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Aspectos biológicos no processo de reparo mediante tratamento


expectante

Marcelo Filadelfo Silva1


Lívia Reis Carvalho2
Fernando Mandarino3
André Luiz Barrachini Centola3

Resumo
A busca pela preservação da vitalidade pulpar, através da realização de procedimentos mais conservadores, representa um
importante campo de estudo na odontologia. O tratamento expectante representa um procedimento restaurador, basea-
do em conhecimentos biológicos sobre o processo de progressão da lesão de cárie, através do estudo da natureza e
características das respostas dos tecidos dentários a esse processo destrutivo. Trata-se de uma forma de terapia que é prática
e segura e que pode ser indicada na odontologia restauradora moderna. A proposta deste estudo é realizar uma sucinta
revisão de literatura sobre aspectos biológicos do complexo dentina-polpa, envolvidos no processo de reparo do dente
submetido ao tratamento expectante.

Palavras-chave: dentina - polpa - tratamento expectante; dentina - polpa - microrganismos

INTRODUÇÃO

Polpa e dentina são tecidos integralmen- dentina fisiológica ou secundária (que é conti-
te conectados, no sentido de que reações fisioló- nuamente produzida durante toda a vida) quanto
gica e patológica de um tecido poderão afetar o pelo mecanismo biológico que busca o bloqueio
outro (MJÖR; HEYIRAAS, 2001). Dos com- da evolução da cárie (HEYIRAAS; MJÖR,
ponentes estruturais que compõem o complexo 2001).
dentina-polpa, atenção especial deve ser dada
Sempre que a polpa dental sofre algum
aos odontoblastos, células que estão localizadas
tipo de injuria, direta ou indiretamente, o sis-
na periferia da polpa, conectando-a à pré-
tema imune desencadeia uma resposta inflama-
dentina. Cada célula tem uma extensão dentro
do túbulo dentinário, o chamado processo tória para limitar os danos causados, através da
odontoblástico. Essas células são responsáveis eliminação dos organismos invasores.
tanto pela formação de dentina primária e de (HEYIRAAS; MJÖR, 2001)

1
Professor de Dentistica. Departamento de Saúde. UEFS. Feira de Santana - BA
2
Cirurgião-dentista. Especialista em Periodontia. Prefeitura Municipal de Salvador. Salvador - BA
3
Professor Titular. Departamento de Odontologia Restauradora. Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto - USP. Ribeirão Preto - SP

Correspondência para / Correspondence to:


Marcelo Filadelfo Silva
Av. Dom Eugênio Sales, Parque Solarium Pituaçu, Bloco 5, apt. 203 - Boca do Rio.
41.303-400 Salvador – Bahia – Brasil.
Tel: (71) 8826-6005; (71)461-6020.
E-mail- mfiladelfosilva@yahoo.com.br

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As mudanças teciduais associadas com a de matriz dentinária, indistinguível da dentina


