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COMUNICAÇÃO

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O CARNAVAL
DAS IMAGENS
Coleção Primeiros Passos

A Linguagem Autoritária O que é Comunicação


Televisão e persuasão Juan E. D. Bordenave
Maria Thereza Fraga Rocco
O que é Cultura
Memória da Telenovela Brasileira José Luiz dos Santos
Ismael Fernandes
O que é Indústria Cultural
Telenovela Teixeira Coelho
História e Produção
Renato Ortiz, José M. Ortiz O que é Vídeo
e Sílvia Borelli CândidoJ. M. de Aimeida

Um País no Ar
História da TV brasileira em três
canais
Alcir H. da Costa, Inimá F. Simões
e Maria R. Kehl
ARMAND E MICHELE MATTELART

O CARNAVAL
DAS IMAGENS
A FICÇÃO NA TV

tradução:
Suzana Calazans
revisão técnica:
Dulcília H. S. Buitoni

editora brasiliense
Copyright O by La Documentation Française, Paris, 1987.
Título original em francês: Le Carnaval des Images
Copyright O da tradução brasileira: Editora Brasiliense S.A.
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,
armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada,
reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem autorização prévia do editor.

Primeira edição, 1989


1º reimpressão, 1999

Copydesk: Maria de Fátima M. Couto


Revisão: Gilmar Corazza e Maria da Graça M. Couto
Capa: Ettore Bottini

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Matterlart, Michéle
O carnaval das imagens : a ficção na TV /
Michéle Matterlart, Armand Mattelart ; tradução
Suzana Calazans ; revisão técnica Dulcilia
H.S. Buitoni. -- 2. ed. -- São Paulo :
Brasiliense, 19986.

Título original: Le carnaval des images.


Bibliografia.
ISBN 85-11-22025-9

1. Comunicação - Aspectos sociológicos


2. Teledifusão - Aspectos sociais - Brasil
3. Telenovelas - Aspectos sociais - Brasil
4. Televisão - Brasil I. Mattelart, Armand.
II. Título.

98-4800 — CDD-302.23450981
Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Televisão : Aspectos sociais :


Sociologia da comunicação 302.23450981
2. Brasil : Televisão e sociedade :
Sociologia da comunicação 302.23450981

editora brasiliense s. a.
Rua Airi, 22 — Tatuapé
Cep 03310-010 — São Paulo — SP
Fone / Fax: (011) 218-1488
E-mail: brasilienseeditQuol.com.br
Sumário

DRE E io paia asia Eai a EO So

I. A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO
TEM ema Narrativa Elsa ques cats sé RO ondiros - a
Uma comunidade emocional
Falsas continuidades
A apropriação de um gênero

2. A Formação de uma Indústria Nacional de Televisão ... 55


À construção de uma rede
A ascensão irresistível de um grupo de multimídia
Um símbolo nacional do espírito empresarial
Estado autoritário, mercado e estética do espetáculo

NO Sepredosíde Fabricação PD... cnc.


A gestão das audiências
Uma obra aberta?
A censura e o poder do texto
O merchandising: tudo é suporte, tudo é mídia
Publicidade e modernidade
Um monopólio em ação
Um gênero em crise?
II. O VÍNCULO SOCIAL
. Memória Nacional e Memória Popular .............. 97
O retorno ao valor de uso
A questão do populismo: o mal-estar da teoria

« Novela é Sociedades... ss senioo a A 111


O impacto de um gênero
A crise da representação do social
Os intelectuais, a esquerda e a televisão
O populismo: questão antiga, novo debate
O retorno da emoção

II. DESESTATIZAR O PENSAMENTO


. À Televisão enquanto Modo de Organização ....... «. 147
Uma concepção de aparelho
A questão das determinações
Pensando o dispositivo

- O Pensamento: Téchicoll. asso IES.


A cds vs 167
Uma gestão ótima
A relação com as audiências
O fim das grandes narrativas?
O neoliberalismo em teoria

. A Construção de um Povo-Público ................ 189


O gênero como categoria étnica
Um gênero suspeito
O desafio pós-moderno
Prefácio

Sábado à noite, 14 de junho de 1986. Há uma grande mani-


festação do movimento anti-racista na praça da Bastilha em
Paris. É uma emissora de televisão privada, recentemente inau-
gurada no país, que transmite fielmente a festa e o espetáculo.
Associada financeiramente a esta noite da grande concentração
contra o temor da identificação, a transmissão ao vivo vai contri-
buir eficazmente para divulgar uma França que se deseja plura-
lista, pluriétnica e pluricultural. A emissora privada não renun-
ciará, contudo, aos intervalos publicitários. Na praça, do outro
lado do palanque, uma tela gigantesca projeta, a intervalos regu-
lares, vinhetas que destacam a colaboração dos cantores e músi-
cos convidados para animar a noite. Aclamando os artistas, a
multidão responde, seja vaiando os comerciais que fazem mágicas
com montanhas de espuma que lavam “mais branco”, seja aplau-
dindo os que exaltam a vida com “cores mais vivas”.
Nos países ainda ontem submetidos à regra única do sistema
estatal de televisão, exemplos como este mostram que sistema
privado e mercado não evoluem necessariamente isolados das
instabilidades da sociedade civil.
Tal exemplo pode ser útil tanto para encerrar prematuramente
um debate como para iniciá-lo. Graças à transformação da paisa-
gem audiovisual, a celebração unívoca das virtudes democráticas
do mercado pode efetivamente tomar o lugar da exaltação, tam-
bém unívoca, das virtudes pluralistas por natureza das institui-
ções estatais e paraestatais. Talvez seja hora de substituir algu-
8 A. e M. MATTELART

mas perguntas inquietantes: “Para onde vai a televisão estatal?


Qual é o futuro das relações entre o Estado e a televisão?” por
outras: “Que acontece com o setor privado? Para onde vai ele?”
O que supõe admitir de início duas coisas: o mercado não é um
setor isolado da sociedade, como pretendia um grupo favorável
à estatização, encurralado em suas últimas trincheiras; nem
tampouco o mercado constitui a sociedade toda, como quer fazer
crer o economismo neoeliberal que o propulsiona como o grande
Regulador.
À televisão torna-se internacional. Isto é, as normas de produ-
ção e de distribuição de programas se generalizam em função
de um mercado global. Esta internacionalização é de uma lógica
tão impositiva que, por si só, autorizaria a parar aqui: no caráter
globalizante do novo processo de produção dos bens materiais e
simbólicos. Entretanto, nesta época de universalização das nor-
mas, nunca se sentiu tanto a necessidade de observar a maneira
concreta e particular pela qual cada sociedade se articula na rea-
lidade envolvente do mercado e das trocas internacionais. Esta
necessidade é tão perceptível porque, em primeiro lugar, corres-
ponde ao desejo de escapar à visão apocalíptica da diluição do
particular no universo cosmopolita desterritorializado. E também
porque corresponde à necessidade de compreender como as dife-
renças entre as sociedades e os grupos humanos e entre as cultu-
ras se recompõem e se expressam dentro desta lógica de integra-
ção a um mercado mundial; como trabalham os processos parti-
culares de aclimatação aos novos dados técnico-científicos. Quais
são os modos de apropriação desse movimento de transnaciona-
lização das trocas comerciais? .
Tanto quanto de uma economia política do mercado televisivo
e da produção audiovisual, não se necessita cada vez mais de uma
antropologia política desse mesmo mercado? Esta antropologia
restabeleceria a conexão entre o mercado e a experiência vivida,
concreta e conflituosa dos grupos sociais, seus interesses, seus
gostos autênticos ou impotsos, em evolução espontânea e/ou
controlada.
Foi em vão que o mercado lutou para se tornar o padrão-ouro
da internacionalização das economias e das culturas e o vetor de
universalização, uma vez que os mercados não são todos inter-
PREFÁCIO 9

cambiáveis. Se a busca de bom desempenho na era eletrônica


tende a ditar uma nova utopia comum — a utopia pragmática
—, cada sociedade tem sua própria maneira de chegar a ela,
através da história particular das relações entre a cultura instituí-
da e as culturas populares, entre a racionalidade industrial e o
simbólico. São estas histórias particulares — sobre as quais se
tem a tendência de silenciar para discutir apenas técnicas, custos
e operacionalidade — que fazem com que, na bolsa de programas,
certas televisões sejam mais cotadas do que outras, cheguem a
vender em muitos mercados, apesar da presença sempre hegemô-
nica da indústria audiovisual norte-americana. E isto enquanto
outras indústrias nacionais estão ainda à procura de sua identi-
dade no mercado mundial de programas. -
Este livro tem duplo objetivo: primeiro, analisar a formação
do dispositivo televisivo comercial brasileiro e a de um gênero
— a novela. Em seguida, estabelecer algumas referências teóri-
cas a fim de melhor contornar os riscos atuais de uma reflexão
crítica sobre as transformações que afetam hoje em dia a te-
levisão.
Nos países da Comunidade Européia, na aurora da privatiza-
ção, começa-se a entrever a complexidade das relações entre te-
levisão e mercado, Estado e mercado. Neste contexto, a observa-
ção de certas indústrias do vídeo, desde o início sujeitas a uma
situação de mercado, fornece elementos de reflexão sobre o cará-
ter ambíguo e polivante dos nexos T'V-mercado-Estado.
Em uma dezena de anos, o Brasil conseguiu criar uma indús-
tria nacional de programas que se revelou altamente viável em
termos de exportação. A internacionalização dos programas bra-
sileiros é acompanhada pelo efeito de sedução exercido por um
processo de produção a baixos custos e com bons resultados. As
televisões européias, confrontadas com a dupla necessidade de
aumentar sua produção e diminuir os custos, não tardaram a per-
ceber o interesse que apresenta, sob este ângulo, o novo gênero
chamado novela — que não é cópia do folhetim de estilo eu-
ropeu, nem do seriado americano — ainda que inscrito no dina-
mismo da seriação.
Este livro convida o leitor a se interrogar sobre a história
da instituição dos gêneros, essas formas ideológicas e estéticas
10 A. e M. MATTELART

que cristalizaram o imaginário coletivo e onde memória popular


e memória nacional encontram-se sempre sob tensão.
Uma parte deste estudo pôde ser realizada graças à participa-
ção financeira do Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS)
e do Centro Nacional de Estudos de Telecomunicações (CNET),
através de um projeto de pesquisa intitulado “Une ou multiples,
les voies de la sérialisation” (“Uma ou múltiplas, as vias da
serialização”), dirigido por Michêle Mattelart. Agradecemos a co-
laboração destes dois órgãos. Nossos agradecimentos também aos
pesquisadores da Escola de Comunicação Social da Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Em particular, ao professor Roberto
Amaral Vieira, que nos facilitou consideravelmente os encontros
com os profissionais da TV brasileira. Nosso reconhecimento a
estes últimos e muito especialmente aos roteiristas Doc Com-
parato e Aguinaldo Silva, ao produtor-diretor Paulo Ubiratan,
aos membros do Departamento de Relações Públicas da TV
Globo, bem como aos do Departamento de Documentação e
Arquivos.
Os numerosos amigos brasileiros e latino-americanos com
que frequentemente convivemos e que partilharam sempre de
nossas preocupações encontrarão aqui a expressão de nossa gra-
tidão e amizade.
M. e A. Mattelart
Paris, junho de 1987.
I
A ARQUEOLOGIA DE
UM GÊNERO
METOLERE

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À história recente não nos habituou a ver no Terceiro Mundo


um agente com ampla participação no campo da produção tele-
visiva. Sua imagem de vítima revoltada nos anos 70, suas rei-
vindicações de uma “nova ordem mundial da informação e da
comunicação” para o reequilíbrio dos fluxos de notícias e ima-
gens não permanecem tão presentes? Ora, o que temos visto
nestes últimos anos? Além da irrupção da indústria televisiva de
certos países do Terceiro Mundo no mercado mundial de pro-
duções, vemos também a audácia de empreendimentos advindos
desse mesmo Terceiro Mundo, que buscam o controle de mídia
nas grandes sociedades pós-industriais.
Em agosto de 1985, a Globo, grupo brasileiro de multimídia,
comprava o controle acionário da filial italiana da empresa fran-
cesa Telemontecarlo. Em novembro do mesmo ano, seria a vez
de um grande grupo mexicano de imprensa adquirir a agência
de imprensa internacional americana UPI. Enquanto isso, o con-
glomerado de multimídia mexicano Televisa tentava introduzir-se
na Espanha, depois de haver consolidado a partir de 1961 seu
sistema Spanish International Network (SIN), rebatizado em
1987 de Univision, o qual, dotado das tecnologias mais avança-
das, atinge hoje 86% da população de língua espanhola dos
Estados Unidos, somando 16 milhões de indivíduos.
O Brasil e o México (e em menor escala a Venezuela) são os
países latino-americanos que já participam efetivamente do âm-
bito da televisão internacional. Pertencem ao grupo que hoje se
14 A. e M. MATTELART

costuma chamar de “novos países industriais”. Mas enquanto


outros deles, a maioria dos quais situados no sudeste asiático —
Coréia do Sul, Formosa, Cingapura e Hong Kong —, exportam
principalmente equipamentos eletrônicos (com exceção de Hong
Kong, centro de difusão da produção audiovisual daquela região
do mundo), os recém-chegados se introduzem no mercado de
produções audiovisuais !. O Brasil vai mais além: revela um mo-
delo com poder de sedução.
Na Europa, a Itália foi a primeira a apelar de forma maciça
para a indústria brasileira de produções, a fim de atenuar o de-
sequilíbrio entre as necessidades de programação das televisões
privadas e a capacidade de produção nacional, causado pela des-
regulamentação* desse “medium”. ;
Porém, acima da aquisição dos programas, está O interesse
demonstrado por alguns grandes países do Primeiro Mundo pela
competência da jovem indústria brasileira. É ele que promove
uma operação antes imprevisível, num mundo onde a proble-
mática da transferência de know-how costuma ser pensada uni-
camente no sentido norte/sul. Será preciso que as televisões
européias sejam constrangidas a inovar seus hábitos de produ-

* O termo técnico é desregulamentação. Há países que têm mais regula-


mentação dos meios de comunicação. Antes, era tudo muito mais regula-
mentado. Na Europa e nos EUA, está havendo uma desregulamentação das
telecomunicações. (A tecnologia está “provocando” a desregulamentação.)
(N. da Revisora Técnica.)
1. Os estúdios Shaw Brothers de Hong Kong produzem tanto para o cine-
ma como para a televisão (que aliás, fundaram com apoio da Time-Life,
CBS e das principais emissoras inglesas). Em 1984, seus estúdios de tele-
visão empregavam 2 500 pessoas e produziam cerca de 2 000 horas de pro-
gramas por ano. Seus estúdios de cinema ocupavam 1 200 pessoas e produ-
ziam de 30 a 35 filmes por ano. (D. Assayas et C. Tesson, Hong Kong
Cinema, Paris, Editions de L'Étoile-Cahiers du Cinéma, 1984). Entre os
países não incluídos na categoria “novos países industriais” figuram o
Egito e o Líbano, grandes produtores audiovisuais. A Índia, que ao con-
trário faz parte dos novos países industriais, é a primeira produtora mundial
de filmes (uma média de 700 por ano), mas ela não emergiu ainda como
significativa produtora de televisão. Se, como consegiiência da fraqueza de
seu desenvolvimento televisivo, ainda não está no mercado de produções,
alimenta por outro lado, através das redes de vídeo e em mercados espe-
cíficos, a internacionalização do filme.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 15

ção e de programação. Terão que rever, por força da necessidade,


seus custos de fabricação e reservar em sua programação um
espaço mais substancial à dimensão do “seriado”, para estimular
esse interesse que põe em evidência um gênero — a novela.
Ainda que as televisões francesas não se tenham empenhado
numa reflexão formalizada sobre a questão, como fizera a Radio
Televisione Italiana (RAI) no início dos anos 80, por meio do
relatório Ficchera, assiste-se certamente ao nascimento de preo-
cupações semelhantes a partir das promessas de abertura do es-
paço televisivo francês. Há, porém, uma diferença. Uma questão
explícita percorre todo o relatório Ficchera — encontrar uma
alternativa para o modelo do seriado americano, a ““serialitã”
americana, que pairava como referência soberana sobre o uni-
verso da desregulamentação italiana e, em contrapartida, sobre
a necessidade recentemente experimentada pela televisão estatal
de repensar e racionalizar seus meios de produção. O relatório
examina sistematicamente a organização da produção de seriados
de ficção nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Alemanha
e Austrália, com o objetivo de compará-la à situação da Itália.
É interessante constatar que a preferência pelo gênero da novela
brasileira não tem otigem na dinâmica de reflexão instaurada
pela RAI em si mesma, mas na pragmática das televisões pri-
vadas italianas, que, por causa da concorrência com o sistema
estatal, foram levadas a diversificar sua política de compra no
mercado internacional. Política esta que seria bem depressa com-
pletada por permutas no campo da engenharia televisiva, com a
TV Globo prestando assistência técnica à nova rede da península.
Na França, ao contrário, é sob o nobre patrocínio do Minis-
tério da Cultura que a televisão brasileira entrará para os regis-
tros do país. Em janeiro de 1985, o Centro Georges Pompidou
promovia um ciclo de exibições acompanhadas de debates a res-
peito de 70 horas de produções procedentes principalmente da
TV Globo, TV Manchete e Vídeo-Abril. Adiantando-se a esta
mostra, a TF1 havia lançado em outubro de 1984 a novela Baila
Comigo. Com alguns anos de atraso em relação às outras tele-
visões européias, a televisão francesa abria-se à ficção brasileira.
Quanto ao Brasil, é evidente o interesse de se introduzir na
Europa, aproveitando-se da desregulamentação. Depois da Itália,
16 A. e M. MATTELART

a França está no alvo, e mais além o mercado europeu, desven-


dado pelos satélites. Por ocasião da compra das ações da Tele-
montecarlo, Roberto Marinho, presidente e fundador das Orga-
nizações Globo, não ocultava suas intenções de prosseguir as
negociações com a Telemontecarlo, desde que a situação do sis-
tema audiovisual francês se tornasse mais clara. Em outubro de
1986, Roberto Irineu Marinho, filho do presidente, entrevistado
pelo semanário americano Variety, esclarecia as pretensões do
grupo na Europa: “Não pretendemos nos tornar proprietários
do que quer que seja. Esta nunca foi nossa estratégia na Europa.
É quase um acidente que tenhamos adquirido a Telemontecarlo.
Ela praticamente nos caiu nas mãos. O que queremos é parti-
cipar como sócios na França, Alemanha e em outros. lugares,
para ajudar a construir um sistema de produção europeu que seja
competitivo no plano internacional”.
Durante vários decênios, a percepção que o mundo tinha da
relação entre os sistemas de televisão foi de tal forma “super-
determinada” pela presença demasiado real da hegemonia de
uma só televisão no mercado internacional que todos os outros
sistemas pareciam mais ou menos submetidos às mesmas regras.
(Na verdade, que nação podia se vangloriar de vender seriados
a mais de cem países?) A BBC era a única a se destacar do
conjunto de televisões destinadas a ocupar apenas cadeiras avul-
sas nos cenários da exportação de então. A realidade dos fatos
e também os movimentos de pensamento e de opinião, alimen-
tados pela crítica do American way of life, consagravam o poder
americano como absoluto e exclusivo no cenário internacional.
No rastro dessa representação, acreditava-se que qualquer um
que procurasse valorizar o capital na indústria televisiva fatal-
mente estava condenado a reproduzir o modelo americano.
A hegemonia da indústria dos Estados Unidos continua bas-
tante palpável, como provam as cifras do comércio mundial de
produções. Em 1987, as companhias americanas movimentavam
no exterior o total de 1 bilhão de dólares, o equivalente a uma

2. Variety, 15 de outubro, 1986, p. 146.


A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 17

porcentagem de 70 a 75% das transações internacionais de pro-


duções de televisão*.
Entretanto, a internacionalização a que assistimos hoje mani-
festa a explosão e, de certa forma, o rompimento das realidades
e referências de ontem. Significa primeiramente o ingresso de
novos agentes no elenco dos países industrializados, que tornam
menos nítida a linha divisória Terceiro Mundo países desenvol-
vidos, subdesenvolvimento/desenvolvimento. Em seguida, nos
confrontos que se delineiam hoje na busca de bons desempenhos.
nos mercados audiovisuais, aflora o questionamento implícito ou
explícito de modelos de televisão que ficaram tão resguardados
a ponto de não experimentarem o imperativo da internaciona-
lização com regra de sobrevivência. Questões que não haviam
sido encaradas tornam-se vitais: por que algumas televisões con-
seguem, melhor do que outras, colocar seus produtos no mer-
cado internacional? Por que certas televisões são mais “popula-
res” do que outras? Por que há gêneros mais “populares” do
que outros?
Porém, quando as televisões do Terceiro Mundo aportam
ao velho continente, as questões acima adquirem ressonâncias
particulares. A confrontação com as televisões destes países novos
põe em jogo referências entre culturas historicamente situadas
de um lado e de outro a clivagem geopolítica dos poderes inter-
nacionais. Isso sem falar da modernidade tecnológica e industrial.

3. Variety, 1.º de abril, 1987.


Esta porcentagem ilustra de maneira muito imperfeita o lugar que ocupam
as produções americanas nas programações nacionais, principalmente por
causa de seu custo, mais elevado que os de outras indústrias que se
internacionalizam. Tanto assim que, para retomar o exemplo italiano, em
1985, 67% das horas de produção importadas na península provinham dos
Estados Unidos, contra 17% da América Latina (a grande maioria do
Brasil). Mas esses 67% significavam 87,5% das despesas totais de progra-
mação importada italiana, enquanto as importações sul-americanas repre-
sentavam apenas 2,5%.
Em 1986, nos mercados italianos, o preço de um capítulo de novela
(quarenta minutos) variava entre 3 000 e 6 000 dólares: o de meia hora de
produção americana estava entre 6000 e 48000 dólares (Variety, 15 de
outubro, 1986, 25 de março, 1987).
18 A. e M. MATTELART

As situações estabelecidas, bem como os hábitos criados pelos


sistemas de produção cultural inscritos dentro das fronteiras e
da racionalidade dos países, se vêem cada vez mais abalados
pelos vagalhões profundos da lógica do mercado. É o fim dos
nacionalismos enregelados que legitimaram no coração da velha
Europa televisões centradas na cultura do patrimônio nacional.
No avesso dos racismos latentes, da nostalgia de uma sociedade-
nação preservada das misturas, cresce o impulso das mestiçagens
culturais.
Fascinação /rejeição: este par não está presente apenas no psi-
quismo do homem europeu; está também, a seu modo, no
psiquismo dos novos aspirantes à conquista dos mercados do
Velho Mundo. Como se durante esta nova fase das relações cul-
turais entre indústrias audiovisuais interpostas, cada qual sou-
besse onde estavam um dia escondidas a força e a riqueza do
outro, mas pressentisse sobretudo onde se abrigaria a força de
amanhã. Nostalgias cruzadas, onde um sonha com o futuro do
outro, onde o segundo inveja o passado do primeiro. E nestes
revezamentos que se supõe que a história comande, o estereó-
tipo disputa com a intuição profunda para ressuscitar o velho
dilema: afetividade/razão, natureza/cultura. O fantasma que se
mostra à abertura desses programas vindos dos trópicos não é
o do retorno ao mundo primitivo, ao “mágico”, ao sincretismo?
Ao mesmo tempo, a face mais contemporânea do mesmo
fantasma, inscrevendo-o numa área geocultural de contornos mais
ou menos definidos, são os reencontros com os liames simbólicos
de uma “comunidade latina” que parecem se anunciar. É pre-
cisamente esta promessa de “reconciliação com a nossa latini-
dade” celebrada tanto pelo correspondente romano do jornal
Libération e abundantemente retomada pela imprensa brasileira,
como pelo escritor italiano Alberto Moravia, ligando-se ao mes-
mo fundo mítico: “As novelas são uma arte popular adaptada
aos modernos meios de comunicação sem perder o brilho das
origens *”.

4. Citado em “Televisão: cultura de exportação”, Veja, São Paulo, 30 de


janeiro, 1985, p. 117.
1. Memória Narrativa

Uma comunidade emocional

“A identidade nacional não é uma teoria, mas uma prática


do tempo livre... Devemos tudo ao melodrama. A catarse
maciça e as descargas emocionais que ele oferece a qualquer tipo
de público organizam a compreensão da realidade. No melodra-
ma se conjugam a impotência e a aspiração heróica de uma
coletividade que não tem saídas públicas !.” Estas afirmações do
mexicano Carlos Monsivais atestam bem a importância do me-
lodrama na formação sincrética da cultura popular e de massa
na América Latina.
Fato marcante da memória narrativa de um continente, o me-
lodrama transitará pelo cinema, rádio, folhetins, fotonovelas,
canções e televisão. Os historiadores do cinema souberam desta-
car sua importância na produção das duas primeiras cinematogra-
fias latino-americanas, a mexicana e a argentina, desde seus
primórdios nos anos 20, “o melodrama familiar povoado de
mães e esposas de uma abnegação fanática, capazes de mobilizar
o Édipo de toda a América Latina num crescendo irresistível””.

1. C. Monsivais, “Junto contigo le doy un aplauso al placer y al amor”, in


Textos (revista bimestral do Departamento de Belas-Artes do Governo de
Jalisco), Guadalajara, México, n.º 9-10, 1975, p. 45, (exemplar dedicado à
cultura popular no México).
2. P. Paranaguá, Cinema na América Latina; Porto Alegre, L & PM Edito-
res, 1984, p. 50. O hostoriador do cinema mexicano. E. García Riera, por
sua vez, sublinhando também a importância do melodrama, falará de uma
20 A. e M. MATTELART

Este reconhecimento popular do melodrama é comprovado


por vários escritores do continente. O argentino Manuel Puig
emprestou do melodrama a inspiração e a matéria para a maior
parte de seus romances. O peruano Mario Vargas Llosa construiu
uma de suas narrativas, Tia Júlia e o escrevinhador, em torno do
hábito cotidiano de ouvir a radionovela melodramática e de sua
formidável popularidade, jamais desmentida, a partir dos anos
30: “Tive sempre curiosidade de saber que penas manufatura-
vam esses folhetins que entretinham as tardes de minha avó,
aquelas histórias que eu costumava ouvir na casa de tia Laura,
de tia Olga (...) quando ia visitá-las. Suspeitava que as nove-
las eram importantes; surpreendi-me, porém, ao saber que os
Genaros não as compravam no México ou na Argentina, mas
em Cuba. Produzia-as a CMQ, uma espécie de império do rádio
e da televisão governado por Goar Mestre (...). Eu ouvira .
locutores, animadores e operadores do rádio falar tanto da CMQ
cubana — representada como algo mítico, aquilo que a Holly-
wood da época era para os cineastas —, que enquanto eu e Xavier
tomávamos café no Bransa, algumas vezes tínhamos dedicado
longo tempo a imaginar esse exército de polígrafos que, lá na
distante Havana de palmeiras e praias paradisíacas, pistoleiros e
turistas, nos escritórios refrigerados da cidade de Goar Mestre,
deviam produzir, oito horas por dia, em silentes máquinas de
escrever, aquela torrente de adultérios, suicídios, paixões, duelos,
heranças, devoções, aventuras e crimes que, da ilha antilhana, se
espalhavam pela América Latina *”.
Antes de prosseguir e a fim de problematizar o próprio esta-
tuto da breve reflexão que vamos fazer sobre a árvore genealó-
gica de um gênero, uma observação se impõe.
Buscando as referências sobre as origens da telenovela, apre-
ciada tanto pela grande imprensa latino-americana como por uma
literatura mais séria, poderíamos pensar que a história dos gêne-

“infantilização dos espectadores por meio do culto da mãe e do refúgio em


uma visão idealizada do mundo da província” (Historia documental del
cine mexicano, México, Era, 1976, vol. 8).
3. M. Vargas Llosa, Tia Júlia e o escrevinhador, Rio de Janeiro, Editora
Nova Fronteira, 1977, p.p. 10-11.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 21

ros populares se explicaria a partir de seus liames familiares, de


suas continuidades num tipo de encadeamento genealógico: do
oral ao escrito, do escrito ao rádio, do rádio à televisão, etc.
Harmonia de uma progressão linear e unívoca; passagem natural
de um ponto de apoio a outro, de uma tecnologia a outra. Sabe-
remos que há um percurso porque há marcos históricos; porém
ignoraremos os objetos dos desafios do percurso ou como os
desafios o marcaram. No esquema onde este simulacro do saber
assinala as sucessões, as heranças, um pensamento crítico mais
profundo tentaria descobrir, sob a aparente continuidade, os
desligamentos, as inovações, as fraturas.
É difícil hoje pretender abordar a historicidade de um gêne-
ro popular limitando-se a estabelecer conexões com os produtos
que o precederam. Se há parentesco, há sobretudo ruptura: o
novo produto que consideramos é influenciado por outras lógicas
estéticas e sociais, situa-se no centro de outras estratégias indus-
triais, está inscrito em diferentes formas de produção e de
consumo.
Apesar de saber que as relações entre duas gerações de pro-
dutos são por demais complexas e contraditórias para permitir
que se conte uma história linear da produção industrial da cultu-
ra, ousamos traçar o quadro que se segue.

Falsas continuidades
Uma tadionovela como El derecho de nacer (“O direito de
nascer”), escrita pelo autor cubano Félix Cagnet e produzida
nesses estúdios de Goar Mestre imaginados pelo personagem
de Vargas Llosa, constituiu durante inúmeros anos um traço de
união radiofônica entre todos os países do continente, antes
de ser adaptada para a televisão. Os estúdios de Havana foram de
fato um dos principais centros de irradiação do gênero. O Brasil
tomará conhecimento da novela através de adaptações de roteiros
provenientes de Cuba e da Argentina.
Será preciso esperar até 1947 para assistir ao lançamento da
primeira radionovela propriamente brasileira, Fatalidade, pela
Rádio São Paulo. Um ano antes, a Rádio Nacional do Rio de
22 A. e M. MATTELART

Janeiro havia inaugurado sua política de novelas, importando


de Cuba um texto de enorme sucesso popular, com quase trezen-
tos capítulos, Em busca da felicidade. Irradiando Fatalidade, a
Rádio São Paulo deu o impulso inicial às versões nacionais de
um gênero cujo sucesso se estenderá por todo o período áureo
do rádio, os anos 50%. A novela radiofônica se eclipsará para
renascer nos primeiros anos da década de 80, mais modernizada,
tomando a si o encargo de uma variável hoje essencial no Brasil,
a saber, a necessidade de atingir um público nacional e não
mais, como anteriormente, apenas audiências locais. A nova
feição das radionovelas permite apreciar por contraste a mudança
ocorrida: acabou-se o folhetim lacrimogênio dos anos 50, onde os
personagens caíam sempre nas malhas do destino; a preocupação
maior é escapar ao maniqueísmo das produções anteriores, tocar
em problemas que interessem ao público jovem.
A radionovela constituiu um viveiro importante de roteiristas.
Escrevendo novelas para o rádio, toda uma geração fez seu apren-
dizado: Ivani Ribeiro, Janete Clair, Dulce Santussi... Em seu
período áureo, emissoras como a Rádio São Paulo se transforma-
ram em produtoras quase exclusivas de novelas. Em seus estú-
dios havia uma equipe de 200 atores, em média 10 para cada
novela. Por dia, eram transmitidas nada menos que 15 novelas
diferentes. Em seus arquivos, contavam-se 2 500 novelas (para
todos os gostos: religiosas, policiais, românticas, sentimentais,
para o público infantil, etc.) O horário “nobre” situava-se entre
20 e 21 horas, mas também entre 10 e 15 horas. A novidade
da radionovela brasileira é a duração menor que a das importa-
das de Cuba ou da Argentina: 40 capítulos em. média.
Para a produção da radionovela, um elemento era ainda
essencial, tanto ontem como hoje: a agência de publicidade, e,
mais particularmente, os departamentos de publicidade de algu-
mas grandes empresas ligadas à indústria do sabão e dos deter-

4. Entre 1943 e 1955, a Rádio Nacional transmitiu pelo menos 11 756


horas de radionovelas. Em 1956, a radionovela compunha cerca de metade
da programação (até 14 novelas por dia). (M. E. Bonavita, História da
comunicação, rádio e TV no Brasil, Petrópolis, Vozes, 1982).
5. M. A. Filiage, “Velhas emoções que estão de volta”, Jornal da Tarde,
14 de janeiro, 1984.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 23

gentes, como a Lever e subsidiária, a Lintas. Em 1950, quando


a Lever começa a produzir radionovelas no Brasil, suas agências
têm seus próprios setores de seleção e adaptação de novelas
importadas. Os atores não são contratados pela emissora, mas
pela empresa.
Do mesmo modo, no início da telenovela os atores foram
contratados diretamente por empresas, em especial a Lever e a
Colgate-Palmolive*. Todos os historiadores do gênero reconhecem
que, para defini-lo, foi muito importante a chegada ao Brasil
da cubana Gloria Magadan, enviada pela Colgate dos Estados
Unidos para sua filial brasileira no início dos anos 60.
E chegamos então à soap opera de rádio e tevê norte-ameri-
cana, que participa, junto com a novela brasileira, de uma histó-
ria ligada às indústrias de detergentes, no caso americano aliás
denotada pelo próprio nome do gênero. Quase no fim dos anos
50, as soap opera desaparecem das grandes redes de radiodi-
fusão (ABC, CBS, NBC), para começarem sua carreira nas telas
de TV das mesmas redes. A empresa Procter & Gamble, pionei-
ra da soap no rádio, transferirá sua experiência para a produ-
ção televisiva. Um departamento especializado da empresa asse-
gura ainda hoje a produção de seis soaps em média por ano para
as três grandes redes. Uma das mais famosas soaps, Guiding
light, festejava em 1983 seu 45.º aniversário de difusão, dos
quais 30 na televisão. Nos Estados Unidos, as soaps chamadas
“daytime serials” (seriados diurnos) são exibidas todas as tardes,
de segunda a sexta, durante as 52 semanas do ano”.
É forte a tentação de traçar a equivalência entre a telenovela
e a soap opera. É preciso lembrar, porém, que desde o fim dos
anos 60 a telenovela não é mais produzida por indústrias de
detergentes, enquanto a soap continua a sêlo. Em segundo
lugar, a soap opera permanece confinada aos horários da dona

6. Nos anos 50, a Colgate-Palmolive produziu telenovelas em outros países


latino-americanos. Na Venezuela, por exemplo. Ver O. Moravia, “Análisis
de tres telenovelas de Romam Chalbaud”, Videoforum, Caracas, n.º 6,
junho, 1980.
7. Sobre a soap opera, ver M. Cassata e T. Skill, Life on daytime television,
Norwood (NJ), Ablex, 1983; M. Cantor e S. Pingree, The soap opera,
Beverly Hills, Sage, 1985.
24 A. e M. MATTELART

de casa, ou seja, é programada essencialmente para a tarde, e


continua a recrutar seu público majoritário entre as mulheres
(80%). (Já a novela, de apresentação também diária, triunfa
nos horários da tarde e/ou da noite, além de reunir espectado-
res dos dois sexos e de todas as idades.) Em terceiro lugar, a
soap opera permanece fundamentalmente como um produto re-
servado ao mercado interno. As exceções confirmam a regra. À
partir de 1981, o empresário italiano Silvio Berlusconi (Canale
Cinque, na época) firmava um acordo com a Procter & Gamble.
Em troca de tempo publicitário nos blocos da tarde, a empresa
americana se comprometiã a fornecer 250 capítulos por ano
de Guiding light e Search for tomorrow. Em 1986, 1 500 horas
de cada uma delas haviam sido divulgadas pela rede ,privada
italiana”. Diferenças à parte, a telenovela havia demonstrado suas
possibilidades internacionais. Deve-se evitar incluir a soap entre
aqueles produtos tradicionais cuja circulação se restringe às
fronteiras dos Estados Unidos e que descendem diretamente da
concepção radiofônica*. Apesar disso, estas produções ficaram
em geral à margem da definição da cultura de massa como
expressão da modernidade. (O que não impede que sejam uma
das fontes mais suculentas de lucros publicitários.)
Graças à produção nacional de telenovelas, as televisões de
inúmeros países latino-americanos conseguiram ocupar seus pró-
prios segmentos no mercado de produções televisivas. No entan-
to, o gênero admite numerosas variantes que parecem determinar
diferentes aptidões para a internacionalização. A telenovela
mexicana é reputada como mais lacrimogênea e menos “moder-
na” que a novela brasileira”. Já a Colômbia está mais voltada
para as co-produções e adaptações de romances latino-america-

8. Variety, 23 de abril, 1986, p. 129.


* Chamados “radios with pictures” — programas radiofônicos com imagens
visuais (isto é, iguais ao rádio, só que se vê). (N. da Revisora Técnica.)
9. À nova estratégia da Televisa acionada em fins de 1986 pode inverter
os dados do problema, O conglomerado mexicano começou a reestruturar
e modernizar sua produção (com seis telenovelas por dia, das quais várias
filmadas no estrangeiro, principalmente na Espanha e em Miami). A Televisa
transferiu também do México para Los Angeles a sede de sua companhia
de comercialização internacional de produções.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 25

nos. Um de seus mais recentes projetos é o de adaptar 4 casa


dos espíritos, da chilena Isabel Allende. Os colombianos oferece-
ram ao mercado continental adaptações do mexicano Juan Rulfo
(El gallo de oro) e do uruguaio Mario Benedetti (Gracias por
el fuego, entre outras).
A ambição comum a todas estas empresas de televisão é de
entrar no mercado dos Estados Unidos. A existência da rede
de língua espanhola controlada pela companhia mexicana Televi-
sa oferece por enquanto um caminho para essa ambição. Cerca
de dois terços da programação dessa rede (SIN) são produzidos
pela América Latina, cabendo ao México a parte do leão, Obser-
va-se uma intensificação das permutas na circulação regional das
produções, porém isto não significa que as diversas indústrias
nacionais mantenham necessariamente relações transparentes: o
Brasil, por exemplo, raramente se apresenta como comprador das
produções venezuelanas, e foi preciso esperar até 1986 para que
o México comprasse uma novela brasileira — Dancin' days —,
que naquela data já havia praticamente dado a volta ao mundo.
Os responsáveis pela Televisa têm uma maneira bem caracte-
rística de explicar suas restrições às novelas cariocas: “A Globo
multiplica as intrigas secundárias e as histórias dentro das histó-
rias. Nossos roteiros são mais diretos e nossos temas mais uni-
versais. A televisão é um meio de comunicação de massa. O
cinema pode permitir-se ser elitista, mas não a televisão!?”.
A partir de 1985, para facilitar a venda de produções num
contexto de endividamento generalizado, as grandes companhias
como a Televisa ou a Radio Caracas Televisión imaginaram uma
forma de pagamento sem desembolso de divisas; por meio de
um sistema de troca, as diversas televisões podem adquirir os
programas, pagando com tempo publicitário. Por isso a Televisa
exige 4 minutos por hora de programação. Oferece-os, por sua
vez, às companhias multinacionais estabelecidas nos Estados
Unidos, interessadas em promover seus produtos nas telas do
país comprador dos programas. O sistema se naturalizou de tal
forma que, nas trocas do Cone Sul, tornou-se prática comum
que os programas sejam exportados com as inserções publici-

10. Variety, 25 de março, 1987, p. 105.


26 A. e M. MATTELART

tárias do país de origem. A tal ponto que a Globo, quando


exportou A escrava Isaura e Dancin' days para a China Popular,
não faturou as produções para compensar a falta de divisas do
país comprador, mas exigiu que a publicidade fosse incluída na
programação.
A especificidade do gênero telenovela é definitivamente reco-
nhecida. O semanário do show business dos Estados Unidos,
Variety, a consagrava ao afirmar: “A telenovela é uma forma de
arte popular latino-americana tão significativa e tão nutrida de
convenções dramáticas como o western dos americanos... A
telenovela não é uma soap opera, ainda que os dois gêneros
mantenham relações de consangiinidade!!”.
Interessada no gênero, a empresa Lorimar, produtora do seria-
do Dallas, adquiria em 1985 o canal 11 de Porto Rico (que
vai ao at em língua espanhola), em conjunto com uma das gran-
des produtoras de telenovela, a Radio Caracas Televisión da
Venezuela.
Contrastando com a Televisa, que exporta sobretudo para
a América Latina e para o mercado de língua espanhola dos
Estados Unidos, a Globo internacionaliza-se em todas as dire-
ções, removendo as barreiras geográficas, políticas e econômicas 2,
China Popular, Polônia, Grã-Bretanha, países escandinavos, An-
gola, Portugal, Espanha, Itália, Cuba, Japão, Países Baixos, etc.,
todos vibraram sucessivamente com as telenovelas brasileiras.
Em 1983, os únicos países da Europa que não haviam compra-
do produções brasileiras eram a União Soviética e a Albânia.
Em agosto de 1985, os poloneses escolhiam a novela 4 escra-
va Isaura como a melhor produção datelevisão dos dez últimos
anos. Vinte e oito milhões de telespectadores (86% da audiên-
cia nacional) haviam vibrado com a história da escrava branca.
Desencadeou-se na imprensa uma polêmica quanto às causas
de seu sucesso sem precedentes. O correspondente do jornal
Libération em Varsóvia relatava que, rotulada pelos críticos

11. “Telenovela is something else”, Variety, 12 de março, 1986, p. 142.


12. Em 1987, algumas telenovelas mexicanas eram apresentadas na Itália,
na Espanha (nos dialetos catalão e basco, ou em castelhano) e na China
(Variety, 25 de março, 1987, p. 105).
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 27

de “pior melodrama” e “rei do kitsch”, Isaura foi defendida


pelos sociólogos, que, num rasgo de sinceridade impressionante,
explicavam no jornal do partido que o público “em situação de
decepção social procura consolação nos contos de fadas, como
foi o caso da Tchecoslováquia depois de 19682”. O sucesso da
novela foi coroado pela turnê triunfal da intérprete principal.
Muito tempo depois de haver desaparecido do vídeo, a trilha
sonora recordava Isaura no rádio.
À heroína, Lucélia Santos, também perturbou a vida de
Cuba. Fidel Castro confessou ter sido obrigado a alterar o ptro-
grama de suas reuniões em função do horário da novela, já
que seus colaboradores acompanhavam, com todo o país, 4 es-
crava Isaura. Lucélia Santos foi convidada de honra por ocasião
do Congresso sobre a Dívida Externa Latino-Americana, ocorrido
em Havana em agosto de 1985.
Em Portugal, uma novela como Gabriela literalmente parali-
sava o país a partir de 8h30 da noite. A companhia de telefones
portuguesa revelou ter registrado uma queda nas comunicações
da ordem de 70% durante sua apresentação. Uma sessão da
Assembléia da República foi suspensa para permitir que os par-
lamentares assistissem ao programa. As telenovelas brasileiras
introduziram no falar da metrópole modismos da antiga colô-
nia... Em Angola, outro antigo território português, o partido
então no poder (MPLA) achou que seria bom intercalar a pro-
jeção de Gabriela entre duas intervenções políticas, para recolher
dividendos da formidável onda de emoções.
Na Itália, desde que as novelas ocupam os blocos da tarde,
o tempo publicitário tornou-se, em algumas emissoras da rede
privada, tão caro às 14 como às 20 horas.
Através da revista Variety, os próprios americanos reco-
nhecem que de agora em diante devem dar atenção à concor-
rência desses programas, “que se tornaram sucessos em certos
mercados televisivos europeus nos horários de grande audiên-
cial”, De fato, para essas produções, penetrar nas programações

13. P. Vodnik, “Les novelas font pleurer la Pologne”, Libération, 1986,


19 de março, p. 45.
14. Variety, 15 de outubro, 1986, p. 48.
28 A. e M. MATTELART

estrangeiras é uma coisa, conquistar o horário nobre que ocupam


no Brasil é outra. Na França, por exemplo, as novelas são trans-
mitidas à tarde: em 1987, Isaura, pela TF1, às 14h40; Brilhante,
exibida em 1985, às 18h35, foi retransmitida em 1987 também
pela TF1, preenchendo o espaço deixado por Isaura. Há até
países que contrariam de forma magistral as normas de trans-
missão do gênero no país de origem: a China Popular, onde
Isaura obteve um sucesso que já se tornou lendário, programa
as novelas à razão de um capítulo ao mês.
Em 1982, a Globo exportava apenas 3 milhões de dólares;
em 1987, de 15 a 20 milhões. A título de comparação, em
1985, a cifra dos negócios de exportação revelada pela France
Média International, órgão governamental encarregado de co-
mercializar no exterior as produções das redes estatais, não
ultrapassava 30 milhões de francos, isto é, aproximadamente
4 milhões de dólares!s.

A apropriação de um gênero

O gênero brasileiro da novela passou por várias etapas antes


de assumir a forma atual. Sua história no Brasil começa real-
mente em 1963. Justamente naquele ano, a produção de ficção
se achava dominada ou por roteiros importados ou por adapta-
ções sumárias de grandes romances populares do patrimônio
mundial que já haviam conhecido versões radiofônicas ou cine-
matográficas (as obras de Charles Dickens, Alexandre Dumas,
Victor Hugo...) Nesta fase, a televisão brasileira estava bem
mais interessada em montar grandes espetáculos teatrais, que
certamente não atrafam grandes audiências, porém garantiam à
telinha distinção de qualidade nos seus primeiros passos.
Uma primeira etapa começa em julho de 1963 com o lança-
mento pela TV Excelsior de 25 499 ocupado, adaptação de um
roteiro argentino. Foi feita por Dulce Santucci, que, como vimos,
começara no rádio. Um mês no ar foi suficiente para que essa

15. “La vie des médias”, Le Figaro, 28 de abril, 1986, p. 17.

'
A ARQUEOLOGIA DE UM GENERO 29

primeira novela entrasse em programação diária, fato inédito


até então.
Começando portanto com essa pequena revolução provocada
por 25 499 ocupado, esse período marcou-se pela preponderân-
cia de roteiros importados da Argentina, México e Cuba. As
traduções coexistem com adaptações de roteiros emprestados
ao patrimônio das novelas radiofônicas nacionais. Adaptações
de roteiros estrangeiros ao gosto do público brasileiro, adaptação
de um gênero que haviam aprendido a escrever para o rádio
às exigências da nova mídia eletrônica — eis a dupla escola
dos autores nacionais.
O sucesso de 4 moça que veio de longe, adaptada de um
roteiro argentino por Ivani Ribeiro e lançada também pela TV
Excelsior, vai demonstrar a capacidade que tem uma novela de
monopolizar um público — verdadeira revelação para o pessoal
da televisão brasileira daquela época. A novela ganha então seu
espaço cotidiano no horário nobre das 20 horas!*.
O segundo período se inaugura com o enorme entusiasmo
suscitado em 1965 por O direito de nascer, que reedita na tele-
visão o sucesso incrível que a novela tivera no rádio, após a
Segunda Grande Guerra Mundial. A adaptação do roteiro para
a televisão fora objeto de um contrato entre a TV Tupi e uma
agência de publicidade que trabalhava para uma indústria de
cosméticos. O sucesso foi tão evidente que incentivou todas as
emissoras a aumentarem o número de novelas em sua programa-
ção. Passaram a exibir no mínimo quatro novelas, uma a mais
do que antes. Mesmo uma emissora como a TV Record, até
então avessa ao gênero, foi seduzida. Ao mesmo tempo que o
gênero consolida sua posição na programação das emissoras, os
autores nacionais começam a afirmar sua autonomia e a afastar-
se dos roteiros importados.
Nem todas as redes observam entretanto a mesma política:
reconhecida como o verdadeiro laboratório da telenovela bra-
sileira, a TV Excelsior, por exemplo, favorece as produções
nacionais em estilo pomposo e grandioso. Por outro lado, a TV

16. Sobre a história da telenovela brasileira, conforme I. Fernandes, Me-


mória da telenovela brasileira, São Paulo, Proposta Editorial, 1982.
30 A. e M. MATTELART

Globo continuará a se apoiar até 1969 nas produções dirigidas


pela cubana Gloria Magadan, dando preferência às novelas que
se passam no Marrocos, no México, na Espanha, no Japão ou
na Rússia. São fórmulas infalíveis que retomam os caminhos do
melodrama: “masmorras, calabouços, tavernas, hospitais e saí-
das secretas de castelos mal-assombrados, com personagens este-
reotipados: os bonitos, os feios e os antipáticos, os galãs, os
coitadinhos e os vilões... ambientes exóticos, romances dramá-
ticos de capa e espada e personagens misteriosos!””.
O terceiro período inicia-se com o título Beto Rockfeller,
primeiro arquétipo real da novela brasileira moderna. Ismael
Fernandes, historiador do gênero, escreve: “A principal mudan-
ça que Beto Rockfeller estabeleceu como modelo para 6 futuro
da telenovela foi o seguimento livre da história. As frases feitas
e grandiloguentes que marcavam até então a linguagem foram
substituídas por formas de expressão mais coloquiais, um refle-
xo fiel do nosso modo de falar. A direção dos atores, que era
feita por Lima Duarte, contribuiu ainda mais para essa evolução.
Os atores ficavam soltos e agindo apenas segundo as emoções
dos personagens, evitando as matcações e o enquadramento me-
cânico e gratuito. À integração texto-imagem era perfeita!?”.
Lançada a 4 de novembro de 1968 pela TV Tupi, inspirada
no romance de Bráulio Pedroso, Beto Rockfeller reinou mais de
um ano nos vídeos, transformando radicalmente a fórmula da
novela. Com ritmo mais rápido, linguagem e movimentos dos
atores mais soltos, Beto Rockfeller introduz principalmente um
outro tipo de herói e de impulso dramático: não se trata mais
do princípio maniqueísta do Bem e do Mal — o herói não é
mais o executor da vingança, a encarnação da Paixão ou o
portador do Bem, mas um indivíduo de origem modesta, habi-
tante da cidade, sujeito a erros, cheio de dúvidas, inseguro,
buscando estima, pondo em prática todos os seus recursos de
astúcia para subir na escala social. Os críticos o classificaram

17. “Telenovelas: vinte anos de sucesso e um bom futuro (ainda!) pela


frente”, Jornal do Brasil, 31 de julho, 1983.
18. I. Fernandes, op. cit, p.p. 13-14.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 31

como “próximo ao caráter brasileiro”. Pela primeira vez, esta-


vam representados personagens-tipos que correspondiam às di-
versas classes sociais, tanto o industrial que conquistou seu
lugar ao sol como o auxiliar de mecânico. Todos viviam confli-
tos e se enfrentavam na sociedade. “O mundo das classes médias
urbanas brasileiras, com seus dramas e suas aspirações, invadia
as telenovelas!””,
São características desta nova etapa: diálogos menos força-
dos, certa margem de improvisação, mais gravações externas,
aumento do número das tomadas de cenas e das seqiiências, e,
por isso mesmo, uma narração mais rápida. O estilo do teletea-
tro é anulado em proveito de uma linguagem mais próxima do
cinema. y
A novela se afirmava, afastando-se do gênero puramente sen-
timental. “Beto Rockfeller aparece como a primeira 'novela-
verdade”, cria situações sociais que se aproximam da realidade
conhecida pelos telespectadores de um modo realista em termos
de imagem?”
Em Beto Rockfeller é utilizado pela primeira vez o video-
teipe. Segundo um crítico particularmente perspicaz da televi-
são brasileira, Décio Pignatari: “Beto coincide ainda com a
grande inovação tecnológica do teipe. Graças ao teipe foi que o
teleteatro virou telenovela... O teipe é um instrumento sem
alta definição, com foco profundo de fotografia, que usa muito
a retícula e que por isso mesmo é mais adequado aos primeiros
planos e aos planos médios. Ele exigiu um outro enquadramento
de câmera, e consequentemente outra postura do ator. Com a
câmera quase que centrada só no rosto, foi preciso definir a
fala. Ela deixa de ser literária, passa a ser mais solta, descon-
traída, no tom coloquial. Isso aparece claramente em Beto
Rockfeller, um trabalho que resultou das experiências da van-
guarda cultural feitas por Fernando Faro na Tupi com um pro-

19. C. Litewski, “Globo's telenovelas”, in Brazilian television in context,


Londres, BFI, 1982.
20. J. L. G. Van Tilburg, “Texto e contexto: o estereótipo da novela”,
Revista Vozes, n.º 7, 1975.
32 A. e M. MATTELART

grama chamado Móbile. Essas experimentações verbais e não-


verbais inspiraram Lima Duarte para imprimir um ritmo ágil à
direção de Beto, que atraiu pela primeira vez a juventude urbana
mais sofisticada, além do público masculino??.
Beto Rockfeller coincide com as primeiras manifestações do
mito do “milagre brasileiro”, que desaparecerá por volta de
1973, após ter visto a taxa de crescimento aumentar a uma
média de 11% ao ano. Este mito beneficiará somente uma mino-
ria de classe média (20%), mas instalará o modelo de consumo
dessa camada de alto poder aquisitivo como ponto de referência
para as aspirações de outros grupos da população.
Esta obra de ficção que marca a entrada da novela na-moder-
nidade, inaugura também o encontro de um gênero nacional
com o público definitivamente maior, recrutado em todas as
classes sociais e em todas as idades.
A fórmula estava descoberta. A novela se mostrava muito
conveniente à indústria televisiva, pois o gênero é perfeitamen-
te adaptado às exigências da publicidade e relativamente pouco
custoso quantoà produção2, Ainda hoje as cifras o confirmam:
o preço de uma hora de uma série americana vendida ao Brasil
oscilava em 1984 entre 8000: e 12 000 dólares, e o de um
filme comum americano ficava entre 20 000 e 25 000 dólares
para ser exibido uma vez apenas. À produção de uma hora de
novela custava na mesma época de 20 000 a 30 000 dólares.
A de um capítulo de Dallas, cerca de 1 milhão de dólares.
Já a produção de um capítulo de soap opera americana custava
perto de 60 000 dólares?

