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A PSIQUE JAPONESA Grandes temas dos contos de fadas japoneses Hayao Kawai colegio AMOREPSIQUE oferinina + Aborto -pedaeronovncda 1 Asdanarearnuher 1 8olen 1 amined corsets -entreritor com Maton Woodman M. Woodman Aide frida RE Rothenbory ‘Neher meveraem nea Gola humana demon vseedomancdo ise, ‘Snger + Aprons spr, 0, Corbett "gem gid MVoodnan Cima porsatiogio tein S872 Besina more dss. sad + mado doternina E Neumann (Osmeetorda ater 1 Velngee sobre oma mater Bonavente omacatine CGrando alma orca Jackson Femeseseur fos hL-Petats «Him ara + Osdeneteohoren 1.8080 « Opatecpsie AP Lina Fhe 1 become desarume Hos Paclogineratigio ‘ate clea Peparaopereanovareida, ‘te ‘eoorga qe zoos PDoey ‘armed cia. 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Maria Ele Spaccaquerche Titulo original The lapanese Psycho Major Mots in the Fairy Tales of Japan ‘Spring Publieation Ine, 1997, 1S8N0-68214-268.9, Imager da copa ‘Moon Meiden, de Warwick Gable Tradugto Gustave Gerhoim Edoragso PAULUS Impressio e acabamento PAULUS. ‘opautus—2007 ua raneco Cz, 229+06117-091 Sto Paulo (Bra Fax( 11) $579-3627 “Tel. (11) 5084-2066 rw paulus.combr + editrial@pauluscombr ISBN 948-85:249-2745-1 INTRODUGAO A COLEGAO AMOR E PSIQUE Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, 0 homem descobriu novos caminhos que o levam para a tua interioridade: 0 seu proprio espago interior torna-se um lugar novo de experiéncia. Os viajantes destes cami- nhos nos revelam que somente o amor é eapaz de gerar 1 alma, mas também o amor precisa de alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicagbes psicopatolégicas as nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é Deste modo é que poderemos reconhecer que essas feri- das e esses sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade ea realizagao de nossa totalidade. Assim a nossa propria vida carrega em si um sentido, o de restaurar @ nossa unidade primeira. Finalmente, nao 6 0 espiritual que aparece primeiro, mas 0 psiquico e depois o espiritual. # a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma sou sentido, © que significa que a psicologia pode de novo estender a mao para a teologia. Esta perspectiva psicol6gica nova € fruto do esforgo para libertar a alma da dominacdo da psicopatologia, do espirito analitico e do psicologismo, para que volte a si 5 mesma, a sua prépria originalidade. Ela nasceu de refle- xoes durante a pratica psicoterdpica, e estd comegando a renovar 0 modelo e a finalidade da psicoterapia. E uma nova visdo do homem na sua existéncia cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimensées diferentes de nossa existéncia para podermos reencontrar a nossa alma. Hla poderé alimentar todos aqueles que sao sensfveis A necessidade de inserir mais alma em todas as atividades humanas. A finalidade da presente colecao é precisamente res- tituir a alma a si mesma e “ver aparecer uma geracao de sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem da alma”, como C. G. Jung 0 desejava. Léon Bonaventure AGRADECIMENTOS Gostaria de demonstrar a minha profunda gratidéo pelas seguintes pessoas, sem as quais a traduc&o e pu- blicagdo da minha obra Mukashibanashi to Nihonjin no Kokoro (Contos de Fadas e a Psique dos Japoneses) seria impossfvel ‘Aidéia deste projeto partiu inicialmente do Dr. James Hillman, que fez todo o planejamento necessério. Embora eu estivesse entusiasmado com essa proposta, nfo acre- ditava que teria o tempo e 0 espago necessarios para me devotar ao projeto. Compreendendo a minha situagéo, a Sra. Gilda von Franz, antiga presidente do Instituto C. G. Jung de Los Angeles, criou as condigdes ideais para mim Ela programou uma série de palestras sobre os contos de fadas japoneses no instituto no outono de 1984, o que permitiu que eu me devotasse A tradugéo durante minha estadia em Los Angeles. A Sra. Joyce Ashley, amiga da Sra. Franz, foi muito gentil e deixou que eu me hospedasse na sua casa maravilhosa enquanto ela estava em Nova Torque. O Dr. Marvin Spiegelman, meu antigo analista, o Dr. Mokusen Miyuki, o Sr. Gerow Reece e sua esposa Sa- chiko assistiram as minhas palestras e me estimularam a pensar em inglés; isso se mostrou uma ajuda inestimavel nos meus esforgos tradutérios. Um agradecimento especial vai para o Sr. Reece, que revisou o meu inglés frase por a frase, e para a Sra. Reece, que traduziu os contos de fadas japoneses que constam do Apéndice. Também sou muito grato a Srta. Mary Helen Sullivan, da Spring Publications, por seus conhecimentos editoriais. Gostaria de agradecer de coragao a todas as pessoas envolvidas, esperando sinceramente que esta obra sirva para aumentar a compreensio entre os japoneses e 03 povos do Ocidente. NOTA AO LEITOR Os tradutores e 0 editor gostariam de lembrar a0 leitor que os principais contos de fadas discutidos no livro estiio impresses no Apéndice. Pode ser interessante ler estes contos antes como uma forma de orientacao. & importante lembrar que o contexto determina se uma palavra japonesa é singular ou plural. Assim, Yama- uba e Oni — por exemplo — podem ser um ou outro. As consoantes japonesas séo pronunciadas como no inglés, as vogais como no portugués (vogais “fechadas”: é, 8) por exemplo saké (vinho de arroz) 6 “sa-qué”, -hime (princesa) é“ri-mé”. PREFACIO Gary Snyder Embora 0 Japao seja supostamente um patriarcado, 0 primeiro compromisso espiritual doseu imperador é com vaa ancestral, a grande Deusa do Sol, Amaterasu. Dizem que uma vez por ano ele faz uma refeigao ritual solit oom ela em um quarto remoto no Grande Santuério de Ise. & Lua, na mitologia japonesa, 6 uma palavra masculins, hao feminina. As primeiras referéncias chinesas a0 Japao ve antes mesmo de o Japao ter um sistema de