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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


PUC-SP

Isabela Barros Gonçalves Alencar

Linguagem de adolescentes sob medidas socioeducativas


em meio aberto: uma abordagem fonoaudiológica

MESTRADO EM FONOAUDIOLOGIA

São Paulo
2016
ii

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


PUC-SP

Isabela Barros Gonçalves Alencar

Linguagem de adolescentes sob medidas socioeducativas


em meio aberto: uma abordagem fonoaudiológica

Dissertação apresentada como exigência


parcial para obtenção do título de mestre em
Fonoaudiologia pelo Programa de Pós-
Graduação em Fonoaudiologia da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Dr. Luiz Augusto de Paula
Souza.

São Paulo
2016
iii

Alencar, Isabela Barros Gonçalves

Título: Linguagem de adolescentes sob medidas socioeducativas em meio


aberto: uma abordagem fonoaudiológica / Isabela Barros Gonçalves
Alencar. São Paulo, 2016. 161 f.

Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,


2016.

Orientador: Luiz Augusto de Paula Souza

Título em inglês: The language of adolescents on socio-educational context

1.Estudos de linguagem. 2. Adolescência. 3.Delinquência Juvenil. 4.Medidas


socioeducativas em meio aberto. I. Paula Souza, Luiz Augusto de. II.
Linguagem de adolescentes sob medidas socioeducativas em meio aberto:
uma abordagem fonoaudiológica
iv

Linguagem de adolescentes sob medidas socioeducativas


em meio aberto: uma abordagem fonoaudiológica

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Luiz Augusto de Paula Souza

Profa. Dra. Suzana Magalhães Maia

Profa. Dra. Maria Cristina Gonçalves Vicentin

Aprovada em: ___/___/___


v

Este trabalho foi desenvolvido no Programa de Pós-graduação em Fonoaudiologia, na

linha de pesquisa Linguagem, Corpo e Psiquismo, da Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo.

Instituição de Fomento:

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Processos do Beneficiário: 130166/2015-4


vi

Aos adolescentes por compartilharem


suas histórias de luta e sobrevivência
em uma sociedade tão cruel.
vii

AGRADECIMENTOS

A solidariedade é uma forma visível do


amor. Pela magia do sentimento de
solidariedade, meu corpo passa a ser
morada de outro. É assim que
acontece a bondade.

(Rubem Alves)

Concluo este percurso fazendo referência ao poeta Rubem Alves uma

vez que encontrei nesta caminhada muitas moradas. Em toda a trajetória me

deparei com pessoas que ensinaram o significado da solidariedade e fizeram a

bondade acontecer não apenas nas contribuições teóricas, mas na amizade e

na cumplicidade. A estas pessoas, dedico este espaço, como um modo de

reconhecimento.

Agradeço:

Ao Centro de Defesa da Criança e do Adolescente – Parque Santa

Madalena, por me abrir as portas com tanto carinho e atenção.

Ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social – Vila

Prudente/ Sapopemba, representado pela Aparecida, que aceitou a pesquisa e

acreditou na importância da fonoaudiologia para com os adolescentes em

medidas socioeducativas.

À Sueli, Danilo, Regina, Keila, Lélia e Jacqueline por me ensinarem a

olhar para os adolescentes com humanidade e respeito.


viii

Ao meu orientador, Luiz Augusto de Paula Souza, pelo acolhimento, pela

confiança, pela disposição em compartilhar seus conhecimentos, pela infinita

paciência. Obrigada por dar cor às minhas palavras e por me apresentar a uma

Fonoaudiologia muito mais bonita.

Ao Nelson Filice, por ser uma influência desde o meu primeiro ano de

graduação e agora, pelas ricas contribuições no exame de qualificação.

À Professora Cristina Vicentin, por ser uma inspiração na pesquisa com

os adolescentes em vulnerabilidade, por todo carinho dispensado na

construção deste trabalho. Pelas contribuições no exame de qualificação e

aceitar o convite para a defesa.

À Ruth Palladino por dividir seus conhecimentos tão valiosos com

tamanha leveza e alegria. Por me ajudar a entender o lugar da fonoaudiologia

neste trabalho.

À Suzana Maia por ler meus primeiros textos e, pacientemente, mostrar

como torná-los mais científicos. Por aceitar, prontamente, a compor a banca na

defesa.

À Virgínia, por estar sempre disposta a me ajudar com as burocracias.

À Caroline Barbosa, pela amizade, incentivo e parceria. Por, muitas

vezes, segurar em minha mão quando eu achei que não fosse conseguir.

Ao meu esposo Fernando, por ser meu amigo, companheiro, confidente,

por acolher minhas preocupações e ideias, por ouvir atentamente cada palavra

pensada e escrita neste trabalho.


ix

Aos meus pais, Ezequiel e Val, pelo incentivo e investimento nos meus

sonhos. Nada teria acontecido se não fosse pela bondade de vocês!

Àos amigos e irmãos Débora, Cinthia, Tininha, Mari, Lilian, Cristiane e

Gabriel por ouvirem minhas aspirações e me fazerem acreditar que este sonho

seria possível.

Á Roberta e Felipe por sustentarem, neste período, a realização do meu

casamento, permitindo minha ausência nos preparativos para que me

dedicasse aos estudos, fazendo tudo com tanta ternura e perfeição.

À Ueslia, minha terapeuta, por me fazer compreender minhas

motivações com esta pesquisa, por me ajudar a ter um olhar mais maduro e

por me ensinar a ser mais forte.

Àquele que faz os meus pés como os das corças e me leva a lugares

altos. À pessoa mais importante da minha vida, meu Deus, meu abrigo, meu

cuidador e protetor. Àquele que logo voltará a fim de restaurar todas as coisas.

A CAPES pela bolsa concedida.


x

E o cano da pistola que as crianças


mordem reflete todas as cores da
paisagem da cidade que é muito mais
bonita e muito mais intensa do que no
cartão postal. Alguma coisa está fora
da ordem, fora da nova Ordem
Mundial.
(Caetano Veloso – Fora da Ordem)
xi

RESUMO

O Objetivo desta pesquisa foi levantar aspectos da linguagem, sobretudo dos

discursos de adolescentes sob medida socioeducativa em meio aberto para

problematizar noções patologizantes e/ou de desqualificação social advindas

de eventuais singularidades do repertório e das formas de enunciação desses

sujeitos. O estudo foi realizado no CEDECA-Madalena, localizado no Parque

Santa Madalena - Zona Leste de São Paulo. Os sujeitos da pesquisa foram

nove adolescentes que cumprem medidas na instituição, com idades entre 15 e

18 anos. Para contribuir na análise dos dados, foram incluídas no estudo

percepções de funcionários da instituição, que têm contato direto com tais

adolescentes. A coleta de dados foi realizada por meio de três estratégias

complementares: a) entrevistas semiestruturadas com os adolescentes; b)

aplicação do Mini Exame do Estado Mental (MEEM) com os adolescentes após

as entrevistas, para rastrear eventuais distúrbios de comunicação; c) entrevista

aberta com os funcionários. Os resultados apontaram para aspectos

peculiares na linguagem e no discurso dos adolescentes, em acordo com suas

condições de vida e de sociabilidades. Apesar dos funcionários entrevistados

relatarem, em sua maioria, certa dificuldade em se comunicar com os

adolescentes, os resultados do MEEM não apontaram indícios de distúrbios de

linguagem oral e/ou escrita nos sujeitos da pesquisa, com exceção de um

adolescente, que teve pontuação levemente abaixo de seu grau de

escolaridade, mas sem alteração discursiva. Os adolescentes foram críticos em

relação aos seus modos de falar, atribuindo valor negativo ao uso de gírias e

de metalinguagem própria aos grupos de convívio (inclusive na marginalidade),


xii

como se esses usos da linguagem fossem inferiores e, por isso, os impedisse

de transitar em outras esferas sociais. Pôde-se concluir que adolescentes em

cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto podem apresentar

autoimagem rebaixada em relação aos seus modos de falar e/ou escrever,

referindo-se a eles como não aceitáveis na sociedade em geral, o que geraria

empecilhos à circulação e à inserção social mais ampla.

Palavras-chave: Estudos de linguagem; Adolescência; Delinquência Juvenil;

Medidas socioeducativas em meio aberto


xiii

ABSTRACT

The purpose of this research was to raise aspects of language, especially


adolescent speeches under socioeducational actions in an open environment to
problematize pathological notions and/or social disqualification arising from
eventual singularities of the repertoire and the enunciation forms of these
people. It was held at CEDECA-Madalena. The people were nine adolescents
who comply with measures in the institution, aged between 15 and 18 years.
Data collection was performed through three complementary strategies: a)
semi-structured interviews with adolescents; B) application of the Mini Mental
State Examination (MMSE) with adolescents; C) an open interview with
employees. The results pointed to peculiar aspects of adolescents' language
and speech, according to their living conditions and sociability. The results of
the MMSE did not show signs of language disorders in that group of research,
with exception of one adolescent, who scored slightly below their educational
level, but without discursive alteration.
Adolescents were critical of their ways of speaking, assigning negative value to
the use of slang and metalanguage proper to social groups (including
marginality), as if these uses of language were inferior and, therefore, have
forbidden from move in other social spheres. It could be concluded that
adolescents in compliance with socio-educational actions in the open
environment may present low self-image in relation to their ways of speaking
and/or writing, referring to them as not acceptable in society in general, which
would generate obstacles to the circulation and Social integration.

Key-words: Language Arts; Adolescent; Juvenile Delinquency; socio-


educational context.
xiv

SUMÁRIO

Agradecimentos ................................................................................................ vii

Resumo .............................................................................................................. xi

Abstract ............................................................................................................ xiii

Sumário ............................................................................................................ xiv

Lista de tabelas ................................................................................................ xvi

Lista de Imagens ............................................................................................. xvii

Lista de abreviaturas e siglas ......................................................................... xviii

Introdução .......................................................................................................... 1

Revisão da Literatura ......................................................................................... 6

1. Linguagem, saúde, sociedade e adolescência ....................... 12

Objetivo ............................................................................................................ 23

Método ............................................................................................................. 24

1. A instituição da pesquisa ........................................................ 24

2. Natureza da pesquisa ............................................................. 29

3. Casuística ............................................................................... 29

4. Coleta de dados ...................................................................... 31

5. Aspectos Éticos da Pesquisa .................................................. 32

Resultados e discussão ................................................................................... 34

1. A investigação com os Adolescentes ...................................... 35

1.1. Rastreio Cognitivo e de Linguagem ........................................ 35

1.2 O que dizem os adolescentes ................................................. 40

2. O que dizem os Profissionais .................................................. 54

Conclusão ........................................................................................................ 60
xv

Referências Bibliográficas ................................................................................ 63

Anexos ........................................................................................................... 71

Anexo 1 - Parecer da Secretaria Municipal da Assistência e

Desenvolvimento Social ...................................................................... 71

Anexo 2 - Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa

............................................................................................................. 73

Anexo 3 - Termo de Assentimento Livre e Esclarecido ....................... 77

Anexo 4 - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ..................... 80

Anexo 5 - Roteiro da Entrevista ........................................................... 83

Anexo 6 - Mini-Exame do Estado Mental ............................................. 84

Anexo 7 - Diálogos com os Adolescentes ........................................... 86

Anexo 8 - Depoimentos dos Profissionais .................... 137


xvi

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Taxa de escolaridade dos adolescentes da unidade p. 26

Tabela 2: Taxas de emprego dos adolescentes da unidade p. 27

Tabela 3: Pontuação total do MEEM p. 35

Tabela 4: Orientação p. 36

Tabela 5: Memória p. 36

Tabela 6: Atenção e Cálculo p. 37

Tabela 7: Evocação p. 38

Tabela 8: Linguagem, nomeação, repetição e comando verbal p. 38

Tabela 9: Habilidade construtiva p. 39


xvii

LISTA DE IMAGENS

Imagem 1: Ocupação de vagas por subprefeitura de São Paulo p. 26

Imagem 2: Os mínimos e máximos de jovens que cumpriram as p. 27

medidas socioeducativas por subprefeitura de São Paulo


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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CASA: Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente

CEB: Comunidades Eclesiais de Base

CEDECA: Centro de Defesa da Criança e do Adolescente

CDP: Centro de Detenção Provisória

CLT: Consolidação das Leis do Trabalho

COPS: Coordenadoria do Observatório de Política Social

CREAS: Centro de Referência Especializado de Assistência Social

DEGASE: Departamento Geral de Ações Socioeducativas

ECA: Estatuto da Criança e do Adolescente

FEBEM: Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor

GIP: Le Groupe d'information sur les prisons

MEEM: Mini-Exame do Estado Mental

SMADS: Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social


1

INTRODUÇÃO

O relato a seguir faz parte de uma pesquisa conduzida por Luiz Eduardo

Soares, Celso Athayde e MV Bill (SOARES, BILL e ATHAYDE, 2005, p. 134-

139), ela se refere a jovens brasileiros com passagens pela “vida do crime”. O

adolescente em questão foi entrevistado em 2002, aos 15 anos de idade.

Trata-se de um episódio no qual um traficante foi preso como resultado da

acusação de um delator. Quando o traficante descobriu quem foi o autor da

denúncia, o assassinou. Para livrar-se do corpo, pediu ao tal jovem de 15 anos

que o esquartejasse. Dado o contexto, segue o relato:

Aí, ele mandou eu picotar o Neto todinho. Eu não soube

picotar um braço [...] arranquei as duas pernas e o outro

menorzinho que estava comigo arrancou a cabeça. Aí,

nós botamos dentro das bolsas e jogamos lá atrás do

mato. Foi só isso, só dessa vez que eu fiz uma coisa

errada. Depois nunca mais, graças a Deus! Pode

perguntar a quem quiser do meu proceder. Eu sou puro,

sou legal, eu não tinha necessidade de ficar na vida do

crime. Eu queria o amor de uma tia, de uma mãe, isso

que eu nunca tive, o amor de uma família, que quando eu

precisasse para conversar, ela estivesse lá, viesse


2

conversar comigo. Mas, eu nunca tive. Se eu tivesse

uma família para conversar, eu não estaria nessa vida

não, não estaria não. Desculpa aí, eu não queria chorar

não, não filma eu chorando, não, filma não. [grifos da

autora]

A fala do jovem faz uma revelação para além da barbárie: desejo de

interlocução, de conversa saudável e estruturante, como uma espécie de

possível antídoto ao crime. Escolho esse relato para iniciar a reflexão a

respeito da linguagem oral de adolescentes em conflito com a lei. Isto porque é

pertinente falar de linguagem a partir da alteridade, da relação ao outro, como

constituinte de nossa condição de sujeito; condição que se opera na e pela

linguagem. Sem qualquer requinte conceitual, o mencionado adolescente

parece saber disso.

Do ponto de vista normativo, é razoável imaginar que, o jovem acima

fosse julgado nos termos do Decreto nº 53.427 (SÃO PAULO, 2008), ele

poderia ser diagnosticado como portador de distúrbio de personalidade, uma

vez que cometeu ato de alta periculosidade. Ainda que a Reforma Psiquiátrica

tenha avançado, o decreto aponta para algo renitente no campo da saúde

mental: a crescente psiquiatrização de casos de crianças e adolescentes que

cometeram atos infracionais, a partir da qual esses sujeitos são diagnosticados

com algum transtorno mental.

O aumento de diagnósticos que vinculam decisões do poder Judiciário e

saber médico também revela-se no projeto de lei Nº 673, de 2011, o qual


3

propõe a internação, para tratamento médico, de crianças e adolescentes em

situação de risco por uso de drogas (São Paulo, 2011, p. 18). A crítica a este

projeto está no fato do Estado se impor a partir do pressuposto de que os

usuários de drogas estão doentes e, por isso, não têm possibilidade de

escolha. Sendo assim, o Estado age, muitas vezes, de modo punitivo e

criminalizador (CALLEGARI e MOTA, 2007). Modo que se repete na atuação

da polícia, no cárcere provisório, nas penitenciárias, no sistema socioeducativo;

ações e lugares que, frequentemente, violam direitos e cometem brutalidades e

crimes (SOARES e GUINDANI, 2007).

Na mesma direção, Asquidamini, Barbiani e Sugizaki (2015), em revisão

de artigos científicos brasileiros (no período de 2002 a 2012) a propósito da

temática da atenção à saúde do adolescente em cumprimento de medidas

socioeducativas, percebem que parte dos estudos aborda a violência dos

adolescentes valendo-se de argumentos patologizantes e medicalizadores. Os

autores refutam tais premissas, bem como a consequente uniformização de

condutas que advém desse pressuposto; o tratamento de doenças não

existentes; e a medicalização social e psíquica que, segundo eles, servem mais

à indústria da doença do que à saúde das pessoas.

Assim, por meio de convergências entre os discursos psiquiátrico e

jurídico busca-se estabelecer critérios de “verdade” à análise das situações e

contextos que envolvem infrações a lei. Tal arranjo, de saberes e poderes,

participa do controle social da juventude brasileira em vulnerabilidade e tem

ajudado a pautar os processos por perspectivas de psiquiatrização e também

de criminalização (VICENTIN, GRAMKOW e ROSA, 2010).


4

A problematização da psiquiatrização na análise das pessoas em

situação de privação de liberdade não é recente e nem exclusiva da realidade

brasileira. Para ficar em apenas um exemplo emblemático, é útil lembrar que,

em 1971, a partir de uma mobilização para desvelar a situação das prisões

francesas, foi criado o Groupe d’Information sur les Prisons (GIP). O trabalho

do GIP, entre outras ações, recolheu e articulou numerosos testemunhos e

escritos, produzidos principalmente pelos próprios detentos.

A importância de tal iniciativa foi possibilitar um intenso debate público

sobre as condições opressoras a que estavam submetidas às populações

carcerárias, bem como sobre os limites e as relações entre a prisão, os presos

e a sociedade (FOUCAULT, 2006). Mais do que revelar a situação da

população carcerária, a utilidade de tal iniciativa foi a de dar existência e

concretude social à problemática, inclusive como estratégia para criar

condições de equacioná-la, de enfrentá-la.

De certa forma, é algo assim que se busca no presente trabalho, isto é,

o que se quer aqui é desnaturalizar e problematizar rótulos patologizantes e

criminalizadores atribuídos aos adolescentes sob medidas socioeducativas,

principalmente em questões e percepções que, direta ou indiretamente,

envolvem a comunicação oral e as posições e condutas, digamos assim,

subjetivo-discursivas desses sujeitos.

Por conta disso, a linguagem será pensada aqui em função de sua

condição discursiva e interdiscursiva, destacando o conteúdo da fala dos

adolescentes estudados e o como esses conteúdos se relacionam com os

modos e as condições concretas de vida, para além de eventuais limitações em


5

termos de repertório linguístico formal; limitações ligadas às dificuldades de

acesso a bens culturais e educacionais, em função de situações de

vulnerabilidade e de precariedade social.


6

REVISÃO DA LITERATURA

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei 8.069/90, foi

elaborado e sancionado logo após a Constituição Federal (1988), com

colaboração dos movimentos organizados em defesa das crianças e dos

adolescentes. Ele constitui o reconhecimento legal dos direitos das crianças e

dos adolescentes à cidadania, independentemente da classe social de origem.

Temos uma lei especial para toda a infância e juventude brasileira e não

somente para alguns segmentos dela, como acontecia antes do ECA

(FERREIRA, CAMPOS e TEOTONIO, 2014).

Uma conquista histórica nos direitos da infância e da juventude foi

responsabilizar a família, a comunidade, a sociedade em geral e o poder

público por assegurarem estes direitos, dando proteção às crianças e aos

jovens. Isto fundamenta a responsabilidade e a solidariedade devida àqueles

que são mais vulneráveis na sociedade (DALLARI, 2000).

O ECA traz uma mudança fundamental no campo dos direitos sociais e

da cidadania. O presente estudo enfatizará as medidas socioeducativas que,

do ponto de vista do ECA, trafegam das medidas punitivas às medidas de

proteção. Uma vez que, apesar dos avanços consignados no ECA, há

disputas em sua interpretação e implantação, o que torna sua prática

desafiadora: quando se trata do âmbito educativo, a prioridade está nos


7

objetivos de proteção, educação, reeducação, reintegração sócio-familiar e

fortalecimento de vínculos familiares. Entretanto, sob o ângulo jurídico, o

caráter é penal, considerando o adolescente como um sujeito de direitos e de

responsabilidades penais frente às infrações (DE PAULA, 2002).

Com referência a este tema, Bergalli (1992, p. 360) afirma que “a

submissão de um adolescente à prestação de serviços à comunidade tem um

sentido altamente educativo, particularmente orientado a obrigar o adolescente

a tomar consciência dos valores que supõem a solidariedade social praticada

em níveis mais expressivos”.

Diante de uma certa ambiguidade conceitual sobre o caráter das

medidas socioeducativas, indaga-se: qual seria o efeito de tais medidas na

adolescência e como utilizá-las a fim de mitigar vulnerabilidades sociais?

Se não existe um consenso no campo teórico a respeito das medidas,

por consequência a prática pode ser duramente afetada. Toma-se como

exemplo a realidade das medidas de internação. Vincentin (2005), sob certa

perspectiva, buscou compreendê-la na Fundação Estadual do Bem Estar do

Menor (FEBEM), tendo como pontos de partida as rebeliões e os relatos dos

adolescentes. A autora denuncia os abusos sofridos pelos adolescentes por

parte dos profissionais de uma instituição de Estado. O abuso sofrido é

tamanho que as rebeliões se apresentam como uma maneira de, em certos

momentos, equilibrar as forças e, de certo modo, conseguir dialogar com a

instituição e a sociedade.

Ainda sobre as medidas de internação, Costa (2005, p. 82) também

expõe precariedades em suas práticas:


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Mesmo os direitos fundamentais como escolarização,

profissionalização e saúde, apesar de existentes nas

instituições, são passíveis de críticas: a escolarização,

ainda que satisfatória em relação à oferta, sofre com a

falta de professores e de capacitação dos mesmos para

lidarem com a proposta socioeducativa; a

profissionalização, em geral viabilizada por meio de

convênios e parcerias, converte-se via de regra em

dispositivo de premiação ou punição, atrelada a um

critério disciplinar. Oficinas e cursos, ao invés de

constituírem uma via de acesso à cidadania, são

manipulados enquanto prêmios, destinados a poucos.