21. D. Pignatari, in “A Telenovela faz vinte anos”, reportagem de V.


Magyar e A. L. Petroni, Jornal da Tarde, 23 de julho, 1983.
22. Em 1983, o minuto da publicidade para a novela das 20 horas custava
o equivalente a 30 000 dólares, duas vezes e meia mais que para uma série
americana.
23. Video Age International, abril, 1984, p. 32. A título de comparação,
a produção de uma hora da série francesa Chateuvallon (resposta francesa
a Dallas) era avaliada em 1,8 milhão de francos, na época (começo de 1985)
cerca de 225 000 dólares. A compra de um capítulo de Dallas custava à
televisão francesa 210000 francos. Com a privatização, a concorrência
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 33

Ainda que a novela Beto Rockfeller tenha sido exibida em


uma emissora concorrente, anunciando uma nova geração de pro-
dutos televisivos, o desabrochar se dará na Rede Globo, que
soube antes das outras rentabilizar as descobertas.

trouxe uma inflação dos preços de compra. Assim, em abril de 1987, en-
quanto a TF1, recentemente privatizada, propunha 280 000 francos por
capítulo de Dallas, os proprietários da TV Cinq faziam subir as ofertas
a 600 000 francos. Soma sem nenhuma proporção com a taxa de audiência
dessa série em baixa (159% contra 30% em seu período de sucesso).
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2. À Formação de uma Indústria
Nacional de Televisão

A construção de uma rede


A Rede Globo fazia vinte anos em 1985. De 1950 a 1965,
a história da televisão brasileira se desenvolverá à margem da
história da família Marinho, que, entretanto, vinha atuando
desde 1925 na imprensa diária, com O Globo, e no rádio desde
1944. Caberá a outro proprietário de jornais, Assis Chateau-
briand, à testa de uma cadeia de jornais e estações de rádio —
os Diários e Emissoras Associadas —, inaugurar, em setembro
de 1950, a primeira emissora de televisão (a TV Difusora)
em São Paulo e fundar no Rio, em janeiro de 1951, a TV Tupi.
Surgirão a seguir: em dezembro de 1951, a TV Paulista, em
São Paulo, e um pouco mais tarde a TV Record, no Rio de
Janeiro. A TV Difusora será pioneira também na América
Latina, pois nasce oito dias antes da inauguração da primeira
emissora mexicana, de propriedade da empresa Telesistema
Mexicano, ascendente direta do conglomerado de multimídia
Televisa. Na mesma época, inauguram-se também os estúdios
da televisão cubana, a CMQ da qual falam os personagens de
Vargas Llosa.
Se na década de 20 as estações de rádio surgiam quase
simultaneamente em todas as regiões do Brasil, a televisão, ao
contrário, começa em São Paulo e no Rio de Janeiro. A partir
destes dois grandes pólos do desenvolvimento urbano e indus-
36 A. e M. MATTELART

trial do país, ela se propagará por todo o território nacional.


Quando a televisão entra de fato em franco desenvolvimento,
em 1970, essas duas cidades somavam 56% do produto nacio-
nal e 73% da indústria).
A história da televisão neste imenso Estado federativo que
é o Brasil participa da história da integração nacional. A tele-
visão assumirá um papel de vanguarda enquanto agente unifi-
cador da sociedade brasileira. Aparecendo como o mais recente
produto das tecnologias de comunicação, progressivamente colo-
cará na pauta das estratégias comerciais e estatais a problemá-
tica da formação de redes de comunicação e da integração nacio-
nal. A problemática da rede nacional de rádio virá à tona de
forma premente apenas nos anos 80. Até lá, o rádio permane-
cerá como um meio de comunicação de alcance local ou regio-
na?. O sistema da imprensa diária conservrá características
idênticas. “Desde as origens da imprensa, nenhum jornal diário
importante se impôs além das fronteiras de seu Estado. Até os
grandes, como o Estado de S. Paulo, o Jornal do Brasil, a Folha
de S. Paulo ou O Globo, apesar de distribuídos em todo o país,
se dirigem principalmente ao público regional, que representa
pelo menos 85% de seus leitores. Uma exceção notável: a
Última Hora, que durante mais de dez anos foi o maior jornal
populista do Brasil. O desmantelamento de sua rede, conse-
cutivo ao golpe de Estado militar de 1964, pôs fim à única
tentativa jamais coroada de sucesso. Só em 1968 reaparecerá
um projeto de lançamento de jornal com vocação nacional, desta
vez calcado sobre o modelo explícito do Libération, cujo logo-
tipo imitava. Antes do ataque da televisão ao mercado nacional,
só a imprensa semanal, em especial as revistas informativas
(news magazines) e a imprensa feminina (esta editada quase

1. S. Caparelli, Televisão e capitalismo no Brasil, Porto Alegre, L & PM


Editores, 1982.
2. O caráter descentralizado do desenvolvimento do rádio é demonstrado
pelos seguintes dados: em 1960, de 735 estações, somente 215 situavam-se
em capitais, em 1971, de 1 008, somente 277 (Serviço de Estatística de
Educação e Cultura [SEEC], Ministério de Educação e Cultura).
3. A. de Seguin, Brésil. La presse (1930-1983), Paris, L'Harmattan, 1986.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 37

toda em São Paulo e no Rio), se haviam revelado nacionais


quanto a conteúdos e público.
Para adquirir credibilidade, esta problemática da rede tele-
visiva requeria o estabelecimento de um quadro institucional
propício ao desenvolvimento de um sistema de comunicação
nacional. O ano de 1962 apresenta uma virada decisiva: o
primeiro código brasileiro de telecomunicações é promulgado.
Confia ao Estado a responsabilidade de instalar e explorar as
redes de telecomunicações e confirma o caráter privado da rádio-
teledifusão. Portanto, dois anos antes do golpe de Estado de
1964, o Estado-Maior das Forças Armadas (e mais particular-
mente a Marinha e o Exército) fez pressão para que este
código viesse à luz o mais depressa possível: Pressente-se o elo
que o regime militar instaurará entre os objetivos da instalação
de uma rede nacional de comunicação e os da segurança nacio-
nal. Em 1965 foi criada a Embratel, Empresa Brasileira de Tele-
comunicações, cuja divisa é: “A comunicação é a integração”.
Após ter comprado a empresa canadense que controlava 80%
das companhias locais de telefones, o governo federal confia à
Embratel uma tripla missão: unir os diversos Estados da Fe-
deração através de um sistema de microondas, construir uma
estação terrestre de comunicação por satélite e lançar as
bases de uma rede nacional de televisão. Este plano de expansão
das telecomunicações previa a criação de pelo menos um canal
de televisão VHF em cada grande cidade. O calendário foi
registrado: em fevereiro de 1969, a estação terrestre é inaugu-
rada; em 1972, as ondas curtas levam os sinais para todo o
país. Anteriormente se dará a revolução do videoteipe. Dispo-
nível desde 1960, ele será efetivamente utilizado a partir de
1967, permitindo uma primeira fase de formação da rede nacio-
nal. Em fevereiro de 1972, ocorre a primeira transmissão em
cores para todo o país. Em agosto de 1974, o Brasil torna-se
o quarto usuário dos canais de telecomunicações do sistema
internacional de satélites Intelsat, que é utilizado para assegurar
a eficiência das comunicações internas e externas. Em maio de
1978, pouco antes da Copa Mundial de Futebol que devia se
desenrolar na Argentina, são inauguradas as últimas estações
38 A. e M. MATTELART

terrestres. Os amazonenses já podem assistir às partidas ao vivo”.


Daí por diante, o sistema de transmissão por satélite apenas
se aperfeiçoou. Desde fevereiro de 1985, o Brasil conta com
seu próprio satélite de telecomunicações, comprado do consór-
cio Hughes Aircraft — Spar Aerospace (Brasilsat 1). Em março
de 1986, o segundo satélite desta série Brasilsat era posto em
órbita. O objetivo desta série é oferecer serviços de telefonia
e televisão (24 canais por satélite, permitindo transportar 12 000
chamadas simultâneas ou 24 emissões de TV), de telex e de
transmissão de dados para todo o território nacional. (O raio
de alcance do satélite ultrapassa bastante as fronteiras do Brasil,
e seus sinais podem ser captados em dez outros países latino-
americanos.) O desdobramento do Brasilsat significou um esfor-
ço financeiro considerável: 40 milhões de dólares por satélite,
sem contar o lançamento. No total, cerca de 200 milhões de
dólares, lançamento, instalação de controle no solo e seguros
inclusos para os Brasilsat 1 e 2, ou seja, um quarto da dívida
brasileira em 1985. O esforço condiz com as ambições do Brasil
em matéria de política da indústria espacial, pois pretendia-se
fabricar nos próximos anos um satélite de telecomunicações
brasileiro, graças à transferência da tecnologia obtida com a
compra dos Brasilsat 1 e 2.
O sistema de rede é hoje comum às cinco principais em-
presas de televisão brasileiras: Globo, Manchete, Bandeirantes,
Sistema Brasileiro de Televisão (Sílvio Santos)) e emissoras
estatais educativas. Fazendo o balanço da década, um crítico da

4. À propósito, é interessante constatar o papel impulsionador do esporte


enquanto espetáculo, e particularmente do futebol, na ampliação das tecno-
logias de comunicação. A importância que os espetáculos de futebol assu-
mem no Brasil e em toda a América Latina está na imagem desse espaço
fundamental.
O Chile, onde as iniciativas das universidades precedem as do Estado,
verá a ampliação de sua rede para todo o país a partir de 1962, por
ocasião da realização da Copa Mundial de Futebol em Santiago. A Argen-
tina verá a inauguração da televisão em cores também quando se dá o
Campeonato Mundial de Futebol de 1978. No Brasil, é em 1970, por
ocasião de outro acontecimento ligado a esse esporte — a transmissão das
partidas da Copa do Mundo do México, de onde, aliás, o Brasil sairá vito-
rioso —, que a rede nacional é inaugurada com grande pompa.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 39

TV brasileira podia dizer, em janeiro de 1980: “Vencida a ante-


rior suposição de que os mercados eram regionais e resistentes
a programas nacionais, a política de rede cresceu com a expan-
são tecnológica”.

A ascensão irresistível de um grupo multimídia

Os diversos candidatos não terão o mesmo êxito diante da


oportunidade oferecida pelo Estado para explorar estas inova-
ções tecnológicas.
Um grupo se destaca: a Globo.
Em dezembro de 1957, o fundador do grupo, Roberto Mari-
nho, havia recebido do presidente Juscelino Kubitschek uma
concessão que deixará adormecida até 1962. É então que a
Globo começa suas negociações com o grupo de multimídia
Time-Life, que já havia oferecido seus serviços ao jornal O Esta-
do de S. Paulo e principalmente à cadeia dos Diários e Emis-
soras Associadas. Estes dois sócios presumíveis haviam decli-
nado a oferta, que contradizia abertamente as disposições de
um artigo da Constituição brasileira que proíbe sociedades es-
trangeiras de participar da propriedade, administração e orienta-
ção intelectual de uma Empis concessionária de um canal de
televisão”.
A presença do grupo Time-Life no Brasil remonta aos anos
50, quando, associado à família de origem italiana Civita, que
fugira ao fascismo de Mussolini, ajudou a criar as bases do
que se tornará alguns anos mais tarde o poderoso grupo edito-

5. A. da Távola, “Os anos 70, o grande salto para o sucesso”, Manchete,


12 de janeiro, 1980.
6. Na época, de acordo com sua estratégia de internacionalização, o grupo
Time-Life se introduziu nos sistemas televisivos da Venezuela, Argentina
e Brasil. Aliando-se à network CBS, conseguiu controlar 20% das ações
de uma grande emissora de televisão em Caracas e em Buenos Aires. Na
Venezuela, uniu-se a um dos grupos econômicos mais importantes da bur-
guesia nacional, enquanto em Buenos Aires associou-se a Goar Mestre, o
antigo proprietário da televisão cubana antes da chegada de Fidel Castro.
Goar Mestre era ainda proprietário de uma emissora de TV no Peru.
40 A. e M. MATTELART

rial Abril. Este, além de ser hoje um dos mais importantes do


Brasil, tornou-se multinacional, pois está instalado no México e
na Argentina.
Foi necessária a intervenção expressa do presidente da Repú-
blica, o marechal Castelo Branco, para fechar o acordo Globo-
Time-Life. O grupo americano investia mais de 5 milhões de
dólares e colocava à disposição da jovem emissora seu conheci-
mento técnico, administrativo e comercial. “No primeiro ano,
trabalhamos nos moldes das coisas que havíamos aprendido com
os americanos. .. À Globo era inspirada numa estação de India-
nápolis (EUA), a WFBM. E o engenheiro de lá foi quem
montou tudo, a gente não sabai de nada ?.”
Em 1969, a Globo compra as ações (49%) que o grupo Time-
Life detinha na sociedade. Está agora em condições de esta-
belecer um padrão de grande rede nacional (network), com
produção centralizada e distribuição dos programas através de
todo o país. No mesmo ano, 1969, é inaugurado o jornal de
âmbito nacional pela televisão, o Jornal Nacional. É o primeiro
programa produzido a partir da central do Rio para os outros
Estados.
O crescimento da Globo, secundado pela Time-Life, é con-
temporâneo ao declínio de iniciativas anteriores ligadas ao pti-
meiro perfil de empresário consagrado pela televisão brasileira.
Corresponde “ao que ocorria no resto do sistema produtivo, à
hegemonia dos interesses ligados ao capital estrangeiro e à
internacionalização do mercado interno”, A economia brasileira
se caracterizava na época por um movimento duplo: de um
lado, o reforço da intervenção do Estado, e de outro, a inten-
sificação da penetração do capital estrangeiro, seja por meio da
constituição de sociedades mistas com o setor do Estado, seja
por investimentos diretos, ou ainda por meio de associações
com empresas privadas brasileiras”. No setor da indústria da

7. G. Priolli, “Vinte velinhas para a Rede Globo”, Lua Nova, CEDEC,


vol. 1, n.º 4, janeiro-março 1985, p. 48.
8. S. Caparelli, Televisão e capitalismo no Brasil. op. cit., p. 30.
9. Em 1972, as proporções respectivas dos três tipos de empresas que par-
tilhavam a economia brasileira eram as seguintes, considerando o capital
imediatamente realizado: empresas governamentais, 35,4%, setor privado
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 41

comunicação de massa, a Globo se situa na encruzilhada dos


projetos do Estado e do capitalismo mais moderno, voltado
para os mercados externos.
A ascensão da Globo corresponde principalmente a uma pri-
meira fase decisiva na definição de um profissionalismo televi-
sivo. Contrariamente a seus concorrentes (como o grupo Assis
Chateaubriand, que em seu apogeu havia no entanto conseguido
controlar uma cadeia de 18 emissoras de televisão, 36 estações
de rádio e 34 jornais), a Globo empreenderá uma reflexão
sobre o mercado. Será a primeira a criar departamentos de
pesquisa, marketing e de formação. Também será a primeira a
criar um departamento de relações internacionais.
No começo da década de 80, a TV Tupi, símbolo dos
primeiros anos da telinha, será definitivamente fechada. Nessa
época, a Rede Globo recolhe de 50 a 70% da audiência dispu-
tada pelas outras três redes (Rede Bandeirantes, Sistema Brasi-
leiro de Televisão e Rede Manchete). A Rede Globo é compos-
ta de 50 emissoras de sua propriedade ou afiliadas. Seus
concorrentes contam respectivamente 26, 22 e 9 emissoras. Duas
destas redes apareceram na paisagem televisiva depois de 1980:
a Manchete, ligada ao grupo de imprensa Bloch, e o Sistema
Brasileiro de Televisão, pertencente ao grupo Sílvio Santos,
proprietário de cerca de 50 empresas voltadas para diversos seto-
res de atividade. Este último recebera a concessão de um pri-
meiro canal em 1975.
A Manchete e o SBT partilharam os despojos da rede Tupi,
no início de 1981. A resistência da Tupi ao governo, que
terminará por anular sua concessão, mostra bem que tipo de
televisão podia triunfar. “A procura de um padrão de televisão
centralizado e eficiente explica que o governo tenha retomado
as sete emissoras da rede Tupi em julho de 1980, pretextando

brasileiro, 24,2%, multinacionais, 40,4%. No nível das cifras de negócios,


a proporção das empresas estatais baixava a 20,7% e a das multinacionais
crescia a 55,3% (C. Barmos, “Le problême de V'étatisation et de la désétati-
sation de I'économie au Brésil”, Etudes Brésiliennes, Paris, agosto, 1977,
p. 41).
42 A. e M. MATTELART

práticas irregulares, segundo o pesquisador José Salomão Amo-


rim. No fundo, estava em jogo sua incapacidade de adaptar-se
ao perfil de empresa moderna exigido para que a televisão
pudesse preencher as funções que lhe tinham sido atribuídas
no modelo de desenvolvimento econômico estabelecido a partir
de 1964!º”
A importância que a televisão assumiu na vida nacional é
largamente atestada pelo aumento do número de aparelhos recep-
tores: em 1965, o Brasil contava com 3 milhões; 20 anos mais
tarde havia 22 milhões. É preciso notar que, num país onde,
em 1970, mais da metade dos domicílios não dispunham de
eletricidade e três quartos não possuíam televisores, as formas
de recepção popular foram por longo tempo coletivas: “Forma-
vam-se grupos de 13 para cada aparelho nas cidades, e pequenas
multidões de 350 para cada receptor na zona rural. Naquela
época, 52% dos domicílios brasileiros sequer possuíam luz
elétrica, e 76% não tinham televisão!!”,
Na constituição do mercado publicitário nacional, a televisão
tem um peso cada vez maior no faturamento global: em 1962
ela captava apenas 24% dos investimentos publicitários; em
1965, 1/3, em 1976, 52%. No início dos anos 80, ela absorvia
mais de 60% (o rádio limitava-se a 15%, e a imprensa a 189%).
Essa porcentagem é extremamente elevada em relação às médias
atingidas nos grandes países industrializados. Em 1983, nos
Estados Unidos, a televisão representava 21,3% do mercado
publicitário. No Canadá, 17,4%. Na França, em 1985, a cifra
era de 18%. No Japão, subia a 35%!, Assinale-se que dos 850

10. J. S. D. Amorim, “Televisión, crisis económica y cambio político en


Brasil”, Communicación y Cultura, nº 13, março, 1985, México, p. 84.
Entre os candidatos ao controle da rede Tupi, figurava igualmente o grupo
Abril, que controla a metade da tiragem das revistas e publicações sema-
nais no Brasil. Deu-se preferência a seu concorrente direto, o grupo Bloch.
11. “A grande mania nacional”, Veja, 10 de setembro, 1975, p. 70.
12. Cifras fornecidas para 1983 por Médias, The World Media Today,
Paris, 1985. Ibidem para o Japão. Para a França, IREP, Le marché publi.
citaire français 1985-1986.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 43

milhões de dólares gastos anualmente pelos anunciantes brasilei-


ros na televisão, a Globo recolhe sozinha mais de 60%.
Para avaliar corretamente estes valores, é preciso acrescentar
que, mesmo que o Brasil ocupe o sexto ou sétimo lugar, con-
forme o ano, no mercado mundial da publicidade, em termos
absolutos isto representa apenas 1,8 bilhão de dólares anuais,
enquanto o mercado americano chega a 55 bilhões. O que
corresponde respectivamente a 1% do produto nacional bruto
brasileiro e a 2,3% do dos Estados Unidos. O perfil das despe-
sas publicitárias no Brasil é revelador de sua estrutura social.
“Nosso mercado é nanico e concentrado, engajando apenas um
brasileiro em cada três no perfil do consumo dos bens e serviços
trombeteados pela propaganda!*.” :
À Rede Globo ocupa hoje o quarto lugar entre as grandes
redes mundiais (networks). Em 1985, seus lucros operacionais
atingiram 120 milhões de dólares sobre uma receita de aptroxi-
madamente 500 milhões de dólares. Pertence integralmente a
um grupo de multimídia. À rede de televisão se acrescentam a
empresa jornalística O Globo, um sistema de radiodifusão, uma
editora, uma gravadora audiovisual (discos e videocassetes), uma
firma eletrônica, uma empresa produtora de programas publici-
tários (que ocupa duzentas pessoas em tempo integral, com
equipamentos ultramodernos capazes de produzir em inglês a
um custo duas vezes menor que nos Estados Unidos), além
de uma empresa promotora de espetáculos e de uma galeria
de arte.
Produzindo uma média de 14 horas de programação própria
por dia (de 60 a 70% de sua programação são de produção
nacional), a Globo tem virtualmente sob contrato todos os talen-
tos artísticos brasileiros. Os americanos observam que essa situa-
ção é comparável à da Metro Goldwyn Mayer na indústria cine-
matográfica dos anos 30-40. Há uma diferença, contudo, em

13. “TV Globo is living up to its name”, Business Week, 16 de setembro,


1985, p. 42.
Observe-se que as cifras de faturamento de uma empresa como a Globo
são sempre difíceis de obter e são forçosamente aproximadas.
14. J. Beting, “O sétimo mercado”, O Globo, 27 de maio, 1982.
44 A. e M. MATTELART

relação às networks americanas: enquanto nos Estados Unidos


a indústria televisiva construiu-se a partir de uma indústria
cinematográfica poderosa, no Brasil o desenvolvimento da tele-
visão deu-se sem relação alguma com o cinema. Um cinema que
teve necessidade da ajuda do Estado para implantar um início
de indústria nacional. Ao contrário das networks americanas, por
longo tempo obrigadas pela legislação federal antitruste a disso-
ciar as funções de produção e de difusão, a Rede Globo fundiu-
as desde o princípio. Conforme a observação de um produtor
independente brasileiro: “A idéia do governo americano, durante
muito tempo, foi de proteger os estúdios de cinema, que se
sentiram desamparados com o advento da televisão comercial.
E até hoje os estúdios de cinema abastecem as emissoras de
televisão. Se no Brasil fosse aprovada uma legislação desse
calibre, as emissoras sairiam do ar. É que as produtoras inde-
pendentes não teriam know-how nem equipamentos para man-
ter uma produção de porte em volume suficiente... No caso
brasileiro, existe antes de tudo, segundo alguns produtores inde-
pendentes, uma grande falta de competência das demais emis-
soras concorrentes da TV Globo em transmitir programas dife-
renciados. Ao contrário, elas se limitam a imitar a Globo no
que ela tem de imbatível, que são as produções de telenovelas!*”,
O monopólio Globo é portanto, de saída, impulsionado como
um modelo de vanguarda de integração horizontal e vertical.
Nos Estados Unidos, foi há pouco tempo — aproveitando-se
da desregulamentação — que a separação rigorosa entre difu-
sores e produtores começou a diluir-se, permitindo a constitui-
ção de grupos integrados poderosos. Em 1986, as três networks
produziam apenas 3,5 horas por semana, e as emissoras, menos
de 10% de seus programas. Todavia, as transformações do
conjunto da estrutura das indústrias audiovisuais dos Estados
Unidos ocasionaram a aproximação entre produção e difusão.
Assim, assistiu-se à compra de estações de TV pelos produtores,
para se dotarem de uma infra-estrutura de difusão comparável à

15. A. M. Lage, “O espaço da independência”, Senhor, n.º 230, agosto,


1985, p. 71.
À ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 45

das networks (MCA/Universal comprando WOR; Fox, Metro-


media; Turner, WTBS); a ligações entre produção e agentes
de syndication (redifusão para mercados secundários) (Coca-
Cola/Columbia com Embassy, Disney); à compra de salas pelos
estúdios de produção; à reestruturação dos majors da indústria
cinematográfica encetada desde o final da década de 60, que
controlam agora a maioria das formas de exploração dos produ-
tos audiovisuais (60% dos programas das networks, 90% da
distribuição em salas de cinema, 63% do vídeo, 69% do mer-
cado da syndication). Evidentemente, no Brasil não houve
maior integração entre cinema e televisão, ainda que esporadi-
camente cresçam os rumores sobre a privatização da empresa
estatal de cinema, a Embrafilme, e sua eventual aquisição pelas
Organizações Globo.

Um símbolo nacional do espírito empresarial

À dinâmica de dependência com relação à indústria estrangei-


ra de programas que predominava ainda no início dos anos 70
foi hoje completamente invertida. Um crítico de televisão escre-
via, em janeiro de 1980: “Terminamos a década com um dos
principais centros mundiais de produção e exportação de progra-
mas, revertendo a tendência à importação e conseguindo uma
alta porcentagem de programação nacional nos horários nobres
(o prime time americano, a premiêre soirée francesa, n.a.), ao
nível de qualquer país mais desenvolvido!””.
Além do fato de ter-se tornado o símbolo de uma empresa-
modelo, a Globo encarna a idéia moderna da identidade nacio-
nal. Quando o grupo compra a filial italiana da Telemontecarlo,
em agosto de 1985, um telegrama do ministro “da Educação do

16. Informações fornecidas pelos “assessores audiovisuais” da Embaixada


da França nos Estados Unidos, MM. Perrin de Brichambaut e Zerbib, por
ocasião do simpósio organizado pelo Ministério dos Negócios Exteriores,
a 17 e 18 de novembro de 1986, em Paris.
17. A. da Távola, “Os anos 70, o grande salto para o sucesso”, art. cit.
46 A. e M. MATTELART

governo da “Nova República” saúda o acontecimento!. “Desejo


externar ao estimado amigo meus cumprimentos pela aquisição
de uma rede de televisão na Itália. Esta corajosa iniciativa é
da mais alta importância para uma maior projeção da cultura
nacional e uma demonstração dã pujança empresarial brasilei-
ra?” Quando o Senado cumprimenta o jornal O Globo por
seus sessenta anos, o faz em tom de epopéia: “A história de
Roberto Marinho se confunde com a própria história do Brasil.
É O Globo das lutas contra os pruridos ditatoriais que dia a
dia empolgava o Executivo, na década de 30: O Globo da luta
contra a transformação do Brasil em país comunista, em 1963;
O Globo das lutas contra o anarcossindicalismo. ..?” >
Acompanhando o regime instaurado em 1964 nos seus obje-
tivos de integração do país, a Rede Globo se colocava como
porta-voz oficioso de um governo no qual a idéia de soberania
compete com a ideologia da segurança nacional. Esta simbiose
do projeto Globo com o modelo político e econômico instaurado
pelos generais foi evocada em numerosas ocasiões pelos dirigen-
tes da empresa de TV. Demonstra-o um fragmento de discurso
pronunciado em 1975 pelo diretor-geral da Globo aos oficiais
da Escola Superior de Guerra, centro intelectual do sistema
político-militar do Brasil: “Toda empresa de televisão se obriga
a atingir o mais vasto público. Esta observação, aparentemente
banal, demonstra bem a convergência dos interesses dos dois
agentes fundamentais estreitamente associados no desenvolvi-
mento da televisão, a ponto de formar um todo: o governo e a
indústria privada... Um dos objetivos principais do segundo
Plano Nacional de Desenvolvimento é o de ampliar as fronteiras
do mercado de consumo. O papel de uma rede de televisão é

18. A “Nova República” é o regime que se inicia com a eleição de um


civil, Tancredo Neves, para a presidência, em março de 1985. Ele será
substituído pelo vice-presidente José Sarney, após sua morte, que se deu
algumas semanas após a eleição.
19. O Globo, 13 de agosto, 1985.
20. O Globo, 7 de agosto, 1985.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 47

atingir todos os segmentos potenciais do mercado, revelando o


advento da modernidade em todas as suas ramificações”.
A Globo deu sustentação ao “milagre brasileiro”, construído
sobre uma taxa efêmera de crescimento elevado mas a um custo
social de concentração dramática das rendas. (Em 1986, 3/4 da
população brasileira ganhava apenas o salário mínimo, que não
cobria senão 1/6 das necessidades de uma família2.) A Globo
acompanhou a idéia de comunicação do “Brasil Grande” que
ocultou tanto o custo político da supressão das liberdades civis
como o custo cultural da censura sobre a criação e a atividade
intelectual.
A partir de 1979, a empresa Globo acompanhará a lenta
abertura democrática do regime militar. Rememorando essas
diferentes etapas no vigésimo aniversário da Rede, um antigo
jornalista da Globo dizia em 1985: “Para a Globo, era como
se o crescimento econômico fosse realmente conquista do povo
brasileiro como um todo. Elogiando o regime, o que fazia expli-
citamente nos telejornais e deixava implícito no conjunto da
programação, a Globo manteve quase invariavelmente uma
postura não-crítica, embriagada talvez com o seu próprio e inegá-
vel sucesso. Mesmo nas vezes em que foi censurada, quando o
regime se excedeu em obscurantismo e burrice, não chegou a
redefinir o seu “pacto de sangue” (...) Com a abertura política
do governo João Figueiredo (...) a já adolescente Globo des-
loca-se, progressiva e discretamente, para uma posição de “inde-
pendência” do regime, mantendo-se entretanto fiel, nos momen-
tos cruciais. . .2”
À imagem de empreendedor moderno, cujos interesses coinci-
dem com os da nação, veio juntar-se a autéola do filantropo,
do conservador do patrimônio, do promotor das artes e da
educação. Em 1977, o grupo criava a Fundação Cultural Roberto

21. Mercado Global, 15 de setembro, 1975, citado por F. Jordão, “TV


Globo rules the brazilian skies”, in TV Globo, Brazilian television in
context, op. cit., p. 6.
22. M. Raffoul, “Au Brésil, trente-deux millions dans la rue”, Le Monde
Diplomatique, janeiro, 1986. Em 1987, a dívida externa do Brasil se ele-
vava a 109 bilhões de dólares.
23. G. Priolli, art. cit., p. 50.
48 A. e M. MATTELART

Marinho. Daquela data em diante, inaugurava-se na Rede Globo,


sob a égide da fundação, o Telecurso 2.º grau, uma experiência
de educação à distância. Apoiado pelo Ministério de Educação
e Cultura, este projeto de educação supletiva se institucionalizou,
e graças a um acordo de co-produção com a Universidade de
Brasília, estendeu-se ao ensino de primeiro grau.
A esta atividade principal se acrescentaram inúmeras outras,
pedagógicas e culturais. Por exemplo, os programas Globo
Ciência (de vulgarização científica) e Globo-Shell Profissão (de
divulgação das diversas profissões e técnicas), ambos transmiti-
dos pela TV Globo; o projeto de multimídia Ciranda de Livros,
apoiado pelo Banco do Brasil e pela firma farmacêutica Hoechst,
que visa a dotar de bibliotecas básicas as escolas das» regiões
mais carentes do Brasil. Acompanham este esforço de incentivo
à leitura pequenos programas publicitários transmitidos igual-
mente pela TV Globo*.
Laboratório experimental, a Fundação Roberto Marinho serve
portanto de alavanca para conduzir a programação das emissoras
de rádio e televisão da Rede Globo a funções outras que vão
além da simples distração. Canaliza também as contribuições
financeiras de outras sociedades privadas que desejam patrocinar
a pesquisa de inovações.
A Fundação Cultural corresponde a uma nova concepção das
sinergias entre o setor privado e o setor estatal. O projeto educa-
tivo se harmoniza com a vontade de ampliar o mercado interno:
a fundação recebeu em 1978 o primeiro prêmio concedido pela
Associação Brasileira de Marketing. As palavras que acompanha-
ram a entrega do prêmio esclarecem em que medida a prática
do mecenato cultural é complementar aos propósitos da empre-
sa: “Aproveitar o imenso potencial da televisão para contribuir
para a educação das pessoas é um tema de caráter universal.

24. A Fundação R. Marinho publica um boletim mensal sobte suas ativi-


dades. Acrescentam-se às atividades culturais, trabalhos de compilação da
memória folclórica, da memória esportiva, trabalhos de restauro de monu-
mentos, preservação de locais significativos. Foi assim que a Fundação R.
Marinho contribuiu, juntamente com o Ministério de Cultura Francês e a
Empresa Rhodia, para reciclar a antiga Alfândega do Rio, projetada em
1820 por um arquiteto francês, e transformá-la na Casa Brasil-França.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 49

Hoje, no mundo inteiro, educadores, cientistas sociais e psicó-


logos debatem a influência do veículo na formação da juventude
e a possibilidade de transformá-lo num efetivo instrumento cultu-
ral. As soluções apontadas divergem em todos os sentidos...
No Brasil, uma fórmula criativa foi encontrada, e parece ser
caso inédito em todo o mundo: a união dos esforços da tele-
visão educativa com a empresa privada, aliando a preocupação
de educar a recursos técnicos e artísticos da televisão particular,
que, em nosso país, alcança um padrão de qualidade reconhe-
cido internacionalmente. .. Pode-se perguntar por que a ABM
entrega sua principal premiação a uma iniciativa que, apesar
de meritória, aparentemente se encontra distante da atividade
puramente mercadológica. Mas se a ABM resolveu caracterizar
sua filosofia de atuação no ano de 1978 como “Mais produtos
para mais brasileiros”, é porque acredita que deve ser preocupa-
ção de toda a comunidade contribuir para ampliar o mercado
interno através da criação de meios para que uma significativa
parcela de nossa população possa participar da vida econômica
do país. Nessa ordem de idéias, o Telecurso 2.º Grau constitui
uma importante contribuição para esse esforço 2”.

Estado autoritário, mercado e estética do espetáculo


Durante os anos de maior opressão (1964-1979), as disposi-
ções do Estado militar designaram o homem do povo como “o
inimigo interno”. Quando se confronta o perfil de cidadão

25. Citado in A. Mattelart et H. Schmucler, L'ordinateur et le tiers-monde,


François Maspero, Paris, 1982, p. 78-79.
No Terceiro Mundo, o Brasil partilha com o México a iniciativa destas
fundações educativas. Com efeito, a exemplo da Globo, o grupo Televisa
dispõe de uma fundação que lhe permite preencher funções que em outros
contextos são da competência do Estado.
26. Durante os anos de regime militar sucederam-se na chefia do Estado
os seguintes marechais ou generais: Castelo Branco (1964-67), Costa e Silva
(1967-69), uma Junta Militar (1969-70), Médici (1970-74), Geisel (1974-78),
Figueiredo (1978-85). O período mais repressivo será o da Junta e o de
Médici. A fase de “liberalização” começará no fim de 1978, para terminar
com a eleição de um presidente civil, em 1985.
50 A. e M. MATTELART

delineado por essa lógica essencialmente coerciva com a lógica


definida pela necessidade de deixar operar livremente as forças
do mercado, pode-se fazer uma idéia da tensão que invadiu na
época todo o sistema de comunicação de massa no Brasil. De
inimigo interno, o povo coagido se converte em público consu-
midor cobiçado, que deve ser adulado.
Após o golpe de Estado que derrubou o presidente João
Goulart, a 31 de março de 1964, coube ao Brasil dos militares
o triste privilégio de inovar em matéria de legislação da comu-
nicação: o famoso Ato Institucional n.º 5,0 AI 5, foi promul-
gado em setembro de 1969. Esse decreto-lei constituiu durante
dez anos o texto fundamental do regime autoritário. Nele busca-
rão inspiração outros Estados militares latino-americanos.
Todo cidadão se transformava num suspeito a partir dessa
data. Calcada sobre a doutrina da segurança nacional, esta legis-
lação supraconstitucional tornava permanente o estado de
exceção: eliminava os partidos e os sindicatos, anulava os direi-
tos sociais e políticos fundamentais, amordaçava a imprensa. O
delito de imprensa passou do direito comum a ser crime
político, bem como a greve, proibida em todo o território
nacional. O ato de “subversão” foi definido como o fato “de
ofender moralmente uma autoridade por espírito faccioso e de
não-conformismo social?””.
Porém, o caráter peculiar da situação criada pelo golpe de
Estado não reside tanto neste novo quadro institucional como
nas modalidades concretas de sua aplicação. Os diversos gover-
nos que se sucederam no período autoritário tentaram institu-
cionalizar o controle direto da mídia, “esta parte do poder psico-
social nacional”, segundo as palavras de um dos principais
ideólogos e geopolíticos do regime, o general Golbery. Mas,
mesmo no momento em que a censura se mostrou mais repres-
siva, particularmente sob o governo Médici, não se pode dizer
que este projeto totalitário de um “ministério da Verdade”

27. Cf. A. e M, Mattelart, De l'usage des médias en temps de crise, Paris,


Editions Alain Moreau, 1979. Ver em particular os capítulos dedicados às
ideologias da segurança nacional e que traçam sua Gênese, p. 217 a 289.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 51

(para retomar a famosa expressão de Orwell) tenha sido efeti-


vamente realizado.
Evidencia-se aqui, sem dúvida, um dos aspectos mais inéditos
(e paradoxalmente um dos menos estudados) desse regime que,
muitas vezes, foi forçado a se afastar de pontos que, de acordo
com a natureza de sua doutrina, deveriam ter orientado sua
política mediata. Este “defeito” ou “insucesso” de um projeto
de controle global dos corações e mentes não terá sido tão pouco
analisado porque a tendência dominante é de interpretar os
regimes autoritários contemporâneos segundo esquemas de anti-
gos autoritarismos? As denúncias sobre o autoritarismo brasi-
leiro não se contentaram em readaptar o campo semântico já
conhecido dos fascismos europeus (a começar por sua designa-
ção no vocabulário militante de “regime fascista” ou “neo-
fascista”, uma vez que o prefixo “neo” é pouco esclarecedor e
aumenta a confusão)?
Na época do nacional-socialismo, Goebbels pôde permitir-se
controlar as práticas de propaganda e de cultura oficial e fechar
as fronteiras. Os tempos mudaram. Por um lado, a racionalidade
da propaganda de Estado que manda organizar explicitamente
a mídia como dispositivo de técnicas disciplinares entrou em
contradição no Brasil com a lógica da cultura de massa. Assim
como entraram em contradição os dois perfis de receptores que
definem os alvos ou destinatários de uma e de outra. Para a
primeira, o cidadão é um subversivo potencial ou de fato; para
a segunda, um consumidor ativo ou em potencial.
Por outro lado, a ditadura militar se desenvolve num momen-
to da valorização do capital na indústria cultural numa fase de
internacionalização desses produtos. O que parecia a rigor ainda
realizável 25 anos antes — isto é, isolar “o teatro das opera-
ções da guerra psicológica contra os inimigos internos” — não
o é mais nesse Brasil que entra precisamente numa etapa acele-
rada de seu projeto de desenvolvimento industrial, de ampliação
e de internacionalização de seu mercado interno, onde a TV
terá um papel pioneiro na conquista da nova fronteira comercial.
A estas diferenças acrescenta-se uma outra: o Estado autoritá-
rio é construído sobre alianças de classes diferentes das dos fas-
cismos da década de 40. O modelo econômico da ditadura não
52 A. e M. MATTELART

favorecia quase nada a constituição de uma vasta base de apoio


social, e no entanto pressupunha um projeto construído sobre
a mobilização política de consideráveis camadas da população.
De fato, o modelo de acumulação do capital favoreceu até os
primeiros anos da década de 70 essencialmente os 20% da
população que puderam (em diversos graus) aproveitar a amplia-
ção do mercado interno. Depois desses anos, quando o modelo
do “milagre” começará a dar sinais de esgotamento à medida
que a “demanda interna” se satura, a ditadura tentará fazer
coexistirem duas políticas, voltadas respectivamente para o mer-
cado interno e para a exportação.
O inédito do autoritarismo brasileiro consiste exatamente
no seguinte: enquanto seu projeto político recorre à coerção e
ao enquadramento policial da sociedade, ao exercício da violên-
cia não-simbólica, o poder do Estado, para assegurar um con-
senso, se dirige efetivamente aos aparelhos mercantis da cultura
de massa, produtos formais de uma concepção política de uma
sociedade em que a opinião pública é reconhecida e atuante.
Uma cultura de massa que corresponde a uma idéia de demo-
cracia representativa, a um projeto de democratização através
do mercado de acesso à informação, à cultura, ao lazer.
O poder do Estado recorre pois a procedimentos caracte-
rísticos de realidades onde a “sociedade civil” tem um papel
ativo, institucionalmente reconhecido, com procedimentos que
pertencem especificamente a uma sociedade situada sob o signo
da “disciplina-mecanismo” e não sob o da “disciplina-bloco”,
para retomar os termos de Michel Foucault. Justamente aí está
o paradoxo que a fase moderna da economia de mercado (e sua
lei de livre circulação dos produtos e bens simbólicos) introduz
no modelo de Estado autoritário tradicional.
Alguns analistas da cultura política do autoritarismo nos paí-
ses latino-americanos observavam o surgimento desta “paradoxal
combinação ideológica”; um liberalismo econômico sem um Es-
tado regulado pelos mercados internacionais e uma estatização
sustentada pela ideologia da segurança nacional. Diz o cientista
político chileno José Joaquín Brunner: “O mercado permite in-
troduzir uma ordem de regulações no comportamento dos indi-
víduos sem interferir no processo de “disciplinarização” das rela-
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 53

ções sociais e sem alterar a produção administrativa de signifi-


cação com um espaço de significação controlado. Além disso, con-
tribui para legitimar as relações entre os indivíduos pelo menos
na esfera da troca, sem tolerar que se expressem demandas co-
letivas na esfera dos valores de uso. Desta forma, ele despolitiza
eficazmente uma porção importante da vida social”?,
Bastante diverso dos fascismos dos anos 40, que tentaram
criar (e em parte o conseguiram) uma vasta base de mobilização
social “transclassista”, um suporte ativo recrutado em todas as
classes a partir de uma politização partidária, o autoritarismo
moderno constrói-se sobre a despolitização, a desmobilização do
povo, o que introduz uma ruptura fundamental em relação aos
populismos latino-americanos inaugurados, “também eles, nos
anos 40.
Os teóricos da publicidade e do marketing assinalaram muitas
vezes que o aumento dos orçamentos publicitários de uma nação
era diretamente proporcional ao estado de sua democracia e de
seu nível de vida. As ditaduras militares modernas desmentiram
este adágio inicial da ideologia do mercado livre. O mito da
comunicação é de fato inseparável do mito do “milagre brasilei-
ro”, divulgado aliás no exterior mediante vultosas campanhas de
promoção multinacionais. A repressão, da qual foram vítimas
numerosos intelectuais que perderam suas cátedras nas facul-
dades de Ciências Sociais e Humanas, de Filosofia ou de Ciên-
cias da Educação, correspondeu o aparecimento meteórico das
escolas e faculdades de comunicação. Em 1975, o Brasil contava
com 53 faculdades de comunicação espalhadas através do país
(11 públicas e 42 privadas). Conforme observava o diretor da
Escola Superior de Propaganda de São Paulo: “O número de
institutos em nível superior para o ensino da comunicação social
existente entre nós não encontra paralelo no mundo inteiro”?.
Nós o reafirmamos: a novidade que uma reflexão sobre estes
anos de ditadura no Brasil traz é a de romper um axioma, isto

28. J. J. Brunner, “La cultura política del autoritarismo”, in Comunicação


& Política, Rio de Janeiro, vol. 2, n.º 1-2, março-junho, 1984.
29. R. Lima Martensen, “O ensino da propaganda no Brasil”, O Estado
de S. Paulo, 20 de dezembro, 1975, p. 4.
54 A. e M. MATTELART

é, a incompatibilidade, a irreconciliabilidade entre um projeto


político autoritário e o processo de formação da hegemonia. Na
abordagem crítica, acreditou-se longamente que havia uma con-
tradição entre um projeto de vigilância abertamente disciplinar e
a criação de uma vontade coletiva sobre a base de um consenso
indolor. As regras do mercado, nesta fase da transnacionalização,
subverteram mais do que nunca este axioma. (Relembremos a
observação de Michel Foucault: “O crescimento de uma economia
capitalista fez apelo à modalidade específica do poder disciplinar
cujas fórmulas gerais, os processos de submissão das forças e dos
corpos, cuja “anatomia política”, em uma palavra, podem ser pos-
tos em funcionamento através de regimes políticos, de aparelhos
ou de instituições muito diversas. ..*”) >

Uma socióloga da literatura, Flora Sussekind, resume bem, no


quadro do Brasil, a complexidade dos procedimentos de controle
e de legitimação, de “governabilidade”, como diria Foucault, do
Estado autoritário moderno (nas zonas de influência da economia
de mercado): “Ao contrário do que se pensa normalmente, a
censura não foi nem a única, nem a mais eficiente estratégia
adotada pelos governos militares no campo da cultura depois de
1964. Assim como no plano estritamente político não se pode
falar destas duas décadas como um todo monolítico, também a
estratégia cultural não se manteve idêntica. Flexibilidade insti-
tucional que tem sido apontada, inclusive, como um dos princi-
pais motivos de o regime autoritário se manter por vinte anos
no poder... Até 1968, curiosamente, houve certa liberdade in-
clusive para a produção cultural engajada. A estratégia do go-
verno Castelo Branco foi, por um lado, expansionista — super-
desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, sobretudo
a televisão; por outro, até liberal com relação à parte contesta-
tória e à intelectualidade de esquerda, desde que cortados seus
possíveis laços com as camadas populares. Tratava-se, isto sim,
de limitar o seu campo de ação a “uma área restrita". Enquanto
isso, O contra-ataque extremamente eficiente do expansionismo
cultural do governo: para as “massas”, um outro interlocutor, a
televisão. E, com a expansão nacional das redes de televisão con-
30. M. Foucault, Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975, p. 223.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 55

cedidas pelo Estado, a certeza de um controle social efetivo em


cada casa que possuísse um aparelho transmissor. É o desenvol-
vimento de uma outra estética, rapidamente assimilada pelo gosto
popular: a do espetáculo. Foi um tiro certeiro da estratégia auto-
ritária, nos primeiros anos de governo militar. Certeiro e silen-
cioso: deixava-se a intelectualidade bradar denúncias e protestos,
mas os seus possíveis espectadores tinham sido roubados pela
televisão *,
Na dinâmica da profissionalização e da internacionalização da
produção, esta estética do espetáculo tornou-se um marco da
“brasilidade” tecnológica, o padrão da modernidade brasileira.

31. F. Sussekind, Literatura e vida literária, Jorge Zahar Editor, Rio de


Janeiro, 1985, p. 13-14.
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3. Os Segredos de Fabricação

A gestão das audiências


Entre as indústrias televisivas dos anos 80, a televisão brasi-
leira é uma das mais competitivas do mundo. As opiniões são
unânimes: o sucesso da maior representante desta indústria é
caracterizado tanto pelo chamado “padrão Globo de qualidade”
como por sua já demonstrada capacidade de análise da disputa
pelo mercado das audiências — traços que definem seu profissio-
nalismo.
Uma sigla domina a pragmática da Rede Globo: Ibope. Tais
letras identificam o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e
de Estatísticas, fundado em 1942 por um profissional local.!

