poderá ser revista judicialmente, a qualquer tempo, mediante
pedido expresso do adolescente ou de seu representante legal, ou do Ministério Público.”
17
O processo é arquivado e, então, o adolescente não precisa responder pela acusação.
18
Vide nota de rodapé 11, página 22.
19
O art. 124, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), afirma: “São direitos do adolescente
privado de liberdade, entre outros, os seguintes: I - entrevistar-se pessoalmente com o representante
do Ministério Público; II - peticionar diretamente a qualquer autoridade; III - avistar-se reservadamente
com seu defensor; IV - ser informado de sua situação processual, sempre que solicitada; V - ser
tratado com respeito e dignidade; VI - permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais
próxima ao domicílio de seus pais ou responsável; VII - receber visitas, ao menos, semanalmente; VIII
- corresponder-se com seus familiares e amigos; IX - ter acesso aos objetos necessários à higiene e
asseio pessoal; X - habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade; XI -
receber escolarização e profissionalização; XII - realizar atividades culturais, esportivas e de lazer;
XIII - ter acesso aos meios de comunicação social; XIV - receber assistência religiosa, segundo a sua
crença, e desde que assim o deseje; XV - manter a posse de seus objetos pessoais e dispor de local
seguro para guardá-los, recebendo comprovante daqueles porventura depositados em poder da
entidade; XVI - receber, quando de sua desinternação, os documentos pessoais indispensáveis à
o o
vida em sociedade. § 1 Em nenhum caso haverá incomunicabilidade. § 2 A autoridade judiciária
poderá suspender temporariamente a visita, inclusive de pais ou responsável, se existirem motivos
sérios e fundados de sua prejudicialidade aos interesses do adolescente.
29
20
Período do governo municipal de Célio de Castro (Partido Socialista Brasileiro – PSB), do governo
estadual de Itamar Franco (Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB) e do governo
federal de Fernando Henrique Cardoso (Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB). De acordo
com o Projeto Político-Pedagógico do Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead), a unidade foi
criada “sob a responsabilidade da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PMBH), [...] que fez
parceria com a entidade filantrópica Providência Nossa Senhora da Conceição para seu
gerenciamento. Sua criação, sob a responsabilidade da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte
(PMBH), deve-se a uma solicitação da Vara da Infância e Juventude de Belo Horizonte, que pediu o
apoio do Município em caráter excepcional, já que naquele momento o Estado não poderia atendê-
la.” (PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DO CENTRO DE ATENDIMENTO AO ADOLESCENTE –
Cead, 2005, p. 6). Como se percebe, naquele contexto, a Prefeitura de Belo Horizonte assumiu uma
responsabilidade que caberia ao Estado, conforme da Lei 8.069/1990, Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), nos termos do artigo 125: “É dever do Estado zelar pela integridade física e
mental dos internados, cabendo-lhe adotar as medidas adequadas de contenção e segurança”. Não
pretendo aprofundar a questão, que, certamente, envolve dimensões de ordem administrativa,
econômica e política, mas chamo a atenção para o momento em que a Lei 8.069, de 13 de julho de
1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – foi sancionada em relação ao seu período de
materialidade. Isto é, cabe aqui uma reflexão sobre como as leis nem sempre estão de acordo com
as conjunturas sociais.
21
Nascido em Duque de Caxias, criado na favela Beira-Mar, Fernandinho Beira-Mar nasceu em 4 de
julho de 1967. É considerado um dos maiores traficantes de drogas e de armas da América Latina. A
título de informação, até o fechamento deste trabalho, Beira-Mar encontrava-se na Penitenciária
Federal de Mossoró, Rio Grande do Norte, desde 5 de fevereiro de 2011.
30
casas residenciais e comércio diversificado22, não podendo ser, por isso, classificada
geograficamente como um “arquipélago dos esquecidos” (FOUCAULT, 2009).
Em 14 de junho de 2004, o Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) passou a
ser mantido pela Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds), supervisionado pela
Superintendência de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Same) e gerenciado pela
Inspetoria São João Bosco (ISJB)23. Ou seja, a unidade passa a ser mantida pelo Estado e
inicia a gestão compartilhada com o Sistema Salesiano.
Assim, de acordo com o Projeto Político-Pedagógico do Centro de Atendimento ao
Adolescente (2005, p. 6), ficou acordado que:
22
Chamo a atenção para esse ponto, pois é característico que as instituições restritivas, – ou como
denominadas por Goffman (2001), “instituições totais” –, de modo geral, estejam “longe de tudo e
perto de nada”.
23
De acordo com o Manual do Colaborador Salesiano na Inspetoria São João Bosco, a inspetoria foi
criada em “11 de dezembro de 1947 com o desmembramento da Inspetoria Salesiana de São Paulo.”
(PAULA, 2005, p.79).
24
Os tópicos I e II fazem menção à cláusula sexta, do convênio firmado entre Estado e Inspetoria São
João Bosco. Os anexos III e IV mencionados não foram localizados para melhor esclarecer a
questão.
25
João Melchior Bosco (Dom Bosco), nasceu no dia 16 de agosto de 1815, no povoado denominado
Becchi, próximo a Turim, no Piemonte, ao norte da Itália. Padre aos 26 anos, desde a juventude se
pautava em trabalhar com jovens, por meio da evangelização e da educação. O método é baseado
em três pilares: Amor, traduzido na expressão italiana amorevollezza, no sentido de demonstrar para
o jovem a sua importância, ou seja, os jovens devem ter ciência de que são importantes e amados;
31
Em todo jovem, mesmo o mais complicado, existe uma corda que ainda vibra, e a
obrigação do educador é descobrir essa corda e tirar proveito disto.
(DOM BOSCO)
28
Essas condicionalidades fazem menção às implicações do ato infracional do adolescente e,
também, ao seu envolvimento com a criminalidade. Isto é, pode não ser adequado (em determinadas
circunstâncias) que o adolescente cumpra a medida na mesma unidade que o seu irmão ou
companheiros de gangue ou numa unidade que ele tenha ‘guerra’ com outro adolescente. Assim,
esse estudo de caso apurava as condições e as implicações de casa caso.
29
Alguns adolescentes não sabem informar a sua própria data de nascimento, o endereço completo
ou o número de telefone. Não que eles não queiram dizer, talvez seja uma demonstração do
“desconhecimento” de si.
30
Uma vez me perguntaram porque eu falo assim, então eu disse: “Você quer que eu diga – seja
‘mal-vindo’?”
33
deverão ser cumpridas em seu alojamento e nas outras 48 horas, ele já poderá circular na sala
de TV, com direito a 30 minutos de pátio pela manhã e 30 minutos à tarde” (REGIMENTO
INTERNO DO CENTRO DE ATENDIMENTO AO ADOLESCENTE – CEAD, Art. 12,
inciso I). Essas 72 horas serviam também para averiguar possíveis “rixas” do adolescente com
os demais internos.
Durante o período de acolhimento, o adolescente era atendido por um técnico de
referência (assistente social ou psicólogo), para iniciar o acompanhamento técnico e avaliar
possíveis demandas. Nesse mesmo período, o regimento interno era trabalhado com o
adolescente pela pedagoga.
A unidade realizava acompanhamento sociofamiliar, jurídico, psicoterapêutico,
terapêutico-ocupacional, pedagógico e de saúde básica. Fornecia também espaços para
escolarização, profissionalização, esporte, arte, lazer, grupos de reflexão, oficinas temáticas e
comissões de saúde, segurança e espiritualidade, que visavam a avaliação e a construção de
propostas para melhor funcionamento da unidade. Para tal, era preciso um grupo profissional
qualificado para lidar com a complexidade de cada caso. A equipe técnica da unidade era
multi e interdisciplinar31.
A unidade era constituída pelos seguintes profissionais:
31
Morin (apud RODRIGUES, 2000, p. 127), ao definir essas categorias, considera que “a
multidisciplinaridade ou pluridisciplinaridade trata do estudo de um mesmo objeto por várias
disciplinas; não há necessidade de integração sobre elas. [...] A transdisciplinaridade [...] promove a
troca de informações e de conhecimentos entre disciplinas, mas, fundamentalmente, transfere
métodos de uma disciplina para outras. [...] A interdisciplinaridade possibilita não só a fecunda
interlocução entre as áreas do conhecimento como também constitui uma estratégia importante para
que elas não se estreitem nem se cristalizem no interior de seus respectivos domínios; favorece o
alargamento e a flexibilização dos conhecimentos, disponibilizando-os em novos horizontes do
saber”. Para além dessas modalidades, os técnicos dessa unidade não se baseavam em equipes
como forma de atuação – reconheciam os saberes de outras áreas profissionais que formavam a
comunidade socioeducativa. O atendimento da unidade se fazia pelo princípio da “incompletude
institucional”, ou seja, o trabalho era desenvolvido com a coparticipação das instituições que
compunham o sistema de garantia de direitos e de outros parceiros.
34
32
O trabalho de percussão é desenvolvido na unidade pelo agente socioeducativo e arte-educador
Eurípedes Roberto Maximiano, e existe desde 2007. O grupo de percussão chamado
Tamborlescentes era formado por adolescentes que participavam dessa oficina. Tive o prazer de
acompanhar parte dessa atividade, que, além de abordar os fundamentos da música, a produção de
instrumentos e ensinar a tocá-los, faz riquíssimas associações com a dimensão socioeducativa.
33
Metodologia de trabalho desenvolvida pelo Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead), de 2004
a 2010.
36
estudo de caso que acontecia na unidade, com a equipe do Juizado da Infância e da Juventude
e o Ministério Público, com o objetivo de repassar o desenvolvimento do cumprimento da
medida socioeducativa de internação vivenciada pelos adolescentes e os encaminhamentos a
serem realizados com outros órgãos de defesa dos direitos dos adolescentes; aquele realizado
para encaminhamentos, como para cursos e/ou para algum tratamento de saúde mais
específico; e, por fim, o estudo de caso que acontecia em conjunto com outras instituições
socioassistenciais e/ou com unidades de atendimento ao adolescente, para realização de
encaminhamentos, com a finalidade de desligamento e/ou de progressão da medida.
O adolescente era envolvido em atividades tanto internas quanto externas. Permanecia
no alojamento somente à noite, para dormir, ou quando cumpria norma disciplinar34, e nos
demais horários, ficava na escola, no curso, na oficina. Alguns adolescentes estudavam ou
trabalhavam fora da unidade, em razão de seu bom desenvolvimento na medida e por não
estarem ameaçados de morte.
O atendimento técnico acontecia, semanalmente, por cada profissional. Eram
registrados em formulários técnicos específicos de cada área, respeitando as questões éticas.
O Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) desenvolvia três modalidades de
trabalho com as famílias. O primeiro era o Encontro com Famílias, realizado a cada três
meses nas dependências de uma instituição parceira, próxima à unidade, sem a presença dos
adolescentes em cumprimento da medida. Os familiares eram convidados a participarem
dessas atividades, que desenvolviam uma temática diferente a cada encontro, e que tinham por
base a convicção de que havia necessidade de proporcionar às famílias momentos em que
ficassem mais à vontade para conversar e discutir em grupo questões relacionadas às
diferentes temáticas abordadas – sexualidade, afetividade, etc.
A segunda modalidade era o Encontro Multifamília, que ocorria a cada seis meses
dentro da própria unidade. Realizavam-se palestras temáticas, oficinas, trabalhos lúdicos e era
oferecido almoço.
O terceiro trabalho era a Reunião Informativa, que acontecia conforme a demanda da
unidade, ou seja, quando era detectada a necessidade de informar os familiares a respeito de
mudanças na rotina institucional, ou outros assuntos de interesse da família sobre a rede
socioassistencial, e/ou para ouvir dúvidas dos familiares.
34
Norma disciplinar é uma sanção aplicada ao adolescente que cometeu ato que transgrida as
normas disciplinares, conforme a sua gravidade, o adolescente pode ser levado ao “alojamento de
reflexão” – mais conhecido como “sete”, por ser o sétimo alojamento dos corredores – de 12 a 96
horas. As normas disciplinares eram avaliadas e discutidas pelos técnicos e agentes socioeducativos
para decidirem sobre o seu término ou não.
37
na cotidianidade, com todas as faces de sua individualidade, envolvendo-se com todas as suas
habilidades e sentidos, porém, não em sua plenitude.
Netto (NETTO; CARVALHO, 2011, p. 65 a 67), embasado pela ótica lukácsiana,
afirma que a vida cotidiana é ontologicamente “insuprimível”, pois não há vida social sem
cotidianidade. Por isso, aponta três determinações fundamentais do cotidiano, as quais
comparecem em cada situação, sem considerar as relações que as vinculam. A primeira é a
heterogeneidade, por ser constituída de interseções de atividades que formam um núcleo de
objetivação do ser social; a segunda é a imediaticidade, pois a atividade cotidiana expressa a
relação direta entre o pensamento e a ação; e a terceira é a superficialidade extensiva, por
compreender que a mobilização do homem na cotidianidade demanda “todas as atenções e
todas as forças, mas não toda a atenção e toda a força”, todo ser social exerce as suas emoções
e os seus sentimentos, porém de maneiras diversificadas e com intensidades variadas.
Mas afinal, o que se compreende por vida cotidiana?
É aquela vida dos mesmos gestos, ritos e ritmos de todos os dias: é levantar nas
horas certas, dar conta das atividades caseiras, ir para o trabalho, para a escola, para
a igreja, cuidar das crianças, fazer o café da manhã, fumar o cigarro, almoçar, jantar,
tomar uma cerveja, a pinga ou o vinho, ver televisão, praticar um esporte de sempre,
ler o jornal, sair para um “papo” de sempre, etc. (NETTO; CARVALHO, 2010, p.
23)
Heller (1972, p. 18) afirma que “o homem já nasce inserido na cotidianidade” e que a
cotidianidade é construída na história, daí a importância desta, como uma das categorias
centrais para análise e compreensão do cotidiano.
A vida cotidiana não reúne todos os seres sociais ao mesmo tempo, no mesmo local,
fazendo as mesmas coisas e com os mesmos desejos e interesses. Está onde o homem está. O
homem não vive sozinho e ainda que ele se sinta ou tente essa vivência solitária, não obterá
êxito, pois mesmo na vida solitária, na solidão, na falta de vínculos afetivos e sociais, é
preciso a participação do outro para compor essa condição de vivência.
No caso do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de internação, é
importante ressaltar que a unidade não é o mundo em si, e nem pretende sê-lo. Por mais que
haja grades, camas de alvenaria e horários controlados, existe um mundo que parece estar do
lado de fora da unidade, mas não está: a unidade está dentro desse mesmo mundo, porém,
ocupando dimensões e vivenciando condições particulares.
O cotidiano institucional é uma das múltiplas dimensões da vida cotidiana; não há
como fragmentar a cotidianidade35. É constituído por pessoas, por regras, por normas e por
relações de poder36. A segurança de uma unidade não está somente sob a responsabilidade dos
agentes socioeducativos, mas de todos que ali trabalham. Todas as atividades socioeducativas
visam a produção e a manutenção da segurança institucional. Essa dimensão do cotidiano tem
a vida do outro como “vida nossa”, por causa da responsabilidade institucional quanto aos
cuidados e à atenção às demandas do adolescente. A vida cotidiana não acaba para o
adolescente quando ele vive o cotidiano institucional, pois todas essas dimensões constituem
o seu “mundo da vida” (BAPTISTA, 1998), que é o cotidiano.