De acordo com o ECA, para a aplicação das medidas, seria

imprescindível avaliar a natureza da infração cometida, as necessidades

pedagógicas do adolescente que a cometeu, a disponibilidade dos programas

para a reinserção do adolescente, a estrutura física e pedagógica dos serviços

e as possibilidades do adolescente cumprir as medidas. Porém, distante do

almejado, tais diretrizes e exigências não têm sido contempladas no

cumprimento das medidas, tornando-as insuficientes para prover condições

positivas de desenvolvimento ao adolescente em conflito com a lei (COSTA,

2005).

Rufino (2001, p.10) indaga sobre a realidade por trás dos julgamentos

dos adolescentes: seria uma questão discriminatória para com as classes

menos favorecidas?
9

O Estado, enquanto tal, tem por primeira função manter a

ordem social: que os ricos continuem ricos e os pobres

conformados. Em seguida, o Estado é uma pá: tira renda

de baixo para concentrar em cima. Os jovens pobres que

não se conformam são punidos com o cemitério, o

hospício e a internação (prisão) judicial. Para isso, difunde

um “engana trouxa”: devemos todos cumprir a lei –

quando a lei não passa do código de defesa da ordem

que produziu os inconformados. O Departamento Geral

de Ações Socioeducativas (DEGASE) está repleto de

crianças pobres que não se conformam com a pobreza.

Quem são os carcereiros e, por vezes, os torturadores

dessas crianças e adolescentes? Homens e mulheres

pobres injustiçados como eles, convencidos pela

necessidade a guardar a guardar e torturar crianças e

adolescentes sob o embuste de “medidas

socioeducativas”. São quase todos contrários aos direitos

humanos. (“Direito humano para bandido? Queria ver se

você tivesse uma filha estuprada por uma dessas feras!”)

Nesse sentido, Rufino e Souza (2000), ao falarem sobre a formação da

sociedade brasileira, afirmam que as análises sociais que a definem são

superficiais e baseadas no liberalismo, em uma espécie de comparação com

os Estados Unidos da América, descartando as variedades e as

especificidades pertencentes à formação brasileira, como a escravidão e o

patriarcalismo.
10

Desse modo, o que se considera efetivamente como povo brasileiro são

os brancos e descendentes de europeus, em detrimento de todos que não

fazem parte desse segmento. Grande parte dos que não são brancos,

descendentes de europeus e de classes econômicas (chamadas) média e alta,

compõem o que Souza (2009) denomina de ralé brasileira: uma classe social

que nem vista como classe é, e que ocupa o imaginário social ora como

perigosa, ora como necessitada.

A maioria dos adolescentes em medidas socioeducativas fazem parte da

ralé e são considerados criminosos ou vítimas, ainda não são vistos pela

sociedade como sujeitos de direitos, mesmo sob a égide de uma legislação – o

ECA – que lhes garante formalmente essa condição.

Como se vê, é inegável a existência de contradições e problemas

concretos à implementação das medidas socioeducativas: discriminação social;

precariedade em que tais medidas são executadas; abusos cometidos pelas

autoridades; falta dos recursos necessários; despreparo da comunidade. Em

face da falta de competência e de prioridade em resolver os problemas por

parte do Estado, não é incomum que o senso-comum, alimentado por parte da

chamada “grande mídia”, culpabilizem as crianças e os jovens em conflito com

a lei pelas situações de violência e criminalidade nas quais estão envolvidos.

Afinal, não é esse um dos pressupostos para aqueles que defendem a

redução da maioridade penal?

Gomes e Conceição (2014) realizaram uma pesquisa com adolescentes

sob medidas socioeducativas em meio aberto. O objetivo era compreender os

sentidos atribuídos pelos adolescentes às trajetórias de vida e ao envolvimento


11

com infrações à lei. Os encontros das psicólogas com os adolescentes gerou

um conjunto de reflexões, a partir das quais as autoras, entre outras

dimensões, também concluem que:

o passado desses adolescentes parece marcado por

recusa de investimento, erros e culpa; a projeção sobre o

futuro, por mudanças idealizadas; e o presente, pela

tentativa de descolar de sua pele o estigma de autor de

ato infracional. Isso nos levou a questionar se o período

de cumprimento da medida socioeducativa vem de fato

contribuindo para a desculpabilização e reinserção social

do adolescente, pois durante esse período ele parece

estar "congelado", aguardando o futuro "milagroso".

(GOMES E CONCEIÇÃO, 2014, p. 57)

Por outro lado, Vicentin (2005) chama atenção ao discurso de

adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas sob regime

fechado na Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM) – hoje

chamada de Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente

(CASA)–, revelando que, somado a variadas formas de desqualificação e

maus-tratos, a ausência de escuta institucional às necessidades pessoais e

demandas subjetivas e sociais, às vezes, levam ao limite e eclodem como

rebelião, numa espécie de comunicação extremada com o Estado e a

sociedade, um grito desesperado para se fazer ouvir.

É esse contexto, no qual conjuga-se, simultaneamente, avanços na

construção de direitos e reiteração de contradições e mazelas, que aqui se


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tenta habitar para problematizar uma certa tendência da área da saúde,

especificamente da Fonoaudiologia, para abordar a linguagem (na fala e na

escrita) de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade; tendência

à individualização e patologização de modos de falar, de escrever e de analisar

supostos fracassos escolares por parte desses sujeitos. No caso em questão,

tal problematização pretende colocar em análise a percepção, sobre sua

própria linguagem, de um grupo de adolescentes em liberdade assistida e sob

medida socioeducativa em um Centro de Defesa de Crianças e Adolescentes

(CEDECA) da cidade de São Paulo.

1. Linguagem, saúde, sociedade e adolescência

No senso comum, a concepção de adolescência se inclina para uma

homogeneização e universalização. O termo carrega os estereótipos da

imaturidade, do desequilíbrio e da vulnerabilidade pessoal, justificados por

características biológicas e sociais atribuídas à essa faixa etária. Por

conseguinte, produz-se reducionismos perigosos, sobretudo quando se

concebe, como uma espécie de perfil de referência para pensar os

comportamentos nessa faixa etária, o adolescente ocidental urbano, sobretudo

de classe média e alta, do sexo masculino, branco e de países de primeiro

mundo (GOÉS, 2006).

Esse tipo de abordagem parece equívoca, por várias razões, entre as

quais se destacam: exclusão de outros perfis e dimensões históricas, culturais

e subjetivas; idealização e universalização da adolescência, não contemplando

diferenças e singularidades, nem desigualdades e condicionamentos sociais

diversos. Tudo isso contribui para uma imagem distorcida do adolescente e da


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adolescência, o que pode fragilizar sua inserção social e também as ações e

políticas voltadas a esse segmento da sociedade (CAGLIARIS, 2000).

No campo da saúde e, nela, também na Fonoaudiologia, o referido

equívoco está presente e ajuda a alimentar certos reducionismos. Senão

vejamos alguns exemplos. Segundo Snow e Powel (2005), adolescentes

infratores teriam dificuldades em organizar informações e fatos para comunica-

los a um interlocutor; situação que o prejudicaria em face do sistema legal, ao

qual teria que dar informações e mesmo prestar esclarecimentos acerca das

acusações que recaem sobre ele.

Essas dificuldades adviriam, entre outras, de questões ligadas à

inadaptação social, à falta de acompanhamento e estimulação desde o período

de desenvolvimento cognitivo e de linguagem. Por sua vez, Locke, Ginsborg e

Peers (2002) sugerem que dificuldades persistentes de linguagem podem

favorecer comportamentos antissociais e infracionais.

Em referência a vários estudos que correlacionam atos infracionais com

dificuldades escolares, cognitivas e de linguagem em crianças e adolescentes,

Destro (2011, p. 29) conclui:

é relativamente comum que o comportamento do

delinquente seja associado à alguma dificuldade de

aprendizagem relacionada à linguagem, uma vez que

estas levariam à limitações cognitivas e linguísticas. As

dificuldades de ler e escrever, por exemplo, poderiam

isolar ou estigmatizar alunos que, às vezes, procuram


14

superar suas limitações linguísticas com comportamentos

agressivos, rebeldes ou violentos.

A observação de situações como as mencionadas acima não é

incomum, o problema parece estar em sua mera individualização e

patologização, como se fossem causas suficientes das condições em que se

encontram – em nosso caso – os adolescentes em conflito com a lei.

Ao atribuir eventuais dificuldades escolares, cognitivas e de linguagem

aos adolescentes e a seus comportamentos pessoais opera-se um

reducionismo: retira-se da problemática ou são diminuídas as condicionantes

sociais envolvidas em sua produção e manutenção.

Além disso, tal tendência parece corroborar outra: a chamada

medicalização da saúde e dos comportamentos individuais. Embora a noção de

medicalização suscite controvérsias e tenha uma série de implicações,

perspectivas e desdobramentos em estudos sociológicos e de saúde pública, o

objetivo aqui não é adentrar esse debate, apenas demarcar a medicalização

como aquilo que descreve um processo pelo qual problemas não médicos

passam a ser definidos e tratados como problemas médicos e, nessa condição,

frequentemente transformados em doenças ou transtornos (CONRAD, 2007).

Nesses processos, além do evidente reducionismo, o que se vê é aquilo

que nomeamos de patologização de condições e comportamentos de atores

sociais.

Se for assim, e sem negligenciar eventuais problemas individuais, a

perspectiva precisa ser outra: os contextos e os fenômenos sociais não são


15

lineares, nem respondem a um único fator causal, ao contrário, são

multicausais, são complexos e engendrados processualmente. Só podem ser

minimamente compreendidos na trama de elementos e dimensões que o

compõem: histórias de vida, contextos sociais (familiares, escolares, de

vizinhança, de trabalho, etc.) e condições materiais e subjetivas que contornam

a vida dos adolescentes em conflito com a lei.

Os preconceitos da sociedade com os pobres e miseráveis –

marginalizados das riquezas (sociais, econômicas e culturais) – são muitos,

começando pela desqualificação pelos de classes sociais diferentes, tal como

afirma Souza (2009). Considerados inferiores, os pobres têm sido objeto de

submissão e exploração pelos segmentos mais ricos da sociedade, que

destilam estratégias disciplinares e de controle segundo seus interesses,

considerando até a violência e o terror como condutas a serem utilizadas em

certos casos:

Como o medo da dor gera obediência, provocar tal medo

é considerada boa pedagogia. A marcação do corpo pela

dor é percebida como uma afirmação mais poderosa do

que aquela que meras palavras poderiam fazer, e deveria

ser usada especialmente quando a linguagem e os

argumentos racionais não são entendidos. Em geral, as

mulheres que entrevistei acham que crianças,

adolescentes e mulheres não são totalmente racionais, da

mesma maneira que os pobres e, obviamente, os

criminosos. Contra essas pessoas, a violência é


16

necessária; ela é uma linguagem inequívoca. (...) A dor é

entendida como caminho para o conhecimento

[especialmente moral] e a verdade. (...) Essa associação

de dor, conhecimento e verdade torna-se especialmente

clara em discussões sobre a tortura (CALDEIRA, 2000, p.

367).

Nos bairros periféricos, os adolescentes têm que lidar com a ausência

de oportunidades reais, com a falta de políticas públicas, que poderiam

favorecê-los direcionando-os ao estudo, aos esportes, ao lazer, à

profissionalização e à cultura (IKUMA, KODATO e SANCHES, 2013). A

imagem do jovem negro e pobre é emblemática nesse sentido, ele é visto, com

frequência, como “marginal” e “perigoso” nos meios de comunicação de massa,

o que fortalece o estigma e relaciona pobreza e etnia à criminalidade (TAKEITI

e VICENTIN, 2015).

Vicentin (2005) mostra que a intensificação da violência praticada por

jovens corresponde a um dos efeitos de uma sociedade que produz e reproduz

iniquidades e desigualdades várias. Por isso mesmo, de nada adianta tratar os

adolescentes infratores por meios meramente disciplinares e repressivos, isso

apenas reforçaria a desqualificação a partir da qual são tratados como corpos

destituídos de valor e à vidas que poderiam ser descartadas. Ainda segundo

Vicentin (op. cit.) e não por acaso, a revolta e a transgressão aparecem para

esses adolescentes como uma margem de liberdade, na qual se agrupam para

existir ou subsistir, para resistir à opressão e para ganharem visibilidade e voz.


17

Vários movimentos sociais das periferias urbanas, como o hip-hop, os

saraus, o movimento negro e dos trabalhadores sem teto, entre outros,

desenvolvem ações e coletivos que favorecem a reflexão sobre questões

sociais, políticas e culturais, criando uma cultura cidadã e criativa. Nesses

movimentos, os jovens são protagonistas e reiteram a tese de que a

vulnerabilidade social não é causa, nem sinônimo de distorção moral, muito

pelo contrário. Nesses movimentos, uma das ideias é desconstruir a imagem

negativa dos jovens, qualificando-os como agentes de mudanças – para melhor

– da sociedade (MAGRO, 2002), mesmo que uma parte deles possa ser

tragado pela criminalidade e pela miséria social a qual estão expostos.

As diferentes formas de organização dos jovens permitem que sejam

autores de transformações e que expressem suas realizações de maneiras

singulares. Seus modos de falar e de escrever – com gírias, enunciados e, às

vezes, sintaxe peculiares – não devem ser entendidos como “erros” em face

das convenções da língua, mesmo que restrições de domínio da “norma culta”

existam e não sejam negligenciáveis, em função de limitações de acesso e de

permanência no sistema educacional; sistema que, via de regra, mostra

dificuldades em acolher e lidar com essa parcela da população, em considerar

e se adequar às peculiaridades sociais e subjetivas que, com esses jovens,

estão em jogo. É preciso perceber que os supostos “erros” em enunciados

desses jovens (nas atividades escolares; nas conversas; na música; nos

grafites; nas tatuagens; etc.) são, muitas vezes, transgressão e resistência ao

status quo e às formas de opressão que, historicamente, recai sobre eles.

Tais produções podem ser consideradas como um campo simbólico

singular, que possibilita o reconhecimento e a identificação desses sujeitos, nas


18

relações entre eles e na sociedade. Por isso mesmo, entrar em contato com os

sentidos e formas de enunciação de determinados grupos é uma das chaves

para entender os fenômenos sociais que protagonizam (CRUZ, 1991).

A análise do conteúdo da enunciação dos adolescentes contrapõe a

complexidade de seus discursos às imagens ambíguas e reducionistas que a

sociedade lhes destina. No entanto, se parte da juventude periférica consegue

estetizar a discriminação e o preconceito, tornando-os como matéria prima da

organização, da luta e da emancipação social e política, uma parcela das

crianças e dos jovens em situação de vulnerabilidade social fica susceptível à

cooptação por vários tipos de violência e criminalidade: prostituição infantil,

tráfico de drogas, etc.

Significa dizer que a imagem que a sociedade devolve àqueles

adolescentes residentes da periferia e em situação de vulnerabilidade social

pode dificultar a (re)inserção social e favorecer o envolvimento com a

criminalidade (SAWAYA, 2001).

Pelo lado da presente pesquisa, a intenção é, ainda que modestamente,

contribuir para problematizar a ideia de que adolescentes em liberdade

assistida, por terem cometido atos infracionais, podem ser portadores de

dificuldades ou transtornos de linguagem oral e/ou escrita, e que eles, em

alguma medida, se encontram entre as causas que favorecem ou mesmo

determinam as infrações.

A partir da hipótese de que, na eventualidade de dificuldades ou

transtornos de linguagem, não há relação necessária entre eles e o

cometimento de atos infracionais pelos adolescentes que participaram do


19

estudo, estruturamos a pesquisa. Para testar nossa hipótese, entrevistamos

adolescentes em liberdade assistida e os educadores que trabalham com eles;

realizamos também um rastreamento das condições cognitivas e de linguagem

dos adolescentes para verificar se havia algum sinal de perturbação individual

em tais domínios e, se houvesse, para observar se determinados aspectos

cognitivos e funcionais no uso da língua interfeririam ou não nas condições de

compreensão e produção enunciativa/discursiva dos sujeitos da pesquisa. Mais

detalhes sobre as características do presente estudo serão oferecidos logo a

seguir, no capítulo destinado ao método da pesquisa.

No entanto, antes de passar ao método, vale mencionar que, sobretudo

no trabalho fonoaudiológico, não se deve confundir as dimensões da língua e

da linguagem, uma vez que, embora a primeira esteja contida na segunda, a

língua corresponde ao conjunto de signos e suas regras de combinação,

compondo um sistema convencional necessário aos indivíduos para

comunicação verbal em sociedade. Por sua vez, a linguagem é uma faculdade

propriamente humana, que recobre vários domínios de nossa existência

pessoal e social. Na clássica definição de Saussure (1999, p. 17):

Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com

a linguagem; é somente uma parte determinada,

essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um

produto social da faculdade de linguagem e um conjunto

de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social

para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos.

Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e


20

heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo

tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além

disso ao domínio individual e ao domínio social; não se

deixa classificar em nenhuma categoria de fatos

humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade.

No campo estritamente linguístico, o estudo da linguagem volta-se ao

terreno da língua, pois suas regularidades e convencionalidade, digamos

assim, oferecem os princípios de classificação a partir dos quais opera a

objetivação e a verificação empírica dos fenômenos linguísticos.

Por outro lado e ainda que, às vezes, em diálogo com concepções

advindas de perspectivas linguísticas, o estudo da linguagem como faculdade

ou capacidade humana de produção de sentido, de subjetividade e de modos

de existência (pessoal e social) encontra acolhida em certas escolas filosóficas,

psicanalíticas, psicológicas e antropológicas. Não seria o caso recensear essas

correntes aqui, por isso a opção foi tomar apenas uma dessas possibilidades

que, de resto, inspira ou dialoga com várias outras.

Trata-se de uma formulação de Bakhtin (1988), filósofo da linguagem,

para quem o signo terá tantas significações quantas forem as situações

concretas e historicamente determinadas em que for usado pelos indivíduos, o

que o diferencia de Saussure, para o qual o signo é uma relação entre um

significante (um som, uma imagem acústica, etc.) e um significado (um

conceito circunscrito pela língua).

Em outras palavras, em Bakhtin, os signos devem ser pensados a partir

dos enunciados, que são singulares, irrepetíveis e cuja composição produz os


21

discursos. É no plano enunciativo/discursivo que o estudo do funcionamento

humano na linguagem torna-se possível. O modelo teórico e convencional da

língua é, de fato, muito diferente de seus usos (na fala e na escrita) por sujeitos

concretos em contextos variáveis e processuais da vida, nos quais sentidos

são criados e/ou variam no tempo e em função das muitas situações em que

são colocados em jogo nas interações comunicativas.

Essas rápidas definições teóricas acerca da linguagem dão ensejo para

uma distinção que, em nossa pesquisa, é relevante. A rigor, o trabalho

fonoaudiológico incide nas duas esferas aqui mencionadas: da língua e da

linguagem. Em linhas bastante gerais, pode-se dizer que a habilitação e

reabilitação fonoaudiológica dos chamados distúrbios de linguagem (oral e/ou

escrita) implica ao menos uma das seguintes dimensões: fonética, fonológica,

sintática e práxica (relativa às praxias orais envolvidas na produção e no ritmo

da fala). Essas dimensões concernem ao plano das regularidades e padrões

delimitados pela língua e pela motricidade oral, a atuação fonoaudiológica aí é

a de utilizar métodos, procedimentos e técnicas para promover a

funcionalidade dessas dimensões na fala e/ou na escrita.

Por outro lado, o fonoaudiólogo também atua, digamos assim, nas

condições de comunicação dos sujeitos, a partir das quais as relações

interdiscursivas fluem ou não, são legitimadas ou barradas. Aqui, escuta e

interpretação de aspectos sociais e (inter)subjetivos, que incidem e/ou derivam

da produção enunciativa/discursiva, são fatores decisivos à clínica

fonoaudiológica da linguagem, uma vez que é por meio delas que se torna

possível construir estratégias de elaboração e circulação discursiva junto com

os sujeitos que recorrem aos cuidados fonoaudiológicos.


22

Naturalmente, o trabalho fonoaudiológico, muitas vezes, precisa

compatibilizar as duas esferas (língua e linguagem), pois os distúrbios de

linguagem podem afetar (com frequência o fazem) as condições de produção e

de circulação enunciativa/discursiva dos sujeitos em suas relações no socius.

O contrário, embora aconteça, é menos frequente.

Enfim, são essas as razões que fizeram com que, no método de

pesquisa, fossem conjugados um instrumento de rastreio cognitivo-linguístico e

um procedimento conversacional na coleta de dados com os adolescentes em

liberdade assistida, sob medida socioeducativa em meio aberto. Como foi dito

antes, de um lado, buscou-se descartar ou considerar a presença e a eventual

interferência de distúrbio de linguagem na percepção dos adolescentes

pesquisados sobre suas relações comunicativas, pela fala e/ou pela escrita. De

outro lado, também como já mencionado, a intenção de levantar as percepções

e a elaboração que esses adolescentes têm sobre suas condições e relações

comunicativas fez com que, por meio de entrevistas, fossem recolhidos

sentidos e representações sobre o uso que fazem da fala e da escrita com

parceiros da mesma idade, familiares, educadores e Instituições.

Dito isso, agora há condições para apresentar essa experiência,

começando pelo objetivo e o método da pesquisa. Vamos a eles.


23

OBJETIVO

Levantar aspectos da linguagem de adolescentes sob medidas

socioeducativas em meio aberto, buscando problematizar ideias patologizantes

e/ou de desqualificação social advindas de eventuais singularidades do

repertório e das formas de enunciação desses sujeitos.


24

MÉTODO

1. A instituição da pesquisa

Na trajetória da garantia constitucional dos direitos, o Centro de Defesa

da Criança e do Adolescente (CEDECA) apresenta-se como uma instituição

cujo objetivo é a garantia social dos direitos dos adolescentes envolvidos na

criminalidade. Os adolescentes, que antes eram vistos como desviantes, por

serem infratores, com o ECA são, ou deveriam ser, compreendidos como

sujeitos com direitos ameaçados ou violados, devendo ter, prioritariamente,

seus direitos restituídos (FELTRAN, 2008).