1. Só em 1970, a Nielsen se estabeleceu no Brasil. Anteirormente, duas


outras empresas americanas haviam aberto escritórios, a Marplan em 1958
e a Gallup em 1962. Esta relativa autonomia da instituição do marketing
no Brasil, que contrasta com a frança dependência que marcou desde o
início estas instituições em outros países latino-americahos, é demonstrada
pela existência de importantes agências nacionais de publicidade que dispu-
tam o mercado com as filiais das transnacionais da publicidade de origem
americana. Nos anos 80 encontram-se sempre, entre as cinco primeiras
agências de publicidade, duas ou três agências nacionais, conforme o ano.
Em 1981, o grau de profissionalismo das agências publicitárias brasileiras
estava confirmado: no 28.º Festival do Filme Publicitário, realizado no mês
de junho em Cannes, o Brasil arrebatava 16 prêmios, dos quais 2 leões de
ouro, 2 de prata e 1 de bronze, ultrapassando pela primeira vez os Estados
Unidos e o Japão.
58 A. e M. MATTELART

Se fosse preciso citar uma outra instituição tão soberana quan-


to o Ibope no campo da mídia, o índice Nielsen seria o melhor
termo de comparação. O Ibope marca de tal forma as atividades
da produção televisiva no Brasil que tanto os roteiristas como
os programas são avaliados segundo os pontos que recebem do
Ibope. Foi criado o neologismo “dá Ibope” para apontar os auto-
res e programas que melhor preenchem as exigências calculadas
pelas análises do Instituto de Opinião Pública segundo critérios
de classe, idade, sexo, ocupação e nível de escolaridade. Nas en-
trevistas que dão à imprensa, os roteiristas manifestam a ten-
dência de se auto-avaliarem em relação a seus horários na pro-
gramação, em função do índice obtido no Ibope. Cem pontos
correspondem à totalidade da audiência. Assim confessava Janete
Clair, autora de popularidade consagrada, a propósito de uma
de suas novelas, escrita para o horário das 22h na Globo, Eu
prometo: “Tenho consciência de que não posso ter grandes pre-
tensões. Mas estou certa de que não vou sentir falta dos meus
oitentinhos de Ibope. Antigamente, enquanto não alcançava esse
número mágico, achava que a novela não tinha pegado. Agora,
nesse horário meio ingrato, se der 40 pontos, tenho de ficar
feliz. Aspirar a mais é ilusão ?”. Assim também com Ivani Ri-
beiro, a respeito de quem basta citar a frase abaixo para explicar
como as emissoras nela confiam: “Ivani Ribeiro sempre foi
Ibope certo *”.
A tirania que o Ibope exerce sobre a programação se traduz
pelo direito de vida ou morte sobre um programa. Uma teleno-
vela que não obtém, depois de certo número de capítulos, um
nível de Ibope satisfatório será concluída antes do tempo pre-
visto. Em troca, aquela cujo sucesso no Ibope se mantenha será
prolongada na telinha.
A Globo foi a primeira emissora de tevê a atribuir ao Ibope
uma importância capital, Cliente assídua das sondagens dessa
instituição que presta serviços a toda a mídia nacional, a Globo
criou seus próprios departamentos de pesquisa e análise. Assu-

2. “Quatro anos depois, a volta da novela das 10”, O Estado de S. Paulo,


18 de setembro, 1983, p. 35.
3. “Geléia real em novo rótulo”, Isto É, 7 de outubro, 1981, p. 66.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 59

mindo a experiência de planejamento da programação e da siste-


matização da escuta do feedback, iniciada pela Rádio Nacional —
a mídia mais popular dos anos 40 e 50 —, a Globo sempre
apoiou a evolução de suas estratégias em uma análise das dife-
rentes classes e grupos sociais. Numa primeira fase, retomando
as fórmulas que haviam assegurado o sucesso das rádios mais
populares, no fim da década de 60 e começo da seguinte, a Globo
assentará sua estratégia sobre o que um sociólogo da mídia brasi-
leira chamou de “estética do grotesco”. O grotesco significava
uma aliança simbólica muito singular da produção televisiva com
os setores pobres ou excluídos do consumo nessas ilhotas de
desenvolvimento que constituem Rio e São Paulo *. “Foi um pe-
ríodo marcado por intensas migrações, coma fuga do campo e
a busca da ilusão de vida melhor nas cidades. Formaram-se os
cinturões de miséria em volta das metrópoles. E essas camadas
que os especialistas de marketing situam como classes C e D
transformaram-se no alvo das redes de televisão *.”
Nesta época, os programas de maior sucesso eram os humo-
rísticos, dos quais participavam os grandes artistas populares e
os principais animadores como o clown Chacrinha, Dercy Gon-
çalves, Flávio Cavalcanti, etc., que as televisões disputavam entre
si a peso de ouro.
Uma vez conquistada a audiência destas categorias com esses
temas populares, era chegado o momento de a TV Globo dar
preferência às categorias À e B, as classes integradas no mercado
de consumo. Procurou então afirmar sua supremacia equipando-
se antes das outras emissoras com as tecnologias de ponta. (Por
longo tempo, foi a única a possuir o Editec, o editor eletrônico
que lhe permitiu aperfeiçoar sua famosa técnica de montagem co-
nhecida como “padrão global”). Conservou a posição de van-
guarda em todas as inovações tecnológicas, conforme demonstra
hoje a importância de seu departamento de engenharia televisiva.
Contando com alto grau de profissionalização para atualizar sem-
pre seu padrão de qualidade técnica, a Globo vai além da con-
quista das classes média e alta do país: enfrenta o desafio da

4. M. Sodré, A comunicação do grotesco, Petrópolis, Vozes, 1972.


5. S. Caparelli, Televisão e capitalismo no Brasil, op. cit., p. 34.
60 A. e M. MATTELART

formação da rede nacional e, mais ainda, o do mercado interna-


cional que já se delineia.
Como observa uma historiadora do rádio e da televisão brasi-
leiros: “A inclusão de vários departamentos como o de Pesquisa,
Mercadologia e Treinamento mostra a preocupação com a racio-
nalidade técnica e com o desejo de ampliar a audiência. A partir
daí, o chavão “Dar ao público o que ele quer e merece” e o empi-
rismo passaram a ser abandonados. A fórmula agora era criar
novas necessidades e influenciar no sentido da aceitação de ou-
tros padrões, principalmente pela imposição técnica e pela “emba-
lagem” das produções... O formato luxuoso de grande monta-
gem (embalagem) e padrão técnico também prenunciavam o dese-
jo de exportação... O planejamento, nesses termos, pôde ser
detectado quando a Globo, no final de 1972, assombrou a todos
apresentando a programação de 1973 com novos visuais com-
patíveis com a estratégia exportadora, perfeitos cartões de visita
para as produções brasileiras. Os preços das inserções publicitá-
rias, sobretudo no horário nobre, subiram, como que a evidenciar
a qualidade dos novos produtos, e, ao mesmo tempo, pata per-
mitir fazer frente à perda de ChasEalia e outros remanescentes
da programação anterior *”.
Para os dirigentes da emissora, o padrão Globo é antes de
tudo “um problema estético, de imagem”. “O que acontece é
que a Globo conseguiu, em termos de televisão, uma imagem de
uma qualidade tão alta que internacionalmente eu acho que é a
melhor. A quase obsessão que o Boni tem pela limpeza da ima-
gem é tão grande que a imprensa explorou muito isso, e se con-
funde a qualidade técnica, a qualidade plástica -da televisão com
a mentalidade7.”
A lei do Ibope é a lei da concorrência. Ela comanda as altera-
ções na programação, flexível o bastante para modificar os ba-

6. M. E. Bonavita, História da comunicação, op. cit. Assinalemos que só


em 1980 será criada a Divisão Internacional da Globo para enfrentar o
crescimento das exportações de programas. Por outro lado, pequena anota-
ção à margem: o clown Chacrinha voltará à tela da Globo nos anos 80.
7. Declaração do diretor da Divisão de Análise e Pesquisa da Globo, in
R. Miranda e C. A. Pereira, Televisão, As imagens e os sons no ar, O
Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 36.
b
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 61

lizamentos dos diversos gêneros e formas. Desta perspectiva,


É interessante observar como, no curso dos últimos anos, as ca-
racterísticas das diversas novelas que preenchem os diferentes
horários do final da tarde e da noite tentaram fixar-se: especial-
mente as novelas das 19, 20 e 22 horas. A distribuição horária
dos programas estabilizou perfis: a novela das 19 h é mais leve,
bastante próxima da comédia; a das 20 h, mais dramática, levan-
tando problemas sociais; a das 22 h, que se dirige a um público
adulto, versa sobre temas mais polêmicos ou satisfaz a elite cultu-
ral, Doc Comparato, um dos principais roteiristas da Globo, mos-
tra como os diferentes estilos das novelas se adaptam ao ritmo
do cotidiano, acompanhando a segiiência das atividades no seio
do universo doméstico: “A novela das 18 h-concerne principal-
mente a um público doméstico, de mulheres e crianças. Às 19h
o público inclui as pessoas que retornam do trabalho: a novela é
mais radiofônica que visual, mas leve, para permitir que se dedi-
quem a suas ocupações. Às 20 h, é o drama, a novela dramática *”.
Este perfeito esquema de adequação ao público-alvo desestabi-
liza-se quando o concorrente resolve inserir no horário nobre e
principalmente entre 20 e 21 h um programa que ameace arre-
batar à Globo sua supremacia. A concorrência se estabelece tanto
entre as novelas nacionais de autores consagrados, interpretadas
pelos melhores artistas da tevê, como em relação às grandes
séries internacionais. Assim foi em meados de agosto de 1985,
quando o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) programou para
as 21h20 a série Pássaros feridos”.

8. Entrevista com Doc Comparato realizada em agosto de 1985 por M. e


A. Mattelart.
9. Adaptada para a televisão a partir do romance da australiana Colleen
McCullough, The thorn birds (1983) — Pássaros feridos —, esta, minissérie
teve os mesmos diretores que o famoso documentário dramático Roots —
Raízes —, e foi lançada pela ABC. Seu custo: 20 milhões de dólares para
cinco capítulos. Foi por ocasião desse programa que Sílvio Santos pôde se
vangloriar de ter atingido igualmente as classes À e B: “O maior lucro de
Pássaros feridos foi o fato de termos provado ao público e aos anunciantes
que, com um bom produto, penetramos em todas as classes sociais. Com
isso, contrariamos aquela noção de sermos uma emissora das classes baixas,
que a Globo tenta vender, inclusive junto às agências de publicidade”.
(“O lucro do SBT é o prestígio”, Folha de $. Paulo, 24 de agosto, 1985.)
62 A. e M, MATTELART

A Globo, que reconheceu ter cometido um “erro estratégico”


não comprando a série quando a Warner lhe fez a proposta, res-
pondeu à ameaça alterando a hora do início da novela Rogue
Santeiro, cujos primeiros capítulos haviam obtido sucesso estron-
doso. O jornal Folha de S. Paulo relatou a guerrilha das emissoras:
“O Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) comemora seu quarto
aniversário com grande alarde, atingindo níveis de audiência ex-
traordinários para o horário noturno de meio de semana e, com
isso, motivando a Rede Globo a adotar medidas drásticas de
contra-ataque, alterando até o costume de colocar a programação
no ar com pontualidade. A responsabilidade pelo rebuliço é da
minissérie norte-americana Pássaros feridos, exibida desde a úl-
tima segunda-feira pelo SBT, que em São Paulo atraiu mais
do dobro de telespectadores que a emissora rival no horário das
22 horas 'º”.
À novela supercampeã da Globo — que devia terminar em
fevereiro de 1986 com um Ibope triunfante ao longo de seus
209 capítulos (atingiram 100% nos últimos) — terminava nor-
malmente às 21h55. A Globo deslocou inesperadamente seu iní-
cio, para que os telespectadores não pudessem assistir simulta-
neamente ao fim do capítulo da novela e às primeiras imagens
da série americana. Embora se pudesse ler no horário dos pro-
gramas: “Pássaros feridos, horário previsto: 21h20, sujeito a
alterações”!
Vê-se que a Rede Globo tenta por todos os meios captar a
maior parte dos recursos publicitários nacionais, concentrar a
maioria dos talentos e recursos de produção, convocar diariamen-
te em média três quartos da audiência: enfim, o. monopólio sem
disfarces.
Em geral, só se conhece da produção brasileira o gênero no-
vela. Se é fato que nos blocos das 19 e 20 horas a novela reina
soberana, outras formas de programas foram criados, até mesmo
para os horários de grande audiência. A lei da concorrência, aliás,
estimulou também nesse ponto uma política de inovação. Assim
nasceram os seriados que comportam diversas variantes: séries

10. “SBT provoca atrasos na Globo”, Folha de $. Paulo, 23 de agosto,


1985, p. 43.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 63

como Malu mulher, compostas de 40 a 45 episódios no máxi-


mo, constituindo cada um uma unidade autônoma; os Casos
Especiais, reportagens ficcionais de tipo policial; as minisséries,
quase sempre adaptações de obras literárias (Lampião e Maria
Bonita, sobre o mito do cangaceiro; O tempo e o vento, da obra
de Érico Veríssimo, etc.). Porém, séries e minisséries estão longe
de representar no mercado internacional um gênero específico
da indústria televisiva brasileira. São bastante bem sucedidas no
exterior, recebendo muitos prêmios. O caso da série Malu mulher
é sem dúvida significativo. Lançada na Rede Globo em 1979,
em 1983 já havia sido apresentada em 28 países. Seu tema fe-
minista suscitou discussões apaixonadas tanto na Suécia como
em Cuba, na Grã-Bretanha ou nos Países Baixos.
A história da produção e da programação de televisão no Brasil
demonstra portanto que as estratégias de desenvolvimento da
novela são compatíveis com a pesquisa de outras fórmulas, mes-
mo que a novela continue sempre como eixo vital dessa indús-
tria. No horário das 22 horas, que sofreu maiores flutuações, a
novela foi lançada em 1969, suspensa em 1979 e reintroduzida
em 1983. Por ocasião deste último retorno, os dirigentes da in-
dústria Globo explicaram claramente porque é cotado este gêne-
ro: primeiramente, a novela tem custos de produção mais baixos
que as séries; além disso, tem maior potencial de internacionali-
zação; assegura trabalho durante um período mais longo ao elen-
co de reserva, a diretores e técnicos; enfim, é menos sujeita à
censura que os “seriados” !,

Uma obra aberta?


“As telenovelas estão vivendo uma fase intensamente mer-
cadológica. O auge artístico do gênero foi alcançado em meados

11. “Quatro anos depois, a volta da novela das 10”, O Estado de $. Paulo,
18 de setembro, 1983, p. 35. Na revista Amiga (dedicada às fofocas da
tevê) de 24 de março, 1983, tinha-se a confirmação do último elemento
concernente à censura: “Os custos elevados de produção e a incerteza pro-
veniente dos cortes sistemáticos da censura haviam motivado a interrupção
dos seriados das 22-horas”. (Ver mais adiante o desenvolvimento de nossas
idéias sobre a censura.)
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66 A. e M. MATTELART

da década de 70... Hoje a telenovela não vive uma fase artísti-


ca ruim, porém não reproduz a intensidade artística da década
passada. Vive uma fase industrial, correta como produção, mas
algo repetitiva dos esquemas já provados como inevitável su-
cesso no mercado. .. O autor atua como uma mistura de criador
e ao mesmo tempo de responsável por um produto que não pode
desconhecer o universo do mercado a que se destina 2.” Estas
afirmações do crítico Artur da Távola, em 1983, coincidem com
as de Daniel Filho, diretor e produtor de séries e de novelas
desde o início da televisão. “Tenho pena daqueles que estão
começando na televisão. Hoje, quando um jovem recebe a in-
cumbência de dirigir uma telenovela, ele não pode errar. O es-
quema comercial montado em torno de um programa desse tipo
não permite, nem ao autor, nem ao diretor, nem a ninguém a
possibilidade de erro. Quando começamos, fazíamos daquilo tudo
uma grande brincadeira, mas com muita responsabilidade, muita
vontade de acertar. Entretanto, podíamos errar, que ninguém
falava nada. Assim, podíamos experimentar e, errando ou acer-
tando, íamos aprendendo. Hoje isso representa muito para quem
trabalha na televisão desde o início B.”
Em nossa década, a produção da telenovela cada vez mais
inscrita em um processo industrial manifesta contudo a dialética
que continua a existir entre a racionalidade industrial hegemôni-
ca e um trabalho de produção do texto ainda artesanal.
O autor recebe o pedido de um texto de novela para um
determinado horário. Uma novela que venha a ter a adesão do
público vai se manter pelo menos seis meses no vídeo, à razão
de um capítulo por dia durante os cinco dias da semana, o que
exige que o autor se dedique exclusivamente a essa tarefa du-
rante todo esse período. Ele redige uma primeira série de trinta
a quarenta capítulos que permitem à empresa de televisão testar
as possibilidades de sucesso dos personagens e do tema. À se-
guir, o ritmo normal de criação é de um capítulo por dia.

12. A. da Távola, “A novela e sua intimidade”, O Globo, 11 de outubro,


1983.
13. D. Filho, citado in “A história da telenovela”, Melhores momentos da
telenovela brasileira, Rio de Janeiro, Rio Gráfica, 1980, p. 35.
+
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 67

Que percurso segue o texto uma vez saído das mãos do autor?
É entregue ao diretor da produção (chamado “produtor”), ao
responsável pelos cenários, ao realizador da novela (chamado “di-
retor”). Somente a este último e aos principais atores é confiado
o script, guardado com ciúme, para evitar o risco de que o desen-
rolar da intriga seja ventilado. O departamento de som recebe
as indicações que lhe permitirão encontrar o acompanhamento
musical adequado, importantíssimo para o sucesso. (Índice dessa
importância: uma novela proporciona em média vendas de
200 000 discos LP no Brasil e de 600 000 a 1 milhão no mer-
cado internacional !.)
Escrever uma novela é um trabalho muito árduo, que obriga
o autor a observar um ritmo intenso, de uma regularidade abso-
luta. Isto é testemunhado por todos os que fizeram a experiên-
cia. Citemos Aguinaldo Silva, autor de 111 dos 209 capítulos
de Rogue Santeiro, entre muitos outros roteiros: “Durante oito
meses, não se pode fazer outra coisa. Não se pode pensar em
outra coisa. Não se pode sair para jantar com amigos nem ir dan-
çar. Nem mesmo cair de cama. Ficar doente é o terror do autor.
Quando não se pode escrever um capítulo por dia, deve-se escre-
ver dois no dia seguinte. Escrever uma novela obriga a ter um
emprego do tempo diário absolutamente regular. Levanto-me cedo
de manhã. Escrevo até a hora do almoço. Descanso uma hora e
volto ao trabalho. Escrevo todos os dias, sete horas por dia. É
um trabalho estafante. Mas sempre trabalhei muito. Depois de
Roque Santeiro, penso em descansar durante um ano 2”,
O autor é cada vez mais frequentemente assistido por um
co-autor, e recebe o apoio de um ou dois roteiristas estagiários
e de um continuísta. (Este último zela pela coerência interna
do universo representado — linguagem, moda, mobiliário, etc.

14. Por meio do selo Som Livre, sua ramificação musical, a Globo criou
filiais da gravadora na Itália em 1982 e na França em 1986. O estúdio de
gravação da empresa no Rio de Janeiro emprega em caráter permanente
42 pessoas. Artistas do porte de Gal Costa e Gilberto Gil são seus con-
tratados.
15. Entrevista com Aguinaldo Silva, realizada em agosto de 1985 por M.
e A. Mattelart.
68 A. e M. MATTELART

—, trabalho particularmente importante para a recriação da rea-


lidade que fundamenta o sistema representativo da novela *.)
Vários tipos de feedback intervêm na produção do texto, e
aí reside sem dúvida a profunda singularidade desta forma de
criação dramática. O primeito tipo de feedback vem dos insti-
tutos de sondagens e sobretudo da divisão de análise e pesquisa
da empresa Globo. Além disso, grupos de telespectadores são
regularmente convidados a dar sua opinião sobre o roteiro, os
personagens. Estas medidas das reações da opinião pública, algu-
mas realizadas segundo alta tecnicidade, são acompanhadas de
uma análise da volumosa correspondência enviada à emissora e
ao autor. Este último completa este feedback por seu próprio
sistema de retorno, muito mais artesanal, pessoal e cotidiano. Ci-
temos novamente Aguinaldo Silva: “Minha faxineira volta todas
as noites à sua casa na favela. Ela me conta as reações dos compa-
nheiros de ônibus ou dos seus vizinhos ao capítulo da véspera.
Ontem, por exemplo, pediram-lhe que me dissesse que Roque
Santeiro não devia ser expulso da cidade. ..!?”
A originalidade dessa maneira de escrever consiste portanto
no fato de que o autor produz seu texto enquanto este está no
ar, e pode incorporar as reações do público, alterar, corrigir, etc.
Nesta realidade temporal própria da telenovela, o autor conta
com a duração para desenvolver seus personagens. À criatividade
dos autores pode levá-lo a modificar a linha inicial de certos
papéis que, enquanto interagem, lhe revelam novas dimensões.
Uma importante ressalva, contudo: este gênero é eminentemente
codificado. Quase invariavelmente, os heróis se encontram no
trigésimo capítulo, e passam os outros 120 a remover os obstá-
culos que se opõem a seu amor...!º

16. O trabalho do assistente consiste fundamentalmente em discutir o de-


senvolvimento da trama com o autor e em escrever os diálogos de certas
cenas previamente esboçadas por ele. É comum que os assistentes gastem
para escrever o dobro do tempo que os autores. In “A quatro mãos”,
Veja, 26 de outubro, 1983.
17. Entrevista previamente citada.
18. Outra forma desta codificação: a distribuição dos papéis. Em geral,
uma novela conta com 20 personagens principais, 20 secundários e uns
100 figurantes.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 69

Esta característica da novela merece, entretanto, um exame


mais demorado: o público orienta em grande parte a evolução dra-
mática. Suas reações influenciam as situações, as personagens, o
curso da narração. Foi sem dúvida Dias Gomes quem melhor
definiu esta especificidade do gênero brasileiro, caracterizando
a novela como uma “obra aberta”, isto é, “aquela que pode ser
alterada durante sua realização, coisa que nem o teatro conse-
gue. Quem altera? Tudo. As reações do público e até um aci-
dente na vida do autor ou dos atores”. Quem transmite as rea-
ções do público? Dias Gomes explica: “Ninguém, a gente sente.
Eu estou sentindo aqui as reações de vocês: o que estão dizendo,
mesmo que eu não queira, está entrando na minha pele, na mi-
nha cabeça. Sou um sujeito sensível, sou um artista, E como não
vivo numa torre de marfim, ouço opiniões de diversos tipos de
pessoas. E tem as cartas que recebo, que são de todas as classes.
Geralmente quem escreve cartas são estudantes ou pessoas de
classe média para baixo. Intelectual não escreve carta. Acho que
tenho informação de todas as classes, e a repercussão, a interpre-
tação de sua obra também atua sobre você. Quando eu vejo
um ator desempenhar bem um papel, mesmo que eu não queira,
me entusiasmo com aquele papel e sou capaz de aprofundá-lo.
E o oposto também pode acontecer. Realmente, a influência da
interpretação é maior que a do público, porque aí é objetivo, a
telenovela nos proporciona uma espécie de laboratório no qual
você faz a experiência e vê o resultado imediatamente "”.
A novela também é uma “obra aberta” quanto à duração do
capítulo: cada um leva normalmente 40 minutos, mas às vezes
se estende (5 minutos) ou se encurta (de 2 a 3 minutos) para
satisfazer às necessidades do desenvolvimento narrativo. Esta
flexibilidade relativa trouxe, aliás, alguns problemas para a ex-
portação. Para se adaptar aos padrões de programação estrangei-
ra, à Globo teve que padronizar os capítulos exportados ?.

19. In “Uma nova linguagem para a telenovela?”, mesa-redonda com Dias


Gomes, dramaturgo, Ivo Cardoso, jornalista e dramaturgo, e Muniz Sodré,
sociólogo da comunicação, O Globo, 18 de julho, 1976, p. 3.
20. M. Silverman, “TV Globo's foreign sales blazing a bread trail to world
program markets”, Variety, 25 de março, 1987, p. 133.
70 A. e M. MATTELART

A censura e o poder do texto


As interações múltiplas que definem a novela como um pro-
cesso de comunicação aberto contrastam com o que poderíamos
chamar de imperativo do texto: tudo é minutado, tudo é regis-
trado no papel. O espírito planificador da indústria encontra aqui
restrições impostas por uma história política: são as restrições
da censura.
Em todos os scripts, tanto de novelas como de séries, reme-
tidos a diretores, produtores e atores, continua a figurar a se-
guinte menção: “Os cortes assinalados neste script pela Divisão
de Censura de Diversões Públicas do D.P.F. devem ser rigoro-
samente obedecidos”. A abertura política não mudou nada. En-
tretanto, foi instituída uma comissão que reúne, entre outros,
antigos artistas e autores censurados.
Dois casos famosos ilustram esta história da censura. Casos
extremos em que a novela ia ser de tal forma mutilada pelos
censores que a Globo preferiu retirá-la da programação quando
cerca de trinta capítulos já estavam prontos. Rogue Santeiro,
inspirada num conto popular (cordel) sobre um mito do Nor-
deste, e Despedida de casado, de Walter George Dutst?t, O
caso de Rogue Santeiro reveste-se de um interesse suplementar:
censurada e afastada da telinha em junho de 1975, voltará em
nova versão que conhecerá um sucesso incrível em 1985-1986,
sob a Nova República.
Para criar esta novela, o autor Dias Gomes partiu de uma
peça de teatro de 1965, de sua própria autoria. Ele relata as
diferentes fases da censura experimentada em 1975: “A situação
ficou meio esquisita, porque a novela seria levada ao ar às 8
horas da noite. A primeira proibição foi justamente a do horá-
rio. À Globo pediu, então, que a novela fosse liberada para o
horário das 10. Mas a Censura informou que, ainda assim, have-
ria muitos cortes. Como não sabíamos que cortes seriam esses,
insistimos em saber qual era o problema. Fomos informados de

21. Os autores da literatura de cordel são poetas e contistas populares,


frequentemente anônimos. Esse gênero, autenticamente enraizado na cultura
popular, desenvolveu-se principalmente nas regiões pobres do Nordeste.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 71

que do primeiro capítulo só restariam 10 minutos de gravação;


do segundo, 15; e assim por diante. Voltamos a insistir em que
queríamos apresentar a novela assim msmo, e a Censura res-
pondeu que teria de revê-la, pois era provável que fizesse novos
cortes. Até que nos aconselhou a não insistir no assunto...” Os
termos exatos da proibição: “Ofensa à moral, à ordem pública
e aos bons costumes 2”. Na época, a Globo perdeu mais de 1,5
milhão de cruzeiros — a quantia investida na produção dos
primeiros 31 dos 148 capítulos previstos para uma novela con-
cebida como superprodução, que havia mobilizado 40 atores e 33
técnicos durante 500 horas de filmagem.
Em 1985, quando o tema é liberado, será preciso refazer e re-
filmar tudo. A nova versão, escrita por Dias Gomes e Aguinaldo
Silva, faz uma referência mais explícita à situação nacional. Roque
Santeiro recria o microcosmo do Brasil atual falando de uma ci-
dade que vive em torno de um mito ?. “Há dez anos, a novela
questionava o milagre de um falso santo, e agora questiona o mi-

22. “A volta de Roque Santeiro, o que nunca veio”, Jornal do Brasil, 16 de


julho, 1979, p. 9.
23. Roque Santeiro é inspirado no cordel A fabulosa estória de Roque
Santeiro e sua viúva; a que era sem nunca ter sido, história que faz parte
do patrimônio popular brasileiro. Roque Santeiro conta a vida de uma
pequena cidade do Estado da Bahia, Asa Branca. No início da história,
Roque Santeiro, hábil escultor de imagens de santos que estava noivo e
gostava de tocar sanfona, já está morto, tragicamente assassinado pelo terrí-
vel cangaceiro Trovoada, que, com seu bando, invadiu a cidade. Enquanto
toda a população fugia diante do bandido, Roque Santeito permaneceu à
porta da igreja para enfrentá-lo. Foi visto com vida pela última vez pelo
patriarca do lugar. Dezessete anos se passaram. Asa Branca transformou o
jovem artesão em mito, em lenda, e se orgulhou de seu herói e mártir.
Depois da morte de Roque, Zé das Medalhas deixou de ser fabricante de
imagens de santos e ficou rico reproduzindo a face do herói da cidade.
Asa Branca conheceu o progresso econômico e tornou-se atração turística.
Porcina, viúva de Roque, mandava na cidade e na vida do milionário
Sinhozinho Malta. Porém um dia o herói reaparece, e, indignado com a
situação, começa a exigir sua parte dos negócios. Prevendo o que podia
acontecer, os habitantes de Asa Branca se reúnem e matam seu herói.
Preferem continuar a viver numa cidade próspera com um herói morto a
ter seu herói vivo numa cidade arruinada economicamente. Na nova versão
produzida para a televisão dos anos 85-86, o herói escapa da morte.
72 A. e M. MATTELART

lagre que não aconteceu. De qualquer forma, provoca uma dis-


cussão sobre este Brasil que precisa libertar-se dos seus mitos,
como o do futebol, do carnaval, da Fórmula 1 e da Loto *.”
Além das pressões da censura política — “o que sempre foi
vedado à televisão foi o questionamento da realidade brasileira”
(Dias Gomes) —, existiu e continua a existir a obsessão da cen-
sura moral unida contra a pornografia, o erotismo, a liberação
sexual, e por outro lado, contra a violência policial. As séries, e
em particular o gênero policial, que deu ao Brasil a famosa série
dos Casos Especiais e a dos Caso Verdade, são mais passíveis
desta última razão de censura 2. Um dos casos mais conhecidos
é o da série Bandidos da Falange, vinte episódios que contam
como se tinha formado uma organização clandestina do crime nas
prisões cariocas. Fato único nos anais da Censura: a Globo foi
obrigada a gravar todos os episódios, para que pudessem ser
julgados. Depois de muitas peripécias, a série foi liberada em
1982, sem cortes, mas para o bloco das 23h. Os cortes exigi-
dos obedeciam às seguintes especificações: eram permitidos os
tiroteios entre bandidos e forças policiais, mas não podia haver
mortes nem de um lado, nem de outro. Os diálogos ou cenas
em que intervinham prostitutas deviam ser suprimidos *.
O autor de um Caso Verdade censurado, “Maria testemunha”,
explicava, em 1986, a duplicidade do tratamento reservado pela
Censura, impedindo a denúncia de policiais criminosos e omitin-
do-se quanto à violência das séries americanas: “Na minha opi-
nião, é uma forma quase sutil de censura política; não se pode
falar de policiais criminosos. Essa mesma censura libera os enla-
tados americanos que usam a violência como forma de atração.
Nosso programa não estimula a violência, ao contrário ?'”,
Deixemos a Doc Comparato a tarefa de precisar o impacto da
censura sobre o processo de produção: “Os autores têm de fato
mais poder que os diretores. Porque tudo está escrito. É o poder

24. Aguinaldo Silva, in O Globo, 1.º de agosto, 1985, 2º Caderno, p. 2.


25. Inspirando-se quase sempre na atualidade nacional, a série Caso Ver-
dade trata geralmente de problemas sociais.
26. “Em câmara lenta”, Veja, 8 de setembro, 1982.
27. A. Sirkis, Jornal do Brasil, 19 de agosto, 1985, Caderno B, p. 5.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 73

do texto. Por que se chegou a esse estado de coisas? A ditadura


é que o impôs. Durante a ditadura, todos os textos deviam it a
Brasília, e o censor decidia o que podia permanecer e o que devia
ser suprimido. Depois disso, ele não tinha mais o direito de
modificar nenhuma palavra do texto. Portanto, o Estado influiu
no processo de criação e de produção *”.
À censura constitui uma das limitações com as quais os auto-
res aprenderam a conviver. Inventaram meios para contornar
essa agressão, como por exemplo a estratégia da piranha descrita
por Dias Gomes: “Quando se quer que um rebanho atravesse
um rio, sacrifica-se uma rês. Enquanto as piranhas a devoram,
faz-se passar o restante sem dano. O jogo consiste em inventar
um episódio que concentre toda a atenção da censura. A censura
faz parte de minha vida profissional. É como uma mulher com
quem eu viveria com repugnância ””.
O que há de mais normal para o sistema repressivo da dita-
dura militar do que usar de seu poder de censura? O que há de
mais normal também do que usar destas artimanhas e rodeios
estratégicos?
Uma ordem repressiva também não funciona sem a interio-
rização das novas normas do “dizível”, do que pode ser dito
e do que deve permanecer não dito. A autocensura foi sem dúvi-
da a forma mais presente da censura no dia-a-dia das práticas de
criação televisiva. Entretanto, este aspecto, embora de impor-
tância capital, é difícil de documentar, tão perfeitamente incor-
porado está à realidade.
Se a censura exercida pelas autoridades federais é bastante
fácil de ilustrar — deve invocar razões, expor motivos —, por
outro lado, a censura praticada pela Globo se deixa dificilmente
pegar em flagrante delito, a menos que se apresentem casos
marcantes, que provoquem escândalo. Um desses casos excep-
cionais se deu em 1979 com a telenovela Os gigantes, cujo tema
amoroso era influenciado por Jules et Jim, de François Truffaut.
O autor, Lauro Cécar Muniz, situava a ação na zona tutal, con-

28. Doc Comparato, entrevista citada, de M. e A. Mattelart.


29. Dias Gomes, citado por J. F. Lacan, Le Monde aujourd'bui, 22-23 de
julho, 1984, p. III.
74 A. e M. MATTELART

trariando a regra habitual, que era de situá-la em zonas urbanas.


Nessa região, põe em cena uma grande multinacional da indús-
tria leiteira, que em muitas ocasiões se oporá às empresas locais.
A Censura federal focalizou a intriga amorosa: uma mulher que
vive com dois homens. Várias vezes, a ordem moral exigiu
cortes. Mas após uma centenas de capítulos, a questão crucial
— que obrigará o autor a depor as armas — se revelou não ser
apenas a da moral sexual. As pressões conjuntas dos anunciantes
e da Globo para dissuadir Lauro César Muniz de continuar a pôr
em cena os “malvados” da multinacional culminaram em sua
dispensa. Segundo o próprio Muniz, com oito anos de casa, tendo
criado cinco de suas nove telenovelas para a Globo, foi o fato
de ter tornado públicas essas pressões em depcimento a ma re-
vista que provocou a ruptura imediata de seu contrato *.

O merchandising: tudo é suporte, tudo é mídia

Uma outra limitação, quo não faz parte do universo das refe-
tências políticas, como a censura, mas diz respeito principalmente
à lógica do produtto, é identificada pela palavra merchandising.
Trata-se de inserir mensagens comerciais no texto e na imagem
(diálogos, ambiente, personagens), transformando tudo o que
povoa o espaço de um capítulo em mídia. “Obrigados (ou quase
isso) a inserirem mensagens comerciais em seus textos, transfor-
mando seus personagens em garotos-propaganda camuflados (que
só tomam este refrigerante e aquela cerveja, só fumam tal e qual
cigarro, só compram naquela butíique, só andam em certa bici-
cleta, ou só passam suas luas-de-mel em navios de determinada
agência de viagem), os autores se vêem convertidos em subli-
minares redatores de publicidade *!,”

30. Entrevista com Lauro César Muniz, por J. J. Sarques, A ideologia


sexual dos gigantes, Brasília, Departamento de Comunicação, Universidade
de Brasília, 1981.
31. D. Aragão e A. Beuttenmuller, “As novelas estão em crise, mas fatu-
ram como nunca”, Jornal do Brasil, 15 de junho, 1980.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 75

Esta prática remonta à primeira radionovela introduzida pela


a

Colgate. Mas aprimorou-se consideravelmente, e o Brasil adqui-


riu neste domínio particular uma habilidade superior à dos Es-
tados Unidos, onde o merchandising luta contra a resistência
crescente de alguns setores do público e de algumas associações
de consumidores. De início abandonada aos apetites selvagens da
publicidade clandestina e comparável ao costume de escorregar
gorjetas ao autor, a atores ou técnicos, esta prática foi objeto
de uma codificação rigorosa por parte da instituição televisiva.
Ão mesmo tempo que lhe define os limites, esse cuidado lhe
assegura certa legitimidade. Assim afirmava um dirigente da Glo-
bo: “Temos um esquema de policiamento, porque se não contro-
larmos, a coisa fica à mercê dos escalões inferiores *”,
Codificação não quer dizer transparência. Esta prática perma-
nece efetivamente sob sigilo. Enquanto se sabe tudo sobre o
preço dos anúncios publicitários convencionais, muito pouco se
conhece sobre os critérios que regulam o estabelecimento de
taxas para os diferentes anunciantes que solicitam o merchandi-
sing. Para eliminar a resistência de atores, diretores, cameramen
e outros membros da equipe de produção, foi prevista uma par-
ticipação no faturamento para todos aqueles que trabalhem na
cena em que o produto aparece. A Globo foi a principal promo-
tora do merchandising, criando sua própria agência de vendas
(Apoio), onde trinta pessoas se dedicam diariamente a examinar
— a partir de um estudo da interação texto-produto comercial
— as possibilidades de inserir os produtos de uma forma sutil e
agradável. A maior parte das informações publicadas pela im-
prensa sobre as taxas de merchandising mostra que elas são 40%
mais caras do que o comercial tradicional. Ainda é preciso acres-
centar que o preço varia. enormemente de marca para marca.
Uma marca pouco conhecida pode pagar até cinco vezes mais
do que uma já lançada. Enquanto a publicidade é rigorosamente
regulamentada pela lei (15 minutos por hora), não há legislação
que coloque um freio na instituição do merchandising.

32. A. Solnik, “O varejão do horário nobre”, Senhor, 1.º de setembro,


1982, p. 51.
76 A. e M. MATTELART

Interrogados sobre esta atividade, os autores de novelas e


de séries adotam três tipos de atitudes ou recorrem a três tipos
de argumentos que indicam outros tantos comportamentos con-
cretos. A maioria o aceita como uma limitação que decorre da
própria definição do gênero enquanto parte de uma economia de
mercado: a roupagem comercial da novela apenas reproduz o
ambiente diário do público, isto é, sua imersão no universo do
consumo. Dizia Janete Clair: “Como vem sendo feito, acho viável
e natural. A novela retrata situações do cotidiano. Ora, se um
personagem está cozinhando numa cena e aparece o condimento
que está colocando na comida, é justo que alguém pague por
isso ?”, Os comentários nesse sentido são acompanhados quando
muito de recomendações de prudência e sutileza. O argumento
mais poderoso ainda é o fato de que o merchandising representa
para o autor uma parte da estrutura financeira da produção.
A segunda posição afirma que, se o merchandising promove
produtos de consumo, pode também promover “serviços comu-
nitários”, Pode-se usá-lo, por exemplo, para ajudar a população
a endereçar corretamente uma carta ou a adotar novos hábitos
de higiene. Pode servir a finalidades ecológicas, como a preser-
vação da flora e da fauna, ou fazer propagandá de instituições
de interesse público.
O terceiro argumento é mais raro, quase excepcional. Na histó-
ria das novelas, poucos autores se recusaram a praticar o mer-
chandising. Um deles é Carlos Eduardo Novaes, autor de Chega
mais (1980). Entrevistado após a realização dessa novela, na
qual se recusava a introduzir o merchandising, Novaes mostrava
como este podia influenciar a novela: “Uma das'razões que po-
dem estar reduzindo a qualidade das novelas é o excesso de
merchandising. A minha novela não tem merchandising. Resisti
porque teria que fazer uma série de concessões em função da
comercialização, o que implicava a mudança de personagens *”.
(Havia sido sugerido a ele que transformasse um personagem
proprietário de uma empresa de pulverização de defensivos agrí-

33. In “Como vender de tudo através da novela”, Jornal do Brasil, 1.º de


setembro, 1982.
34. D. Aragão e A. Beuttenmuller, art. cit.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 77

colas em fotógrafo, porque havia um contrato com uma empresa


de aparelhos fotográficos. Uma outra sugestão tinha sido de
introduzir um cão porque um fabricante de alimentos para cães
tinha também um contrato com a agência Apoio.) Novaes não
concordou. Entreatnto, a Globo colocou no cenário painéis pu-
blicitários que anunciavam determinados produtos (neste caso,
o autor se vê privado de dividendos). É preciso acrescentar que
não houve na Globo uma segunda novela assinada por ele.
À prática do merchandising atinge todos os blocos da progra-
mação, exceto dois: os telejornais e a TV Mulher, programa
feminino nacional,
Uma empresa importante como a Brahma, por exemplo, tem
contrato exclusivo com a Globo, que obriga a emissora a propi-
ciar inserções dos seus produtos nos mais diversos programas:
ficção, shows, programas musicais e humorísticos *.
A internacionalização da ficção pode intensificar a prática do
merchandising. Limitada até recentemente aos prodtuos que cir-
culam no Brasil, é de fato suscetível de ampliação, graças ao
despertar do interesse das empresas estrangeiras que prevêem
a introdução dos programas brasileiros em seu país de origem.
Isso ocorreu à editora italiana Mondadori.
Os concorrentes da Globo recorrem igualmente ao merchan-
dising. As vezes, tanto por razões éticas como por critérios de
concorrência, eles inovam aplicando um merchandising mais de
conceito do que de produtos (o conceito de higiene, por exemplo:
sem ressaltar uma determinada marca em detrimento de outras,
mas faturando para todos os fabricantes de sabão). A Rede Ban-
deirantes prefere este recurso. É ela também que pretende fazer
o que chama de “merchandising do interior para o exterior”,

35. O contrato que liga a Globo à Brahma, concorrente direta da Coca-


Cola, é um contrato dito “horizontal”. É válido por um ano e para todos
os programas. A TV Globo não garante à empresa o número de vezes que
a matca aparecerá na programação, mas esforça-se em criar espaços propí-
cios para essas inserções. Por exemplo, nos programas musicais, a Globo
pode ser levada a realizar sequências com garçons ou outros personagens
que ofereçam as bebidas da empresa. (A. Solnik, art. cit.).
78 A. e M. MATTELART

isto é, criar produtos de consumo através de seus programas para


em seguida lançá-los no mercado, vender a imagem de um pro-
duto antes mesmo que ele tenha saído da fábrica ou das oficinas.
Esta problemática nos aproxima dos debates em torno da pro-
gramação infantil das networks nos Estados Unidos em 1985,
suscitados pela desregulamentação. Ao contrário do que se poderia
pensar, a política de desregulamentação não afeta simplesmente
os macrossistemas de comunicação naquele país. Tem incidências
diretas sobre os mecanismos legais de regulação adotados pelos
norte-americanos para proteger especialmente as programações
reservadas a determinadas categorias de sua população, chegando
até a colocar em discussão as prerrogativas de uma instituição
como a Federal Communications Commission (FCC). As asso-
ciações de pais e de usuários da televisão sensibilizaram-se em
face do número crescente de programas infantis cujos heróis não
saíam mais da imaginação de seus criadores e sim diretamente
das estratégias de marketing das grandes fábricas de brinquedos.
Com efeito, os principais personagens dos novos desenhos ani-
mados tendem então, demasiadamente, a ser esses brinquedos
que as firmas lançarão ou acabam de lançar no mercado. Não
se trata mais do brinquedo como produto derivado tradicional-
“mente de uma série de televisão ou de um desenho animado,
como o havia imaginado a indústria Disney, mas de uma fusão
sincrônica do mercado e do programa de TV, prática que a lei
proibia até então. As associações de defesa da TV para crianças
dirigiram suas queixas à FCC, e um de seus membros declarou
publicamente que, “se a Comissão abençoava essa prática, igno-
rando-a, a grande maioria da programação infantil seguiria logo
essa inclinação”. Os grandes fabricantes de brinquedos (Mattel,
General Mills, etc.) não dormitam no ponto. Conforme as pala-
vras de um representante da General Mills: “Ainda há pouco
tempo, lançávamos um produto que comerciais se encarregavam
de anunciar. As crianças reclamavam o produto após ter visto
a publicidade... Agora, em vez de se ver confinada a um co-
mercial de 30 segundos, nossa empresa cria personagens com
base nos produtos, como o urso fulano e o biscoito ciclano em
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 79

programas de animação de meia hora *. O retorno é bem mais


interessante *”.
Quando se sabe que a televisão estatal, bastante minoritária
no espaço televisivo dos Estados Unidos, nasceu nos anos 60 para
responder às sensibilidades de um público desejoso notadamente
de proteger as crianças contra a influência dos programas co-
merciais transmitidos pelas grandes redes, suspeita-se de que
não se pode reduzir esta história a uma simples anedota. Os quei-
xosos viram sua demanda ser indeferida. Certamente houve vozes
dissonantes na FCC, que não a impediram, contudo, de eliminar
as regras de programação que preconizavam a separação e a iden-
tificação clara dos comerciais. Neste mercado cíclico que é a in-
dústria do brinquedo, o Natal, pico de vendas, foi escolhido
para desregulamentar a programação infantil.
Este micromecanismo de desregulamentação é a imagem do
que se passa na própria estrutura das indústrias culturais. Da
mesma forma que as estratégias de distribuição e de marketing
são levadas a pesar cada vez mais sobre a criação, a indústria
publicitária começa a fazer parte dos elos da cadeia que a indús-
tria de programas aspira a controlar e anexar, quando não acon-
tece o contrário. Em 1983, a empresa Lorimar, hoje provavel-
mente um dos primeiros produtores mundiais de séries de tele-
visão, adquiria a agência de publicidade Kenyon & Eckhardt.
Na assinatura do contrato, o diretor da Lorimar assinalou como
estes dois segmentos das indústrias culturais estão naturalmente
destinados a se apoiarem: “Não nos contentamos em ser uma
empresa de produção. Concebemo-nos como uma empresa de
comunicação. Além de sua especificidade publicitária, a Kenyon
& Eckhardt se articula com a Lorimar de múltiplas formas. Seus
escritórios no exterior asseguram à nossa empresa uma presença
local, permitindo-lhe vender os seus próprios produtos e os de
outros produtores às televisões estrangeiras. A K. & E. permite

* São os chamados TV-toys. (N. da Revisora Técnica.)


36. “Are the programs your kids watch simply commercials?”, Business
Week, 25 de março, 1985, p. 66.
80 A. e M. MATTELART

também à Lorimar ser parte interessada na compra e venda dos


comerciais para a televisão *””.

Publicidade e modernidade
As exigências do merchandising não nos podem fazer esquecer
aquelas, já mais clássicas, da publicidade. Existe mais uma limi-
tação para o autor de ficção: o andamento imposto pelos cortes
publicitários que intervêm quatro vezes num capítulo de novela.
A cada doze minutos, o roteirista deve providenciar “paradas
dramáticas”, cuja finalidade é manter em suspense o interesse do
público. A natureza do suspense dramático exigido pelo intervalo
publicitário é, segundo os atores, diferente na novela e na série.
Na telenovela, trata-se de criar uma expectativa (que em geral se
mostra falsa); na série, trata-se quase sempre de preparar, antes
dos comerciais, uma revelação.
Uma comparação mesmo relativamente breve com a telinha da
Globo mostra a conformidade da redação televisiva de ficção
(novela e série confundidas) ao princípio de uma programação
organizada em torno das necessidades incontornáveis da publici-
dade e das estratégias de otimização do consumo. À escrita
televisiva procede por módulos. A estória ficcional progride por
fragmentos. Cada unidade dramática tem uma duração muito
curta. Estes fragmentos fazem alternar planos sequenciais longos
com planos próximos. Esta organização do discurso televisivo
dá a impressão de módulos que fazem progredir a história se-
gundo uma aritmética do tempo perfeitamente dominada e este-
reotipada. Esse é, sem dúvida, o aspecto de grande modernidade
da prática da narrativa Globo, que faz dela um dos paradigmas
do modo cibernético de produção industrial da cultura. Os
módulos publicitários se inserem naturalmente neste espaço-tem-
po eletrônico da estória narrada.
A novela combina, pois, duas temporalidades — princípio de
alternância de tempos longos e breves. Tempos longos: é voltar

37. “Lorimar scores on TV — and Wall Street”, Business Week, 22 de


outubro, 1984, p. 76.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 81

a uma das características do folhetim, história contada sem


pressa, estendendendo-se às vezes sobre o tempo de uma gera-
ção, história que na verdade não começa nem termina jamais.
Tempo da longa duração por excelência, no qual a nova estética
da serialização insuflará ritmos do evento técnico, os ritmos sinté-
ticos do discurso publicitário.
É bastante significativo que produtos que constituem hoje o
símbolo de uma indústria de programas internacionalizada com-
binem a longa duração do folhetim com o ritmo rápido das
sequências no corpo de cada capítulo. Se nos Estados Unidos
Dallas é um exemplo, no Brasil, o grosso da produção corres-
ponde hoje a esta característica”. As novelas retomam a longa
duração dos antigos melodramas que constituítam a idade de ouro
do rádio, tendo alguns deles destilado a intriga através das ondas
sonoras durante várias décadas. Agora, contudo, a medida do
ritmo de cada capítulo obedece às imposições da modernidade
técnica. Mestiçagem do antigo e do novo.
As novelas brasileiras apresentam um misto de memória nar-
rativa popular tradicional e de modernidade. Poderia parecer que
esta associação define corretamente as necessidades da parte de
nossos sistemas simbólicos gerenciada pelas grandes indústrias
culturais. Elas podem surgir como o tempo da paixão, o tempo

38. Os roteiristas e os diretores de Dallas observam: “Dallas nasceu sem


dúvida destes folhetins americanos vespertinos — as soap operas, filmadas
com três câmeras de vídeo, quase sem preocupação (a filmagem de um
capítulo é feita às vezes em menos de 1 hora), que narram quase sempre
a história de uma família. Esses folhetins relatam uma parte do dia em
cada capítulo de 1 hora. Em cinco capítulos, portanto, praticamente um
dia de vida terá se passado. Para os roteiristas de Dallas, tratava-se preci-
samente de evitar esse tempo real, essa lentidão. Também era preciso reva-
lorizar o folhetim, filmá-lo em 35 mm e não mais em vídeo, empregar sete
dias de filmagem para um capítulo, o que permitia um corte de cenas mais
ágil, cenas mais curtas, mais ação, mais ritmo. E sob estas condições
podia-se conservar o conteúdo familiar da soap opera — como se Dallas
tivesse provado que a família, que até então estivera reservada pata a tarde,
podia tornar-se um tema digno dos horários noturnos, quando o público
não é apenas o das mães de família, um tema que ia conduzir ao sucesso”.
S. Blum, encontro com os roteiristas de Dallas, “Dallas ou lunivers irré-
solu”, Réseaux, n.º 12, abril, 1985.
82 A. e M. MATTELART

dos sentimentos, o tempo da libido familiar, contrastando com o


tempo elíptico, fragmentado, e ao mesmo tempo instintivo e
abstrato, que explode por exemplo no videoclipe, na era da pós-
modernidade. Com efeito, a originalidade da novela é combinar
uma maneira de narrar fragmentada no plano da forma televi-
siva com uma estrutura narrativa de longa duração. À rítmica
do fragmento corresponde à nossa imersão visual no mundo tec-
nológico moderno e satisfaz às modalidades contemporâneas da
percepção estética. Haveria então combinação de uma estética
do ritmo e da velocidade com uma estética da paixão.
Finalmente é preciso assinalar que o principal produto que
a Globo anuncia é o produto da Globo. Chamadas dos progra-
mas se intrometem em toda a programação. Um programa lança
outro. Cada programa tem sua fragmentação interna frequenta-
da pelos sinais de reconhecimento de um outro programa da
emissora. A Globo faz incansavelmente sua própria promoção
na Globo. A Globo vende incansavelmente a Globo na Globo”.
Na Europa, as emissoras italianas e mais recentemente as fran-
cesas sentiram a importância, no momento em que se intensifica
o regime de concorrência, de fazer constantes chamadas de auto-
identificação, para que não sejam confundidas. Defrontam-se com
a necessidade de elaborar estratégias de orientação do consumo
televisivo através da criação da imagem da emissora. Desde os
primeiros anos da década de 70, a Globo assimilou — constata-
se novamente o monopólio sem disfarces — a importância das
vinhetas autopromocionais, esta sinalização que demarca o fluxo
televisivo, lhe dá coerência e indica a direção e a quantidade de
fluxo de audiência previstos pela emissora. Em 1974, a Globo
contratava como diretor artístico um austríaco, Hans-Jurgen
Donner. Sua tarefa: “criar o símbolo da Globo, o logotipo Rede
Globo, o programa de identificação visual da emissora, a con-
RE da imagem de marca tanto estática como em movimen-
oº”, As primeiras realizações desse projeto serão utilizadas no

39, Dos 15 minutos de publicidade que um capítulo de novela comporta,


12 são reservados aos anúncios dos clientes e 3 à autopromoção dos pro-
gramas da emissora.
40. Videographics, publicação Globo, 1981.
k
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 83

décimo aniversário da emissora. Hoje as vinhetas são elaboradas


por um departamento especial que acompanha os últimos avan-
ços tecnológicos da informática, o mesmo que procura, dia após
dia, exceder-se na apresentação dos produtos Globo. Desde 1983,
26 engenheiros e especialistas trabalham no centro Globo Com-
puter Graphic (GCG) inaugurado pela Globo, que se transfor-
mou depois em companhia independente, cujo melhor cliente é
a rede. É o único desse tipo na América Latina.
Recém--chegado à Europa, o filho do fundador do império
familiar Globo, pode, como novo diretor da Telemontecarlo,
gabar-se sem fanfarronice dos conhecimentos acumulados pela
rede brasileira em vários domínios. Das primeiras lições de sua
experiência italiana, dizia: “Na Telemontecarlo, vendemos atual-
mente o espaço publicitário de uma maneira completamente dife-
rente de nossos concorrentes. Baseamos nossa estrutura publici-
tária nos diversos tipos de público-alvo. Nossos concorrentes
vendem blocos de programação. Nós, ao contrário, vendemos
segmentos para a família, para as crianças e assim por diante.
Parece inacreditável, mas não se usava esta abordagem de venda
aos anunciantes na Itália antes. Comunicamos aos publicitários
italianos nosso desejo de participar de todos os estudos que
fizeram. Isso nos obrigará a investir enormemente. Mas quere-
mos ajudar os italianos a conhecerem seu próprio mercado: será
de proveito geral”.
A situação francesa não é diferente da italiana. Em maio de
1987, o diretor de uma das principais operadoras de verbas pu-
blicitárias comentava a debilidade do sistema francês de comer-
cialização do espaço televisivo, e mais especificamente a carência
das medidas de audiência: “O que queremos comprar não é
propriamente um horário, mas um público específico, um alvo.
Isso significa dispor-se de estudos e métodos precisos para anali-
sar as programações e atingir esses alvos... Uma emissora de
televisão não é um suporte em si. O 'suporte” é a combinação

41. Variety, 15 de outubro, 1986, p. 146.


84 A. e M. MATTELART

que resulta de um horário, um programa e uma audiência em


uma emissora num determinado momento*?”.