progressão rápida da cárie são representadas peritubular e sua posterior mineralização
principalmente pela ausência de (BRADFORD, 1960).
hipermineralização da dentina afetada, reação As reações da dentina e da polpa a cáries
dos odontoblastos na região da pré-dentina e incipientes e avançadas variam, desde uma li-
reação inflamatória na polpa em áreas localiza- geira desordem da camada dentinária na cárie
das adjacentes aos túbulos afetados (MJÖR; superficial, até uma zona de dentina reparado-
FERRARI, 2001). ra, com e sem reação inflamatória pulpar. O
Quando os odontoblastos são destruídos, complexo dentino-pulpar de um dente recém
em decorrência da rápida progressão da cárie, erupcionado, com esmalte e dentina imaturos,
novas células da polpa se diferenciam em mostra mais reações que tecidos mais velhos e
odontoblastos (MJÖR; FERRARI, 2001). menos permeáveis. Em todos os casos, exceto
O dente possui uma capacidade de rea- quando a polpa tenha sido agredida diretamen-
ção de defesa natural contra o ataque da cárie, te por algum instrumento ou invadida por
que é caracterizada pela formação de dentina microorganismos, a resposta é produtiva e não
reparadora na polpa e pela esclerose dos túbulos degenerativa. A esclerose da dentina subjacente
afetados. Essa reação de defesa é concomitante e a formação de dentina reparadora constituem
com a paralisação da progressão da lesão, o que a regra e não a exceção. Assim, o potencial cura-
causa diminuição da permeabilidade dentinária. tivo do complexo dentina -polpa é muito mais
Em um ataque rápido, a dentina e a polpa não elevado do que se supunha no passado. Com
têm tempo para completar a reação de defesa. A isso, o tratamento da cárie aguda deve dirigir-
lesão de cárie ativa resulta em um aumento da se a deter a infecção e procurar a cura da dentina
permeabilidade, o que pode causar dor e a ex- pela esclerose e reparação. Atualmente, isso pode
posição da polpa. O objetivo do tratamento clí- ser conseguido pela remoção de parte da dentina
nico deverá ser paralisar todas as lesões ativas infectada durante a fase aguda do processo, co-
antes da colocação de materiais restauradores locação de um material forrador que promova
definitivos (BARBER; MASSLER, 1964). ação bactericida ou bacteriostática e o selamento
Condições patológicas agressivas, como as da cavidade com material provisório, por deter-
cáries ativas de progressão rápida, causam a de- minado período de tempo (MASSLER, 1967).
sintegração dos odontoblastos. Entretanto, o Durante o processo carioso, a dentina
tecido pulpar possui células ectomesenquimais sofre uma considerável perda de minerais.
indiferenciadas, capazes de se diferenciarem em Eidelman, Finn e Koulourides (1965), avalian-
células como os odontoblastos, possibilitando, do a capacidade de remineralização da dentina
assim, a contínua formação de dentina repara- cariada com o hidróxido de cálcio, encontraram
dora (TZIAFAS; SMITH; LESOT, 2000). resultados positivos, medidos pelo aumento de
O tecido pulpar e os odontoblastos pos- conteúdo fosfórico do tecido afetado.
suem um enorme poder de recuperação.Trabalho As bactérias seladas abaixo de restaura-
realizado com germes de dentes auto-transplan- ções provisórias, durante o tratamento
tados dentro do tecido subcutâneo de ratos, com expectante, permanecem viáveis durante perío-
o objetivo de avaliar a capacidade de recupera- dos de tempo consideráveis (SHOVELTON,
ção da polpa, constatou que a mesma pode re- 1968).
verter quadros de injúria severa e prolongada e O uso de um efetivo agente que seja
se recuperar depois de estados degenerativos que bactericida ou bacteriostático ajuda a eliminar
seriam considerados irreversíveis por imagens ou a diminuir a quantidade desses microor-
microscópicas (WEINREB; SHARAV; ICKO- ganismos residuais na dentina cariada. Isso se
WICZ, 1967). torna necessário em lesões profundas, próximas
O mecanismo de formação da dentina à polpa, não só para deter a progressão do pro-
esclerosada baseia-se num mecanismo ativo, re- cesso carioso, pois a mesma diminui bastante
presentado pela deposição acelerada e contínua com o preenchimento da cavidade por um ma-