No município de São Paulo há nove CEDECAs, que participam, desde a

criação em 1994, da Associação Nacional de Cedecas (ANCED). A associação

tem ação nacional, representando um esforço de garantia dos direitos aos

autores – menores de idade – de atos infracionais, em negociações com outras

entidades, inclusive governos, sobretudo nos campos da saúde e da educação

(FELTRAN, 2008).

O presente estudo foi realizado no CEDECA-Madalena, localizado no

Parque Santa Madalena – zona Leste da cidade de São Paulo. Esse CEDECA

foi criado, oficialmente, em 1991, fruto de quase duas décadas de atuação das

Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Um dos frutos da ação das CEBs

naquela região da cidade foi o CEDECA-Madalena. Ao final dos anos noventa,


25

o CEDECA tornou-se, fundamentalmente, um espaço de referência do

adolescente em conflito com a lei para o acompanhamento das medidas

socioeducativas (FELTRAN, 2010).

Atualmente, o CEDECA-Madalena disponibiliza 105 vagas para o

acompanhamento dos adolescentes. Em média, durante a realização da

pesquisa de campo (2o semestre de 2015 e 1o semestre/2016), 75 das vagas

disponíveis estavam preenchidas: 72 meninos e 3 meninas.

Apenas a título de contextualização da instituição da pesquisa, abaixo

seguem alguns dados disponibilizados pela Secretaria Municipal de Assistência

e Desenvolvimento Social (SMADS), que ajudam a situar o CEDECA-Madalena

em relação:

 à ocupação de vagas para medidas socioeducativas na cidade de

São Paulo no ano de 2015;

 aos números do cumprimento integral das medidas socioeducativas

pelos adolescentes.

 aos dados de adolescentes do CEDECA-Madalena em 2015;

 aos dados sobre vínculo de trabalho formal pelos adolescentes da

CEDECA-Madalena em 2015.

No mapa a seguir, vê-se os mínimos e máximos da ocupação de vagas

por Subprefeitura da cidade em 2015.


26

Imagem 1 - Ocupação de vagas por Subprefeitura da cidade em 2015

Do ponto de vista dos índices de cumprimento integral das medidas

socioeducativas pelos adolescentes em 2015, o mapa abaixo mostra os

mínimos e máximos registrados pelas Subprefeituras da cidade de São Paulo.

O CEDECA-Madalena apresentou 66,01% de jovens que cumpriram


27

integralmente as medidas socioeducativas no ano de 2015, embora a

Subprefeitura Sapopemba/Vila Prudente tenha obtidos números médios de

mínimo e máximo de 15,84 a 34,58%.

Imagem 2 – Os mínimos e máximos de jovens que cumpriram as medidas


socioeducativas em 2015

Na tabela abaixo vê-se que, em média, 45,58% dos adolescentes do

CEDECA-Madalena estavam estudando no ano de 2015. Em relação à


28

escolaridade, destaca-se que a maioria estava no ensino fundamental

(58,66%).

Tabela 1 – Taxas de escolaridade dos adolescentes do CEDECA-Madalena

Total em
Variáveis /mês (dp) %*
31/12
Situação escolar

Estuda 45,58 (7,70) 36 48,00


Não estuda 30,75 (5,18) 37 49,33
Sem informação 2,33 (2,21) 2 2,67
Escolaridade
Nunca frequentou a escola 0,00 0 --
Ensino fundamental
44,25 (3,03) 44 58,66
incompleto
EF completo 0,92 (1,93) 0 --
Ensino médio 31,67 (5,63) 29 38,67
EM completo 1,08 (0,76) 2 2,67
Ensino superior 0,00 0 --
Sem informação 0,58 (1,04) 0 --
Modalidade escolar

Escolarização regular 42,50 (4,59) 38 --


EJA 28,42 (5,22) 28 --
Outros 7,75 (2,97) 9 --

Na próxima tabela, nota-se que somente 4,00% dos adolescentes

possuíam vínculo empregatício baseado na Consolidação das Leis do Trabalho

(CLT) em 2015. Enquanto 12 adolescentes trabalhavam sem vínculo

empregatício (16,00%).
29

Tabela 2 – Taxas de emprego dos adolescentes do CEDECA-Madalena

/mês (dp) Total em 31/12 %*

CLT 3,08 (1,52) 3 4,00

Sem vínculo 20,23 (5,84) 12 16,00

Não trabalha 54,92 (5,07) 60 80,00

Sem informação 0,54 (1,04) 0 --

2. Natureza da pesquisa

A pesquisa é qualitativa com design de estudo de caso.

3. Casuística

Os critérios de seleção dos adolescentes para a pesquisa foram os

seguintes: - estar em cumprimento de medida socioeducativa; - ser

acompanhado pelo CEDECA-Madalena; - concordar em participar do estudo; -

assinatura dos Termos de Consentimento e de Assentimento Livre e

Esclarecido pelos adolescente maiores de 18 e pelos responsáveis para os

menores de idade.

A casuística dos adolescentes para o estudo foi obtida por estratégia de

saturação, isto é, realizou-se entrevistas com os frequentadores do CEDECA-

Madalena até que não houvesse variação significativa nas respostas. Nas

atividades acompanhadas pela pesquisadora haviam 51 adolescentes entre 12


30

e 18 anos de idade. Na 14a entrevista verificou-se que a partir da 9a entrevista

não houve variação significativa nas respostas pelos adolescentes. Em função

disso, foram selecionados 09 (nove) adolescentes no total (as nove primeiras

entrevistas) como casuística do estudo. Adicionalmente, vale mencionar que,

após as 04 (quatro) primeiras entrevistas, o roteiro foi avaliado e ajustado para

complementar as entrevistas já realizadas, bem como para realizar as demais.

As idades dos adolescentes selecionados para casuística variaram entre

15 e 18 anos.

3.1 Entrevistas complementares com profissionais do CEDECA-

Madalena

No intuito de registrar percepções dos adolescentes por pessoas que

com eles convivem, de modo a complementar e matizar a observação da

pesquisadora, entrevistamos os profissionais da Unidade. O critério foi o colher

os depoimentos dos profissionais que tivessem relação direta e sistemática

com os adolescentes que participaram do estudo, por meio dos

acompanhamentos individuais e das oficinas, além de disponibilidade para

participar da pesquisa. A equipe profissional é composta por 11 pessoas,

sendo que 7 realizam o atendimento individual. No mesmo espaço, 2

profissionais, que não fazem parte da equipe, promovem oficinas para os

adolescentes e também para a comunidade. Desse conjunto, em função de

agenda, 05 profissionais se dispuseram ao estudo.


31

As entrevistas foram realizadas no próprio CEDECA-Madalena, a

pesquisadora foi à Unidade em dias de atendimento pelos profissionais e

realizou as entrevistas com os adolescentes e profissionais que compareceram

e/ou estavam disponíveis e aceitaram participar da pesquisa.

4. Coleta de dados

A coleta de dados foi realizada por meio de três estratégias

complementares:

I. Adolescentes:

a) entrevistas semiestruturadas: realizadas de acordo com roteiro

previamente definido, a saber:

 Memórias e situações marcantes em vivências familiares, escolares,

no CEDECA e nas ruas;

 Interlocutores mais frequentes e assuntos sobre os quais conversam;

 Eventuais dificuldades nas relações comunicativas com parceiros da

mesma idade ou mais velhos;

 Como se veem e como pensam ser vistos por familiares, educadores,

amigos e sociedade em geral;

 Expectativas escolares, profissionais e em relação ao futuro.

[ANEXO 5]

b) Mini-Exame do Estado Mental (MEEM): para aferir eventual presença

de sinais de transtornos de linguagem e/ou cognição. A aplicação do

MEEM foi utilizada com os adolescentes logo após as respectivas

entrevistas. É válido ressaltar que este é um instrumento de

rastreamento de sintomas e/ou sinais de eventuais alterações cognitivas

e de linguagem. Foi projetado para ser uma avaliação clínica prática de


32

mudança do estado cognitivo em pacientes adultos alfabetizados.

Examina orientação temporal e espacial; memória de curto prazo e

evocação; cálculo; praxias; habilidades viso-espaciais e de linguagem. O

exame foi usado como teste de rastreio para alterações cognitivas e de

linguagem oral.

[ANEXO 6]

II. Profissionais:

Foram realizadas entrevistas abertas com cinco profissionais que

acompanham diretamente os adolescentes. Nessas entrevistas, foram

enfatizadas as indagações sobre o que pensavam a respeito da comunicação e

dos discursos dos adolescentes da pesquisa, bem como se vivenciavam

alguma dificuldade nas relações comunicativas com esses sujeitos.

5. Aspectos Éticos da Pesquisa

Conforme solicitado pela coordenação do CEDECA-Sapopemba, o

projeto foi enviado ao Centro de Referência Especializado de Assistência

Social (CREAS) da região para análise e autorização da pesquisa. Após a

aprovação, o CREAS encaminhou-o para o comitê de avaliação de projetos

científicos da SMADS, de acordo com a Portaria Nº 39/SMADS/COPS/2013.

Assim, o comitê da SMADS deu a aprovação e só então emitiu o Parecer

Oficial de aprovação [ANEXO 1].

Com o parecer, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa

e foi aprovado com o número de registro 1.409.953 [ANEXO 2]


33

Destaque-se que todos os requisitos éticos da pesquisa com seres

humanos foram rigorosamente respeitados. Nesse sentido, os referidos

procedimentos de pesquisa foram realizados apenas com os adolescentes e

profissionais que aceitaram participar da pesquisa e tiveram os termos de

Consentimento Livre Esclarecido [ANEXO 4] e de Assentimento [ANEXO 3]

assinados.
34

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Em função da natureza da pesquisa, os resultados e sua discussão, à

luz das referências conceituais utilizadas, foram articuladas e apresentadas em

um único capítulo. Para a garantia do sigilo dos entrevistados, optou-se por

apresentar os adolescentes por nomes fictícios e eles foram escolhidos em

uma espécie de homenagem a personagens do livro “Capitães de Areia”, de

Jorge Amado (1937), no qual um grupo de adolescentes abandonados,

chamados de “capitães de areia”, viviam na cidade de Salvador (BA) na década

de 1930 e sobreviviam por meio de furtos e outros expedientes transgressivos.

O texto é uma denúncia ao destrato da sociedade daquela época para com a

juventude em situação de vulnerabilidade. A semelhança entre os “capitães de

areia” e os adolescentes desta pesquisa está na invisibilidade das questões

sociais e subjetivas desses sujeitos para a sociedade, a não ser como ameaça

de marginalidade a ser controlada ou debelada. A problemática tematizada por

Jorge Amado na década de 30 é persistente até hoje, por isso é possível dizer

que os adolescentes da pesquisa são uma espécie de “capitães de areia”

contemporâneos, seus nomes fictícios a partir de agora serão: Pedro Bala,

Volta Seca, Professor, Gato, Boa-Vida, Sem-Pernas, João Grande, Querido-de-

Deus e Pirulito.
35

1. A investigação com os Adolescentes

1.1. Rastreio Cognitivo e de Linguagem

Como mencionado, para um rastreio cognitivo e de linguagem dos

adolescentes que participaram da pesquisa, foi utilizado o Mini-Exame do

Estado Mental (MEEM). Dos 09 testes realizados, apenas um apresentou

resultado levemente aquém do mínimo de desempenho considerado

satisfatório pelo exame. Seguem abaixo a pontuação total de cada

adolescente, as pontuações de corte (satisfatório e não satisfatório) e,

posteriormente, o desempenho dos adolescentes em cada uma das provas.

(ANEXO 6)

Tabela 3 - Pontuação Total do MEEM

Adolescente Pontuação

Pedro Bala 29

Volta Seca 25

Professor 23

Gato 14

Boa-Vida 24

Sem-pernas 24

João Grande 24

Querido-de-Deus 27

Pirulito 24

Considera-se com alteração cognitiva:

Analfabetos ≤ 15 pontos
36

1 a 11 anos de escolaridade ≤ 22 pontos

Com escolaridade superior a 11 anos ≤ 27 pontos

Tabela 4 - Orientação

Avalia: a memória recente, a atenção e a orientação têmporo-espacial.

Pontuação máxima da prova: 10

Adolescente Pontuação

Pedro Bala 9

Volta Seca 9

Professor 7

Gato 7

Boa-Vida 8

Sem-pernas 7

João Grande 7

Querido-de-Deus 7

Pirulito 9

Tabela 5 - Memória

Avalia: a atenção e a memória imediata (de curto prazo ou primária), que tem

duração de, aproximadamente, 30 segundos e capacidade limitada a 10 itens.

Pontuação máxima: 3

Adolescente Pontuação

Pedro Bala 3

Volta Seca 3

Professor 3
37

Gato 1

Boa-Vida 3

Sem-pernas 3

João Grande 3

Querido-de-Deus 3

Pirulito 3

Tabela 6 - Atenção e Cálculo

Avalia: a capacidade de cálculo, a atenção e a memória imediata e operacional

(pré- requisito necessário para realização de cálculos matemáticos).

Pontuação máxima: 5

Adolescente Pontuação

Pedro Bala 5

Volta Seca 5

Professor 2

Gato 0

Boa-Vida 5

Sem-pernas 4

João Grande 5

Querido-de-Deus 5

Pirulito 0

Tabela 7 - Evocação

Avalia: a memória recente (secundária), que dura de minutos a semanas ou

meses.

Pontuação máxima: 3
38

Adolescente Pontuação

Pedro Bala 3

Volta Seca 1

Professor 3

Gato 0

Boa-Vida 0

Sem-pernas 3

João Grande 2

Querido-de-Deus 3

Pirulito 3

Tabela 8 - Linguagem, Nomeação, Repetição e Comando verbal

Avalia: fala espontânea; compreensão oral; repetição e nomeação; leitura e

escrita; capacidades de nomeação, compreensão e entendimento do paciente

(afasia nominativa ou, em verdade, agnosia visual); a discriminação auditiva; a

memória imediata; e a atenção, principalmente a compreensão oral do

paciente, devendo-se sempre excluir hipoacusia. Também são testadas a

memória imediata; a praxia, coordenação e motricidade oral; a capacidade de

leitura do paciente; a compreensão; e a memória.

Pontuação máxima: 8

Adolescente Pontuação

Pedro Bala 8

Volta Seca 7

Professor 7

Gato 5

Boa-Vida 7
39

Sem-pernas 6

João Grande 7

Querido-de-Deus 8

Pirulito 8

Tabela 9 - Habilidade Construtiva

Avalia: a orientação viso-espacial, a programação motora e a praxia

construtiva.

Pontuação máxima: 1

Adolescente Pontuação

Pedro Bala 1

Volta Seca 0

Professor 1

Gato 1

Boa-Vida 1

Sem-pernas 1

João Grande 0

Querido-de-Deus 1

Pirulito 1

As tabelas acima mostram que não há indícios de alterações cognitivas

ou de linguagem. Apesar de um adolescente (Gato) atingir uma pontuação

levemente abaixo do esperado para seu grau de escolaridade, as conversas e

a entrevista realizadas com ele não sugerem qualquer tipo de transtorno, mas

um processo escolar conturbado, com consequente baixo desempenho

educacional. A rigor, não houve nenhum aspecto que chamasse atenção para
40

eventuais transtornos de linguagem oral em qualquer dos participantes da

pesquisa, tanto na compreensão quanto na emissão dos enunciados. Posto

isso, não foi necessário realizar avaliação fonoaudiológica e eventuais

encaminhamentos clínicos aos pesquisados.

1.2 O que dizem os adolescentes

A existência, porque humana, não pode


ser muda, silenciosa, nem tampouco
pode nutrir-se de falsas palavras, mas
de palavras verdadeiras, com que os
homens transformam o mundo.

(FREIRE, 1994, p. 44)

Introduzimos a dissertação com o depoimento de um adolescente em

vulnerabilidade a respeito da necessidade de interlocutores com quem pudesse

ter conversas saudáveis e capazes de acolher suas demandas pessoais e

sociais. Algo marcante naquele relato é que o garoto em questão atribuiu seu

envolvimento com a criminalidade à ausência do outro, de outros que

pudessem reconhecê-lo como interlocutor legítimo ocupando, inclusive, o lugar

de quem pudesse cuidar e orientar, sobretudo na infância. Nos depoimentos da

pesquisa, os adolescentes comentam a dificuldade em encontrar espaços de

diálogo estruturante, capazes de construir referências efetivas (não abstratas

ou meramente moralistas); diálogos dispostos ou capazes de escutar os

problemas concretos desses jovens, de algum modo ajudando em sua


41

elaboração e enfrentamento. Boa-Vida dá o tom: "para ser sincero, só converso

com Deus, mano. Em todos os momentos.”

Tomando o conceito de alteridade, de relação ao outro, como condição

de possibilidade de ser sujeito e cidadão, tal como referido na revisão da

literatura, é possível indagar: “quais outros” destacam-se na fala dos

adolescentes? Quais sentidos ocupam em seus discursos?

Os outros institucionais mais presentes são a família, a Fundação CASA,

a Escola e a Área da Saúde.

A família, como a primeira Instituição na qual o sujeito se vincula, é

extremamente importante na constituição da subjetividade. Falando

especificamente das famílias de adolescentes em liberdade assistida, estudos

apontam para indícios de dinâmicas familiares que, potencialmente, podem

favorecer o envolvimento com o mundo do crime, por exemplo: genitores têm

pouca ou nenhuma participação na vida do filho e/ou são muito instáveis nos

cuidados aos seus filhos, principalmente na infância; genitores e/ou parentes

próximos que cometem ações infracionais recorrentes; menor noção de direitos

e deveres no ambiente familiar; falta de planejamento para o futuro; punições

severas e abusos físicos por parte dos genitores (ASSIS e SOUZA, 1999;

MURRAY et al, 2013; PACHECO E HUTZ, 2009).

Nos discursos dos adolescentes, é evidente o quanto o vínculo familiar é

importante:

Família pra mim é tudo. Se tiver com algum problema,

pode conversar que o pessoal vai te ajudar. A minha


42

família fez muita falta quando estive na Fundação CASA.

Depois que eu fui preso tiveram uns vizinhos que viraram

a cara para mim. Meu pai me defendeu. Que nem minha

tia, ela ia em casa. Depois disso, ela não vai mais.

Quando me vê na rua não me dá um tchau. É minha tia!

Fico constrangido. Meu tio e ela brigam por causa de

mim. Ele fala: “porque você não gosta dele?” Ela fala:

“acho que ele é muito bravo, muito agressivo.” (...) Estou

tentado sair da malandragem. (...) Penso em progredir,

arrumar um emprego, continuar na escola. (Professor)

A despeito dos problemas sociais e familiares relatados, a família

aparece como estruturante para o Professor, como esteio, zona de garantia, de

refúgio. Ao menos em parte, parece ser uma das motivações para planejar o

futuro, para continuar estudando.

O mesmo parece não acontecer com Boa-Vida, que fala da mãe como

drogada, apanha do padrasto e tenta lidar com a ausência do pai. Em seu

discurso, a família não parece estar relacionada a um campo de apoio, ao

contrário, a família aparece como campo de pertencimento mas, ao mesmo

tempo, como sede de conflitos, ressentimentos e raiva. Além do período na

Fundação CASA, Boa-Vida morou em diversos abrigos e na rua. Atualmente,

apesar de residir com sua mãe e seu padrasto, tem dificuldades em

estabelecer diálogo e em conviver com eles:

Quando eu estava na barriga da minha mãe ela usava

todo tipo de droga: cocaína, crack, lança, farinha, tudo!


43

Certo dia, minha mãe estava na “brisa” (sic) dos

comprimidos; o olho dela estava tão pequeno que eu nem

vi a pupila. Só sei que eu joguei a faca nela e não pegou.

(...) Nós estamos brigados até hoje, mas nós nos falamos

de vez em quando. Quando a gente quer brigar, um já vai

para cima do outro. Só na violência. É um ensinando a

violência ao outro. E já tivemos muitas brigas. Já tentei

matar minha mãe e meu padrasto. Mas não consegui. (...)

Tentei matá-lo porque não gosto dele. Ele xinga minha

mãe e bate nela. (...) Não quero saber de nada. Eu não

faço investimento no futuro. Em vez de investir nisso, eu

invisto nas drogas. E parar de usar é muito difícil. Se

tento sair, se eu não quero usar, chega alguém e me dá.

A família comparece como um outro sempre vital, nuclear, seja como

dimensão estruturante, seja como o contrário... Isso pouco tem a ver com a

situação econômica: Professor não pertence a uma família nuclear com boas

condições financeiras, mas tem um lugar em que é aceito e protegido a ponto

de se permitir idealizar um futuro. Já Boa-Vida não desfruta das mesmas

condições, demonstra uma enorme dificuldade em vislumbrar outro tipo de

relação com sua mãe, por isso parece naturalizá-la e, de certa forma,

transportá-la para as outras relações, o que também parece influenciar em sua

posição pessimista e fatalista em relação à vida e ao futuro.

Apesar da centralidade da família na constituição da subjetividade, ela

não representa o único outro-institucional dos adolescentes. Não é porque

Boa-Vida pertence a uma família com pouco a lhe oferecer (não somente em
44

recursos financeiros) que está condenado a viver uma vida empobrecida de

afeto e dignidade, mas é razoável supor que as barreiras subjetivas a serem

superadas ganham complexidade e dificuldades não negligenciáveis em casos

desse tipo.

Na Fundação CASA, quanto às medidas socioeducativas em meio

fechado, o relato dos adolescentes dá a ver a imagem de uma Instituição que

os recusa como sujeitos de direito, desqualificando-os e silenciando-os pelo

medo e/ou pela falta de escuta às suas questões e histórias. A desqualificação

vai além da relação com os profissionais, ainda que, muitas vezes, eles

possam ter atitudes opressoras. Gato conta que as profissionais queriam

ajudá-lo, elogiando-o para o juiz. Ao fazê-lo, na intenção de ajudá-lo, essas

funcionárias reproduzem a desqualificação, reafirmam o modelo que invalida

Gato como sujeito e cidadão. Sem intenção, mantêm Gato como incapaz de

falar por si e de ser escutado pelo juiz de menores; o menino se sente

rebaixado, como se fosse dependente da boa ação de alguém que esteja em

posição superior a dele. Contudo, não se pode reduzir esta relação desigual

apenas à díade interno-funcionário, pois os sinais da opressão estão também,

por exemplo, na arquitetura das unidades de internação, semelhante a das

prisões, que mantém os adolescentes trancafiados e sob disciplina carcerária.