Um monopólio em ação

O mercado do trabalho televisivo no Brasil é extremamente


concentrado, praticamente monopolizado pela Globo.
Ao fim dos anos 70, a Rede Globo empregava 5 500 profis-
sionais. Trabalham em caráter permanente 1 500 pessoas na
produção de suas novelas. A rentabilidade estimada em tempo
útil, em minutos úteis por dia, por unidade de produção de vídeo,
é de uma média de 30%. Comparado ao de outros sistemas tele-
visivos, este tempo útil, ainda chamado “produto útil” por dia,
é muito elevado?.
Esta concentração do mercado de trabalho apenas acompanhou
a acumulação de tecnologia realizada pela Globo, deixando uma
imagem de manobra estreita para as outras emissoras e para Os
produtores independentes. Entre 1972 e 1977, houve a passagem
integral para as cores; em 1975, a Globo dispunha já de 14
câmeras em cores (32 em preto e branco), 4 equipamentos 'de

42. Colocações de D. Adam (Imédia) recolhidas por P. Kieffer, Libération,


20 de maio, 1987.
43. O estudo italiano feito pela RAI sobre os padrões de produção e de
distribuição mostrava a diferença de “produto útil” ou “tempo útil”/dia
que distinguía os diversos sistemas televisivos, e, no interior de um mesmo
sistema, a diferença de “tempo útil” segundo o produto e o tipo de filma-
gem realizada, interna ou externa. Comparando o comparável, parece que
o “tempo útil” obtido na Globo é muito elevado em relação ao obtido,
por exemplo, pelas equipes de produção de soap operas na Austrália, onde
se chega a um tempo útil de filmagem diário de 7 minutos em tomadas
externas e de 15 minutos no estúdio. Note-se que na Itália e na França,
para séries de ficção (não sujeitas às exigências de rapidez impostas pelo
prazo extremamente curto entre filmagem e exibição de um gênero como
a soup ou a novela e utilizando a câmera de cinema e não de vídeo), este
“tempo útil” cai respectivamente para 2 ou 3 minutos na Itália (se bem
que otimizado para 8-9 minutos) e para 1 minuto na França (apesar de
otimizado para 4 minutos). Essa pesquisa foi realizada em 1982. Studio
di fattibilitã sulla produzione seriale, RAI, Roma (documento interno).
,
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 85

edição de vídeo, e mantinha a produção de 4 novelas por dia.


Nesta data, 53% de seus investimentos iam para as novelas,
contra 30% no início dos anos 70; 40% do equipamento téc-
nico era mobilizado para as telenovelas. Para sua gravação e
difusão, a Globo utilizava, já na época, durante 24 horas por dia,
uma equipe de mais de 300 técnicos, 3 caminhões para as fil-
magens externas e um processador capaz de detectar a mínima
falha de sincronização na fita magnética que contém os sons e
as imagens que chegam aos telespectadores.
Esta monopolização do mercado de trabalho corre paralela às
condições bastante específicas de organização das diversas cate-
gorias profissionais e técnicas que intervêm no processo de pro-
dução. Se a tradição sindical é fraca no Brasil, salvo em alguns
setores, como a siderurgia, em São Paulo, é ainda mais frágil no
setor das indústrias culturais, e em particular na televisão. His-
toricamente, houve poucos conflitos de trabalho e greves. Em
agosto de 1985, um movimento de reivindicação explodiu. Tinha
certa relação com os investimentos recentes da Globo no exte-
rior, principalmente na Telemontecarlo, que contrastavam com
suas reticências em melhorar as condições de trabalho na casa.
O movimento teve pouca repercussão na imprensa (ou na mídia).
Um dos semanários que relatou o acontecimento descreve assim
a reação do presidente das Organizações Globo, Roberto Mari-
nho: “O movimento reivindicatório dos funcionários da TV
Globo causou grande surpresa ao dr. Roberto Marinho. Seus
íntimos contam que ele realmente se mostrava distante da reali-
dade, e teve momentos de alta irritação. Mas um dos puxa-sacos
que o cercam não sabia disso e tentou argumentar que o assunto
deveria ser tratado como “numa indústria qualquer”. À reação
foi imediata: “Numa indústria qualquer os funcionários não são
aplaudidos e reconhecidos na rua, em qualquer cidade do país.
E então as negociações começaram”,
O problema do salário é real para a maioria dos atores, como
também para os autores: não há escala fixa de remunerações; o
montante dos cachês é sigiloso. Depende, é claro, do renome do

44. “A grande mania nacional”, Veja, 10 de setembro, 1975.


45. T. de Castro, in Afinal, 20 de agosto, 1985, p. 26.
86 A. e M. MATTELART

ator (ou atriz) ou do roteirista, mas muito de sua capacidade de


negociação. Para os roteiristas, as diferenças flutuam de 1 a 7;
para os atores (com papéis equivalentes), de 1 a 20º.
O trabalho é duro, aspecto igualmente crucial. Regra geral,
as filmagens começam quase ao nascer do sol e avançam noite
adentro. A hora-extra é uma prática comum, mas não remune-
rada como tal, apesar das disposições da legislação do trabalho.
As reivindicações levantadas em agosto de 1985 por 1 200 técni-
cos das 5 000 pessoas que a Rede Globo emprega no Rio de
Janeiro resultaram precisamente num acordo sobre as horas
extraordinárias; a Globo concordou em pagar 50% delas; con-
cordou também em pagar 40% de salário adicional aos emprega-
dos que acumulavam várias funções na emissora”. Nas petições
sindicais dos técnicos, notava-se que “na área de novelas é
rotineira a realização de jornadas de trabalho de até 18 horas
consecutivas*””,
Jornadas assim demandam uma energia pouco comum, princi-
palmente dos atores que fazem os papéis de primeiro plano de
uma novela e participam de quase todos os capítulos. Em 1986,
o sindicato dos atores iniciava por sua vez um movimento gre-
vista bastante agressivo, cuja finalidade era também de fazer
cumprir os artigos da CLT. Para descongestionar o fluxo "de
produção e melhor equilibrar os horários, o sindicato propôs à
direção da Globo a aquisição de novos equipamentos. Diante
de uma primeira recusa da empresa, que ameaçou dispensar os
grevistas, toda a produção parou, exceto a das novelas. À con-
corrente da Globo — TV Manchete — aproveitou-se do fato
para propor contratos aos atores grevistas. O monopólio Globo
foi obrigado a ceder.
O ritmo imposto aos atores é-inerente ao modo de produção
habitual da novela. Embora sejam os primeiros a reconhecer que

46. Segundo o comentário do roteirista C. E. Novaes: “A recompensa por


um trabalho destes teria que ser o salário de um superintendente da
Globo”, in D. Aragão e A. Beuttenmuller, art. cit.
47. “Acordo termina com “operação padrão” na Globo”, Folha de $. Paulo,
17 de agosto, 1985, p. 53.
48. “Funcionários da Globo vão à rua denunciar a empresa”, Tribuna da
Imprensa, 14 de agosto, 1985, p. 7.
+
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 87

esse ritmo faz parte da aceleração do processo industrial, os


atores não deixam de considerá-lo assunto de queixa permanente.
“Não temos tempo nem de estudar os personagens em profun-
didade, nem de estudar o texto, nem de ensaiar. O trabalho da
novela é completamente industrial. A televisão exige que se
faça tudo muito depressa. Lutamos contra este método de tra-
balho por intermédio dos sindicatos e das associações de atores.
Pedimos aos patrões para trabalhar um pouco mais devagar, com
um pouco mais de cuidado, porém eles nos opõem o argumento
de que a Globo produz quatro novelas por dia, e que não há
possibilidades de aperfeiçoamento. Sabemos que somente no
teatro ou no cinema podemos realizar um trabalho mais profun-
do. Lá temos tempo de sentir as coisas, propor mudanças, dis-
cutir com o diretor, ensaiar, etc,*”
Observemos que a Globo joga com o fato de que seu prestí-
gio, ao recair sobre o status e a imagem pública do ator, lhe abre
possibilidades em atividades artísticas paralelas, como por exem-
plo o teatro e o cinema. Inúmeros atores e atrizes sob contrato
permanente com a Globo, de quem recebem seu salário prin-
cipal, continuam a exercer essas atividades. A empresa lhes
permite, aliás, deixar os estúdios ou locais de filmagem pata
atender a seus compromissos pessoais. O que contribui para legi-
timar — aos olhos da emissora — as horas extras que esta lhes
pede em troca. O autor, por sua vez, deve se acomodar a essas
ausências e prever a distribuição dos capítulos que deve escrever
nas semanas seguintes em função das disponibilidades de uns
e de outros.
Em matéria de direitos autorais, a legislação revela igualmente
suas falhas. Esta é uma questão que o primeiro seminário sobre
a legislação cultural, organizado em março de 1985, abordou,
ouvindo o testemunho de uma das atrizes mais famosas da tele-
visão brasileira, Regina Duarte, a heroína de Malu mulher e
uma das principais protagonistas de Roque Santeiro. “(...) Malu
mulher, programa que fiz durante dois anos e que foi vendido

49. Encevisti oe H. Carvana de Hollanda, Tribuna del Fesitval, n.º 12,


Festival Internacional do Novo Cinema Latino-Americano, dezembro, 1986,
Havana.
88 A. e M. MATTELART

para mais de 55 países. Num total de 52 programas, dos quais


digamos que 30 tenham sido vendidos, calculo eu que a Rede
Globo de televisão ganhou mais de 1 milhão de dólares...
Gostaria de dizer que disso tudo recebi não mais que 3 milhões
de cruzeiros como direitos de autor. Quer dizer, acho que já está
se estendendo demais o rosário de lamentações, e acho que este
é o momento de a gente retomar as rédeas de nossa produção?.”
Doc Comparato, o roteirista da série Malu mulher, reforça:
“O autor não tem controle algum sobre as vendas internacio-
nais. Quando a Globo vende um programa neste mercado, paga
ao autor 200 dólares, porém uma só vez. Ota, este programa é
vendido centenas de vezes. De sorte que nos sentimos todos um
pouco roubados, porque não controlamos absolutamente Os direi-
tos autorais internacionais”.
Um autor de valor tão estratégico como Doc Comparato tem
um contrato anual com a Globo. Recebe ordenados mensais fixos
durante o ano todo. Mas seu contrato é renovável anualmente.
Sua recontratação está submetida aos riscos do sucesso de seus
scripts. “Do ponto de vista puramente industrial, me parece que
a concentração da produção e das rendas no Brasil tem efeitos
catastróficos”, prossegue ele. “A Globo é a imagem do Brasil:
a Globo concentra tudo. Observe-se o que se passa neste mo-
mento na rede Manchete: a Globo organizou um festival para
comemorar seu vigésimo aniversário. A TV Manchete, que não
tem dois anos, fez também um festival. Comemorar dois anos
e vinte anos, porém, não é exatamente o mesmo. Tudo isso
para imitar, quando era necessário inventar outra coisa. Para
nós, autores, um sistema de produção independente seria o me-
lhor. Porque nosso mercado de trabalho se reduz hoje à
Globo?”
A ignorância dos direitos é paralela às restrições feitas à
circulação de informações sobre a venda dos programas, bem

50. Testemunho de Regina Duarte, Seminário Internacional de Legislação


Cultural, 7-10 março, 1985, reproduzido em Rutbilante, Ano 2, nº 3,
junho, 1985 (jornal da deputada Ruth Escobar, organizadora do evento).
51. Entrevista com Doc Comparato, realizada por M. e A. Mattelart, 7 de
agosto, 1985.
52. Ibidem.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 89

como sobre os prêmios internacionais que lhe coroam o sucesso.


Ocorre que autores e atores recebam seus troféus apenas várias
semanas após a premiação. O Departamento das Relações Indus-
triais é sem dúvida a mais bem guardada cidadela da empresa
Globo. É símbolo de um modelo organizacional que, além de
desconfiar da espionagem industrial, mantém uma tradição de
ideologia de segurança favorável à divisão das tarefas e aos
departamentos estanques. À única central de comunicações para
onde convergem todas as informações é o estado-maior da Globo,
uma família que admitiu um pequeno número de profissionais
de confiança.

Um gênero em crise?

O sucesso internacional das novelas brasileiras e sua renta-


bilidade comercial jamais desmentida podem dissimular a crise
que o gênero atravessa. Uma crise que ninguém ignora. Para
resolvê-la, foi criada em janeiro de 1985 a Casa de Criação
Janete Clair, homenageando a roteirista famosa prematuramente
falecida em 1983. A medida foi tomada pela direção da Globo
para zelar pela formação dos futuros roteiristas e, ao mesmo
tempo, para servir de banco de idéias.
Se todos concordam sobre a existência da crise, esta unanimi-
dade se desfaz quando se trata de lhe expor as causas. A mo-
nopolização do mercado de trabalho por uma empresa da enver-
gadura da Globo; seu corolário, isto é, a ausência de produto-
res independentes; a pressão da lógica do mercado sobre as
temáticas e a produção; as próprias características do gênero;
enfim, a concorrência das minisséreis — eis, sem dúvida, os
principias elementos da crise.
Se a criatividade da TV brasileira aproveitou largamente a
criatividade dos atores dramáticos, hoje, a influência da televisão
e principalmente a influência do “padrão de qualidade Globo”
é tão intensa que tende a se impor como norma de toda reali-
zação artística profissional. Segundo as palavras de uma atriz
de teatro que foi em 1968-1969 uma das heroínas de Beto
90 A. e M. MATTELART

Rockfeller: “O monopólio da televisão afeta tudo. No teatro,


por exemplo, produtores te convidam para fazer uma peça, você
não pode e indica uma outra pessoa que é perfeita para o papel.
Se essa pessoa não teve sua cara vinculada à Globo, o teu aval
sobre ela ou o próprio curriculum dela não valem absolutamente
nada. Os produtores acham que só uma pessoa conhecida pela
televisão é que vai levar um público para o teatro. Se a monta-
gem é boa ou não, isso fica para segundo plano... No Brasil,
se você não é famoso via Rede Globo, você não passa de um
curioso em arte*”.
O romancista brasileiro Jorge Amado, tendo colaborado várias
vezes com a televisão com diversas obras adaptadas para a teli-
nha (Gabriela, Tenda dos milagres), dizia algo semelhante quan-
do confiava a um crítico e cineasta brasileiro: “O que a televisão
faz com minhas obras não me incomoda nem um pouco. Uma
coisa, contudo, me incomoda: é que todas as minhas mulatas
se pareçam com Sônia Braga, e todos os meus mulatos com
Nélson Xavier. Sônia Braga não tem quadris, e minhas mulatas
têm. Meus mulatos são barrigudos, e Nélson Xavier não
guias
O esgotamento dos autores e uma patente escassez de novos
talentos constituem, por outro lado, motivo de inquietação. Se-
gundo Aguinaldo Silva: “Os mais famosos autores de novelas
são pessoas que vêm do rádio. Foram habituados a escrever
diariamente radionovelas e outros programas. Já lhes aconteceu
escrever um script no estúdio da rádio, meia hora antes que o
programa fosse ao ar. Estas pessoas tinham um domínio do
ofício e uma resistência que não existem mais. Os jovens que
hoje manifestam o desejo de escrever não têm essa experiência.
Para eles, escrever um capítulo por dia é qualquer coisa terrível.
Para mim é diferente, pois trabalhei como jornalista durante
dezoito anos em um jornal diário. Trabalhava sete horas por dia

53. Entrevista com Irene Ravache, Lua Nova, CEDEC, vol. 1, n.º 4, ja-
neiro-março, 1985, p. 45.
54. Conversa com Orlando Sena, dezembro, 1985. Assinalemos que Sônia
Braga e Nélson Xavier são atores feminino e masculino muito populares.
A ARQUEOLOGIA DE UM GÊNERO 91

como copy desk num jornal do Rio. Portanto, posso escrever


sete horas por dia”.
É esta diferença de antecedentes profissionais que explica em
grande parte que um roteirista como Doc Comparato, co-autor
inseparável de Aguinaldo Silva em inúmeras séries, não possa
encarar o fato de ter que se submeter ao ritmo de criação de
uma novela. Doc Comparato vem, como seu prenome artístico,
da medicina, mais especificamente da radiologia. Janete Clair,
bacteriologista de formação, começou sua carreira na Rádio Tupi
em 1946. Outra roteirista célebre, Ivani Ribeiro, em 1984 já
havia escrito setenta radionovelas e trinta e três telenovelas.
As dificuldades encontradas nas perspectivas de renovação do
gênero estão certamente relacionadas à falta de novos autores a
médio prazo para substituir a geração de aútores que formulou
esse gênero em sua “brasilidade”.
Walter Avancini, diretor encarregado de levar à tela a grande
obra de Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, dentro da pro-
gramação especial preparada para comemorar o vigésimo ani-
versário da Globo, interpretava em novembro de 1984 a crise
da novela como a crise de um gênero aprisionado em seu caráter
de produto concebido para uma audiência de massa. “Enquanto
vivermos num país com população de baixo poder aquisitivo,
predominará entre nós o que chamo de “programação horizontal”,
isto é, extremamente massificada, caso específico da novela, que
aprisiona porque é dirigida a uma população sem outras opções
culturais. A entrada das novelas no mercado europeu só se deu
em tempo de crise. A novela é um trabalho de estiva para o
autor, e o espectador sabe que está sendo cozinhado em banho-
maria. De 150 capítulos, 50 são bons, o resto é encheção de lin-
gúiça *.” Para Avancini, a minissérie, densa no plano dramático e
mais elaborada no plano estético, é a alternativa de luxo, para ser
colocada só às margens da programação, num país com tamanhos
desequilíbrios sociais e econômicos. Entre 1985-1986, o sucesso

55. Entrevista com Aguinaldo Silva realizada por M. e A. Mattelart, agosto,


1985.
56. A. de Barros, “A mania das minisséries”, Folha de S. Paulo, 12 de
novembro, 1984.
92 A. e M. MATTELART

esmagador da novela Roque Santeiro fazia calar os maus augú-


rios, e retomava-se a confiança no futuro do gênero. Um futuro
sobre o qual vela de agora em diante a Casa de Criação.
A Casa de Criação retomou uma idéia inicialmente lançada
por Dias Gomes: necessidade estratégica da Rede Globo de pla-
nejar o processo criativo a longo prazo. Porém, necessidade tam-
bém de agrupamento para os autores, que lá encontram, pela
primeira vez, um local onde podem se reunir e defender seus
interesses. Comporta quatro setores: o primeiro deve ler as obras
e sinopses de autores contratados ou não pela Globo. Esse de-
partamento analisa, faz recomendações, escolhe escritores. O se-
gundo setor trabalha com os autores escolhidos. O terceiro anali-
sa os problemas de texto das produções que já estão no ar. O
último setor tem uma ambição teórica — organiza ciclos de es-
tudo e seminários para a formação de novos autores. Uma das
primeiras atividades consistiu em um ciclo de formação em no-
vela. Uma oficina de textos reunia em 1986 sete jovens autores
bolsistas, chamados para trabalhar durante seis meses com rotei-
ristas consagrados à razão de sete horas por dia. Por outro lado,
um dos objetivos desta casa é estreitar os laços com os gtan-
des romancistas brasileiros que já frequentam a Globo, além de
atrair outros, como Antonio Callado, Rubem: Fonseca, Plínio
Marcos, Autran Dourado, Nélida Pifion.
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O VÍNCULO SOCIAL
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“A chamada intelligentsia brasileira passou a encarar a tele-
visão menos como uma máquina demoníaca e mais como uma
indústria cultural — cheia de contradições, sim, mas capaz de
oferecer trabalho e até compensações não somente materiais ...
Politicamente a televisão revelou ser, mais claramente do que
nunca, uma arma de dois gumes. Vendeu o conto de milagre
econômico em 70, mas ajudou o MDB a ganhar em 74. E os
(nossos) mocinhos estão levando a melhor no contínuo tiroteio
contra os enlatados importados a preços cada vez menos com-
pensadores. Uma simples olhadela nas programações das emisso-
ras mostra como os seriados norte-americanos estão marginali-
zados do horário nobre. Kojak deu lugar a Malu mulher. Bino
e Pedro, de Carga pesada, viraram ídolos nacionais !.”
Assim fazia o balanço de dez anos de TV o crítico da revista
de esquerda Isto É, publicada em dezembro de 1979 em São
Paulo. Afastados do teatro por uma censura que se voltava obsti-
nadamente contra este setor da criação intelectual e artística —
declarado território subversivo —, certos dramaturgos transfe-
riram para a televisão a análise da realidade brasileira na qual
estavam engajados antes do golpe de Estado de 1964 ?.
1. D. Marquez, “Televisão, os anos 70”, Isto É, 19 de dezembro, 1979.
2. Entre 1964 e 1974, a censura vetou 452 peças de teatro, isto é, nove
vezes mais que durante os 24 anos precedentes, que compreendem no en-
tanto o período do Estado Novo. “Da ilusão do poder a uma nova espe-
rança”, Visão, São Paulo, 11 de março, 1974.
96 A. e M. MATTELART

Ora, a intelligentsia brasileira tinha mais razões do que ou-


tras elites intelectuais para aderir incondicionalmente às posi-
ções maniqueístas das teorias críticas sobre a cultura de massa
em voga nos anos 70, pois estava às voltas com uma televisão
de monopólio privado dentro de um regime autoritário. Entre-
tanto, a intelligentsia brasileira se via então confrontada com
a contradição encarnada por esses autores decididamente de es-
querda, que pretendiam expressar seu engajamentto crítico acei-
tando trabalhar em tais condições. Nessa ocasião também as
antigas questões a respeito da relação das indústrias culturais com
o povo e o populismo e a questão mais recente acerca das novas
condições de produção da “arte popular” na era da industrializa-
ção da cultura deixavam de ser compreensíveis à única luz (ou
à única sombra) do código teórico que instalava a segregação
entre os intelectuais “apocalípticos” e os intelectuais “integra-
dos”. Não podendo considerar os que trabalham dentro do sis-
tema senão como cúmplices da reprodução cultural e das estru-
turas de submissão ideológica, esta teoria deparava-se com a
experiência contraditória de escritores que aceitavam pensar a
relação do intelectual com a sociedade enquanto partes de uma
“máquina” comercial, técnica e política concreta.
x
4. Memória Nacional e
Memória Popular

O retorno ao valor de uso

“O consumo tem seus produtores desconhecidos, seus inven-


tores silenciosos”, diz Michel de Certeau, profundo conhecedor
do Brasil — muitos painéis de suas Artes do fazer, invenção
do cotidiano não reproduzem as atividades de grupos popu-
lares brasileiros? Dizia ele também: “Muito se tem pesquisado
o equívoco que minava de dentro para fora o “sucesso” dos co-
lonizadores espanhóis junto às raças indígenas: submetendo-se e
até consentindo, fregientemente estes indígenas faziam das litur-
gias, representações ou leis que lhes eram impostas coisa bem
diferente daquilo que o conquistador pretendia com elas; sub-
vertiam-nas não pela recusa ou substituição, mas pela maneira
como as utilizava, para fins diversos e em função de referências
estranhas ao sistema do qual não podiam fugir. Permaneciam
distintos, no próprio seio da ordem que os assimilava exterior-
mente; escapavam dela sem a deixar. A força de sua divergência
vinha dos procedimentos de “consumo” !”.
Um amplo consenso se estabeleceu atualmente sobre a condi-
ção ativa e produtiva do receptor-consumidor. Para a análise crí-
tica, este retorno aos agentes da recepção assume toda a sua rele-
vância em contraste com as análises que partiam dos efeitos do

1. “Entrevista com Michel de Certeau”, Le Monde, 31 de janeiro, 1978.


98 A. e M. MATTELART

poder; elas não consideravam os pontos de vista daqueles que


recebem a comunicação.
À atual mudança de enfoque é concomitante à enorme agitação
epistemológica que afetou a percepção do movimento social e dos
antagonismos sociais. Um economista italiano lembrava com
muita razão em 1986 que “cada luta, cada tentativa de luta dos
dez últimos anos, ou até mais, consistiu em luta para reapro-
priar-se do valor de uso — o valor de uso do tempo, do espaço,
dos corpos, dos conhecimentos sociais —, em uma palavra, o
valor de uso da vida”. “Para compreender a análise política dos
confrontos sociais”, acrescentava ele, “é indispensável definir
corretamente o conceito de “valor de uso'?.” Para a economia
neoclássica, a avaliação do valor de uso é independente do valor
de troca, e define o sujeito como se ele estivesse fora da socie-
dade, um homo aconomicus totalmente racional, cujas escolhas
não são determinadas pela sua existência social. Do mesmo
modo, para o estruturalismo, o papel do valor de uso é apenas
secundário. O valor de troca predetermina a relação entre o su-
jeito e o objeto. Epifenômeno, o sujeito pode agir somente en-
quanto objeto de uso. Desta perspectiva, só importa a luta contra
o valor de troca, de caráter interno, no domínio da circulação
e da produção. O interesse do novo enfoque que reivindica a
importância da reapropriação do valor de uso é precisamente pro-
curar escapar dos funcionalismos de direita e de esquerda que
separaram antagonismos sociais e subjetividade.
Só nos resta ressaltar a importância desta ruptura. Mas, sob
muitos aspectos, esta problemática da reapropriação do valor de
uso ainda trabalha de maneira contraditória os estudos dos pro-
cessos de comunicação.
Para uns, ela parece corresponder a um desinteresse progres-
sivo pelo momento da produção. O que não deixa de ter aspectos
perversos: o retorno ao receptor e a constatação de sua liberdade
de leitura viria anular a importância do dispositivo de produção.
Nesta transição, implícita ou explicitamente, revela-se um certo

2. C. Marazzi, “Aspects internationaux de la recomposition de classe”,


L'talie: le philosophe et le gendarme, Actes du collogue de Montréal,
sob a direção de M. B. Tahon et A. Corten, Montreal, VLB Editor, 1986.
O VÍNCULO SOCIAL 99

ceticismo com relação à própria idéia da existência de um dis-


positivo de poder televisivo e até mesmo do próprio dispositivo
de poder.
Para outros, o que orienta a tendência de retorno ao consu-
midor é precisamente a vontade de atingir o caráter circular do
processo de comunicação, estudando como se constitui o par pú-
blico/emissor. Esta tendência, que tenta, longe dos a priori das
teorias do poder e sobretudo longe dos macrossujeitos, surpreen-
der as probabilidades da constituição do vínculo entre as audiên-
cias e uma mídia, vale-se frequentemente da etnografia elemen-
tar, ou, em suas formas mais elaboradas, da etnometodologia.
Recompondo o movimento de vaivém qué situa o público e uma
mídia em sua construção recíproca, esses estudos parecem não
considerar outras determinações; apenas aquélas que ligam o pú-
blico a um veículo. Ao apostar demais nas determinações, pode-
se até perguntar se, em certos estudos inspirados por esta nova
abordagem muito em voga atualmente, não é a própria idéia de
determinação social e de inscrição em uma sociedade comercial
que tenderia a ser abandonada pura e simplesmente. Certamente,
esta abordagem se explica também pela insatisfação que a ten-
dência globalizante causa atualmente. De fato, sob o rótulo da
busca de uma teoria totalizadora, frequentemente esta tendência
impediu de saída a captação da complexidade do real, das singu-
laridades do fato vivido, pelo apriorismo das posições norma-
tivas. Nesse sentido, a forma que assume atualmente o metodo-
logismo representa mais do que um recuo friorento. Será que
não exprime também o prazer, por longo tempo negado pelos
enquadramentos teóricos, de desmontar operações concretas, ob-
servar Os sujeitos e tocar os objetos, para renascer no real? Se
este metodologismo é justamente uma das novas expressões do
empirismo, se serve para deslegitimar outros níveis de análise,
revela igualmente em sua ambigiiidade um movimento inicial
necessário para começar a descobrir, a “sentir” um campo de
trabalho, a enumerar seus objetos, a etiquetar suas operações,
a abrir os olhos sobre seus sujeitos.
Enfim, o retorno ao consumidor e a reapropriação do valor de
uso é uma oportunidade de reconsiderar o caráter de classe dos
100 A. e M. MATTELART

dispositivos de comunicação, e de questionar as teorias sobre a


reprodução social.
E aqui se colocam as discussões tanto sobre a sociologia da
cultura de Pierre Bourdieu como sobre a teoria da ideologia de
Louis Althusser. Esta última está fora de moda, pelo menos na
França, onde alguns chegam até a dizer que faz parte das curio-
sidades museográficas da ciência crítica*. Ao contrário, a teoria
da “reprodução” de Bourdieu é a única referência surgida nos
anos 60 a sair ilesa das rupturas epistemológicas que abalaram
as ciências humanas e sociais, e mais especificamente as ciências
da comunicação nos anos 80. Tornou-se uma espécie de senso
comum para analisar o processo de reprodução das desigualdades
sociais no campo da cultura, da educação, da animação cultural,
etc. Conforme constata o filósofo Jacques Ranciêre: “Uma coisa
deveria efetivamente chamar a atenção: o atual império desta
sociologia é também o resto de um continente submerso. Ela
tomou impulso no início da década de 60, com o revigoramento
dos rigores teóricos marxistas e das febres revolucionárias. A
crítica das ilusões dos Héritiers acompanhou em seu início a
grande batalha de Althusser pela ciência revolucionária contra
a ideologia. A teoria da reprodução uniu a austeridade estrutu-
ralista de seus axiomas aos ecos da Revolução Cultural e da
luta contra a “educação de classe”. Se as teorias e esperan-
ças que produziram este discurso desabaram, isto só fez am-
pliar sua repercussão. De um lado, ele recolheu a herança teó-
rica e política da crítica marxista, cujo esquema interpretativo
aperfeiçoou. Tanto para o universitário como para o jornalista,
este discurso permite identificar as marcas da divisão e da luta
social da menor inflexão da prosa dos escritores ou da postura
dos políticos. Tanto para o pedagogo ou animador como para o
reformista, que se esforça em resolver os problemas dos primei-
ros, ele explica as ilusões e os fracassos da educação do povo.

3. Ver J. Ranciêre, La leçon d'Altbusser. Paris, Gallimard, 1975. No


exterior, uma das críticas mais marcantes à teoria de Althusser é ainda a
de E. P. Thompson, The poverty of theory, Londres, Merlin Press, 1978.
E não traduzido na França. Traduzido em português e publicado no
rasil.
O VÍNCULO SOCIAL 101

Mas, ao mesmo tempo, desligou esta capacidade interpretativa


das hipotecas práticas do marxismo e das ingenuidades da espe-
rança social. Permite denunciar simultaneamente os mecanismos
da dominação e as ilusões da liberação. É um discurso de um
tempo em que se mesclam as paixões órfãs da denúncia do “sis-
tema” e as certezas desencantadas ou conformadas com sua pe-
renidade *”.
Reprodução dos dominados e distinção dos dominantes: é so-
bre este pano de fundo que se lê a história das relações entre a
sociologia da reprodução e uma determinada idéia da democra-
cia. A “distinção” é estranha às classes populares, excluídas de
toda criação ou inovação cultural. Ela restabelece o que compete
ao popular na reprodução, isto é, num plano em que é vedado
ao povo todo acesso ao simbólico, cristalizando-o em seu fatum
de classe. Porque, consignando-os à matéria e ao material, con-
gelando-os neste “imanentismo temporal”, exclui das classes po-
pulares toda possibilidade de eleição e condena-as a um irrever-
sível torpor. Nada nos é dito de uma outra dimensão do popular
nas teorias sobre a diferença e nos estudos sobre o processo
de comunicação por elas informados.
É a partir da questão das práticas culturais das classes po-
pulares que se formarão as bases de novas abordagens, refutando
a idéia de um popular passivo e abordando as culturas populares
como planos ativos de produção de significação. A propósito do
carnaval e da religiosidade popular, um antropólogo brasileiro,
Renato Ortiz, formulará uma das críticas mais concretas à socio-
logia da cultura: “Para Bourdieu, o dinamismo do campo tra-
balha necessariamente no sentido da recuperação. A heterodoxia,
agindo hereticamente, nada fez além de reforçar o poder da orto-
doxia. Nos deparamos assim com uma história cíclica, pois o
- movimento das relações sociais não implica a mudança, mas o
seu contrário, a reprodução social... Bourdieu nos encerra po-
rém nos limites de uma história, repetição do habitus. Pensar a
cultura popular dentro desta perspectiva equivale a considerá-la
simplesmente do ponto de vista catártico. O carnaval, a religio-

4, Vários autores, “Révoltes logiques”, L'empire du sociologue, Paris, La


Découverte, 1984, pp. 6-7.
102 A. e M. MATTELART

sidade popular, etc., existiriam somente na medida em que se


definem como pseudo-utopias; na verdade, tais fenômenos se as-
semelhariam àquelas danças sexuais dos escravos (lundus) que os
senhores liberavam nos dias de festa. A perspectiva de Bourdieu
é análoga à política colonial do Conde dos Arcos, para quem a
realidade social se apresentava exclusivamente enquanto ritual
de rebelião, pois teria por fundamento último o reforço da pró-
pria ordem escravocrata >”.
Objeção similar fará Michel de Certeau. A certo ponto da
crítica que faz ao que chama de “a douta ignorância”, observa:
“Segundo esta análise, as estruturas podem mudar e tornar-se um
princípio de mobilidade social (é até o único). O adquirido não.
Este não tem movimento próprio. É o plano onde as estruturas
se inscrevem, o mármore onde se grava sua história. Nada se
passa que não seja o efeito de sua exterioridade. Como a imagem
tradicional das sociedades primitivas e/ou camponesas onde nada
muda, não há história salvo a que é gravada por uma ordem
estranha *”.
Essas discussões teóricas sobre a reprodução social fazem as
análises se abalarem (mas sob a condição de que o texto-sobe-
rano não seja substituído pelo sujeito-soberano, isto é, sob a
condição de que não se pratique, depois do impasse estrutura-
lista, o impasse pós-estruturalista). Induzem a uma reflexão sobre
os procedimentos de consumo ordinário da televisão, as artes do
fazer do “praticante” nos espaços impostos da mídia. Permitem
formular novas hipóteses sobre o modo de produção da cultura
de massa. Recusando-se a considerá-la apenas como emanação
de uma ordem, expressão de uma racionalidade funcionalista,
reprodução de um código estrutural e estruturante, estas novas
hipóteses evidenciam o interesse que há em estudar se e como
se realiza um processo de troca simbólica entre a proposta tele-
visiva e o imaginário individual e coletivo, e mais, como se dá
entre eles a interação e a modificação recíproca.

5. R. Ortiz, A consciência fragmentada, Rio de Janeiro, Paz e Terra,


1980, pp. 73-74.
6. M. de Certeau, Arts de faire, l'invention du quotidien, Paris, 10/18,
1980, vol. I, p. 119.
O VÍNCULO SOCIAL 103

Sem dúvida, o mérito de ter refletido sobre esta questão em


relação à televisão latino-americana é do colombiano Jesus Mar-
tín Barbero. Retomando as idéias do filósofo Mikel Dufrenne ?
e de Michel de Certeau, Barbero acentua a ambigiiidade e a natu-
reza conflituosa do processo de onde emerge atualmente o que
se compreende por “popular”: “Seria possível distinguir primei-
ramente o caráter popular como memória de uma matriz cultu-
ral, amordaçada, negada. Aquela que emerge das práticas nascidas
nas praças dos mercados rurais e mesmo urbanos da América La-
tina, nos cemitérios, nas festas de povoados, de bairros, etc. Tais
práticas deixam certas marcas de identidade através das quais
se manifesta um discurso da resistência, da pronta resposta ao
discurso dominante, luta de classes, certamente, mas, além disso,
conflito entre a economia da abstração mercadológica e a da
troca simbólica. Mais que uma alternativa, elas constituem uma
lição sobre o empobrecimento da comunidade cotidiana, vetor
da comercialização da existência social. É um outro aspecto do
caráter popular que se poderia definir como popular de massa.
Sua natureza de massa seria aqui entendida como sua própria
negação e mediação histórica. A “cultura de massa” é negação
do caráter popular na medida em que se trata de uma cultura
que usa as massas, produtora de massificação. Aquilo que os do-
minantes entendem por massas não é senão a imagem que eles
devolvem a elas e que se destina a legitimar sua dominação. Nada
de novo neste sentido: a cultura de massa não é senão a forma
do projeto histórico formulado pela burguesia a partir do fim do
século XVIII, no estágio do capitalismo monopolista. Porém, a
natureza de massa do caráter popular é ao mesmo tempo media-
ção histórica: os conteúdos e as expressões populares, e também
as esperanças e o sistema de valores, o gosto popular são mol-
dados pela natureza de massa da cultura. De sorte que, como diz
Dufrenne, 'é em uma tal cultura que as massas investem seus
desejos, é dela que usufruem”. E ainda que isto nos aflija, inte-
lectuais e universitários que camuflamos muitas vezes nossos
gostos de classe por trás das etiquetas políticas: rejeitamos a cul-

7. Principalmente M. Dufrenne, Subversion perversion, Paris, PUF, 1977.


104 A. e M. MATTELART

tura de massa em nome da alienação que ela segrega, enquanto,


na realidade, o que nós recusamos é a classe que “ama” essa
cultura *”.
Particularmente importante é o relevo dado por Barbero à
mediação histórica entre a cultura de massa e as culturas popu-
lares. É precisamente por tê-la esquecido que certos retornos
às culturas populares podem tomar hoje — sob todas as latitudes
— a forma de uma celebração unívoca de um paraíso reencon-
trado, sem contradições, puro de toda contaminação e que con-
teria sozinho a alternativa para a produção industrial e merca-
dológica.

A questão do populismo: o mal-estar da teoria

Se há um fenômeno que dificilmente se pode ignorar quando


se analisa a formação do dispositivo “cultura de massa”, aq for-
tiori em países como o Brasil, é justamente o do populismo.
Certamente o populismo marcou fases históricas bem especiais
e identificou uma forma de exercício do poder encarnada inicial-
mente no Brasil pelo regime de Getúlio Vargas desde os anos
30. Apoiando-se na burguesia industrial contra a oligarquia lati-
fundiária no contexto de uma nova estratégia de desenvolvi-
mento econômico — a substituição das importações —, esse re-
gime inaugurou uma política de massa dirigida muito especial.
mente para o proletariado urbano. Seus temas mobilizadores: a
luta contra o capital estrangeiro, a independência da política ex-
terna e a reforma agrária. É sobre esta base de nacionalismo e
de anti-imperialismo que se inscreve a noção de “povo”: “uma
noção apologética e sentimentalista que englobava sem distinção
a massa dos trabalhadores, o lumpen-proletariado, a intelligent-

8. J. M. Barbero, “De quelques défis pour la recherche sur la communica-


tion en Amérique Latine”, in Technologie, culture et communication —
Rapports complémentaires, Mission Mattelart-Stourdzé, Paris, La Documen-
tation Française, 1983, p. 196.
O VÍNCULO SOCIAL 105

sia, os magnatas nacionais e o exército?”. Porém, para além


destas conjunturas históricas particulares, o populismo como
ideologia se transformou num dado cultural nacional. Tornou-se
— e é a própria noção de ideologia que se vê definida — a
dimensão significante de um conjunto de práticas, dimensão que
instituições, grupos e indivíduos interiorizaram além do espaço-
tempo em que os governos ditos populistas administraram a vida
nacional.
Os que tentaram definir o populismo brasileiro, como, aliás,
os outros populismos da América Latina, não escondem as difi-
culdades conceituais que tal análise coloca: como este movimento
conseguiu arregimentar grupos e classes que, do ponto de vista
clássico da análise da luta e dos interesses de classes, não deve-
riam estar juntos em um mesmo projeto político, menos ainda
na mesma mobilização social?
A dificuldade que a teoria crítica teve para abordar o popu-
lismo é da mesma ordem da que teve no passado e tem ainda hoje
para abordar um fenômeno da mesma natureza, que sob muitos
aspectos lhe coloca os mesmos enigmas: a comunicação “de
massa”. Da mesma forma que o populismo conseguiu reunir
grupos e classes com interesses “objetivos” diferentes em uma
mesma mobilização, este outro fenômeno não consegue também,
por meio de uma mesma programação, dirigir a palavra a espec-
tadores de todos os grupos sociais de uma mesma nação? E a
internacionalização dos sistemas audiovisuais está ampliando a
duração e o espaço desta arregimentação? Em ambos os casos,
nota-se a dificuldade de pensar a produção da sociedade fora
da exclusiva determinação da classe.
Deste ponto de vista, o mais convincente dos exemplos de
uma corrente minoritária de pesquisa que fez progredir, nos anos
70, a análise do populismo e de suas contradições é o de Ernesto

9. R. Schwartz, “Remarques sur la culture et la politique au Brésil (1964-


1969)”, Les Temps Modernes, Paris, julho, 1970.
Como indica o sociólogo O. Ianni, o populismo brasileiro liga-se inti-
mamente “tanto com o consumo em massa como com o aparecimento da
cultura de massa. Em poucas palavras, o populismo brasileiro é a forma
política assumida pela sociedade de massa no país”, in O colapso do popu-
lismo no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979, p. 207.
106 A. e M. MATTELART

Laclau. Cientista político argentino que emigrou para a Grã-


Bretanha, ele criticou as concepções funcionalistas de Gino Germa-
ni, sociólogo italiano que por sua vez emigrou para a Argentina ”º.
Gino Germani (cujos trabalhos são indissociáveis dos do argen-
tino Torcuato di Tella) via o populismo como o produto da
etapa de transição entre a “sociedade tradicional” e a “socie-
dade moderna”, etapa interpretada como momento da passagem
inevitável “para o desenvolvimento”. Ernesto Laclau reprovará
essas análises que confinavam a incidência do populismo a um
momento histórico estritamente determinado, constituindo nova
forma de reducionismo tão difícil de sustentar como as aborda-
gens construídas sobre o reducionismo de classe.
Lembrando que as lutas sociais não podem ser reduzidas à
exclusiva pertinência dos conflitos de classe, pesquisas teóricas
como as de Laclau relacionam-se principalmente à tradição de
Gramsci. À diversidade do componente popular se opõe à noção
de um povo inteiro reduzido ao proletariado urbano, determinado
pelas relações de produção dentro da fábrica. Como prova, basta
a ruptura introduzida pelo italiano Antonio Gramsci com as no-
ções de hegemonia, de democracia progressiva e sobretudo as
do nacional-popular, do povo-subjetividade, do povo-paixão !!,
Linha de investigação tanto mais interessante, uma vez que pre-
serva o campo da cultura e da ideologia, do determinismo do
capital e das relações de produção.
Se nos anos 70 estas hipóteses sobre o caráter transclassista do
populismo tiveram efeitos sobre a análise do discurso e das

10. Ver E. Laclau, Politics and ideology in marxist theory, Londres, New
Left Boows, 1977. G. Germani, Política y sociedad en una época de tran-
sición, Buenos Aires, Paidos, 1965.
Observemos entretanto um dos méritos da sociologia funcionalista,
que por intermédio de Gino Germani se envolveu no estudo do populismo
— ter assinalado desde os anos 60 a importância dos meios de comunicação
de massa nesta passagem da “sociedade tradicional” à “sociedade moderna”,
como instrumentos de difusão do que este autor chamava os “valores e as
atitudes trazidos pela revolução das esperanças crescentes”, a aspiração ao
desenvolvimento e a uma economia de consumo de massa.
11. Ver os capítulos 6 e 8 (terceira parte) da presente obra.
O VÍNCULO SOCIAL 107

ideologias políticas (muitas destas análises procedem de uma cor-


rente ligada ao estruturalismo lingiúístico), tiveram porém pouco
impacto sobre o estudo do dispositivo e dos discursos mediatos.
Os cientistas políticos que se valem da análise do discurso se
dedicaram sobretudo aos discursos carismáticos, aos textos do
líder, porém, segundo seu próprio testemunho, abandonaram a
análise das estratégias discursivas das instituições mediatas, em-
bora reconhecendo a importância de um tal estudo 2.
O retorno à questão do populismo que se deu nos anos 80
indica que não se pode duvidar de uma transformação das es-
querdas latino-americanas. Em vez de respostas únicas, surgem
questões múltiplas. Com o desaparecimento dos modelos únicos
de ação, a idéia da classe popular se redefine. A esquerda dos
anos 60 havia construído suas análises a partir do campo de re-
flexão política das grandes sociedades industriais, onde a classe
operária era um setor social estratégico. Em um realidade onde
a característica principal das classes subalternas não é o trabalho
em fábricas, mas o desemprego, a greve disfarçada, a falta de
terra, as migrações para a cidade, a marginalidade social, não
mais o problema das “minorias étnicas” e sim o das “maiorias
étnicas”, o pensamento de esquerda descobre que há “classes
populares” que escapam às representações estreitas a elas atri-
buídas pela definição esquemática de “classe operária”.
Como assinala o sociólogo argentino Ricardo Sidicaro, “estas
dimensões-chaves da realidade do subcontinente haviam sido fa-
cilmente captadas pelos populismos pragmáticos. Mas, para o
marxismo clássico, elas permaneciam ocultas por causa de seu
esquema de análise próprio das sociedades industriais *”. Duas
observações, contudo. Em primeiro lugar, é certo que o popu-
lismo tivera a intuição da explosão polissêmica da “classe popu-
lar”; mas não é certo — e é precisamente o caso do Brasil —
que a região rural tenha pesado muito na pragmática populista.

12. Ver E. de Ipola, “Populismo e ideologia”, Revista Mexicana de Socio-


logia, México, n.º 3, 1979, p. 937.
13. R. Sidicaro, “Transformation et diversité des gauches latino-américai-
nes”, Amérique Latine, Paris, janeiro-março, 1985, p. 53.
108 A. e M. MATTELART

Em segundo lugar, nas últimas décadas, a evolução da realidade


do movimento social, mas também a da decomposição-recompo-
sição da classe operária abalou consideravelmente as crenças nos
modelos únicos de ação e de análise nas sociedades industriais,
da mesma forma e talvez até antes que estas interrogações se
formulassem nas sociedades periféricas. Com efeito, além das
questões de cronologia, quem pode negar a troca dialética que
ocorre entre as novas sensibilidades teóricas aqui e alhures !*?
Nos anos 80, a reflexão sobre o “populismo” e o “popular”
adquiriu portanto uma nova dimensão. Com a “abertura demo-
crática” no Brasil, com o retorno da questão e da pressão do
agente popular para a definição da democracia, assiste-se no es-
tudo teórico do funcionamento dos dispositivos e práticas signi-
ficantes de comunicação à investida de um conjunto de hipóteses
sobre a natureza da relação intelectuais/povo, público/povo e
cultura de massa/cultura popular. Isto é particularmente verda-
deiro nas realidades onde a referência populista contribuiu para
desorganizar tanto o campo epistemológico quanto o espaço polí-
tico onde se movimentam os agentes populares.
É exatamente o que disse um dos raros pesquisadores de
comunicação latino-americanos a compreender" esta necessidade
recente de voltar ao populismo para reintroduzir a história dos
sistemas de comunicação no processo de formação dos Estados
nacionais: “À questão nacional está associada permanentemente
a questão populista, obrigando-nos a reavaliar o populismo, a
diexar de encará-lo unicamente como um projeto de Estado e
a estudá-lo como experiência de classe que nacionalizou as gran-
des massas e lhes concedeu a cidadania... O que implica
investigar os modos específicos de destruição das culturas po-
pulares na América Latina, isto é, os modos de desintegração do
popular ligados à construção do nacional, mas também os modos
segundo os quais o popular “se nacionaliza”, isto é, alimenta e

14. A título de exemplo, ver J. L. Coraggio, Nicaragua: revolución y


democracia, México, Editorial Linea/CRIES, 1985; E. Laclau e C. Mouffe,
Hegemony and socialist strategy, Londres, Verso, 1985.
O VÍNCULO SOCIAL 109

configura, a partir dos movimentos sociais dos anos 20 e 30, um


projeto novo de nação !”,
À sua maneira, o economista brasileiro Celso Furtado (minis-
tro da Cultura sob a Nova República em 1986) propunha ques-
tões semelhantes a seu país quando se interrogava sobre a história
da formação cultural brasileira a partir do começo do século.
História marcada a seus olhos pelo que denomina “o declínio
da “atitude bovarista” das elites”, ou seja, o enfraquecimento do
olhar de desprezo que as classes superiores sempre lançaram ao
povo, símbolo de atraso, cuja contribuição cultural era julgada
nula: o povo como tema censurado, proibido de agir. Um povo
depreciado, que continuava, por sua vez, a cultivar suas parti-
cularidades e diferenças regionais face à cultura “legítima”, vol-
tada para as últimas manifestações artísticas européias.
Desde 1983, Celso Furtado resumia pois alguns dos fatores
muito contraditórios que, segundo ele, favoreceram a lenta emer-
gência desta nova visão do componente popular e que explicam
a ambivalência dos processos culturais num momento especial-
mente importante da industrialização da cultura: “A urbanização
torna a presença do povo mais visível, e também mais difícil de
escamotear a sua criatividade cultural. Mas é a emergência de
uma classe média de importância econômica crescente que intro-
duzirá elementos novos, de peso, na equação do processo cultu-
ral brasileiro. A classe média forma-se no quadro da moderniza-
ção dependente, mediatizada por uma industrialização que segue
as linhas da substituição de importações. Contudo, a grande
maioria de seus elementos está demasiado próxima do povo para
poder ignorar a significação cultural deste. Mais ainda: o caráter

15. J. Martín Barbero, “Comunicación, pueblo y cultura en el tiempo de


las transnacionales”, in M. de Moragas (sob a direção de), Sociologia de la
comunicación de masas, Barcelona, Gustavo Gili, 1985, vol. IV, p. 177.
É interessante constatar que estas novas questões surgem hoje sobre-
tudo em grupos ligados à Igreja Católica, seja na Igreja mais progressista,
ligada à tradição que desde os anos 60 deu origem à Teologia da Liber-
tação, seja nos movimentos de educação popular. Note-se por exemplo, no
Brasil, o estudo Populismo e comunicação, publicado pela Sociedade Brasi-
leira de Estudos Interdisciplinares de Comunicação, coordenada por J.
Marques de Melo (Cortez, São Paulo, 1981).
110 A. e M. MATTELART

de massa da cultura da classe média faz que suas relações com o


povo sejam não de exclusão, como era o caso das elites bovaris-
tas, e sim de envolvimento e penetração. Desta forma, a ascen-
são da cultura de classe média é o fim do isolamento do povo,
mas também o começo da descaracterização deste como força
criativa 1º”,

16. C. Furtado, Cultura e desenvolvimento em época de crise, Rio de Ja-


neiro, Paz e Terra, 1984.
5. Novela e Sociedades

O impacto de um gênero :

Desde Beto Rockfeller, a novela não deixou de referir-se a


determinados problemas da sociedade brasileira: os preconceitos
raciais, a condição da mulher, as relações entre a religião cató-
lica e as religiões afro-brasileiras (umbandismo), a poluição in-
dustrial, a corrupção, a miséria e a violência urbanas, a disputa
entre bairros, etc. Não cessou de aceitar o desafio que um deter-
minado realismo representa para um gênero originalmente vol-
tado para a vida sentimental e os triângulos amorosos.
A popularidade das novelas não se mede somente pela cotação
do Ibope, mas exatamente pelo espaço que ocupam nas conversas
e debates de todos os dias, pelos boatos que alimentam, por seu
poder de catalisar uma discussão nacional, não somente em torno
dos meandros da intriga, mas também acerca de questões sociais.
A novela é de certa forma à caixa de ressonância de um debate
público que a ultrapassa.
Quanto à imprensa, o discurso sobre a novela no Brasil não
se resume aos das revistas especializadas. Estas, aliás, têm pouco
peso !, Em toda a imprensa diária, semanal ou mensal, abrangen-

1. Em 1981, as duas revistas ditas de televisão editadas pelo grupo Abril,


TV Contigo e TV Ilusão, não ultrapassavam 95 000 exemplares respectiva-
mente, enquanto a revista Veja (revista semanal de informação) editava
112 A. e M. MATTELART

do todos os gêneros e públicos, se fala das novelas. Elas recebem


sempre farta cobertura da imprensa: entrevistas com autores, in-
térpretes, diretores, produtores ou telespectadores, mesas-redon-
das sobre o alcance dos temas abordados, críticas de jornalistas
especializados, análises de caráter acadêmico, críticas humorísti-
cas, fofocas das colunas sociais e da imprensa feminina, etc. Aos
dossiês de cada novela, preparados pela Globo para a imprensa,
e aos copiosos boletins de programação semanal editados pela
imprensa, seguem-se amplas reportagens em todos os jornais e
revistas a respeito desses programas que constituem verdadeiros
acontecimentos nacionais, continuamente publicados. Os últimos
capítulos de uma novela de sucesso arrebatam em geral 100
pontos do Ibope e representam o clímax dessas mobilizações na-
cionais. Em agosto de 1985, quando Rogue Santeiro, com seus
80 pontos no Ibope ?, reunia mais de 43 milhões de telespecta-
dores todas as noites, a imprensa inteira orquestrava esse fenô-
meno com uma orgia de informações sobre a periferia do pro-
grama ou sobre pormenores da filmagem e distribuição, reapre-
sentando fotos dos atores, voltando a comentar as gravações.
O abuso de atividade jornalística em torno da novela ocorre
principalmente na imprensa diária e periódica do Rio de Janeiro
e de São Paulo. É exportado para jornais das capitais das outras
regiões, que são totalmente dependentes, pelo menos no que con-
cerne à imprensa de grande tiragem, das reportagens e críticas
publicadas por seus confrades do eixo Rio—São Paulo. Os estú-
dios da Globo em Salvador (Bahia) não tiveram, em 1985, ne-
nhuma participação na filmagem da série adaptada da obra do

488 000 exemplares. Além do mais, essas revistas eram quinzenais *, e


não se pareciam nada com as revistas semanais de TV européias ou norte-
americanas (como Telerama ou TV Guide).
(* Nota da revisora técnica: A revista Amiga também sobre TV, da
Editora Bloch, Rio de Janeiro, é semanal.)
2. 80 pontos durante os primeiros meses constituem uma média muito alta.
Somente as novelas como Corpo a corpo (sobre as relações inter-raciais) a
atingiram. Entre as novelas de grande sucesso no mercado interno que se
internacionalizaram, os índices médios do Ibope (no mercado-padrão de
São Paulo) eram de 60 pontos para Baila comigo e Dancin' days (“Mania
Nacional”, dossiê sobre Roque Santeiro, Isto É, 14 de agosto, 1985, p. 34).
O VÍNCULO SOCIAL 113

romancista baiano Jorge Amado, Tenda dos milagres, rodada em


uma cidadezinha próxima da capital do Estado. Paralelamente,
os críticos de TV da imprensa regional só tinham referências
da série através do que havia sido publicado na imprensa das
duas metrópoles.
Como um determinado Brasil encara a novela: poderia ser
escrita uma história sobre esse incrível volume de matérias jor-
nalísticas. A quantidade de artigos publicados sobre a programa-
ção de TV não encontra paralelo nas redações francesas.