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terial selador, mas também para eliminar possí- da dentina cariada (EIDELMAN; FINN;
veis microorganismos sobreviventes e erradicar KOULOURIDES, 1965).
possíveis focos de crescimento bacteriano que Estudo baseado em exame histológico de
podem eventualmente injuriar a polpa dental dentes humanos cariados, através de medidas
(BESIC, 1943). da distância entre a penetração mais profunda
Diversas pesquisas que investigam o es- das bactérias e o tecido pulpar, mostrou que a
tado bacteriológico da dentina cariada, após patologia pulpar foi gradual, de acordo com o
determinado período de tempo de realização do tipo de lesão e a quantidade de dentina repa-
tratamento expectante, constataram que o nú- radora formada. Espécimes em que a distância
mero de microrganismos pode ser bastante re- entre a bactéria penetrada e a polpa, incluindo
duzido, o que pode ser explicado pela redução a espessura da dentina reparadora, tiveram me-
ou ausência de atividade metabólica (KING et didas de 1,11mm ou mais revelaram lesões pa-
al., 1965; APONTE; HARTSOOK; CROWLEY, tológicas insignificantes. Quando a dentina re-
1966; WEERHEIJM et al., 1997; MALTZ et paradora tinha sido invadida pela bactéria, en-
al., 2002). tretanto, patologia de conseqüência real e de
natureza irreversível foi encontrada (STANLEY,
1968).
DISCUSSÃO Sarnat e Massler (1965), avaliando a
microestrutura de lesões de cáries ativas e para-
Estudos realizados através de eletromicro- lisadas, constataram importantes diferenças en-
grafias evidenciaram que diferentes zonas de tre elas. Assim, nas lesões ativas, a zona infectada
degeneração do dente, na progressão da cárie, (rica em bactérias) está colocada dentro da por-
baseiam-se na diminuição da invasão bacteriana. ção profunda da camada necrótica e sobre a por-
A zona mais superficial é caracterizada pela com- ção da camada descalcificada. A porção mais
pleta descalcificação e decomposição da dentina profunda da camada descalcificada encontra-se
(zona infectada). Uma área de descalcificação livre de bactérias e contém muitos cristais gran-
incipiente, em que a bactéria tenha invadido os des, presumivelmente formados pela precipita-
ção de apatita dissolvida pelos ácidos bacterianos.
túbulos, é a segunda zona. Nessa região, túbulos
A esclerose começa inicialmente na junção en-
esclerosados são encontrados com seu lúmem
tre a camada descalcificada e a dentina normal.
obliterado por material calcificado. Fibras
As camadas mais profundas estavam livres de
colágenas são também evidentes nessa região.
bactérias. Nas lesões paralisadas, na zona super-
Na camada mais profunda da área de
ficial rica em bactérias, a maioria dos corpos das
descalcificação, uma pequena quantidade de bactérias intratubulares foi desintegrada e
túbulos contém microorganismos (zona conta- coalesceu. A zona intertubular parece ter se tor-
minada) (BERNICK; WARREN; BAKER, nado mais mineralizada. Nas camadas mais pro-
1954). fundas, o conteúdo intratubular foi
Avaliando diferenças entre cáries ativas e hipermineralizado e obliterado (esclerosado). A
paralisadas, constatou-se que as primeiras são calcificação parece ser contínua com a zona
mais permeáveis que as segundas. A coloração peritubular, sendo que essa área estava livre de
por corantes das camadas dos dentes revelou bactérias.
diferenças entre as partes mais profundas e as O tratamento expectante é um procedi-
superficiais da camada destruída, em que a le- mento simples, que possui suma importância
são não é uniformemente ácida (MILLER; no que se refere à preservação da vitalidade den-
MASSLER, 1962). tal. Representa um procedimento conservador,
Cálcio e fósforo são os principais consti- dentro da filosofia preventiva, na qual a preser-
tuintes da fase mineral da dentina. O estudo vação da estrutura dentária constitui-se em fa-
desses minerais em dentina cariada tratada com tor essencial para garantia de sucesso do proce-
hidróxido de cálcio evidenciou mudanças quí- dimento restaurador (FRANCO; FREITAS;
micas que provam ser possível a remineralização D’ALPINO, 2000).

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CONCLUSÃO de, através da realização do tratamento


expectante, buscando-se a maior conservação e
Com a evolução dos conhecimentos na preservação do dente, o que constitui atualmente
área da biologia dentária, frente às agressões, uma real possibilidade de tratamento clínico,
como lesões de cárie, a possibilidade de inter- desde que seja executado respeitando-se os co-
venção mínima no órgão pulpar é uma realida- nhecimentos científicos e critérios técnicos.

Biological aspects in the process of repair in expectant treatment


Abstract
The expectant treatment is a form of conservative treatment of the pulp that looks for to avoid the
pulpal exposure, still offering to the tooth repair conditions in a reversible phase , and to promote the
remineralization of the affected dentine, being guided for that in biological knowledge on carious process ,
nature and characteristics of the different caries lesions and the answers of the dental tissue to this destructive
process. This is a practical and safe therapy that can be indicated in the modern restorative dentistry. The
purpose of this paper is to accomplish a literature review on clinical and biological important aspects,
involved in the tooth process repair submitted to the expectant treatment and supplying scientific subsidies
for its safe indication.

Keywords: expectant treatement - dentine - pulp; bacteria - dentine - pulp;

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Recebido em / Received: 20/05/2005


Aceito em / Accepted: 06/09/2005

R. Ci. méd. biol., Salvador, v. 4, n. 3, p. 242-246, set./dez. 2005

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