É Gato mesmo quem diz: “Se passar pelo professor e não falar ‘licença

senhor’, ‘licença senhora’, era arriscado você tomar uns tapas. Eu só podia

andar com a mão para trás, o tempo inteiro.”

Trata-se de uma Instituição na qual, em sua origem, vigorava a doutrina

de segurança nacional: militarização da disciplina nos internatos e isolamento

dos menores vulneráveis em relação à sociedade (ROSEMBERG, 2002).


45

Apesar de grandes e significativas mudanças, principalmente na transição da

FEBEM para Fundação CASA, aquele regime disciplinar e isolacionista parece

persistir, ainda que atenuado. Segundo nossos “capitães da areia”, existem

complicações em seu funcionamento a serem enfrentadas. Foi o que também

relataram, por exemplo, os garotos da unidade de Internação Jatobá –UI28:

fizeram uma denúncia da situação em que vivem, e a fizeram em um pedido de

socorro à sociedade, em Janeiro de 2012. Segue trechos do documento:

(...) já não aguentamos mais tanta tortura e descaso.

Queremos atenção para que as providências cabíveis

sejam tomadas, e que as coisas por aqui melhorem (...) O

que mais nos impressiona é a audácia dos torturadores

que batem no peito e dizem não temer autoridade alguma:

“porque nós só batemos porque temos consentimento dos

superiores” (...) Nos ajudem. Estamos precisando da

ajuda de vocês com extrema urgência. Esperamos que

vejam esta carta e leiam ela com atenção.

As imagens que a Instituição tem, frequentemente, devolvido aos

adolescentes é a de criminosos, inadequados e indignos do convívio social.

Não é à toa que os adolescentes de nossa pesquisa foram unânimes em dizer

que a angústia é a marca do silêncio ao qual foram submetidos na Fundação

CASA. Mais ainda, disseram coisas tais como: “os piores momentos da minha

vida”, “a pior fase”.

Seguindo com a análise do que foi aqui chamado de outros

Institucionais, o foco agora desloca-se para a escola.


46

De acordo com a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), a escola

é um espaço para a pluralidade. Tem o dever de acolher a todos, independente

de suas condições físicas, emocionais, linguísticas e sociais. Logo, ela seria

fundamental no processo das medidas socioeducativas, a fim de aceitar estes

adolescentes e ajudar-lhes a ocupar um lugar social longe dos estereótipos de

marginais, delinquentes e criminosos.

Contudo, é sabido que a educação no Brasil passou e passa por

dificuldades de várias ordens, inclusive para lidar com as diferenças e a

diversidade social. Gallo e Williams (2008) afirmam que o maior problema que

a escola apresenta ao receber adolescentes em conflito com a lei é lidar com

seus comportamentos disrruptivos, o que a leva a adotar medidas disciplinares

coercitivas. Além disso, os professores não recebem incentivo e capacitação

para lidarem com as diferenças. Sawaya (2002) diz que a percepção dos

professores sobre si mesmos e sobre seus alunos influencia os modos de

interação e, por consequência, os resultados do processo escolar. Professores

que conseguem enxergar as capacidades e qualidades dos seus alunos

contribuem positivamente, aqueles que carregam preconceitos ou só enxergam

o negativo, não logram promover um bom aproveitamento escolar por parte dos

estudantes.

Nos depoimentos, Professor e Gato apresentaram experiências positivas

em relação à escola, enfatizam a acolhida de professores e da direção, e

destacam o diálogo como um meio utilizado pela escola para acolhê-los. Essa

conduta fez com que suas opiniões a respeito da escola fossem positivas e

marcassem forte discrepância em relação à Fundação CASA, como segue:


47

Na escola é melhor do que na Fundação CASA. É outra

coisa: os professores e os inspetores conversam.

(Professor)

A escola é legal, né? (...) É por causa do modo que os

professores têm para falar com a gente, explicar a lição.

Os professores são bem atenciosos. Eu sento perto do

professor. (Gato)

Contudo, quando esta interação acontece de forma negativa, a escola se

assemelha à Fundação CASA, não por fazer uso de violência física, mas por

corroborar a exclusão e a desqualificação desses jovens. Com frequência, os

adolescentes acabam desistindo ou sendo expulsos da escola, como diz

Pedro-Bala, que não deseja frequentar a escola regular, mas gostaria de fazer

um curso supletivo e até uma faculdade:

Eu entrei na escola por obrigação. Se não fosse obrigado, eu nem iria

para a escola. Daqui uns dois ou três anos eu paro de ir. Estou no nono ano, aí

depois eu faço supletivo, faço um curso, quem sabe uma faculdade.

Para finalizar a análise sobre o que aqui foi chamado de outros-

institucionais, destaque-se o campo da Saúde, com ênfase em uma

experiência com a Fonoaudiologia.

Alguns dos nossos “capitães de areia” parecem recusar o lugar de

“doente”, o pedido do Gato convoca a Fonoaudiologia não para tratá-lo de

algum distúrbio, mas para atender outro tipo de demanda: “só quero que você

ajude a gente a se comunicar mais com as pessoas.” Ele quer apoio para
48

comunicar-se melhor, Gato não possui alterações de linguagem oral, como foi

visto no item I deste capítulo. Para entender o caráter da demanda de Gato à

Fonoaudiologia é útil retomar as dimensões de língua e linguagem trabalhadas

na revisão da literatura. O que se adotou aqui é o estudo da linguagem como

produção discursivamente orientada, capacidade humana de produção de

sentido nos processos de subjetivação e de invenção de modos de existência e

de convivência na alteridade. Sendo assim, a escuta clínica não deve mesmo

ficar restrita ao plano das regularidades da língua, precisa contemplar as

condições de comunicação dos sujeitos. A demanda do Gato não tem a ver

com seguir ou não padrões convencionais da língua, encontra-se no plano

enunciativo/discursivo, no qual o sujeito, enquanto tal, expressa-se: seu pedido

à fonoaudióloga anuncia barreiras existentes em suas relações

interdiscursivas, é disso que ele está falando, é para enfrentar essa

problemática que ele pede suporte fonoaudiológico.

No plano enunciativo/discursivo, como já foi dito e reitera-se aqui, os

signos precisam ser pensados a partir dos enunciados, que são singulares,

irrepetíveis e cuja composição produz discursos (BAKHTIN, 1988). Se for

assim, para analisar o discurso de um determinado grupo é necessário

compreender as condições em que os enunciados foram produzidos e quem

são os enunciadores, ou seja, as singularidades dos sujeitos, suas histórias e

experiências, absolutamente únicas. Dimensões nem sempre consideradas

pela Fonoaudiologia que, muitas vezes, atua por meio de abordagens

tecnicistas e centradas nas alterações de linguagem pensadas nelas mesmas,

como se fossem fenômenos isolados, fechados na dinâmica orgânica e/ou

cognitiva de cada indivíduo. Quando é assim, não há alteridade possível, as


49

histórias e as condições de vida, assim como o campo do “comum” que

sustenta a comunicação, na condição de ação em comum, compartilhada,

perde o sentido e a possibilidade terapêutica de elaboração.

Quando Boa-Vida e Professor falam dos diferentes modos de produção

de seus discursos, que variam de acordo com os usos e as relações nas quais

se efetuam, demonstram transitar no plano da linguagem com facilidade e

desenvoltura, ainda assim há necessidade de escuta à trama que acaba por

gerar dificuldades escolares e de comunicação pessoal mesmo quando os

falantes são fluentes e inteligentes. Parece que o estigma de classe ajuda a

explicar o fenômeno, talvez mais do que explicações técnicas do campo da

saúde. Talvez seja isso que peça escuta e elaboração também por parte dos

profissionais da saúde.

Nem todo lugar eu falo do jeito que falo, em casa eu falo

normal. Com a namorada eu falo diferente, mais educado.

(...) Quando vou numa entrevista de emprego sou bem

diferente, já vou treinando no ônibus, antes ficava todo

nervoso. Acho ruim falar gíria. (Boa-Vida)

Eu falo gíria dependendo do lugar e da pessoa.

(Professor)

No contexto em que vivem, a inteligência nos usos que fazem da

linguagem não significa apenas ampliar as possibilidades de interlocução,

significa sobreviver, permanecer sobrevivente na sociedade. Fortalecê-los,

discursiva e psiquicamente, parece uma boa indicação para orientar os


50

cuidados que eles demandam ao campo da saúde. Gato também revela

domínio dos usos e do jogo social que a linguagem implica:

Só falo gíria com traficante. Com o resto dos trabalhadores eu não falo

não. Com traficante eu falo, porque ele já sabe que quando você fala gíria,

você é malandro.

Enquanto os adolescentes revelam destreza nas relações

interdiscursivas, no plano da língua suas transgressões e “erros” não são

apenas produto das limitações de acesso e de permanência no sistema

educacional, parecem ser também resistência ao status quo e às formas de

opressão que recaem sobre eles. Senão vejamos.

Iniciamos esse capítulo falando de outros-Institucionais que,

frequentemente, desqualificam os adolescentes como sujeitos e corroboram

sua manutenção à margem da sociedade. Este outro pode se revelar na

família, na Fundação CASA, na Escola e até mesmo na Saúde, por meio de

discursos conflitivos e/ou preconceituosos, reducionistas, patologizantes...

Entretanto, pensar que tais questões se iniciam com o ato infracional ou o

cumprimento da medida socioeducativa é também reduzir a situação à relação

do adolescente com o crime quando, em verdade, o problema é anterior, o

“buraco é mais embaixo”. A maior parte da população que cumpre medidas

socioeducativas é do sexo masculino, negros e residentes de bairros

periféricos.

Jesse Souza (2009, p. 21 e 25), ao falar da “ralé brasileira”, aponta que

o segmento social do qual nossos sujeitos participam é rebaixado e seus

indivíduos são vistos ora como carentes, ora como perigosos:


51

Essa “classe social” [ralé], nunca percebida até então

enquanto “classe”, ou seja, nunca percebida como

possuindo uma gênese social e um destino comum,

sempre foi (in)visível, entre nós, e percebida apenas como

“conjuntos de indivíduos”, carentes ou perigosos. [São]

tratados fragmentariamente por temas de discussão

superficiais, dado que nunca chegam sequer a nomear o

problema real, tais como “violência”, “segurança pública”,

“problema da escola pública”, “carência da saúde pública”,

“combate à fome”, etc.

Ora, é exatamente essa a situação dos adolescentes de nossa pesquisa.

Essa condição é percebida, Boa-Vida e Professor dão exemplos. São os

estigmas que carregam em si que impedem de serem (re)conhecidos por suas

próprias singularidades:

Na rua, as pessoas me olham com medo. Ninguém quer

conversar comigo porque tem medo. Até meus amigos me

falaram isso. Todo mundo tem medo. Quando estou

passando perto de uma pessoa, uma mulher com a bolsa

assim, aí a mulher puxa já a bolsa. Só pra ver se você dá

o bote. Isso me dá vergonha. (Boa-Vida)

Hoje eu estava vindo e tinha um ônibus parado no farol,

com as janelas todas abertas, e as pessoas estavam

guardando o celular na bolsa, assustadas. Fiquei em


52

choque. Nada a ver. Sei lá, deve ser a minha cara. É

preconceito. (Professor)

Quem está ali na esquina não é o Pedro, o Roberto ou a Maria, com

suas respectivas idades e histórias de vida, seus defeitos e qualidades, suas

emoções e medos, suas ambições e desejos. Quem está ali é o “moleque

perigoso” ou a “guria perdida”, cujos comportamentos seriam, por isso,

previsíveis. Lançar sobre uma pessoa um estigma corresponde a acusá-la,

simplesmente, pelo fato de ela existir (SOARES, 2004).

Quem está ali não é o Boa-Vida e nem o Professor, mas a ameaça à

segurança, ao bem-estar dos considerados “cidadãos de bem”. Em sociedades

nas quais a ideologia dominante é a competição e a desigualdade social, certos

valores – como o talento e o mérito individual, separados das condições e

oportunidades concretas – são inculcados a partir do nascimento, de várias

maneiras e intensivamente, mesmo nas camadas mais pobres da população.

Embora seja fato que os indivíduos socialmente privilegiados são

“produto de capacidades e habilidades transmitidas de pais para filhos por

mecanismos de identificação afetiva, por meio de exemplos cotidianos,

assegurando a reprodução de privilégios de classe indefinidamente no tempo”

(SOUZA, 2005, p. 23), esses valores, porque dominantes na sociedade,

acabam atravessando-a de uma ponta à outra, são reproduzidos também pelos

segmentos e classes populares.

Sob as mesmas premissas da desigualdade, Caldeira (2000) lembra a

influência do crime na organização da sociedade, afirmando que o medo,

principalmente produto do imaginário, fomentado pela mídia comercial,


53

intensifica o preconceito para com as classes sociais com menor poder

aquisitivo e indivíduos que estão em situação de vulnerabilidade. A autora

afirma que o discurso a respeito da criminalidade está presente no cotidiano

das pessoas e é tão disseminado que cria, no inconsciente coletivo,

estereótipos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, os criminosos seriam, na

maioria, os nordestinos, os pobres e os negros que vivem nas periferias. Como

se viu, as vítimas desses preconceitos acabam, às vezes, aceitando esse

discurso, favorecendo a auto-discriminação por parte de grupos ou segmentos

sociais. Talvez seja por isso que, ao ouvir a fala de nossos “capitães de areia”,

é possível perceber posições preconceituosas, que advém, inclusive, da classe

social a qual pertencem.

Se é assim e por fim, o silenciamento desses adolescentes não se dá,

apenas ou principalmente, por serem autores de atos infracionais, e sim por

sua extração de classe. Os atos infracionais funcionam como uma espécie de

argumento confirmatório de valores e expectativas das classes sociais

privilegiadas, para as quais os atos infracionais e/ou criminosos de certos

segmentos e classes sociais seriam, supostamente, “provas” de sua índole e

caráter, e não produção iníqua e socialmente determinada.

Se os profissionais e as políticas de saúde, aí naturalmente incluída a

Fonoaudiologia, não compreenderem tal estrutura e não se dispuserem a agir

sobre ela em seus contextos, respectivamente, de atuação profissional e de

formulação das políticas de saúde, pouco se poderá fazer nos cuidados a

esses segmentos populacionais. É necessário e urgente assumir que nem tudo

é doença, nem característica estritamente individual e, mais que isso, é preciso

compreender o fato de que, mesmo na presença efetiva de doenças ou


54

transtornos, a carga social que os constitui e/ou mantém é, em geral,

muitíssimo forte. Não é possível desengajar uma dimensão da outra, sob o

risco de produzir ações de saúde pouco eficazes e quase nada resolutivas.

2. O que dizem os Profissionais

Ao longo da discussão do item anterior: “O que dizem os Adolescentes”,

trabalhou-se, entre outras, a ideia de que a autoimagem do adolescente em

medida socioeducativa, sobretudo nas questões de linguagem, é influenciada

pela percepção do Outro, seja na família, na Fundação CASA, na escola ou na

sociedade. Contudo, ficou de lado a Instituição na qual eles cumprem as

medidas socioeducativas em meio aberto. Esta opção foi feita a fim de explorar

este tema sob a perspectiva dos profissionais que estão em contato direto com

os adolescentes no CEDECA-Madalena. Importante mencionar que os

profissionais em questão – para manutenção de seus sigilos – serão

identificados por números, que representam a ordem em que deram às

entrevistas para pesquisa.

Um dos desafios que esses profissionais dizem enfrentar é mostrar aos

adolescentes que eles têm princípios e, por consequência, métodos distintos

da Fundação CASA e das Autoridades em geral:

Na oficina havia algumas barreiras; primeiro, a minha

pessoa, era preciso quebrar a ideia de que sou como a

polícia, ou como o pessoal da Fundação CASA. Segundo,

é a respeito da instituição. Tenho que falar o que é e qual

é a linha de trabalho. Que a instituição não está aqui para


55

prejudicar esses garotos. Depois, com os técnicos: os

adolescentes precisam ser convencidos de que a equipe

do CEDECA está do lado deles. (Funcionário 2)

O depoimento acima deixa claro a necessidade sentida pelo profissional

em diferenciar-se de outros agentes públicos implicados nas experiência

institucional dos adolescentes em conflito com a lei. Parece necessário livrar o

campo institucional da imagem negativa: punitiva, vingativa, violenta..., que

domina amplamente o imaginário social e a experiência institucional desses

adolescentes.

De acordo com Vicentin (2005), as ações punitivas e de vingança social

por agentes do Estado reproduzem desigualdades e iniquidades, intensificando

a violência praticada pelos jovens. O medo do Funcionário 2, de se assemelhar

à profissionais de Instituições vistas como repressoras, talvez tenha a ver

também com um outro medo: não poder fazer qualquer diferença em face da

violência sofrida e reproduzida pelos adolescentes, o que contribuiria para que

os adolescentes sob seus cuidados permaneçam vulneráveis.

Como uma estratégia para mudar a percepção dos adolescentes, o

Funcionário 1 contou que, no início dos acompanhamentos individuais, quando

o adolescente é acolhido, ele opta por conversar fora das paredes da

Instituição. Também com medo de que associem aquele espaço à Fundação

CASA:

A gente pensa em sair com os meninos, quando se está

construindo o vínculo. Porque eles vêm muito com uma

visão da Fundação CASA. Mas, como você vai dar


56

algumas informações, quando o adolescente está

chegando na instituição, se ele tem essa imagem?

A tentativa de se sobrepor ao espaço físico pode ser até mais

significativo para o funcionário do que para o próprio adolescente, mas é uma

tentativa de mostrar ao adolescente que podem estar juntos e do mesmo lado.

Aliás, não é incomum que façam parte de uma mesma realidade, como disse a

Funcionária 4: “Uso a linguagem da comunidade por ser moradora da

comunidade. Para mim é mais fácil, pelas gírias e coisas que trazem”. Na

mesma linha, o Funcionário 2 relata: “o que converso com ele é mais natural,

de trazer um pouco de mim, do que penso. Onde eu moro é semelhante aqui.

Então, eles sabem que também não sou besta, que entendo das coisas da

comunidade.”

Entretanto, tanto o funcionário quanto o adolescente estão sob um

regimento e uma estrutura que lidam com o cumprimento das medidas de um

modo aquém do que deveria: reduzindo-as à execução de uma pena.

A Instituição, ainda que tente estabelecer novos arranjos relacionais e

institucionais, na tentativa de fazer com que o cumprimento da medida seja, de

fato, socioeducativo, tem que prestar contas ao poder Judiciário, nos termos

desse último e sob seu monitoramento. Consequentemente, trabalhar com as

medidas é estar constantemente em conflito entre agir como educador e

responder a um regime cuja lógica ainda é fortemente punitiva.

O Funcionário 3 revela o quanto é difícil não ser uma extensão do poder

Judiciário: “Comigo eles não falam palavrão porque acho que eles sabem para

quem eles falam.” O “para quem eles falam” não remete apenas ao funcionário,
57

mas ao que ele representa, considerando que tem como dever informar ao Juiz

responsável pelo adolescente seu desempenho no cumprimento da medida.

Nesse sentido, o Funcionário 3 arremata: “porquê sabem das coisas, eles

falam muito daquilo que a gente quer ouvir”.

O mesmo tipo de dificuldade foi apresentada pelo Funcionário 5, que

parecia estar no meio de um conflito entre o poder Judiciário e os

adolescentes, tendo que optar por um dos lados:

O problema era do adolescente te ver como um suposto

amigo. Onde ele poderia falar tudo que fazia, que eu não

faria nada. Como por exemplo, quando fui fazer uma visita

e o adolescente me contou que só estava fazendo

‘saidinha de banco’, me mostrou a roupa e disse que

fingia para a mãe que ia buscar emprego. Isso me deixou

em crise, porque eu não sabia como lidar com isso. Não

posso aceitar, mas também não quero denunciar.

Além das contradições, os profissionais também encontram obstáculos

na rede de proteção social para encaminhar os adolescentes à outros serviços

e orientá-los a buscar opções. Segundo Feltran (2010, p.217):

A oportunidade de emprego exige ficha de antecedentes criminais, o

posto de saúde não oferece tratamento para dependência química, o curso de

informática é caro, a escola já expulsou aquele menino uma vez, os aprendizes

em seleção pela Embratel devem ter o ensino fundamental completo. Na hora

da entrevista, o menino só falou gíria.


58

Para dizer o mínimo, o contexto é muito complexo, cheio de

contradições e situações de difícil manejo. Ademais, a Instituição lida com a

falta de recursos, formação e reconhecimento. Segue o discurso do

Funcionário 5 a respeito de como ele lida e lidou com a falta de suporte:

o que é difícil é se aproximar do adolescente, criar um

vínculo, e depois saber o que fazer com essa informação

que você escuta. Isso mudou minha forma de lidar com

alguns adolescentes, como me privar de certas

informações. Outro problema em ter vínculo e ser

referência é personalizar um serviço público em pessoas.

Isso me fez sair do contato direto com os adolescentes,

porque cheguei também no meu limite pessoal.

A eficácia do cumprimento das medidas socioeducativas, sob tais

circunstâncias, é bastante questionável. No entanto, embora com

precariedades, os CEDECAs configuram uma espécie de espaço contra-

hegemônico em relação aos cuidados com crianças e adolescentes em conflito

com a lei, eles se oferecem como uma estratégia, de fato, educacional e

inclusiva, que busca respeitar e afirmar esses indivíduos como sujeitos de

direitos, cujas vidas e o futuro precisa ser legitimado e amparado pela

sociedade, o que só se fará com políticas públicas consistentes, capazes de

cumprir e de fazer cumprir o ECA.