Á crise da representação do social


O poder catártico do gênero e sua empatia com o público o
definem como um fato excepcional de comunicação, fato ecumê-
nico e transclassista. Porém, não se pode esquecer o caráter do
social que é representado.
Preso às determinações econômicas e socioculturais de um pro-
jeto de integração em torno de um pólo de modernização e con-
sumo, o molde Globo favoreceu, nas novelas, um modelo de
representação da sociedade brasileira centrado em uma zona do
Rio. Evidenciava o eixo das praias Ipanema-Zona Sul, o setor
burguês da cidade, em violento contraste com aquele Rio-Zona
Norte, focalizado em 1957 pelo cineasta Nelson Pereira dos
Santos.
Este eixo geográfico é um espaço social fechado. Citemos no-
vamente o autor-diretor Walter Avancini, que, em julho de 1983,
via nos limites deste social exibido nas novelas uma das razões
profundas da crise e de uma linguagem televisiva: “A novela
continua atendendo a códigos de linguagem, gostos e ambições
da classe média, muito embora o confronto de classes seja menos
evidente em alguns horários do que foi no passado. Mas a classe
trabalhadora continua sendo apresentada como caricata. O que
se projeta como autêntico são os valores da burguesia, que passa
para a classe trabalhadora a mensagem de que é preciso aprender
a viver vendo, sem pretender ter. Eu costumo dizer que não
se pode cobrar da televisão e da telenovela o que ela não é. Ela
reflete apenas a situação brasileira. Televisão não é fator de mu-
114 A. e M. MATTELART

dança. Para melhor ou para pior, ela será aquilo que for seu
povo. Claro que a televisão é fantasiosa. Ela evita o confronto
direto com a sua realidade, porque há problemas políticos envol-
vendo esse confronto. O trabalhador não é analisado na tele-
visão. Quando muito, sua situação é discutida no teatro ou no
cinema por um público que já sabe o que vai ouvir e que não
está interessado em mudanças profundas. O autor de texto de
telenovela no Brasil é também parte de uma elite, de uma classe
média, e como tal acaba por refletir seus próprios valores *”.
Ele não é o único a pensar que se o folhetim começa a fati-
gar uma parte do público, com seus estereótipos imutáveis, é
porque este aspira a uma visão menos superficial da vida social.
" Hoje, na aurora da Nova República, esta representação social
e a linguagem televisiva que ela formalizou suscitam um debate
mais aberto do que no passado. Certas idéias latentes começam
a se desenvolver publicamente a partir do círculo dos autores e
diretores. As tendências alternativas, as pesquisas de uma nova
linguagem já experimentada em algumas linhas de produção e
em certas novelas encontram o clima de abertura propício para
seu florescimento. Sem sucumbir ao antigo reflexo de fazer uma
interpretação mecanicista da inter-relação entre o contexto polí-
tico e a criação cultural, não se pode negar que O questionamento

3. Citado por V. Magyar e A. L. Petroni, “A telenovela faz 20 anos”,


Jornal da Tarde, 23 de julho, 1983.
O sociólogo Luis Gonzaga Motta expressava uma idéia semelhante
quando do debate sobre a recente política cultural da Nova República:
“As novelas da Rede Globo tiveram grande peso na divulgação de com-
portamentos que deveriam ser os comportamentos modernos. Pode-se dizer
que houve uma tentativa de imposição de um modelo cultural, de um
modelo social que se identificam com o modelo de desenvolvimento bra-
sileiro, .. Esse modelo cultural era o modelo de uma sociedade consumista,
onde o moderno era traduzido como consumo. É óbvio que isso não se rea-
lizou, pela própria contradição do modelo. Ele excluiu a possibilidade de
todo mundo entrar no comportamento consumista. O próprio modelo mar-
ginalizou grande parte da sociedade brasileira. As classes populares, então,
vão buscar formas alternativas para a satisfação de seu cotidiano, formas de
defesa e resistência cultural desenvolvidas à medida que percebiam que
não era possível viver o modelo consumista no cotidiano” (debate sobre
a “colonização cultural” reproduzido na Tribuna da Babia de 17 de agos-
to, 1985).
O VÍNCULO SOCIAL 115

de um modelo de desenvolvimento econômico e as pressões cada


vez mais fortes para a participação imediata (sem a qual a demo-
cracia não teria muito futuro no Brasil) tenham alguma relação
com a nova legitimidade que adquire a expressão de um Brasil
popular, violento, concreto, múltiplo, miscigenado e pluricultural.
Um Brasil onde 65% da população está na impossibilidade seja
de satisfazer suas necessidades alimentares, seja de adquirir ou-
tros bens que não os alimentares. Um Brasil onde a ideologia de
segurança das classes abastadas faz com que elas se isolem em
seus bairros fortificados com dispositivos de vigilância eletrô-
nica, serviços de segurança e policiamento particular. Um Brasil
onde os anúncios de apartamentos nos novos conjuntos residen-
ciais reforçam sempre a eficiência da segurança; aquela do “safety
eyes system” que emprega a tecnologia mais' avançada: “circuito
interno de televisão acoplado ao seu aparelho de TV. Sistema
de alarme geral ultra-sensível. Ligação direta com a delegacia
mais próxima. Telefone no apartamento do zelador. Portão ele-
trônico de última geração. Muro fechado e gradis circundando
toda a área. Guarita com central de telefonia e circuito interno
de televisão *”.
Atualmente, nas metrópoles brasileiras, toda pessoa de classe
média, quaisquer que sejam sua ideologia e suas idéias políticas,
vê-se por assim dizer constrangida a entrar nesse circuito de se-
gurança para se proteger contra a violência dos marginalizados
pelo modelo econômico. Por paradoxal que isto possa parecer,
um dos roteiristas mais “progressistas” e mais ligado, sem dú-
vida, à realidade deste Brasil segregado, para realizar seu trabalho
cotidiano de criação precisa morar num bairto residencial prote-
gido por esses cordões de isolamento e vigilância particular.
O modelo integrativo da Globo, seu padrão de modernidade
do consumo, foi o ponto de convergência de um consenso oficial
e de um deslumbramento eletrônico partilhado por toda a popu-

4. Publicidade comum e muito frequente nos jornais de São Paulo e Rio.


A que citamos diz respeito aos imóveis The Towers, em São Paulo. Apa-
receu em 22 de agosto, 1985, na Folha de S. Paulo. Na série de estudos
sobre o Brasil dos anos do autoritarismo há um trabalho documentado so-
bre o mercado da segurança. Ver C. Brigagão, 4 militarização da socie-
dade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.
116 A. e M. MATTELART

lação. A novela foi uma das peças mestras dessa unanimidade com
uma sociedade onde se acentuava, ao correr dos anos, o regime
de dupla velocidade que fazia com que uns vivessem efetiva-
mente no ritmo da modernização e outros estagnassem num ho-
rizonte cada vez mais limitado social e financeiramente. Ainda
que, na busca de mecanismos de sobrevivência, estes últimos
criassem suas próprias formas de resistência cultural.
A produção da TV brasileira desde o fim dos anos 70 foi
obrigada a considerar a pressão permanente exercida por essa
dualidade social, esta forma de apartheid. A experimentação das
minisséries é um dos testemunhos desta consciência *. Porque
com elas os autores se sentem mais livres para trabalhar os uni-
versos do maravilhoso poético ou dos diversos realismos: social,
mágico, policial. O risco que comportavam para o projeto con-
sensual não escapou evidentemente ao aparelho de censura, que
não cessou de adiar, mutilar e principalmente de recomendar sua

5. Conforme as palavras do diretor Daniel Filho, então responsável por


esse espaço de criação, em um documento preparado pela Globo para o
lançamento da nova programação: “Acho que o seriado é também um pro-
duto da abertura proposta pelo país, na medida em que teremos chance
de mergulhar mais fundo em nossa realidade. E como no seriado cada
episódio é fechado em si mesmo, nasce a oportunidade de se dar um
tratamento não-romântico, o que a novela não permite, devido a seu gênero
e forma. Às novelas, de uns dez anos para cá, ficaram praticamente como
donas da televisão... É certo que a novela não vai acabar, que ainda vão
ser feitas mil coisas... As séries mesmo são Carga pesade, Malu mulher
e Plantão de polícia. A idéia era fazer um painel do Brasil em seus diver-
sos aspectos, a cada semana. Quando pedimos aos autores sugestões de
séries, foi dentro dessa linha, fixando cada uma em um ponto do país.
Temos o Plantão de polícia, ambientado no Rio, atingindo a grande cidade
sob o ponto de vista do noticiário policial, que é muito amplo. Já Carga
pesada nasceu a partir de uma proposta de série sobre o interior do Brasil.
Surgiu então a idéia do motorista de caminhão, pela mobilidade que ele
tem. Nessas duas séries, vamos falar da problemática urbana e rural.
Ficava faltando a abordagem existencial. Aí entra Malu mulher... É o
problema da mulher, do relacionamento homem-mulher, do casamento, dos
filhos, da separação. Essas dúvidas todas que estão aí, atingindo sobretudo
a classe média. E, para falar da classe média, nada melhor do que São
Paulo como cenário, por ser o maior centro urbano do país. E assim
armamos um painel do Brasil”. (Citado in R. Miranda, C. A. Pereira
op. cit).
O VÍNCULO SOCIAL 113

romancista baiano Jorge Amado, Tenda dos milagres, rodada em


uma cidadezinha próxima da capital do Estado. Paralelamente,
os críticos de TV da imprensa regional só tinham referências
da série através do que havia sido publicado na imprensa das
duas metrópoles.
Como um determinado Brasil encara a novela: poderia ser
escrita uma história sobre esse incrível volume de matérias jor-
nalísticas. A quantidade de artigos publicados sobre a programa-
ção de TV não encontra paralelo nas redações francesas.

A crise da representação do social


O poder catártico do gênero e sua empatia com o público o
definem como um fato excepcional de comunicação, fato ecumê-
nico e transclassista. Porém, não se pode esquecer o caráter do
social que é representado.
Preso às determinações econômicas e socioculturais de um pro-
jeto de integração em torno de um pólo de modernização e con-
sumo, o molde Globo favoreceu, nas novelas, um modelo de
representação da sociedade brasileira centrado em uma zona do
Rio. Evidenciava o eixo das praias Ipanema-Zona Sul, o setor
burguês da cidade, em violento contraste com aquele Rio-Zona
Norte, focalizado em 1957 pelo cineasta Nelson Pereira dos
Santos.
Este eixo geográfico é um espaço social fechado. Citemos no-
vamente o autor-diretor Walter Avancini, que, em julho de 1983,
via nos limites deste social exibido nas novelas uma das razões
profundas da crise e de uma linguagem televisiva: “A novela
continua atendendo a códigos de linguagem, gostos e ambições
da classe média, muito embora o confronto de classes seja menos
evidente em alguns horários do que foi no passado. Mas a classe
trabalhadora continua sendo apresentada como caricata. O que
se projeta como autêntico são os valores da burguesia, que passa
para a classe trabalhadora a mensagem de que é preciso aprender
a viver vendo, sem pretender ter. Eu costumo dizer que não
se pode cobrar da televisão e da telenovela o que ela não é. Ela
reflete apenas a situação brasileira. Televisão não é fator de mu-
114 A. e M. MATTELART

dança. Para melhor ou para pior, ela será aquilo que for seu
povo. Claro que a televisão é fantasiosa. Ela evita o confronto
direto com a sua realidade, porque há problemas políticos envol-
vendo esse confronto. O trabalhador não é analisado na tele-
visão. Quando muito, sua situação é discutida no teatro ou no
cinema por um público que já sabe o que vai ouvir e que não
está interessado em mudanças profundas. O autor de texto de
telenovela no Brasil é também parte de uma elite, de uma classe
média, e como tal acaba por refletir seus próprios valores *”.
Ele não é o único a pensar que se o folhetim começa a fati-
gar uma parte do público, com seus estereótipos imutáveis, é
porque este aspira a uma visão menos superficial da vida social.
Hoje, na aurora da Nova República, esta representação social
e a linguagem televisiva que ela formalizou suscitam um debate
mais aberto do que no passado. Certas idéias latentes começam
a se desenvolver publicamente a partir do círculo dos autores e
diretores. As tendências alternativas, as pesquisas de uma nova
linguagem já experimentada em algumas linhas de produção e
em certas novelas encontram o clima de abertura propício para
seu florescimento. Sem sucumbir ao antigo reflexo de fazer uma
interpretação mecanicista da inter-relação entre o contexto polí-
tico e a criação cultural, não se pode negar que O questionamento

3. Citado por V. Magyar e A. L. Petroni, “A telenovela faz 20 anos”,


Jornal da Tarde, 23 de julho, 1983.
O sociólogo Luis Gonzaga Motta expressava uma idéia semelhante
quando do debate sobre a recente política cultural da Nova República:
“As novelas da Rede Globo tiveram grande peso na divulgação de com-
portamentos que deveriam ser os comportamentos modernos. Pode-se dizer
que houve uma tentativa de imposição de um modelo cultural, de um
modelo social que se identificam com o modelo de desenvolvimento bra-
sileiro. .. Esse modelo cultural era o modelo de uma sociedade consumista,
onde o moderno era traduzido como consumo. É óbvio que isso não se rea-
lizou, pela própria contradição do modelo. Ele excluiu a possibilidade de
todo mundo entrar no comportamento consumista. O próprio modelo mar-
ginalizou grande parte da sociedade brasileira, As classes populares, então,
vão buscar formas alternativas para a satisfação de seu cotidiano, formas de
defesa e resistência cultural desenvolvidas à medida que percebiam que
não era possível viver o modelo consumista no cotidiano” (debate sobre
a “colonização cultural” reproduzido na Tribuna da Babia de 17 de agos-
to, 1985).
O VÍNCULO SOCIAL 115

de um modelo de desenvolvimento econômico e as pressões cada


vez mais fortes para a participação imediata (sem a qual a demo-
cracia não teria muito futuro no Brasil) tenham alguma relação
com a nova legitimidade que adquire a expressão de um Brasil
popular, violento, concreto, múltiplo, miscigenado e pluricultural.
Um Brasil onde 65% da população está na impossibilidade seja
de satisfazer suas necessidades alimentares, seja de adquirir ou-
tros bens que não os alimentares. Um Brasil onde a ideologia de
segurança das classes abastadas faz com que elas se isolem em
seus bairros fortificados com dispositivos de vigilância eletrô-
nica, serviços de segurança e policiamento particular. Um Brasil
onde os anúncios de apartamentos nos novos conjuntos residen-
ciais reforçam sempre a eficiência da segurança; aquela do “safety
eyes system” que emprega a tecnologia mais -avançada: “circuito
interno de televisão acoplado ao seu aparelho de TV. Sistema
de alarme geral ultra-sensível. Ligação direta com a delegacia
mais próxima. Telefone no apartamento do zelador. Portão ele-
trônico de última geração. Muro fechado e gradis circundando
toda a área. Guarita com central de telefonia e circuito interno
de televisão *”.
Atualmente, nas metrópoles brasileiras, toda pessoa de classe
média, quaisquer que sejam sua ideologia e suas idéias políticas,
vê-se por assim dizer constrangida a entrar nesse circuito de se-
gurança para se proteger contra a violência dos marginalizados
pelo modelo econômico. Por paradoxal que isto possa parecer,
um dos roteiristas mais “progressistas” e mais ligado, sem dú-
vida, à realidade deste Brasil segregado, para realizar seu trabalho
cotidiano de criação precisa morar num bairro residencial prote-
gido por esses cordões de isolamento e vigilância particular.
O modelo integrativo da Globo, seu padrão de modernidade
do consumo, foi o ponto de convergência de um consenso oficial
e de um deslumbramento eletrônico partilhado por toda a popu-

4. Publicidade comum e muito frequente nos jornais de São Paulo e Rio.


A que citamos diz respeito aos imóveis The Towers, em São Paulo. Apa-
receu em 22 de agosto, 1985, na Folha de S. Paulo. Na série de estudos
sobre o Brasil dos anos do autoritarismo há um trabalho documentado so-
bre o mercado da segurança. Ver C. Brigagão, 4 militarização da socie-
dade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.
116 A. e M. MATTELART

lação. A novela foi uma das peças mestras dessa unanimidade com
uma sociedade onde se acentuava, ao correr dos anos, o regime
de dupla velocidade que fazia com que uns vivessem efetiva-
mente no ritmo da modernização e outros estagnassem num ho-
rizonte cada vez mais limitado social e financeiramente. Ainda
que, na busca de mecanismos de sobrevivência, estes últimos
criassem suas próprias formas de resistência cultural.
A produção da TV brasileira desde o fim dos anos 70 foi
obrigada a considerar a pressão permanente exercida por essa
dualidade social, esta forma de apartheid. A experimentação das
minisséries é um dos testemunhos desta consciência *. Porque
com elas os autores se sentem mais livres para trabalhar os uni-
versos do maravilhoso poético ou dos diversos realismos: social,
mágico, policial. O risco que comportavam para o projeto con-
sensual não escapou evidentemente ao aparelho de censura, que
não cessou de adiar, mutilar e principalmente de recomendar sua

5. Conforme as palavras do diretor Daniel Filho, então responsável por


esse espaço de criação, em um documento preparado pela Globo para o
lançamento da nova programação: “Acho que o seriado é também um pro-
duto da abertura proposta pelo país, na medida em que teremos chance
de mergulhar mais fundo em nossa realidade. E como no seriado cada
episódio é fechado em si mesmo, nasce a oportunidade de se dar um
tratamento não-romântico, o que a novela não permite, devido a seu gênero
e forma. As novelas, de uns dez anos para cá, ficaram praticamente como
donas da televisão... É certo que a novela não vai acabar, que ainda vão
ser feitas mil coisas... Ás séries mesmo são Carga pesada, Malu mulher
e Plantão de polícia. A idéia era fazer um painel do Brasil em seus diver-
sos aspectos, a cada semana. Quando pedimos aos autores sugestões de
séries, foi dentro dessa linha, fixando cada uma em um ponto do país.
Temos o Plantão de polícia, ambientado no Rio, atingindo a grande cidade
sob o ponto de vista do noticiário policial, que é muito amplo. Já Carga
pesada nasceu a partir de uma proposta de série sobre o interior do Brasil.
Surgiu então a idéia do motorista de caminhão, pela mobilidade que ele
tem. Nessas duas séries, vamos falar da problemática urbana e rural,
Ficava faltando a abordagem existencial. Aí entra Malu mulher... É o
problema da mulher, do relacionamento homem-mulher, do casamento, dos
filhos, da separação. Essas dúvidas todas que estão aí, atingindo sobretudo
a classe média. E, para falar da classe média, nada melhor do que São
Paulo como cenário, por ser o maior centro urbano do país. E assim
armamos um painel do Brasil”. (Citado im R. Miranda, C. A. Pereira
op. cit).
O VÍNCULO SOCIAL 117

difusão para os horários mais permissivos da noite. Eterno jogo


das autoridades programadoras: o que, no Brasil, é solução pre-
conizada por uma censura institucionalizada é, em outros luga-
res, a fórmula metabólica que permite rejeitar indefinidamente
para os horários de menor audiência os produtos da dimensão:
a experimentação estética, a liberação dos tabus sexuais, a insu-
bordinação política.

Os intelectuais, a esquerda e a televisão

A televisão acolheu mais cedo ou mais tarde inúmeros artistas,


autores e alguns repórteres da esquerda brasileira, que permane-
ceram no país sob a ditadura ou que regressaram antes do perío-
do de abertura. Um cantor como Caetano Veloso, depois de
preso e exilado em Londres, foi levado a trabalhar para progra-
mas da Globo e a compor as canções de sucesso utilizadas nas
novelas. A aproximação com os cineastas foi bem mais rara e
conflituosa. O caso de Eduardo Coutinho, autor de Cabra mar-
cado para morrer *, que trabalhou durante uns seis anos no pro-
grama informativo Globo repórter, constitui exceção.
A televisão brasileira até o presente momento jamais favore-
ceu a difusão do cinema nacional e menos ainda sua produção.
Poucos filmes brasileiros nas telas da Globo: entre 1973 e 1981,
a televisão brasileira só difundiu 376 filmes brasileiros, ou seja,
apenas 2,6% dos filmes de longa-metragem exibidos. Há duas

6. Cabra marcado para morrer tem por ponto de partida o assassinato de


João Pedro Teixeira, presidente de uma liga camponesa do Estado da
Paraíba, em 1962, assassinato executado por capangas conhecidos e todos
impunes, típico da situação de violência rural. Esse filme deveria ter sido
terminado em 1964. O golpe de Estado militar interrompeu sua execução.
Dezessete anos mais tarde, B. Coutinho voltou a filmar no local, tirando
partido de seu aprendizado de reportagem na TV, para explorar as histórias
da companheira do sindicalista e das crianças que ele deixara. Esse filme
obteve o prêmio de filme documentário no Festival de Havana em 1984,
o primeiro prêmio do Festival do Rio de Janeiro em 1984 e o primeiro
prêmio também do Festival de Cinemas do Real, no Beauborg, em Paris,
1985.
118 A. e M. MATTELART

razões para isso: a censura sobre o cinema, que redobra a vigi-


lância quando o filme deve passar na telinha, e o custo dos fil-
mes brasileiros, superior ao dos americanos, já amortizados fora
do Brasil.
Mas estes elementos de uma política empresarial em matéria
de difusão do cinema nacional não poderiam mascarar a impor-
tância de elementos muito mais complexos que interferem nos
relacionamentos entre o pessoal de cinema e de TV. Trajetórias
pessoais e ligações políticas diferentes, relacionamento diverso
com as instituições privadas e públicas, mas, acima disso, concep-
ções estéticas divergentes. Por exemplo, a necessidade de re-
tratar “o homem brasileiro”, sua terra, sua fome, seu imaginário,
ponto fundamental do cinema novo. Há também a reivindicação
do direito de autoria, contra uma televisão onde a marca do pro-
dutor e das instâncias de programação restringe a liberdade de
criação.
Em 1979, Glauber Rocha, uma das principais figuras — e a
mais turbulenta — do Cinema Novo, expressou este antagonismo
de maneira radical, condenando sem perdão todos os artistas que
se comprometiam com a indústria audiovisual e especialmente
com a Globo: “Os intelectuais próximos do Partido (Comunis-
ta), cujos nomes calarei, uma vez que ele não é mais legal, se
corromperam completamente. A maior parte dos atores, dos dire-
tores, dos roteiristas, etc., foram trabalhar na Globo, sob a dita-
dura do General Médici. Corromperam-se politicamente e igual.
mente no plano estético: um desastre. Venderam-se a Roberto
Marinho pot uma soma módica ?”,
Na mesma ocasião, ele arrasava o projeto industrial de cinema,
apoiado pelo Partido Comunista e pelo Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), que representavam, segundo ele, posições orto-
doxas face à sua própria posição, que qualificava como de cineasta
da “esquerda revolucionária”. Não hesitava em reunir todos os
filmes saídos do projeto sob a denominação de “pornochanchada”
(que indica os filmes pornográficos, mas que, na acepção mais

7. Entrevista com Glauber Rocha, realizada por C. A. M. Pereira e H..


Buarque de Holanda, publicada no Nuovo Cinema/Pesaro, Brasile “Cinema
Novo” e dopo, Veneza, Marsilio Editori, 1981, p. 246.
O VÍNCULO SOCIAL 119

lata, utilizada por Glauber Rocha, significa degenerescência, ci-


nema que visa a receitas comerciais explorando o sexo).
É também a Glauber Rocha que se deve a mais acerba crítica
do populismo como elemento de uma idiossincrasia nacional. Em
seu manifesto Não ao populismo!, escrevia, em 1969: “Recusan-
do o cinema de imitação e escolhendo uma outra forma de ex-
pressão, o Cinema Novo recusou também o caminho fácil desta
outra linguagem típica do que se costuma chamar de arte nacio-
nalista, 'o populismo”, que reflete uma atitude política que nos
é própria. Como o caudilho, o artista se sente pai do povo; a
palavra de ordem é: “falar com toda a simplicidade para que o
povo compreenda”. Na minha opinião, trata-se de uma falta de res-
peito ao público, por mais subdesenvolvido que seja: “criar coisas
simples para um povo simples". Ora, o povo não é simples. Mes-
mo se é doente, faminto, analfabeto, o povo é complexo. O ar-
tista paternalista idealiza os tipos populares como indivíduos fan-
tásticos que, mesmo na miséria, têm sua filosofia, e os infelizes
têm somente necessidades de formar em si um pouco de “cons-
ciência política” para poder, no dia de amanhã, inverter o pro-
cesso histórico. O primitivismo deste conceito é ainda mais no-
civo que a arte de imitação, porque esta última tem pelo menos
a coragem de se reconhecer como tal e justifica a “indústria do
gosto artístico” pela sua procura do lucro *”.
Originando-se dessa esquerda, cuja evolução Glauber Rocha
estigmatizava, Dias Gomes é sem dúvida o autor que desde o
começo dos anos 60 mais continuamente marcou o espaço cria-
tivo da novela. Nascido em 1923, militará durante trinta anos
no Partido Comunista Brasileiro (até os anos 70). Hoje se diz
“anarco-marxista”. Em 1985, a Globo o nomeava para dirigir a
Casa de Criação que leva o nome de sua esposa, Janete Clair.
A questão que não pode deixar de ocorrer é a seguinte: como
um autor que jamais deixou de professar idéias esquerdistas pode
ser o pilar reconhecido pelo espaço de criação de ficção numa em-
“presa como as Organizações Globo? A resposta de Dias Gomes,
autor dramático que, como vimos, teve contato assíduo com a

8. G. Rocha, “No al populismo”, reproduzido im Fundación del Nuevo


Cine Latinoamericano, Hojas de Cine, México-—Havana, 1986.
120 A. e M. MATTELART

censura, é a seguinte: “A visão crítica de minha obra vem de


uma concepção do papel do escritor como testemunha do seu
tempo e principalmente do processo de criação de um teatro
verdadeiramente brasileiro. A dramaturgia brasileira só pode sur-
gir do questionamento da nossa sociedade. Não existe o risco de
essas críticas se diluírem na programação de um grande mono-
pólio como a Globo? Se existe contradição, é do Roberto Mari-
nho; eu trabalho, e ninguém interfere nisso. A Globo não inter-
fere de modo algum, nem nunca interferiu. A emissora põe no
ar ou não. Quando vai ao ar, as idéias são minhas, e não há nisso
nenhuma contradição *”.
À opinião de Doc Comparato é paralela: “Costuma-se dizer
que todos os escritores da Globo são de esquerda. Dias Gomes,
Aguinaldo Silva, eu mesmo, todos nós sofremos muitas inter-
dições, como a maioria das pessoas aqui. Aliás, é por isso que
fiquei na Inglaterra durante certo tempo. À situação é bem mais
complexa do que parece, se vista de fora. Digo sempre o seguinte:
não se pode confundir o autor, a pessoa, com o sistema ideoló-
gico que o abriga. Não se pode dizer que Sófocles fosse um escri-
tor escravagista ou que Moliêre fosse um monarquista. Ele utili-
zava a corte para criar sua obra. Não escrevo exatamente com
a profundidade que desejaria. Mas não vou contra minhas pró-
prias idéias. Não estou jamais em desacordo com aquilo que
escrevo. Há certas coisas que não escrevo. Mas não escrevo nada
que vá contra o que penso !º”.
É interessante complementar a posição de Dias Gomes com
sua opinião sobre a publicidade e o merchandising. A uma per-
gunta que lhe fizeram sobre sua atitude quanto a essas duas
restrições do sistema mercadológico, ele respondia: “Tanto os
comerciais quanto o merchandising são regras do sistema capita-
lista, e é preciso aceitá-los, a não ser que se esteja contra o
próprio sistema capitalista. Pessoalmente, eu sou contra, mas
vivo dentro dele, porque não sou uma ilha !”,

9. Entrevista com Dias Gomes, Voz de Unidade, São Paulo, 3-9 de agosto,
1982, nl:
10. Entrevista com Doc Comparato, realizada por M. e A. Mattelart.
11. “Como vender de tudo através da novela”, art. cit.
O VÍNCULO SOCIAL 121

O vínculo que certos autores de ficção da televisão brasileira


mantêm com os meios intelectuais da crítica social é transparen-
te. Basta que se lance um olhar pelas estantes de suas bibliotecas
pessoais, nos respectivos ambientes de trabalho. A literatura lati-
no-americana encontra-se ao lado de obras dos historiadores, an-
tropólogos, economistas e sociólogos do continente. Para cada
roteiro, um trabalho específico de documentação é efetuado, do
qual se encarrega um historiador, sociólogo ou antropólogo. Po-
rém, o que chama a atenção na obra, pelo menos de alguns
deles, é uma ecologia intelectual que Se alimenta da memória
da opressão de um continente. Uma memória que é inconcebível
sem que se faça alusão ao relacionamento entre os intelectuais
latino-americanos e o povo. Desde o século XIX, este relaciona-
mento caracterizou-os como uma classe engajada, que participa dos
interesses populares e que subtraiu das oligarquias a possibilidade
de assentar sua hegemonia nesse domínio. Uma classe intelectual
unida ao povo com toda a ambigiiidade que historicamente supõe
e supôs a própria definição de povo e de popular.
Quem não concorda com o fato de que esta memória, esta base
de referência, esta consciência social sejam filtradas pelo conjunto
de mediações e limitações impostas à produção criativa em um
contexto industrial e político específico? O texto carrega consigo
os vestígios indeléveis do cálculo. Todavia, carrega também os
vestígios dessas tessituras sociais. Seria errôneo conceber a con-
dição do autor de ficção na TV brasileira em função de seus
confrades norte-americanos ou europeus, cuja imagem é bastante
desvalorizada em relação a cineastas e romancistas. No Brasil, o
autor de TV não parece ser um cidadão de segundo escalão da
classe dos intelectuais e criadores, embora a existência do Ci-
nema Novo e os debates suscitados por ele tenham instalado
graus hierárquicos em matéria de criação audiovisual; ou mesmo
que, como em qualquer lugar do mundo, uma fração não-mino-
ritária da classe intelectual olhe sempre com desdém o que se
passa na esfera do espetáculo na televisão.
Não é estranho, portanto, que uma parte da classe intelectual
brasileira conteste a concepção de arte popular sustentada por
criadores de ficção como Dias Gomes. O debate não é de hoje.
Certas produções tiveram o especial privilégio de lhe dar re-
122 A. e M. MATTELART

percussão pública. Foi o caso, por exemplo, nos anos 70 de O


bem-amado, de Dias Gomes, Irmãos Coragem, de Janete Clair,
da segunda adaptação de Gabriela (do romance de Jorge Amado)
e de Saramandaia (1976), também de Dias Gomes, caracterizada
pelo realismo fantástico e retomando um tema da literatura de
cordel e os mitos do Nordeste. Num país onde a tradição popu-
lista é tão viva e onde a cultura popular se debate teoricamente
entre duas referências: populista e nacional-popular, as novelas
que introduzem o tema das manifestações culturais populares e
dos elementos da concepção do mundo das classes inferiores for-
necem'a oportunidade de catalisar a discussão.
Apoiando-se na noção de cultura legítima e no sistema con-
ceitual de Bourdieu das teorias da reprodução cultural, os que
contestam que se possa falar de arte e de cultura popular na
televisão afirmam que o discurso televisivo não pode incorporar
“o popular” senão após ter operado nele “a higienização dos
conteúdos”, a filtragem pelas normas da legitimidade cultural.
A televisão usurparia as expressões das culturas populares para
renovar seu álibi democrático e alimentar suas pretensões de qua-
didade estética.
“A presença de elementos de culturas dominadas, ou formas
de narração de cultura popular transpostos pará a TV, não sig-
nifica a superação das condições de dominação nem tampouco
o emergir de uma fala reprimida historicamente. Pois a cultura
popular, além de sua condição de excluída, situa-se numa posição
antagônica ao arbitrário cultural dominante, representando uma
contralegitimidade cultural. Em outras palavras, a emergência de
uma cultura popular no interior do sistema provocaria a intro-
dução de ambivalências e contradições que viriam a pôr em
cheque a própria estabilidade desse sistema. Seria o confronto
de padrões culturais, o que constitui uma ameaça ao edifício das
significações dominantes. A cultura popular, em sua condição de
marginal, de contralegitimidade cultural, se investe ao mesmo
tempo da condição de contra-instituição e contracultura, que ex-
prime uma contra-sociedade. A indústria cultural só nos mostra
elementos ou ftagmentos dessa cultura regional que já tenham
sido sancionados. Se a ação social do folheto de cordel já tiver
sido cristalizada pela designação estática de folclore, se estiver
O VÍNCULO SOCIAL 123

devidamente classificada no universo das significações que se per-


mite o arbitrário cultural dominante, então o novelista de tele-
visão pode trabalhar sob a inspiração dessa cultura desfigurada 2.”
Contestando o caráter de “processo aberto” da novela, os
mesmos autores declaram que todas as regras já estão estabeleci-
das e que não existe possibilidade de relação de diálogo: todas
as respostas já estão programadas de forma sistemática, eletrônica
e institucional. Toda linguagem, toda palavra mediatizada pela
TV é uma palavra condenada à estabilidade, porque é uma pala-
vra sem resposta possível.
Tais posições, que revelam os traços da influência de Bourdieu,
mas também de Baudrillard, não deixam evidentemente muito
espaço para duas questões cada vez mais cruciais: primeiro, uma
abordagem histórica do próprio dispositivo e da evolução de seu
vínculo com os diferentes componentes da sociedade civil. Resol-
vendo de uma vez por todas pela negativa o problema da relação
da televisão com a cultura popular, estas posições “apocalípticas”
bloqueiam toda reflexão sobre as contradições sociais e a maneira
pela qual elas trabalham os mediadores. Como se, face ao autor
“integrado”, a única posição sustentável pata não entrar no jogo
da reprodução fatal, invencível, fosse manter-se de fora como
juiz e árbitro do caráter puro e não-contaminado da produção
popular. A segunda questão, intimamente ligada à primeira, é
aquela que se relaciona com a definição da arte e da cultura po-
pular na era da reprodutibilidade técnica e de comercialização
da cultura.
Alguns antropólogos brasileiros compreenderam bem a impor-
tância dessas duas questões: com a generalização da referência
mediata e das indústrias culturais, a relação entre as manifesta-
ções populares e os vetores da comunicação de massa mudou
completamente desde o fim dos anos 60. De especial interesse é
a abordagem de Renato Ortiz, que, inspirando-se na noção de
hegemonia, situa a questão da cultura popular no jogo incessante
das negociações: “Colocar a questão da cultura popular em ter-
mos de hegemonia pode, a nosso ver, avançar a discussão a res-

12. D. Coutinho Netto e D. Alonso, “Cultura popular na TV ou a voz do


dono”, Movimento, 12 de julho, 1976.
124 A. e M. MATTELART

peito da cultura brasileira. Um primeiro aspecto, que situa o


problema enquanto relação de forças, se refere à indústria cultu-
ral... Tudo leva a crer que o espaço de dominação cultural se
articula ou tende a se articular atualmente de forma distinta do
passado”. (Renato Ortiz escreveu essas linhas em 1978 na.)
“Pela primeira vez estabelece-se uma política cultural a nível na-
cional que associa realmente o Estado e as organizações privadas,
e procura-se integrar a nação dentro de uma ideologia de totali-
dade... Toda manifestação popular tende portanto a ser inserida
num espaço de subordinação que arbitrariamente é imposto a
partir do alto; o problema se apresenta pois como relação de
força, não como alienação ".”
A análise que Ortiz faz da evolução das formas da religiosidade
popular, um dos componentes decisivos das práticas populares
no Brasil, é especialmente esclarecedora do que se poderia cha-
mar o duplo regime do popular: de um lado a realidade de sua
folclorização, sua comercialização, sua transformação em “teatro
profano”, sua reificação como produto exótico destinado a ser
consumido por aqueles que lhe são estranhos (o que é impres-
sionante, por exemplo, quanto aos cultos e ritos de possessão);
de outro lado, a persistência de um ritual religioso para a comu-
nidade, baseado na força mística da celebração: comunitária, nas
crenças ativas, partilhadas por seus membros. A indústria cultu-
ral conferiria certa legitimidade às manifestações culturais das
classes populares. Teria esta função com relação à posição da
religiosidade popular na sociedade global: daria a certos grupos
normalmente marginalizados a repercussão pública que constitui-
ria elemento de afirmação. Sem dúvida, ao preço da “exotização”,
da “folclorização”.

O populismo: questão antiga, novo debate


Num país como o Brasil, as análises dos antropólogos são da
maior importância, uma vez que, em numerosos meios intelec-

13. R. Ortiz, “Cultura popular: organização e ideologia”, in Cadernos de


Opinião, n.º 12, julho, 1979, São Paulo, p. 69.
14. Ver principalmente R. Ortiz, A consciência fragmentada, op. cit.
O VÍNCULO SOCIAL 125

tuais, tende a dominar uma idéia da cultura popular isolada do


sistema da modernidade técnica e das formas mercadológicas do
contexto industrial. Uma cultura popular como território livre,
onde se expressaria espontaneamente uma cultura alternativa,
isenta das contradições sociais que marcam todas as práticas de
resistência. Esta concepção da cultura popular como território
independente, que alguns qualificam de “basista” a partir da
análise tanto de certas atividades do movimento sindical como
de determinadas manifestações culturais, liga-se à enorme influên-
cia que tiveram os grupos cristãos radicais na própria formação
do conceito de cultura popular, desde o final dos anos 50.
A abertura política dos anos 80 mostra quão latente continua
esta problemática. Com a tomada de consciência dos limites do
modelo consensual anterior, assiste-se ao retorno de um debate
articulado em torno do caráter “nacional, popular e democrático
da cultura” que o vasto movimento cultural dos anos 1962-1964
sob o governo de João Goulart tinha colocado na ordem do dia.
Movimento ligado intimamente ao Centro Popular de Cultura
(CPC), que nasce em 1961 no Rio de Janeiro, em conexão es-
treita com a União Nacional dos Estudantes (UNE). Raros são
os que contestam a efervescência deste movimento que represen-
tou uma tentativa de aliança de classe de um novo tipo entre os
intelectuais e a vasta diversidade das classes populares. No campo
da educação e da cultura, produziu o Método Paulo Freire de
Alfabetização, a invenção de novas formas de teatro (como o de
Augusto Boal) e de cinema, um novo jornalismo e uma certa des-
folclorização da cultura popular *. Raros também aqueles que

15. No início da década de 60, o Brasil contava mais de 20 milhões de


analfabetos em uma população adulta (de mais de 18 anos) de 40 milhões.
A Constituição impedia os adultos analfabetos de votarem e de participa-
rem do processo eleitoral. Este problema prejudicava consideravelmente
a democratização das estruturas da sociedade brasileira. É neste contexto
que aparecerão tentativas de educação ligadas à cultura e à experiência das
camadas populares, tentativas que se apoiarão em grande parte no suporte
do rádio. O papel da Igreja e principalmente da União dos Intelectuais e
Estudantes Católicos Radicais foi então determinante. Um exemplo parti-
cularmente significativo é o movimento de alfabetização inspirado pelo
126 A, e M. MATTELART

negam que este movimento, que propunha uma arte revolucio-


nária, tenha-se tornado, embora não representasse um todo mo-
nolítico, uma espécie de matriz para uma vertente que, “com
derivas e variantes, preserva ainda hoje uma forte influência no
imaginário cultural brasileiro 1º”.
São numerosos, contudo, aqueles que hoje voltam com olhos
críticos aos pressupostos do que foi o núcleo teórico deste vasto
movimento para questionar-lhe a pertinência no Brasil dos anos
80. Influenciada por Lukacs e seu conceito de “falsa consciên-
cia”, esta tendência definia a cultura popular, isto é, a do CPC,
como “ontologicamente verdadeira, em contraste com as falsas
manifestações populares”, como ““desalienada”, em contraste
com a “cultura alienada das classes dominantes”, interiorizada
em parte pelas classes dominadas. Uma constante no pensamento
do CPC é a primazia do plano político sobre as outras dimensões
da vida social. Apenas a arte política pode ser considerada como
legítima, porque encarna a única forma possível de réplica ao
processo de alienação. Na perspectiva da luta anti-imperialista
que constituía um tema essencial das manifestações estudantis e
das linhas programáticas do PC, a “dependência cultural” era
encarada exclusivamente como alienação. :
Depois de mais de vinte anos, os vestígios desse movimento
continuam patentes. Era o que lembrava um crítico em agosto de
1985: “Os traços que revelam esta tendência podem ser identi-
ficados numa concepção romântica e ingênua das relações do ar-
tista com os segmentos populares; na idealização populista es-
sencialista de um “povo”, de maneira intrínseca, 'bom”, mas Judi-
briado pelos exploradores 'maus'; na instrumentalização da arte
pela política e no primado do conteúdo, da 'mensagem" que
deve conscientizar. É frequente também a opção por uma repre-

pedagogo Paulo Freire, construído sobre a idéia da intervenção do povo


na elaboração do programa educativo enquanto sujeito que reassume sua
vivência e sua história, associando portanto aprendizagem e tomada de
consciência. ,
16. M. A. Gonçalves, “O projeto populista dita a nova cultura”, Folha
de S. Paulo, 16 de agosto, 1985, p. 37.
O VÍNCULO SOCIAL 127

sentação da brasilidade extraída do universo rural, que seria uma


fonte simbólica mais “autêntica” "”,
A discussão sobre a política cultural, em 1985, revigorou o
tema da “identidade” e da “brasilidade”, por ocasião da proposta
de um novo pacto social, de uma união nacional para conjurar a
crise e dar à democracia algumas oportunidades. Um setor da
classe intelectual reprovou abertamente às autoridades governa-
mentais o fato de querer recolocar o populismo na ordem do
dia. Prontamente identificou nos discursos oficiais o retorno à
retórica populista das décadas passadas que constantemente fal-
seava as noções de “povo”, de “nação”, de “colonização cultu-
ral” e de “identidade”.
Como observava Renato Ortiz, “um governo de “união nacio-
nal? tem que se apropriar da temática cultural e tentar construir
uma identidade que atenda a seus interesses; esta é a fórmula
para se encobrir as reais diferenças que integram uma sociedade
moderna e complexa como a nossa. Mas fica a pergunta: quem
constrói a identidade nacional? Evidentemente as forças políticas
que “operaram” (um termo médico-científico) a transição. Há os
que são participantes ativos desta construção e os que servem
passivamente de matéria-prima para o processo de re-significação
do que é ser brasileiro. O discurso ideológico encobre esta ope-
ração, e faz com que aqueles que se neguem a contribuir corram
o risco de ser considerados estrangeiros em seu próprio país !º”.
No final da década de 50, Roger Bastide retomava o conceito
de memória coletiva trabalhado por Halbwachs. Este o definiu
como um sistema de reminiscências reativado periodicamente
pelo esforço de rememoração; a memória coletiva é considerada
como elemento vivido por um grupo que a engendra e alimenta,
revivendo sua tradição. Em seus estudos sobre o Brasil, Bastide
opunha esta memória coletiva popular à memória nacional que
se revela no nacionalismo: diferente da primeira, que é da ordem
do vivido, a segunda é da ordem do discurso e se situa na esfera

17. M. A. Gonçalves, ibid.


18. R. Ortiz, “Cultura e identidade nacional”, Folha de S. Paulo, 6 de
agosto, 1985, p. 3.
128 A. e M. MATTELART

ideológica e política. Embora tenha por significante a memória


coletiva popular, a memória nacional-nacionalista não é o pro-
longamento dos valores populares; é da ordem do concebido e
do construído racionalmente 2,
Periodicamente, o poder no Brasil foi levado a jogar com um
tipo de equilíbrio compensatório entre nacionalismo simbólico
e nacionalização ou desnacionalização da ordem econômica. Se o
nacionalismo do populismo dos anos quarenta foi essencialmente
econômico, nos anos setenta, sob o regime militar, este nacionalis-
mo foi essencialmente simbólico. O processo de desnacionalização
de uma economia entregue ao capital transnacional se acompa-
nhou de um processo de recuperação da identidade nacional ao
nível do imaginário.
No debate que a política cultural suscitou em 1985; o setor
governamental foi também censurado por cair no arcaísmo (al-
guns críticos falarão até de uma concepção pré-megalítica da
cultura) e por desconhecer que o Brasil vivia em plena era da
reprodução técnica e não podia privar-se dos meios modernos
para expressar sua realidade atual ?. Uma anedota que remonta
aos anos 30, ao tempo do populismo de Vargas, mostra como há
no populismo estatal uma tendência para imobilizar a cultura do
povo em suas expressões do passado e rejeitar a modernidade
técnica. Quando se constituíram os grupos de música popular
dedicados ao samba, então com pouca legitimidade junto à bur-
guesia carioca, o governo da época proibiu expressamente o uso
de instrumentos de sopro, alegando que lesavam a tradição.
Entretanto, no Brasil dos anos 80, a questão do populismo não
se resume a um negócio de Estado ou a um caso de arcaísmo.
Integra a modernidade tecnológica e faz parte das discussões so-
bre o futuro da produção televisiva no seio do monopólio priva-
do. Em 1985, o tema da recuperação da identidade nacional se
manifestava com força na tela da Globo em duas produções exi-
bidas paralelamente: Rogue Santeiro e Tenda dos milagres, res-

19. Ver R. Bastide, Sociologia do folclore, São Paulo, Anhembi, 1958;


“Mémoire colletive et sociologie du bricolage”, L'Année Sociologique,
Paris, vol. 21, 1970.
20. “Intelectuais criticam o populismo de Ziraldo”, Folha de $. Paulo, 20
de agosto, 1985.
O VÍNCULO SOCIAL 129

pectivamente novela e minissérie, esta última adaptada do ro-


mance homônimo de Jorge Amado. A miscigenação, a luta dos
negros pela sua integração na sociedade hegemônica dos brancos
estavam sintomaticamente no âmago dessas duas obras que inau-
guravam — segundo a opínião unânime — a nova televisão da
Nova República. Enquanto Roque Santeiro, como vimos, repro-
duz, em uma cidadezinha reconstruída nos arredores do Rio, uma
espécie de microcosmo que restabelece todos os arquétipos de
personagens populares e brasileiros e todos os tipos de regiões,
Tenda dos milagres se inscreve programaticamente em uma linha
de “regionalismo dos conteúdos”: faz parte de uma trilogia de
adaptações da literatura nacional de inspiração regionalista que
começou com O tempo e o vento, inspirada na saga dos gaúchos
de Érico Veríssimo, e se fechará com Grande sertão: veredas, a
grande obra de Guimarães Rosa sobre o norte do Estado de
Minas Gerais, o sertão “primitivo e mágico”.
Contra o urbano-cosmopolita, os valores regionais. Certos in-
telectuais não deixaram de ironizar o retorno a esta “ruralidade”,
considerada “fonte mais autêntica de representação da brasilida-
de” — argumento conhecido —, que é certamente muito forte
no imaginário “nacional-popular” e constitui inegavelmente um
fato cultural ligado ao modo particular de estruturação da socie-
dade brasileira. Entretanto, não teria mais relação com este novo
modo de ser consolidado pelas formas e manifestações precipita-
das pela modernização do país 2.
Outros, a propósito da adaptação de Tenda dos milagres para
a TV, chegaram até a falar de “Brasil para turistas”, comparan-
do-a com a versão cinematográfica do mesmo texto, realizada
em 1977 por Nelson Pereira dos Santos. “A Salvador do começo
do século parece retirada de uma Disneylândia antropológica,
onde a assepsia se encarrega de mostrar uma população miserável
de dentes perfeitos e manerias finíssimas. Nesse ponto, naufraga
uma das forças tão bem captadas no filme de Nelson Pereira
dos Santos sobre o mesmo texto, o aspecto maldito da cultura

21. M. A. Gonçalves, art. cit, p. 37.


130 A. e M. MATTELART

negra no Brasil, evidenciado sobretudo pelas práticas religiosas


subterrâneas 2.”
A complexidade da relação da televisão com a sociedade brasi-
leira, entretanto, está longe de estar esgotada nesses exemplos.
Durante este mesmo mês, a revista de esquerda Isto É dedicava
uma reportagem polêmica à significação de Rogue Santeiro para
um Brasil que se preparava para viver as discussões da Consti-
tuinte, encarregada de elaborar a futura Constituição. Mesmo
reconhecendo que em toda novela há 90% de repetição para
10% de inovação, os autores ressaltavam uma novidade de estilo:
“Roque Santeiro corresponde, de fato, a uma abertura: tira a
telenovela brasileira do clima de alcova e leva a narrativa para
a praça pública. A praça de Asa Branca é o espaço privilegiado
da novela, ela ocupa o lugar que, nos textos de um Gilberto Bra-
ga ou um Manoel Carlos, cabe ao quarto do casal. Ainda se trata
de amor, empulhação, traição, cinismo, mistificação. Só que agora
estes velhos sentimentos estão expostos ao sol, tornaram-se pú-
blicos na imagem ambígua e tosca de Roque Santeiro 2”. En-
quanto o sociólogo Muniz Sodré chegava até a falar de “injeção
de civismo” e assimilava a maneira como o público vívia sua

22. N. Pujol Yamamoto, “A Disneylândia chega à Bahia”, Folha de S.


Paulo, 9 de agosto, 1985, p. 44. j
Em seu boletim semanal de programação, a TV Globo tentava explicar
as escolhas efetuadas pelo roteirista Aguinaldo Silva para adaptar o roman-
ce: “Quem leu o livro de Jorge Amado pode ser surpreendido pela série
que vai ao ar, pois a história sofreu diversas mudanças. Essas mudanças,
porém, não alteraram a essência do livro. Tenda dos milagres continua a
falar da Bahia, do candomblé, dos mestres de capoeira, da preservação de
uma cultura através de Pedro Archanjo, o protagonista que catalisa todas
as tramas. “Nós recriamos o livro de Jorge Amado”, explicam os autores,
Aguinaldo Silva e Regina Braga, “que não foi escrito com a intenção de
virar programa de televisão... Isso significa que personagens apenas cita-
dos transformaram-se em verdadeiros núcleos dramáticos. Outros foram
absolutamente inventados... A própria estrutura do livro foi alterada...”
“Fizemos uma defesa do mestiço”, explica Aguinaldo, 'o que não anula a
especificidade da cultura negra. E Tenda vai mostrá-la, vai colocar toda a
magia, a herança africana, através das vivências de seus personagens... E,
em contrapartida, as árduas condições que enfrentavam para fazer esse
direito prevalecer.” ” (Boletim de programação, n.º 655, 1985.)
23. J. Castello e C. Ajuz, “Mania nacional”, art. cit, p. 38.
O VÍNCULO SOCIAL 131

relação com a novela àquela como vivera a relação semi-religiosa


com seu presidente, Tancredo Neves, o escritor Roberto Drum-
mond avançava, por sua vez: “Roque Santeiro está discutin-
do o que deve ser discutido na Constituinte. Ela aponta um ca-
minho: temos que saber o que fazer com a liberdade **”. (O oti-
mismo ostentado em 1985 quanto às virtudes cívicas da televisão
e ao seu papel de auxiliar na promoção de uma nova idéia da
democracia logo será desmentido. As propostas avançadas pela
Constituinte para reduzit o poder dos monopólios da comunica-
ção e redefinir a liberdade de expressão pouco resistirão às pres-
sões exercidas pelos poderosos representantes do statu quo.)
Se preciso fosse, aí teríamos uma vez mais a prova do espaço
social desmedido que ocupa o dispositivo televisivo num país
como o Brasil. Esta competência exorbitante faz com que se
possa legitimamente ter a impressão de que um determinado
Brasil exige hoje de sua televisão bem mais do que ela estrutu-
ralmente pode oferecer; e ainda, que a televisão se encontra
invadida por pedidos e desejos demasiado incomensuráveis para
sua condição de instituição do espetáculo com as características
políticas, econômicas e técnicas inerentes.
Nos últimos vinte anos, a televisão privada desempenhou um
papel inegavelmente compensatório em relação à instituição es-
tatal, mas também em relação à sociedade civil; um papel com-
pensatório que progressivamente se tornou um papel central.
Hoje, seu lugar incontestável de “intelectual orgânico” da socie-
dade brasileira não deixa de ter certa relação com a crise real
desses outros intelectuais coletivos que são os partidos atual-
mente legalizados, e também com a crise da classe intelectual e
do pensamento crítico. Ao intervir no debate sobre a questão
da cultura no período da Nova República, o filósofo Roberto
Schwarz constata: “Contudo, não basta culpar o regime pelo
marasmo intelectual reinante, que é também das oposições. Ate-
nuaram-se a censura e o medo, e nem por isso as idéias e as
artes entraram em fase brilhante. Inexplicável? Graças à ilusão
de ótica criada pela ditadura, a intelligentsia custou a perceber
que a sua inserção social e seu pensamento são menos oposicio-

24. Ibid., p. 38.


132 A. e M. MATTELART

nistas do que pareciam. O Brasil revelado pela abertura é mais


conservador do que o esperado... O setor institucionalizado da
cultura — a mídia, a universidade, as fundações, com verbas do
governo e do grande capital — progrediu (comparado àquele
período de desenvolvimento excepcional do movimento cultural
e de ativação da classe intelectual que caracterizou os anos de
62-64). Seu crescimento e os compromissos práticos que implica
são uma das causas de nosso atual marasmo modernizado. A as-
piração principal aqui, se não me engano, é quantitativa: mais
pessoal, mais dinheiro, melhores salários. A questão democrática
não é vista em termos substantivos de classe e nacionais, mas de
maior acesso à gestão por parte dos funcionários, dentro de uma
linha corporativa... Mídia, universidade e fundações hoje são
realidades socialmente tão naturais, ou quase, quanto'o transpor-
te público, a educação primária ou a sinalização do trânsito. Tem
sentido ser contra? Para infleti-las segundo o ponto de vista e
os interesses dos explorados, só a pressão política deles mesmos
— externa por definição —, ainda que com aliados internos:
as oposições necessitam formular e especificar o interesse dos
explorados no campo da cultura para começar a defendê-lo 2”.
.