escrita préprio ~ descrevem-no como uma terra de tribos guiada pela“Rai- nha Pimiko”. As fontes chinesas daquela época descrevia® esses i]héus como amantes da misica eda bebida, e diziam {que seus lideres religiosos eram mulheres xamas. A Deust ao Sol, em um mito antigo e fundamental, sai do seu isole- mento e 6 levada para uma caverna pela danga quase sem roupas de uma deusa desordeira chamada Ame-no-Uzam? ¢ pela risada estrondosa dos deuses ao redor. (© Japao possui um grande estoque de contos popull: res, mukashibanashi, “contos de antigamente”. Eles estio agora disponiveis para oleitor japones moderno por meio sar olegues exaustivas edo conhecimento de grandes fo Cloristas como Kunio Yanagita e Keigo Seki. Os contos j poneses provaram fazer parte do grande corpo mundial folelore, com temas que reconhecemos instantaneamen'* chegando até eles por meio do nosso proprio conhecimento, u digamos, da obra de Grimm ou de uma antologia indiana como 0 Panca Tantra. As semelhangas e diferengas entre estas histérias perenes de morais e mégicas suscitam um estudo e uma especulagdo interminéveis. Todos os folclores do mundo possuem figuras femi- ninas poderosas, mas 0 Japio talvez. Seja especialmente rico nesse assunto. Donzelas magicas que so passaros su- persensiveis, velhinhas amaveis que sao canibais,noivas que devoram tudo, bruxas das montanhas que admiram os dangarinos humanos, e muito mais. C.G. dung e os seus seguidores perceberam que 0 folclore e a mitologia sfio uma fonte de compreensdo das profundezas da mente humana. Eles desenvolveram um método de anéllise que vai revelando pouco a pouco maneiras de identificar os elementos e as dindmicas da alma, Hayao Kawai, um junguianojaponés, é um inovador ao aplicar esses métodos. Fazendo referéncia principal- mente ao trabalho de James Hillman e Erich Neumann, ele encontra peculiaridades distintivas nas histérias ja- ponesas, enriquecendo a nossa compreensdo da cultura japonesa e da sua personalidade cultural. Ele defende ‘que, “psicologicamente, podemos dizer que os olhos atra- vés dos quais os japoneses olham 0 mundo localizam-se nas profundezas inconscientes e ndo na consciéneia”; conclui que “a figura feminina é a que melhor representa ego japonés”. Ele comenta sobre a forga do lago pai-filha no dapao, dizendo que no Ocidente a relagdo pai-filho 6 a mais importante. E de intimeras maneiras ao longo do livro ele chama atengio para a forea e a diversidade da imagem feminina, dizendo: “Os varios tipos de mulheres que aparecem nas historias deveriam ser reconhecidos como imagens que vo trocando de posigéo, nfio como estagios de desenvolvimento. Essas figuras femininas protéicas representam a mente japonesa: camadas muil- tiplas criando uma totalidade linda’. 12 Isso 6 muito valioso. E como se néo bastasse, ele encara a questo da Divindade. Nos uiltimos séculos no Ocidente tudo tem sido definido sob a luz de uma divin dade masculina dominadora. A fora equivalente na. Asia oriental, como diz. Kawai, 6 0 “Nada”. Um leitor america- no desavisado pode se perguntar como ele chegou af. As credenciais para o seu argumento, que parecem obscuras para alguns, sdo, no entanto, de total confianga. Os an- tigos textos taoistas de Lao-tsé e Chuang-tzu, quinto a terceiro séculos a.C., fazem uso de metéforas argutas © sutis e propdem a profundeza, utilidade e forea espiritual do que eles chamam de Nada. O pensamento budista da fndia, que apareceu um pouco mais tarde, baseou muito da sua prética em uma idéia rica ¢ criativa de “vazio”, definida como nao-substancialidade, auséneia de si-mes- ‘mo, interconectividade, potencialidade ¢ a pratica do desapego. Essa postura filoséfica esta na base de quase todo 0 budismo Mahayana. No Japao contemporaneo, a filosofia do Nada possui uma representagio secular muito forte e respeitada nas obras da escola de filosofia de Kyoto fundada pelo Dr. Keitaro Nishida. Correndo 0 risco de falar demais, gostaria de mostrar rapidamente como esse aspecto da histéria acontece ‘Um lenhador aproveita um dia lindo, em que ele esta muito feliz, para simplesmente sair passeando pela floresta. Ele dé de cara com uma manséo onde é recebido por uma linda mulher que aceita sua promessa de nao xeretar pela casa, deixando que ele tome conta de tudo, ‘enquanto ela vai passear. Contudo, ele quebra a promes- sa e entra em varios quartos, onde encontra mulheres jovens e elegantes que desaparecem de sua frente; por fim ele encontra, deixa cair e quebra trés pequenos ovos de passaro que se transformam em rouxindis ¢ saem vyoando. A dona da casa volta, encontra-o nesse estado, censura-o tristemente, transforma-se em um pssaro e 13 sai voando. Ele acaba de pé, sozinho, em um claro vazio da floresta. O lenhador resolve ento se isolar bem no fundo da floresta e viver sozinho como um modesto carvoeiro, tor- nando-se nada, um tipo de peniténcia Por sua transgres- sao, ¢ assim ele se torna parecido com um personagem conhecido como Goro em outra histéria. Nessa outra histéria, uma mulher de coragao forte, que abandonou o seu marido tolo e arrogante devido ao seu desrespeito perante 0 reino espiritual, chega A cabana de Goro. Ela pede abrigo a ele. Embora ele diga que sua cabana 6 muito modesta para ela, ela insiste. Depois, ela pede Goro em casamento de forma direta e, embora a principio ele recuse, ela insiste. Depois de casados, eles descobrem que os fornos de carvao estdo cheios de ouro. Como uma parabola do coragao, como sugere Kawai, a Jovem corajosa nao éninguém menos do que a mulher que voou e abandonou o lenhador por causa das suas trans- gressdes, Sua forte vontade e consciéncia de si-mesma e de propésito na vida possibilitaram que ela se livrasse dos relacionamentos errados, ¢ ela encontra um caminho até o lenhador (agora, Goro), assim como ele encontrou 0 caminho até ela antes, e agora ambos esto prontos um Para 0 outro. Esse é um modelo que vem da tradigao mais antigae faz uma proposta para o presente: um modelo que defende a idéia de que quando um homem é capaz de ser “nada” (assim como Cabeza de Vaca, om uma histéria completa- mente diferente, mas relacionada com essa de uma forma incrivel), o casamento se torna possivel. A potencialidade inerente ao “vazio” pode ento se juntar & energia espi- ritual (vista aqui como o feminino); um casamento que produz bén¢aos infinitas para todos. A“mulher determinada” que sai de um canto profun- do da psique japonesa é, realmente, um grande modelo 14 para 0 presente. Tendo em mente que na linguagem da alma os termos “mulher” e “homem® ndo se referem as caracteristicas sexuais, mas a posigdes-chave do ser, po- demos todos ter esperanca de desenvolver nossas capaci- dades de “mulheres determinadas” e ‘homens do vazio”. Eo ouro, é bom enfatizar, nao se refere Aquele metal cujo prego flutua em Zurique, mas a uma riqueza de sabedoria © compaixao que s6 aumenta quando a damos de presente aos outros. O livro de Hayao Kawai esta cheio de voltas maravi- Ihosas. Os contos japoneses possuem qualidades préprias especificas e encantadoras (assim como todos os contos populares), de modo que nunca estamos lidando simples- mente com dados familiares no jogo da anéliise mitica. O pensamento do Sr. Kawai é vivaz, intuitivo e inventivo. O seu livro encantador. Gary Snyder 19 de fevereiro de 1996 Capftulo um O TEMA DO “QUARTO PROIBIDO” Acasa do rouxinol O tema do “quarto proibido”, encontrado em muitos contos de fadas no mundo inteiro, aparece em histdrias encontradas em varias partes do Japaio. Um bom exem- plo 6A casa do Rouxinol”, 196A no monumental Nihon Mukashibanashi Taisei de Keigo Seki (Compilagao dos Contos de Fadas Japoneses, a partir daqui CCFJ).! A historia diz. assim: ‘Um jovem lenhador entrou em uma floresta ¢ dew de cara com uma mansdo maravilhosa da qual ele nunca ouvira falar. Ao entrar na manséo, ele encontrou uma linda mulher que pediu que ele tomasse conta da casa pois ela precisava sair rapidamente. Ao sair, ela proibiu-o de olhar dentro dos quartos e ele prometeu a ela que nao olharia, Quando ela se foi, no entanto, ele quebrou sua promessa. No primeiro quarto, ele viu trés lindas garotas varrendo; mas, a0 ver 0 lenhador, elas desapareceram na mesma hora, voando como passaros. O lenhador saiu 2 Keigo Seki (org), Nihon Mukashibanashi Taisei, 12 vols. Téquio: Ka- okawa Shoton, 1978-80, Sessenta e trés contos desta obra foram publicados. fem inglés pela University of Chieago Press como Folkiales of Japan Contos de Fada do Japto}, 1963. 17 olhando todos os quartos ¢ viu que eles continham muitos tesouros. No sétimo quarto havia um ninho de passari- nho com trés pequenos ovos. Ao pegar oninho, ele deixou {que 0s ovos caissem no chao sem querer. Trés péssaros surgiram dos ovos e sairam voando. Naquele momento, a mulher voltou e culpou o lenhador por ter quebrado sua promessa, causando a morte de suas trés filhas. Trans- formando-se em um rouxinol, ela também saiu voando. Quando ohomem voltou asi, ele estava sozinho no mesmo lugar onde antes encontrara a mansio, porém, a mansdo néo estava mais lé. ‘Vamos pensar um pouco sobre a estrutura dessa his- t6ria. A floresta, local onde a histéria acontece, era bem familiar ao nosso her6i, mas ele encontrou 14 uma linda mansdo que ndo conhecia. As vezes, somos surpreendi- dos pela descoberta de coisas novas em uma realidade que acreditavamos ser completamente familiar para nés, Uma cena comum e corriqueira pode, de repente, parecer brilhante ou entao assemelhar-se a um abismo. ‘Uima mulher linda pode aparecer feia ou até mesmo virar uma bruxa. A realidade consiste em infinitas camadas. Somente no dia-a-dia 6 que a realidade aparece como ‘uma unidade com uma tinica camada que nunca iré nos ameacar. No entanto, camadas profundas podem surgir na superficie bem diante de nossos olhos. Os contos de fadas nos dizem muito a esse respeito: a manstio que aparece de repente e a linda mulher que morava lé sio bons exemplos deste tipo de experiéncia. Os herdis dos contos de fadas muitas vezes deparam com existéncias curiosas ao se perderem do seu caminho ou quando so abandonados por seus pais. ‘A variedade de formas da realidade corresponde a variedade de formas da consciéncia humana, ou — se ‘uusarmos as idéias da psicologia analitica ~ corresponde & psique humana com suas camadas conscientes ¢ in- 18 conscientes. Se 0s contos de fadas nos contam sobre as estruturas da realidade, eles podem muito bem refletir as estruturas da psique. Tomem “A casa do rouxinol” como exemplo: a mansdo, a mulher, o quarto proibido — so todos manifestagdes de coisas que existem em camadas profundas da psique. ‘A casa do rouxinol possui variantes que podem ser encontradas em todas as partes do Japio, como podemos ver em CCFJ. Sem considerar a questo dessas variantes terem se originado de forma independente, ou terem se disseminado de uma fonte comum, é interessante tentar encontrar um padrao comum. Na tabela 1, que mostra. as variantes encontradas em Seki, podemos detectar um padrao basico nas histérias 1 a 13: 1) o hori encontra uma jovem mulher; 2) ele entra em um quarto em que ela o havia proibido de entrar; 3) a mulher vai embora ressentida; e 4) 0 heréi fica sozinho, encontrando-se na mesma situacdo do comego da histéria (entretanto, na hist6ria 10 o homem fica velho). As histérias 14 a 18 pos- suem algumas variagdes diferentes. padrao no qual um homem que vive uma vida normal num espa¢o cotidiano encontra uma linda mulher de um espaco néo-cotidiano ocorre com freqiiéncia nos contos de fadas e nas lendas do