Enfim, os funcionários do CEDECA não apontam problemas de

linguagem ou comunicação dos adolescentes, embora alguns digam ser difícil

se comunicar com eles, mas não por conta da fala, a dificuldade é acessar e
59

lidar com os sentidos – às vezes falta de sentido – que histórias de vida, tão

duramente marcadas, podem construir e expressar: afirmação da vida, luta

pela sobrevivência, mas muitas vezes como guerra, como recolhimento e

desconfiança.

São mundos que parecem não ter pontos de sustentação consistentes,

não ter relações que assegurem um mínimo de consistência subjetiva e de

crença no futuro. A fala, a lógica dos discursos dos adolescentes, embora

muito diretas, expressa esgarçamentos, vazios, zonas de isolamento dadas

pela impossibilidade de confiar no outro e de acreditar na superação de suas

condições precárias. Tudo indica que é difícil mesmo compreender e se

comunicar com esses mundos... Daí, talvez, o estranhamento que os

funcionários sentem em certas ocasiões.

Às vezes, tal estranhamento pode ser confundido com dificuldade de se

comunicar com os adolescentes, às vezes pode ser confundido com dificuldade

em entender o que falam, mas não é a fala que não se compreende, é o que

ela carrega de vidas que se equilibram no fio da navalha, numa espécie de

vertigem permanente, que é difícil de escutar e compreender. Foi essa

percepção que a pesquisa, de algum modo, trouxe à tona.


60

CONCLUSÃO

As observações e conversas com os adolescentes sob medidas

socioeducativas e com profissionais do CEDECA-Madalena sugerem, por uma

lado, um cenário complexo e desolador em termos de apoio adequado e

suficiente da sociedade e do Estado para a inclusão cidadã desses jovens à

sociedade: toda uma estrutura de valores, normas e cultura impõem barreiras

ao cuidados previstos no ECA. Um longo caminho, um verdadeiro processo

civilizatório da sociedade brasileira ainda será necessário para um melhor

equacionamento da problemática que os depoimentos aqui analisados dão a

ver e a pensar. Não há mesmo receita pronta, nem possibilidade de resolver

esse tipo de mazela social do dia para noite.

Todavia, ao nível das ações concretas, por dentro das instituições

responsáveis por esses adolescentes, cada profissional e gestor podem fazer

alguma diferença, desnaturalizando a situação de rechaço e silenciamento que

ainda domina a cultura e a lógica institucional nesse campo, e abrindo espaços

de acolhimento e elaboração pessoal e social a esses jovens.

A fala dos adolescentes diferencia experiências institucionais e

interlocutores, aponta para experiências e diálogos que, de algum modo, os

apoia e em alguma medida considera sua situação, contexto, história. Claro

que isso não resolve tudo, mas também não é pouco, faz diferença.
61

Muito modestamente, esta pesquisa formulou a hipótese de que não há

relação necessária entre transtornos de comunicação e o cometimento de atos

infracionais pelos adolescentes que participaram do estudo. Hipótese que foi

confirmada: verificou-se que as variações dialetais, as gírias, a metalinguagem

que usam em certos círculos sociais sequer configuram transtornos de

linguagem ou comunicação, embora possam dificultar a integração, o

rendimento escolar e a inserção profissional, uma vez que, por um lado, se

chocam com as convenções linguísticas ensinadas e valorizadas pela escola e

pelo mercado e, por outro lado, geram estranhamento e preconceito, por

trazerem ao ambiente escolar e profissional certas problemáticas, expressas

por comportamentos, atitudes e enunciados que a sociedade rechaça e prefere

não entrar em contato, evitando reconhecer-se como produtora e

corresponsável pela situação desse segmento social.

Obviamente não se pretendeu aqui apontar saída para problemática tão

complexa e multifacetada, a intenção foi apenas levantar e debater algumas

questões, com a literatura, com os adolescentes e com alguns dos profissionais

que com eles trabalham diariamente no CEDECA.

No entanto, a partir desses diálogos uma certa percepção despontou

com intensidade: intervenção eficaz nos campos da saúde, da educação e

mesmo da assistência social somente será possível se os adolescentes forem

chamados a protagonizá-las, indicando os caminhos. Se os profissionais não

forem capazes de colocar os saberes técnicos e científicos a serviço dos

adolescentes, se não se colocarem à escuta desses mundos estrangeiros e, às

vezes, estranhos e difusos que os adolescentes põem em cena e que, com

frequência, confrontam os mundos dos profissionais, pouco terão a dizer e a


62

fazer. Na melhor das hipóteses haverá bons trabalhos pontuais, mas ainda

assim com baixa capacidade de composição na alteridade, com pequeno

potencial de diálogo produtivo.

Por fim, certamente esse é um desafio e tanto, mas parece que, em

nosso caso, a pungência da experiência vivida durante a pesquisa indica que é

preciso começar a instigar a Fonoaudiologia a percebê-lo para, quem sabe,

criar condições para que possa ajudar a enfrentá-lo.


63

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71

ANEXO 1 - PARECER DA SECRETARIA MUNICIPAL DA


ASSISTÊNCIA E DESENVOLVIMENTO SOCIAL
72
73

ANEXO 2 - PARECER CONSUBSTANCIADO DO COMITÊ DE ÉTICA


EM PESQUISA
74
75
76
77

ANEXO 3 - TERMO DE ASSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

TERMO DE ASSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO


Eu, ______________________________________________,

portador do RG nº ______________________, abaixo assinado,

aceito participar como sujeito da pesquisa intitulada “Linguagem de

adolescentes em medidas sócioeducativas em meio aberto: uma abordagem

fonoaudiológica”, realizada pela pesquisadora Isabela Barros Gonçalves,

mestranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Fonoaudiologia da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Luiz

Augusto de Paula Souza.

A pesquisa será realizada no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente

(CEDECA) em Sapopemba. O objetivo da pesquisa é Caracterizar a linguagem

oral de adolescentes entre 12 e 21 anos, em medidas socioeducativas em meio

aberto - acompanhados pelo CEDECA-Sapopemba – São Paulo-SP.

Para a coleta de dados, os participantes encontrarão a pesquisadora na instituição em


três momentos:
1- Observação de algumas atividades dirigidas pelo CEDECA;
2- Entrevista aberta com a pesquisadora, que abordará temas como: eventuais
dificuldades em se comunicar com parceiros da mesma idade ou mais velhos; -
como se veem e como pensam ser vistos por familiares, educadores, amigos e
sociedade em geral; expectativas escolares, profissionais e em relação ao
futuro;
3- O Exame Mini-Exame do Estado Mental (MEEM): realizado pela pesquisadora,
a fim de compreender a função cognitiva. Consiste em um teste rápido de
perguntas e respostas para apontar se há uma necessidade de uma
investigação mais detalhada. Esse teste tem a duração de aproximadamente
15 minutos e não possui qualquer tipo de procedimento invasivo.
No ato da assinatura deste termo, fui informado de forma clara sobre os
78

objetivos e as justificativas desta pesquisa, assim como recebi informações

específicas sobre os procedimentos aos quais me submeterei. Também fui

informado de que, como sujeito da pesquisa, é possível obter acesso aos

dados relacionados ao seu andamento, assim como as informações coletadas

até o momento, e seus resultados parciais e totais.

Também estou ciente de que a participação nessa pesquisa não acarreta em

ônus financeiro algum, nem em reembolsos ou pagamentos por parte da

instituição que a promove.

Estou ciente de que todos os procedimentos aos quais serei submetido não

oferecem riscos à minha integridade, nem são dolorosos.

É meu direito desistir da pesquisa a qualquer momento, sem que isto leve a qualquer

penalidade ou interrupção de minha assistência, garantia de sigilo e privacidade.

Todas as minhas dúvidas podem ser esclarecidas a qualquer momento com a

aluna, realizadora da pesquisa, Isabela Barros Gonçalves ou com o professor

orientador, Luiz Augusto de Paula Souza, professor titular da Faculdade de

Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo e fonoaudiólogo de registro CRFa 5042/SP , na Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, no Programa de Pós-Graduação em Distúrbios da

Comunicação - Rua Monte Alegre, 984, Perdizes – São Paulo (SP – Brasil);

telefone (11) 36708518.

Aceito participar dessa pesquisa e também autorizo a publicação de dados

relevantes para fins acadêmicos e de pesquisa.

São Paulo, ____ de ______________ de 201_.


79

Nome:

RG:

Isabela Barros Gonçalves Luiz Augusto de Paula Souza

Pesquisadora Orientador

RG: 49.899.589-6 RG: 9.241.010-8

Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP – Sede Campus Monte Alegre está

disponível para os esclarecimentos e localiza-se no andar térreo do Edifício

Reitor Bandeira de Mello, sala 63-C na Rua Ministro Godói, 969 – Perdizes –

São Paulo – SP. CEP: 05015-001 – Tel./FAX: (11) 3670-8466 – E-mail:

cometica@pucsp.br
80

ANEXO 4 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, ______________________________________________,

portador do RG nº ______________________, abaixo assinado, aceito

participar como sujeito da pesquisa intitulada “Linguagem de adolescentes em

medidas sócioeducativas em meio aberto: uma abordagem fonoaudiológica”,

realizada pela pesquisadora Isabela Barros Gonçalves, mestranda do

Programa de Estudos Pós-Graduados em Fonoaudiologia da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Luiz Augusto

de Paula Souza.

A pesquisa será realizada no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente

(CEDECA) em Sapopemba. O objetivo da pesquisa é Caracterizar a linguagem

oral de adolescentes e jovens entre 12 e 21 anos, em medidas socioeducativas

em meio aberto - acompanhados pelo CEDECA-Sapopemba – São Paulo-SP.

Para a coleta de dados, os participantes encontrarão a pesquisadora na instituição em


três momentos:
1- Observação de algumas atividades dirigidas pelo CEDECA;
2- Entrevista aberta com a pesquisadora, que abordará temas como: eventuais
dificuldades em se comunicar com parceiros da mesma idade ou mais velhos; -
como se veem e como pensam ser vistos por familiares, educadores, amigos e
sociedade em geral; expectativas escolares, profissionais e em relação ao
futuro;
3- O Exame Mini-Exame do Estado Mental (MEEM): realizado pela pesquisadora,
a fim de compreender a função cognitiva. Consiste em um teste rápido de
perguntas e respostas para apontar se há uma necessidade de uma
81

investigação mais detalhada. Esse teste tem a duração de aproximadamente


15 minutos e não possui qualquer tipo de procedimento invasivo.
No ato da assinatura deste termo, fui informado de forma clara sobre os

objetivos e as justificativas desta pesquisa, assim como recebi informações

específicas sobre os procedimentos aos quais me submeterei. Também fui

informado de que, como sujeito da pesquisa, é possível obter acesso aos

dados relacionados ao seu andamento, assim como as informações coletadas

até o momento, e seus resultados parciais e totais.

Também estou ciente de que a participação nessa pesquisa não acarreta em

ônus financeiro algum, nem em reembolsos ou pagamentos por parte da

instituição que a promove.

Estou ciente de que todos os procedimentos aos quais serei submetido não

oferecem riscos à minha integridade, nem são dolorosos.

É meu direito desistir da pesquisa a qualquer momento, sem que isto leve a qualquer

penalidade ou interrupção de minha assistência, garantia de sigilo e privacidade.

Todas as minhas dúvidas podem ser esclarecidas a qualquer momento com a

aluna, realizadora da pesquisa, Isabela Barros Gonçalves ou com o professor

orientador, Luiz Augusto de Paula Souza, professor titular da Faculdade de

Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo e fonoaudiólogo de registro CRFa 5042/SP , na Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, no Programa de Pós-Graduação em Distúrbios da

Comunicação - Rua Monte Alegre, 984, Perdizes – São Paulo (SP – Brasil);

telefone (11) 36708518.

Aceito participar dessa pesquisa e também autorizo a publicação de dados

relevantes para fins acadêmicos e de pesquisa.


82

São Paulo, ____ de ______________ de 2015.

Nome:

RG:

Isabela Barros Gonçalves Luiz Augusto de Paula Souza

Pesquisadora Orientador

RG: 49.899.589-6 RG: 9.241.010-8

Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP – Sede Campus Monte Alegre está

disponível para os esclarecimentos e localiza-se no andar térreo do Edifício

Reitor Bandeira de Mello, sala 63-C na Rua Ministro Godói, 969 – Perdizes –

São Paulo – SP. CEP: 05015-001 – Tel./FAX: (11) 3670-8466 – E-mail:

cometica@pucsp.br
83

ANEXO 5 - ROTEIRO DA ENTREVISTA

Data de nascimento:

Data da entrevista:

Questões a serem abordadas:

1. As pessoas têm alguma reação ao te ouvir?

2. Você entende tudo o que as pessoas falam com você? Tanto na família, na escola, no

CEDECA, na Fundação e em outros lugares.

3. Como é sua escrita? Você tem alguma dificuldade?

4. Quem são as pessoas com quem você mais conversa?

5. Você usa muitas gírias? Algum jeito de falar que só um grupo entenda?

6. Como é conversar com pessoas diferentes de você? Como por exemplo, pessoas mais

velhas.

7. Como é a conversa com seus amigos ou em algum grupo que você se sinta parte?

8. Você acha que é bem compreendido? Com quem você se sente bem?

9. O que você pensa sobre e para o futuro?

10. Você acha que sua comunicação te ajudara a atingir seus objetivos no futuro?

Direcionar as perguntas para situações comunicativas com a família, escola, amigos, instituição

e outros lugares em que o adolescente possa frequentar.


84

ANEXO 6 - MINI-EXAME DO ESTADO MENTAL


85
86

ANEXO 7 - DIÁLOGOS COM OS ADOLESCENTES

Pedro Bala

I- Quem é a pessoa que você mais gosta de conversar na vida?

Minha tia. Eu converso mais com a minha tia que com a minha mãe. Ela

morava perto, agora ela mora no interior. Ela me levava no médico, essas

coisas. Ela pergunta das meninas: “aquela menina ali? O que você acha? É

bonita? Achei-a muito bonita, não sei o que”. Ela fala que eu não posso “pegar”

(sic) qualquer uma, e nem ficar com um monte, se não acabo ficando com

nenhuma. Eu acho que ela está certa nesse ditado dela. Ela está há alguns

meses no interior, mas vem direto. Ela me liga também. Ou manda mensagem

pelo facebook.

I- Você usa mais ou facebook ou o whatsapp pra conversar?

Ah, mais o facebook. A gente conversa um filmando o outro, sabe?

I- Com quem mais você gosta de conversar?

Ah, com meus primos. De emprego, de menina, de moto, essas coisas.

I- Quer dizer que você anda de moto, então?

Ando. Meus primos têm uma XJ6.

I- Você tem moto?


87

Ainda não. Já tive. Uma só. Eu tive uma Biz. Era dourada com laranja, Você

colocava 15 reais, o tanque já enchia. Eu só ando aqui. Vou à pizzaria, no

negócio que vende lanche.

I- Você é do tipo que anda sem capacete ou com capacete?

Só ando com capacete às vezes pra evitar enquadro.

I- A partir de que horas você anda com capacete?

A partir das 10 horas. Aí é com capacete. Daí nós vamos lá e colocamos o

capacete.

I- É, durante o dia eu não vejo muita polícia aqui.

É. Só às vezes. Só quando rouba muita moto. Aí, fica cheio de policiais aqui.

Fora isso, é difícil.

I-Mas você não tem medo de te roubarem? Se bem que biz nem é visada.

Ah, não. Se fosse uma moto alta, grande, eu teria medo. Mas Biz? Não. Os

policiais vão na moto mesmo, rápido. A não ser que tenha uma menina na

garupa.

I- E você pode se passar por uns 18 anos, né?

Tem uns que falam. Uma vez ainda perguntaram se eu tinha passagem e

falaram que eu tinha saído da páscoa. Sendo que eu era menor de idade.

Ainda falou: “Não, você saiu na saidinha da páscoa!”. Eu estava passeando

com a cachorra da minha tia, e estava andando sem documento também. Ele
88

falou assim: “não, você tem passagem. Você saiu na saidinha. Fala a verdade?

Você é procurado! ’’ Ele queria levar eu e a cachorra para delegacia.

I- Ele te parou do nada?

É! Ele perguntou se eu tinha passagem e eu falei que tinha. Eu estava parado

no carro, encostado Aí que eles desceram do carro e me abordaram. Se eu

tivesse falado que não, ele iria passar direto.

I- Você ficou com medo?

Eu fiquei com raiva porque ele ia levar eu e a cachorra pra delegacia. Aí eu

falei: “eu vou chegar lá e não vai dar em nada”.

I- O que é “foda” (sic) é que me contaram que eles incriminam, não é? Como

que chama isso?

Já aconteceu isso comigo. A gente passou com o carro, e o moleque falou

assim: “olha a viatura”. Não sei como que os caras ouviram do outro lado, fora

do carro. Porque estávamos com o som alto. Aí, o policial foi atrás da gente e

nos levou pra um lugar e tudo. Ele pegou o RG de todo mundo, menos o meu,

pois estava sem RG. Ele falou assim: “Mas então, a gente quer saber quem

falou”. Aí, ninguém falou nada. Os caras começaram a olhar um pro outro.

Então, nós começamos a olhar um pro outro. Aí, os caras falaram assim:

“Então tem cem ‘pino’ (sic) de farinha na viatura, de quem que é?” Aí eu falei:

“Eu ainda sou menor de idade, os caras que são maiores de idade vão segurar

um tráfico.” Aí os caras iam assinar ‘’corrupção de menor’’, essas coisas. Aí, eu

tinha ligado para o parente de um menino que estava conosco. E bem na hora
89

que eles pegaram um pedaço grande de madeira para bater na gente, os

parentes do moleque chegaram. Aí, eles: “De quem que é esse carro aí?” Era a

irmã do menino. Bem na hora. Mas, tomamos um tapa na orelha ainda. Ele nos

soltou e falou: “se nós virmos vocês de novo…” Aí, fomos para um lugar que

eles nos acharam. Descemos em uma rua, caímos em outra, andamos em uma

avenida e chegamos em casa.

I- Sobre gíria, que gíria você fala? To vendo que você não fala tanta gíria. Ou

depende do lugar que você está falando?

Depende do lugar e da pessoa. Gíria tem um monte. Eu não sei nem o que

falar. “Coxinha” (sic) é polícia, “garibaldo” (sic) é menina feia. São esses nomes

assim. Princesa, essas coisas.

I- Em qual lugar você mais fala gíria, ou com quem?

Quando estou com amigos, primos. Com outros parentes nem tanto.

I- Você passou pela fundação? Lá tem um jeito de falar próprio? Teve coisa

que você aprendeu lá?

Não. Tudo normal. Lá tem umas coisas muito diferentes também.

I- Tipo o que?

Ah, na Fundação CASA tem uma “visãozinha” (sic). Visãozinha assim de umas

coisas, da ideologia, uns nomes assim muito esquisitos. Eu nem lembro.

I- E os internos?
90

Tem uns que falam de BO, têm uns que falam de homicídio, outros falam que

tem uma “fita” (sic), outros falam que tem um negócio para ganhar dinheiro.

Falam um monte de coisa lá. Todo mundo conversa com todo mundo. Sempre

tem um “ramelãozinho” (sic), né? Um menino que só “dá pé” (sic), umas coisas

nada a ver. “Cagueta” (sic), pega a mulher do outro aqui fora, “rateou” (sic).

Essas coisas.

I- Na escola, você conversa bastante com seus professores?

Eu entrei na escola por obrigação. Se não fosse obrigado, eu nem iria para a

escola.

I-Então quando você tá pensando em sair? Parar de ir?

M- Daqui uns dois anos. Dois ou três anos. Estou no nono, aí depois eu faço

supletivo, faço um curso, quem sabe uma faculdade. Curso tem um monte.

I- Pode ser um fonoaudiólogo, né?

É! Parece uma psicóloga. Psicóloga que gosta de conversar. Deixa eu ver um

nome. Tem de cultura, né? Tem vários tipos de cursos.

I- Você gosta do que?

Gosto de contar dinheiro. Deixa eu pensar. Tem curso de filosofia, de várias

coisas.

I- Você pensa bastante nisso ou ainda tá cedo?


91

Ainda tá cedo pra pensar. Meu objetivo é só ir para escola. Eu fico o dia inteiro

na escola. De manhã, para vir pra cá, eu acordo umas nove horas, tomo café

da manhã, me arrumo, e venho.

I- Você, no comecinho, antes de eu ligar o gravador, disse que ia ficar com

vergonha da entrevista. Você ainda está com vergonha?

Não, porque nós estamos conversando, né? Ideia vai, ideia vai. Quando tenho

que responder muitas perguntas aí eu fico meio assim. Já não sei se vou saber

responder. Na Fundação CASA tem entrevistas também. Tem umas técnicas

doidas. Toda semana falam a mesma coisa pra você e você fica quase louco.

Perguntam um negócio e te dão uma semana pra você responder e você não

sabe o que é. Falam uma palavra que você nunca ouviu na sua vida e mandam

você decifrar. Toda semana! Aí você fica louco. Falam assim, uns negócios da

sua vida aí vão lá e falam essa palavra: “Quero que você me responda essa

palavra semana que vem”. Aí mete um mês praticamente só perguntando isso.

E Você não sabe o que é a palavra, e falam para você descobrir sozinho.

I- Só uma ou tem um monte que faz isso?

Tem um monte! Tem uns que olham pra sua cara e falam assim: “Nossa você

não tem cara de criminoso. Sua cara é gorda! Você não passa fome. Olha a

cara daquele outro menino ali. Ele é só o osso. Ele é morador de rua. Ele sim

precisa roubar.” Eu ouvi muita coisa assim. Ela fala: “O que você está fazendo

aqui?” Você é louco!

FRASE do MEEM
92

“Saúde para minha família é tudo que eu mais quero.” Porque eu coloquei no

status. Porque não importa ter dinheiro ou essas coisas. Saúde é o que

importa. Eu só tenho minha mãe. Não tenho uma boa família assim.

I- Seu jeito de falar vai te levar aos seus objetivos do futuro?

Não é seu jeito de falar. Em geral, você tem que mudar pra chegar aos seus

objetivos. Como você vai chegar num lugar que só tem rico parecendo um

maloqueiro? Um favelado? Os outros vão te olhar diferente! Tem umas

pessoas que acham um pouco estranho.