O retorno da emoção

Nos cartazes que revestem as paredes do escritório do Depar-


tamento de Relações Públicas da TV Globo se destaca o leiimotiv
imaginado em função do sucesso das novelas na China Popular:
“Na conquista, uma arma mais poderosa que a pólvora — a
emoção”.
No meio da página da revista Variety palpita, sobre um mapa
da América Latina: “To thrill a latin heart, only another latin
heart will do. Para emocionar um corazón latino, solo otro co-
razón latino” (tradução: “Para emocionar um coração latino,
só outro coração latino”).

25. R. Schwarz, “A questão da cultura”, Lua Nova, janeiro-março, 1985,


pp. 27-28.
O VÍNCULO SOCIAL 133

Um antropólogo argentino assinalava com muita exatidão a


que ponto tais sucessos populares convidavam a reconsiderar o
desprezo da cultura intelectualizada pelo “fato emocional”, que,
ao contrário, era valorizado pela literatura popular, assim como
pelos gêneros que fizeram os dias áureos da canção e do rádio,
antes de fazer os da TV. “Valorizou-se essencialmente o intelec-
tual, o trágico, o melancólico”, dizia ele. “Há quase um desprezo
pela alegria — assimilada superficialmente — e pelo sentimen-
tal... Na Argentina, tudo o que se refere aos sentimentos é
designado pelos termos “sentimentalismo” ou “dramaticidade”. À
cultura oficial argentina é uma cultura fortemente intelectuali-
zada, um plano que se fecha aos sentimentos e os despreza. O
exagero da sensibilidade é a característica mais utilizada para
definir a cultura popular. Existe um artigo de Manzi, belíssimo
e muito antigo, no qual ele respondia aos críticos que se espan-
tavam com o fato de que o enterro de Carlos Gardel tivesse
provocado tamanha manifestação popular e se perguntavam por
que tal multidão teria acompanhado o enterro. É uma velha briga
que se situa de certo modo no plano antropológico da definição
e integração do homem. Algo que se acentuou com a dependên-
cia cultural que suportamos e arrastamos, porque o esquecimento
de nossos traços autênticos acaba sendo o esquecimento do bio-
gráfico, do ambiente da infância, dos sentimentos... O impor-
tante é sair desta depreciação. Se existe uma interação comuni-
cacional intensa, é porque alguma coisa está acontecendo $$?
A polêmica desencadeada pela difusão das novelas brasileiras
em Cuba, principalmente da Escrava Isaura, ajuda a compreen-
der a natureza da interação de gênero e públicos.
Fiel à tradição anterior à revolução, o público cubano conti-
nuou grande consumidor de novelas de rádio e TV. Estes, aliás,
jamais cessaram de produzi-las. Entretanto, só no início de 1984

26. Encontro com Anibal Ford realizado por A. Fernandez, “Este es um


país que se desconoce a si mismo”, Alternativa Latinoamericana, Mendoza,
Argentina, n.º 2-3, 1985, p. 57.
27. A popularidade do gênero melodramático em Cuba foi bem compreen-
dida pelas estratégias de programação da Radio Martí, a rádio patrocinada
pela Voice of America, que transmite de Miami para a ilha desde 1984.
134 A. e M. MATTELART

é que se inicia um verdadeiro debate público alimentado tanto


pelos críticos da imprensa diária e semanal como pelos cidadãos.
Não se poderia evidentemente atribuir à introdução dos progra-
mas brasileiros o desencadeamento do debate sobre a política te-
levisiva. Mas eles representaram com certeza o papel de catali-
sadores.
Vinte e cinco anos de revolução mobilizaram as energias em
torno do trabalho, da produção, da aquisição de bens e de servi-
ços sociais fundamentais (educação e saúde para todos, previ-
dência social. . .), num quadro ideológico alimentado pelo medo
da intervenção armada dos Estados Unidos. Vinte e cinco anos
de tensões constantes e de privações aceitas num esforço vital
sustentado pelo sentimento de dependência coletiva e de identi-
ficação aos ideais revolucionários. Vinte-e cinco anos também de
acumulação que consolidaram as bases da redistribuição econô-
mica. Se os objetivos do modelo de desenvolvimento urbano não
serão jamais idênticos aos das sociedades de consumo ocidentais
nem aos das classes abastadas dos outros países latino-americanos,
é evidente que, nos anos 80, o cidadão urbano tem mais dinhei-
ro, consome mais e está menos tenso quanto à mobilização social.
Hoje, o problema do divertimento se coloca em termos diferen-
tes. Ao longo de todo esse período, prevaleceu. a idéia de que o
lazer, a cultura, a educação e a organização caminhavam juntos.
O resultado, no domínio da música, por exemplo, é que hoje
Cuba dispõe de uma organização muito estruturada através de to-
da a ilha: “numerosas escolas, cinco orquestras sinfônicas perma-
nentes, sociedades de música de câmara em todas as províncias,
estúdios e um festival de música eletrônica, sem falar dos inu-
meráveis grupos populares e de variedades mm,
Vários indícios manifestam a evolução da Eubstão do diverti-
mento: em primeiro lugar, as duas emissoras de TV aumentaram

Essa rádio não aparenta ser moderna, ao contrário, se parece bem mais
com uma rádio dos anos 50. Desejando captar a audiência de uma vasta
população, de jovens inclusive, não deixa de programar radionovelas (nota-
damente El derecho de nacer) que relembram o estilo, a atmosfera, o tom
que elas tinham na década de 50, antes da revolução.
28. J. Lonchampt, “Les guitares de Cuba”, Le Monde Aujourd'bui, 11-12
de maio, 1986, p. IV.
O VÍNCULO SOCIAL 135

seu período diário de teledifusão (agora a partir de 7h da ma-


nhã); há uma preocupação especial com a qualidade durante o
verão (que corresponde ao período de férias escolares); subs-
tituem-se os dirigentes históricos da instituição televisiva; esbo-
ça-se o fim da separação cinema/televisão; reconhece-se a necessi-
dade política e econômica de reforçar as trocas culturais e a inte-
gração do mercado audiovisual latino-americano, que tenta acom-
panhar a transformação do meio tecnológico internacional 2; en-
fim, são dispensados os responsáveis pela agitação e pela propa-
ganda do Partido, que estão no poder desde o início da revolu-
ção. É significativo este último indício quando se conhece o
ponto estratégico que ocupam os departamentos de agitação e
propaganda na orientação das políticas de comunicação e infor-
mação dos Estados socialistas. :
O debate suscitado em Cuba com a entrada das produções bra-
sileiras reavivou perguntas impossíveis, sempre colocadas, jamais
resolvidas. É possível utilizar a forma tradicional do gênero
melodramático para atrair a atenção do público para os temas que
transcendem o habitual da telenovela? É possível inserir em uma
forma herdada do capitalismo um conteúdo “ideológico” que lhe
é estranho, isto é, substituir um conteúdo conformista por um
conteúdo progressista, um conteúdo “alienante” por um conteúdo
“desalienante”? Há dúvidas: as perguntas significativas não sur-
giram nesse contexto. Elas vieram principalmente do plano das
reações intuitivas dos telespectadores, admitindo e procurando
analisar o prazer que esses programas brasileiros lhes proporcio-
navam. Desembaraçando-se do papel de mentor ideológico que
lhe conferia sua posição de crítica de televisão da revista Bohe-
mia e escrevendo como espectadora comum, uma jornalista cuba-

29. A proposta feita em dezembro de 1985 por ocasião do Sétimo Festival


do Novo Cinema Latino-Americano em Havana, sobre a criação de uma
escola internacional de cinema e televisão, segue essa linha. Essa escola,
inaugurada em dezembro de 1986, é dirigida pelo cineasta argentino Fer-
nando Birri. Acolhe estudantes bolsistas da América Latina, África e Ásia.
Entre os professores está Gabriel García Márquez, que preside a Fundação
do Novo Cinema Latino-Americano. Outra transformação: o festival de
Havana, o mais importante da América Latina, juntamente com o do Rio,
tornou-se em 1986 um festival do cinema, da televisão e do vídeo.
136 A. e M. MATTELART

na exprimia bem a crise dos esquemas ideológicos em sua crônica


intitulada “Minha carta de liberdade”: “Caro leitor, faz alguns
anos que nos conhecemos, e tenho a obrigação de ser sincera
com você, Sei que por alguns, não os mais numerosos, serei ex-
comungada intelectualmente depois desta confissão. .. Não tenho
vergonha de confesasr que, como uma adolescente de quinze
anos, sorri de felicidade diante do primeiro beijo apaixonado
entre Isaura e Álvaro... Minha predileção pelo folhetim mostra
que apesar dos golpes duros da vida, sou ainda capaz de encanto
e ternura. O que não é a mesma coisa que fugir da realidade ou
recusar-se a assumi-la. Prefiro ver a minha realidade na tela com
esse acabamento artístico e mostrado do ponto de vista da ideo-
logia que defendo... Nosso telespectador reclama programas
que correspondam a seus desejos. E eles não são extravagantes...
O telespectador quer ver seu cotidiano de alegrias e conflitos,
não falsificado dentro de um história que receia chamar o pão de
pão e o vinho de vinho. E o deseja com uma linguagem televisi-
va adequada à dinâmica do momento. Que os roteiristas, os atores,
os diretores, os técnicos de som e de iluminação, os cameramen
respondam com uma preocupação de perfeição profissional e téc-
nica. Que não ofereçam realizações sobre temas modernos com
concepções artísticas de vinte anos atrás. Tenho para lhe dar,
leitor, uma triste notícia. A televisão cubana recebeu uma forte
injeção de equipamento tecnológico. Tem necessidade de mais.
É um setor muito caro e em constante evolução no plano técni-
co. Mas, mesmo que neste momento lhe fossem oferecidos os
mais sofisticados instrumentos, o produto final não mudaria mui-
to. É o homem que maneja a técnica... Nossa televisão tem
necessidade urgente de preparar, a médio e longo prazo, pessoal
artístico e técnico diversificado a partir de uma seleção honesta
que leve em conta a produtividade e suprima um efetivo supera-
bundante. A efervescência nacional provocada por programas
como Malu e Isaura (...) demonstra a importância vital da
televisão e o que o povo exige dela *”.

30. I. Bulit, “Mi carta de libertad”, Bobemia, Havana, n.º 35, 31 de agosto,
1984, pp. 21-22.
O VÍNCULO SOCIAL 137

O reconhecimento da superioridade técnica dos programas bra-


sileiros e das novas exigências de profissionalismo que eles evi-
denciam ocupa um plano importante no debate cubano sobre as
telenovelas. Esta sensibilidade específica do público à qualidade
da realização foi cultivada por uma política de pedagogia da ima-
gem empreendida pelo Instituto Cubano da Arte e da Indústria
Cinematográficas (ICAIC). Hoje, nas discussões que têm por ob-
jeto a televisão, tanto da parte do público como de colunas espe-
cializadas da imprensa, predominam as apreciações sobre o traba-
lho dos atores, a montagem, o ritmo dos mecanismos narrativos,
a música, etc. Por ocasião da difusão de seriados que tratam
sensivelmente de um mesmo tema, como foi o caso da série
americana Roots (sem dúvida obtida por pirataria), da telenovela
brasileira A escrava Isaura e do folhetim cubano EI sol de Batey,
evidenciou-se uma das características da crítica de televisão cuba-
na, que é de escapar ao momento conjuntural da exibição do
programa para estabelecer correspondências, diferenças, interro-
gando-se a cada passo sobre o estado da produção nacional *.
Mas, além da percepção crítica da qualidade profissional, as
discussões suscitadas pelas novelas brasileiras tentaram identificar
as causas do sucesso popular excepcional de um gênero, depois
de 25 anos de revolução durante os quais ele havia sido inte-

31. A política de programação para a exibição de filmes em salas de cine-


ma favoreceu largamente o acesso à pluralidade das cinematografias mun-
diais, e isto, apesar do embargo decretado pelos distribuidores americanos
desde os anos 60. Malgrado o embargo, o público cubano pôde assistir a
numerosos filmes americanos durante todos esses anos, graças à pirataria,
mas também graças aos laços de amizade que continuaram a ligar o ICÁIC
a certos produtores e diretores norte-americanos. Francis Coppola, por
exemplo, muitas vezes foi em pessoa levar cópias de seus filmes à ilha.
Hoje, a pirataria exercida sobre as televisões a cabo americanas e as fitas
de videocassete levadas na bagagem da comunidade cubana exilada que
visita as famílias em Cuba dão a esse intercâmbio uma dimensão que só
tende a aumentar. Quanto à programação de televisão, apenas 1/4 de seus
programas são importados. A União Soviética fornece 23%, os Estados
Unidos 22%, a RDA 13%, os outros países socialistas 8%, os países da
Europa Ocidental 20% é os outros países 11%. (Cifras que correspondem
à programação de 1983, in T. Varis, La circulation internationale des
émissions de télévision, Paris, Unesco, 1986.)
138 A. e M. MATTELART

lectual e ideologicamente “excomungado”, embora jamais deser-


tasse da telinha. Cuba, berço da telenovela latino-americana, re-
conciliava-se publicamente com a memória de um gênero e o
imaginário coletivo que ele cristaliza. E esta constatação não se
fez necessariamente com alegria. Nas críticas da imprensa, o que
transparece não é sempre um sentimento de aceitação do fato.
A memória de uma tradição que havia denunciado o caráter alie-
nante dessas produções voltou à tona. Como escrevia em Juven-
tud Rebelde, a propósito do sucesso obtido pela telenovela A es-
crava Isaura, a crítica Soledad Cruz: “... O interesse suscitado
pela Escrava se explica. Em nosso país subsiste — manifesta-
mente — uma forte tradição melodramática. Foi a cultura “mas-
sificada” que nos deixaram os capitalistas, e uma grande parte
da população formou seus gostos a partir desses modelos, trans-
mitindo-os à outra geração. Além disso, a maior parte das novelas
de rádio e TV que produzimos mantiveram esses esquemas em
vigor... +
Há, porém, uma mudança considerável: a atitude ativa do pú-
blico, que metamorfoseia os dados da “alienação”. Um outro crí-
tico dizia, a propósito de Isaura: “A telenovela fala de um país
da nossa Amética, que como nós emergiu das estruturas coloniais
com uma composição demográfica similar, antigas raízes étnicas
e culturais comuns, uma maneira cubana de ver as coisas e um
destino comum. Teve o mérito de nos mostrar, como se fosse
um velho cartão postal, um pouco das entranhas deste
povo em um tema carregado de imagens, ilusões, sentimentalis-
mo, mas com uma realização de bom nível, grandes qualidades
do ponto de vista da diversão e um pano de fundo histórico-
social. Nossa reação em massa, cuja qualidade espantou, não se
produziria há vinte anos. Hoje, a mais de um quarto de século
de formação criativa e revolucionária, nossos telespectadores tor-
naram-se críticos ativos e não receptores passivos e alienados.
Atitude coerente com uma concepção bem diferente do mundo

32. S. Cruz, “La esclava: victoria por forfait”, Juventud Rebelde, Havana,
26 de agosto, 1984, p. 5.
O VÍNCULO SOCIAL 139

e da vida. Qualquer tema de injustiça social tocará sempre as


fibras sensíveis de nosso povo *”.
Contudo, o debate escapou depressa ao lugar-comum e abordou
questões menos ventiladas pela crítica oficial. O universo dos
desejos amorosos e das paixões que desenha o horizonte psíqui-
co sobre o qual pairam as telenovelas — e que as produções
brasileiras revisitam com toda a sua moderna técnica — convida-
va a um questionamento sobre as regiões sombrias da produção
nacional: “precisamos nos perguntar se a maneira pela qual nossa
literatura e nossos meios de comunicação tratam o amor e os
sentimentos é gratificante para o povo *”.
Em maio de 1985, alguns meses após a apreciação precitada,
a mesma crítica Soledad Cruz admitia que, além da problemáti-
ca da telenovela, está a condição dos conflitos individuais, da
verdade humana concreta em face da enormidade da verdade
abstrata que procurava encontrar sua legitimidade na ficção tele-
visiva. A propósito de uma telenovela cubana que ela comentava,
El hombre que vino con la luvia, escrevia o seguinte: “O erro
ou a fraqueza da maior parte de nossas criações artísticas vem
da tendência de uniformizar os problemas, situações e persona-
gens. Como se o fato de haver concordância da grande maioria
de nós quanto a construir uma sociedade diferente eliminasse
nossas particularidades e diferenças, a grande diversidade de nos-
sa natureza humana e todas as contradições que a fazem avançar
na vida cotidiana *”.
Entretanto, permanece inerente ao projeto televisivo a tensão
entre o divertimento e a missão pedagogógica, entre o lucro
obtido com os gêneros de grande sucesso e a proposta de uma
fruição estética mais elaborada. A análise das telenovelas não
pode evitar esse dilema. Citemos uma última vez Soledad Cruz:

33. R. Infante, “A propósito de “Isaura” ”, Tribuna, Havana, 28 de agosto,


1984.
34. R. Infante, ibid.
35. S. Cruz, “Buen tiempo a pesar de la lluvia en horizontes”, Juventud
Rebelde, Havana, 12 de maio, 1985, p. 4.
140 A. e M. MATTELART

programas populares como as telenovelas “reforçam o gosto por


um único modelo estético e artístico que dita suas normas: o que
não se parece com ele é etiquetado como denso demais, difícil,
aborrecido, um “castigo”. Assim a percepção estética popular se
atrofia e o desenvolvimento cultural e espirtiual das massas fica
afetado *”.

36. S. Cruz, “La esclava': victoria por forfait”, art. cit.


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DESESTATIZAR O PENSAMENTO
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Em futuro próximo, ao se realizarem as previsões de instala-
ção das novas emissoras, futuras redes e satélites, a Europa será
a região do mundo mais necessitada de programações televisivas:
em abril de 1987, a revista Variety estimava que estas necessida-
des seriam dez vezes superiores a toda a produção anual dos
Estados Unidos (20 000 horas/programa). É fato notório que a
Europa figura entre as raras regiões julgadas economicamente
estáveis no mercado de programas. Ao lado da Austrália e do
Canadá, a França, a Grã-Bretanha, a Itália e a Alemanha Ociden-
tal representam três quartos da demanda quitável!.
As televisões que não visam a solucionar o aumento da deman-
da de programas de ficção por meio de importações maciças se
vêem obrigadas a evoluir para um outro estágio da produção
industrializada — a produção serializada, que supõe um outro
tipo de profissionalismo. Para as televisões que pretendem -bata-
lhar nesse terreno, a “série” representa efetivamente o melhor
trunfo, a matriz de produção e de programação mais conforme
a um padrão destinado a conquistar mercados internos e exter-
nos. Sob essas novas condições, as emissoras európeias estão
propensas a buscar modelos: falou-se do “Dallas à francesa”
que foi Chateauvallon. Não é impossível que a idéia de uma
“Isaura à francesa” tenha ocorrido, embora os modelos do Atlân-
tico Norte exerçam sem dúvida mais atração que os do Atlântico

1. Variety, 1.º de abril, 1987, p. 73.


144 A. e M. MATTELART

Sul. Quimera de calculista que procura esboçar uma maquete de


produto com os ingredientes das fórmulas aprovadas pelas indús-
trias bem-sucedidas: um grama disto, um bom pedaço daquilo.
Contra esses cálculos e dosagens, tanto os produtores americanos
como os brasileiros teriam imediatamente retrucado que até ago-
ra não tomaram exatamente como referência os mercados exter-
nos, mas o seu próprio público nacional, ao produzirem as séries
ou folhetins de sucesso mundial. Enquanto a internacionalização
do filme e da televisão se intensifica no Velho Continente através
dos acordos de co-produção, talvez valha a pena lembrar que uma
das maneiras de atingir o universal é ainda a de começar pelo
particular. Imitar, importar modelos considerados reprodutíveis
já é reduzir a produção industrial de cultura à sua dimensão téc-
nica e comercial, é criar um impasse quanto à sua dimensão
simbólica, quanto à significação inerente a todo produto cultu-
ral, por mais comercial que seja. Esquecer essa dimensão é
abster-se de refletir sobre a especificidade das respostas à neces-
sidade novamente ratificada da produção serializada. É recusar-
se a considerar estas respostas dentro do que se convencionou
chamar de espaço social da comunicação, esse sistema particular
de formas sociais e culturais onde a produção e o consumo são
geridos. Um gênero como a novela nos remete tanto a um ima-
ginário social, às representações coletivas, a uma memória histó-
rica, como à genealogia dos dispositivos mediatos na qual as
“especificidades” da produção serializada se fundamentam. Esse
espaço social deve ser definido como um espaço dinâmico, um
espaço em mutação sobre o qual incide certamente o peso das
tradições culturais, mas também o das limitações representadas
pela tensão local/nacional/internacional, a tensão singular /uni-
versal, a tensão cultura/metropolitano/subculturas. Mutações
identificáveis no “gosto popular”, no que Raymond Williams
denominava uma estrutura de feeling, e que se traduz por uma
mudança na preferência por um tipo de televisão?. Mutações
operantes também nos modos de interação entre os programas
e os públicos-usuários. Na construção desse espaço social inter-
vêm da mesma forma os diversos níveis de legitimidade que os

2. R. Williams, Marxism and literature, Oxford University Press, 1977.


DESESTATIZAR O PENSAMENTO 145

gêneros populares adquirem nos diferentes contextos, níveis esses


intimamente ligados à natureza da relação dos criadores com a
produção industrial da cultura e à natureza da articulação da
classe intelectual com os outros grupos sociais. É importante
determinar a maneira pela qual uma sociedade distingue e iden-
tifica a produção cultural. O estudo das formas de percepção
dos gêneros populares nos reintroduz na vasta polêmica de toda
a tradição da Escola de Frankfurt a respeito da dicotomia cultura
elitista/cultura popular.
A realidade da televisão brasileira não está mais próxima de
nós que a das networks americanas? O que nos impede de perce-
ber isso? Não seria a fascinação exercida atualmente pela tecno-
logia e cultura audiovisuais dos Estados Unidos sobre a Europa?
O estudo da televisão brasileira coloca-nos algumas questões: em
primeiro lugar, a relação conflituosa que existe entre a cultura
de massa e as culturas populares. Os debates entre certos inte-
lectuais brasileiros não nos fazem lembrar a história da resistên-
cia das sociedades européias (sem dúvida em condições absoluta-
mente diversas) à ascensão da lógica do produto no campo
cultural?
Se os problemas levantados pelos autores e intelectuais brasi-
leiros encontram um eco particularmente múltiplo, não é porque
o Brasil reúne em idêntico espaço e momento — e é isso que
o torna ao mesmo tempo tão rico e desconcertante — aspectos
da pré-modernidade, da modernidade e da pós-modernidade, por-
que agrega elementos do pré-capitalismo, do capitalismo indus-
trial e do capitalismo pós-industrial? As desnorteantes cumplici-
dades entre a estética do espetáculo, as lógicas de um mercado
em via de internacionalização e o projeto de um Estado autori-
tário desafiam os dispositivos teóricos tradicionais. O Brasil obri-
ga a renovar o enfoque para identificar os novos mecanismos da
regulação social que estão em ação nos sistemas tecnológicos de
comunicação; e ainda para compreender o comportamento con-
traditório dos profissionais que lhes servem de mediadores. Deste
ponto de vista, um dos interesses principais de uma análise da
TV brasileira é o de ajudar a situar a cultura mediata (e seu
suporte de massa por excelência, que é precisamente a televisão)
146 A. e M. MATTELART

no quadro da emergência de novas formas de populismo sob o


império do mercado.
Às teorias críticas produzidas durante as décadas de 60 e 70
na Europa, em contextos colocados sob o signo das democracias
liberais e dos serviços audiovisuais estatais, baseiam a esperança
de uma democracia cultural numa concepção do papel do Estado
como protetor. Por sua vez, os autores da televisão brasileira,
confrontados com o Estado autoritário, foram levados a interro-
gar-se sobre os interstícios de liberdade abertos pelo mercado.
Sem o saber, nestas condições bem especiais nascidas de um regi-
me político, eles inauguravam uma questão que adquiriu sua
plena legitimidade na Europa nos anos 80: quem, o Estado ou
o mercado, tem mais capacidade para estabelecer conexão com
os públicos populares? Num momento em que um número cres-
cente de posições teóricas consagram o declínio do político e a
perda do vínculo social em proveito de uma espontaneidade pós-
moderna, parece-nos conveniente rever algumas observações teó-
ricas para melhor compreender a profunda evolução das visões
críticas sobre a televisão.
6. A Televisão enquanto
Modo de Organização

Uma concepção de aparelho

Nas realidades nacionais marcadas pela televisão estatal, o


discurso crítico sobre a televisão foi por longo tempo idêntico
ao discurso sobre o Estado. Esta forma particular de organização
da televisão a lançava naturalmente ao centro de uma constela-
ção de referências tais como o aparelho do Estado, a cultura, o
pluralismo, o bem público, a informação, a pressão dos poderes
políticos. Um conjunto de teorias dominou a formalização deste
conhecimento. As correntes iniciadoras foram as que trabalha-
vam as noções de reprodução social e ideológica. Se todas as
tendências que delas se valiam estavam longe de se entender
sobre as definições da ideologia, da cultura e do social, concor-
davam entretanto ao admitir os aparelhos educacional, cultural
e comunicacional como vetores das normas, valores, modelos e
sinais relativos ao poder.
Com o impulso do estruturalismo, estas escolas de pensamen-
to exercerão sua influência nos meios críticos da pesquisa até
nos países onde a instituição televisiva está desde o início inscri-
ta na lógica do mercado. Não é sem razão que um sociólogo
canadense se enfurecia em 1977 com o que julgava ser o resul-
tado pernicioso das abordagens da televisão inspiradas por essas
teorias nascidas na Europa, que somente a viam como um
“aparelho ideológico do Estado”, um plano de produção de es-
148 A. e M. MATTELART

tratégias discursivas. Para Dallas Smythe, a televisão era, antes


de tudo, em qualquer contexto, um produtor de audiências vendá-
veis aos publicitários!.
Na Europa, a idéia da televisão estatal pode ter deixado crer
que, por ser útil a todos, o monopólio estatal não obedecia a
critérios de rentabilidade comercial, e que era possível permitir
a existência de um setor não diretamente produtivo, uma ativi-
dade que escapasse à lógica do lucro, um regime à margem da
valorização do capital. Nesta apreciação da instituição televisiva
principalmente encarada como elemento do sistema político e
cultural, tudo se passava como se somente se pudesse esperar da
televisão uma mais-valia de consenso social, e não simplesmente
uma mais-valia. O aparelho televisivo era considerado como
produtor de significação, e não de valor.
Quando Dallas Smythe estigmatizava a cegueira da pesquisa
crítica sobre a lógica econômica da televisão, criava por sua
vez um impasse quanto a outras lógicas. Alguns o reprovaram:
“Em attigo recente que suscitou numerosos debates na área da
pesquisa anglo-saxônica, Dallas Smythe mostrou que a audiência
constitui a forma comercial dos produtos de comunicação no
capitalismo contemporâneo. As emissoras de televisão vendem
aos anunciantes audiências com especificações precisas. Quanto
aos programas, só servem para recrutar uma audiência poten-
cial e manter sua atenção. Se esta teoria insiste com razão no
ponto nevrálgico ocupado pelos mecanismos publicitários no fun-
cionamento da televisão; se demonstra claramente que os pro-
gramadores procuram não só maximizar sua audiência, mas
também dirigir-se a públicos-alvos relativamente precisos — em
contrapartida, não se define absolutamente quanto ao papel polí-
tico da televisão... Por trás da distinção puramente empírica
entre televisão estatal e televisão privada, manifestam-se antes
dois modos diferentes de articulação entre duas racionalidades:
uma de caráter econômico, a outra de natureza política e cultu-

1. D. Smythe, “Communication: a blindspot of western marxism”, Canadian


Journal of Political and Social Theory, vol. I, n.º 3, 1977.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 149

ral. É essencial que se leve em consideração este caráter dual da


televisão, se se quer evitar as armadilhas do economismo?”.
Acrescentaremos que os problemas não se dissipam, apesar de
reconhecida necessidade de analisar a articulação entre as duas
lógicas. Surge principalmente a necessidade: de dar um contorno
preciso a esta famosa “racionalidade de natureza política e cultu-
ral”, a fim de explicar, por exemplo, por que dois sistemas na-
cionais de televisão de caráter privado são ao mesmo tempo se-
melhantes e profundamente diversos. Cada um com sua história,
sua maneira particular de se inserir no conjunto dos dispositivos
estatais e privados de socialização dos consumidores e cidadãos,
sua própria maneira de se articular nos movimentos da sociedade
civil, mas também de se articular em seu próprio mercado nacio-
nal e nos mercados internacionais. j
Enquanto uns se polarizavam no Estado, nas estratégias dis-
cursivas dominantes, na constituição da legitimidade cultural,
outros entravam no condicionamento mercadológico. Isto consti-
tui uma breve observação de como as condições institucionais
que presidem à organização dos sistemas de comunicação influí-
ram e influem sobre as visões teóricas que tentaram transformá-
los em objetos de pesquisa, analisá-los e explicá-los. Condições
necessárias, mas não suficientes: a existência da televisão estatal
por si só não explica por que houve tanta falta de curiosidade e
de análise sobre a inserção da televisão no contexto industrial e
comercial.
Estas teorias convinham muito bem às linhas oficiais das orga-
nizações de partidos que delegavam aos intelectuais a tarefa de
produzir conceitos, deixando-lhes a crença de que, ao fazê-lo,
transformavam o mundo. De um lado, as estratégias corporati-
vistas colocadas sob o signo da reivindicação economista das
grandes organizações sindicais e política, investidas do setor
audiovisual; de outro, o idealismo da produção teórica! De um
lado, o imaginário tão presente — através das referências de
Lacan — nos discursos científicos sobre a ideologia, porém sepa-

2. P. Béaud, P. Flichy, M. Sauvage, “La télévision comme industrie cul-


turelle”, projeto de pesquisa INA-Unesco, mimeografado, 1981 (reproduzido
em Réseaux, CNET, n.º 9, dezembro, 1984).
150 A. e M. MATTELART

rado do universo tecnológico dos grandes meios de comunicação


de massa e das modalidades históricas de sua presença social. De
outro, um movimento operário onde o indivíduo se retrai por
trás da massa, refugiado entre as imagens de Épinal*, sem direito
“à imagem, à ficção, ao imaginário, aos jogos e ao eu”.
Este dado esquizofrênico explica aliás por que se pôde tão
naturalmente escamotear a análise das resistências, das respostas
dos consumidores, das táticas astuciosas, dos rodeios, dos acha-
dos felizes, das flexibilidades de manobra, conforme já os definia
na época Michel de Certeau.
Antes dos anos 80, porém, o processo intentado per Dallas
Smythe arriscava-se a perder o sentido. As novas condições da
desregulamentação e da privatização dos sistemas de comunicação
impuseram a evidência da determinação mercadológica.
Um simples indício, de familiaridade surpreendente, explica o
declínio de um determinado enfoque e a pertinência adquirida
por outro. No universo cada vez mais saturado dos programas,
a inovação técnica do controle remoto manifesta metaforica-
mente a ruptura ocorrida. O espectador se deixa levar pela prá-
tica corriqueira do zapping ou “troca de canal”, que lhe permite
escolher e compor seu texto televisivo. Em face da busca da
estrutura nobre de um discurso constituído e instituído, em face
da busca de uma verdade única, impõe-se a necessidade de
considerar o texto e a formação da significação como esmigalha-
mento, como incerteza, explosão fragmentária e recomposição
aparentemente aleatória. Este singular apertar de teclas, estes
caminhos artesanais da televisão marcam de forma espetacular a
intervenção das audiências na negociação do texto e da signifi-
cação. Um corpus estereotipado, submetido em laboratório à inte-

* Epinal é um centro de fabricação e comércio de imagens, popular desde


o fim do século XVIII. (N.T.)
3. É nestes termos que apresentavam seus debates os organizadores dos
Deuxiêmes Rencontres Audiovisuel et Mouvement QOuvrier, constatando
em janeiro de 1966 as revisões dilacerantes que começaram a se efetuar
no pensamento do movimento operário e, de forma mais geral, dos movi-
mentos sociais em face da ascensão da legitimidade da imagem e da crise
do discurso e da prática militante.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 151

ligência do especialista, cede lugar à experiência da mobilidade


do telespectador.
Este novo aspecto da problemática está indubitavelmente liga-
do à transformação teórica da questão do sujeito e de seu papel
no processo de comunicação e de construção da significação.
Mas — e aí reside todo o interesse malicioso do efeito
zapping —, se o sujeito telespectador pratica estes desvios nas
programações das emissoras que se oferecem a ele, é em grande
parte — e os programadores o sabem — para pular os inter-
valos publicitários, cuja multiplicação é uma das novidades indis-
cutíveis da paisagem audiovisual. Esta novidade está estreita-
mente vinculada à invasão cada dia mais intensa do fato indus-
trial e comercial na televisão, tanto nos processos de produção
como nos procedimentos de consumo. ;

A questão das determinações


A dificílima questão do elo entre a racionalidade econômica
e a racionalidade política e cultural frequentou a história con-
temporânea das teorias críticas da comunicação desde suas ori-
gens. Como encarar estes meios de difusão de massa que desde
os anos 40 a Escola de Frankfurt agrupa sob um conceito suges-
tivo: a indústria cultural? Como caracterizar esse componente
que passa a participar integralmente do sistema industrial mo-
derno, mas que, em vez de produzir apenas mercadorias, como
os outros ramos da indústria, produz também significação,
ideologia, consenso? A televisão produz tanto consenso que se
tornou o principal eixo gerador da coexistência social.
A diversidade das respostas teóricas logo revelará que há
muitas maneiras de postular que todo produto traz os traços
do sistema produtivo que o engendrou e que sua natureza só
é inteligível a partir das regras sociais de sua produção.
Essas discussões sobre as determinações estruturais e a causa-
lidade social passaram a ocupar uma posição estratégica na cons-
trução das teorias críticas da comunicação e da cultura. É o que
justamente assinalou o semiólogo Eliseo Verón ao sublinhar como
os modelos deterministas tinham-se convertido em um verdadei-
152 A. e M. MATTELART

ro obstáculo para a compreensão dos processos de produção da


significação. Ele escrevia em 1978: “Ainda que seja correto que
nenhuma outra teoria tenha sido tão decisiva neste domínio quan-
to a marxista, é preciso reconhecer que atualmente é ela que
opõe o maior obstáculo ao desenvolvimento de uma reflexão
sobre o funcionamento do ideológico (ou pelo menos, uma deter-
minada versão desta teoria). Acrescentarei que a tendência para
a reificação dos conceitos se acentuou particularmente na teoria
marxista contemporânea, em comparação com os textos “clássi-
cos'. À misplaced concreteness aí fez devastações. Retomou-se
assim a dicotomia infra-estrutura/superestrutura, esta concepção
geológica, ou melhor, piramidal da sociedade que desejaria que
esta última fosse constituída de “patamares” superpostos. É efe-
tivamente uma metáfora, mas ela esclarece muito sobré outras
propriedades da teoria onde aparece: a “base” (estranha, bem
entendido, ao ideológico, que se encontraria alhures) é “deter-
minante em última instância”; a superestrutura, mais ou menos
deslocada, “acompanha'*”.
Desde que surgira, a Escola de Frankfurt havia apresentado
os riscos dessa disputa teórica no domínio dos estudos sobre a
cultura de massa. Da maneira como estava já encarnada no socia-
lismo existente, a interpretação mecanicista estabelecia um im-
passe precisamente sobre as questões da cultura, do sujeitô e
da felicidade — todas questões cuja pertinência a ortodoxia
marxista odiava até o momento em que seriam reunidas as con-
dições materiais para o surgimento e realização desta forma de
consciência. A Escola de Frankfurt surpreendeu as limitações
desta tendência marxista principalmente em sua incapacidade de
identificar o conceito de felicidade com algo mais que o bem-
estar econômico. Aliás, quando esta escola utiliza as categorias
fundamentais de Marx, seu raciocínio é apenas um convite a
um “anti-reducionismo dialético".

4. E. Verón, “Sémiosis de l'idéologique' et du pouvouir”, Communications,


n.º 28, 1978, p. 13.
5. Cf. o historiador da Escola de Frankfurt, Martin Jay, L'imagination
dialectique, Paris, Payot, 1977. Particularmente o capítulo dedicado à
cultura de massa.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 153

É precisamente o que havia começado a pôr em prática o


italiano Antonio Gramsci desde os anos 20. Às teorias essencia-
listas do Estado e da classe, ele opôs uma reflexão sobre o
vínculo do Estado com a sociedade civil, uma interrogação sobre
as culturas populares, sobre o nacional-popular, sobre a função
dos intelectuais e o papel do saber na construção da hegemonia
de um grupo social. Perguntava se a intelectualidade seria capaz
de exercer um papel de direção intelectual e moral da sociedade,
se teria a faculdade de assumir culturalmente o conjunto da so-
ciedade civil, seus modos de vida, suas mentalidades, suas
atitudes e comportamentos. O conceito de hegemonia permitia
abordar a complexididade da formação das alianças de classes e
de grupos, dentro de um bloco histórico. Propondo este outro
conceito-chave de “bloco social-histórico”, o filósofo italiano
rompia com uma tradição firmemente instalada, habituada a
considerar a ideologia somente em sua funcionalidade em relação
às forças materiais. “A estrutura e a superestrutura formam um
bloco histórico”, escrevia ele. E acrescentava: “Neste bloco his-
tórico, as forças materiais são o conteúdo e a ideologia é a forma,
porém a distinção é puramente didática, porque as forças mate-
riais não seriam concebíveis historicamente sem forma. E as
ideologias seriam apenas fantasias sem as forças materiais”. Por
longo tempo rechaçada das referências vulgarizadas pela intelec-
tualidade de linha marxista, a teoria de Gramsci ressurgiu nos
anos 70, abrindo as análises sobre a função de organização e
de conexão assumida pelas mídias. Estes novos “intelectuais
orgânicos” tornaram-se um dos principais lugares onde se cons-
trói a hegemonia cultural no jogo das contradições e das nego-
ciações sociais”.
Dupla refutação portanto, a do reducionismo econômico e
a do reducionismo de classe, que reconduz todas as formas de
lutas sociais ao regaço dos conflitos de classes.

6. A. Gramsci, Quaderni dal carcere, Turim, Einaudi, 1975, p. 869.


7. Para uma análise da televisão francesa que considera a teoria da hege-
monia, ver S. Blum, La télévision ordinaire du pouvoir, Paris, PUF, 1982.
Poderá ser consultado também T. Gitlin, The whole world is watching,
Berkeley, Los Angeles, University of California Press, 1980.
154 A. e M. MATTELART

Em um momento ou outro de sua história, todas as variantes


da teoria crítica tiveram que se definir quanto a essas questões *.
As censuras cruzadas de economismo ou de idealismo que a
economia política e a análise dos discursos se atribuem recipro-
camente não chegam a ocultar as questões deixadas em suspenso
por uma ou outra das duas grandes linhas que determinaram a
construção de uma teoria crítica da comunicação desde o fim
dos anos 60. Aos limites da semiologia de primeira geração —
em busca de uma “ciência dos símbolos” —, que não levou
muito em conta as condições sociais da produção simbólica,
somaram-se as dificuldades encontradas pelas diversas tendên-
cias que se valiam da economia política para explicar desta vez
o caráter irredutível da produção simbólica através da análise
das contingências do processo de sua produção material. Tanto
de um lado como de outro, há dificuldade em se propor o íma-
ginário como uma dimensão ativa e essencial a toda prática so-
cial. Isto dá a impressão de que as análises param justamente
onde surgem as novas questões.
Não seria preciso, entretanto, restringir as discussões sobre
o economismo aos debates que se desenrolaarm no contexto das
diversas correntes que realizavam uma abordagem materialista.
“Réquiem da infra e da superestrutura”, exclamava por sua vez
Jean Baudrillard no início dos anos 70, após haver soado a
agonia da dialética. Abandonar este modo de pensar lhe parecia
tanto mais urgente uma vez que reconhecia nele uma das razões

8. Tomemos como exemplo um dos componentes da Escola Britânica de


Estudos Culturais (Cultural Studies). É de fato a necessidade de voltar à
figura marxista da causalidade social que levará o sociólogo Stuart Hall e
os pesquisadores que o cercavam a redefinirem os eixos de pesquisa do
Centre for Contemporary Cultural Studies da Universidade de Birmingham,
fundado no início dos anos 60 por Richard Hoggart, a quem se deve
The uses of literacy. Sobre a evolução deste centro, ver S. Hall (sob a
direção de), Culture, media, language, Londres, Hutchinson, 1980.
A questão das determinações, no campo da mídia, deu lugar na Grã-
Bretanha a numerosos debates contraditórios. Citemos notadamente G.
Murdock e P. Golding “Ideology and the mass media: the question of
determination”, in Ideology and cultural production (sob a direção de M.
Barret et. al.), Londres, Croom-Hell, 1979. Ver igualmente os trabalhos de
Nicholas Garnham.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 155

da recusa da intelligentsia de esquerda arremessar-se à ques-


tão da mídia, ancorada como estava em “seu idealismo nostál-
gico do infra-estrutural e sua alergia teórica a tudo o que não
é produção 'material' e “trabalho produtivo””. De fato, redu-
zindo o marxismo a uma metafísica, Baudrillard ignorava intei-
ramente a riqueza dos antagonismos que o dividiam. Entretanto,
a polêmica que levantou a propósito das mídias eletrônicas con-
tra a relevância no pensamento de esquerda da referência à infra
e à superestrutura, à lógica das forças e das relações produtivas,
à precedência de determinadas “instâncias” sobre outras, con-
tribuiu para fazer voltarem-se os olhares para as diversas mídias.
Foi salutar a sua crítica à concepção instrumental das mídias,
que se contentava em vê-las como simples “veículos de conteú-
dos”. Como ele dizia, criticando uma esquerda new look que,
já na época, em sua subcultura modernsita, não hesitava em
recorrer às técnicas de marketing: “não é como veículos de um
conteúdo, é em sua própria forma e operação que as mídias
induzem a uma relação social”. Baudrillard aproximava esta
concepção das estratégias escolhidas para mudar as instituições,
o poder e o Estado: “conforme estão nas garras do Capital, ou
de
o povo se apodera deles, eles se esvaziam ou se enchem
conteúdo revolucionário, sem que jamais sua forma seja ques-
tionada”.
Esta observação era importante em um contexto dominado
historicamente pela obsessão da “mensagem”, do “conteúdo” e
pela abordagem instrumental-pedagógica do processo de comuni-
cação social, tudo fundamentalmente ligado sem dúvida a uma
vontade política e cultural de ilustração das classes populares,
mas também à fé em uma verdade única e à crença na eficácia
absoluta do “discurso justo”. Como dirá em 1978 o cineasta,
semiológo e militante político Noel Burch: “A distinção entre a
forma e conteúdo tornou-se um verdadeiro logocentrismo. . Não
é mais possível continuar a atribuir prioridade absoluta ao poder
de encantamento da Palavra precisa repetida incansavelmente en-
quanto os modos de percepção sociais, dos quais a televisão é
Patis,
9. 3 Baudrillard, Pour une critique de Véconomie politique du signe,
Gallimard, 1972.
156 A. e M. MATTELART

apenas um exemplo particular, não são absolutamente regidos


por este logocentrismo, mas, bem ao contrário, avançam por
caminhos variados, nos quais o logos é tão-somente um modo de
produção da significação entre outros!””,
O pensamento pós-moderno dará nos anos 70 uma contti-
buição essencial à questão da forma e do conteúdo, refutando a
grande oposição da semiótica estrutural entre significante e sig-
nificado. Voltaremos ao assunto.
Esta antimonia forma/conteúdo retardou muito o entendimen-
to das mutações tecnológicas e culturais acarretadas por estes
novos sistemas estruturantes — os meios eletrônicos de informa-
ção e comunicação. É sobre esta falha de raciocínio que exercerão
sua sedução as visões prospectivas de um Marshall Mc Luhan,
ao qual é difícil não reconhecer pelo menos três méritos (mesmo
não partilhando de sua fé no determinismo técnico exuberante
nem da nova mitologia da “cidade planetária” para a qual ele
contribuiu grandemente)!!. Os méritos são os seguintes: ter alte-
rado a idéia da supremacia do conteúdo; ter sublinhado a impor-
tância do impacto sensorial em relação a uma tradição de
pensamento propensa a considerar as mídias apenas como mani-
puladores das consciências; enfim, ter insistido na interação
entre as diferentes mídias que se produzem a partir da mídia mais
desenvolvida tecnologicamente",
As análises da “indústria cultural” aderiram durante longo
tempo à idéia de que se caminhava para o desenvolvimento ine-
vitável de um processo de massificação. O pensamento contem-

10. N. Burch, “Notre propagande audiovisuelle... Par exemple”, La


Nouvelle Critique, 1978. Segundp o autor, isto explicava por que o Partido,
quando se tratava de discutir sobre uma estratégia audiovisual, tendia a
“enxergar apenas os milhares de profissionais ativos nas mídias, do cartaz
à televisão, como simples 'tecnocratas', sempre dispostos a privilegiar mais
a “forma! do que o 'conteúdo' ”.
11. M. Mc Luhan, Pour comprendre les médias, Paris, Mame/Seuil, 1968.
12. E surpreendente constatar que na França, enquanto se desenvolverá
muito cedo sob o impulso principal do semiólogo Christian Metz, na
École Pratique de Hautes Études, um discurso teórico-crítico que não tar-
dará a fazer escola em muitos países, renovando as pesquisas sobre a lin-
guagem da imagem cinematográfica, o campo da televisão não é pratica-
mente visitado.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 157

porâneo mostra como esta lógica massificante deu lugar à rea-


lidade muito mais complexa da fragmentação das linguagens.
À idéia da homogeneização (Adorno não uniformizava o destino
que espreitava tanto a literatura como a música, a pintura, O
rádio, a produção televisiva e o cinema?) dos produtos culturais,
corolário da idéia de massificação, sucede hoje a idéia da hete-
rogeneidade, isto é, não somente a coexistência de uma diversi-
dade de produtos, mas também a diversidade do produto. Às
programações de uma emissora de televisão já oferecem um
exemplo disso. Em suas emissões, o mesmo vetor tecnológico
atende à assincronia das necessidades e desejos dos públicos (e
não mais de uma “massa”), à assincronia dos “estilos de vida”
e das temporalidades. O que dizer dos sistemas a cabo que, nos
grandes países industriais, se definem com relação à televisão
(objeto de série, fragilmente trabalhado no plano psicológico)
como o universo da diferença, da especificidade, da exclusivi-
dade?