35
O cotidiano “grita do lado de fora”, um ponto de reflexão no espaço privativo. Isso, por compreender
o “lado de fora” e o “lado de dentro”. Essa divisão dá a impressão de que o tempo da medida é um
“tempo morto”, que a vida está parada.
36
As relações de poder podem estar em qualquer nível de relação institucional. Mattos (2009, p. 15),
em estudo realizado em uma unidade de atendimento em Belo Horizonte, apresenta um discurso do
corpo diretivo: “O menino tentou fugir, foi excesso de confiança da nossa parte. Estamos relaxando
com nosso serviço. Eles estão começando a mandar de novo. Nós temos que provar que quem
manda aqui somos nós... Temos que ser rígidos com quem fizer isso [referindo-se a adolescentes
que estavam se armando com chuço de arame das grades protetoras das lâmpadas]. O último
adolescente que morreu aqui dentro foi furado com isso... Bate. Bate, mas não deixa marca
(Informação Verbal)”.
40
37
Cabe citar alguns atores que mais embasaram os meus estudos sobre a questão social: Carvalho
(2001, 2002, 2005), Castel (2007), Demo (1998), Fernandes (1972), Galeano (2002), Huberman
(1984), Iamamoto (1998), Martinelli (1995), Martins (1997) e Yasbek (2003).
41
38
Questionamentos críticos acerca da violência, da pobreza, do racismo, do desemprego, entre
outros.
42
uma referência positiva para os adolescentes (SOARES, 2005). Esse posicionamento está
relacionado com o segundo dos três pontos, que é a observação, isto é, o olhar39: não como
curiosidade, mas como atenção. Como diz Fernando Pessoa, por meio do heterônimo Alberto
Caeiro, em o Guardador de Rebanhos (PESSOA, 2011, p. 35):
Nessa relação, parafraseando Pessoa, digo que “alegres de nós que trazemos o espírito
desnudado”.
E, assim, foi possível construir o terceiro ponto, que é a confiança. Como construção,
a confiança exige espontaneidade, sinceridade e entendimento das ações desenvolvidas e do
seu contexto institucional. No caso do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa
de internação, todo e qualquer tipo de trabalho pode assumir sentidos diferentes, devido à
complexidade do contexto em que vivem e às formas de relacionamento que nele são
estabelecidas.
Aproximação, observação e confiança formaram o tripé dessa metodologia, iniciada
em 2007. Ficou evidente que é possível – tanto para os adolescentes quanto para o arte-
educador – nos aproximarmos de alguém ou de algo, de diferentes formas, o que encaminha
para diferentes resultados. Nessa aproximação, há possibilidade mútua de observação e, no
39
Nesta dissertação, quando me refiro ao olhar, aponto para o fato de que qualquer observação é,
necessariamente, norteada pela visão de mundo de quem a realiza, a qual determina as dimensões
do seu olhar.
43
momento em que isso ocorre, pode acontecer ou não uma aceitação impregnada de mútua
confiança. Daí a necessidade de ter analisado com cuidado esse movimento, em sua
totalidade, dentro de uma conjuntura institucional. A confiança, nesse contexto, teve o sentido
de um “semáforo”40, que contribuiu para a condução dos fatos na sua velocidade, isto é, a
atenção para não inibir a espontaneidade e, ao mesmo tempo, o planejamento para iniciar as
oficinas de RAP e de poesia. Assim, aproximação, observação e confiança corroboraram para
a criação de um vínculo41, pois segundo o Relatório Anual da Fundação Criança (1999 apud
BAPTISTA, 2000, p. 87):
O vínculo tem o seu papel preponderante em toda e qualquer ação que objetive
mudanças e transformações, funcionando como o elo de uma corrente que liga os
indivíduos sem prendê-los. Elo flexível que permite renovar os sentimentos e
atitudes grupais e individuais, quebrando preconceitos, impedindo que os rótulos se
tornem permanentes e os papéis fixos.
40
Na minha observação, isso não foi singular. Os adolescentes também se aproximaram de mim e
me observaram, antes de depositarem confiança. De acordo com Baptista (2000, p. 87): “Entre
educador e adolescente é construída uma situação de inter-relação dialética de reciprocidade, na
qual não apenas o educador reflete sobre a conduta do jovem, mas também o jovem analisa o modo
de se relacionar do educador.”
41
Outra questão relacionada a esta abordagem é o próprio significado da palavra vínculo: ela vem do
latim vinculum, vincire e significa unir, atar. Aqui, para além desse significado, trago esse termo
também no sentido da identificação e do sentimento de pertencimento que mantém a relação dos
adolescentes com as oficinas que, nessa experiência, proporcionou a responsabilidade e o
compromisso em estabelecer trocas e diálogos espontaneamente. Isto é, vinculação que, conforme
Batista (2000) não quer dizer homogeneização de papéis (dos educadores e dos adolescentes) por
considerar as diferenças e os deveres que há entre eles. Nessa abordagem, ‘vínculo em si com apoio
do outro’. Para análise da questão do vínculo busquei também outros autores que discutem essa
questão: Frasseto (1999), Gayotto (2000), Heller (1987).
42
Aqui, uso a expressão “autor de atos sociais” para diferenciar e compreender o sujeito – o
adolescente – da ação que ele cometeu. O adolescente nunca é o que ele fez ou faz. Quando é visto
44
dessa forma anulamos o seu próprio eu e criamos um terreno fértil para a produção de preconceitos e
de estigmas. Assim, “autor de atos sociais” remete à responsabilização e à valorização do sujeito,
numa perspectiva transformadora, por meio da socioeducação. (SOARES, 2005, 2011)
43
Importante lembrar a nota de rodapé 41, na página 43.
45
Figura 1 – Local onde aconteceu a primeira oficina. Crédito: Daniel Péricles Arruda.
44
O vinil também conhecido como Long Play (LP) é mantido vivo no Brasil, principalmente, pela
cultura Hip Hop. Começou a perder espaço para o Compact Disc (CD), a partir da primeira metade da
década de 1990. A Polysom, fábrica localizada em Belford Roxo/RJ, é a única da América Latina que
ainda produz e comercializa.
45
É o movimento que os DJs fazem com o a mão em cima do vinil, indo para frente e para traz – giro
do disco no sentido contrário –, para produzir sons diversificados.
46
Todo material era organizado de acordo com a temática que iria ser trabalhada. Eu
tinha o cuidado de separar as músicas de RAP e de outros estilos, vídeos e livros de poesia,
conforme o perfil do grupo e de acordo com as questões que eram necessárias.
Todas as oficinas exigiam preparação, estratégia, material de trabalho, linguagem
apurada e percepção para que eu pudesse compreender as expressões verbais e atitudinais dos
adolescentes. As oficinas não apontavam como eles deveriam ser ou como eles deveriam
pensar, mas procuravam identificar o quê e como eles pensavam sobre tal temática46.
Como falar sobre pobreza e violência com aqueles que viveram na pele esses temas?
“Falar de exclusão ao ‘excluído’ é humilhá-lo, um gesto de prepotência interpretativa próprio
de quem pertence ao mundo do mando e não ao mundo do nós e da partilha” (MARTINS,
2002, p. 44). A questão não era falar de, mas refletir sobre tal assunto. Para levá-los à reflexão
era necessária uma linguagem simples, envolvente e respeitosa. As oficinas aconteciam
também em atenção ao momento vivenciado pela unidade47, por isso era de suma importância
o apoio e o envolvimento de outros profissionais na sua realização.
A formação dos grupos era feita considerando a relação entre eles, pois realizar as
oficinas com adolescentes que estejam em alto nível de conflito entre si poderia acarretar
situações imprevistas e comprometer o funcionamento.48
Era necessário preparar o ambiente em que as oficinas iriam ser trabalhadas: eu
utilizava uma música ambiente para harmonizar e suavizar o clima; afixava a cada oficina
uma frase diferente na entrada da sala para servir-lhes de acolhida e para ser um ponto de
reflexão. Uma das frases que mais contribuiu era do poeta gaucho Mário Quintana: “Às vezes
a gente pensa que está dizendo bobagens e está fazendo poesia.”
46
A título de exemplo, existe um vídeo da BBC Brasil – o qual pode ser visto no site you tube – que
mostra o trabalho realizado pelo monge Kansho Tagai que transmite os ensinamentos budistas
(sutras), em um templo liderado por ele no centro de Tóquio, por meio do RAP. O monge não
conseguia entender as letras de RAP, que eram em inglês. Daí, ele percebeu que o mesmo ocorria
com os sutras budistas por causa que a maioria das pessoas não compreendia nada. Por essa razão,
o monge começou a realizar trabalhos com jovens mesclando o sutra com termos simples em
japonês moderno, por meio do RAP. O monge pretende misturar sapateado com o budismo e
pretende aprender a sambar e a fazer o passo de dança moonwalker, de Michael Jackson. Kansho
Tagai é uma referência local, onde é chamado de “Senhor Felicidade”.
47
Conhecer e compreender as implicações do ato infracional e o momento vivenciado pela unidade
são de suma importância para saber qual temática é mais cabível naquele momento e como se deve
trabalhá-la.
48
Não quero dizer que não era possível trabalhar com adolescentes que não conversam um com o
outro. Ressalto apenas a atenção às relações tecidas entre os adolescentes e os seus riscos.
47
Eis aqui, um ponto crucial. O que são bobagens? Naquele contexto, para os
adolescentes, bobagens eram as suas ideias tímidas que estavam guardadas dentro de si;
formas de se protegerem. Por isso que era importante dizer para eles o significado das coisas.
O que é poesia? “Poesia é voar fora da asa”, como diz o poeta Manuel de Barros (2008, p.
21). Poesia é uma forma de ver, de expressar, de sentir e de compreender a vida.
Além do conceito era necessário elevar o seu ao patamar de reflexão. Não era somente
a produção de RAP e de poesia que possibilitaria a superação da alienação do cotidiano
(HELLER, 1972), mas a ambiência em que essas oficinas ocorriam, Essa ambiência era
constituída pela preparação que antecipava as oficinas, mais as discussões que antecediam o
ato de escrever. Nas conversas, surgiam palavras ou frases interessantes, então eu dizia:
“Você viu o que você falou? Escreva isso.” As discussões eram “rios emaranhados de
peixes”, e o meu papel era ajudá-los a jogar a rede, ou ajudá-los a identificar ou a criar o
nome dos peixes.
O momento da apreensão do pensamento não tinha hora certa para acontecer. Havia
adolescentes que apresentavam facilidade para escrever e outros com dificuldades para
escrever ou desenhar, mas sempre demonstravam o desejo de se expressarem49.
49
A baixa escolaridade não desqualificava a capacidade subjetiva do adolescente em se expressar.
Por isso, é necessário desconstruir a ideia de que todos os desenhos feitos de traços fortes e/ou
rabiscados são expressões negativas, como, raiva, tristeza, etc. Percebia que muitos desenhos com
essas características também eram feitos por falta de habilidade com o lápis, e, até mesmo, por uma
razão positiva ao encontrarem prazer em desenhar daquela forma.
48
Nesse momento, eles pegavam o papel e a caneta para começar a produzir50. Era muito
comum ouvir a frase “olha aqui se ‘tá’ errado?”. Havia insegurança, dificuldade de começar e
vários começos apagados, vistos pelas marcas no papel.
50
Dar um papel e um lápis para o adolescente e dizer “escreve aí qualquer coisa” é incompetência de
quem ministra as oficinas. Um papel em branco assusta, e muito. Ao contrário do ditado popular, digo
que “papel não aceita tudo”. Antes do papel e do lápis é preciso motivos, fundamentos. É importante
que o adolescente entenda o que é e para quê são as oficinas, pois pode ficar entendido que as
oficinas são “técnicas de obter confissões” e/ou que as poesias que eles produzirem podem servir de
provas contra eles. Cabe dizer, também, que nem todas tinham produção escrita, mas produção de
ideias e de diálogos. O RAP e a poesia eram formas de apreendê-las.
49
A arte revela ao homem a sua essência. Mas, quem é esse homem capaz de entendê-la,
capaz de afirmar a infinitude das possibilidades genéricas, capaz de reconhecer
a sua própria natureza nos objetos exteriores?
(FREDERICO, 2005, p. 36)
51
Por favor, amigos e companheiros rappers, poetas e arte-educadores, não pensem que estou
apresentando uma forma única de realizar oficinas, ou que essa construção é produto de uma
“grande descoberta”, ou que estou fazendo uso dessa arte sem reconhecer e defender as suas
origens e o seu aspecto de formação crítica. A utilização dessa arte é uma forma de ampliar seus
espaços de atuação e de alcançar os adolescentes e os jovens que as tenham como uma “lupa” para
enxergar a vida. O objetivo, aqui, é que essa metodologia sirva de apoio, de referência e de
motivação na construção e/ou na complementação de trabalhos de socioeducação, que são
realizados por meio da arte.
52
que comece e termine em si52, mas sim, estruturar um referencial dinâmico, flexível, de
cunho socioeducativo, que ancore a elaboração e a realização de oficinas de RAP e de poesia
– podendo subsidiar também outras modalidades de oficinas, como as de teatro, de percussão,
etc. –, com vistas ao processo de redirecionamento da sociabilidade53 vivenciado pelo
adolescente em medida de privação de liberdade, concomitantemente aos objetivos da medida
socioeducativa de internação.
Em minha experiência pude aprofundar algumas questões com os adolescentes, por
utilizar essa arte – o RAP e a poesia – também nos atendimentos e nas intervenções.
O trabalho por meio das oficinas não deve ser realizado de maneira isolada, mas de
maneira articulada com a unidade e, nesse caso, de forma mais sistematizada e imediata com
algum setor da instituição, por exemplo, a escola.
O interesse pelas oficinas pode surgir de várias formas: mediante solicitação dos
adolescentes – essa via contribui para o avanço de algumas etapas das “sucessivas
aproximações” (BAPTISTA, 2006); mediante proposta externa de algum arte-educador; ou
mediante proposta da própria unidade. Essas vias demandam cuidado no trato de um possível
estranhamento dos adolescentes com as oficinas e/ou com a pessoa que a ministrará.
Após a articulação com a instituição é interessante que o responsável em ministrar as
oficinas seja apresentado aos adolescentes – se possível, não no dia da oficina, mas alguns
dias antes. Na apresentação, é importante que ele fale sobre elas e informe o porquê de serem
realizadas.