I- Mais alguma coisa que você queira deixar registrado na pesquisa?

Não, senhora.

I- Senhora? Eu pareço uma senhora?

Não, é jeito de falar mesmo. Veio da FEBEM. Era uma forma de respeito.

I- Eles brigavam se você não chamava?

Batiam e brigavam. Mas é só uma questão de tempo até parar de falar assim.

Volta Seca

I- Me fala um pouco com quem você mais gosta de conversar?

Converso com meus amigos. Minha mãe trabalha.

I- Você passa o dia com seus amigos, então?


93

É. Conversando sobre meninas, final de semana, essas coisas.

I- E quando acontece alguma coisa? Você conta para os seus amigos? Eles te

ajudam?

Eu conto. E eles ficam sabendo porque moram perto também. À noite minha

mãe chega em casa. Moramos só eu e ela. Ela conversa normal. Pergunta

onde eu estava, e às vezes, briga.

I- Sobre gíria, você fala muito?

Não. “Que gíria? Se eu não falo. Normal.

I- Suave você fala?

Ah, suave é gíria? Não é não!

I- “É noi” (sic)? “Pode pá” (sic)?

Não, não. Isso não.

I- Por quê? Qual é o problema de falar essas coisas?

É uma palavra feia.

I- Pode pá? Mas, o que quer dizer?

Não sei. Por isso mesmo. Depende, né?

I- Mas, por que você acha que falar gíria é feio?

Ah, eu não acho feio. Eu só não falo.


94

I- E na escola? Como é a conversa?

Faz tempo que eu não estudo.

I- Faz quanto tempo?

Aqui faz tempo. Eu estudava só quando eu estava lá dentro, na Fundação.

I- Quando você estava na escola, com seus professores, era tranquilo?

Tranquilo. Eles passavam lição. Eu só copiava.

I- E lá dentro? Como era a conversa?

Normal.

I- Todo mundo falava gíria?

Não. Não falavam isso não.

I- E pra escrever? Você gosta?

Eu sei escrever, mas eu não gosto.

I- Nem só pra você?

Quando é pra mim eu escrevo. Mandar uma carta para alguém. Mando para os

moleques que estão presos. É normal. Pergunto como que eles estão. Eu

mando para um primo meu que estava lá. Quando eu estava na Fundação eu

recebia carta da família, dos amigos.


95

I- Você guardou as cartas?

Não, joguei tudo fora.

I- Tem alguma pessoa que não seja do grupo de amigos que você conversa?

Se for amigo, nós conversamos.

I- Você me chama de senhora. De onde vem?

Lá na Fundação. Você acostuma. É normal.

I- O que você pensa em fazer no futuro?

Trabalhar. Tenho vontade, mas não tem serviço.

I- Mas, você tem vontade de trabalhar com o que?

Com emprego. O que tiver. Trabalhar em empresa.

I- Você quer ser chefe?

Aí é querer demais também.

I- A gente está falando de sonhos...

Qualquer um tem vontade de entrar numa empresa. É que a senhora ta

trabalhando, né? E se a senhora não tivesse?

I- Eu to trabalhando e to fazendo o que eu gosto. To aqui trabalhando e

conversando com você, de boa, com um tênis velho...

Sentada ainda, né? Trabalhando, né?


96

I- E o que você gosta de fazer?

Gosto de fazer uns negócios na rua lá, normal. Das coisas da rua que tem pra

fazer...

I- O que tem na rua pra fazer?

A senhora sabe, né? Coisas de adolescência. A senhora sabe, já foi

adolescente. Não tem nada pra fazer, né?

I- Sei mesmo. Tem festa, bebida, essas coisas. É disso que você ta falando?

É isso mesmo. A senhora sabe que não tem nada pra fazer, né? A senhora tá

morando onde?

I- Lá pros lados de Osasco. Já foi?

Não. Tem uma Fundação ali. Na vila Maria.

I- Vila Maria não é perto da marginal Tietê?

É então. A senhora não pega a avenida, mas pega assim e vai reto. A

fundação você vai ver assim. Uns muros altos, tudo fechado.

I- Lá em Osasco também não se tem muito que fazer.

Que, o baile é aqui, oh. Do outro lado ali. A senhora que não é daqui não deve

saber.

I- Ah, disso eu sei, que tem o baile. Que juntam umas três mil pessoas.
97

Tem aqui na praça. Final de semana. Sexta, sábado e domingo. Chego ao

baile depois da meia noite, e volto para casa seis, sete horas da manhã.

I- Aguenta?

Normal. Vou dormir depois.

I- Na ressaca…

Whisky não dá ressaca não!

I- Então, você pretende trabalhar em firma. E o jeito que você fala é tranquilo

pra entrar em firma?

Não é tranquilo não. Tem que estudar, né?

I- Por que não estuda?

To esperando sair uma vaga.

I- Aqui no CEDECA você gosta de conversar com o pessoal?

Só converso com ela só.

I- Você não participa de nada?

Só hoje que me chamaram pra jogar xadrez.

I- Você sabe?

Aprendi lá dentro da Fundação CASA.


98

I- Que mais? O que você gosta de ouvir?

Sambão. Samba, pagode.

FRASE do MEEM

Não sei. Pode olhar? Qualquer uma? Vou colocar qualquer coisa, senhora. Eu

lembrei uma frase. “Sem luta não há conquista”

I- Você luta muito pra conquistar as coisas?

Luto. Tem que ser, né?

I- Quero que você copie esse desenho aqui (MEEM)

Você e esses desenhos, senhora. Vai sair torto, senhora.

I- Eu já me acho velha, fiz aniversário esses dias e você me chamando de

senhora.

Parabéns, senhora. Quantos anos? 23?

I- Tenho 26.

Você falou que isso é velha?

I- Você fica me chamando de senhora.

É só jeito de falar. Normal.

I- É, mas tem coisa que eu não aguento como aguentava na adolescência. Eu

não aguento três dias de festa.


99

Aguenta sim. Só chegar as seis e dormir o dia inteiro.

I- E eu posso dormir o dia inteiro? Tenho que cuidar das coisas da casa

A senhora mora sozinha?

I- Moro com meu marido, mas ele me ajuda.

Aí sim. Isso ajuda.

Professor

I- Falando em comunicação. Com quem você mais gosta de conversar?

Ah, gosto de conversar mais com meu pessoal. Com meus pais, minhas irmãs.

Família. Família pra mim é tudo. Se tiver com algum problema, pode conversar

que o pessoal vai te ajudar. E se eu conversar com os amigos, com alguém

que me conhece há pouco tempo, não vai ter como a pessoa te ajudar, sabe?

Saber o que se passa. Aí eu converso com meu pessoal. Eles me

acompanham em tudo. Sabem com quem eu ando e o que eu faço. E eu falo

tudo. Ninguém pode vir e falar: “ó seu filho era santinho e tal”. Eles sabem dos

meus pontos fracos e dos pontos fortes. Isso dá segurança. Sentir seguro é

poder contar com a pessoa. Contar que ela pode te dar um conselho, te ajudar.

Lá em casa é todo mundo na sala conversando.

I- Como que foi ficar ausente?


100

Foi estranho. Cheguei em casa e tinham várias coisas diferentes. Cheguei a

chorar. Dava aquele aperto no peito. Fui guardando as coisas, fiquei tranquilo.

Foi uma fase... A pior fase. Sentia falta de conversar.

I- E com os amigos?

Não, é aquela conversa que se tem com os amigos. Na escola é da escola. Na

rua os caras falam das meninas, de balada. E os caras que eu ando só falam

de drogas, de roubo. Tem os malandros e o “Zé povinho” (sic) também, que

são os trabalhadores.

I- E você virou Zé povinho agora?

To nada. To daquele jeito. Tentando sair da malandragem. Tentando sair para

acabar essa medida, dois anos já. Não aguento mais. Toda semana, toda

quinta.

I- Como que é pra você ouvir esses amigos?

Para mim é normal. E a pessoa que se envolve no crime não pensa em roubo o

tempo todo. Pensa em mudar, arrumar um serviço mais pra frente. Os amigos

falam sobre isso, falam que quando tiver apertado, né? Falam que “tirou

cadeia” (sic), tem uns que já foram presos, e não querem mais isso. Aí sai e

não arruma trabalho. Aí tem uns que saem para roubar. Depois que fica maior

de idade é outra coisa, é CDP. Cadeia é pior que Fundação CASA. Tudo na

fundação é melhor que cadeia. Por exemplo, a comida. Na cadeia tem comida

estragada, só nas visitas que não. Tem jumbo, pode entrar com doce, bala, tipo
101

uma marmita, um piquenique. Na fundação é só de lá mesmo, seis refeições

por dia. Só salito. Tem uns que sai fortão.

I- Você arrumou muita amizade lá?

Arrumei nada. É o seguinte, lá não pode conversar, senhora. Lá é o dia inteiro

sentado no pátio. Não pode olhar para o lado, nem conversar, se não apanha.

O dia todo sentado, assim, com as pernas cruzadas assim. Um em fileira do

outro.

I- Mas, se tira amizade, o que resta lá dentro?

Tira a amizade, só resta estudar. Lá tem escola. Normal. Dão uns papeis para

ficar fazendo uns textos, umas questões. Professor não é mesma coisa da

escola do Estado. É outra coisa, é prefeitura, eu não sei. Não conseguia

conversar com ninguém. Se passar pelo professor e não falar ‘’licença senhor’’,

‘’licença senhora’’, tava arriscado você tomar umas tapas. Ficava para trás, só

com a mão pra trás. Não tinha olho no olho. Os caras eram ruins. A família fez

muita falta. Quando eu saí, desceram algumas lágrimas do meu olho. Só quem

passou por isso sabe. Lá é forte. Eu me libertei já, está passando o ódio.

I- Hoje você frequenta a escola? Tem a conversa olho no olho?

É outra coisa. Os professores, os inspetores, conversam. Quando eu cheguei à

escola, a diretora me chamou para conversar. Ela falou da medida. Aí eu

peguei amizade, ela me trata bem. Eu a chamei de senhora e ela falou para

chamar de professora. Ela disse: “quero te ajudar, foram quase dois anos. Mas
102

você tem que fazer por onde também. Se tiver alguma pergunta, se quiser eu

te explico quando acabar a aula”.

I- As pessoas têm alguma reação ao te ouvir?

Mais preconceito, né? Falam que você usa drogas. Inventam uma imagem

totalmente diferente. Na rua mesmo, depois que eu fui preso tiveram uns

vizinhos que viraram a cara para mim. Gente que conheço desde quando

nasci, pois moro lá há 17 anos. Os amigos do meu pai, da minha mãe. Meu pai

me defendeu. Que nem minha tia. Minha tia é assistente social lá do posto, ela

ia em casa. Depois disso, ela não vai mais. Ela mudou. Mudou de posto pra

não ir em casa. Quando me vê na rua não me dá um tchau. Fica chato, né?

Porque meu pai vai direto à casa dela. Ela fala pro meu pai: “chama suas

filhas”. Mas, não fala pra me chamar. É minha tia! Fico constrangido. Meu tio é

normal. Meu tio e ela brigam por causa de mim. Ele fala: “porque você não

gosta dele?” Ela fala: “acho que ele é muito bravo, muito agressivo.” Nunca fiz

nada com ela. Sempre que eu to na rua e faço alguma coisa ela vai lá

“caguetar” (sic) para o meu pai e para minha mãe. Aí fica naquelas, né? Ela

acha que eu tenho raiva dela porque ela faz isso. Eu acho que ela tem medo

de mim porque eu sei que ela faz isso. Deve ser isso.

I- Você acha que porque você entrou na fundação rola uma imagem de

bandido?

Rola. É o preconceito. Tem muita gíria. Tem um jeito de lá. Licença senhor,

licença, senhora. Obrigado, Senhor, obrigado, senhora. Até pra você peidar

você tem que pedir licença. É verdade. Não pode peidar. Você tá sentado e
103

tem que pedir licença: “Licença aí, senhor, licença pro gás (sic)”. Tem que falar

“licença pro gás” (sic). Aí você sai, vai ao cantinho, “peida” (sic) e depois volta.

Não é mole, não. Na fundação eu falava mais com as psicólogas, que eram

minhas técnicas. Elas perguntavam minha vida inteira. Elas que faziam meu

relatório. Elas falavam que iam falar o melhor para o juiz, para me ajudar. Até

nos estudos, eu nunca tinha repetido. Era o único momento que eu conseguia

conversar. Era uma vez por semana. Ajudou a superar.

I- O que você pensa pro futuro?

Penso em progredir, arrumar um emprego, continuar na escola. Esses

negócios de sonho eu sei lá. Ainda não parei pra sonhar. Penso em ser um

bagulho grande, um gerente, um dono. Gosto de negócio. Começando

pequeno vai evoluir, né?

I- E para escrever? Você gosta?

Eu gosto. Escrevia bem.

I- E você conversa com pessoas diferentes de você? Você fala do mesmo jeito

com seus amigos ou são formas diferentes?

São formas diferentes. Eu tento não falar gíria. Tem pessoas que não

entendem, acham feio. Eu não acho feio. Tento adequar. Até com o juiz eu

tento, mas mesmo assim saem algumas gírias. Fiquei tranquilo. Estou focado,

estou no caminho certo.

FRASE DO MEEM
104

“Feche a boca”

Igual a do teste: feche os olhos

I - Gostaria de falar mais alguma coisa? Deixar uma mensagem?

Vou deixar a mensagem do preconceito. Que eu também sofro com isso. Sou

contra preconceito, seja ele qual for. De droga, de sexo. Hoje eu estava vindo e

tinha um ônibus parado no farol, com as janelas todas abertas, e as mulheres

estavam guardando o celular na bolsa, assustadas. Fiquei em choque. Nada a

ver. Sei lá, deve ser a minha cara. É preconceito. Meu pai fala que sou

homofóbico. Eu tenho um primo homossexual. Quero falar que sei lá.

Preconceito não pode. Mas você está passando na rua, aí um ‘’veado’’ (sic)

mexe com você. Como fica?

Gato

I- Eu falei que sou Fono, antes de começar a entrevista, e você me falou que

conheceu um gago. Fiquei curiosa: quem é ele?

O gago é meu primo. Ele fala meio assim [imitou como um fanho: saca ao invés

de faca e fica zi zi zi] Ele tem doze anos. O pai dele não sabe de fono não.

I- Eu falo então da comunicação. Queria saber mais sobre isso na sua vida.

Como que é? Com quem você mais gosta de conversar?

Eu converso mais com meus amigos. Sobre o mundo, política, e a roubalheira

que está em São Paulo, várias coisas.


105

I- Vocês são intelectuais, então. Todo mundo que eu pergunto isso diz que fala

de mulher, fofoca. Vocês discutem política!

De mulher também. Quando passam umas meninas bonitas. Meus amigos

moram perto. Eu moro numa fazenda. Aqui perto, pra baixo. Tem porco,

galinha, pato, tem cavalo. Mas eu não faço as coisas não. Quem cuida é meu

cunhado. Ele gosta.

I- E você mora com quem?

Moro com meu cunhado, minha mãe, meu padrasto e meus irmãos.

I- E na sua casa? Vocês conversam bastante? Brigam muito?

Conversamos sim, só coisa de casa mesmo. Sobre política não.

I- E a escola? O que você acha da escola? Seja franco.

A escola é legal, né? Tem ensino bom, tem amigos que você conhece.

I- Então, o que é bom no ensino?

É o modo de o professor falar com a gente. Explicar a lição. Os professores

são bem atenciosos. Porque o que eu não sei eu pergunto, e eles respondem.

I- E sobre o que você pergunta? Geralmente a gente pergunta mais do que nos

interessa, né? Tipo, em matemática eu era uma negação e raramente eu

perguntava.

Quando eu vou responder os negócios, eu pergunto se está certo. E eles

respondem.
106

I- Que legal! Parece boa sua escola. Tem tanta gente que reclama que o

professor não explica.

Não explica para quem não tem atenção. Na sala tem que prestar atenção no

professor. Eu sento perto do professor.

I- E seus cadernos estão em dia? (risos)

Estão nada. Passaram um monte de lição e eu faltei cinco dias.

I- Outra coisa que eu quero saber: gíria. Você fala muita gíria? Comigo você

não está falando nenhuma gíria. Geralmente você fala com seus amigos?

Com meus amigos eu falo.

I- Por que você fala com seus amigos e comigo você não fala gíria?

Porque não. Porque eu sou educado.

I- Ah, então quer dizer que quem fala gíria é mal educado? Se eu falasse gíria

eu ia ser mal educada?

Iam ser outras palavras. Ia ser normal (risos)

I- Palavrão, então, se eu falasse ‘’foda’’ aqui ia ser a pessoa mais mal educada

desse mundo?

Lógico.

I- Mas, você fala com seus amigos?


107

Porque eles falam comigo e eu respondo do jeito que eu sei a gíria. Mas é

assim: quando eu falo com uma pessoa educada que não fala gíria aí eu falo a

mesma coisa que ela, no certo.

I- Mas, gíria tem a ver com educação, então?

Também.

I- É. Nunca tinha pensado nisso. Porque quando eu estou com meus amigos

eu falo de um jeito diferente do que quando eu estou trabalhando. Mas não é

porque eu sou mal educada com eles.

Lógico.

I- Que gíria vocês falam? Fala uma gíria legal, aí. Eu aprendi uma legal que to

falando pra todo mundo: sazon.

Sazon é um tempero que coloca na comida.

I- (risos) To falando da gíria sazon.

Quando o cara pega todas, tempera todas.

I- Viu? Teve gente que não sabia o que era!

É um “juriti” (sic). Sabe o que é juriti? Quando a pessoa não sabe de nada. Um

“pangué” (sic). Sabe de nada.

I- Cu de burro?

É. A pessoa que não sabe de nada. Não sabe nem o que está acontecendo.
108

I- É mesmo. Tem muito juriti por aí. Você já conheceu muitos juritis nessa vida?

Conheci. Agora, estou só na malandragem. (risos)

I- Ah, você é do grupo dos juritis ou da malandragem?

(risos) Sou da malandragem.

I- E o que é o grupo da malandragem, então? Quem é o malandro?

É a pessoa que vai lá. É assim: nós fazemos uma rodinha e quando um não

tem, nós fortalecemos. Uma rodinha de amigo. Nós inteiramos. Fazemos uma

vaquinha para comprar alguma coisa para beber. É um fortalecendo o outro.

Dá uns 10, 11, 14 meninos. Isso quando um não tem. É isso que fazem, para

comprar um vinho. Quando um só tem, aí divide pra todo mundo. Eu bebo

vinho, suave. Catuaba, vodka com gelo de coco. Eu bebo aquelas bebidas que

pegam fogo. Tem uma que você coloca no copo e você ascende. Aí sacode, aí

toma de novo e pega fogo. Eu tomei dez doses assim seguidas. Eu aguento.

No meu aniversário eu tomei sete ou oito Icecola. Tequila, batida, cariri com

mel, menta com 51. Caipirinha de maracujá, limão, kiwi, morango. Bebo na rua.

Com os amigos. De vez em quando tem música. Nós bebemos na rua mesmo.

I- E com as meninas você conversa bastante ou só no xaveco?

Eu não, to namorando. É a Larissa. Uma menina lá na rua de baixo. É mais

nova. Fala mais gíria que eu.

I- E aqui no CEDECA? Você conversa bastante com o pessoal?


109

Legal. Converso. To fazendo a oficina ali de xadrez. Quem aprendeu mesmo

foi meu padrasto.

I- E as pessoas entendem quando você fala na gíria?

Quem sabe entende, quem não sabe não entende.

I- Você passou pela fundação? Como era o jeito que você conversava lá?

Passei. Tinha vários “jatobás” (sic), “mente blindada” (sic). A maioria era

malandro.

I- Fez bastante amigos?

Fiz.

I- Como que era a conversa com os educadores?

Era suave, normal. Era normal, Eram mulheres. Tinham uns meninos que

davam problema. Mas comigo era de boa. Fiquei oito meses lá. A juíza falou

que eu ia sair com seis, mas fiquei oito meses. Foi de boa, tranquilo. Tirando

meu ódio. Saí pior.

I- Saiu revoltado?

Ficar oito meses lá? Quem gosta? Só uma vez por semana recebia visita.

Quando tinha visita. Saía para quadra e era só terra, não tinha nem chuteira.

Só “chapatória” (sic), você ficava na sala assistindo televisão. Passava quase

nada. Quando passava um negócio legal, tiravam. Filme a gente assistia.

Educativo não. Era de luta, de tiro.


110

I- De tiro e luta dentro da fundação? (risos)

E tocava racionais! Só 157.

I- Ah, racionais é legal. Eu gosto. Facção central. A mensagem deles é boa. O

que você gosta de ouvir?

Conheço. Escuto sertanejo, rap, reggae, samba.

I- Em relação ao futuro, o que você pensa pra sua vida?

Meu futuro ainda vai ser longo. Arrumar um emprego, arrumar uma mulher “da

hora” (sic). Larissa está nos meus planos. Uma menina responsável, que não

vem de “ramelada” (sic).

I- E o jeito que você fala vai te ajudar a chegar lá?

Ah, do jeito que eu falo com as pessoas agora, aí vai. Na gíria, não.

I- Depende de onde você quer chegar, se for um cantor de rap...

Aí dá. De rap, de funk. Do jeito que estou dá para chegar lá.

I- E você entende tudo que falam com você? Na escola, aqui, na fundação

você entendia?

Entendo, ué.

FRASE do MEEM
111

“Deus é fiel”

Deus nunca falha conosco, né?

I - Com você, Deus nunca falhou? Os oito meses que você ficou na fundação

foram os piores da sua vida, ou teve coisa pior? Você pode me contar?

Teve, sim. Quando eu fiquei parado no tempo, sem ninguém para conversar,

sem nada, sem ninguém. Dos meus sete a oito anos. E eu não falava com as

pessoas, agora eu falo.

Eu pensava em ficar só em casa, ser fazer, assistindo televisão. Eu ficava

alegre.

I- Como você saiu dessa?

Comecei a falar mais com as pessoas. Aí mudou. Esse tempo foi pior que os

oito meses na Fundação. Ninguém sabia que eu estava daquele jeito.