Pensando o dispositivo

“O poder não se detém como uma coisa, não se transfere como


uma propriedade; funciona como uma máquina. E, se é verdade
que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o aparelho
inteiro que produz 'poder' e distribui os indivíduos nesse campo
permanente e contínuo".”
A metáfora dos patamares remetia à realidade piramidal de
uma sociedade fortemente hierarquizada, regida pelo princípio
de autoridade. No campo político, social e econômico, remetia
a uma distribuição dos agentes separados segundo barreiras
rigorosas.
As análises de Michel Foucault questionarão a idéia de um
poder concebido como atributo e propriedade de uma classe e
proporão considerá-lo como um sistema de relações, práticas e
estratégicas. Em vez de pensar o aparelho, observar o disposi-

13. M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. 179.


158 A. e M. MATTELART

tivo, conjunto heterogêneo que engloba discurso (o dito e o


não-dito), instituições, organizações arquitetônicas, decisões re-
gulamentares, leis e medidas administrativas, enunciados cientí-
ficos, propostas filosóficas, morais e filantrópicas, o dispositivo
constitui a rede que pode se estender entre todos esses elemen-
tos. Termina a concepção do poder enquanto “núcleo central”,
localizado em macrossujeitos (cuja figura maiúscula é o Estado).
Surge uma concepção microfísica do poder, de um poder difuso,
não mais confinado nas instâncias jurídicas das instituições, mas
presente na multiplicidade das técnicas e tecnologias disciplina-
res. À situação de exceção onde o poder se ergue e se torna por
toda parte presente e visível, opõe-se um modelo generalizável
de relações disciplinares, uma maneira de definir as relações do
poder com a vida cotidiana dos indivíduos. “Temos que deixar
de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos:
ele “exclui”, 'reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”,
esconde”. Na verdade, o poder produz: ele produz realidade;
produz campos de objetos e rituais da verdade.” A disciplina-
bloco dá lugar à disciplina-mecanismo. As disciplinas maciças e
compactas completamente voltadas para funções negativas, que
rompem as comunicações e param o tempo, decompõem- -se em
procedimentos de controle flexíveis — um dispositivo funcional.
“A disciplina não pode se identificar com uma instituição nem
com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para
exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de
técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos...
Ela é uma 'física' ou uma “anatomia” do poder, uma “tecno-
logia” 5.”
Foucault certamente não abordou muito em suas pesquisas a
gênese do dispositivo das mídias. Quando ilustra o desenvolvi-
mento das técnicas de disciplina no domínio da transmissão
cultural, refere-se no máximo à atualização da máquina pedagó-
gica, produtora de saber e de atitudes, analisando o modo como
uma relação de vigilância, definida e regulamentada, se inscreveu

14. Ibidem, p. 196.


15. Ibidem, p. 217.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 159

no seio da experiência educacional: não como uma peça encaixa-


da ou adjacente, mas como um mecanismo que lhe é inerente, e
que lhe multiplica a eficácia. Se pouco falou das mídias audio-
visuais, em troca falou muito da visual. O exercício da disci-
plina supõe na verdade um dispositivo que obrigue pelo jogo
do olhar. A física do poder se dá segundo as leis da óptica,
segundo todo um jogo de espaços, linhas, telas, feixes de raios
luminosos, intensidades. Donde suas pesquisas sobre o lento
processo de construção destes “observatórios” da multiplicidade
humana, estas técnicas que tornam claramente visíveis aqueles
sobre os quais elas se aplicam. “Ao lado da grande tecnologia
dos óculos, das lentes, dos feixes luminosos, unida à fundação
da física e da cosmologia novas, houve as pequenas técnicas das
vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem ver
sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do visível preparou em
surdina um conhecimento novo sobre o homem, através de téc-
nicas para sujeitá-lo e processos para utilizá-lo!”
A intuição de Foucault permitiu identificar os dispositivos da
comunicação-poder em sua própria forma organizacional. O mo-
delo de organização em panóptico, utopia de uma sociedade,
serviu dentro desta perspectiva para caracterizar o modo de con-
trole administrativo/organizacional exercido pela televisão, ou
melhor, pelo dispositivo televisivo: um modo de organizar o es-
paço, de controlar o tempo, de vigiar constantemente o indivíduo
e assegurar a produção positiva de comportamentos, abandonan-
do as formas negativas de repressão. Figura arquitetônica, de um
tipo de poder, que Foucault tomou emprestada ao economista
J. Bentham, o panóptico é uma máquina de vigilância através
da qual, de uma torre central, se pode controlar com visibilidade
plena todo o círculo do edifício dividido em alvéolos. Ao redor
do anel, os vigiados, alojados em celas individuais isoladas umas
das outras, podem ser vistos sem ver. Já a televisão inverte O
sentido da visão, permitindo aos vigiados ver sem ser vistos,
e não funciona mais apenas por controle disciplinar, e sim por
fascinação e sedução. Adaptado às características da televisão, o

16. Ibidem, p. 173.


160 A, e M. MATTELART

panóptico transforma-se em telepanóptico invertido, para expli-


cá-la enquanto máquina de organização.”
Um dos méritos de Foucault é ter iniciado a “desestatização”
do pensamento crítico, mostrando que o Estado nada mais é que
“o efeito móvel de um regime de governabilidade múltipla”.
Contra uma teoria construída sobre a “essência estatal” que se
refere a um modelo estilizado e globalizante de Estado, ele
propõe outra tática. A fim de isolar a parte comum do Estado,
ele propõe pensar suas práticas de adaptação, de ofensiva e
recuo, suas irregularidades, suas bricolages, para deduzir outras
coerências e regularidades. Escrevia ele: “Provavelmente hoje o
Estado não tem mais, como no curso de sua história, aquela
unidade, aquela individualidade, aquela funcionalidade rigorosa
e, eu diria mesmo, aquela importância. Afinal, o Estado talvez
seja uma realidade heterogênea, uma abstração mitificada, cuja
importância é muito mais limitada do que se pensa. Provavel-
mente o que é importante para nossa modernidade, isto é, para
nossa atualidade, não é tanto a estatização da sociedade, mas
a 'governabilização' do Estado... Governabilização do Estado
é um fenômeno singularmente paradoxal, pois, se efetivamente
as técnicas de governo, os problemas de governabilidade se tor-
naram o único risco político e o único espaço real da luta e

17. É preciso agradecer ao filósofo Etienne Allemand por ter também in-
terpretado e estendido à televisão a noção do dispositivo de Foucault, em
sua obra Pouvoir et télévision (Paris, Antropos, 1980).
O desenvolvimento das técnicas de vigilância da audiência parece ter
que aproximar a televisão do modelo do panóptico. Com a demanda dos
investidores publicitários, as medidas de audiência tornam-se cada vez mais
sofisticadas, procurando não só contabilizar a taxa de presença, mas também
o nível de atenção dos telespectadores. Sob o título “L'audience sous
haute surveillance”, uma jornalista do Libération relatava como, graças a
pequenas câmaras instaladas dentro dos aparelhos de TV, os pesquisadores
do Departamento de Sociologia da Universidade de Oxford haviam estu-
dado o comportamento de seus congêneres diante da telinha (Libération,
21 de novembro, 1986). As experiências dos grandes institutos de sonda-
gem dos Estados Unidos (Arbitron, Nielsen) com o intuito de elaborar um
sistema de medida personalizada caminham na mesma direção. Citemos
por exemplo o peoplemeter, sistema de medida baseado num computador
acoplado ao aparelho de televisão, a detecção por infravermelhos ou por
uma fita metálica para medidas sensíveis (o palpeur), etc.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 161

dos desafios políticos, a governabilidade do Estado foi, apesar


de tudo, o fenômeno que permitiu a este último sobreviver. E
parece que se o Estado atualmente é o que é, isso acontece
principalmente graças a esta governabilidade simultaneamente
interna e externa a ele, pois são as táticas de governo que permi-
tem definir a cada passo o que é e o que não é da competência
do Estado, o que é público e o que é privado, o que é estatal
e o que não é, etc; portanto, em sua sobrevivência e seus limites,
ele só pode ser compreendido a partir das táticas gerais de go-
vernabilidade!*”.
Esse enfoque do Estado através das transações incessantes que
modificam e deslocam as formas de controle é especialmente
importante para tentar situar historicamente o “processo de pri-
vatização” que foi assimilado depressa demais a uma anulação
do Estado. O que a análise da governabilidade traz em relação
às teorias uinificadoras e essencialistas é portanto um vasto cam-
po de reflexão sobre a materialidade do Estado, seus procedi-
mentos de gestão da população, suas técnicas de governo dos
sujeitos e das situações, suas ações, mas também suas absten-
ções. Este questionamento de uma tendência inclinada a conce-
ber o Estado como uma espécie de “universal político” cor-
relaciona-se ao declínio das grandes utopias políticas e das gran-
des padronizações do social, e ao afloramento de uma outra idéia
da democracia como construção cotidiana. O que as novas formas
do movimento social refutam é a idéia de um projeto de trans-
formação imposto do alto por uma vanguarda detentora do sen-
tido da história, da verdade. Elas exprimem, ao contrário, o
assédio progressivo da sociedade por agentes múltiplos e formas
de consciência individuais e coletivas muito diversas.
Esta reaprendizagem do pensamento crítico do Estado inicia a
ruptura contra as vozes impermeáveis das análises do poder.
Se isto foi possível, não é porque, segundo Foucault, “não foi
tanto o poder mas o sujeito” que constituiu o tema geral de

18. M. Foucault, “La gouvernementalité” (Texte d'une leçon), Actes, Les


Cahiers d'Action Juridique, n.º 54, verão de 1986, p. 14-15. Ver também
“La phobie de L' État”, Libération, 30 de junho, 1984.
162 A. e M. MATTELART

suas pesquisas”. Um sujeito que não é percebido através do


fantasma do indivíduo-sujeito livre próprio dos positivismos
psicologistas, mas preso a um conjunto complexo de determina-
ções históricas. Suas hipóteses sobre os procedimentos de indi-
vidualização iluminam a maneira pela qual se formaram as téc-
nicas para constituir efetivamente os indivíduos como elementos
correlativos de um poder e de um saber. “A medida que o poder
se torna mais anônimo e mais funcional, aqueles sobre os quais
se exerce tendem a ser mais fortemente individualizados...
Todas as ciências, análises ou práticas com radical “psico” têm
lugar nessa troca histórica dos processos de individualização. O
momento em que passamos de mecanismos histórico-culturais de
formação da individualidade a mecanismos científico-disciplina-
res, em que o normativo tomou o lugar do ancestral, e o men-
surável o lugar das normas, substituindo assim a individualidade
do homem memorável pela do homem calculável, esse momento
em que as ciências do homem se tornaram possíveis é aquele
em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia
do poder e uma outra anatomia política do corpo?.”
Se o Foucault do Panóptico ajudou a substituir a análise dos
aparelhos que exercem o poder pela análise dos dispositivos que
o reorganizaram, disseminando-o, pode-se entretanto censurá-lo
por ter de certo modo sucumbido à fascinação de desmontagem
dos mecanismos da racionalidade disciplinar. Se na verdade se
amplia e se precisa o quadriculamento da vigilância, a sociedade
toda não se reduz a ele. É preciso observar ainda como existem,
por parte dos usuários, procedimentos também minúsculos e
cotidianos que jogam com os mecanismos da disciplina e como
os sujeitos reagem aos procedimentos mudos da ordenação sócio-
política.
À atenção dispensada ao modo de organização não trabalhou
apenas as teorias críticas da comunicação-poder. Desta vez, a
partir dos postulados do positivismo, através da teoria dos jogos

19. M. Foucault, in H. Dreyfus e P. Rabinow, Michel Foucault. Un


parcours philosophique au-delà de Vobjectivité et de la subjectivité, Paris,
Gallimard, 1984, p. 298.
20. M. Foucault, Surveiller et punir, p. 195.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 163

e da perspectiva de uma melhor integração entre parceiros sociais,


as ciências da organização do trabalho fizeram paralelamente um
progresso considerável na gestão eficaz do “recurso humano” e
na busca da harmonização das relações sociais de produção”.
Apoiadas pela análise das organizações como sistemas de ação
onde se cruzam as estratégias dos diferentes agentes, as novas
logísticas da comunicação revelaram-se um dos riscos contempo-
râneos da redefinição da tecnologia do poder. A noção de poder
como relação de troca e de negociação, e não mais como atribu-
to dos agentes, sobressai também aí, mas desta vez num roteiro
representado por indivíduos-sujeitos livres no “melhor dos
mundos”.
Nos anos 70 esboçam-se, portanto, os rudimentos de uma
nova épistémé que passa tanto pelos setores atentos aos novos
movimentos sociais e às novas formas de intersubjetividade
como por aqueles que se ocupam de pensar e produzir modos
de gestão e de regulação sociais mais flexíveis, nesta etapa do
redesdobramento estrutural do modo de acumulação do capital
e dos homens. Ao mesmo tempo que se desestabilizavam as
análises seccionadas — aquelas dos patamares e dos planos bem
diferenciados —, os pontos de referência se confundiam. A
ambiguidade se instalava onde ainda ontem os critérios do ver-
dadeiro e do falso pareciam ter sido gravados no mármore.
Assim fazendo, se esta liberação epistemológia franqueou justa-
mente as possibilidades de compreender a diversidade do real e
dos agentes que o operam, ergueu também novos muros?. A
idéia do poder difuso tornou-se pretexto para esquecer a idéia
de poder, para escamotear “o efeito-sistema” que faz com que
haja poder do sistema social enquanto tal, além do poder e das
somas de poder de seus “elementos” ou “agentes”; que faz com

21. Ver, a título de ilustração, M. Crozier e F. Friedberg, L'acteur et le


systême, Paris, Seuil, 1977, Ver igualmente a obra já citada de E. Allemand.
22. Explicando a transformação ocorrida na percepção do poder, Lucien
Sfez escrevia em 1978: “Que o poder pudesse não existir era coisa impen-
sável até hoje. Coloca-se hoje a questão da existência do poder: não explo-
diu ele em microcosmo, difuso, a ponto de alguns negarem sua própria
realidade?” (L. Sfez [sob a direção de], Décision et pouvoir dans la société
française, Paris, 10-18, 1979, p. 25).
164 A. e M. MATTELART

que as “redes” de poder se tornem exatamente coisa diversa de


um simples somatório das relações particulares de poder. Assim,
observa-se o esquecimento dos novos grandes desequilíbrios que
se instauram através dos processos de internacionalização e de
privatização das estruturas da produção cultural industrial, indu-
zindo a novas modalidades de centralização e de sistematização
do poder.
A ambivalência é inerente à oscilação dos modos de legitima-
ção do poder que caracteriza os anos 70. Enquanto o processo
de transnacionalização das economias e das culturas se faz por
meio de uma concentração econômico-financeira cada vez mais
acentuada e de uma centralização intensificada por decisões es-
tratégicas, enquanto se instalam os sistemas integrados de gestão
e de controle, a legitimação das formas de poder centralizado é
cada vez mais questionada.
É neste contexto marcado pela ambivalência que a atenção se
volta para a recomposição das modalidades de produção e de
distribuição do saber /poder, ligadas ao desenvolvimento das “in-
dústrias da comunicação”. Indústrias que não se reduzem mais
ao que eram ainda ontem, ou seja, “indústrias do lazer”, mas
inervam as novas práticas profissionais e as novas ciências da
organização e do controle, marcando todos os espaços sociais
(do trabalho e educação ao lazer, do hospital à Bolsa de Valores,
do civil ao militar, do local ao transnacional). Nesta nova reali-
dade de inserção cada vez mais capilar dos sistemas tecnológicos
de comunicação na vida da sociedade, redistribuem-se papéis,
operam-se deslocamentos de hegemonia entre disciplinas, elabo-
ram-se novos equilíbrios na pesquisa científica. Com certo atra-
so em relação aos outros ramos das ciências sociais, as ciências
da informação e da comunicação — sempre em busca de sua
identidade, pelo menos na França — são convocadas para res-
ponder à demanda de pesquisas e de consultorias que emanam
das grandes administrações responsáveis pelas políticas indus-
triais de saída de crise, que querem utilizar altas tecnologias de
informação e de comunicação. As relações de força entre disci-
plinas se manifestam mais claramente. As novas teorizações sobre
a comunicação enquanto modo de integração-organização apelam
tanto para as ciências humanas como pata o ponto de vista
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 165

cibernético, termodinâmico, biológico ou informático. Na França


se desenharão ao longo deste período duas lógicas divergentes,
neste setor da pesquisa em ciências sociais: uma onde prima o
organizacional, dominada pela teoria geral de sistemas e pelo
modelo cibernético, para o qual o social é controlável e pode ser
deduzido do quantificável, do comensurável. Uma outra que,
oposta às miragens do matematizável, admite que o imaginário, a
subjetividade, o simbólico sejam componentes do real histórico.
Delimitação que não pode certamente ser reduzida a uma oposi-
ção entre preto e branco, verdadeiro e falso. As muitas pontes
que existem entre a utopia de uma nova racionalidade social e
a utopia do retorno à subjetividade estão aí para impedir que
se divise um traço claro de demarcação.
O relatório sobre as ciências da comunicação redigido pelo
Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS) em março de
1985 assinalava esta dificuldade persistente de estabelecer as
relações entre o afetivo e o cognitivo: “A maior parte dos
modelos de comunicação em ciências neurológicas, ciências do
conhecimento, ciências da engenharia acentuam os processos
cognitivos e menosprezam a dimensão afetiva. Esta necessidade,
frequentemente de ordem metodológica, tem consequências teó-
ricas sobre a explicação dos processos de comunicação tal como
funcionam na realidade. É verdade que, se ninguém nega o papel
do afetivo, a dificuldade está em chegar a conhecer seus pro-
cessos e, a fortiori, a formalizá-los. Aqui se coloca a questão
dos laços com a psicanálise e, através da análise das disfusões,
a das relações com a psiquiatria. O problema teórico está na
parte respectiva de cada uma destas dimensões em toda situação
de comunicação. A dificuldade está em aproximar disciplinas
em tudo separadas, tanto na tradição intelectual como em seu
papel social?”.

- 23, CNRS (Centre National de Recherche Scientifique), “Sciences de la


communication”, in Schéma prospectif: vingt thêmes stratégiques pour le
CNRS, Paris, março, 1985, p. 59.
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7. O Pensamento Técnico

Uma gestão ótima


A desregulamentação acabou de desestabilizar a vocação pri-
mordialmente “pedagógico-cultural” que orientou a criação e o
desenvolvimento da televisão estatal. Diante das três funções
atribuídas como encargo à televisão: informar, educar, distrair,
o Estado privilegiou claramente as duas primeiras. Esta concep-
ção pedagógica da cultura, este momento “professoral” que ela
conheceu, cristalizava-se em um conjunto de dispositivos e de
instituições (além da televisão, por exemplo, a da animação de
caráter cultural). Assim concebida, a televisão substituía, a seu
modo, a missão de socialização da escola. Segundo modalidades
próprias de cada contexto nacional, esta vocação da televisão
sofrerá pouco a pouco na Europa a concorrência de uma outra
concepção de seu uso, essencialmente determinada pela função
de “distrair”. Não que a televisão estatal tenha desde logo
sacrificado esta função. Mas ela a assumia preferivelmente segun-
do uma concepção da democratização da cultura, guiada pela
vontade republicana de pôr à disposição do cidadão de todas
as classes a expressão do patrimônio cultural. Esta idéia de
democratização cultural construía-se de fato sobre uma filosofia
social implícita, segundo a qual as formas culturais ocupavam
diversos níveis de legitimidade, e segundo a qual também a
definição da cultura marcava-se pela hierarquia entre cultura de
elite (ou cultura legítima) e cultura vulgar. A idéia da demo-
168 A. e M. MATTELART

cratização cultural implicava além disso o reconhecimento implí-


cito de uma certa hierarquia no acesso à cultura, portanto uma
certa idéia de desigualdade diante dos bens culturais, que era
preciso corrigir.
Progressivamente, este parâmetro sofreu o desafio da refe-
rência comercial que trazia uma outra concepção da distração,
muito mais afastada da “ascese” da aprendizagem cultural. A
referência comercial corroía igualmente a representação pirami-
dal da sociedade, reivindicando o caráter “massa-popular” de
suas audiências.
Hoje em dia, a função de distrair claramente passou à frente
das outras funções designadas para a televisão, como também
das outras formas de seu uso social. Ora, da mesma forma que
as funções de informar e educar anteriormente imprimiam sua
marca sobre a de distrair, a função hegemônica do divertimento
tende a marcar cada vez mais as outras duas.
Já há alguns anos, num momento em que o conceito de
desregulamentação não se encontrava ainda em pauta, nós nos
interrogávamos sobre o valor de certos sistemas de pensamento
que procuravam analisar a presença crescente das séries ameri-
canas nas emissoras francesas. Na época, a noção da americani-
zação pairava ainda sobre as referências. Em' De l'usage des
médias en temps de crise, escrevíamos em 1979: “Basta denún-
ciar a telinha como uma torneira de imagens fabricadas pelos
Estados Unidos” — para retomar a expressão de Roland Leroy
por ocasião do debate parlamentar sobre a Sociedade Francesa
de Produção? Em vez de apenas assimilar a análise da america-
nização à constatação da presença crescente de produtos ameri-
canos, não seria melhor questionar a maneira pela qual se articula
um aparelho de produção que, para se alimentar, deverá fatal-
mente abrir-se aos programas estrangeiros? Isto equivaleria a
deslocar o problema, sondando mais as causas do que as con-
sequências; pois o aumento proporcional das séries americanas
é apenas um indício epidérmico da adesão a um modelo de
difusão e de produção televisiva no qual a série estandardizada
por excelência encontra naturalmente seu posto. Não é a série
americana que é o cavalo de Tróia da “alienação nacional”, mas
justamente o modo de organização da televisão que privilegia
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 169

a serialização. Dentro desta perspectiva, seria preciso refletir


nos três elementos básicos que, nos últimos anos, pavimentaram
o caminho da estandardização e permitiram à televisão vencer
uma etapa no processo da industrialização e da internacionaliza-
ção da cultura. Esses três elementos são a publicidade, a utiliza-
ção maciça das sondagens de opinião e a gestão informatizada
da produção!”.
Tentando ultrapassar a polêmica (sempre suscetível de cair
no anti-americanismo primário) sobre o reforço da presença es-
trangeira na telinha francesa, propúnhamos reorientar o debate
a partir de uma reflexão sobre a nova racionalidade que havia
começado a se esboçar no processo de produção. Para fazê-lo,
retomávamos um trabalho de Gramsci: “Americanismo e fordis-
mo”. Neste, Gramsci constata a dificuldade dos operários italia-
nos, apesar dos esforços desenvolvidos pela Fiat, em concordar
com a aplicação dos sistemas racionalizados de regulação do
trabalho, característicos da indústria americana e inaugurados
pelo “fordismo”. Ele mostrava em que medida a racionalização,
que nos Estados Unidos havia determinado a necessidade de
criar um novo tipo de homem de acordo com um novo tipo de
trabalho e de processo de produção, era, na Itália, um projeto
voluntarista: “O americanismo”, dizia ele, “tem necessidade de
um ambiente dado, de uma estrutura social determinada (ou da
vontade firme de criá-la) e de um certo tipo de Estado!”.
O que a desregulamentação em curso vem revelar é precisa-
mente a maturação das condições de uma reformulação estrutural.

1. A. e M. Mattelart, De Iusage des médias en temps de crise, op. cit.


Os debates parlamentares aos quais se fez referência tiveram lugar em
1976 e 1978.
Notemos de passagem que esta tese da americanização era coerente
com a política apoiada pelo Partido Comunista (do qual Roland Leroy era
um dos porta-vozes), que defendia um protecionismo tricolor cujos slogans
eleitorais explicavam: “Fabriquemos o que é francês; não arrancaremos
mais nenhuma videira”, ou ainda: “Tudo o que é nacional é nosso”. Con-
tentando-se em transpor essa política para o domínio da criação audiovisual,
não criava ele um impasse sobre a reflexão que a evolução do modo de
produção na televisão merecia?
2. A. Gramsci, “Americanismo e fordismo”, publicado em Note sull Ma-
chiaveili sulla política e sullo stato moderno.
170 A. e M. MATTELART

Ela afeta, entre outras coisas, a própria natureza do Estado,


mudando suas conexões com o setor e os interesses privados,
modificando suas relações com o mercado, estabelecendo novas
configurações entre o local, o nacional e o espaço internacional.
A alusão à lenta emergência da cultura “fordista” no univer-
so da fábrica e do trabalho industrial encontra hoje um certo
eco na emergência de novas formas de racionalização da produ-
ção televisiva. A nova racionalização não pode ser entendida
como um conjunto de receitas importadas. Tende a instalar-se
naturalmente, a naturalizar-se, como norma do dispositivo tele-
visivo.
Porém, imediatamente somos levados a interromper a compa-
ração: de um lado porque a cultura do “fordismo”, que exaltava
o valor do trabalho, porém também os da hierarquia e da
autoridade, não tem mais muita legitimidade nas novas concep-
ções da organização do trabalho, que apelam para métodos de
gestão suaves, flexíveis; de outro lado, o que há de comum
entre a cultura “fordista” do controle operário e esta nova
cultura de regulação social — que funciona pela sedução — que
é a cultura da mídia contemporânea? O que há de comum entre
uma cultura saída da era da mecânica e uma cultura inteiramente
inscrita na fluidez cibernética? O que há de comum entre uma
cultura tributária da ideologia do Estado e uma indústria cultu-
ral determinada pela lógica de um capitalismo transnacional, que
se desenvolve na escala de uma economia mundial? O que há
de comum entre um capitalismo modernista simbolizado por
máquinas em movimento como a locomotiva e o avião e este
capitalismo de fluxo, de comunicação, de redes de imagens que
na era pós-moderna pode ser representado somente em movi-
mento?
A ruptura fundamental reside no seguinte: a prodigiosa expan-
são do capital em direção a zonas que permaneciam até agora
à margem da lógica do produto, a formidável invasão do incons-
ciente.
Se o “fordismo” se caracterizou pela racionalização do pro-
cesso de produção, apoiando-se ao conhecimento da mecânica
dos gestos do operário, da articulação cinética da produção, a
racionalidade cibernética mobiliza o conhecimento em função
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 171

dos imperativos de gestão não só da produção, mas do consumo.


Terra incógnita, o consumidor torna-se efetivamente objeto e
sujeito de pesquisa. A ação-conhecimento mobilizada a seu respei-
to procura tanto decompor seus movimentos de consumidor
como sondar suas necessidades e desejos. O saber sobre esses mo-
vimentos, necessidades e desejos informará e alimentará a pes-
quisa do círculo programação-produção-consumo, círculo sempre
instável, mas orientado para a integração funcional e afetiva do
consumidor.
A irrupção do sujeito-consumidor é relativamente recente para
as ciências da comunicação. Como vimos anteriormente, a cons-
ciência da importância do momento-receptor pode, com justa
razão, ser considerada uma ruptura fundamental. Introduzindo
o receptor como sujeito ativo, ela permite afinal compreender
a natureza do processo de comunicação que as abordagens inspi-
radas pela teoria matemática da informação (da qual não escapou
a lingistica estrutural) haviam desvirtuado. Pela mesma razão,
faz avançar consideravelmente a compreensão dos riscos de uma
relação de comunicação no momento das mediações técnicas.
Porém, quando se constata a emergência dos critérios de geren-
ciamento do espaço das mídias, avalia-se melhor a ambivalência
desse retorno ao receptor, ao consumidor. Não é a primeira vez
que rupturas teóricas importantes para a abordagem da comple-
xidade das relações sociais servem para alimentar consideravel-
mente a procura da eficiência na regulação social. Momento isola-
do, clandestino, íntimo, o consumo de programas surge como
um risco, preso tanto às estratégias e táticas de integração da
eficiência mercadológica como às estratégias e táticas de dissi-
dência que transformam o sentido da regra, recusam-se a tomar
os enunciados ao pé da letra, falam quando se pede silêncio,
desestruturam o círculo, desorganizam a programação.

A relação com as audiências

Uma programação se legitima sempre a partir do plebiscito


constantemente renovado pela adesão de um público. O dispo-
172 A. e M. MATTELART

sitivo não pode legitimar-se nem funcionar se não é capaz de


pelo menos evocar, ou melhor, exibir seu público. Responder ao
público, à sua necessidade e a seus gostos é o argumento maior
que dá suporte às políticas de programação, tanto em conserva-
dorismo como em sua abertura à inovação. As necessidades do
público que a televisão garante interpretar estão na verdade à
frente de qualquer necessidade de público que o dispositivo incor-
pora estruturalmente”.
A época é decididamente paradoxal: enquanto o retorno do
sujeito ocupa o eixo das novas interrogações do pensamento
crítico e ao mesmo tempo o neoliberalismo reivindica o retorno
ao indivíduo soberano, os modos de gestão da sociedade apóiam-
se sobre uma entidade individual que perde cada vez mais seu
caráter irredutível, esse “foro íntimo inviolável”. Em sua obra
sobre a sociedade do marketing, intitulada Le Prince bureau-
crate, Romain Laufer e Catherine Paradeise exprimem justamen-
te a ruptura que significou, deste ponto de vista, o neoliberalis-
mo em relação ao liberalismo: “Onde o liberalismo dispunha de
ciências teóricas para explicar as relações econômicas e sociais
ou para legitimar suas consequências, a ideologia cibernética
dispõe de ciências “cibernetizadas”, de modelos e de simula-
ções... O homem é construído pela burocracia por recomposição
estatística, a partir da separação de todos os elementos simbóli-
cos que o caracterizavam como sujeito. O homem da sociedade
do marketing é um homem segmentado. .. Como o grande ana-
lista de Gombrowicz, (ela) dissolve o sujeito decompondo-o*”.

3. É o que exprimia muito bem o diretor-geral da BBC ao escrever: “No


mais livre dos mercados existentes, o dos Estados Unidos, eles (os difusores
de programas) investem quase sempre no que já está confirmado pela
popularidade. Pretende-se que este procedimento consista em “dar às
pessoas o que elas querem”. Mas é porque, se lhes perguntarmos o que
querem, só podem responder em função do que já lhes: foi dado...
Impossível, portanto, escolher algo que nem mesmo se imagina”. A. Milne,
“L'avenir de la radio diffusion de service public en Europe”, Revue de
PUER, Genebra, setembro, 1984, p. 23.
4. R. Laufer e C, Paradeise, Le Prince bureaucrate, Paris, Flammarion,
1982, p. 238 e 251.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 173

O modo de gestão da relação com as audiências traz cada vez


mais a marca do pensamento técnico. As tipologias dos alvos,
melhoradas sem cessar graças às tecnologias informatizadas de
produção e estocagem de dados, mostram como se refinam os
interesses de conhecimento mobilizados em torno do consumi-
dor. À segmentação dos públicos explica os novos imperativos
de gestão, que atribuem cada vez maior importância à informa-
ção qualificada a respeito de grupos-alvos. Uma bateria de
hipótese é acionada nos testes, sondagens e roteiros, e preside
ao estabelecimento dos perfis, formalidades e programações
(todos termos que indicam a ascensão da medida, da norma e
do programado, do controlável e do previsível). Ela se propõe
responder tanto às estratégias de globalização, como às de perso-
nalização na abordagem do consumidor (estilos de vida, corten-
tes sócio-culturais). Estratégias duplas partilhadas em forma de
simbiose pela vanguarda publicitária e pela indústria da mídia.
Esta oscilação é perfeitamente coerente com o declínio da legi-
timidade dos modos de organização social apoiados no interesse
geral e com a emergência de modos de organização mais arti-
culados sobre os interesses de categorias. Da mesma forma que
ao nível político o conceito de “maioria silenciosa” e de “classes
médias” tende a perder sua pertinência, a noção de “público
médio”, tal como a operacionaliza o dispositivo da mídia, tende
a ser substituída como referência principal. Mas há duas ressal-
vas ponderáveis: uma primeira é que a noção de “público mé-
dio” está longe de ter-se tornado inoperante. Os programas de
grande audiência da televisão continuam a ser orientados por
esta noção-representação do público. (Podemos até nos pergun-
tar se, nas horas mais valorizadas pelos anunciantes, as networks
não ficarão cada vez mais com o encargo de gerir os grandes
encontros do vínculo consensual, frente à dispersão dos interes-
ses das categorias e dos desejos individuais cuja gerência caberá
às mídias ditas descentralizadas.) Uma segunda reserva é que a
operação de redução técnica realizada pela estatística publicitária,
ao reduzir a complexidade dos indivíduos e dos grupos na socie-
dade global a atitudes e comportamentos “médios”, se reco-
nhece na desestruturação e na segmentação do indivíduo de
uma categoria nas mídias fragmentadas. Uma coisa é certa nas
174 A. e M. MATTELART

duas abordagens: a concepção do público é uma concepção


técnica.
As ciências que contribuem para a otimização deste conhe-
cimento sobre as audiências têm sido tradicionalmente a psico-
logia experimental e a psicologia social. Atualmente é preciso
acrescentar também as neurociências (neurofisiologia e neuro-
psicologia). Sem poder avaliar corretamente através de procedi-
mentos contábeis e formalizar um conhecimento sobre os pro-
cessos afetivos, estes métodos de observação e medida se con-
centram sobre os processos cognitivos.
Já longamente experimentadas nos Estados Unidos, tanto em
laboratórios de pesquisa em inovações da indústria publicitária
e televisiva como nas alianças sinérgicas da indústria com a
universidade, estas práticas acabam de chegar atualmente aos
países onde a concepção do público-cidadão prevaleceu larga-
mente sobre a concepção do público-audiência. Ontem ainda
limitada à prática de sondagens, esta gestão técnica das audiên-
cias passa hoje em dia pela programação de efeitos. A organiza-
ção dos efeitos técnicos, por exemplo, destinados a prender a
atenção dos telespectadores, foi suficientemente bem documen-
tada para que não voltemos a ela”. Justificada pela necessidade
de importunar constantemente a atenção do espectador através
de uma condensação do espetacular, ela constitui de hoje em
diante um dado básico da indústria dos programas e a unidade
de medida-tempo no interior destes últimos. Hoje, uma emissora
como a MTV, a emissora de rock americana, representa a eficiên-
cia ótima para responder à obsessão de todo programador: o
zapping, esta liberdade de fuga permitida pelo controle remo-
tof. A emissora MT'V apostou no ritmo e na sedução do video-
clipe e do rock. Foi a primeira emissora a atribuir uma impor-

5. Consultar M. Mattelart, “Education, télévision et culture de masse.


Réflexions sur la recherche en matitre d'innovation” im A. Mattelart, Y.
Stourdzé, Technologie, culture et communication, Rapports complémentai-
res, op. cit.
6. Lembremos que, para impedir o zapping, as networks privadas italianas,
no horário nobre (entre 20h30 e 23h) em que elas concentravam uma
audiência de 28 milhões de italianos, “por acordo tácito”, decidiram colo-
car os intervalos publicitários ao mesmo tempo em todas as emissoras, de
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 175

tância primordial às pesquisas recentes de neurofisiologia sobre


a cor, que dão origem a elementos determinantes da forma tele-
visiva contemporânea”. Uma emissora como a NBC adaptou esta
estética do videoclipe a um seriado como Miami Vice, no qual
as cores pastel dos cenários constituem um dos atrativos. Co-
mentando este salto para a eficiência realizado pela TV norte-
americana, um jornalista do Libération constatava que na França
havia o “vício da forma”: “Na França, ao contrário dos Estados
- Unidos”, escrevia ele, “um produto de televisão é, em primeiro
lugar, uma obra que se reluta em conceber e calibrar para ser
consumida pelo maior número de pessoas. É portanto trabalhada
diferentemente, mais segundo a inspiração do que segundo a
eficiência, sem testes, sem regras de marketing, sem flexibili-
dade em função das reações do público. Também não há o
exército de roteiristas e promotores de gags, utilizados constan-
temente para prender a atenção dos espectadores ao longo de
um mesmo capítulo”. Menos de quinze dias mais tarde, o
mesmo jornalista revisava completamente esta apreciação ao es-
crever a respeito do folhetim francês Maguy. Concebido por dois
publicitários, este batia Dallas, programado para o mesmo horá-
rio dominical em uma emissora concorrente, e o levava a dizer:
“Este “novo bulevar”, tirado de um folhetim americano, Maud,
aplicou todas as boas regras de produção em vigor nos Estados
Unidos: três episódios foram testados desde o início por três
grupos de dez telespectadores “videotas”. Isso jamais aconteceu
no Canal 2. Este teste permitiu pois verificar que as pessoas
riam mais quando havia aquelas risadas em off... Nenhum dos
forma “a constituir uma barreira intransponível, da qual o espectador não
pudesse escapar, nem mesmo por meio do controle remoto”. La Stampa,
2 de junho, 1984.
7. As pesquisas nos domínios objetivo e subjetivo da cor se beneficiaram
muito dos avanços da neuropsicologia. Segundo François Patra, que foi um
dos precursores destes estudos na França, subsistem numerosos enigmas ao
nível dos receptores que colocam interrogações sobre “as novas fronteiras
da ciência”. “Percebe-se que o cérebro parece gerar processos que nos são
estranhos.” Ver as Atas do 5.º Congresso da Associação Internacional da
Cor, que ocorreu em Monte Carlo de 16 a 22 de junho, 1985.
8. P. Gavi, “France: vice de forme”, Libération, 18 de outubro, 1985,
po 13.
176 A. e M. MATTELART

seis diretores roda mais de dois capítulos consecutivamente.


Todas as alegações são verificadas. Cada personagem é descri-
to em uma “bíblia” onde se encontra até seu signo astroló-
gico...””
O impulso da nacionalidade cibernética na produção cultural
não deve ser avaliado por sua eficácia, que permanece relativa.
À teoria crítica está persuadida de que é impossível prever com
toda a exatidão os movimentos dos consumidores e repetir para
o consumo o sonho “foordista” de planificação dos gestos da
produção. Os próprios programadores reconhecem, se for neces-
sário, que este poder permanece em grande parte por conquistar,
confessando-se sinceramente desorientados pelas desregulações
de racionalidade técnica, preferindo às vezes render-se à própria
intuição, à sorte ou até mesmo à astrologia. Para eles, não há
dúvida de que o sucesso de um produto, além de todos os testes
e outras medidas preventivas, pressupõe sempre o imponderável
e o aleatório. A emergência da racionalidade cibernética indica
principalmente até que ponto a idéia do cômputo e de comen-
surável triunfa no próprio âmago deste domínio reservado da
criação cultural e da experiência estética onde nasceu uma das
mais ricas teorias contemporâneas do sujeito, a da Escola de
Frankfurt. Como observava Jean-François Lyotard, iaugurando o
primeiro colóquio na Sorbonne sobre Arte e Comunicação, em
outubro de 1985, as obras produzidas pela nova tekné trazem

9. P. Gavi, “Course à Vaudience: les bonnes recettes de TF1”, Libération,


29 de outubro, 1985, p. 16.
Sobre a mecânica da redação do folhetim nos Estados Unidos, poderá
ser consultado o encontro realizado por Sylvie Blum com os roteiristas de
Dallas. Entre outras coisas, fica-se familiarizado com o que significa “a
Bíblia” no jargão da TV americana, o roteiro como palavra de evangelho!
Ver Réseaux, número sobre “ Dallas" et les séries télévisées”, abril de
1985, n.º 12. Esta prática, que consiste em testar os primeiros capítulos de
uma série de televisão, se realiza em geral nos Estados Unidos, no que é
chamado de preview house: as poltronas são equipadas de maneira a re-
gistrar sem interrupção as reações dos espectadores testados. Ver D. Lege-
ron, “Etats-Unis: la bataille de "audience”, Le Monde Loisirs, 7 de setem-
bro, 1985, p. IX.
10. Consultar sobre este ponto T. Gitlin, Inside prime time, Nova York,
Pantheon, 1983,
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 177

inevitavelmente as marcas de terem sido determinadas pelo


cálculo.
À tendência para integrar cada vez mais o público à. produção
encontra uma saída lógica na incorporação ativa deste no pro-
grama, como matéria legitimadora da representatividade que a
mídia tem da opinião pública e/ou como criador de um frag-
mento do texto. Esta interação público/programa que o impulso
das tecnologias interativas não cessará de favorecer realiza-se de
diversas maneiras: através da participação direta do público, por
exemplo, na emissão de programas de jogos, que, juntamente
com o esporte e as séries de ficção, constituem a resposta prin-
cipal das novas televisões à desregulamentação. Espaços da con-
sensualidade por excelência, esses jogos consagram como ganha-
dor ou ganhadora aquele ou aquela cuja resposta expresse a
maioria das opiniões recenseadas paralelamente por sondagens.
Em outras emissões de debates com penalidades do cenário polí-
tico, combinadas igualmente com sondagens instantâneas, o es-
pectador testado fornece âquele que não intervém o feedback da
comunidade, certificado pelo valor “científico” da amostra dos
sondados. Enfim, em outros tipos de emissões, do gênero entre-
vistas com personalidades do mundo do espetáculo, ao intervir
por telefone, o público coloca seu fragmento de texto na trans-
missão. A mídia empresta à audiência suas próprias palavras,
para construir com ela o programa, polindo assim os procedi-
mentos de sua legitimidade pragmática.
Nos países onde a relação do povo com a televisão está
próxima da experiência catártica, o sistema de produção prevê,
como vimos no caso do Brasil, a participação do público na
criação do texto de ficção: as reações diárias do público alteram
a evolução dos personagens e o desfecho das narrativas.
A lógica da previsão e da programação está em ação em todos
os blocos da programação televisiva. Nesta emergência da forma
programação, a série de ficção ocupa um lugar de destaque:
produto normalizado, concebido em função do ritmo global da
programação, mas também em função dos ritmos intersticiais da
publicidade dentro dos programas. Estas características a tornam
mais especialmente apta para responder às estratégias de com-
promisso do par programador /anunciante. É o que dizia exata-
178 A. e M. MATTELART

mente o diretor Jean-Pierre Marchand: “O folhetim criou um


certo número de especificidades formais: respeitar os blocos
horários, estreitamente vinculados à publicidade!!”.
Não se poderia reduzir a legitimidade específica adquirida
pelo objeto série na programação das televisões evocando so-
mente sua coerência com a lógica da calibragem industrial e co-
mercial. À série, por sua reiteração sequencial, é certamente um
produto particularmente bem adaptado a esta emergência da
forma de previsão e de organização: forma contemporânea do
progresso da racionalidade técnica na produção dos bens cultu-
rais. O número tomou impulso. O espaço-tempo da programa-
ção está cada vez mais dividido em pequenos módulos. À ten-
dência para a fragmentação, para o fragmento, explica este
impulso. É preciso contudo abster-se de ficar só nisso. À expli-
cação para o espaço privilegiado da série numa programação de
televisão repousa sobre uma tensão fundamental entre este
imperativo técnico e um modo narrativo que, de longa data,
demonstrou seu valor junto aos públicos. Cada um a seu modo,
os dois termos desta tensão participam atualmente da legitima-
ção deste modo de narrar. Como num jogo de palavras, se
poderia dizer que a nova lógica do cômputo não se Cotia
completamente fora da velha arte de narrar.
À série de ficção precisa ser considerada como a interface
das estratégias de valorização do capital nas indústrias culturais
e da memória coletiva das formas da narrativa. Está na encru-
zilhada das lógicas econômicas e do que poderíamos chamar de
lógicas simbólicas. A primeira lógica simbólica a fundamentar
a narrativa serial não é aquela dimensão ritualizada que ela tem
na vida cotidiana das pessoas, a condição da repetividade na
experiência cotidiana? Os especialistas no campo da televisão
têm, há longo tempo, a intuição de que é preciso também ir
procurar a legitimidade do objeto série de ficção fora da lógica
do capital. O diretor Marcel Blurval, por exemplo, ao dizer:
“A série é caso para contador de histórias”. Entre as duas

11. J. P. Marchand, citado por J. Beaulieu, La télévision des réalisateurs,


Paris, INA — La Documentation Française, 1984, p. 130.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 179

opiniões, expressas acima por profissionais da televisão, se acha


o cerne do debate.

O fim das grandes narrativas?


“Nossas sociedades entram na era dita pós-industrial, e as
culturas na era dita pós-moderna”, escrevia em 1979 o filó-
sofo Jean-François Lyotard. Valendo-se da idéia segundo a qual
o alicerce social do princípio da divisão, a luta de classes, acaba
por diluir-se a ponto de perder toda a tadicalidade, Lyotard
deduz daí o fim da credibilidade e das grandes narrativas e
sua decomposição. “A função narrativa perde seus fatores de
funcionamento, o grande herói, os grandes perigos, os grandes
périplos e o grande objetivo.” E acrescenta: “A novidade é
que neste contexto, os antigos pólos de atração formados pelos
Estados, os partidos, as profissões, as instituições e as tradições
históricas perdem muito de seu encanto. E não parece que devam
ser substituídos pelo menos em sua própria escala... As “identi-
ficações” com grandes nomes, com heróis da história atual, se
fazem mais difíceis"”.
A tese do fim das grandes narrativas assinala justamente a
ruptura que significa a introdução da nova lógica do cálculo nos
jogos de linguagem. Entretanto, tem o defeito de permitir que
se pense que a hegemonia da racionalidade cibernética e de uma
pragmática do saber científico já se completou e já aboliu o saber
tradicional das “histórias populares”. Ao fazê-lo, ela parece
sucumbir ao determinismo que a evolução das tecnologias e
das ciências exerceria sobre os modos de expressão verbal.
Paradoxo: enquanto a tese do fim das grandes narrativas tem
gtande penetração ao refletir sobre a televisão que se inscreve
no pensamento pós-moderno, o comércio transnacional dos pro-
gramas opera fundamentalmente sobre a base de “logiciais” nar-
rativos. O grau de desempenho das televisões no mercado inter-
nacional se mede pela sua capacidade de produzir e fazer circular

12. J. F. Lyotard, La condition postmoderne, Paris, Minuit, 1979, p. 7


(trad, bras.: O pós-moderno — Rio de Janeiro, José Olympio, 1986).
180 A. e M. MATTELART

“histórias”. Marcadas pela lógica industrial e pela pesquisa ciber-


nética de matrizes reprodutíveis, estas “histórias” que trazem o
selo do cálculo não aludem, apesar de tudo, à necessidade de
narrativas?
A filosofia pós-moderna tem o enorme mérito de fazer com
que se tome consciência do império do significante nas mídias.
Sabe-se que o conceito pós-moderno trabalha a arquitetura, a
estética, a literatura e a sociologia nos Estados Unidos, desde o
início dos anos 60. Em sociologia política, o aparecimento do
conceito de “sociedade pós-industrial”” foi largamente prepara-
do por teses menos brilhantes, como por exemplo a do fim das
ideologias. O criador do conceito de sociedade pós-industrial,
Daniel Bell, não havia desde 1960 intitulado com simplicidade
uma obra de La fin des idéologies!*?
Se, a exemplo de Daniel Bell, os sociólogos acreditaram resol-
ver a questão da datação da era pós-moderna dando-lhe como
ponto de partida a emergência da tecnologia e das ciências da
informação, certos teóricos que trabalham no campo da estética
manifestam-se mais circunspectos. Eles entendem escapar desse
pós-industrial. Tal é o testemunho de Umberto Eco, que conside-
ra o modo às armadilhas do determinismo tecnológico da era dita
pós-moderno uma corrente difícil de limitar cronologicamente e
que a interpreta de preferência como uma “categoria espiritual,
ou melhor, um Aunstwollen, um modo de operar: poderíamos
dizer que cada época tem seu próprio pós-moderno!*”. Contra-
riamente a Eco, apresenta-se o testemunho do crítico americano
Fredric Jameson, que propõe situar o pós-modernismo como uma
etapa historicamente bem determinada da evolução dos regimes
de pensamento, e analisa o corte que ele representa em relação
ao pensamento modernista. O pós-modernismo, como dominan-
te cultural da lógica do capitalismo avançado, se caracteriza pela
crítica dos “modelos de profundidade”: o modelo dialético da

13. D. Bell, The end of ideology, Nova York, Collier, 1960 (tradução bra-
sileira: O fim da ideologia, tradução de Sérgio Bath, Brasília, Ed. Univer-
sidade de Brasília, 1980); The coming of the post-industrial society, Nova
York, Basic Books, 1973.
14. U. Eco, “Apostila a el nombre de la rosa”, in Análisi, Barcelona,
maio, 1984, p. 27.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 181

essência e da aparência, e seus conceitos de ideologia e de falsa


consciência; o modelo freudiano do latente-manifesto ou da
repressão; o modelo existencial da autenticidade ou da falta de
autenticidade, com a oposição entre alienação e desalienação que
o fundamenta. E, finalmente, a grande oposição semiótica entre
significante e significado que reinou sobre as referências dos
anos 60 e 70.
O que substitui estes diversos “modelos de profundidade” é
“um modelo de superfície”, ou melhor, um “modelo de super-
fícies múltiplas”. “O mundo”, constata Jameson, “perde sua pro-
fundidade e ameaça converter-se em uma superfície brilhante,
uma ilusão estereoscópica, um fluxo de imagens fílmicas sem
densidade !*.» Celebrando a apoteose do espaço em relação ao
tempo e o desaparecimento do referente histórico, este modelo
de superfície é perfeitamente coerente com a nova amplidão da
expansão global do capital transnacional, sua circulação em “tem-
po real” nas redes informáticas e com os fluxos de imagens ao
mesmo tempo universais e fragmentados. Há uma simbiose per-
feita com as estratégias de saída de crise partilhadas pelos grandes
países pós-industriais, que exaltam o valor redentor das altas
tecnologias da informação.