Todo o trabalho deve ser planejado, articulado e compartilhado com os profissionais
da unidade, de acordo com os objetivos e as etapas do processo das oficinas. É de suma
importância que todos os profissionais da unidade tenham fácil acesso aos detalhes das
oficinas, que podem (e devem) ser socializados, por meio de um projeto que conste:
apresentação sucinta da oficina; os objetivos; o detalhamento de como e onde serão realizadas
(o local deve ser agendado e/ou combinado com antecedência e deve ser organizado antes da
chegada dos adolescentes); as temáticas; os materiais necessários (papel, lápis, borracha,
52
Peço atenção ao leitor nessa afirmação, pois não quero dizer que não é importante que algum
adolescente queira ser rapper ou poeta. A questão é que isso tem que partir dele, no processo natural
da oficina. Outra questão é que as oficinas não se baseiam num momento silencioso em que todos
ficam “suspensos” em suas ideias. A arte não é contra a gargalhada, o sorriso e o divertimento. A arte
precisa também desses três últimos elementos para se constituir. A questão lúdica a que me refiro é
que o RAP e a poesia sejam abordados na perspectiva possibilitadora de transformação daqueles
que estão envolvidos nela. Pois, de acordo com Netto “a poesia como a arte é uma forma de
conhecimento, mas ela pode ser desqualificada” (NETTO – anotação de aula no dia 08 de outubro de
2010). Essa desqualificação pode ocorrer de várias formas, inclusive, pela forma que essa arte é feita
e apresentada.
53
Expressão utilizada por Silva Losacco (2004), ao analisar o processo de socioeducação.
53
54
De acordo com a página 47.
55
significa anular ou a proibir o que ele pensa ou traz, mas fazer um apontamento para o novo,
para algo complementar – tal questionamento se relaciona, de certo modo, com a crítica
marxista, que é uma negação dialética, que perspectiva a superação. É o momento em que se
pode discutir em grupo a letra da música e/ou da poesia, com vistas a analisar a relação dela
com a vida do adolescente. Essa discussão pode ser articulada com histórias, fatos cotidianos
para que este não se torne um momento fechado e possibilite entradas, movimentos e saídas
na discussão, ou seja, uma dinâmica de interação, por meio do diálogo. Essa etapa vai
sinalizar para o surgimento das reflexões.
3) Ponto de chegada: é o ponto máximo da reflexão, ponto de encontro e/ou de
descoberta, no qual o adolescente alcança a “superação da alienação”. Momento em que se
pode ouvir frases do tipo: “Eu não sabia que era assim!”; “Oh! Eu nunca pensei desse jeito”;
ou “Que doido, velho!”.
Seria, provavelmente, a mesma sensação ao ler os textos abaixo e logo descobrir quem
os escreveu:
Amadinha do meu coração, torno a te escrever porque estou sozinho e porque me
cansa ficar dialogando na minha cabeça o tempo todo, sem que tomes conhecimento
disso, sem que possas me ouvir e responder.
Beijo-te dos pés à cabeça, caio de joelhos diante de ti e gemo: amo-a, minha
senhora. De fato, te amo. E te amo mais do que o mouro de Veneza jamais amou 55.
(SCHWERBROCK apud KONDER, 2009, p. 24)
55
Esses trechos são da carta de Marx a Jenny, escrita 21/6/1856.
56
esperadas, ainda que menos alienadas. Como lidar com isso56, considerando que “nem todos
os sujeitos receptivos possam reagir adequadamente à arte no modo a que nos referimos”
(LUKÁCS, 1978, p. 294). Em minha experiência no Centro de Atendimento ao Adolescente
(Cead), descobri que, geralmente, por traz de cada palavrão tinha alguém ou algo, ou seja, não
se baseava somente no hábito ou no costume. Todo palavrão tinha um significado. Esse era,
portanto, também, o momento de se trabalhar a questão do respeito.
4) Distanciamento da chegada: é o começo do retorno – mas não para o ponto de
partida. Se o adolescente inicia um processo de rompimento com a alienação, dificilmente
retornará ao ponto de partida. Nesse momento, o adolescente começa a escrever ou a desenhar
o que alcançou. Considero essa fase o momento mais íntimo da oficina, pois o adolescente
precisa de privacidade para escrever. Por essa razão, não é aconselhável que o responsável por
ministrar as oficinas e os agentes socioeducativos “vigiem” o que ele está escrevendo. É
preciso ter uma distância física dos adolescentes, para que eles fiquem mais à vontade. A
aproximação é interessante apenas quando solicitada por ele.
5) Ponto de retorno: é quando se expressa a consolidação do que ele aprendeu nesse
percurso. Se, nesse ponto o adolescente for o mesmo do ponto de partida, considera-se que
não houve superação, não aconteceu a volta comentada por Goldmann (1979, p. 21):
Assim, eis-nos aqui, de volta ao ponto de partida: toda grande obra literária ou
artística é expressão de uma visão do mundo, um fenômeno de consciência coletiva
que alcança seu máximo de clareza conceitual ou sensível na consciência do
pensador ou do poeta.
56
Eis a questão: proibir ou não proibir? Como fazer? Mandar apagar? Fingir que não ouviu e/ou viu?
Antes de responder a essas questões, pergunto: por que as gírias e os palavrões incomodam tanto
quando são falados na música RAP e quando estão em outros estilos musicais, como em Seu Jorge
e Ana Carolina, na música Chatterton; em Legião Urbana (Renato Russo), na música Faroeste
Caboclo; em Ultraje a Rigor, na música Filha da Puta, por exemplo, não causam incômodo? Em
minha experiência, os adolescentes preferiam não colocar palavrões, porque queriam mostrar para a
família e para os profissionais da unidade. A questão é interpretar em qual campo que esses
palavrões estão, se é no campo do insulto, do desrespeito, da expressão, da indignação. A questão
do palavrão talvez seja mais um problema nosso, do que deles, pois quando há preconceito, toda
palavra não entendida, toda gíria pode ser classificada como palavrão. Já passei por situações em
que o adolescente se referia a uma pessoa que ele não gostava, por meio de um palavrão. Sugiro
uma cuidadosa reflexão dessa questão, a partir do filme Voo noturno: o lado selvagem do rap (1992)
– não confundir com o filme Voo noturno, de 2005. Em relação às gírias, indico a dissertação de
Alves (2008) e a tese de Luz (2007), na qual os autores apresentam gírias e expressões utilizadas
pelos jovens da cultura Hip Hop, com os seus devidos significados.
57
57
Para Goldmann (1979, p. 17), a visão do mundo “não é um dado empírico imediato, mas, ao
contrário, um instrumento conceitual de trabalho, indispensável para compreender as expressões
imediatas do pensamento dos indivíduos”. O autor afirma também que “uma visão de mundo é
precisamente esse conjunto de aspirações, de sentimentos e de ideias que reúne os membros de um
grupo (mais frequentemente, de uma classe social) e os opõem aos outros grupos.” (GOLDMANN,
1979, p. 20).
58
Inspirei-me nesse termo ao trabalhar com um profissional, há anos, que para tudo o que as
pessoas lhe pediam, ele dizia não, sendo que na maioria das vezes, era possível dizer sim. O não era
uma defesa para evitar responsabilidade, isto é, evita-se um compromisso negando sua realização.
58
pilares são relativos, na medida em que há que se fazer uma mediação: as características
deverão ir se construindo de acordo com a forma como as oficinas se desenvolvem, uma vez
que:
Capítulo 2
A RELAÇÃO ATO INFRACIONAL E VIOLÊNCIA
Por favor, não me entendam mal. Não estou elogiando a violência nem mesmo a justificando.
Não pretendo defender a agressão. Desejo apenas compreendê-la.
Não há como mudar uma realidade se não a compreendermos.
(SOARES, 2005, p. 216)
Nesse caso, uma pessoa foi condenada por ter matado o pai e, consequentemente,
levada e condenada ao “mundo público”. A punição foi exposta em meio aberto para servir de
exemplo à população e o teor sádico incluía todo corpo. Assim, o fim maior da punição é o
término da existência humana de quem cometeu o delito e a sensação de que o castigo
aplicado foi justo. As punições eram vistas como um “espetáculo punitivo”.
Desse modo, chamo a atenção para o fato de que falar sobre violência não implica
assumir um lado ou outro, mas apreender, no tempo, o quê, o para quê e o como.
60
59
Depoimento colhido no Programa Roda Viva, com Luiz Eduardo Soares em 30/11/2010.
61
O Mapa da Violência 2011: os jovens do Brasil, escrito por Julio Jacobo Waiselfisz60,
apontou que Belo Horizonte/MG, em 1998, estava em 17o lugar no ordenamento das capitais,
por taxas de homicídio, com o índice de 42,9 assassinatos, em 100 mil, de jovens 15 a 24 anos
de idade. Uma década depois, em 2008, estava em 7o lugar, com o índice de 116,3, por cada
100 mil61.
A concentração de homicídios está na população juvenil, basicamente na faixa etária
de 15 a 24 anos, que tem se estendido até os 29 anos.
A vítima letal brasileira típica é jovem, do sexo masculino, tem entre 15 e 24 anos
(ainda que o espectro etário se estenda rápida e perigosamente para baixo e para
cima), mora nas vilas, favelas ou periferias das metrópoles e, frequentemente, é
negra. Portanto, ainda que haja tantos casos atingindo membros de outros grupos
sociais e outras faixas etárias, o alvo estatisticamente mais provável da modalidade
mais grave da violência tem idade, cor, sexo, endereço e classe social. (SOARES,
2005, p. 247).
60
Cabe destacar um ponto de suma importância apresentado pelo Mapa da Violência 2012: os novos
padrões da violência homicida no Brasil. Apresenta dados estatísticos sobre homicídios no Brasil, nas
décadas de 1980 a 2010, e demonstra que morreram mais pessoas, vítimas de homicídio (192.804 e,
destes, 147.373 por arma de fogo) do que os outros eventos armados no mundo, mesmo sendo um
País em que não há guerra civil e/ou enfrentamentos territoriais, religiosos e étnicos, segundo o Mapa
da Violência 2012. “E esses números não podem ser atribuídos às dimensões continentais do Brasil.
Países com número de habitantes semelhante ao do Brasil, como Paquistão, com 185 mi habitantes,
têm números e taxas bem menores que os nossos. E nem falar da Índia, também elencada, com
1.214 mi de habitantes”. (WAISELFISZ, 2012, p. 21). No Brasil, temos múltiplas manifestações da
violência fora de uma situação de conflito entendida como guerra. A banalização e a naturalização
dessas múltiplas manifestações alimentam a barbárie social. Nas palavras de Soares (2005, p. 247):
“Há um déficit de jovens, entre 15 e 24 anos, na sociedade brasileira – fenômeno que só se verifica
nas estruturas demográficas de sociedades que estão em guerra. Portanto, o Brasil vive as
consequências de uma guerra ‘inexistente’, mais que qualquer outro, setor social está pagando com a
vida o preço dessa tragédia.”
61 o o
O mesmo estudo apontou São Paulo/SP, em 1998, no 6 lugar (122,3) e, em 2008, no 27 (23,4).
o o
Rio de Janeiro/RJ, em 1998, em 3 (141,1) e, em 2008, 20 (72,8). Maceió/AL, em 1998, estava em
o o
15 (54,3) e, em 2008, estava em 1 (251,4).
62
62
Soares (2005), ao falar sobre a cultura da paz, afirma que a violência se aprende, assim como se
aprende a exercer e guiar-se para a paz. “O senso comum supõe que a violência seja a explosão
animal de um fogo interno que arde em nós.” (SOARES, 2005, p. 237).
63
Vide a dissertação de Toledo (2007).
64
Tenho o cuidado de compreender a categoria e o nível de envolvimento do adolescente com a
prática infracional, pois há adolescentes que, mesmo cometendo atos infracionais, não apresentam
relações com a criminalidade. O seu envolvimento está inserido numa gama de papéis e
representações. Para essa reflexão, conferir Zaluar (1994, 2000, 2004, 2008).
65
Sobre essa questão, Soares (2005, p. 218) afirma que “a carreira do crime é uma parceria entre a
disposição de alguém para transgredir as normas da sociedade e a disposição da sociedade para não
permitir que essa pessoa desista”.
63
fácil? A vida do crime é uma bandeja que nem sempre traz o que o adolescente pediu,
certamente:
Ainda por motivos ilusórios e passageiros, a violência dá prazer, fortalece a auto-
estima, proporciona a fruição do respeito e da admiração que advém do
pertencimento a um grupo, permite o acesso ao desejo das gurias (e dos guris),
garante ingresso na festa hedonista do consumo. Então, cabe-nos criar condições
para que pelo menos as mesmas vantagens possam ser experimentadas no lado de
cá. (SOARES, 2005, p. 241)
A prática do ato infracional seria uma forma de romper a invisibilidade? Não como
generalização, mas como raciocínio analítico e fundamentado, Soares (2005) afirma que a
estigmatização, o preconceito, a indiferença e a negligência são fatores que anulam o
reconhecimento do sujeito tornando-o invisível para o acesso aos direitos e a uma “boa
condição humana”66.
A invisibilidade não está relacionada diretamente com o ser ou não ser visto, mas com
o modo como se é identificado e se é reconhecido pelo outro. Nessa questão, há distinções
entre o preconceito e a indiferença, na medida em que ambos atuam como anulação da
pessoa; a indiferença negligencia, já o preconceito projeta nela uma imagem não verdadeira e
pré-formada (SOARES, 2005). O que resulta, então, em olhares não acolhedores:
Nós nada somos e valemos nada se não contarmos com o olhar alheio acolhedor, se
não formos vistos, se o olhar do outro não nos recolher e salvar da invisibilidade –
invisibilidade que nos anula e que é sinônimo, portanto, de solidão e
incomunicabilidade, falta de sentido e valor. (SOARES, 2005, p. 206)
66
De acordo com Rios (2006, p. 7), “não existe natureza humana – o que existe é a condição
humana, que os homens constroem juntos, historicamente. Essa condição humana pode ser boa ou
má”.
64
um sentimento que, para o autor, é medo. E, “como aquilo que se prevê é ameaçador, a defesa
antecipada será a agressão ou a fuga, também hostil. Quer dizer, o preconceito arma o medo
que dispara a violência, preventivamente” (SOARES, 2005, p. 175).
É comum noticiários trazerem títulos como: “Menor que matou adolescente no
Juramento se apresenta à polícia”67. O termo “menor”, mencionado principalmente em fatos
de cunho infracional, reduz a condição do adolescente, ao mesmo tempo em que amplia os
preconceitos e as rotulações. Quem é o menor? Quem é o adolescente?
Rios (2006) chama a atenção para três pontos principais para se compreender a
realidade, consequentemente, os pilares para a o estudo da invisibilidade. O primeiro ponto é
a clareza em relação ao nosso ponto de partida, que são nossos valores e a nossa cultura.
Mesmo com esses pontos de partida, as ideologias e os preconceitos podem distorcer a forma
de enxergar algo ou alguém. O segundo ponto é a profundidade, ou seja, ir além da superfície
das questões, ir além do que as imagens apresentam ser, é o que dizem os filósofos: “sair da
aparência e ir à essência”. O terceiro e último ponto é a abrangência, devido à contradição da
realidade: não isso ou aquilo, mas isso e aquilo – há necessidade de apreender a realidade em
seus diversos ângulos e em perceber múltiplos pontos de vistas de seus atores.