mundo inteiro. Podemos interpretar as estruturas do espago cotidiano e do espaco néo-cotidiano como estruturas da consciéneia edo incons- ciente na psique. Assim, pode-se dizer que no inconsciente do homem existe uma mulher especial e que um encontro com ela 6 um evento altamente universal. A existéncia de tal padrao universal demonstra, como observou C. G. Jung, a existéncia de um inconsciente coletivo na psique humana. Todavia, esse padrdo possui peculiaridades préprias da cultura onde é revelado. Ao mesmo tempo em que os contos de fadas possuem uma natureza universal, eles manifestam caracteristicas ligadas @ cultura de onde 19 ‘Tabola 1 ‘Varingtes de “A casa do rouxinol”™ ‘Teanapreasor 1. Jovem leahador 2.Catzetro na aja Homan 4 Viajnta 6. Merador 6 lenhador 1. Home Dei carvoiros 6. Home 10, Serrador 1 Homem 12-Visjante 18. Homem joven 14. Homem ove ‘que pede mulher em easamento 15. Mae 18.govem monge viajante 11 Mather 18.Mulherjovem, Proibidor Muthor bonita (arta bonita Amulher queo pede em casamnento Carota bonita Agarotaqueo pete ‘om cuanto Maher Mather fram Gareta Mother ‘Armulher que o pode ‘om ezamento arta Benita Mathor joven Mather areta bonita Filho Mather jem Muther Homer Quarto proibido Quarto ao lado Deze quartos (Calero teste ‘boosie ‘Um do dts coleias Rua Perdeuo camino Montene Perdou oeaminto Compina O questo do fandos io lhar pera a gerota or anos Quarto de héspedes iclmo segundo claire Décim tercere quarto ‘ereciro xe Resultados ‘A mulher se transforma em um routoal ‘#doseparece,o homem fea szinh, Aver rouxine 6 vidas ‘homem Sen sxinho, (© rouinl wai embora voando; homem fs soxinha, Amulher se transforma em um rouxinal; ‘ohomem fea szinbo. ‘Armulher expla o homes homem fea szinha, ‘Arulbersetranaforma em ua garg branes; ‘ohomem fea sinha. Amulhor se transforma em wn rouxinl 2 desaparecsohomem fe sornho, ‘Armulhersentepona;ohemem fea sosiahn. ‘Armuther se transforma em un souxinol, ‘ohomem fc oziahe. ‘A mulher se transforma ex wm soaxinl; (ohomem fa velba. Amulhers transforma em um rouxinol; ‘ohomem fa soa. ‘Armulher se transforms em un roexinl, ‘obomem fica seziaha. ‘A mutber se tranforma em um rouxiaak ‘ohomem fa sez ‘A mulher se transform em um rousing ‘chomem Bea satin, 0 filo detaperece, ‘Armulher sai voando;0 monge more O tranogrestrvira uma glia, 03 dols casa, 20 surgiram, Este capitulo vai tentar demonstrar essa idéia dentro dos contos de fadas japoneses. Primeiro, gostaria de chamar a atengdo para algu mas caracteristicas especiais de “A casa do rouxinol”. 0 rouxinol é um péssaro muito apreciado pelos japoneses por ser um arauto da primavera. A primeira antologia de poesias japonesas, Man'yashi, compilada no século VIII, jt inclui rouxinéis em seus poemas. A Kokinshi, compilada no comego do século X como a primeira colegdo de poesia cortés patrocinada pelo império, contém um alto mimero de poesias onde o rouxinol aparece como 0 passaro da primavera. O prefaicio de Kokinshil, considerado a primeira interpretagao da poética japonesa, levanta uma questo retérica:“E possivel que algum ser vivo que ouga a voz do rouxinol cantando entre as flores, ou de um sapo cantan- do dentro d’agua, nao se sinta inspirado para a poesia”. Essa passagem indica o quanto esse passaro estimulou 0 senso de beleza dos japoneses. A imagem de um passaro tao intimamente ligado as idéias de beleza e primavera naturalmente se transformariam na imagem de uma linda donzela. Uguisu-hime, a Princesa Rouxinol que aparece em Kaidiiki ¢ em outras histérias medievais, é mais uma dessas imagens. A imagem de uma donzela que vive em uma vila de rouxinéis estd evidentemente fixada na psique dos japoneses desde tempos muito antigos. ‘Vamos agora pensar no que aconteceu quando 0 ho- mem e a mulher se encontraram em um espago ndo-coti diano em nosso conto. Seus lugares esto demonstrados na figura 1. A cidade onde vivia o lenhador é claramente oespaco cotidiano de vida. Uma mansao surge de repente em um lugar intermedidrio entre os espacos cotidiano e ndo-cotidiano. Nao ha diividas de que 0 quarto proibido pertenga a um espaco nAo-cotidiano, Podemos supor que essas trés 4reas sejam os espacos consciente, interme- didrio ¢ inconsciente da psique. 22 sotidiano dado (conseitncia) ‘arto \ Proibido ezatidiano Ginonseiente) PPsigto do homem e da mulher em“A casa do rouxinal” O homem ea mulher que se encontraram no espago intermedirio separaram-se imediatamente. Enquanto cla foi para a cidade, ele entrou no quarto proibido. Ao se encontrarem de novo, a catéstrofe estava armada. Eles linham de voltar aos seus proprios mundos separada- mente, pois, como dois cometas com suas préprias rotas parabélicas, eles estavam destinados a nunca mais se encontrarem depois desses dois encontros momentaneos. i verdade que algumas variantes falam do casamento dos dois — a saber, histérias 3, 5, 10, 14 e 18. Nos contos 8,5 e 10, a mulher pede o homem em easamento na hora ‘em que eles se encontram. No conto 10, o homem jovem, cnvelhece na tiltima cena, sugerindo a diferenca da nogao de tempo no espago cotidiano e no espaco néo-cotidiano. Esse tema, assim como 0 tema do pedido de casamento pela mulher, nos faz lembrar do famoso conto de fadas japonés Urashima Taré, que discutirei no capitulo cinco. Se julgarmos pelo processo de transformagio que 0 conto de Urashima passou ao longo das eras, as variantes de “A casa do rouxinol” que contém o tema da proposta da mulher devem ser mais antigos que 0s outros. 