I- Mais alguma coisa?

Não, só quero que você ajude a gente se comunicar mais com as pessoas.

Você já encontrou um menino que falou com você só na malandragem o

atendimento todo?

I- Já, inclusive até no xaveco. E você já encontrou alguma pessoa mais velha

que conversasse com você de um jeito legal? Olho no olho.

Eu não. Tava com vergonha no começo. Não sei o porquê, porque muda o jeito

de falar. Porque você é mulher.


112

Boa Vida

I- Me conta, com quem você mais gosta de conversar?

Com meus amigos. São muitos. Mais de trinta. O mais próximo é essa menina

que mandou a mensagem. A gente se conhece há um ano. A gente passava,

ficava olhando um para o outro. Aí ela não tomou atitude e eu fui lá e comecei

a arrumar amizade. Na rua mesmo.

I- Você é um cara de atitude então?

Sou nada. Tenho vergonha. Ela é um pouquinho bonita. É gente fina. A gente

se fala um pouco na internet e um pouco na rua.

I- Além dela, tem mais alguém que você gosta de conversar?

Sim. Gosto de conversar com a Larissa. A gente fica fofocando da vida dos

outros. Só disso que conversamos.

I- Sobre problemas também?

Problema eu falo com a minha mãe.

I- Ah, e você e sua mãe tem uma boa relação?

Não. A gente se fala, mas a gente briga muito também. Nós dois já brigamos

de faca. Pareceu uma luta de espada: um puxou o facão daqui o outro puxou a

facão dali, aí entrou outro louco pra tentar separar: meu vizinho. Esta marca

que eu tenho no braço serve como prova. Eu me ferrei, porque entrou a

pontinha da faca aqui. Eu joguei a faca, mas não pegou, ficou pendurada na

parede. Passou aqui, na minha sobrancelha, mas não pegou.


113

I- Você puxou essa valentia da sua mãe, então?

Do meu pai. Ele tá no Ceará. Ele é cearense. Eu já morei lá. Não gosto de lá

não.

I- Por quê? Terra do forró…

Cangaceiro…

I- Ele é cangaceiro?

É nada. O bicho é um “bundão” (sic).

I- Você não falou que puxou a valentia dele?

Porque quando ele tava lá era só dar 5 minutos para eu apanhar dele. Foi feio.

Pior que apanhar da minha mãe. Foi com de vara de pescar. Eu estava

pescando, aí deixei o peixe escapar, aí ele pegou a vara e foi direto nas costas.

Eu tinha cinco anos. Mas não doeu não. A facada da minha mãe também não.

Eu tava bêbado mesmo.

I- Ah, então foi por isso que sua mãe te bateu. Ela estava sóbria?

Estava nada, ela estava na “brisa” (sic) dos comprimidos. O olho dela estava

tão pequeno que eu nem vi a pupila. Só sei que eu joguei a faca e não pegou.

Era pra ter pegado bem aqui do lado do olho. Era aqui que eu queria que

pegasse. Mas passou reto. E nem fizemos as pazes. Nós estamos brigados até

hoje, mas nós nos falamos de vez em quando. Quando a gente quer brigar, um
114

já vai para cima do outro. Só na violência. É um ensinando a violência ao outro.

E já tivemos muitas brigas. Já tentei matar minha mãe e meu padrasto. Mas

não consegui. Coloquei veneno na comida, mas o bicho não morreu. Comeu e

não morreu. Ficou com febre, mas não morreu. Ele descobriu. Ele não fala

comigo porque tem medo. Tentei matá-lo porque não gosto dele. Ele xinga

minha mãe e bate nela.

I- E só moram vocês três? Sua irmã mora onde?

Lá no Grimaldi, sozinha.

I- E o que mais você me conta? Sobre conversas…

Não gosto de conversar.

I-Não gosta? Está sendo uma tortura pra você conversarmos agora? O que

posso fazer para diminuir isso?

Nada.

I- Parar de fazer um monte de perguntas?

É.

I- Por quê? Como você já foi torturado, com conversa?

Na fundação era tranquilo porque não podia conversar. Tinha que ficar calado.

Se falasse, apanhava. ‘‘Ia pro couro” (sic). Na aula até que eu podia falar. Mas

eu gostava de ficar quieto. Ensinam a gente ficar quieto. Foi lá que eu aprendi

a ficar quieto, mas eu não era quieto não. Eu parecia um papagaio. Falava de

mais. Só que Deus castiga. Você se enrola. E eu me enrolei muito na minha


115

própria fala. Quando eu fui preso eu entreguei tudo que eu já fiz. Até o

advogado colocou culpa em mim. Mesmo eu estando com dois maiores de

idade, que agora estão presos. Fiquei 15 dias na fundação, parecia que tinha

passado um ano. Foram os piores momentos da minha vida. Porque eu nunca

tinha passado por aquilo. Apanhei muito. Os maiores de idade jogam a culpa

para os menores, mas eu não assumi a culpa por eles. Fui até a delegacia

falando que não tinha sido eu. Quando apanhei pela segunda vez, eu entreguei

todo mundo. Falei das “bucha” (sic) deles e das minhas. Eles dois estão

presos. Eu os visito na prisão. Não tenho medo deles. Apanhei da polícia como

nunca apanhei na vida. Se eu for te explicar na simulação, ainda assim tem

que trazer um homem corajoso aqui. Foi feio. Eu achei que ia de boa sem

apanhar, e então eu apanhei mais ainda. Foi choque na costela, no pescoço,

puxão de orelha, bica na bunda. Hoje eu não sinto mais nada, mas quando eu

chegar numa certa idade vai doer.

Fiz alguns amigos na Fundação CASA. Só trombadinha de banco, saidinha de

banco.

I- Quando saiu, continuou a amizade?

Continuou. Sei onde todo mundo mora. Mesmo sendo muito ruins, ainda são

melhores que minha mãe. Vê num banco como eles são. Eles vão pra cima.

Armados mesmo. Ponto 40, ponto 50. Uma Glock nove milímetros. Mata

qualquer um, seja homem, e principalmente empresário que sai de terno.

Melhor é se eles encontrarem um gerente. Conheci filho de dono de biqueira,

não é tão ruim.


116

I- A pessoa nunca é 100% ruim né? Todo mundo tem seu lado bom e seu lado

ruim.

Aquele 1% vagabundo. Sou 99% vagabundo. [Gabriel faz referência a uma

música sertaneja]

I- Você gosta de sertanejo, então?

Gosto nada. Gosto só de funk e “proibidão” (sic). Tipo MC Kauan, Coringa. Não

sei cantar. Deixa eu colocar no celular... Se eu arrumasse um carregador...

[celular sem bateria]

I- Voltando, você é 1% anjo…

Não, anjo eu não sou não. Sou 1% capeta. Só o cabelo e a sobrancelha de

anjo. Meu cabelo já teve todas as cores do arco-íris: roxo, azul, amarelo, rosa,

preto, laranja.

I- Você estuda?

Estão tentando me mandar pro Romeo. Mas eu não quero ir para lá. Só rola

drogas lá dentro. Se eu for pra lá eu não vou aguentar. Vou usar. Estou

tentando parar, aí me mandam pra uma escola pra eu usar? Mas os traficantes

do Romeo são meus amigos. Eu prefiro ir pro Haroldo mesmo. A diretora era

ex-tenente da rota, lá não entra nada.

I-E Com esses amigos do Romeo? Você falou que tem bastantes amigos que

tem envolvimento no tráfico. Vocês conversam sobre o quê?


117

Eu não converso com eles. Só cumprimento. Eles me respeitam.

I- Há quanto tempo você está fora da escola?

G- Dois anos.

I- Quando você estava na escola, você conversava com os professores?

G- Não. Não gostava. Não gosto de conversar. Se tivesse um negócio para

resolver eu resolvia na hora da saída. Batia não, mas já ia com a ‘’peça” (sic)

[arma] mesmo. Eu descia em casa, pegava o oitão embaixo da cama, e voltava

para escola. Já ia cuspir fogo. Ia ser só um tiro na perna. Só um para aprender.

E resolvo só os meus problemas, porque não sou idiota para entrar no

problema dos outros.

I- Outra coisa, você entende o que as pessoas te falam?

G- Muitas vezes não. Aquele impeachment da Dilma. Não entendo, não sei o

que é impeachment. Se você me der um livro de literatura na mão, eu posso

ler, mas tenho que ler duas vezes pra entender. E eu não entendo gibi. Agora,

me dá um celular na minha mão pra você ver se eu não entendo...

I- Entendi. Seu entendimento é de acordo com o que você lê, não é? E sobre o

impeachment, você entende alguma coisa ou já conversou com alguém sobre o

assunto?

Não entendi nada. Eu já fui até atrás do prefeito. Para tentar saber. Não o

achei. Eu fui à prefeitura atrás do bichinho, mas cadê o bichinho? [risos]


118

I- E o que você imagina que seja o impeachment?

Um crime. Um crime de uma pessoa.

I- Então você está entendendo. Quer que eu te explique ou não?

Não. Pode pular essa parte.

I- Outra coisa, você falou que quando pega um livro ou gibi e não entende.

Você tem dificuldade para ler?

Não. Tenho dificuldade em entender o que li, isso é desde pequeno. Cheguei a

aprender a ler e escrever. No facebook é fácil. Porque o celular tem um texto

inteligente.

I- Ah, mas se não tem uma pessoa inteligente por trás do celular, não daria

certo.

Não, mas tem texto inteligente. Se eu erro, já aparece uma palavra certa.

I- Mas saber escrever não tem a ver com acertar palavras. Você tem que

formar frases…

Deixa pensar com quantos anos eu aprendi ler e escrever... foi com dois anos,

por aí. Aprendi a ler com cinco anos. Foi com minha avó. Ela me ensinou. Ela

me dava um livro na mão e falava: ‘aprende aí ou apanha’. Aprendi rapidinho,

quando ela pegou o cinto, coloquei o livro assim e fui lendo. Aprendi na hora.

E sobre gíria?
119

Não falo gíria. Não gosto. Nem com a Larissa. Com mulher eu não falo gíria.

Eu não gosto. É falta de respeito. Eu aprendi a respeitar as pessoas. Gíria eu

falo comigo mesmo, na minha escola e na rua. Só falo gíria com traficante.

Com resto dos trabalhadores eu não falo não.

I- Por que você fala gíria com traficante? O que acontece?

Porque ele já sabe que quando você fala gíria, você é malandro.

I- Então, você sabe muito bem falar com quem você quer chegar? Com quem

você fala certinho?

Claro. Com a Larissa, Giovana, com minha mãe. Com minha mãe eu falo gíria.

Ela é malandra. Minha mãe era a maior ladra do Madalena.

I- Então ela que te ensinou a ser malandro?

Ela não. Foi meu vizinho. Que ela não tem “proceder” (sic) não. Ela não tem

respeito com ninguém.

I- Proceder é respeito? Eu tenho proceder? O pessoal daqui tem? E você tem?

Claro que tem. Eu não tenho proceder não. Não tenho proceder com ninguém.

I- Você tem sim. Está me tratando com respeito, falando o que pensa... Isso é

ter proceder, não é? Outra coisa: o que você pensa para o futuro?

Agora você me pegou. Tem muita coisa ainda. Já quis ser MC, já fiz música e

nem fez sucesso. Já toquei com o X [SI]. Você acha que eu não sei tocar? Na
120

hora da música você aprende. Tocar um Gun’s in Roses no violão, um Nirvana.

Tocar um reggae, Natiruts.

I- Gosta de Bob Marley?

Claro que não, só quando vou fumar um baseado. Só toco Natiruts. Já toquei

rap no violão só que não deu certo. Racionais, 13 D... Já tentei tocar funk no

violão, já tentei tocar tudo, mas nunca deu certo. Já lancei no YouTube. Uma

curtida só. Ninguém viu porque não divulguei.

I- E além de ser MC, com o que você já sonhou?

já sonhei em ser empresário. Empresa de nada. Só pensei em ser empresário.

Já fui de tudo. Já fui rico, hoje sou pobre Já tive meus cinco minutos de fama.

Já fui traficante. Pior que já... Já tive um Prisma, já tive uma 150, já tive uma

casa. Já tive uma família inteira construída. Joguei tudo pro alto. Porque minha

outra avó falou assim: ‘’você escolhe ficar aqui ou escolhe as drogas’’. Aí quem

eu escolhi? Meu pai já tentou se matar por causa de mim. Lá mesmo no ceará.

Chegou a pegar a arma, apontar para cabeça, dar tiro, e a arma não atirar. E

meu pai tentou se matar porque estou seguindo o exemplo dele e da minha

mãe.

I- Você usou muitas drogas nessa vida?

Já. Em uma noite eu já cheguei a usar um quilo de cocaína. No outro dia eu

ainda estava na neura da cocaína. Já tive duas overdoses no meio da rua e


121

nem sabia onde eu estava. Nem sei como cheguei em casa. E eu continuo

fazendo isso, não aprendi nada.

I- E você acha que do jeito que você fala você vai conseguir atingir seus

objetivos no futuro?

Pior que não. Não quero saber de nada. Eu não faço investimento nisso. Em

vez de eu investir nisso eu invisto nas drogas. E parar de usar é muito difícil.

Se eu tento sair, se eu não quero usar, chega alguém e me dá.

I- Você trabalha no lava-jato para comprar drogas?

Claro que não! Eu guardo o dinheiro. Porque chega no fim do mês, minha mãe

não me dá dinheiro. E nem eu dou dinheiro para ela. Desde muito tempo é

assim.

I- Na conversa com a técnica você disse que já morou na rua. Por quanto

tempo?

Já. Por cinco dias só. Ficar na rua é passar fome, sentir frio, não ter nenhum

lugar para ficar. E eu estava sozinho, aí juntei num amigo. Fiquei com ele. Eu

confiava nele. Minha escola é a rua. Chegue à Sé e pergunta se alguém me

conhece? Todo mundo me conhece lá. Eu conseguia dinheiro no furto mesmo:

entrava no mercado. Era fazer isso ou passar fome: um dos dois. E não ficava

no sinal pedindo. Queria ir no mais fácil.


122

I- E esse momento não foi pior que na Fundação?

Foi nada. Preferia ficar na rua a ir para a fundação.

I- Você tinha falado que antes da rua você estava em um abrigo. Por que você

fugiu de lá?

Porque eu não gostava de lá. Não conversava com ninguém. Eu odeio

conversar. Eu não tenho muito a dizer.

I- Mas, você tem uma vida tão rica…

Se eu contar minha vida, dá pra fazer um filme…

I- Dá pra resumir o filme? Porque eu fiquei curiosa.

Vou contar desde a barriga da minha mãe. Prepara os ouvidos porque eu vou

ficar aqui dois anos contando minha história. Quando eu estava na barriga da

minha mãe ela usava todo tipo de droga: cocaína, crack, lança, farinha, tudo.

Por isso que eu nasci assim: já dependente químico. Assim que eu nasci, fiquei

internado dois meses porque faltava sangue pra mim. Aí eu fui crescendo.

Quando cheguei à fase dos quatro anos eu tive rubéola, que é aquela bolinha

que nasce na pele, e catapora. Isso mesmo. Quando eu fiquei com catapora

fiquei com febre na cama. Curei sozinho, minha mãe não cuidou nada. Quando

eu fiz cinco anos, meu pai foi embora. Ele falou assim para minha avó: ‘’mãe,

pega esse menino da favela porque ele não serve para isso não, ele tem que

ficar aqui’’e saiu. Aí, quando eu fiz nove anos, ganhei uma moto e um prisma.

Veio lá do Ceará. Aí chegou num caminhão cegonha. Lembro até hoje. Mas

voltou. Eu quis ficar na vida das drogas. Desde aquele dia, desde os nove
123

anos, eu comecei a usar maconha. Minha mãe já sabia. Descobri sozinho a

maconha. Eu usava na rua mesmo. Não tinha cigarro pra fumar, aí eu fui à

biqueira e falei: ‘’tem cigarro do verde aí?’’. Ele falou: ‘’tem’’. Eu falei: ‘‘me dá

um?’’. Ele falou: ‘‘tem que bolar, você sabe, não é?’’. Eu falei: ‘‘Como que faz

isso?’’. Aí tá. Aí quando fiz dez anos, foi minha primeira baforada no lança. Aí

aos onze anos fui para cocaína. Doze, já estava usando LSD na veia, pra

injetar com cocaína. Aí minha vida acabou e até hoje eu não tenho mais

histórias para contar.

I- Sua história se resume as drogas então?

Em drogas. A única droga que faltou eu usar é o crack. Já tomei heroína na

veia, cocaína, doce, balinha, LSD.

I- E essas suas amigas? Elas se drogam também?

Drogam nada. Aqui, ó. Tem até a marca da cocaína no celular bem aqui.

Tocando música eu coloco aqui. Pego a metade do dinheiro e vou lá comprar.

Cem reais de cocaína, mais cinquenta de maconha.

I- E onde você arruma esse dinheiro?

É do meu suor. Divido para comprar roupas, comida e drogas.

I- Mais alguma coisa? Nesse tempo, você já passou por dois abrigos, né? Não

tinha gente para você trocar ideia? Para te ajudar?

Todo mundo usava. As pessoas preferem julgar a ajudar a outra. Tipo assim: a

sua rua tem “zé polvo” (sic)? Pessoal que fica de olho, fofocando da vida dos
124

outros? Tem muito? Velhinho? Na minha é tudo novinho. Se você passa lá

meia noite estão todos com as janelinhas abertas. Aí você pega o rojão e só

faz assim na janela ‘‘psi’’ [onomatopéia]. Aí o maluco vai lá e explode tudo. Aí

no outro dia ele chega com o cabelo todo queimado e você fala assim: ‘’o que

foi isso?’’ Aí ele: ‘’então foi você que jogou o rojão em mim?’’ Todo mundo já

sabe e fala: ‘’Ê, Zé polvo! Tava Zé polvando” (sic). Lá em casa tem um estoque

de rojão assim. Chego lá eu só vou passando de janela em janela.

I- E o Zé polvo fofoca muito e julga muito sua vida?

Tem muita gente para julgar, mas ninguém para ajudar. Que nem outro dia...

Lá no lava-rápido tem um pebolim, né? Que é a máquina de jogo. Aí, a gente

coloca o copo de cachaça em cima, né? Que é o copão todo. As crianças vêm

jogar. Aí tem uma menina que falou para o pai do moleque: ‘‘Estão dando

bebida lá pro seu filho’’. Sendo que o copo tava parado, né? A gente nem tinha

dado nada. O moleque estava bebendo guaraná. Aí o pai do menino já veio

falando assim: ‘’você está dando cachaça pro meu filho, é? Vagabundo’’. Aí,

eu falei: ‘’Não estou! Olha meu copo aqui e olha o dele. ’’

I- Quem mais te julga?

Minha mãe, minha avó, minhas irmãs, meu pai, meu padrasto... Todo mundo.

Minha mãe fala que eu sou um “nóia” (sic) da vida. Eu falo: ‘’nóia’ (sic) era você

que usava pedra, eu não uso pedra’’. “Nóia” (sic) é quem usa pedra, não quem

usa maconha. Maconha é legalizada, vende na padaria já. Até na farmácia tem.

I- Você acha que aqui no CEDECA todo mundo te julga?


125

Claro que julgam. Falam para o juiz tudo que eu faço. Na Fundação me

julgavam. Mas eu ficava quieto. Eu não tinha direito de falar nada. O que eu

aprontei eu estava pagando.

I- Quem não te julga então?

Só Deus. Deus não me julga.

I- Você acha que eu estou te julgando agora?

Não está. Se bem que, pior que está sim. Porque eu estou falando tudo que já

aconteceu comigo. Você agora pode estar pensando na sua cabeça: ‘‘esse

menino não vai ser boa coisa quando crescer’’.

I- Você acha que eu nunca fui adolescente?

Vixi. Você ainda é adolescente. Tem uns 20. Você é adolescente ainda. Até os

20 ainda é. Porque dessa coisa que você é... Esse bicho ai mesmo:

fonoaudióloga.

I- E você acha que nunca fui então? Já fui, já fiz muita “cagada” (sic).

Só não fez mais que eu. Você já matou uma pessoa para ganhar cinco mil

reais? Viu? Mas ainda não aceitei. Cheirou cocaína já? Viu? Maconha você

conhece, porque o negócio é bom de mais. Porque é um mato, é natural.

Cocaína é um comprimido. Só você pegar um comprimido, amassar e cheirar.

Que nem lá em casa, tem uns comprimidos da minha mãe. Só bater no

liquidificador. Um dia ela descobriu. Ela achou todas as cápsulas já.


126

I- Você se julga?

Eu não. Quem pode me julgar é Deus ou o Diabo. O diabo porque eu sei que

vou para o inferno. Todas as besteiras que eu já fiz. Não vou me redimir não.

Porque eu não gosto de me redimir É ganância. Eu tenho ganância. Olha, eu

desejo o mau para os outros. O que me faz mal tem que ser pago com mal.

Parte do MEEM:

I-Viu? Você tá acertando tudo.

“Não sou inteligente não. Só sei porque eu tenho 16 anos.” É que eu to

pensando e eu não tenho mania de pensar”.

I- Agora a parte das continhas. Pensa em dinheiro que é mais fácil. Você tem

‘’trinta conto” (sic).

Tenho trinta reais. Com dinheiro eu não erro, filha.

Eu tenho vontade de entrar no exército. Para entrar no exército não pode ter

sido preso, não pode ter tatuagem. Eu tenho um coringa aqui. Para servir o

crime, para saber tudo. Quero ganhar dinheiro. Se eu quero ser do crime, eu

quero ser coisa grande.

FRASE MEEM

“Romeu e Julieta, vamos lá.” Ser ou não ser, eis a questão. Você nunca

assistiu Romeu e Julieta não?

I- Gabriel, você é ou não é?


127

Não sou. Não sou egoísta. Eu não sou chato. Eu sou humilde e sou quieto.