A partir das minhas reflexões, construí um quadro acerca das modalidades de
invisibilidade, com base em Rios (2006), Soares (2005), Sales (2007) e Braga (2004):
67
Título de uma reportagem publicada em 23 set 2011, às 11h03, no portal O Globo Rio. Disponível
em: <http://oglobo.globo.com/rio/mat/2011/09/23/menor-que-matou-adolescente-no-juramento-se-
apresenta-policia-925424800.asp>. Em entrevista, no Programa Roda Viva, de 30/11/2010, Luiz
Eduardo Soares enfatiza que “os jornalistas não têm formação para lidar com o crime”. É percebido
que a questão criminal – neste estudo, questão infracional –, é abordada como notícia não imparcial e
sem fundamento reflexivo.
65
Essas são as pessoas que a gente não vê, que são os outros. São outros eus. Não são
eu, mas são como eu, e é muito difícil admitir essa existência. Porque Narciso acha
feio o que não é espelho. É importante, entretanto, pensar que a nossa identidade é
garantida pelos outros, pela presença da alteridade. Mesmo no espelho mais
cristalino, a imagem que eu tenho de mim é invertida. Quem fala de mim é quem me
vê, quem está na minha frente – é o outro, o alter, aquele que me reconhece. Quando
deixo de reconhecer o outro, nego ao outro a sua identidade. Se não levo em conta a
alteridade, a presença do outro, instalo algo chamado a alienação, porque quando
deixo de reconhecer o outro, nego ao outro a sua identidade. Marx falou da
alienação econômica. Podemos falar numa alienação ética, que é o que ocorre
quando olhamos os outros sem ver, ou quando vemos sem crítica, quando não
reparamos. (RIOS, 2006, p. 7)
O senso comum é comum não porque seja banal ou mero exterior conhecimento.
Mas porque é conhecimento compartilhado entre os sujeitos da relação social. Nela
o significado a precede, pois é condição de seu estabelecimento e ocorrência. Sem
significado compartilhado não há interação (MARTINS, 2008, p. 54).
68
Cultura, do latim culture, significa “o cuidado disponibilizado ao campo ou ao gado”, surgiu no fim
do século 13 para referenciar uma parcela de terra cultivada. No século 16, começa ganhar sentido
figurado, podendo fazer referência à cultura de uma faculdade, ou seja, a ação de trabalhar para o
seu desenvolvimento. O século 18 é considerado o início de seu sentido moderno (CUCHE, 2002),
que teve a filosofia Iluminista como um de seus pilares.
66
É imediata a identificação do animal com a sua ação vital. Entretanto, o homem parte
da vontade e da consciência, realizando uma “atividade vital consciente” que abre a sua
possibilidade para assumir-se como “ser genérico”, transformando a natureza.
A partir dessas reflexões, assumo, nesta dissertação, como conceito de cultura, o
proposto por Chauí (2000, p. 61):
Chauí (2000) aponta que, para a filosofia do século 20, não há “a Cultura” como
unidade básica e ampla, mas “culturas diferentes”. Cada uma produz o seu modo de vida, suas
expressões linguísticas, suas relações sociais, conforme o processo político, econômico,
social, geográfico e histórico em que se constitui.
Portanto, essas três categorias – a invisibilidade, a violência e a cultura – não são
fechadas em si. Compartilham entre si e com um conjunto de categorias relacionadas à vida
em sociedade, e podem possibilitar a expressão de categorias ontológicas, bem como de
categorias constituída por processos emergentes, oriundos dessa relação. Percebo que a
identidade70 é das categorias que se evidência por:
O que posso afirmar, a partir dos estudos realizados, é que os fatores que produzem e
reproduzem a invisibilidade e a violência, compondo uma cultura, não ocorrem apenas em
razão de fatos ocorridos na realidade imediata; existem outros fatores, de ordem maior, que
70
Cf. Hall (2006, 2009), que afirma que a identidade é mutável e que esse processo não tem fim. O
autor contrapõe a ideia de que a identidade é única, pois, caso fosse, não seria possível que as
pessoas construíssem a sua história, sendo elas as mesmas do nascimento até a morte. Esse
pensamento, nas palavras do autor, seria uma “fantasia”. Hall (2006, p. 39) sugere que “[...] em vez
de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um
processo em andamento.”
68
são determinantes e que resultam da inversão da leitura daquela realidade ou, até mesmo, de
uma cultura de naturalização da violência e da invisibilidade:
Se é assim, o jovem invisível que recorre à arma para pedir socorro e reconquistar
visibilidade, afirmando-se pelo avesso, só pode fazê-lo, porque esta é uma das
hipóteses que nossa sociedade colocou à sua disposição e a cultura sancionou-a.
(SOARES, 2005, p. 240).
Figura 6: Gráfico da evolução da privação e da restrição de liberdade no Brasil. Fonte: Secretaria Nacional
dos Direitos Humanos - Levantamento Nacional de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito
com a Lei (2010, p. 7).
71
O levantamento foi constituído a partir de dados e informações repassados por gestores estaduais
do Sistema Socioeducativo para a Secretaria de Direitos Humanos e Secretaria Nacional de
Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente.
69
As tabelas abaixo apresentam os dados dos 1.432 adolescentes que foram atendidos
em medida socioeducativa de internação, em Minas Gerais, no ano de 201072.
Ao término das tabelas que apresentam o índice dos atos infracionais cometidos pelos
adolescentes (Tabela 10) e da sequência de tabelas acerca do uso autodeclarado pelos
adolescentes de substâncias ilícitas e lícitas73 (Tabelas 12 a 19), que são apresentadas em
números relativos – percentuais –, construo uma síntese da conversão dos números relativos
em números reais. Para tanto, foi preciso fazer aproximações numéricas – tendo por base a
somatória real dos sujeitos –, de forma a apresentar os números reais, em vez das
porcentagens. Nas demais tabelas, apresento alguns números reais e os números relativos
entre parênteses.
Tabela 3
72
A coleta e a elaboração dos dados foram feitas e cedidas para esta pesquisa, pela Diretoria de
Gestão da Informação e Pesquisa (DIP), da Subsecretaria de Atendimento às Medidas
Socioeducativas (Suase), da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais (Seds).
Atualmente, há em MG 17 unidades que executam a medida socioeducativa de internação –
algumas delas, situadas no interior, são destinadas também à internação provisória. Em Belo
Horizonte estão 6 (seis) destas unidades de internação.
73
Refiro-me ao álcool e ao tabaco que, embora não sejam substâncias ilícitas, o seu consumo e a
sua venda são proibidos para pessoas de idade inferior a 18 anos.
70
Tabela 4
Dos 1.432 adolescentes, 1.373 (95,9%) eram do sexo masculino, e 59 (4,1%) do sexo
feminino. A tabela apresenta pouca variação do comparativo nacional, realizado pelo
Levantamento Nacional de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a
Lei, de 2010: naquele estudo, 16.807 (94,94%) dos adolescentes eram do sexo masculino e
896 (5,06 %), do feminino.
Tabela 5
nas unidades. As informações sobre a renda familiar foram divididas pelo número de pessoas
residentes no domicílio, para a elaboração da tabela acima.
Com base nessas informações, constatou-se que mais da metade das famílias, 955
(66,69%) recebiam um per capita de até um salário-mínimo74. Isso quer dizer que o número
significativo de famílias de adolescentes em privação de liberdade precisava de algum apoio
socioassistencial.
Tabela 6
A tabela mostra que 715 (49,9%) adolescentes não trabalhavam antes de iniciarem o
cumprimento da medida socioeducativa de internação; 505 (35,3%) não sabiam informar e/ou
não responderam; e 212 (14,8%) afirmaram que trabalhavam.
Tabela 7
74
Em 2010, o salário-mínimo era de R$ 510, de acordo com o Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
72
Tabela 8
75
É importante considerar que o contingente de adolescentes negros ou afrodescendentes em
cumprimento de medida socioeducativa de internação está relacionado com a formação sócio-
histórica do território. Afirmo isso, pois esse perfil de raça/cor varia em cada unidade e em cada
região do País; mesmo assim, os adolescentes que se autodeclaram pretos e pardos são a maioria
na privação de liberdade. A título de exemplo, a minha percepção, ao visitar uma unidade da
Fundação Casa situada em Piracicaba/SP, foi de que a maioria dos adolescentes que estavam
internados no momento não eram negros. Para discutir a questão racial, conferir Amaro (2005),
Moore (2010), Munanga (2006, 2009), Ribeiro (2004) Sartre (1968) e Silva (1995).
73
Tabela 9
Tabela 10
Para subsidiar os estudos dessa tabela, realizei uma classificação da natureza dos atos
infracionais praticados:
75
a
Categorias Porcentagem
Crimes praticados contra o patrimônio
(roubo, furto, tentativa de roubo, latrocínio, dano,
564 (39,38%)
extorsão, receptação, roubo a mão armada)
Outras categorias
(sem informação, outros, descumprimento de 79 (5,53%)
medida, mandado de busca e apreensão)
1.432 (100,00%)
a
Utilizo a categoria crime por ser o termo utilizado pelo Código Penal Brasileiro.
Fonte: Sistematização do autor.
Tabela 12
77
“Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal,
drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido
às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à
comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.”
77
Tabela 13
A maioria dos adolescentes, 829 (57,9%) declarou que fazia uso de tabaco; 573 (40%)
afirmaram que não faziam uso.
Tabela 14
A maioria dos adolescentes, 1.107 (77,3%), autodeclarou que fazia uso de maconha;
enquanto 296 (20,7%) autodeclararam que não faziam.
Tabela 15
78
Tabela 16
A autodeclaração do não uso de crack é maior do que a do não uso da cocaína, ou seja,
1.182 (82,52%) disseram não usar crack e 221 (15,41%) adolescentes se autodeclaram
usuários.
Tabela 17
Tabela 18
Tabela 19
O número de adolescentes que autodeclararam que não usavam drogas sintéticas foi de
903 (63,1%), enquanto 13 (0,9%) afirmaram usar. O percentual da categoria “sem
informação” também é significativo: 503 (35,1%). Os dados demonstram que o uso de drogas
sintéticas tem menor espaço entre os adolescentes pesquisados, pois mesmo se o índice da
tabela “sem informação” fosse somado ao “sim”, o resultado não teria ultrapassado a
representação maior dessa tabela, que é o “não”.
As tabelas demonstram a atenção da Diretoria de Gestão da Informação e Pesquisa
(DIP), da Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase), com a questão
das drogas, evidenciada pelo detalhamento específico de cada substância. As tabelas que
apresentaram a autodeclaração, com a maior representatividade de adolescentes que faziam
uso de alguma substância, foram as que trataram do tabaco e da maconha.
80
SUBSTÂNCIAS NÃO NÃO SABE / NÃO RESPONDEU SEM INFORMAÇÃO SIM TOTAL
Álcool
847 16 16 553 1.432
573
Tabaco 14 16 829 1432
1432
Maconha 296 13 16 1.107
Cocaína
903 15 15 499 1.432
Crack
1.182 15 14 221 1432
Solvente
1.291 14 14 113 1.432
Psicofármacos
1.381 14 14 23 1.432
Sintéticas
903 13 503 13 1.432
Fonte: Sistematização do autor – alguns números são aproximativos, em razão da dificuldade da conversão
imediata de números relativos para números reais.
Esses dados são de suma importância para análise dos adolescentes em cumprimento
de medida socioeducativa de internação, pois parte expressiva desses jovens era oriunda de
um segmento da população em estado de vulnerabilidade pessoal e social. Índices não
81
diferentes puderam ser observados nos anos anteriores, de 2007 a 2009, nas oficinas de RAP e
de poesia que foram realizadas.
De modo geral, o perfil médio do adolescente em cumprimento de medida
socioeducativa de privação de liberdade, no ano de 2010, era o de um adolescente com 16
anos de idade, do sexo masculino, afrodescendente, solteiro, que não trabalhava antes de
iniciar o cumprimento da medida socioeducativa de internação, tendo como escolaridade o 6o
ano do ensino fundamental. De família com renda familiar de até um salário-mínimo per
capita, a principal infração foi contra o patrimônio, e não fazia uso autodeclarado de álcool e,
em relação às substâncias ilícitas, autodeclarava-se usuário de maconha.
Os adolescentes que atendi tinham perfil bastante aproximado àquele feito acima.
Eram atores de uma dinâmica social desigual, uma vez que os adolescentes de segmentos de
classe com melhores condições de vida e com acesso aos direitos sociais, quando cometiam
atos infracionais, raramente chegavam até a medida socioeducativa de privação de liberdade.
Na minha experiência, não atendi nenhum adolescente de segmento de classe que lhes dessem
boas condições de contratação de defesa jurisdicional em relação à prática infracional.
82
Capítulo 3
A PESQUISA: O RAP E A POESIA COMO MEDIADORES DA TEORIA NA
PRÁTICA
3.1 A arte
De acordo com Frederico (2005), Karl Marx não ignorou os estudos acerca da estética
e da arte78. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, de 1844, Marx deixou encalços
relevantes para que se reflita a arte também como objetivação humana.
78
“Em seus anos de formação universitária, junto com o direito e a filosofia, Marx empenhou-se
seriamente no estudo da literatura e da estética, tendo acompanhado os cursos de Schlegel sobre
literatura antiga. No início de 1842, paralelamente à atividade jornalística, dedicou-se a escrever um
Tratado sobre a arte cristã, além de dois ensaios, Sobre a arte religiosa e sobre os românticos.Todo
esse material se perdeu, informa Lifshitz que pesquisou os cadernos de leitura nos quais Marx fazia
anotações preparatórias e resumos de livros que serviam de base para a redação dos referidos
textos.” (FREDERICO, 2005, p. 23).
83
Hegel, em sua perspectiva idealista, assinala também que toda arte é portadora de
conteúdo. Para ele, há um sentido da arte na arte que, pelo artista, é posto objetivamente e,
pelo receptor, é aceito de maneira subjetiva.
Feuerbach, que não aceitava o primado do Espírito posto por Hegel, por considerá-lo
alienado e por inverter as condições sociais presentes na realidade, queria “ver a arte como a
manifestação do ser humano verdadeiro, um ser desalienado, absoluto, podendo em tudo
contemplar a sua essência, já que nada mais o separa dela” (FREDERICO, 2005, p. 33). O
autor questiona ainda o caráter abstrato teológico de Hegel, porém, de acordo com Frederico
(2005), o pensamento de Feuerbach, percebido em seus poucos registros sobre a arte,
apresenta-se contraditório e ambíguo quando deseja superar o constructo hegeliano.
A arte, em Karl Marx, também contraria as análises postas por Hegel,
compreendendo-a como atividade humana essencial, uma “manifestação das forças essenciais
do homem” – atividade objetivada de maneira concreta – e não como “manifestação do
Espírito”, como intuição sensível do homem (FREDERICO, 2005).
Há também críticas em Karl Marx, em relação ao pensamento de Feuerbach, pois:
Nessa perspectiva, compreendo a arte como ação ontológica legitimada do ser social,
com seus movimentos reiterativos – avanços e recuos –, que fazem parte do processo de
autoformação do gênero humano. Essa compreensão tem por base a forma como a arte é
apresentada por Heller (1972), Lukács (1978) e Frederico (2005 e 2006): como uma das
objetivações que podem superar e romper as alienações da cotidianidade.
79
A análise cuidadosa dessa categoria encontra-se em Goldmann (1972, p. 79-100).