23 Na maioria das variantes nas quais 0 casal se casa, contudo, a unido resulta em uma separagdo tragica. A {nica excecdo é 0 conto 18, que termina com um casamerito feliz; além disso, aqui ohomem é o que profbe ea mulher 6 a transgressora da proibieao, Por esses motivos, eu tendo & concordar com as ciividas de Keigo Seki sobre classificar esta tiltima verséo como uma variante verdadeira de “A casa do rouxinol”. De qualquer forma, podemos concluir que 0 padrao basico do nosso conto é que um homem e uma mulher separam-se para sempre depois de dois encontros momentaneos enquanto seguem seus préprios caminhos parabélicos. Porém, o que aconteceré se a proibi¢ao nao for des- respeitada? Sera que podemos esperar um final com um. casamento feliz? As variantes do quarto proibido classi- ficadas como 196B em CCFJ incluem histérias onde os homens mantém suas promessas as mulheres. Aqui, 08 herdis so homens velhos em vez de jovens e, da mesma forma, o tema do casamento esta ausente. Uma dessas histérias, vinda da Provincia de Ao- mori, diz. assim: Em uma vila vivia um velho bom e um mau. O velho bom encontrou uma linda princesa em uma montanha ela pediu a ele que tomasse conta de sua casa enquanto ela ia a cidade fazer compras. Ao sair, ela proibiu o homem de olhar dentro de um dos doze quartos da casa, o quarto de fevereiro, e 0 velho Prometeu a ela que néo o faria. Quando a princesa voltou, viu que o velho mantivera sua palavra e pre- senteou com uma espatula magica, dizendo-lhe que com seus poderes ele poderia obter qualquer tipo de comida que desejasse. O bom velhinho levou a espatula para casa e se deliciou com as comidas que ele e sua mulher fizeram com ela. No entanto, quando seu vizinho ga- nancioso ficou sabendo de sua boa sorte, ele também foi até a montanha encontrar a princesa. O velho mau 24 jlo se conteve e olhou dentro do quarto de foverciro. Ao transgredir a proibigao, um rouxinol saiu voando do «uarto e ele ficou sozinho na montanha. Nxistem muitas variantes desse tipo de conto, ‘ns nao tantas quanto do conto 196A. Nao possuimos honhum par&metro concreto para julgar qual dos dois tipos de conto é mais antigo. Todavia, psicologicamente odemos pressupor que o tipo 196A pode ter sido mu- dado para 196B com a intenedo de dar um final feliz ao conto, Mas mesmo nesse caso, ndo hé um final com um easamento feliz. A mudanga na histéria traz um final feliz para o heréi, mas nao para a mulher, que precisa desaparecer no final. Ninguém pode mudar o trégico destino do feminino. O problema das diferengas culturais Jé mencionei que os contos de fadas possuem dois ‘aspectos: um universal a todos os seres humanos e outro particular & cultura de onde a histéria é contada. Como ¢ que esses aspectos se manifestam em “A casa do rou- xinol” e em hist6rias semelhantes em outros lugares do mundo? Encontrar histérias correspondentes em culturas radicalmente diferentes nem sempre 6 uma tarefa facil. As vezes esbarramos em um conto europeu, tal como “A garota sem mos” em Kinder-und Hausmarchen (KHM) dos irmAos Grimm, que possui um equivalente muito préximo no Japao. No entanto, quando nao conseguimos encontrar uma correspondéncia tao préxima, podemos escolher outros tipos de hist6rias, dependendo do tema que queremos salientar. Assim, podemos dizer que 0s tipos 196A e 196B de Seki, que falam do tema do quarto proibido, tém uma afinidade com AT 480 e AT 710, de Aarne e Thompson, mesmo que essas historias japo- 25 Nea européia Perfeito? P*'* nao tenham um encaixe de afinidades AT 480 6 an ta boa entre Storia ‘A garota boa e a garota ma”. A i no mundo ngio-cotidiano e con: Quarto proibide Quarto seerio Quarto seeeio Quarto sserto Quarto secrete Quart secrete Dieta teres pata Quarto seeeto Semelhante ae’, , ia é clara ayyNoasa enhos, 4° 196B. AT 710, a histéria “0 filho bido”; mas gc, KHM 3), contém o tema do “quarto srodne © lermos debra (Cabana na foresta (Casa do Barba Azul ® 'ura, oleitor pode querer dar uma ogo? (KHIM 6) o 42 22485 Ocidentais tais como “Joao de tgPttulo, Nao hg 2% 2 dual vamos comentar no préximo egtla Senialhant 29 livro de Aarne ‘Thompson uma his- ‘Nt de fadas ro 4888 do rouxinol”, Na verdade, este ey, Vamos ver con’? 22 &SPesificamente japonés. oF Outros pataos ene © 2% do quarto proibido aparece Ole -Literatune | S8ificado como C 611 em Motif: Index Stith Thompes dice de temas da literatura popular) Qu dente, mag pot €le Possui uma ocorréncia bastante de “Atidade de ener? ©% 28808 propésitos uma pequena Poy"ma colecao dart? 10s #era Suficiente.® Cinco histérias £50, Toshio Ozaw., CoNt0s de fadas mundiais preparada -tabelhidas para um, 4485 4° KHM dos Grimm foram lag, “8 comparagao e sao apresentadas na (Omari vai matar a herofaa, Orel aaa e ela se casa como principe. ‘Aminina 6 levada embora do cue depas se case com ol (rei quase mata a herota, nas depos ea se eas (O meninofoge da mans da braxa os aan com a princes Omaride mats dus ims. A tarda o mate com ajuda de O prineipe vst a prinesa Bass easam, Trmao da heroin a salva. Depo ol se ass. Maride(rs-Ofhas) Santa Vigra Maria utes pessoas ‘Marido Barbs Aca) Menino @ anos de dade) Princesa hruxa) Pa (Marigold) CCranga (wenina/manina) Dentro de quarto Cadiveres dae ex-esposns ‘rain do et. (Omarido€ um cabal caval (principe) ‘Uma fot da princesa ‘Te rma Cadsveres 6.0 lho de Nossa Seahora (Aleman) Merina ‘ulher ‘Nalher Fila A diferen ca i 1.2 aparecen: 1g7° 28 historias da tabela 1¢ da ta- Na Pibidor e a pose? 4° €2°8. Primero, a relagdo entre bela 2, 0 preset, dee Softe a proibigao é diferente. aa. dor e o transgressor sto um pai e PALS Aamo: sea Maride apg da vida ndoetigiane Brea oy Univ 685 Ine Dee fe Fal ole Fr Plows “ity omMPSON, Mogi Index 26 'Y Press, 1976, “fIr of the Fotk-4 sloomington: Indiana 6.0 he de Nossa Senhora (Aleman) ‘Trindede Historias do “quarto proibido" no Ocidente Too de Fervo (Aleman) 2.Maria Boperta (Porugal) 5Trts-Olboa Chipe! 