O neoliberalismo em tecria

As visões do espaço internacional modificaram-se profunda-


mente. Ao se iniciarem, no fim dos anos 60, os estudos sobre a
dimensão internacional das indústrias do audiovisual, estava soli-
damente firmada a convicção de que estas últimas eram influen-
ciadas pelas relações de dominação existentes entre as nações
e os povos.
Quando as teses neoliberais do câmbio livre adquiriram maior
legitimidade, a evidência das lógicas transnacionais de dominação
deixou de existir. E as discussões teóricas assim o demonstram.
Correntes de pensamentos até recentemente pouco preocupadas
com o câmbio desigual se empenham hoje na questão internacio-
15. F. Jameson, “Postmodernism, or The cultural logic of late capitalism”,
New Left Review, Londres, julho-agosto, 1984.
182 À. e M. MATTELART

nal, para avaliar o peso relativo de sua determinação. Apoiando-


se principalmente no progresso da indústria audiovisual em al-
guns novos países industrializados, alguns estudos esforçam-se
por mostrar que não há dependência.!* Outros desestabilizam a
idéia de subordinação, dando crédito ao novo paradigma da re-
cepção. Sumariamente resumidos, dizem o seguinte: cada público
nacional decodifica à sua maneira os programas importados. So-
mente encarando como vítimas as culturas hospedeiras pode-se
imaginar um depositário passivo; a teoria da injeção, segundo a
qual uma mensagem X tem o efeito esperado Y, não considera
a realidade da comunicação como interação; apenas a teoria do
efeito bumerangue pode explicar adequadamente um processo
onde o receptor não é mais um paciente indefeso, mas um indi-
víduo capaz de resposta imediata. Uma das conclusões que se
seguem para uma sociologia mais pronta a legitimar as estruturas
em questão do que a discuti-las é relativamente simples: se o
poder das emissoras não for onipotente, a idéia da existência de
um emissor mais poderoso do que outro perde boa parte de sua
pertinência.
Deixemos bem claro: não são as questões levantadas por esta
sociologia que incomodam. Pelo contrário. É preciso reconhecer
o interesse que há em analisar as leituras singulares que grupos
específicos, em meio a culturas diferentes, fazem de uma produ-
ção que passa em todas as telas do mundo ”. A operação de
deslocamento * que ela contribui para legitimar é que incomoda,
diante da necessidade de uma regulação dos fluxos em um mer-
cado profundamente inigualitário. Pois a liberdade não poderia
resumir-se à liberdade de leitura dos produtos dos outros. Não
deveria também ser compreendida como a liberdade de ler os
produtos das culturas não-hegemônicas existentes no mercado,

16. Ver Chin Chuan Lee, Media imperialism reconsidered. The homoge-
nizing of television culture, Beverly Hills, Sage, 1980. Nesta obra, este
autor se refere sobretudo a Formosa.
17. Ver principalmente E. Katz e T. Liebes, “Once upon a time, in Dallas”,
Intermedia, Londres, maio, 1984. Nesse mesmo ano, esta tese havia ido
apresentada no colóquio de Teleconfronto, Chianciano, Itália.
* A palavra “deslocamento” está usada aqui no sentido de “desviar-se do
verdadeiro sentido”. (N. da Revisora Técnica.)
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 183

muitas vezes a começar da sua própria? Não é sem razão que


a série americana Dallas constitui o objeto de pesquisa mais assi-
duamente fregiientado por estas tendências que tentam recons-
tituir as modalidades desse elo universal diferenciado.
Essa maneira de ver as coisas é completamente coerente com
o catecismo liberal que prega a necessidade de não opor resis-
tência ao livre fluxo da informação. Situa-se dentro de uma pers-
pectiva evolucionista: se houve e se há ainda dependência, esta
só poderia ser transitória. Tanto as lógicas econômicas como as
tecnológicas implicam a desconcentração da produção audiovisual.
A reformulação se operará de maneira natural e harmoniosa.
Somente as culturas que recusam encerrar-se numa visão bairrista
e esposar o protecionismo poderão defender seu direito de par-
ticipar enquanto agentes livres de um mercado cosmopolita *.
As teorias clássicas do desenvolvimento como processo linear en-
contram aí uma nova forma de se autovalorizar. Na realidade
concreta da desregulamentação, a idéia evolucionista acompanha
de fato estratégias que a negam. Os grandes países produtores-
exportadores, para salvaguardar sua indústria nacional e seu mer-
cado interno da concorrência internacional, não são tão hábeis
em denunciar o protecionismo alheio para deixar na sombra suas
próprias práticas de restrições às importações?
Este discurso para uso externo desemboca naturalmente na
contestação de toda política governamental que vise a garantir a
sobrevida de uma base de produção local. Toda a argumentação
repousa no eterno contraste entre um Estado coercivo e um mer-
cado que libera as forças vivas da modernização tecnológica. Esta
doutrina maniqueísta retira toda pertinência à questão de saber
o que, na reivindicação da “identidade cultural” e nas estratégias
por ela inspiradas, nasce da necessidade de preservar a plurali-
dade das expressões culturais e o que trai um velho reflexo de
proteção dos corporativismos e dos nacionalismos-guetos. Desa-

18. Tese defendida principalmente por I, de Sola Pool, “The changing


flow of TV”, Journal of Communication, 1977, nº 2. Ver a contribuição
do mesmo autor na obra publicada sob a direção de K. Nordenstreng e
H. Schiller, National sovereignty and international communication, Nor-
wood (N. J.), Ablex, 1979.
184 A. e M. MATTELART

parece também da análise o processo de redefinição do Estado,


frequentemente cúmplice ativo de sua própria renúncia à sobe-
rania cultural. Hoje, uma questão capital não seria precisamente
esta: o Estado pode assegurar uma regulação que leve em conta
as lógicas internacionais? E como o faria"? O corolário é o se-
guinte: numa sociedade onde a relação entre o Estado e a socie-
dade civil se problematiza, como conceber o papel ativo dos dife-
rentes componentes dessa sociedade civil na regulação democrá-
tica dos sitemas de comunicação?
O debate sobre a intervenção do Estado, frequentemente sa-
cudido entre o chauvinismo da nação e o cosmopolitismo natural
do mercado, impede que se perceba a ruptura que as indústrias
da imagem introduziram no processo de construção da identidade
nacional, À idéia de movimento nacional (e principalmente a idéia
do nacional em movimento) foi parte constitutiva da história dos
cinemas. Não é assim com a indústria televisiva. Jean-Luc Godard
e sua sociedade Sonimage tiveram, a seu modo, a intuição genial
disto ao elaborarem o projeto de captar a imagem de uma nação
antes que a indústria televisiva a confundisse e a transformasse.
Em 1978, propuseram a Moçambique filmar Naissance de image
d'une nation (título que fazia evidentemente referência ao filme
iniciador de Grifith, Nascimento de uma nação). Em seu diário

19. Sobre as contradições das políticas nacionais, ver o relatório Caplan-


Sauvageau, Rapport du groupe de travail sur la politique de la radiodiffu-
sion, Ottawa, Ministério de Fomentos e Serviços do Canadá, 1986. Estas
contradições se percebem melhor quando se constata o caráter formalista
das definições do “nacional” com as quais se satisfazem os “códigos de
nacionalidade audiovisual”. Em março de 1986, as autoridades brasileiras
assinavam um decreto que precisa a denominação “filme brasileiro”, a fim
de efetivar uma lei promulgada em 1975, que estabele uma quota de filmes
nacionais para as salas de exibição. Para que um filme seja considerado
nacional, é preciso que seja produzido por uma empresa controlada por
brasileiros, ou estrangeiros residentes no Brasil há mais de três anos e
registrados junto ao órgão oficial do cinema; é preciso que o filme seja
falado em língua portuguesa; dirigido por um brasileiro ou estrangeiro que
viva no Brasil há mais de três anos; é preciso que 2/3 do pessoal técnico
e artístico sejam brasileiros; que os trabalhos de laboratório sejam efetua-
dos no Brasil. A obrigação de exibir uma determinada proporção de filmes
nacionais só afeta os circuitos cinematográficos de difusão. A televisão
escapa à lei!
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 185

de viagem, Godard escrevia: “A sociedade Sonimage propõe a


Moçambique tirar partido de sua particular situação audiovisual
para estudar a televisão antes que ela exista, mas que ela invada,
ainda que só daqui a vinte anos, todo o corpo social e geográ-
fico moçambicano. Estudar a imagem, o desejo de imagem (a
vontade de se lembrar, a vontade de fazer desta lembrança um
ponto de partida ou de chegada, uma linha de conduta, um guia
moral, político, diante de um só objetivo: a independência). Es-
tudar estes desejos de imagem(s) e sua distribuição por ondas
(ou por cabos). Estudar de uma vez por todas a produção, antes
que a distribuição venha a ocupar-se dela. Estudar os programas
antes de fazer deles um molde no qual serão enquadrados os
espectadores, que não saberão que se encontram atrás da televisão
(sendo arrastados), e não mais diante dela, como o imagina-
vam... Naissance de Vimage d'une nation contará portanto os
relacionamentos e a história destes relacionamentos momentâneos
(históricos) entre um país que não dispõe ainda de televisão e
uma pequena equipe de vídeo vinda de um país que tem tele-
visão demais... Formação de uma idéia, de um rosto, de um
povo. Formação de novas lembranças desse povo e independência
dessa informação 2”.
Os debates ocorridos recentemente nos meios críticos demons-
tram que a questão das lógicas internacionais é mais complexa
do que deixa perceber o discurso neoliberal. É preciso reafirmar
que nem todos os países do hemisfério sul possuem atualmente
o potencial moderno de produção e exportação de programas de
televisão do qual dispõem os novos países industriais, como o
Brasil e o México, por exemplo. Para muitas nações, o estado
de dependência não foi globalmente modificado até hoje. As
vezes até se agravou *!. As diferenças entre as indústrias cultu-

20. Im Cahiers du Cinéma, n.º 300, setembro, 1978.


21. A balança dos fluxos de programas permanece eloguente. Na América
Latina, a quantidade de programas importados varia de 1/4 a 2/3 do
tempo total de transmissão. Em média, cerca de metade dos programas
difundidos na região são importados. Nas horas de grande audiência, a
proporção cresce. Cerca de metade do tempo de difusão é ocupado por
programas destinados à diversão. A maior parte dos programas importados
pertence a essa categoria. Entre os fornecedores, os Estados Unidos vêm à
186 A. e M. MATTELART

rais dos diversos países do Terceiro Mundo aprofundaram-se,


fazendo fragmentar-se o conceito agregador e monolítico de “paí-
ses dependentes” e surgirem novas diferenciações.
Porém, a diversificação relativa dos agentes não esgota certa-
mente as questões inéditas que as atuais configurações do mer-
cado mundial colocam. Com o desdobramento para uma econo-
mia-mundo e uma comunicação-mundo, entramos numa fase na
qual não é tanto o importar-exportar que define a integração em
relação a um conjunto de valores, imagens e símbolos, mas a
“indigenização” das normas e das matrizes de produção. Estas,
por sua vez, correspondem à lógica de bom desempenho repre-
sentada pelo modelo de desenvolvimento e de crescimento trans-
nacional. (Mesmo que este desempenho continue a ter seu pa-
drão de excelência, isto é, de modernidade, referido à indústria
mais desenvolvida, a dos Estados Unidos.) Nos anos 70, a iden-
tificação de um ponto concreto de origem fundamentava as ten-
dências inspiradas na “teoria da dependência”. O que importa
agora não é mais tanto a questão da nacionalidade do modelo
de origem, e sim a natureza da tecnicidade, inerente à nova fase
de valorização pelo capital de todos esses dispositivos que fica-
ram à margem da lei do valor (a cultura, a comunicação, a infor-
mação, a educação, o lazer, a saúde, etc.) e de suas modalidades,
ao mesmo tempo específicas e transnacionais.
A teoria da dependência tendia a ratificar uma visão binária
do espaço internacional (Centro/Periferia, Metrópole /Países De-
pendentes), privilegiando a análise do agente central em sentido
único. Os anos 80 viram o retorno à análise dos modos pelos
quais cada sociedade se apropriou das. vigorosas tendências da
modernidade tecnológica. A antiga corrente tendia a favorecer
uma análise linear do “efeito-desterritorialização” e se interro-

frente, com 3/4 dos programas, sendo que as importações entre países
latino-americanos representam 12%. Quanto à Europa Ocidental, está
presente apenas com 4% dos programas importados (estudo realizado por
T. Varis, La circulation internationale des émissions de télévision, Paris,
Unesco, 1986). Segundo a mesma fonte, em 1983, 17% da programação
das emissoras francesas era de origem estrangeira. Nos Estados Unidos,
as importações constituíam apenas 29% da programação total. Duas exce-
ções importantes: a emissora estatal PBS e o SIN (em língua espanhola).
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 187

gava sobre o processo de decomposição das estruturas do Estado,


inelutavelmente ligado à projeção das sociedades singulares na
economia-comunicação-mundo. As novas problemáticas continuam
a referir-se às lógicas de “desterritorialização”, mas desta vez
pensando simultaneamente as lógicas de relocalização, isto é, de
recomposição dos espaços particulares (nacional e local) como
unidades de significação para as identidades coletivas.
Centrífuga em relação às realidades concretas das nações, a
utopia marcada pelo pensamento da dependência sublimou-lhe as
contradições, fazendo do “nacional” um atributo natural das
“classes populares”. O retorno a esses espaços vividos do nacio-
nal faz aparecer a diversidade das formas de apropriação social
das tecnologias (macro e micro) pelos diferentes componentes da
sociedade. E revela igualmente as contradições destas mesmas
formas. Pois a atenção a um social polissêmico acontece no mo-
mento em que se assiste também ao ressurgimento dos metadis-
cursos nacionalistas que erigem o selo de “fabricação nacional”
em sinônimo de emancipação. A retórica realista do desempenho
industrial dos anos 80 gostaria de burlar os grandes discursos
de liberação cultural dos anos 60. Entretanto, este novo pragma-
tismo industrial não poria em risco a memória de uma aquisição
importante das lutas culturais das últimas décadas — isto é, se
economia e cultura estão efetivamente cada vez mais entrelaçadas,
há apenas um casamento de conveniência, já que elas persistem
em manter relações de concorrência e conflito?
OTVIMARAUS DANTRA PED

cola 4; sub a eMAI NES a doidmecobnh


À VERSO fã
E MA Mp: muitas oa paes NS do olasgil. q!
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8. À Construção de um Povo-Público

O gênero como categoria étnica

Os olhares lançados à tradição dramática francesa por direto-


res estranhos à nossa idiossincrasia televisiva nos ajudam a pre-
cisar o nexo entre uma especificidade televisiva e os dados de
uma cultura nacional.
O diretor chileno Raoul Ruiz, encarregado pelo Instituto Na-
cional de Audiovisual de realizar uma montagem sobre a história
da França vista através da televisão, foi levado, no curso de sua
pesquisa dos arquivos, a rever a maior parte dos dramas histó-
ricos realizados pelas emissoras de TV francesas. A lição que ele
tirou desta análise merece uma reflexão. Para ele, não há dúvida
de que esse gênero de produções tão significativo da Escola dos
Buttes Chaumont é o que há de melhor em uma televisão com
vocação educativa. A fixação sobre a formação do Estado cen-
tralizador é a principal tendência que orienta a concepção da
produção dramática. A visão da história é colonizada pela estra-
tégia discursiva da legitimação da razão do Estado e do homem
forte encarregado de encará-la. “É sempre o mesmo argumento:
mesmo que a maioria do povo não queira a unidade do Estado,
essa unidade é boa para todos, e é preciso impô-la !.”

1. Entrevista com Raoul Ruiz, Cabiers du Cinéma, número especial sobre


a televisão, outono, 1981, p. 42.
190 A. e M. MATTELART

Olhar sem complacência, corroborado pelo crítico francês Serge


Daney. Ao analisar as reincidências da língua nobre, daquilo que
chama de “dicção bressoniana” nas produções dramáticas de te-
levisão — dicção lenta que marca o tempo —, o crítico francês
diz, a propósito das transmissões da famosa série histórica A
câmera explora o tempo: “Nesta série, [a língua] é um ponto
capital, pois tinha também a missão educativa de não afastar
o público popular da memória de sua língua nobre, a língua ima-
ginária-da-formação-do-Estado-centralizador. Como estas histórias
se passavam quase sempre nas cortes e nos castelos, criou-se uma
língua francesa, de um Mallet-et-Isaac aperfeiçoado e afetado,
ao mesmo tempo terna e cerimoniosa, lenta e declamatória, que
certamente ninguém jamais falou, mas que acabou por existir
— para a tevê ?”.
Razão de Estado, mas também simplesmente razão. O Estado
se apresenta como o mais importante dos conceitos, na essência
do pensamento abstrato, opondo-se à experiência vivida do povo
e à língua falada no cotidiano.
Longe de se resumir a uma concepção do drama histórico,
esta referência ao passado e à memória do Estado centralizador
pesa sobre o conjunto da produção televisiva é fixa no exterior
uma imagem da França centrada no crédito cultural do passado,
mas que aspira ao seu próprio progresso.
Este destaque à especificidade de uma sociedade e de uma
nação, que se exprime nas tendências de uma produção televisiva,
faz lembrar um conceito enunciado por um pesquisador anglo-
saxão no fim dos anos 60, retomadoe desenvolvido por um ita-
liano *; o conceito de gênero como “categoria étnica” é conjugar
dois aspectos do problema dos gêneros: um primeiro, clássico,
que situa o gênero como conjunto de regras de produção discursi-

2. S. Daney, “Le scénario français”, ibidem, p. 40.


3. Ver A. et. M. Mattelart, Penser les médias, Paris, La Découverte,
1986 (4. parte).
4. Cf. D. Ben-Amos, “Analytical categories and ethnic genres”, Genre
(Estados Unidos), 1969; e M. Wolf, “Géneros y televisión”, Análisi, Bar-
celona, maio, 1984, p. 191.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 191

va. O segundo aspecto refere-se ao fato de que o gênero é igual-


mente definido pela maneira pela qual um conjunto de regras se
institucionalizam, se codificam, se tornam reconhecíveis e orga-
nizam “a competência comunicacional” dos produtores e consu-
midores, dos emissores e destinatários. Tudo o que faz com que,
em um complexo social determinado, os gêneros possam funcio-
nar como elementos articulados sobre o sistema de conheci-
mento dos habitantes.
A semiopragmática, que se aplica à análise da produção de
significação por parte do espectador, começou a mostrar como
funciona o gênero no âmbito das instituições do audiovisual (ci-
nema e televisão), estas também entendidas dentro de um espaço
sócio-cultural. Para ela, o gênero funciona como conjunto de ele-
mentos de reconhecimento dos atos de comunicação, como “hori-
zonte de expectativa”, isto é, como instituição que suscita no
espectador disposições psíquicas particulares, submetendo-o às
atitudes que lhe são impostas pela diferença e pela repetição.
Diante das novas abordagens “pós-estruturalistas” prontas a
admitir a liberdade soberana do espectador, a semiopragmática
tem o mérito de posicionar os sujeitos produtores de significação
(diretor ou espectador) como os pontos de passagem de um feixe
de determinações *. Ela assinala que estes sujeitos não são livres
para produzir o discurso que quiserem porque não podem expri-
mit-se senão curvando-se às restrições da “prática discursiva”.
Lembramo-nos de que Michel Foucault definia esta última como
“o conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas
no tempo e no espaço, que definiram numa época dada, e para
uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as con-

5. Cf. R. Odin, “Pour sémio-pragmatique du cinéma”, Iris, Paris, vol. 1,


nº 1, 1983.
Em sua análise do processo de construção de uma audiência para o
cinema, Noél Burch se refere ao “modo institucional de representação”,
isto é, o conjunto de normas, escritas ou não, que historicamente foram
interiorizadas tanto por diretores como por técnicos e espectadores. Cf. seu
filme, Correction please or How we got into pictures, realizado para O
Arts Council da Grã-Bretanha, 1980.
192 À. e M. MATTELART

dições de exercício da função enunciativa ””. A própria noção de


prática discursiva é indissociável da de “formação discursiva”,
espaço marcado ao mesmo tempo tecnológica e sócio-historica-
mente, que define um regime de verdade — o regime do que
pode ser dito e do que pode permanecer não-dito.
Definir o gênero como “categoria étnica” é avançar na per-
cepção do “vínculo social” cuja existência é reafirmada pela te-
levisão e que lhe permite funcionar como dispositivo de ampli-
ficação em uma comunidade de significações.
Entretanto, ao mesmo tempo que confunde o campo de com-
petência dos territórios-nações, o processo de internacionalização
introduz um elemento de dupla fragilidade nas marcas de iden-
tidade etno-culturais que se configuraram historicamente nesses
territórios-nações. À diferença etno-cultural, enquanto correspon-
de a uma identidade histórica e geograficamente determinada, é
submetida à tensão pela norma da competitividade introduzida
no mercado dos bens culturais e pela forte tendência da conquista
de um público externo. A batalha das normas e padrões que se
desenvolve na esfera das novas tecnologias, ao mesmo tempo que
transgride os direitos nacionais, também transgride os universos
simbólicos. :
A ampla pesquisa encetada pela televisão estatal italiana, a
RAI, junto aos diversos sistemas televisivos dos países com eco-
nomia de mercado, avaliando os modos de produção por meio
do cálculo de sua rentabilidade no mercado internacional, de-
monstra que de agora em diante o melhor desempenho é daquele
que impõe a regra do savoir-faire, e que os outros podem apro-

6. M. Foucault, L'archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1966.


Contra o paradigma linear da comunicação, inúmeras pesquisas ressal-
taram que a audiência é, ao mesmo tempo, ponto de partida e de chegada,
que o consumo está contido na produção. Contra a verticalidade, elas
reivindicam o caráter circular. Citemos uma noção como “o efeito de re-
conhecimento” do semiólogo Eliseo Verón, a da “Competência comunica-
cional” do filósofo Jirgen Habermas, a dialética codificação /decodificação
do sociólogo Stuart Hall, noções todas que tornam evidente que a constru-
ção de um universo discursivo só pode se realizar a partir das formas
DER e discursivas preexistentes da parte do campo cultural do
usuário.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 193

priar-se dela. À autoridade do savoir-faire impõe-se como estilo,


e a autoridade do estilo é sua capacidade de bom desempenho,
ou seja, sua superioridade nos mercados.
Neste processo de desterritorialização, certos gêneros consti-
tuem matrizes universalizáveis, porém sob a condição de com-
binar os traços identificadores de sua filiação narrativa com o
novo dado técnico, foco de emulações perpétuas, produtor do
efeito de modernidade. A tendência para a combinação e asso-
ciação dos gêneros televisivos é largamente reconhecida como
um traço da pragmática televisiva. Pode-se contudo distinguir
uma tendência que se reforçou com a introdução dos critérios
de competitividade e rentabilidade no mercado dos produtos au-
diovisuais — a do supergênero. Isto é, a fusão de elementos
constitutivos de vários gêneros ao mesmo produto, e o reforço
da potencialidade deles, através dessa cirurgia. Já assinalamos
que um filme como Os caçadores da arca perdida apresentava-se
como uma condensação de todo o cinema de aventura, enquanto
Dallas situa-se entre a soap opera, o western e a saga familiar ”.
A partir dos anos 70, aliás, o “docudrama” inaugurado por séries
como Holocausto e Raízes manifesta a simbiose entre o gênero
documentário e diversos gêneros de ficção.
O supergênero multiplica as marcas de diferença e de repe-
tição, as expectativas cada vez mais referidas a uma topologia
da memória da comunicação, de agora em diante extraterritorial.
Este processo de concentração no plano simbólico, que extrai
uma grande parte de sua eficácia da multiplicação do “efeito-
gênero”, destaca hoje a hegemonia concreta do modelo hollywo-
odiano, a expressão mais notória no plano internacional desta
enorme intertextualidade gerenciada pela indústria da imagem.
A desterritorialização crescente da produção cultural, mais e
mais submetida à razão técnica, questiona consideravelmente
aquela noção de território e de etnia que definiu o espaço-tempo
no qual se gerenciam as identidades das formações discursivas.
Entre tantos outros, um ponto bastante geral continua sem solu-

7. Ver M. Mattelart, “Quels programmes pour quelle internationalisation?”,


La culture contre la démocratie? L'audiovisuel à [leure transnationale,
Paris, La Découverte, 1984.
194 A. e M. MATTELART

ção: seria a imagem menos ligada a um território do que a lín-


gua? Possuiria ela um potencial de universalidade maior do que
a língua? É o caráter não exclusivamente lingúístico das novas
tecnologias um aspecto essencial da abertura de comunidades de
memória não-territoriais *?

Um gênero suspeito

A internacionalização promove a ficção e, dentro da ficção, de-


terminados gêneros. Pode-se dizer sem risco que o melodrama,
de certo sob uma matriz industrial, revela cada vez mais seu
potencial de universalidade. A tendência é efetivamente para o
cruzamento e para a fecundação dos gêneros nos dispositivos
poderosos como os da indústria norte-americana. Mas uma coisa
é certa: o melodrama está na essência desta recomposição sin-
crética.
Sob denominações diversas que traduzem outras tantas va-
riantes, o melodrama está presente: soap opera, novela, fo-
lhetim. À
Um desvio de sentido fez com que o adjetivo “folhetinesco”,
derivado do substantivo “folhetim”, assumisse a conotação nega-
tiva que os olhares elitistas ocidentais têm lançado ao melodra-
mático — a própria imagem do espetáculo dito popular. Se o
status simbólico da televisão é menor que o do cinema, é ao
exibir melodramas que ela atinge o grau mais inferior deste
status.
O melodramático em sua versão televisiva, a soap, revisita
países que o haviam omitido em suas referências televisivas. É
precisamente o caso da França, que hoje, graças à demanda cres-
cente de programas de diversão e da consequente abertura do
espectro televisivo, é levada a acolher soaps norte-americanas,
novelas brasileiras e a fabricar in dommo longos folhetins que

8. É a questão que se propõe Bernard Stiegler em seu relatório Nouvelles


technologies, aspects des enjeux pbhilosophiques, Collêge International de
Philosophie, Paris, 1985.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 195

retomam a fórmula da soap opera. Existe aí um paradoxo: a


França produziu no século passado uma matriz de literatura po-
pular, o folhetim ?. Diferentemente do que se passou em outros
países, como a Gra-Bretanha, os Estados Unidos, a Espanha, o
México e o Brasil, não se reinvestiu maciçamente neste gênero
no vetor televisivo. É preciso ouvir novamente os diretores.
Yves Laumet, relatando sua experiência, insiste no insucesso de
seus esforços para promover o folhetim na televisão: “ um
fracasso total em relação a um gênero muito importante para
mim... O folhetim é um veículo muito mais importante que o
drama, porque especificamente televisivo. Potencialmente popu-
lar”. Sem omitir as responsabilidades dos dirigentes, nem tam-
pouco a reticência dos autores quanto a se comprometerem com
um gênero pouco nobre, Laumet procura esboçar as razões sociais
que poderiam esclarecer melhor esta perda de legitimidade de
uma tradição de produção popular: “Tenho a impressão de que
entre as duas guerras havia um meio popular relativamente ho-
mogêneo. E, do outro lado do mundo, um meio burguês e aristo-
crático, também relativamente homogêneo. Tudo claro. As noções
de injustiça social, de orgulho de pertencer à classe operária eram
evidências que se exprimiam na canção, entre outras manifesta-
ções. Estou surpreso de ver — é a experiência de minha família
e de tantas outras — que este meio deu à luz um outro. Aquele
que chamo de “os novos pequenos-burgueses”. É uma categoria
importante, que fornece referências, inúmeras lições... Tenho a
impressão de que as linhas mestras são menos nítidas. Creio que
há uma certa interferência que não permite mais dirigir-se ao
meio popular como os cineastas de antes da guerra o fizeram qi
Sem dúvida, a razão principal de uma crise da representação
do popular na realidade atual. Mas será que não passa um pouco
depressa demais por cima da longa tradição conflituosa que mat-

9. Procurando fazer o histórico de sua telenovela, as jovens indústrias


televisuais latino-americanas remontam todas invariavelmente ao folhetim,
cuja invenção é atribuída a Émile de Girardin e cujos primeiros praticantes
foram Eugêne Sue, Balzac, Dumas e Victor Hugo. Os numerosos artigos
publicados tanto no Brasil como na Venezuela ou em Cuba estão aí para
testemunhá-lo.
10. Y. Laumet, citado por J. Beaulieu, op. cit., p. 132.
196 A. e M. MATTELART

cou a visão do “povo” e do “popular” na produção cultural de


massa?
Desde suas primeiras manifestações, a literatura de folhetim
foi encarada pelo pensamento socialista como tendo sido inspi-
tada por uma ideologia populista. Basta reler a crítica radical de
Marx aos Mystêres de Paris, de Eugêne Sue. Usando a ironia
mordaz do estilo panfletário !!, Marx alfinetou a divergência pro-
funda em relação às exigências de um verdadeiro socialismo sob
as intenções socializantes e humanitárias do discurso de Sue. Co-
nhece-se o mal-estar experimentado pela crítica literária marxista
para fazer sobressair no romance do século XIX os aspectos
progressistas do Realismo em face do Naturalismo. Todos se re-
cordam das preferências de Lukacs pelo realismo de Balzac, ape-
sar das posições legitimistas deste último. Sabe-se da descon-
fiança declarada de Marx com respeito à obra de Zola, descon-
fiança que não se prendia somente ao engajamento deste último
contra a Comuna.
Será necessário esperar Gramsci, nos anos 20, para ver valo-
rizada pelo pensamento marxista a tradição francesa do romance
popular. Tradição que lhe servirá de referência para se interrogar
sobre a ausência de literatura nacional popular na Itália, isto
é, de literatura produzida por autores italianos e lida pelo povo
italiano. Comparado a Marx, que só atribuía a Sue a expressão
de uma “falsa consciência”, o teórico italiano via certamente
no folhetim o convite para viver “um verdadeiro sonho de olhos
abertos”, mas também “o fundo de aspirações democráticas que
aí se refletia 2”, É nas pegadas deste questionamento sobre a
literatura nacional popular que Gramsci desenvolverá seu con-
ceito fundamental de “intelectual orgânico” e, premonitoriamen-
te, posicionará a distância entre o Partido como intelectual cole-
tivo e o povo, entre a classe intelectual e o povo como sendo

11. Cf. K. Marx e F. Engels, La Sainte Famille, Paris, Editions Sociales,


1972.
12. A. Gramsci, Letteratura e vita nazionale, Turim, Einaudi, 1950.
Entre os romances populares citados por Gramsci, figuram as obras
de E. Sue, A. Dumas e Ponson du Terrail, às quais é preciso acrescentar
as obras de Dickens, dos romancistas russos e o romance gótico inglês.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 197

também a distância entre o sentir e o conhecer. Chegará até a


escrever: “O elemento popular 'sente' mas não compreende ou
não sabe sempre; o elemento “intelectual” sabe, mas não com-
preende e, principalmente, não 'sente' sempre...” E ele conti-
nuava, tentando precisar o que é somente uma outra forma do
vínculo entre a teoria e a prática: “O erro do intelectual con-
siste em acreditar que se pode saber sem compreender, e princi-
palmente sem sentir e sem estar apaixonado (não somente pelo
saber em si, mas pelo objeto do saber); isto é, em acreditar que
o intelectual pode ser um verdadeiro intelectual (e não simples-
mente um pedante) se permanecer distinto e afastado do povo-
nação, se não sentir as paixões elementares do povo, compreen-
dendo-as, explicando-as e justificando-as na situação histórica de-
terminada, ligando-as dialeticamente às leis da história, a uma
concepção superior do mundo, elaborada segundo um método
científico e coerente, o 'saber'; não se faz política-história sem
essa paixão, isto é, sem essa conexão sentimental entre intelec-
tuais e povo-nação... Na falta de tal vínculo, as relações do
intelectual com o povo-nação reduzem-se a relações de ordem
puramente burocrática, formal; os intelectuais tornam-se uma
casta ou um sacerdócio "”,
Voltar atrás é importante porque a persistência com que se
invoca o povo no atual discurso da mídia indica que o povo é
sempre a cidadela a tomar nos procedimentos de legitimação dos
poderes e dos contra-poderes, contrariamente ao que pensa Jean-
François Lyotard; indica também que o tema das alianças e da
representatividade popular está sempre na ordem do dia, mesmo
quando se proclama seu enfraquecimento *. O desaparecimento
de uma idéia específica do povo não pode efetivamente ser con-
fundido com o fim da idéia de povo e de sua necessidade. Hoje,
a grande diferença é que a idéia de povo tende a ser absorvida
pela idéia de público popular. A crise da idéia de serviço estatal

13. A. Gramsci, “Notes pour une introduction et une préparation à I'étude


de l'histoire de la culture”, Cahiers de Prison, Paris, Gallimard, 1978. Ver
também a análise dos textos de Gramsci sobre a cultura popular: A.
Cirese, “Conceptions du monde, philosophie spontanée, folklore,” Dialecti-
ques (número especial sobre Gramsci), n.º 4/5.
14. J. F. Lyotard, La condition postmoderne, op. cit.
198 A. e M. MATTELART

tanto no campo do audiovisual como no da educação pode tam-


bém ser interpretada como uma crise da representação do povo
e do popular. Esta interpretação parece de qualquer modo justi-
ficada, quando se observa como se recompõe a relação entre de-
terminados setores da classe intelectual e o povo na celebração
das bodas da mídia: ontem encerrados num elitismo cultural,
hoje estes intelectuais tendem a dar os primeiros passos para a
reconciliação com o povo-público, aderindo de maneira ruidosa-
mente acrítica àquilo que antes haviam desprezado não menos
ruidosamente !.
Uma coisa é certa: no atual movimento de retorno ao “popu-
lar” pode-se ler também a vontade de reconsiderar o enorme con-
tra-senso cometido, vestígio material de uma má fé imemorial.
Conforme dizia Annie Le Brun, que estudou como, à sombra
do Século das Luzes, o romam noir havia carreado a subversão
sádica e as proibições e inquietações pré-revolucionárias, o “po-
pular” discute aquilo que permanece o impensado e o não-dito
da classe letrada: “O castelo sombrio”, diz ela, “é a cristalização
dos desejos, das angústias e das questões que os indivíduos que
na época se dizem pensadores são incapazes de assumir. É tam-
bém o que ocorre atualmente com a ficção científica ou com o
romance policial. É precisamente neste plano que são ventilados
os problemas essenciais, e não no romance contemporâneo. Às-
sim, no século XVIII, enquanto os filósofos se subtraem às
questões que surgem com a incredulidade, o roman noir não
somente lhes cede seu espaço, como também é neste espaço que
se apresenta pela primeira vez, de maneira dramática, a defron-
tação do sujeito com o objeto, do único com a maioria, do lírico
com o mecânico. Ou seja, toda a problemática da modernidade 1º”.
Os historiadores do melodrama, que, partindo da adesão po-
pular a este gênero, tentaram comptreender-lhe o funcionamento
simbólico, tiveram que estudar concomitantemente as estratégias
acionadas para censurá-lo. Para Jacques Goimard, o melodrama

15. Ver sobre este ponto o capítulo “L'évolution d'un rapport: Intellec-
tuels/culture médiatique”, in À. e M. Mattelart, Penser les médias, op. cit.
16. Entrevista com A. Le Brun a propósito de Les cháteaux de la subver-
sion (Gallimard, 1986), in Libération, 18 de março, 1986.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 199

é antes de tudo o teatro do desejo: recompensa os impulsos, en-


quanto “o superego recebe dele apenas satisfações elementares "”.
E é em grande parte por isso que será renegado pela elite intelec-
tual tradicional e que só gozará de um breve acréscimo de legiti-
midade durante a época romântica.
Atualmente, o que contribui também para tornar possível a
nova leitura dos gêneros populares é o fim de uma concepção
do plano político inteiramente gerenciado dentro do mundo da
produção e fora da subjetividade das relações intersubjetivas e
da cotidianidade. Por longo tempo, a representação edificante,
heróica, voluntarista do povo e do popular, veiculada pelas ins-
tituições da classe operária e não por seus movimentos e suas
resistências, impediu que se percebesse a existência e o sentido
de uma matriz cultural diferente daquela outra matriz racional-
iluminista dominante, que exaltava a ilustração da classe operária.
Paralelamente a esta, desenvolvia-se uma matriz simbólico-dra-
mática que não operava por conceitos e generalizações, mas por
imagens e situações, e que, uma vez rejeitada pelos aparelhos
educativos e políticos, procurou seu campo de expansão nas tro-
cas incessantes e desiguais entre cultura de massa e cultura popu-
lar, entre produção cultural de massa e práticas populares.

O desafio pós-moderno

“Nada de tango no antro do saber!”


Foi com estas palavras que o músico de renome internacional
Astor Piazzola se viu um dia dispensado pelo reitor da Univer-
sidade de Buenos Aires da Faculdade de Filosofia onde os estu-
dantes o haviam convidado a tocar 8, Quantos, a exemplo do
compositor argentino, não conhecem semelhante amargura? Os

17. J. Goimard, “Le mot et la chose”, in Les Cahiers de la Cinémathêque,


Perpignan, 1980, número especial dedicado à história do melodrama no
cinema, n.º 28, p. 21.
18. Entrevista com Astor Piazzola por ocasião do Festival de Montreux,
Libération, 21 de julho, 1986, p. 29.
200 A. e M. MATTELART

temas de uma cultura dita popular esperaram muito tempo para


adquirir uma certa legitimidade nos círculos do nobre saber.
Hoje em dia, parece que o direito de cidadania está em vias
de ser concedido às sensibilidades que se dedicam a estes temas.
Nos Estados Unidos assiste-se, por exemplo, à multiplicação de
pesquisas sobre a soap opera, a literatura sentimental, o romance
gótico, etc. Desse ponto de vista, é interessante a evolução do
sociólogo Todd Gitlin, da Universidade da Califórnia. Trabalhou
longamente os conceitos de ideologia e de hegemonia, aplicando-os
em seu estudo crítico das estratégias informativas das neiworks
em relação ao movimento estudantil dos anos 60. A seguir, ela-
borou uma volumosa pesquisa no seio da máquina da indústria
televisiva e da produção dos grandes seriados como Hill Street
blues, Lou Grant, MASH e Today's FBI". Na América Latina
desenvolveram-se consideravelmente as análises da interação
entre as expressões da cultura de massa e os públicos populares.
Graças ao cataclismo no campo audiovisual, a Europa experi-
menta recentemente uma certa efervescência da reflexão sobre
os gêneros televisivos. A Itália se distingue por duas razões: foi
o primeiro país a conhecer a destegulamentação e também o pri-
meiro onde vimos determinados setores da classe intelectual en-
carregarem-se da questão da serialidade com uma acuidade no-
tável”. Alguns responsáveis pela televisão estatal haviam discer-
nido muito bem a importância prospectiva de uma pesquisa neste
domínio, para enfrentar o desafio industrial e o da internacio-
nalização ?!,
Esta nova legitimidade, aliás sempre relativa, chegou por cami-
nhos tortuosos e mesmo contraditórios.
Na verdade, em primeiro lugar ela correspondeu à crise de
uma concepção do saber. Abandonando a análise dos grandes sis-

19. Ver Inside prime time, op. cit.


20. Ver a obra Ai confini della cerialità, compilação de artigos e comuni-
cações de Alberto Abruzzese, Amato Lamberti, Achille Pisanti e outros,
publicada pela Societã Editrice Napoletana, 1984.
21. O interese permanente da RAI por uma reflexão ao mesmo tempo
teórica e prática é ilustrado por seu Departamento de Pesquisas, que fi-
nancia pesquisadores externos à instituição e publica a coleção 1 programmi
transmessi.
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 201

temas, a nova sensibilidade que tomou posse nas ciências sociais


revaloriza os temas do cotidiano, as experiências que se realizam
no ordinário da cotidianidade. Ela desloca a tendência raciona-
lista, o ideal de objetividade por ela consagrado, sua visão de
um sujeito unificado que não está em contradição consigo mes-
mo. Perturba o dualismo que esta tendência estabelecia entre
sujeito e objeto e que, de acordo com sua busca de uma signifi-
cação unificadora, a fazia delinear o mundo social como algo
exterior e conceber o inteligível em oposição à vida sensível.
No horizonte, desenha-se um outro paradigma: o do reco-
nhecimento do sujeito e da pertinência de uma teoria que parte
das percepções deste último, de sua subjetividade; que acolhe as
vacilações da significação; que entrevê a comunicação como um
processo dialógico onde a verdade, que não será nunca mais úni-
ca, nasce da intersubjetividade. Contra o império da estrutura
e a idéia de permanência, de reprodução estática a ela associada,
lança-se o status do insignificante, do anônimo, do efêmero, do
incidente, do fato comum, do instantâneo. Contra o herói da
teoria, contra o herói da produção, contra o herói da história,
lança-se o status do homem sem qualidade.
A nova legitimidade do espetáculo televisivo como tema de
reflexão e de pesquisa coincide com o desagrado pela leitura ideo-
lógica e pela concepção instrumental da linguagem sobre a qual
ela repousa, bem como pela noção do “tudo ou nada”, da “do-
minação ou liberação”, que a associa à posição racionalista: a
razão ou o caos da irracionalidade. As novas tendências preferem
partir da gratificação proporcionada pelos gêneros populares,
mesmo se na base há alienação. De qualquer modo, a definição
da popularidade não pode omitir esta adesão emocional e mesmo
passional das audiências ao espetáculo. Desta perspectiva, em
vez de constituírem apenas sistemas de idéias que estruturam O
discurso, as ideologias são também encaradas materializando-se
nas práticas rituais de consumo, e nas formas institucionalizadas
de produção, tais como, por exemplo, os gêneros da ficção tele-
visiva. À instituição televisiva não é mais entendida como o apa-
relho que gerencia a reprodução social e ideológica da ordem
existente, mas como o espaço contraditório onde se negocia a
202 A. e M. MATTELART

significação e onde, no jogo das mediações, se cria e se recria a


hegemonia cultural.
A nova visão a respeito da televisão se beneficia também da
crise de uma determinada idéia da crítica social. É um aspecto
da nova realidade e da nova épistémé, mais difícil de se com-
preender por causa de sua ambivalência, pois bem pouca dis-
tância separa a contestação de certas formas que a crítica social
historicamente assumiu da negação do fundamento de sua ne-
cessidade. Recusa das formas de ontem ou rejeição da própria
idéia, esta crise inscreve-se todavia num contexto profundamente
trabalhado pelas mutações científico-técnicas, pela renovação do
interesse pelo indivíduo-sujeito face ao coletivo, pela recompo-
sição dos grupos e das classes, pelas novas lógicas competitivas
entre as culturas mediatizadas pela técnica e por um mercado
num cenário planetário.
O risco é aqui particularmente sensível, propício aos não-ditos
e aos subterfúgios, pois é sobre a crítica enquanto função social e
enquanto saber-poder que se construiu a legitimidade da classe
intelectual e que se definiu sua relação com os outros grupos e
classes. Ora, a auto-reflexão torna-se difícil quando a nova legi-
timidade não se fundamenta mais na consciência' crítica, na nega-
tividade. Se a classe intelectual hoje fala tão pouco efetivamente
de si mesma e se isola nos brilhos superficiais não é porque,
para continuar a crer em sua legitimidade, se ela se integra, é
justamente negando sua própria integração?
Por ocasião dos dias dedicados às televisões brasileiras pelo
Centro Georges Pompidou em Paris, no início de 1985, Michel
Maffesoli, diretor do Centro de Estudos do Atual e do Cotidiano
na Sorbonne, anunciava, no documento de apresentação: “Em
vez de clamar sempre contra a alienação, talvez fosse preciso
ver como uma comunidade se forma, em pontilhado, a uma hora
fixa, por meio de aparelhos de televisão que se interpõem ...
Novo deus lare, a televisão permite ao mesmo tempo um culto
familiar e uma agregação universal. Trata-se certamente de uma
análise algo contrastante. .. mas, em todo caso, isto permite evi-
denciar, por trás da lamentação intelectual por demais ouvida,
que o povo tem o sentido do presente; encarar a vida pelo seu
lado bom é o que todo analista não demasiadamente desconecta-
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 203

do da existência comum pode observar em todas as situações e


ocorrências que marcam a vida de nossas sociedades. Há um
hedonismo popular que, em suas expressões mais ou menos
grosseiras ou triviais, não deixa de chocar grande número de
belas almas 2”. O novo acolhimento reservado ao corriqueiro
televisivo que o texto de Maffesoli tão bem traduz manifesta
sem nenhuma dúvida a reconciliação com a arte de bem viver no
dia-a-dia dos públicos populares. Entretanto, manifesta também
a dificuldade de sair dos limites do instante para pensar a socie-
dade como objeto, para pensar a utopia. Porque — e é a face
velada deste hedonismo no cotidiano — o movimento da épis-
témé que reflete sobre o consumidor comum insinua ao mesmo
tempo o enfraquecimento da idéia da necessidade de mudar a
vida e o mundo e de exercer um poder coletivo sobre a produção
das coisas. O entusiasmo pelo espaço liberado dos saber-viver-
saber-consumir não faz recuar para a sombra um sistema produ-
tivo que funcionaliza cada vez mais o espaço dos saber-fazer?
Pós-estruturalismo, pós-racionalismo, pós-modernismo, estas
correntes do pensamento filosófico, sociológico e estético con-
temporâneo manifestam o desencanto diante das ideologias que
pretendiam servir de guia para reconstruir a sociedade sobre
bases menos desiguais. A idéia de projeto e a idéia de progresso,
sustentadas por um humanismo triunfante, perderam sua credibi-
lidade e seu poder de adesão. Falharam tanto o discurso das
luzes como o discurso marxista sobre a emancipação da classe
operária.
O problema é que, entre constatar o fim de um modelo de
projeto social e decretar a inconsistência do social, não há senão
um passo. E este é dado alegremente logo que desaparece a
idéia da necessidade de todo projeto coletivo e que desponta
para o intelectual a tentação do desengajamento ou do décro-
chement *, segundo o termo de Barthes, a tentação de aderir

22. M. Maffesoli, documento de apresentação da retrospectiva das televi-


sões brasileiras, 21 de janeiro-3 de fevereiro de 1985, Centro Georges
Pompidou, Paris. Citávamos já este texto em Penser les médias.
* “Desengate”. (N. da Revisora Técnica.)
204 A. e M. MATTELART

ao ideal de completa a-topia do sujeito teórico: falar de nenhum


lugar, não ser mais situável de modo algum.
A contribuição destas correntes para a evolução e abertura
das problemáticas da comunicação e das técnicas audiovisuais é
concreta. Logo que se ultrapassa seu efeito de moda e que se faz
a triagem neste albergue espanhol que é o pós-modernismo em
particular, deve-se de fato admitir que no campo da linguagem
(teoria do conhecimento, hermenêutica e semiologia) as filoso-
fias pós-modernas participam deste trabalho de demolição do “lo-
gocentrismo ocidental”, empreendido além disso por outras disci-
plinas das ciências sociais. Sua contribuição está no interesse que
elas manifestam por outras cosmovisões, onde a herança racio-
nalista é menos nítida, ou, ainda, que são marcadas por outros
tipos de racionalidade. A seu ativo, é preciso acrescentar a pes-
quisa de uma teoria da comunicação que recusa a influência de
um pensamento organizado de um ângulo rigidamente lógico-
conceitual e privilegia a análise da relação interativa, a troca
verbal e não-verbal com o outro, o pensamento dialógico, argu-
mentativo, analógico-persuasivo.
Outra contribuição destas correntes de pensamento é a de su-
blinhar a importância do continente, a preponderância dos cir-
cuitos e dos dispositivos sobre os conteúdos da troca e da infor-
mação, Contra uma tradição de cunho fortemente sociológico
e militante que atribui um valor absoluto ao conteúdo, esta nova
corrente valoriza os aspectos formais e funcionais dos sistemas
de comunicação. O interesse desta nova sensibilidade está em
despertar a atenção para esta realidade de implicação sensorial,
anunciada com o aparecimento das novas tecnologias de comu-
nicação, e que havia sido relegada pelo enfoque sobre a idéia
de “apropriação social” e de “participação”. Filiadas a algumas
das intuições de Mc Luhan, estas novas correntes de estética da
comunicação permitem isolar o campo da evolução das percep-
ções e da imersão do imaginário contemporâneo, dentro de um
contexto saturado de tecnologia.
Se sua contribuição é real, se contribui para liberar a aborda-
gem das práticas culturais e artísticas de um conceito de social
quadriculado e hierarquizado e de um conceito linear de história,
o pós-modernismo não deixa de participar intimamente da legi-
+
DESESTATIZAR O PENSAMENTO 205

timação de novos esquemas de poder e de novos modos de sub-


missão. Revela-se em especial correlação com a emergência das
visões cibernéticas dos sistemas sociais e com o conservadorismo
do retorno ao princípio de cada um por si.
Não é fácil — e aqui não é o lugar nem o momento de tentá-
lo — separar dentro do pós-modernismo o que depende do novo
cinismo ambiente, daquilo que faz parte de uma pesquisa séria
de intelectuais que continuam a praticar sua arte. Conforme se
notará, os debates mais significativos situam-se na área das prá-
ticas da linguagem. O que revela ao mesmo tempo uma daslimi-
tações desta corrente de pensamento que tende a reduzir o social
ao especto linguagem, a exemplo do que paradoxalmente fez na
sua época a concepção estruturalista da palavra e da linguagem.
Ela encerra-se na análise das práticas de linguagem, e, por outro
lado, não dispensa o mesmo cuidado em observar com sutileza
as lógicas impositivas que operam a reorganização social, econô-
mica e política dentro do novo contexto da reindustrialização das
grandes sociedades ocidentais. Não é nisto que consiste um de
seus impasses? (Quando um certo pós-modernismo se empenha
nessas análises, não é para concordar com uma visão determi-
nista do desenvolvimento científico e técnico? Pelo menos, é a
impressão que deixava um dos principais ensaios sobre a condição
pós-moderna [Lyotard, 1979] sem prejulgar a evolução do pen-
samento deste autor.)
Os resultados perniciosos do logocentrismo na análise dos
atos da linguagem são contestados (negados) com perfeição. Po-
rém, tendo decretado o fim do vínculo social e o engodo do
social, não se compreende como o logocentrismo possa reciclar-se
nos dispositivos pesados e leves da revolução pós-industrial. No
reverso de um pensamento que se diz liberado da modernidade,
no reverso da reterritorialização teórica a partir do subjetivo,
desenvolve-se uma reterritorialização — pragmática e planetária
— a partir de uma dinâmica renovada da idéia de progresso/
modernidade. As técnicas de comunicação são um de seus veto-
res privilegiados (materiais e imateriais).
No momento da internacionalização da produção dos progra-
mas, as narrativas televisivas provenientes de culturas extrema-
mente diversas sem dúvida tiram boa parte de seu poder de
206 A. e M. MATTELART

sedução do fato de que parecem constituir respostas para 6 logos


fatigado da modernidade ocidental. Podem parecer a oportuni-
dade oferecida por um mercado liberado. Oportunidade de uma
reterritorialização dos impulsos nostálgicos por meio do imagi-
nário, para culturas que permaneceram mais afastadas da razão
analítica e mais próximas do afetivo e das formas de organização
da experiência coletiva, as quais rompem o isolamento hedonista
do indivíduo abstrato das grandes metrópoles pós-industriais.
Implicitamente, estas culturas trazem às civilizações da palavra
escrita a polissemia da magia, eterna reciclagem de projeção dos
desejos europeus. O Ocidente sempre teve dificuldade de conce-
ber o Terceiro Mundo como uma região da Terra onde também
existisse um cotidiano vivido, onde a experiência humana tivesse
também seu caráter comum. Territórios a libertar ou territórios
redentores: tanto a militância revolucionária como o idealismo
cristão, como as estratégias turísticas do exotismo trabalharam
este preconceito, este mal-entendido cultural.
Hoje, na era da produção serializada, o Ocidente confronta
sua imagem mental e seu sonho latente com os produtos de uma
indústria da imagem. E o que descobre? Descobre que países
como o Brasil têm um cotidiano vivido, e ainda que vivem uma
modernidade da imagem, uma era tecnológica, uma experiência
do fazer cujos fios tecem um liame inextrincável entre raciona-
lidade técnica e imaginário coletivo. Todo o problema está em
saber se o logos permanece propriedade exclusiva do Ocidente
pós-industrial ou se já está mestiçado nos trópicos, com perfor-
mances híbridas.
Sobre os autores

Armand e Michêle Mattelart, profundos conhecedores da


América Latina, são autores de numerosas obras sobre cultura
e comunicação publicadas em diversas línguas, dentre as quais
podemos destacar: A Cultura contra a Democracia? (em colabo-
ração com X. Delcourt), São Paulo, Brasiliense, 1987 De [usage
des médias en temps de crise (1979) e Penser les médias (1986).
TRT!
TECCI
Impressão e Acabamento:
Scortecci Gráfica
Telefax: (11) 3815-1177
grafica(Dscortecd.com.br
e Brasi,em pouco: Ee e FT coa

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internacional. A telenovela EE E

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“comunicação da Europa, Michele e Armand IVETUcIEia
conhecedores profundos da cultura e da política latino-
americanas, fornecem aqui elementos teóricos
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PO Comunicação, Sociologia

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