85
contestação de suas vidas cotidiana. Chamados também de rude boys, tinham a música como
uma
Criação de canções que discorriam sobre o próprio cotidiano era uma das únicas das
opções para esses rapazes, que tinham geralmente uma vida de muito risco e,
geralmente, bastante curta, no trânsito entre a miséria e a violência. Para um rude, a
única maneira de ser livre dos bairros de West Kingston era um single de sucesso ou
um tiro da polícia. (LINDOLFO FILHO apud SOUZA, 2011, p. 59)
81
Nasceu em Kingston, na Jamaica e imigrou para os Estados Unidos em 1967, quando tinha 12
anos de idade.
86
Por essa razão, Kevin Donavan82, conhecido como Áfrika Bambaataa, aperfeiçoou a
técnica trazida pelo DJ Kool Herc e, em 12 de novembro de 1973, fundou a Zulu Nation 83.
Um ano depois, em 12 de novembro de 1974, Áfrika Bambaataa, DJ Kool Herc, DJ Grand
Master Flash e DJ Grand Wizard Theodore legitimaram as ações desenvolvidas por essa arte,
que recebeu o nome de Hip Hop.
O cenário, entre 1960 e 1970, foi marcado por um período de várias manifestações da
população negra norte-americana sobre os direitos civis. Momento em que os enfrentamentos
82
Nasceu no dia 10 de abril de 1960, no bairro do Bronx, Nova York. De acordo com a Revista Da
Rua, “com apenas 10 anos de idade Kevin Donovan [Áfrika Bambaataa] era líder de uma gangue
chamada Black Spades e já tocava em festas caseiras. Aos 13, conheceu um sujeito que também
seria um pioneiro da cultura Hip Hop, o DJ Kool Herc. Quando viu Kool Herc andando com a primeira
pick-up [toca-disco] (aquela mala metálica em que o DJ leva seus toca-discos), que se tem notícia,
debaixo do braço, e discotecando a música de James Brown de uma forma totalmente diferente,
quebrada em breakbeats, pedaços que se repetiam, o tal do Kevin se entusiasmou tanto que largou a
gangue e decidiu que ali estava seu futuro. Desde essa época, o moleque gostava de estudar a
história da África, fuçou tanto que descobriu nos livros um chefe Zulu do século XIX e se batizou com
o nome dele: Áfrika Bambaataa”. (REVISTA DA RUA, n. 5, p. 25)
83
Segundo informações de King Nino Brown, “a Zulu Nation é uma organização que existe em vários
países e luta pela divulgação e fortalecimento da cultura Hip Hop. No Brasil, Nino Brown iniciou as
articulações com a Zulu Nation em março de 1994. Após anos de pesquisas e de estudos, ele foi
batizado como King Nino Brown, por Áfrika Bambaataa, e, em junho de 2002, a Zulu Nation Brasil se
torna uma organização não governamental (ONG). Criada a partir da necessidade de organizar as
atividades de seus membros, todos ligados à cultura negra e ao movimento Hip Hop, privilegia ações
sociopolíticas e culturais, com a juventude de periferia, em especial a mais carente e em situação de
vulnerabilidade. A Zulu Nation Brasil divulga a missão da Zulu Nation, por meio de oficinas
socioculturais, palestras, seminários nacionais e internacionais (Europa), encontros de jovens,
eventos realizados em escolas nos centros culturais, núcleos habitacionais municipais da capital
paulistana, e em outras cidades e estados do Brasil. Os membros da Zulu Nation Brasil possuem
representação em dez capitais no País; são jovens que sempre estiveram na cultura Hip Hop”.
87
O soul85 surgiu no fim da década 1950 e foi criado a partir da mescla do estilo gospel,
dos afrodescendentes norte-americanos, com o rhythm and blues, também conhecido como
(R&B). Esse estilo musical também entoou a resistência e a luta dos afrodescendentes para a
legitimação de seus direitos civis, e teve o mestre James Brown como uma de suas principais
referências.
Já o funky86 surgiu no fim da década de 1960 e passou por um processo de mudança de
status, ou seja, de um caráter negativo em relação ao sentido do termo, para um caráter
positivo, relacionando-se ao “orgulho de ser negro”. Alguns autores afirmam que, nesse
período, houve uma fase em que o soul teria perdido o seu alto papel questionador “virando
mais um rótulo comercial” (TELLA. In: ANDRADE, 1999, 57).
O funk radicalizava suas propostas e empregava ritmos mais pesados e arranjos mais
agressivos, na tentativa de extrair toda a influência branca, refletindo na não
aceitação destes como parceiros musicais. Esse era um novo momento, uma
afirmação da música e do músico negro na sociedade norte-americana.
84
Entre tantos, cito algumas referências do jazz: The Modern Jazz Quarter, Miles Davis, Lee Morgan,
Billie Holiday, Nina Simone, Sarah Vaughan.
85
Soul significa “alma”, de acordo com a Revista National Geographic (2007). O contexto musical
vivenciado pelo soul propiciou a construção de várias gravadoras em Detroit, Memphis e Filadelfia.
Outra referência desse estilo foi Ray Charles; o filme Ray (2004), baseado na história desse artista,
ilustra bem o período.
86
Herschmann afirma que, apesar das leituras mais favoráveis, os sentidos atribuídos aos termos
funk e funky guardam ainda certa ambiguidade. Segundo o dicionário Novo Michaelis (1994, p. 449
apud HERSCHMANN, 2005, p. 31): “Funk – medo, susto, pânico, pavor; 2. Medroso, covarde, ter
medo de, temer; 2 aterrorizar, assustar, intimidar; 3. Evitar, esquivar-se, fugir de, escolher-se,
acovardar-se; Funky – música de estilo e sentimento simples e rústico. Na gíria – batuta, bom” . É
importante chamar a atenção para que não se confunda o funky daquele período (o funky de raiz), do
qual cito como referência Sly Stone, Earth, Wind & Fire, The Ohio Players, Kool & The Gang, George
Clinton, Bar-Kays, entre outros, com o funky brasileiro atual, que, na verdade é Miami Bass. Ou seja,
aqui no Brasil, houve a mudança do conteúdo, com a permanência do nome.
88
Em suma, esses foram os principais estilos que buscavam uma transformação por meio
da arte, do protesto cantado. Nessa conjuntura, os Estados Unidos tinham altos índices de
violência e de tráfico de drogas e os jovens moradores de comunidades eram os mais afetados
com essa questão.
Conforme Keys (apud SILVA, 1999, p. 27), “o termo hip-hop está associado aos
movimentos da forma popular de dançar, que envolvia movimentos como saltar (hip) e
movimentar os quadris (hop).” (SILVA. In: ANDRADE, 1999, p.27).
Aparentemente, o significado da palavra representa um sentido festivo e simples,
porém, em sua essência, traz um traço contundente de críticas, denúncia e manifestações, de
cunho social, político e cultural, apresentado por alguns grupos de RAP87.
A cultura Hip Hop é constituída pelos seguintes elementos:
O DJ (Disc-Jóquei) desempenha o controle sonoro e/ou desempenha performances,
por exemplo: o scratch, que é o movimento realizado com a mão em cima do vinil – para
frente e para traz –, girando o disco no sentido contrário, para produzir sons diversificados; e
o back to back, manuseio com dois vinis ao mesmo tempo, um em cada toca-disco (pick-up),
utilizando algum trecho do instrumental; ou breakbeat, parte cantada pelo rapper/cantor, a
fim de montar a letra e com a repetição, ou a sequência da batida, criando grooves ou loops.
De maneira geral, os DJs utilizam os toca-discos (pick-ups), fones de ouvidos e mixer
– misturador de sons –, aparelho em que os DJs conectam os demais equipamentos. Assim, “a
sobreposição de músicas que têm andamento, ritmo e tonalidades diferentes. Nas mãos dos
DJs tais equipamentos transformam-se, verdadeiramente, em instrumentos musicais”
(AZEVEDO; SILVA. In: ANDRADE, 1999, p. 79).
Com mais frequência, na cultura Hip Hop, os DJs utilizam o vinil para a realização de
suas performances, mas também há DJs de/em outros estilos musicais. O DJ pode realizar
várias funções: fazer parte de um grupo de RAP específico; trabalhar como freelancer em
diversos grupos de RAP; tocar em eventos; realizar performances em campeonatos; ser DJ e
produtor musical; dentre outras.
87
Como exemplo, cito alguns grupos de RAP norte-americanos: na costa leste, Run-DMC, LL Cool J,
Boogie Down Productions, Salt-n-Pepa, Beastie Boys, Public Enemy, De La Soul, A Tribe Called
Quest, Queen Latifah, Wu-Tang Clan, Notorius B.I.G, Missy Elliott, Jay-Z, Nas, Sean Combs, The
Roots e The Fugees; e na costa oeste, Ice-T, NWA, Tupac Shakur, Dr. Dre e Snoop Doogg.
89
88
Erick 12 é um dos DJs mais conceituados no cenário do RAP nacional brasileiro. Foi DJ e produtor
durante sete anos, de um dos principais grupos de RAP no Brasil, Facção Central. Este grupo foi o
mais citado pelos adolescentes durante as oficinas e, principalmente, nas entrevistas realizadas para
este trabalho. Erick 12 exerce várias atividades na cultura Hip Hop, além de DJ e produtor musical,
também é MC e produtor de videoclipes.
90
Figura 10 – Rapper Moyses, do grupo A 286, durante show. Crédito: arquivo pessoal de Moyses.
O breaking90 é uma modalidade de dança realizada pelos B. Boys ou B. Girls por meio
de vários passos, como o top rock (que é a entrada na roda de dança); o footwork (conhecido
como sapateado); e o freeze (que é o encerramento da dança). São movimentos precisos,
89
No filme 8 Mile: rua das ilusões (2002), dirigido por Curtis Hanson, Jimmy “Rabbit” – interpretado
por Eminem – é um jovem rapper branco, que sonha conseguir um espaço no mundo do RAP. Ele
reside em um bairro majoritariamente de negros – Warren, no norte da cidade de Detroit, em
Michigan/USA. Rabbit tem como desafios superar as brigas entre as gangues, os preconceitos e os
conflitos familiares. O documentário The MC: why we do it aborda distinções entre ser MC e rapper,
porém não aprofundarei, aqui, essa questão.
90
Modalidade de dança também chamada de B. Boying.
91
Figura 11 – B.Boy Alan, em plena performance. Crédito: Daniel Péricles Arruda (Casa
do Hip Hop, em Diadema/SP). Data: 27/11/2010.
O graffiti é a arte visual expressa por meio de desenhos e de letras em vários formatos,
produzidos com spray, principalmente em viadutos, muros e trens. É marcada por técnicas e
criatividade em sua produção.
Durante muitos anos, o graffiti foi visto de maneira preconceituosa e negativa pela
sociedade. Hoje, percebo um avanço nessa questão, na medida em que conseguiu elevar-se ao
patamar da arte – não que antes não fosse –, mas as suas dimensões próprias possibilitaram
romper preconceitos e despertar a atenção e o interesse das pessoas91.
Historicamente, os desenhos feitos nas cavernas ou as imagens feitas pelos maias,
incas e astecas podem ser tidos como referências do graffiti: “O ‘carvão’ de antes é o spray de
hoje”.
91
Cf. o filme Basquiat: traços de uma vida (1996).
92
Figura 12 – Graffiti feito por Vespa, representando o rapper Sabotage, na Casa do Hip
Hop, em Diadema/SP. Crédito: Vespa. Data: 27/11/2010.
93
Resposta dada, em entrevista à Revista Da Rua, ao ser indagado sobre o porquê ele defende a
tese de que a história deve ser recontada, principalmente, a africana. (REVISTA DA RUA, n. 5, p. 25)
94
O sistema, muitas vezes mencionado pelos rappers, refere-se ao sistema capitalista e seus
mecanismos, os quais produzem a desigualdade social.
93
Foi essa a cultura que chegou ao Brasil, no início da década de 1980, sob forte
influência dos filmes Fame (1980), Flashdance (1983), Wild Style (1983), Beat Streat (1984)
e Break (1984)95 e que possui como referência mais forte, a cidade de São Paulo96.
Na cidade de São Paulo, no início da década de 1980, jovens oriundos da periferia
encontraram na dança – breaking – uma forma de criarem a sua “cultura de rua”. Nesse
período, havia encontros de dança na Praça da Sé, na Praça Ramos, mas o lugar que realmente
fincou raízes foi na Rua 24 de Maio, em 1984. Foi na Estação de Metrô São Bento que
surgiram as crews de breaking: Nação Zulu, Crazy Crew, Street Warriors e Back Spin Kings.
Havia ainda outros grupos de expressão, como: Eletric Boogies, Dragon Breakes, Búffalo
Girls e Jabaquara Break. Cito também os grupos Black Juniors, que participavam de
programas de televisão, e Funky & Cia, do qual Nelson Triunfo e King Nino Brown faziam
parte. Esses estão entre as principais pessoas que mais divulgaram a cultura Hip Hop pelo
Brasil. Nesse período, na Rede Record, havia dois concursos, um de break e outro chamado
Michael Jackson; e no programa do Gugu, no SBT, o Viva a Noite, trazia o concurso de funky
original.
Referência em todo País, a cultura Hip Hop da cidade de São Paulo mostrou-se aos
jovens paulistanos como expressão do sentimento de pertencimento, de possibilidades reais de
transformação e de manifestação.
Foi em São Paulo que surgiram rappers e grupos de RAP, como Consciência Humana,
Potencial 3, Pavilhão 9, Código 13, RPW, Dina Di, Sharylaine, Cris Lady RAP, Thaide & DJ
Hum97, DMN, RZO, Sabotage, Racionais MC’s, Facção Central, entre vários outros.
Os dois últimos grupos citados eram os mais ouvidos pelos adolescentes com os quais
trabalhei no Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead). Um fato interessante é que Belo
Horizonte e Região Metropolitana possuem vários grupos de RAP, mas eles não eram
mencionados pelos adolescentes. Por que isso acontecia?
De acordo com Dayrell (2005)98, a cultura Hip Hop de Belo Horizonte não se
constituiu da mesma forma que a de São Paulo. O autor apresenta o depoimento do rapper
Zero, do grupo Face Oculta:
95
Há uma série de filmes mais recentes que abordam essa questão, como No Balanço do Amor
(2001). O filme Fame (1980) foi adaptado em 2010, com o título em português, Fama.
96
No documentário Nos tempos da São Bento, o rapper GOG afirma que “o Hip Hop não nasceu em
São Paulo. Ele ‘pipocou’ no País inteiro”. Há no RAP nacional brasileiro uma diversidade de estilos
que envolvem traços característicos de cada região.
97
A dupla foi desfeita há alguns anos, mas ambos continuam a realizar os seus respectivos trabalhos.
O rapper Thaíde é um dos apresentadores do programa A Liga, exibido na emissora Bandeirantes.
98
Dayrell (2005) faz um estudo pertinente sobre a história e o desenvolvimento da cultura Hip Hop,
em Belo Horizonte/MG.