5. Ocatamente do lado (Cras) 5. casamenta do ladrao(Credcia) roibidores e tranagrossores 4 Batlnick range) “doko de Ferro (Aleman) ‘TABELA2 1. Barba Anal ranged ‘ritule 1. Barba Azal rang) 2 Maria Eeperta Parga) 5.Tris-Olhos Chipre 4. Belloick Panga) TABELAS Espagointermediério| Title x By seu filho ou filha; um marido e sua mulher; uma bruxa eum menino de nove anos de idade; ou a Virgem Maria @ uma jovem donzela. Nas histérias ocidentais, em geral 08 proibidores sao superiores as pessoas que sofrem a proibigtio. No Japao, os proibidores sao mulheres e quem sofre a proibigao séo homens, a néo ser pelas histérias 15 e 18. Omitiremos aqui a hist6ria 15, que chega mais perto do padrao ocidental, por consideré-la uma excogéio (embora possamos nos perguntar por que esse tipo de conto apareceu no Japao). Se considerarmos os lugares onde as proibigdes aconteceram nas histérias ocidentais, vamos encontrar trés padrées diferentes, como mostra a tabela 3. Quando © pai € 0 proibidor (historias 2 ¢ 7),0 local é a sua propria casa — em outras palavras, espago cotidiano, sem divida nenhuma. Quando o marido faz uma proibicdo a sua mu- Iher (histérias 1, 3 e 5), o lugar 6 0 seu lar. Se pensarmos no seu cardter bindrio, este lugar pode ser considerado um intermediario entre espaco cotidiano e nao-cotidiano. Nas histérias 4 e 6, as proibigées acontecem na casa de uma bruxa ou no céu, que claramente pertencem a um espago nao-cotidiano, e os proibidores sao sobre-humanos, Se correlacionarmos as divisdes de espago cotidiano, inter. medifrio endo-cotidiano com as de consciéncia, entremeio e inconsciente na psique humana, a tabela 3 ird delinear a estrutura da psique ocidental. Nos descobrimos um conjunto interessante de rela- cionamentos entre os personagens dos proibidores os lugares onde a proibigao acontece nas histdrias ocidentais, Os contos japoneses apresentam um caso diferente: ainda no sabemos quem sdo os proibidores nos espacos cotidia- nos e ndo-cotidianos, No espaco intermedirio, mulheres Jovens sao as proibidoras, ao contrério da regra ocidental. Se prestarmos atengao ao modo como as histérias conti. nuam depois que o tabu é quebrado, a diferenca entre os - padrées japonés ¢ ocidental fica mais clara, Keig? Ea observou que, nos contos de fadas japoneses, aque! estabelece o tabu fica mais infeliz do que aquele ™ quebra: quem o quebra nao é punido, enquanto 0 pro. desaparece de forma pesarosa. Nas histérias ocidettt aquele que quebra o tabu 6 punido, embora poss? is feliz nofinal. 0 indice de temas de'Thompson lista "7% punigdes pela quebra de um tabu, e nao hé nenbu que diga: “sem punigéo” oti e A hist6ria japonesa pertence claramente | “sem punigdo”, O fato de a felicidade que o herdi 4 obtém desaparecer sem deixar nenhum traco pole interpretado como um tipo de punigao, mas se ass¥ nt essa certamente néo seria uma punigdo direta, Nos Japoneses, resolugdes como “a mulher manda 0 wee 4 embora” (histéria 5) ¢“o monge morre em uma nev, histéria 16) tem uma conotagao de retribuigao. Some, na histéria 17 6 que encontramos uma punicéo ae heroina é transformada em uma galinha. O fato 4 uma mulher quem quebra o tabu faz dessa histori tipo de excegio ao padrao basico do conto. Lr A tabela 4 mostra as muitas diferengas entre ee triasjaponesas.e ocidentais depois que tabu 6 que", no espago intermediro, Tanto os proibidores quant? 6 encontrado no quarto secreto é diferente: nas his! als japonesas, os quartos contém cenas de beleza no OS tais como rouxinéis, uma ameixeira, ou pés de arro2™ 4g trando o seu desenvolvimento ao longo das estagi@ 9 historias ocidentais, eles contém cadéveres, ou 0 9° da transgressora comendo um cadaver. No Ocide? Punigao é a pena de morte; no Japéo, nada. Na very as ex-mulheres do Barba Azul e as duas irmas da ber? aig em “O casamento do ladrao” j4 estéo mortas. OS gt das histérias japonesas e ocidentais também aivertc® por completo: o homem que quebra o tabu perm®’ a ja ser fot intocado e a mulher vai embora triste nas primeiras, en- quanto as uiltimas sempre terminam com um casamento feliz. Nas histérias ocidentais, um homem aparece para salvar a mulher, matando o seu marido monstruoso.Com excegdo do conto croata, as histérias terminam bem com um casamento feliz. ‘TABELA4 ‘Comparagao entre histérias japonesas e ocidentais Proibidor Tranggressor Dentro do guarto’ Punigio _‘Reultadas ‘Jey Mulber— Homem ——-Belerasdavatureza Nenhuma Mlher desaparee, homem fea salah Osidente Heme Mulher Sentence (made) (expoead demorte Outro omer salve mulher Esse tipo de final feliz é raro nos contos japoneses. Kiril Tchistov, um russo estudioso dos contos de fadas, conta uma anedota que clareia essa questao. Ele estava contando a historia de Urashima Tard, falando da beleza do Palacio do Dragao no fundo do mar, quando percebeu que seu neto néo estava nem um pouco interessado, pare- cendo antecipar um desenrolar diferente da histéria. Ele perguntou ao garoto o que ele estava achando da histériae o menino respondeu: “Quando é que ele luta?”. E evidente que ele estava esperando que 0 “her6i” Urashima Taré Tutasse com o dragdo“monstro”. A crianga russa, segundo Tehistov, “ndo conseguia compreender por que o her6i ndo lutava com o dragao e porque ele ndo se casou com a linda princesa’. Lerich, um professor de folclore da Alemanha Ocidental, observou a mesma coisa: no Japéo, um casa- mento feliz néio 6 um tema muito freqiiente nos contos ‘ie (adn, enquanto nas histérias européias tfpicas 0 heréi salva a donzela do perigo e se casa com ela no final. 