Quieto em primeiro lugar. O que eu sou? Sou nada além de Deus. Deus é mais

que meu pai. Meu pai celestial. Olha que eu sou espírita e eu nem creio em

nada. Meu pai do lado espírita é o Zé pilinho, minha mãe é a pomba-gira,

minha avó é a Maria Padilha, meu tio é o Exu. Exu diabo, sete facadas, Exu

mirim. Quando entrou santo em mim, nós fomos logo para o centro. Entrou o

Zé pilim. Eu estava muito louco, aí o bicho entrou em mim, e eu comecei a

beber e fumar. Deus continua sendo meu pai. E ele não tenta me tirar da

confusão não, ele não gosta de mim, tia. O Diabo agora deve ta rindo lá

embaixo de tudo que eu já fiz, de tudo que eu já roubei. Comigo o Diabo se

diverte. Sou do “capiroto” (sic).

Desenho

Eu sei desenhar tudo. Já desenhei o Popeye, já fiz grafite.

I- Quem é a pessoa mais importante da sua vida?

A Giovana.

I- Quem é a pessoa que te dá vontade de seguir?

A Vitória. Minha filha. Tem um ano. Não te falei. A mãe é uma doida do São

Mateus. Ela nem fez DNA ainda para saber se é minha. Ela não vai nem saber

meu nome. Quando eu vou fazer uma coisa errada eu logo penso: “tenho uma

menina pra criar”. Isso me segura. Já me segurou muitas vezes. Tipo, tenho
128

que brigar com alguém, aí você pensa que tem uma pessoa pra você criar. Aí

você não vai fazer mais nada.

I- Algumas pessoas que eu conversei deixaram uma mensagem sobre

qualquer coisa. Tem alguma coisa que você queira falar?

Que o crime não compensa. Porque uma hora você tem muito dinheiro, outra

hora você pode ir pra dentro do caixão. A morte pode chegar a qualquer hora.

Só penso que se Deus quiser fazer um mundo melhor, tem que parar com o

crime.

I- E você acha que as pessoas olham diferente pra você?

Sim. Olham com medo. Ninguém quer conversar comigo porque tem medo.

Até meus amigos me falaram isso. Todo mundo tem medo. Quando estou

passando perto de uma pessoa, uma mulher com a bolsa assim, aí a mulher

puxa já a bolsa. Só pra ver se você dá o bote. Isso dá vergonha.

I- O que dá vontade de falar pra ela?

Não sou disso não, minha filha. Sou tranquilo, sou daqui mesmo. Se eu

quisesse roubar eu roubava coisa grande. Ia ser esse pessoal coreano, que

nem aquele pessoal que sequestrou. Levou um montão de dólares.

I- Mais alguém tem medo de você?

Se contar, todo mundo.

I- Você tem medo de alguém?


129

Tenho nada. Só de Deus. Nem do Diabo eu tenho.

Sem-perna

I- As pessoas têm alguma reação ao te ouvir?

Cara de espanto, tipo: 'sem noção', 'por que ele fez isso?', 'nossa que menino!'.

Porque não é normal, né?

I- Você entende tudo que as pessoas falam com você? Tanto na escola,

família, Cedeca, trabalho, amigos etc.

A maioria das palavras sim. Algumas vêm de dentro da fundação, da cadeia e

eu não entendo tudo. Outras eu já sei. Como as palavras perplexo e absurdo:

Perplexo é tipo: “Mano, perplexo isso aí'”.

I- Como é sua escrita? Você tem alguma dificuldade?

Tipo, só nos acento, nas palavras que não sei ainda escrever, ainda no

português.

I- Quem são as pessoas que você mais conversa?

Pra ser sincero, com Deus, mano. Todos os momentos. Mas, de ser humano

assim é com a Nicolly, minha namorada. Na escola converso de boa, com os

professores. Quando estou bravo, gaguejo muito. Na minha rua tem um cara

que me chama de gago. Deve ser porque meu pai é gago, meu tio também e

eu gaguejo quando estou nervoso.


130

I- Você usa muitas gírias? Ou um jeito de falar que só seus amigos te

entendem?

Nem em todo lugar eu falo do jeito que falo, em casa eu falo normal. Com a

namorada eu falo diferente, mais educado. Na rua já falo usando gírias. Com

certas pessoas, sou arrogante, já boto os pingos nos 'Is'. Com certas pessoas

já falo nas gíria, com quem conheço. Mas, não sou de falar gíria assim. Com

minha mãe falo gíria. Quando vou numa entrevista de emprego já sou bem

diferente: já vou treinando no ônibus, mas antes ficava todo nervoso. Acho ruim

falar gíria. Por exemplo: "zú é zuado; masseio é mentiroso; mano; irmãozinho;

aliado é um amigo muito confiável; palavras não cabíveis, falo quando as

palavras são inadequadas; sazon é quando o cara que só tempera a mina e o

outro vem e come, uso beijão para isso também.

I- Como é a sua conversa com pessoas diferentes de você? Pessoas mais

velhas, professores, no cedeca, fundação etc.

Eu tento ser o mais educado possível. Diferenciar meu modo de falar. Ao invés

de falar mano, eu falo senhor.

I- Como é sua conversa com seus amigos?

É assim: seu “cuzão do carai” (sic.) (risos). Tem hora que nós estamos

trocando idéias e falamos: “você só fala de muié”, “mó beijão”, “sazon”.

I- Eles te compreendem? Você se sente bem com eles?

Não me sinto bem com todos. Porque amigo nós temos, mas nós não sabemos

quem está do nosso lado de verdade.


131

I- Você acha que a sua comunicação vai te ajudar a atingir seus objetivos para

o futuro?

Acho que não. O jeito que eu falo na gíria não vai me levar a lugar nenhum. É

um jeito feio de falar, de maloqueiro, de gente que fica na rua.

I- Você gostaria de falar mais alguma coisa?

Que apesar do jeito que a gente fala, anda e se veste, isso não quer dizer

nada. Nós todos somos iguais. A gente não é mau elemento. Quem não é de

estar com a gente do dia-a-dia fica até com medo de falar com a gente. Fica

com medo de roubarmos ele. A gente também tem pensamento, tem

sentimentos, a gente também chora, também ri.

Frase que escreveu para o MEEM

Vivo somos traído, preso esquecidos, morto caímos na lembrança.

Que é pura verdade! Preso nós somos esquecidos, ninguém lembra da gente

lá dentro, quando a gente morre todo mundo lembra de nós. Foi um preso que

me falou assim que entrei na cadeia.

I- Quer escrever outra frase que você gosta também?

Faça a diferença que você quer ver no mundo.

Eu acho que é fazer a diferença só, no mundo. Eu gosto dessa frase e é muito

difícil fazer isso.


132

João Grande

I- As pessoas têm alguma reação ao te ouvir?

Depende da situação. Dependendo do momento, se eu estou tirando uma

distração, vai alegre.

I- Você entende tudo que as pessoas falam com você? Tanto na escola,

família, Cedeca, trabalho, amigos etc.

Sim. Só gosto que vá direto ao ponto.

I- Como é sua escrita? Você tem alguma dificuldade?

Nenhuma. Só não sei escrever de letra de mão. Só de forma.

I- Quem são as pessoas que você mais conversa?

Só em casa ou no celular. Falo muito no celular.

I- Você usa muitas gírias? Ou um jeito de falar que só seus amigos te

entendem?

Muitas não. Eu sei a ocasião que eu posso usar gírias. Como quando estou

bravo, falo palavras desnecessárias, como palavrão.

I-Como é a sua conversa com pessoas diferentes de você? Pessoas mais

velhas, professores, no cedeca, fundação etc.

Normal.

I- Como é sua conversa com seus amigos?


133

Normal também. A mesma coisa em todos os lugares. Sou uma pessoa só.

I- Eles te compreendem? Você se sente bem com eles?

Sim, sim. Atende normal.

I- Você acha que a sua comunicação vai te ajudar a atingir seus objetivos pro

futuro?

Claro que vai. Porque to mostrando quem realmente sou. Não sendo uma

pessoa falsa, sem demagogia. Se eu sou uma pessoa com você, sendo outra

pessoa, to agindo com demagogia, atrás das suas costas.

Frase que escreveu para o MEEN

Abacaxi ao vinho

Querido-de-Deus

I- As pessoas têm alguma reação ao te ouvir?

Não

I- Você entende tudo que as pessoas falam com você? Tanto na escola,

família, Cedeca, trabalho, amigos etc.

Não entendo muito não. Tipo assim, você tá explicando e você tem que

explicar com detalhes se não eu não entendo. Na fundação uns eram

ignorante.

I- Como é sua escrita? Você tem alguma dificuldade?


134

Às vezes troco as letras tipo s por ç. Só gosto de escrever algumas coisas.

Como, na escola eu não gosto de escrever.

I- Quem são as pessoas que você mais conversa?

Com meus amigos.

I- Você usa muitas gírias? Ou um jeito de falar que só seus amigos te

entendem?

Uso.Como: mano, tio, se é loco, mó tiração, ta me tirando. As minhas amigas

falam gíria.

I-Como é a sua conversa com pessoas diferentes de você? Pessoas mais

velhas, professores, no cedeca, fundação etc.

Converso de tudo. No Cedeca gosto de conversar com o pessoal, ás vezes

eles falam muito e isso me cansa. Minha relação com a família não é muito

boa. Converso, às vezes com meu pai, dificilmente. Brigamos muito, porque ele

tem uma mulher e a gente não se dá bem. Ela é muito ruim. Minha mãe foi

embora quando eu era pequena e minha família é só eu e meu pai.

I- Eles te compreendem? Você se sente bem com eles?

Os amigos falam gíria. Conversamos de tudo.

I- Você acha que a sua comunicação vai te ajudar a atingir seus objetivos para

o futuro?

Sim, eu acho.
135

Frase que escreveu para o MEEM

Saudade dos velhos tempos dos velhos momentos que se foram com o tempo.

Foi uma frase que vi no Facebook.

Pirulito

I- As pessoas têm alguma reação ao te ouvir?

Não. Porque só ando com pessoas que falam gíria. Então, não é estranho.

I- Você entende tudo que as pessoas falam com você? Tanto na escola,

família, Cedeca, trabalho, amigos etc.

Entendo, normalmente

I- Como é sua escrita? Você tem alguma dificuldade?

Não. Minha letra é um pouquinho de médico. Gosto de escrever e ler também.

Mas, não em voz alta porque se não eu começo a gaguejar.

I- Quem são as pessoas que você mais conversa?

Minha mãe e minha avó

I- Você usa muitas gírias? Ou um jeito de falar que só seus amigos te

entendem?

Não muito. Só mano, que é a gíria que eu mais falo.

I-Como é a sua conversa com pessoas diferentes de você? Pessoas mais

velhas, professores, no cedeca, fundação etc.


136

Falo do mesmo jeito que falo na rua. Na gíria, na mesma forma. Não muda

nada.

I- Como é sua conversa com seus amigos?

Acho que é normal.

I- Eles te compreendem? Você se sente bem com eles?

Entende bem. Não, mas não me sinto bem com eles porque eles conversam

muito de roubo ou de assalto. E isso não é boa conversa. Todos os meus

amigos falam disso desde criança. Já na minha família eu falo sobre tudo.

I- Você acha que a sua comunicação vai te ajudar a atingir seus objetivos para

o futuro?

Não porque eu uso muita gíria e tem lugar que não entra gíria. Não sei explicar

isso.

Frase que escreveu para o MEEN

Tudo posso naquele que me fortalece


137

ANEXO 8 - DEPOIMENTOS DOS PROFISSIONAIS

Profissional 1

Tem uma questão com alguns adolescentes que é pensar nos dois anos de

internação fora do território e quando ele volta está tudo muito diferente: alguns

dos seus companheiros, que cresceram juntos, vieram a óbito, outros em

regime de internação, se sentem perdidos em relação ao que aconteceu. Tem

uma questão da idade também. Porque é diferente você conversar com um

menino de 18 anos, que também tem as dificuldades de desenvolver um

diálogo. São muito objetivos, falando ‘é’, ‘não’, ‘tá suave’. Mas, tem uma coisa

que é fazer o atendimento aqui nesse espaço. Isso deixa os meninos assim:

‘Ela precisa ouvir isso’. Quando você sai para alguma atividade externa com

alguns meninos, é outra coisa. É um processo muito natural deles verbalizarem

várias coisas. Só que quando está dentro da sala do atendimento é desse jeito.

Agora, tem alguns meninos que já cumpriram medida conosco então é

diferente. Já conseguem verbalizar. Outra coisa é o atendimento no coletivo:

quando você faz um atendimento com um grupo de cinco meninos, é outra

coisa. Então, acho que tem a questão do espaço: pensar em uma sala de

atendimento. Que tem a ver com a relação dele com o atendimento, que é para

cumprir a medida. Então, quando você sai para fazer o atendimento é outro

espaço. Para isso, a gente pensa em sair com os meninos, quando você está

construindo o vínculo. Porque eles vêm muito com a visão da Fundação CASA.

Mas, como você vai dar algumas informações quando o adolescente está
138

chegando na instituição sem ter essa imagem? Porque o atendimento é em

relação às medidas, então isso acaba sendo repetitivo e você fica com uma

visão daquele adolescente. Fora, tanto você quanto ele conseguem pensar em

outra maneira a respeito das coisas. Você muda sua visão sobre ele.

Profissional 2

Na oficina tinham algumas barreiras, primeiro, à minha pessoa que é quebrar

essa ideia de que não sou polícia, ou como o pessoal da Fundação CASA.

Então, primeiro eu preciso quebrar essa imagem de quem eu sou. Segundo, é

a respeito da instituição. Tenho que falar o que é o CEDECA e qual é a linha de

trabalho. Que não está aqui para prejudicar esse garoto. Depois, com os

técnicos: dele entender que a equipe está do lado dele. Quando fui para UBS,

para fazer as oficinas lá, mudou também. Tinha que pensar como integrar a

mim, a UBS, o CEDECA em todo esse espaço. Porque era um lugar estranho

para eles. Não tinham o costume de frequentar lá. Antes, eu fazia a construção

de jogos com materiais recicláveis. Na UBS, eu mudei a ideia de acordo com o

que os meninos queriam. Me pediram para fazer pipa e fizemos por bastante

tempo. Após o processo de mostrar quem eu sou, que você consegue ter uma

confiança. Ele se demonstra de outra forma. Consegue trazer mais demandas.

Por mais que a oficina tenha o objetivo do menino construir algo, está para

além disso. Está para que o menino consegue discutir em cima disso. Então,

tem a liberdade de não focar só na atividade. Com o diálogo que eu tenho com

eles é diferente, porque eu não tenho as questões burocráticas. O que eu

converso com ele é mais natural, de trazer um pouco de mim, do que penso.
139

Onde eu moro é outra coisa, que é no samba na laje. Eles ficam: ‘Ah, você

mora lá?’ Porque sabem que também não sou besta. Eu entendo das coisas

[da comunidade]. Nunca tive um olhar diferente para eles, desde quando entrei

nunca associei a infração. É um desafio de descobrir quem é esse moleque.

Nunca olhei como menor infrator, delinquente. Alguns eu até falo: ‘você tem

que entender que é algo que você fez e não o que você é’. O meu olhar

sempre foi dessa forma. Nunca julguei, apontei. Sempre tento entender qual é

a forma com que ele chega.

Profissional 3

Acho que em relação à comunicação eu tenho muita dificuldade, porque eles

têm uma linguagem própria deles, de grupo. Que eles utilizam nas ruas e em

casa. Então, o vocabulário, como as gírias, eu não entendo metade. Também,

são poucas palavras. Eles reduzem muito as falas em poucas palavras. Fico

pensando em como eles reelaboram uma linguagem própria, pois se

comunicam perfeitamente. Sou eu a estranha. Então, eu tenho essa

dificuldade, mas eu procuro não falar como eles. Acho que não vai acrescentar

nada no atendimento, se eu começar a usar as gírias exageradamente. Coisas

do meu vocabulário eu falo. Eu digo abertamente que não entendi e eles

explicam sem problema. Acho que assim tem uma aproximação, porque ao

demonstrar como sei eu não demonstro de forma preconceituosa. Pois, é para

eu me aproximar, ver como eu entro. Ao perguntar eu tento me aproximar e

isso tira um pouco as barreiras. Em relação ao conteúdo da fala deles, é difícil.

Porque é própria da adolescência não querer ficar se expondo. O fato de falar


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do que estão fazendo, se estão indo para escola, para o funk, para praça,

mesmo o contexto familiar também trazem. Eles falam da forma deles, mas não

deixam de falar. Comigo eles não falam palavrão porque acho que eles sabem

para quem eles falam. Também, eles falam muito aquilo que a gente quer

ouvir. Por exemplo, se eu perguntar se estão usando algum tipo de substância,

a maioria fala que não. Aí, eu começo a puxar a quantidade, os problemas que

isso gera.[...] O que choca é pensar que eles continuam, que lá fora é muito

mais intenso. Aqui a gente está só uma vez por semana. Às vezes, mora em

uma situação de precariedade é tão grande que não tem como imaginar como

sobreviver a isso. Isso desanima, pois é difícil reverter isso. Para alguns eu falo

que o tempo de vida nesta vida é menor. Quando morre algum deles a gente

fica mais agressiva assim, de perguntar se é isso que ele quer. Mas, é mais um

desabafo meu do que ele processar essa informação. Talvez, em algum tempo

só eles processem isso.

Profissional 4

Eu busco no atendimento uma comunicação mais próxima a deles, para que

compreendam o que queremos questionar e também para criar um vínculo.

Uso a linguagem da comunidade por ser moradora da comunidade. Para mim é

mais fácil, pelas gírias, coisas que trazem, como nomes de ruas. Eles não

conhecem as ruas pelos próprios nomes, só por apelidos ou números. Alguns

sabem que sou da comunidade por me verem na rua ou por conhecerem minha

família, meu irmão adolescente. Por um lado é positivo por apresentar

possibilidades de mudança: por ser uma referência de que saí da comunidade


141

para buscar outras coisas. Para outros, pode ser como estar perdida por aqui.

Mas, acho que a maioria não, porque muitos eu conheço desde a infância e

tenho esse contato.

Profissional 5

Para mim, a linguagem muda em diferentes lugares, por mais que o idioma é o

mesmo. Então, primeiro eu tenho que me apropriar da forma formal e também

ter a vivência de rua, já que a adolescência inova a língua. Então, você tem

que ser um pesquisador do próprio idioma. No meu caso, que andei de skate,

movimento hip-hop e sarau de poesia, me colocou na rua com diferentes tipos

de pessoas. Então, minha questão é saber me comunicar em qualquer

diversidade. Os espaços para isso são com os próprios adolescentes, por meio

das gírias e modos de falar. É um constante estudo pessoal. A forma da

linguagem não está dissociada ao conteúdo, então quando estou na figura do

educador [quando dá aulas], minha forma de expressão precisa ser muito mais

formal, para atingir mais pessoas. Então, atrelado ao conteúdo que tenho que

passar, utilizo uma forma mais formal. No contato direto, eles vão trazer qual é

a melhor forma de me expressar para conversar com eles. Pois, de acordo com

a máxima de Paulo Freire, em que se aprende ensinando, descobri que eu

tenho que entender qual é a melhor forma de me comunicar com ele. Isso abre

portas. Tanto que em alguns espaços as pessoas me escolhem por saber falar

com o magistrado até o cara que está na rua. Isso é interessante e às vezes

pesa. Pois, você sempre é a voz nos lugares. Falar como igual não é me tornar

igual. A questão é que nunca vou falar igual, pois a língua é algo fluido. Tem
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que soar natural. O que me qualifica estar na rua é estar na rua, que faz parte

da minha trajetória. Eu não forjo o modo de falar. Tanto que em alguns

momentos em que as gírias são diferentes, eu vou até o meu limite. Se não,

seria falso. Mesmo quando eu conheço a forma de falar, eu não me torno um

igual, pois no nosso papel seja um educador ou professor, a gente está em

outro patamar em relação a eles. Você nunca pode nivelar por baixo para ser

igual. A busca de se comunicar seria tornar aquela ação comum. Se não, você

negaria o indivíduo de se comunicar com outras pessoas. Acho que a

linguagem é muito mais fluida. Na oficina, quando se tem uma ação comum, te

qualifica e coloca você e o adolescente no mesmo patamar em relação ao

objetivo. Isso, de acordo com o conteúdo técnico e de vida, ajuda aprofundar o

vínculo. Quando eu fazia os atendimentos individuais, muitas coisas vinham do

meu conteúdo técnico, como explicar para o adolescente o conhecimento dos

efeitos das drogas no cérebro e como fazer para prevenir tais efeitos. Então, eu

poderia aplicar esse conhecimento técnico e sair da posição de juiz para uma

parceria. O que, também, gerava um problema que era do adolescente te ver

como um suposto amigo. Onde ele pode falar tudo que faz que eu não faria

nada. Como em um dia que eu fui fazer uma visita e o adolescente me contou

que só estava fazendo ‘saidinha de banco’, me mostrou a roupa e disse que

fingia para a mãe que ia buscar emprego. Isso me deixou em crise, porque eu

não sabia como lidar com isso. Não posso aceitar, mas também não quero

denunciar. O que eu fiz, nesse caso, foi conversar sobre o projeto de vida:

fazer ele imaginar no futuro e em qual projeto que ele tem para chegar ao seu

objetivo. Eu não tinha outra saída alem da reflexão. Uma vez passei por uma

situação polêmica com um cara que era do tráfico e não queria sair dessa
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situação. Fiz uma reflexão com ele sobre o quanto ele ganha e onde quer

chegar. Calculamos o quanto ele ganhava no tráfico e disse que se ele gosta

de vender drogas, ele vende qualquer coisa. O problema disso foi que a equipe

disse que eu estava gestando o dinheiro do trafico. Pois, se ele contasse para

o juiz isso seria o problema. Então, o que é difícil é se aproximar do

adolescente, criar um vínculo, e depois saber o que fazer com essa informação

que você escuta. Isso mudou minha forma de lidar com alguns adolescentes,

do tipo me privar de certas informações. Outro problema em ter vínculo e ser

referência é personalizar um serviço público em pessoas. Isso me fez sair.

Porque eu cheguei também no meu limite pessoal. Fiquei até neurótico em

achar que todos os adolescentes estavam envolvidos com a criminalidade. Por

isso, saí da função de técnico e fui para a área da cultura. Cheguei ao meu

limite.

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