94
Aqui em BH o pessoal das antigas não levou o RAP pra periferia. Eles fez tudo
errado, trabalhou visando grana, e o hip hop não é assim não. O que houve lá fora:
eles levaram o hip hop para o povo, para as escolas, aquele lance de conscientizar as
mães para que elas não se preocupem quando o filho estiver naquela, até nos
presídios eles levaram. Se eles tivessem trabalhando na época, hoje a gente tava aí
colhendo... (DAYRELL, 2005, p.57)
Não pretendo aprofundar a questão, embora seja importante, mas é necessário refletir
acerca do desenvolvimento da cultura local, no próprio local, e as condições materiais que
estavam existentes no seu processo de produção. A identificação dos adolescentes com os
quais trabalhei, em Belo Horizonte, com o RAP paulista não é diferente da dos próprios
jovens que promoviam a cultura Hip Hop em Belo Horizonte, que, por diversas dificuldades,
vivenciadas naquele contexto
[...] não perceberam que o público potencial que poderia lhes dar uma base de
sustentação era exatamente aquele da periferia. Nessa fase, o discurso de denúncia
dos rappers não foi acompanhado por qualquer ação concreta nos bairros ou nos
movimentos comunitários e políticos, a não ser, por iniciativas isoladas.
(DAYRELL, 2005, p. 57)
Há um legado muito rico do RAP brasileiro – rap nacional. As músicas não perdem a
validade, tornam-se hinos, como: “Um Homem na Estrada”, dos Racionais MC’s, que, em
vários locais, foi citada e na maioria das vezes cantada por Eduardo Matarazzo Suplicy99.
As letras/músicas vão ao encontro principalmente da juventude. A identificação do
adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de internação com o RAP é um ponto
significativo, por isso, é necessário compreender a relação desses adolescentes com o RAP e a
poesia, considerando-se também que:
[...] o jovem autor de infração vive uma carga maior de conflitos. Além daqueles que
surgem em seu processo de auto-identificação, acumulam outros conflitos trazidos
pelos entraves e rótulos que sua diferença projeta na representação social e, em
muitos casos, o conflito da sobrevivência. (GUARÁ, 2000, p. 122).
99
Atualmente, é senador pelo Partido dos Trabalhadores (PT), de São Paulo. É Ph.D. em economia,
pela Universidade Estadual de Michigan e autor do livro Renda de Cidadania: a saída é pela porta
(2002).
100
Cf. Luz (2007).
101
Nascimento (2006) tece algumas problematizações acerca da expressão “literatura marginal”,
destacando o contraste do termo pela comparação entre os poetas marginais, de 1970, e os poetas
marginais da nova geração. Para a autora, o conceito de literatura marginal é amplo e demanda a
leitura de cada fase de sua aplicação. Há na cidade de São Paulo/SP vários saraus que têm
97
Para exemplificar, menciono o evento sociocultural Hip Hop na Veia Pela Vida102, que
acontece na cidade de Betim/MG, que é constituído por oficinas, debates, apresentações de
diversos grupos de RAP, breaking, graffiti, DJ, dentre outras atividades, como o basquete.
Para participar, é preciso conseguir quatro pessoas para doarem sangue.
O Hip Hop na Veia Pela Vida é realizado anualmente, desde 2004, com a organização
do DJ ACoisa. No decorrer das posteriores edições passaram a compartilhar a
realização/organização: a Prefeitura do Município de Betim e a Fundação de Arte da Cidade
de Betim/MG (Funarbe), com apoio da Polícia Militar, da Guarda Municipal e parceria da
Fundação Hemominas.
O evento consegue mobilizar vários jovens da região e demais localidades,
envolvendo-os nas atividades descritas.
Figura 13 – DJ Acoisa, no evento Hip Hop na Veia Pela Vida. Crédito: arquivo pessoal
do DJ Acoisa.
modificado a dinâmica local da comunidade, que têm contado com vários escritores de renome, por
exemplo, Sérgio Vaz, Ferréz e Alessandro Buzo.
102
Paulo da Silva Soares, conhecido como DJ Acoisa, é diretor de oficinas culturais da Fundação de
Arte, da Cidade de Betim/MG, e músico da Banda Berimbrown. É o idealizador e organizador do
evento Hip Hop na Veia Pela Vida, que realiza a sua oitava edição em 2012.
103
Depoimento colhido no Programa A Liga, exibido em 29/11/2011.
98
Esta dissertação de mestrado foi realizada por meio de uma modalidade de pesquisa,
ex-post-facto – realizada a partir de fatos passados de um trabalho, que tem como
característica o desenvolvimento de metodologia de ação construída na própria ação –, que
podemos considerar como pesquisa-ação.
Thiollent (1986) percebe um questionamento em relação à pesquisa-ação em alguns
espaços acadêmicos, que a compreendem como uma atividade utilizada por profissionais que
têm algum tipo de dificuldade relacionada à metodologia e que não querem seguir os seus
critérios. Assim, o autor considera relevante discutir o conceito de metodologia, para que se
possa entender melhor esse aspecto:
Assim, tendo em vista uma análise crítica do objeto de pesquisa, reitero a utilização da
abordagem qualitativa, baseada na análise dos materiais que documentaram as ações no
período, durante a realização das oficinas com os adolescentes: poesias e letras de RAP,
fotografias, filmagens, anotações (diário de campo), observações, percepções e artigo
científico produzido.104
A escolha do Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) para o desenvolvimento
da pesquisa relaciona-se ao fato de o trabalho ter sido ali desenvolvido, consecutivamente de
2007 a 2010 e, também, por ter me proporcionado uma sensibilidade para o trato da questão,
possibilitando tanto o desenvolvimento continuado das oficinas – que contribuíram para o
conhecimento da Instituição e dos adolescentes que estavam em cumprimento de medida –,
quanto para a prática e desenvolvimento dos profissionais envolvidos nesse processo.
Entre as várias oficinas realizadas, foram selecionadas três, tendo por critério de
escolha aquelas que mais tiveram elementos para subsidiar esta dissertação:
A oficina I tratou de temas como família, violência e história de vida, que foram
abordados em dez encontros (sessões). Resultou no sarau chamado de Tarde Poética, que
aconteceu no dia de visita e contou, portanto, com a presença de familiares de adolescentes
participantes e não participantes das oficinas, e convidados institucionais.
104
ARRUDA; PINTO. De volta pro Mundão: uma análise dos adolescentes egressos da medida
socioeducativa de internação. Anais do II Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais. Belo Horizonte:
Conselho Regional de Serviço Social (Cress, 6ª região), 2009.
100
O instrumental para a realização das entrevistas foi construído por meio de uma
linguagem acessível à compreensão da pesquisa e das perguntas que foram feitas para os
sujeitos. De acordo com Triviños (2009), nem tudo depende do investigador, mas há alguns
pontos em que é possível ao pesquisador superar e/ou transformar, por exemplo: construir
uma aproximação sucessiva com os atores da entrevista; não agendar em locais e horários
inviáveis; evitar entrevistas longas; propiciar uma relação de confiabilidade e simpatia na
entrevista; obter aprovação do entrevistado para escrever ou gravar o desenvolvimento da
pesquisa; ter organização para lidar com gravação, transcrição, anotação e análise do
conteúdo; atentar aos prováveis silêncios do entrevistado, diferenciando o “ponto morto” (isto
é, insatisfação em responder ou falta de compreensão da pergunta) do “silêncio produtivo”,
que se baseia numa reflexão e num tempo de elaboração da resposta.
Todas as entrevistas e todo o material documental que dizia respeito aos sujeitos,
foram utilizados com prévio consentimento, obtido mediante assinatura de termo relacionado
a essa questão, pelos sujeitos da pesquisa. Por considerar que o estudo envolveu seres
humanos, fez jus às determinações da Resolução 196/1996, do Ministério da Saúde, tendo
sido aprovado pelos comitês de ética da Diretoria de Gestão da Informação e Pesquisa (DIP),
da Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase), e da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
A pesquisa realizada teve por finalidade a construção de uma produção científica, o
que significa:
[...] que seus procedimentos investigativos deve(m)[rão] explicitar um esforço no
sentido de viabilizar uma produção de conhecimentos que permita ultrapassar as
práticas espontâneas e as reflexões que se confinam em ações pontuais para, pela
polêmica e pela crítica teórica, construir uma “metodologia dinâmica de ação”.
(BAPTISTA, 2006, p.29)
Para tanto, este estudo apoiou-se nas categorias do método dialético: totalidade,
contradição e mediação, que, de acordo com Netto (2009b, p. 28), Karl Marx descobriu por
meio da articulação dessas três categorias “[...] a perspectiva metodológica que lhe propiciou
o erguimento do seu edifício teórico”.
No texto de Marx, O Método da Economia Política, a questão do método apresenta
uma profunda reflexão sobre as categorias, que foram apreendidas da realidade. A categoria
da totalidade foi discutida como eixo fundamental, que expressa a articulação das demais
categorias, considerando “[...] o cuidado de manter a indissociável conexão que existe em
Marx entre elaboração teórica e formulação metodológica” (NETTO, 2009b, p. 26). Netto
(2009b) afirma que não há como separar a base teórica do planejamento profissional, da
102
perspectiva sociopolítica. E, na base teórica marxiana, as categorias não são construídas pelo
pensamento, elas emergem do processo de análise direta e concreta da realidade. Nesse
sentido, a totalidade compreendida como categoria teórica e ontológica fundamental, não é
construída de maneira intelectiva, mas é produto da observação da relação dinâmica, em que
ocorrem os fatos sociais. Esse processo exige a compreensão dos circuitos e das conexões que
interagem diretamente e/ou indiretamente nas relações sociais.
No estudo da sociedade burguesa – na qual são produzidas e reproduzidas várias
transformações nas relações sociais –, há que se trabalhar na perspectiva de uma totalidade
dinâmica, que emerge de uma sociabilidade, que
Por compreender a reciprocidade é que não se deve definir a totalidade como a soma
das partes, pois, desse modo, haveria a anulação de especificidades e a não consideração das
relações, das contradições, dos afetos, dos sentidos, das mediações e, também, das
determinações sócio-históricas que incidem em sua construção.
Em relação a esse aspecto, Goldmann (1979), em seu estudo sobre as obras de Pascal e
Racine, apresenta na introdução um texto, a que chamou de O Todo e as Partes, no qual
analisa a relação entre verdade parcial e o conhecimento da verdade constante no todo,
[...] pois toda verdade parcial só assume sua verdadeira significação por seu lugar no
conjunto, da mesma forma que o conjunto só pode ser conhecido pelo progresso no
conhecimento das verdades parciais. A marcha do conhecimento aparece assim
como uma perpétua oscilação entre as partes e o todo, que se devem esclarecer
mutuamente (GOLDMANN, 1979, p. 5).
Esse esclarecimento mútuo, afirmado por Goldmann (1979), é fruto de uma análise
que jamais estará acabada, seja em seu conjunto, seja em seus elementos. Por isso, o autor
afirma que “o pensamento é uma operação viva, cujo progresso é real sem ser, entretanto,
linear e, sobretudo, sem nunca estar acabado” (GOLDMANN, 1979, p. 7). Assim, a totalidade
é apreendida pelo sujeito como um conjunto articulado de determinações, em que é possível
fazer abstrações e retomá-las para a realidade como um guia. Esse conjunto pode ser
compreendido como um “concreto pensado”.
103
Na carta de Karl Marx enviada para Anninkov105 vemos uma crítica acerca da
totalidade tal como era vista por Proudhon. Nela, Marx faz uma crítica ao pensamento de
Proudhon, por não ter considerado o percurso histórico do modo de produção. Em destaque,
questiona a ausência de rigor crítico sobre a divisão do trabalho:
Para o sr. Proudhon, a divisão do trabalho é uma coisa bem simples. Mas não foi o
regime de castas uma determinada divisão do trabalho? Não foi o regime das
corporações outra divisão do trabalho? E a divisão do trabalho do regime das
manufaturas, que começou em meados do século 17 e terminou em fins do século
18, na Inglaterra, também não difere totalmente da divisão do trabalho da grande
indústria, da indústria moderna? O sr. Proudhon se encontra tão longe da verdade
que omite o que nem sequer os economistas profanos deixam de levar em conta.
(MARX, 2009, p. 247)
105
Essa carta foi datada em Bruxelas/Inglaterra, no dia 28 de dezembro de 1846, e publicada pela
primeira vez por M.K. Lenke, em 1912. Nela, Karl Marx informa a Annenkov as suas impressões
iniciais a respeito do livro de Proudhon – Filosofia da Miséria – e a questiona com a publicação de
seu livro, Miséria da Filosofia.
104
que o correto é começar pelo real e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e
efetiva; assim, em Economia, por exemplo, começar-se-ia pela população, que é a
base e o sujeito do ato social de produção como um todo. No entanto, graças a uma
observação mais atenta, tomamos conhecimento de que isso é falso. A população é
uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as classes que a compõem. Por seu
lado, essas classes são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos em
que repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes supõem a
troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho
assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço, etc. não é nada. Assim, se
começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do todo e,
através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a
conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos a abstrações
cada vez mais tênues até atingirmos determinações as mais simples. (MARX, 1978,
p. 116).
Nesse sentido, a totalidade é uma categoria que está em movimento, por isso, não há
como defini-la simplesmente como “todo”. A vida social é uma totalidade formada por
inúmeras totalidades. “Para Marx, a sociedade burguesa é uma totalidade concreta. Não é um
‘todo’ constituído por ‘partes’ funcionalmente integradas.” (NETTO, 2009b, p. 27). As
categorias, tanto as do método quanto as empíricas, em Karl Marx, insisto, estão na realidade,
são categorias reais e sócio-históricas. A realidade não é estática; não é absoluta; não é
imutável. A realidade sempre se transforma.
A dificuldade, para Marx, está na apreensão das categorias que emergem da realidade
social, as quais são constitutivas do método.
As especificidades são percebidas na realidade, compondo um concreto que se
apresenta de várias formas para não ficarmos reféns das manifestações imediatas, “[...] seria
partir-se da totalidade, totalidade que sendo tudo é ela mesma e a possibilidade de sua
negação. Neste universo a crítica não é uma operação externa ao objeto, mas a explicitação
necessária de seus constituintes” (PAULA, 2001, p. 19). Certamente:
106
Material de aula apresentado no Núcleo de Estudos e Pesquisa Sobre a Criança e o Adolescente
(NCA) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC/SP, intitulado A pesquisa
avaliativa de políticas, programas, projetos e/ou intervenções sociais (BAPTISTA, 2012).
107
Localizei dois trechos na música “O bagulho é doido”, do rapper carioca MV Bill, na qual ele
apresenta as contradições constituídas na dinâmica de jovens no tráfico varejista de drogas. No
primeiro trecho, diz: “[...] tipo peste, tá no sudeste, tá no nordeste, no centro-oeste/ Teu pai te dá
dinheiro, você vem e investe/
No futuro da nação, compra pó na minha mão/ Depois me xinga na televisão/ Na sequência vai pra
passeata levantar cartaz/ Chorando e com as mãos sinalizando o símbolo da paz”. Nesses versos,
MV Bill apresenta a movimentação do tráfico de drogas – “pó” (cocaína) – e os segmentos de classes
diferentes que os constituem. Porém, um segmento alimenta o outro, por meio da compra da droga,
logo, o mesmo segmento posiciona-se contra uma ação a qual ele também é “responsável”. No
segundo trecho, Bill, diz: “[...] veja que ironia, que contradição/ O rico me odeia e financia minha
munição/ Que faz faculdade, trabalha no escritório/ Me olha como se eu fosse um rato de laboratório/
Vem de sheroki, vem de kawazaki/ Deslumbrado com a favela, como se estivesse vendo um parque/
De diversões, se junta com os vilões/ De sente Ali ‘cuzão’ e os 40 ladrões”. Nesses versos, a relação
contraditória também é presente. Ambos chamam a atenção para as mediações constituídas e que
movem essas relações. Ver a letra completa no Anexo C.