1) claro que existe contos japoneses que terminam jsamento. O famoso folclorista japonés Kunio Yanagi- {o sugeriu que, quando os contos passaram a ser contados its para as criangas, os adultos omitiram o tema —que © principio estava presente — de algumas histérias pois low niio queriam falar de relacionamentos entre homens # mulheres na frente das criangas. Essa relutancia, dizem, {vi devida aum sentimento moral muito rfgido imposto aos Jnponeses pelo confucianismo. Nao posso concordar com a sgentdo de Yanagita pois os japoneses ainda tém varias historias onde pessoas preguicosas, tricksters e mentirosos vencom; se a influéncia do confucianismo fosse tao forte, ‘sas historias também teriam sido banidas. O que 6 que essas diferencas to grandes entre os /0s japoneses e ocidentais indicam? Consciéncia Até certo ponto, a consciéncia humana integra até mesmo eontetides psiquicos que so conscientes em cer- to momento ¢ que possuem 0 potencial de se tornarem conseientes quando necessério. Hla também tem alguma ‘utonomia, embora seja influenciada por outros tanto interna quanto externamente. Reconhece-se que uma pes- soa tem uma personalidade na medida em que ela exibe 1a integragéo ¢ autonomia, que so proporcionadas pelo centro da conseiéncia chamado de ego. Em vez de descrever o funcionamento do ego em de- talhes, gostaria de me concentrar na peculiaridade do ego que se desenvolveu na Europa moderna. Ele nao pode ser comparado com outros egos no seu alto grau de integracao ¢ autonomia, nem na sua impenetrabilidade. O analista junguiano Erich Neumann descreveu o processo de evo- Tugdo da consciéneia na Europa no seu livro A historia da origem da consciéneia.* A descrigéio de Neumann faz uso de imagens mitol6gicas; por isso, sua teoria 6 muito util a investigarmos o significado dos contos de fadas, j4 que os contos possuem muitas imagens semelhantes & mitologia. Contudo, nao vou interpretar os contos japoneses pegando ‘emprestado 0 método de Neumann; eles so tao diferen- tes dos contos ocidentais que precisam ser analisados Por uma teoria adaptada especificamente para eles. Um. dos motivos da minha pesquisa é encontrar este método. ‘Nao obstante, nés japoneses fomos muito influenciados pelas metodologias ocidentais e, por essa razdo, se ndo por nenhuma outra, preciso me referir & teoria de Neumann mesmo se estou tentando interpretar os contos japoneses de uma forma diferente. A seguir, trago um resumoda sua descrigdo da evolugao da consciéncia, Como nos dizem muitos mitos de criagao, o primeiro estdgio comeca com o caos, onde a separagdo entre o cons- iente eo inconsciente ainda nao ocorreu. A representagao simbélica desse estdgio 0 uréboro, a cobra que morde seu préprio rabo, formando um circulo.“E 0 homem ea mulher, criar e conceber, devorar e dar & luz, ativo e passivo, alto © baixo, tudo ao mesmo tempo.” No proximo estagio, “o ego comeca a emergir da sua identidade com uréboro”. O mundo que o ego consciente experimenta 6 0 mundo da Grande Mae. As imagens da Grande Mae desempenham um papel muito importante nos mitos e nas religides mundiais. A Venus de Willendorf © Maria, a Mae Virgem no cristianismo, sio apenas duas variagées dessa imagem; a primeira enfatiza o aspecto ‘Brich Neumann, The Origins and History of Consciousness (A hiatéria 4 origem da consciéncia), trad. RFC, Hull, Bollingen Sories 42, Princoten: Princeton University Press, 1954, 32 {ivivo da Grande Mae, enquanto a titima encarna o lado al. A Grande Mae pode ser vista como positiva ativa dependendo da forma como ela aparece a0 ‘oqo mie positiva alimentando as criangas, a negativa {orrivel devorando-as. No Japao, Kannon, que aceita io, 6a Grande Mie positiva, e Yama-uba, que aparece ‘ho contos de fadas como uma bruxa das montanhas que tudo devora, 6 a imagem negativa. Izanami, uma grande Hous na mitologia japonesa, concebeu a terra do Japao, s depois ela se tornou a divindade da terra da morte; sun imagem 6 aquela da Grande Mae que possui dois Judlos, um positivo e um negativo. O ego criado pela Grande Mae experimenta, no priximo estégio, a separagio dos opostos. Os mitos da soparagao do céu e da terra e do aparecimento da luz na oscuriddo representam este estagio, onde consciente e inconseiente sao separados. No préximo estdgio de evolucao da consciéncia, “ocor- ro uma mudanga radical no centro de gravidade”. Ao con- \ndrio do processo que aconteceu até entdo, representado pelo mito de criacao, o mito que se segue é simbolizado pelo herdi. Aqui, “a consciéncia do homem alcangou sua independéncia” e “sua personalidade total se descolou do contexto natural do mundo a sua volta e do ineonsciente”. sta 6 a fase da Shumanizagao e da formagao da personali- dade”. Os ciclos do mito do her6i consistem no nascimento do heréi, na sua luta contra o dragao e na sua aquisicéo de um tesouro dificil de se obter. ‘Muitos mitos e contos de fadas descrevem 0 nasci- mento do her6i como um evento extraordindrio. Os heréis na mitologia grega eram os filhos de Zeus com maes hu- manas. No Japao, Momotara (Tar Péssego), um famoso hor6i dos contos de fadas, nascou de um péssego. Histérias como essa parecem descrever as qualidades incomuns dos heréis, Depois vem a fase do heréi matando o drago. Os 33 freudianos interpretam esse evento como o assassinio do pai polo seu filho, reduzindo assim o mito ao complexo de Edipo, ao contexto das relagdes pessoais dentro da Prépria familia. Ao contrério, Jung compreendeu que o dragao simboliza O Pai ou A Mao, endo. préprios pais do individuo. Matar o dragao significa, de um ponto de vista Junguiano, matar © Pai e A Mae, seres arquetipicos na psique do individuo. Portanto, matar o dragao significa a luta com a Grande Mae que devora o ego, a luta que o ogo empreende contra a forga do inconsciente para que posse alcangar a sua independéncia. 