106
As mediações não estão presentes de maneira dada em uma realidade. “No plano do
pensamento, o desenvolvimento deste obedece a uma impulsão necessária que progride do
singular ao universal, através do particular” (PONTES, 1989, p. 21). Aqui, a particularidade é
referida não no sentido vernáculo, mas, como um dos momentos da perspectiva dialética. É
um momento de leitura da realidade, é a forma como a singularidade é assumida.
[...] uma forma de objetivar a prática, pela qual o próprio profissional se objetiva
enquanto ser social. É, ao mesmo tempo, uma categoria reflexiva e ontológica, pois
sua construção se consolida tanto por operações intelectuais, como valorativas,
apoiadas no conhecimento crítico do real, possibilitado fundamentalmente pela
intervenção da consciência. (MARTINELLI, 1993, p. 137)
Portanto, é a partir desse aporte teórico que analiso o conteúdo coletado para alcance
dos objetivos traçados para este estudo.
107
Porque a gente estar lá dentro é fácil, é só ficar dois três anos parado, deitado e dormindo,
mas através daquilo [das oficinas] eu tive uma reflexão e pude mudar de vida e ter a
vida que eu tenho hoje, graças a Deus.
(SATURNO – sujeito da pesquisa)
Eu não era um menino fácil igual eu sou hoje, entendeu?! Ninguém me encontrava
aqui numa hora dessa [aproximadamente 9h da manhã]. Mudou, porque assim...,
porque você vai ficando mais velho e vai vendo as coisas diferente. Você vai vendo
que viver é bom demais, entendeu?! Você vai ver que o que a mãe falava naquele
momento era certo. E o que vinha na sua cabeça é que não era. Você vai
aprendendo, entendeu?! E passando pro outro, daí vai... (JÚPITER)
108
Lembrando que os três sujeitos da pesquisa que participaram das oficinas – Júpiter, de 20 anos;
Saturno, de 20 anos; e Marte, de 16 anos – serão mencionados por nomes de planetas, bem como os
dois profissionais entrevistados que serão mencionados como Lua e Sol, conforme explicado na
introdução deste trabalho.
109
“Responsa” significa responsabilidade ao fazer algo; dar sentido positivo às ações que se faz.
108
É a sua letra de RAP, intitulada “Uma história”110 – a qual apresento novamente para
que o leitor a compreenda, com os seus depoimentos –, que abre a introdução desta
dissertação:
Refrão:
Quero que a minha história tenha um final feliz
Final feliz, final feliz
Refrão:
Quero que a minha história tenha um final feliz
Final feliz, final feliz
110
Letra de RAP escrita pelo próprio adolescente, na oficina I.
109
memorização e alta capacidade elaborativa e metafórica, como é visto nos seguintes versos:
“A vida é embaçada, se eu fosse um vento/ O vento é uma vida que te leva ao pensamento/
Fico olhando que eu tô ficando louco/ Tipo assim, como se fosse um poço/”.
Em certo momento da pesquisa mostrei para o jovem a letra de RAP acima, que ele
havia feito há cerca de quatro anos na oficina. Ele foi o único que tinha a produção decorada.
A letra apresenta uma série de categorias que se referem à vida do adolescente: “Vamos curtir
o RAP, vamos ouvir/111” é tido como um chamado introdutório para que se atente à sua
condição de vida e para o que ele tem a dizer sobre ela. Não somente apresenta respostas
sobre a sua vida, mas apresenta um terreno, que permite a construção de um diálogo a partir
das vivências do próprio jovem, que afirmou:
Meu RAP tem umas coisas bacana e algum ensinamento, e... assim... e daí vai... é...
RAP é uma coisa legal, é uma coisa bonita, uma coisa assim que eu posso te falar,
uma coisa... vai ensinando, aí você vai cantando ali... entendeu?! RAP nós vivemos
de RAP, nós vivemos de música. E assim vai... (JÚPITER)
É você ser compreensivo. É ser compreensivo com a pessoa e assim: que lei é lei e
limite é limite. É você viver o seu limite. É viver a humildade. Ter seu respeito [...].
Às vezes, é você saber brincar... Ter o seu limite ali... Igual você ir dançar... Você
chegar lá e dançar e tal. Você curtir sua vida e não ser zuado, entendeu?! Você
entrar lá e bater no peito que é o tal e tal?! Você vai ser zuado. Não vai ter ninguém
que vai gostar. Mas com humildade você chega ali tranquilo, do seu jeito,
conversa... (JÚPITER).
Para o segundo jovem adulto, ao qual chamarei de Saturno, hoje com 20 anos de
idade, e com 16, na época em que participou das oficinas:
O RAP pra mim significa... às vezes, [alguém] canta um RAP ali... só de você ouvir
o toque é bonito, mas pra mim não é só o toque o RAP que eu escuto. Eu medito na
letra, no que ele [o MC] está querendo passar para mim, entendeu?! A música está
rolando e eu medito... Por que o RAP é uma história, praticamente, não é?! Então,
para mim é isso: meditação! (SATURNO)
111
Esse verso faz lembrar a música “Realidade”, do grupo de RAP Jigaboo, cujo refrão diz: “Chega
perto de mim/ Me deixa falar/ Sempre de muito longe/ Vem me condenar”. Ver Anexo D.
110
Para ele, o RAP se apresentou como forma de contar histórias às quais, ao ouvir,
meditou na letra. Possibilitou a meditação, a sua análise interior e, mesmo considerando o
toque bonito – a base ou o instrumental –, a letra do RAP é o que o tocou mais, por ele querer
buscar a mensagem que o MC transmite. Tal meditação ajudou-o a vencer a vergonha (no
sentido da timidez) que sentia nos momentos que apresentava a sua arte para os outros.
Ao ser indagado sobre as mudanças concretas em sua vida, Saturno afirmou:
Mudei praticamente o jeito de viver. Porque o RAP fala muito de vida, de maldade,
de paz, fala muito desses motivos. Então, através do RAP eu pude refletir alguns
momentos que a gente passa que, às vezes, você escuta um RAP, que fala uma
história que no futuro você vai passar por histórias [semelhantes a] que ele [o
rapper] passou. Então, você ouvindo aquela música você já sabe mais ou menos se
desviar daquele problema.
Para esse jovem adulto, o RAP é a tradução da realidade da vida cotidiana, sendo
transmitida por meio de histórias a partir dessa realidade. Por compreender que o RAP “fala
muito de vida, de maldade, de paz”, ele entende que o RAP, então, anteciparia as prováveis
situações da vida cotidiana – situações que assumiriam diferentes faces, de acordo com a
particularidade de cada situação vivenciada – assim, ele procurou outros caminhos para
desviar-se de algum possível problema parecido no futuro.
A questão da invisibilidade é o ponto de maior significação em sua convivência
comunitária anterior e posteriormente ao cumprimento da medida socioeducativa de
internação, a qual foi percebida em sua relação com a comunidade de origem:
Eu tenho esse pensamento na minha mente também. Às vezes, eu passo um... Aqui
no [nome do bairro] na hora que você chegar e perguntar “quem é o [apelido dele]”,
aí eles já falam, “lá em baixo”. Aqui todo mundo me conhece como [apelido dele]
Então, às vezes, eu ando aí pelas ruas e as pessoas ficam me olhando meio assim,
achando que eu ainda sou o que eu era, entendeu?! Eu ainda não consegui passar
confiança para as pessoas. Porque o que eu mais quero é ter a confiança da
comunidade. Então, às vezes, eu passo na rua e os outros me veem e falam “aquele
menino é isso e aquilo”, sendo que eu não sou mais. Então, eu tenho esse grande
problema com muitas pessoas: eu tenho o problema de não passar confiança para
eles, entendeu?! Muita gente ainda não tem em mim aquela confiança que tinha
antigamente. Então, isso para mim... na minha vida, prejudicou um pouco nessa área
da confiança mesmo, muito poucas pessoas têm confiança em mim hoje, mas eu
ainda vou conseguir conquistar essa confiança de todos, se Deus quiser, e ele quer,
não é?! Com certeza... (SATURNO)
111
Pelo o que eu já fiz, eu acho difícil a comunidade me olhar do jeito que eu era. O
jeito que eu já fui antes de passar pelo que eu passei. Então, eu acho que o jeito que
está indo está bom, mas se a comunidade me desse uma oportunidade, uma
confiança a mais, eu acho que ela ia dar uma fortalecida a mais na gente. A gente
podia andar onde a gente puder ir. Se todo mundo confiasse, seria melhor, não é?
Pra mim um ponto que me prejudica muito é a falta de confiança da comunidade.
(SATURNO)
Nessa questão, Soares (2005, 2011) fala das “profecias que se autocumprem”, ou seja,
atitudes discriminatórias das pessoas que podem acarretar e/ou corroborar para a existência
daquilo que se pretendia evitar. Por isso, a partir de sua experiência e dos relatos acima,
perguntei se ele já pensou em reafirmar o que a comunidade diz sobre ele:
Já, já... Teve muitas vezes dos outros chegarem na minha cara assim e apontarem o
dedo e falar... Eu dentro da casa da pessoa e a pessoa, ao chegar na casa dela, falar:
“Você não vai entrar aqui dentro, porque você é isso, isso e aquilo.” Eu já tive muita
vontade de voltar sim e falar “já que você está falando que eu sou, eu vou ser.” Mas
a minha força maior é a minha família! Porque eu, depois que saí do Cead... quando
eu saí não... quando eu tava dentro do Cead, eu pude refletir o sofrimento que a
minha família passava sem a minha presença! Porque família é assim... Então, por
causa da minha família mesmo, da sua força, da vizinhança, dos amigos que também
davam força – “não, não faz isso não” –, até hoje eu estou firme e forte.
(SATURNO)
É possível perceber que a família e os amigos têm sido um suporte fundamental para
que ele não retorne a envolver-se com a criminalidade. O que se evidencia em sua letra de
RAP intitulada “Lembra?”113
Eu conheço o ECA não faz muito tempo
Então vou lhe dizer o que estou aprendendo
Direitos e deveres, irmão, é muita coisa
Coisas que não tive, coisas muitos boas
Esporte, lazer, cultura e educação
Perdi minha moral fazendo confusão
Mas sei, que posso superar, então
Estou na correria com Deus no coração
Centro de Internação é uma passagem
Não quero retornar e evitar a malandragem
Daqui pra frente trabalho e estudo
É o melhor que eu faço pro futuro
O ECA está comigo, está com você
O ECA não foi feito pra gente esquecer
112
Invisibilidade projetada, no sentido assumido na Tabela 2, da página 64.
113
Esse trecho foi escrito pelo próprio jovem, na oficina II. É constituída por mais três partes não
mencionadas aqui pelo falto de eu não ter localizado os seus respectivos autores para que
autorizassem a reprodução.
112
Refrão:
Você já foi criança um dia, lembra?
Já adolescente um dia, lembra?
Então pare pra pensar, irmão.
Já o terceiro sujeito da pesquisa, que ainda é adolescente, com 16 anos de idade – tinha
14 anos na época das oficinas –, ao qual chamarei de Marte, disse que as oficinas de RAP e de
poesia o ajudaram a ter paciência no processo de aprendizado escolar. Paciência que o ajudou
a vencer o medo e a vergonha [timidez] de expor a sua arte. As oficinas eram para ele uma
atividade diferente, pois antes delas ele só jogava futebol: “A minha experiência foi grande,
eu não conhecia nada. Pensava que poesia para mim era você, tipo, escrever tudo lá e no final
você tira umas palavras lá e faz uma poesia, e depois ver a diferença. Nós ficamos lá... fala
sobre o livro, fala sobre isso...” (MARTE).
O “fala sobre o livro, fala sobre isso” refere-se à sua poesia e às discussões realizadas
sobre ela. A poesia do adolescente chama-se “O Livro”114:
Ah, cara. Sinceramente?! Ah, velho... Com isso eu pude ter algumas oportunidades
diferentes. Só que, sinceramente, até hoje eu fiz, gostei, igual eu falava com você
que gostei muito [...]. Só que, hoje: assim, eu falar com você que mudou... não
mudou não [...]. Ah, cara, minha cabeça mudou muito. [...] O que não mudou é o
crime: é o mesmo.
114
Poesia escrita pelo próprio adolescente, na oficina III.
113
subjetivo – não viam os adolescentes como “maus” e que precisavam ser transformados em
“bons”, viam os adolescentes como pessoas com possibilidades a serem aproveitas e limites a
serem superados.
A observação permitiu-me notar que a invisibilidade desse adolescente tinha por base
a sua relação comunitária, anterior e posterior ao cumprimento da medida: “De vez em
quando eu sou humilde, mas muitos não conseguem ver. Não sou humilde assim... falar que é
humilde é ser assim... Tem hora que você esgota a paciência. Só que sou bem humilde; só que
as pessoas não veem isso.” (MARTE).
Para ele:
Ser humilde é você saber falar com as pessoas. Na minha opinião, é você conversar
com a pessoa tranquilo, calmo, baixo... não chegar tipo grosso, endoidando, isso e
aquilo. Na minha opinião, é saber conversar e saber lidar com as pessoas que estão
ao seu redor. Na minha opinião é isso. (MARTE)
estava ali, [pelo fato de ele se] deslocar de lugar – sair do lugar de ser somente
assistido pela instituição e [passar a] ser protagonista. Então, eu acho que as oficinas
tiveram esse lugar de relevância, tanto para a instituição quanto para os próprios
adolescentes que participaram como protagonistas desse processo. (LUA)
O deslocamento mencionado no relato acima foi possível pelo movimento que o RAP
e a poesia têm de objetivar, como arte, ou seja, de elevar-se para além das básicas condições
de vida. Isso é o que Heller (1972) chama de “suspensão do cotidiano”.
Isso para mim é ampliar a noção de mundo. Por mais que o RAP ou a poesia falem
da experiência do menino, lá na comunidade dele ou não... o que ele assistiu desde
quando nasceu... você pode também através do RAP apresentar um mundo novo
para o adolescente. E isso é ampliar a noção de mundo, [possibilitar] alternativas de
vida. (LUA)
Antes de iniciar as oficinas na unidade, alguns adolescentes falavam que era proibida a
entrada de alguns CDs de RAP, pois eram consideradas músicas muito “pesadas”. Alguns
CDs de RAP eram permitidos, desde que fossem ouvidos com o discman e fone de ouvido.
Quanto a isso, não tive qualquer problema para realizar as oficinas; pelo contrário, a unidade
se interessou pela proposta de utilizar o RAP e a poesia no trabalho socioeducativo.
Embora seja longo o depoimento abaixo, optei por apresentá-lo de maneira completa,
para ser fiel à linha de raciocínio da narrativa em relação a essa questão, trazida pelos
adolescentes.
Às vezes, [os profissionais] optam pela coisa mais fácil em relação a essa questão. O
que é o mais fácil? É proibir e acabou. Por que trabalhar de fato essa questão? Então,
foi um marco quando você chegou e conseguiu “quebrar” um tanto de coisas...
115
porque ainda hoje no Cead muitos CDs são proibidos: “Não podem” [ser ouvidos],
têm que passar por uma seleção... Porque é essa a visão: às vezes, é mais fácil
proibir... quer dizer “o que está sendo falando ali? Nada!” É porque não têm o
conhecimento. A maioria de nós... não temos o conhecimento do RAP. “Então, se
eu não tenho conhecimento, o melhor é eu proibir. Não vou buscar, não vou me
interessar nisso, não vou dar ouvido a isso” Então, a palavra é proibir. Está falando
[a música RAP] “Oh, tem que matar, tem que não sei o quê, tem que subir o morro
e tal.” “Opa! Então, vamos ter proibir isso”. Sem saber de fato o que quer dizer
isso. Sem saber ao fundo o que quer dizer aquilo, sabe?! Num período anterior, por
não termos tanta visão, conhecimento – foi mais fácil para nós (vou falar “nós”
porque querendo ou não eu estava ali presente) foi mais fácil para nós ter proibido
tudo. Como, ainda hoje, ainda é mais fácil. Em vez de colocar um CD pesado dos
Racionais que está falando de violência, é mais fácil proibir do que trabalhar. Não é
diferente hoje. Hoje, ainda, alguns CDs são proibidos. Porque ainda existe essa visão
de que o RAP faz apologia, de que o RAP é pesado... Só que isso é contraditório.
Porque [o adolescente] não pode colocar o CD no rádio para ouvir no pátio, mas
pode ouvir como o fone de ouvido. Ele não pode ouvir naquele momento, mas se ele
for para casa dele no final de semana, ele ouve. Ele canta com o seu amigo ali no
canto [da instituição]. Então... é muito contraditório. É mais fácil tirar do que
trabalhar, não é?! Então... isso, ainda acontece hoje. A pessoa fica meio que assim...
numa faca de dois gumes! Porque: como eu não posso colocar o CD deles, mas
posso permitir que eles ouçam ali no mesmo momento com o fone no rádio dele? No
meu rádio não pode, mas no dele pode. Então, foi por isso que foi cortado. O
argumento é a questão da apologia, da gíria que influencia... então... Tem muitas
outras coisas aí que fogem um pouco... (SOL).
Quando eu cheguei no Cead [em 2005] já existia essa orientação [sobre a questão do
CDs de RAP]. Eu acho que [esse tema] toca muito no preconceito das pessoas.
Assim, a instituição não é isenta dos preconceitos dos profissionais que trabalham
nela. Eu acho que quando existe uma orientação desse tipo, não deixa de haver um
pouco de preconceito. O funcionário quando chega para trabalhar, não deixa os
valores do lado de fora da instituição. Por mais que a gente tente fazer um
alinhamento dos valores de cada um com o valor institucional, às vezes, [o valor
individual] acaba tendo peso. E o que eu percebo é que não é todo mundo que
escuta o RAP com bons ouvidos. Às vezes, não conseguem ver que não são todas
as letras que fazem apologia ao crime e colocam tudo num pacote só. A partir disso,
começa essa proposta: todo CD que chegar vai passar por uma avaliação da equipe
técnica. E aí, o técnico aprova ou não esse CD para ser escutado na instituição. Só
que aí passa pelo valor do técnico e nem sempre vai ser discutido: “Gente, vamos
discutir essa música para ver se aprovamos ou não aprovamos? – Não, é a pessoa
mesmo que aprova, que despacha o CD para adolescente escutar ou para ser
devolvido para a família. (LUA, grifo meu).
Identifico, nesses relatos, uma categoria importante para o tratamento da questão, que
é o preconceito. Recorro a Heller (1972), para desenvolver uma análise crítica sobre o
assunto.
De acordo com o autor, o preconceito é compreendido a partir dos “juízos
ultrageneralizadores”, que são construídos cotidianamente em relação às práticas comuns na
vida dos homens:
116
É, realmente, importante para quem quer que deseje intervir na vida social, saber
quais são, num estado dado, numa dada situação, as informações que se podem
transmitir, quais as que passam sofrendo deformações mais ou menos importantes e
quais as que não podem passar. (GOLDMANN, 1972, p. 10).
Você consegue ver esse invisível quando você pergunta isso. Quer dizer, ele está
falando de quem? Ele está falando do invisível. Frente a frente, olho no olho ele não
dá conta de falar disso. Mas, na escrita, ele consegue se expressar muito facilmente o
que, às vezes, não consegue olho no olho. Então, é por isso que é importante a
poesia, a escrita: essa poesia que chega na construção desse RAP, que é a linguagem
deles. (SOL)
As atividades por meio das oficinas do RAP e da poesia podem contribuir para o
processo de superação dessa invisibilidade que corrobora para que as pessoas não os vejam
como eles são. As atividades ocorrem a partir da articulação com os objetivos da medida e
como forma de servir de mediação para o trabalho socioeducativo para as demais áreas. É,
também, uma forma de apreender as demais questões que envolvem as especificidades do
adolescente e do seu desenvolvimento na medida socioeducativa de internação. Se as oficinas
não forem um lugar em que os adolescentes sintam prazer, conforto e identificação, o
resultado pode ser o que se pretende “combater”. Ademais, as apresentações dos RAPs e das
poesias partiram de um processo natural das oficinas, decidido em conjunto com os
119
adolescentes, para não os expor, pois a pesquisa ratificou a presença de motivações como a
“responsa”, mas também pontos inibidores como o medo e a vergonha de se apresentarem em
público.116
Se o adolescente já traz uma invisibilidade, há necessidade de desenvolver um cuidado
no modo de trabalhar essa questão, para que ela não se torne “invisibilidade institucional” –
que limita o mundo da pessoa entre os muros e que não a respeita como pessoa, em razão dos
motivos que levaram para a instituição.
Assim, considero também que as oficinas de RAP e a de poesia devem lidar com a
questão da violência e/ou com temáticas relacionadas à prática do ato infracional, a partir do
discurso dos adolescentes, das músicas e das poesias com as quais eles se identificam, tendo
atenção para não reforçar a “visão comum” deles, que é o ponto de partida do trabalho. É
necessário, ainda, diferenciar “falar de algum tema” de “falar sobre algum tema”. O primeiro
implica nos apontamentos feitos pelos e para os adolescentes e o segundo refere-se a um
estágio mais avançado, na medida em que implica percepções derivadas desses apontamentos.
Outro ponto importante é dizer de/sobre o tema sem enfatizar, de maneira isolada, a
categoria central da oficina ou, até mesmo, sem mencioná-la de maneira direta. Nessa
perspectiva, considero que a metodologia que poderia ser utilizada, de forma a despertar o
interesse dos adolescentes e, ao mesmo tempo, desenvolver sua capacidade de crítica em
relação à sociedade e à sua própria vida, é aquela que se constitui dentro do processo de
socioeducação, com a utilização de instrumentais reconhecidos pelos sujeitos.
116
Por incrível que pareça, as apresentações realizadas em público aconteciam mediante o interesse
do adolescentes. Esse aspecto não era a finalidade das oficinas. As apresentações em público
demandavam o movimento avaliativo que eu chamava de “pós-apresentação”, para analisar como o
adolescente se sentiu e quais foram as suas percepções. De acordo com Saturno: “O primeiro dia foi
muito vergonhoso, mas me ajudou muito a colocar um brilho no meu rosto, né?! Assim, perder a
vergonha de estar na frente de todo mundo”. As oficinas tinham o cuidado com o “infinito particular” –
nome da música de Marisa Monte – dos adolescentes (Ver Anexo E).
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS
117
O meu diário de campo era feito a partir dos seguintes pontos: 1 – local, lugar (considero que o
lugar em que você escreve interfere no modo como as descrições/análises são feitas), data e horário;
2 – temática da oficina; 3 – descrição da atividade realizada; 4 – reflexões a partir da descrição
realizada; 5 – inquietações e/ou dúvidas e 6 – observações. A utilização do diário de campo pode ser
flexível, sem preocupação de um modelo de diário de campo único e exclusivamente de caráter
descritivo, pois, é por esse instrumental que o pensamento deve se fazer livre para que, num
segundo momento, o profissional e/ou estudante que vier a utilizá-lo faça uma leitura para realizar as
reflexões finais daquele registro.
122
três foi igual: “surpresa”. Um sujeito da pesquisa disse: “Eu pensei que você tinha se
esquecido de mim...” (SATURNO). Ele não imaginava que eu iria aparecer, após alguns anos,
para falar sobre as oficinas.
Aqui, cabe uma indagação: como explicar essa expressão de alegria ao reencontrar
esses sujeitos, sendo que no passado eu havia realizado intervenções intensas e severas com
eles, por algum comportamento inadequado durante o cumprimento da medida?
Costuma-se dizer que o adolescente precisa de limites – como se o limite fosse um
cordão de isolamento ou uma corrente presa no pé dele à parede. Em minha experiência,
percebia que as relações tecidas no campo do respeito – construídas em mão dupla –,
possibilitava que, eu, como profissional, fosse visto como alguém de referência positiva. Por
eu ser essa referência, os adolescentes ainda valorizam essa relação. Assim, o reencontro foi
produtivo também por evidenciar que a dimensão do respeito recíproco continuava presente.
Dessa forma, os cuidados éticos e o reencontro com os sujeitos da pesquisa deram-me
a segurança para realizar este estudo ex-post-facto mesmo após alguns anos da realização das
oficinas. E essa segurança ratificou a minha convicção em avançar nessa metodologia de
trabalho e sistematizá-la de maneira efetiva, como uma das práticas que mais se aproxima da
realidade de vida de adolescentes que estão em cumprimento de medida socioeducativa de
internação. Nessa aproximação, ao fazer o movimento de retorno ao processo vivenciado,
percebi os motivos que causaram a emersão das categorias violência, invisibilidade e cultura.
Em relação ao primeiro pressuposto que norteou esta dissertação – o adolescente
compreenderia o RAP e a poesia como “trilha sonora” de sua vida, com potencial
transformador, mas não suficiente para um direcionamento prático – é evidente que os
adolescentes falaram sobre a violência de uma forma muito concreta em suas produções.
Identificaram o RAP (ouvido e produzido por eles) à sua história de vida, pela sua
potencialidade de transformação por meio do conhecimento adquirido e produzido. Nesse
sentido, eles conseguiram identificar e expressar as razões que possivelmente impediam e/ou
dificultavam a efetivação de sua superação como, por exemplo, a desigualdade social. As
produções traziam dimensões riquíssimas, que provocavam indagações acerca do modo como
eles vivenciaram a violência, e como a prática infracional estava relacionada também com
outras dimensões, como a luta por sobrevivência e uma resposta à subalternidade (TOLEDO,
2007). Às vezes, a violência se apresentava como aparência (ou na aparência), escamoteando
forças internas e externas contraditórias: “[...] os meus pais não vêm aqui me ver/ Fico bolado
e começo a sofrer/ Penso em matar, penso em morrer/ Penso em salvar, penso em viver...”
(JÚPITER).
123
Por fim, considero a arte como mediação na perspectiva crítica e como instrumento de
trabalho, no fazer profissional dos assistentes sociais. Pois, de acordo com Lukács (1978, p.
296):
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2004.
134
ANEXOS
Anexo A
Anexo B
Hã, Vulgo Elemento, irmão, aí, fecha com nóis, Contagem/MG, São Paulo/SP, A Lágrima de
um Palhaço. É que eu tenho muito orgulho do que faço, tá ligado, mano, e acredito mesmo
que a tristeza é o motivo da alegria do palhaço, com o sentimento da dor e o bem estar do
abraço, um aperto de mão, um sorriso nos lábios, (a lágrima que desce dos olhos do palhaço.)
REFRÃO ( 2 vezes)
REFRÃO ( 2 vezes)
Anexo C
Letra/Autoria: MV Bill
Música: O bagulho é doido
Álbum: Falcão: o bagulho é doido (2006) Faixa 02
Sem cortes
Liga a filmadora e desliga o holofote
Se quer me ouvir, permaneça no lugar
Verdades e mentiras, tenho muitas pra contar
Doideira
Fogueira à cada noite pra aquecer
O escuro da madruga que envolve o meu viver
Não sou você...
Também não sei se gostaria ser
Ficar trepado no muro
Se escondendo do furo
Não me falta orgulho
Papo de futuro
É nós
Que domina a cena
Bagulho de cinema
A feira tá montada, pode vir comprar
Eu vendo uma tragédia
Cobro dos comédias
16 é a média
Deus tá vendo, eu acredito
Sou detrito
Que tira o sono do doutor
Seria o Jason, se fosse um filme de terror
Desembaça
Saia na fumaça
O bonde tá pesado e você tá achando graça
Tipo peste
Tá no sudeste, tá no nordeste, no centro-oeste
Teu pai te dá dinheiro
Você vem e investe
No futuro da nação
Compra pó na minha mão
Depois me xinga na televisão
Na sequência vai pra passeata levantar cartaz
Chorando e com as mãos sinalizando o símbolo da paz
O bagulho é doido
Não tenta levar uma
Não vem pagar de pã, se não for porra nenhuma
Deus ajuda
Que eu fique de pé no sol e na chuva
138
REFRÃO:
Já vou ficar no lucro se passar de 18
Depois que escurece o bagulho é doido
O mesmo dinheiro que salva também mata
Jovem com ódio na cara
Terror que fica na esquina
Esperando você chegar
Se passa de 18
Depois que escurece o bagulho é doido
O mesmo dinheiro que salva também mata
Já vem com um monte na cara
Terror que fica na esquina
Esperando você...
"Tenho uma irmã de 5 anos.. de 6 anos.. fico pensando se eu morrer assim, mané.. minha
irmãzinha vai ficar como... triste!"
REFRÃO:
Já vou ficar no lucro se passar de 18
Depois que escurece o bagulho é doido
O mesmo dinheiro que salva também mata
Jovem com ódio na cara
Terror que fica na esquina
Esperando você chegar
Se passa de 18
Depois que escurece o bagulho é doido
O mesmo dinheiro que salva também mata
Jovem com ódio na cara
Terror que fica na esquina
Esperando você...
141
Anexo D
Refrão (2 vezes)
Chega perto de mim
Me deixa falar
Sempre de muito longe
Vem me condenar
Refrão (2vezes)
Chega perto de mim
Me deixa falar
Sempre de muito longe
Vem me condenar
Refrão (2vezes)
Chega perto de mim
Me deixa falar
Sempre de muito longe
Vem me condenar
Refrão (2 vezes)
Chega perto de mim
Me deixa falar
Sempre de muito longe
Vem me condenar
Refrão (2 vezes)
Chega perto de mim
Me deixa falar
Sempre de muito longe
145
Anexo E