0 ego estabelece a sua au. tonomia quando essa conquista simbélica acontece. Depois de matar A Mae, o heréi precisa matar 0 Pai, isto 6, lutar contra as leis e regras culturais e sociais, para aleangar sua independéncia total. O ego s6.consegue aleangar o seu objetivo se vencer essas batalhas perigosas. Como resultado de sua batalha, 0 heréi recebe um tesouro. Em muitas histérias ocidentais, este tesouro é uma virgem que 6 aprisionada pelo dragio e com quem o herdi acaba se casando. Isso significa, em poucas palavras, que depois de conquistar sua independéncia e se separar do mundo 20 matar seus pais, o ego recupera uma relagao com 0 mundo pela mediagao de uma mulher. Esse resulta. do nao é a unidade urobériea e indiferenciada, mas uma nova relacao entre o ego estabelecido e os outros, Nesse resumo das idéias de Neumann, apesar de bem simplificado, existem dois pontos extremamente importantes para os quais precisamos chamar a atengao. Primeiro, o ego érepresentado por uma figura masculina, Segundo, o casamento é0 objetivo final esperado por todos, Eimportante ter em mente que masculine feminino sao tratados na teoria de Neumann como simbolos, diferentes de homens e mulheres concretos. Ele enfatiza que “mesmo na mulher a consciéneia tem um carter masculino"e que “a correlagéo ‘consciéncia-luz-dia’e ‘inconsciente-escuri- 34 ‘la0-noite’ se mantém independente do sexo”. Ele diz ainda «ue “a consciéncia como tal 6 masculina mesmo nas mu. theres, assim como o inconsciente é feminino nos homens”, Seu uso das palavras masculino e feminino diferencia laramente esses conceitos de homem e mulher. O tiltimo Srupo significa homem e mulher como seres humanos, ¢ ° primeiro denota masculino e feminino simbolicamente. Quando falamos do problema de homens e mulheres é comum que surjam algumas confusées desnecossarias, pois uma distingao clara muitas vezes nao 6 feita entre os dois grupos terminolégicos. A preocupacdo de Neumann ¢ com o ego da Europa moderna, um ego singular na historia da consciéncia humana, Ele o chama de consci. ®neia patriarcal ~ claramente separado do inconsciente © livre de suas influéncias. Ao contrério, na consciéneia matriarcal 0 ego ainda se encontra subjugado pela forca do inconsciente e ainda nao atingiu sua independéncia ‘otal. Segundo Neumann, uma mulher moderna possui uma conseiéncia patriarcal e seu ego 6 denotado pelo. heréi masculino, Neumann salienta intimeras vezes que 0 seu uso dos termos masculino, feminino, patriareal e matriareal 6 simbélico, diferindo das nogées de homem e mulher como pessoas e das figuras paterna e materna na fami. lia ou nas estruturas sociais. As consciéncias patriarcal ¢ matriarcal nfo representam as estruturas familiares ou sociais paternas e maternas, embora exista alguma relagdo entre elas. O ponto de vista europeu pressupée facilmente a seqiiéncia matriarcal —patriarcal no processo de estabelecimento do ego. Porém, néio devemos aplicar esse padrao diretamente as estruturas sociais em outras culturas. Embora possamos notar que os povos agricul. tores tendem a ser matriarcais e os némades patriarcais na sua psicologia, seria um erro imaginar, com base nisso, que as familias agricultoras sao matriarcais e as noma. 35 des patriarcais. A estrutura da consciéncia nao é sempre idéntica a da sociedade ou da familia. ‘A tabela 3 mostra a relagdo entre os proibidores ¢ os transgressores nas hist6rias ocidentais com o tema do “quarto proibido”. Essa relagio fica ainda mais interes- sante se levarmos em consideracao a natureza do ego na Europa moderna. Em primeiro lugar, no espago cotidiano, que a principio denota a consciéncia, os proibidores so 05 pais. Isso confirma a nogdo de que o principio patriareal prevalece na consciéncia ocidental. No espago nao-cotidia- no ~ quer dizer, no mundo inconsciente ~ os proibidores 40 imagens da Grande Mae. Aqui, as criangas, a quem se dirigem as proibigées, ndo possuem uma ligacdo de sangue com 0s proibidores, ao contrario dos casos do espaco cotidiano. Bem no meio dos dois espagos existe uma relagéo de marido e mulher, que nao é uma relacdo vertical de superior e inferior, mas uma relagio horizontal, ‘embora os proibidores sejam sempre homens. A unido de homem e mulher nos dé uma imagem muito significativa da integracao da consciéncia com o inconsciente. Como nos mostra a tabela 2, quase todas as histérias ocidentais terminam com um casamento feliz. Por que ¢ que um tema tdo importante assim n4o aparece com freqiéncia nos contos japoneses? Talvez um exame mais profundo do quarto proibido japonés possa nos fornecer pelo menos parte da resposta. O que aconteceu? Quais sdo as caracteristicas essenciais da versio ja- ponesa do tema do quarto proibido? O que ele realmente nos diz? Vamos primeiro comparar rapidamente as ver- s6es japonesa e ocidental. Em “Joao de Ferro”, dos irmaos Grimm, a pessoa que sofre a proibigdo é um jovem, assim como em “A casa do 36 1a relagio com a herofna esté esquematizada ara 2. No comego da histéria existem apenas o rei © © principe, quer dizer, pai e filho. E importante notar aa ¢ dito sobre uma rainha ou uma princesa até (ho; aqui, o prinefpio patriarcal prevalece. No entanto, » foi moribundo signifiea que o prinefpio agora esté per- 10 forga e uma renovagao se faz necesséria. O rei esté juorrendo e profbe seu filho de entrar em certo quarto do eastolo, O principe quebra o tabu e encontra no quarto ‘una foto da “Princesa da Casa de Ouro”. O velho rei esté com um dilema, Conscientemente, ele Jor que seu filho siga o seu caminho, governandoo seu pais ‘partir do principio patriarcal. Contudo, inconscientemente que seu filho aleanceo que ele mesmonunca conse- ‘aleangar—trazer o prinefpio feminino parao pafs.O pai abo tdio bem do perigo dessa misséo que se sentiu obrigado a sw comportar de uma maneira completamente contraditéria: 10 trabalho de esconder a foto da princesa em um. to ¢ depois proibiu seu filho de ver a foto. gover 4 morte a princesa ig. 2. Posigdo do homom e da mulher em “Joo de Ferro”

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