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A Revista do Expresso

EDIÇÃO 2680
8/MARÇO/2024

+
Óscares
Quem vai ganhar?
E quem devia...
Por Jorge Leitão Ramos
Domingos Sequeira
Quem é o pintor
de quem se fala?
Por Lourenço
Pereira Coutinho
e José Luís Porfírio

Um país partido em três


Há algo de trágico na eleição de domingo. Se os apelos ao voto útil por parte de
PS e PSD não surtirem efeito, o país corre riscos de ingovernabilidade perante a tripolaridade
entre esquerda, direita e forças antissistema. O Chega já deixou de ser apenas um problema
à direita. O caminho, em democracia, será dialogar e negociar. Por Ângela Silva
PLUMA CAPRICHOSA

ÀS ARMAS! ÀS ARMAS!

O
ENQUANTO O MUNDO DISCUTE UMA GUERRA NUCLEAR COM A RÚSSIA, EM PORTUGAL TUDO SÃO ROSAS
transporte que como sabemos nenhum político usa a partilha do chouriço assado) poderiam finalmente
muito, exceto em ações de campanha. É para isso que carregar uma Sig Sauer M17, uma Glock ou uma Beretta
servem os carros oficiais e os motoristas, uma das 92 sem terem de pagar as pistolas retirando a soma do
vantagens da vida ministerial. Em ação, anda-se de salário.
metro e de comboio, vimos isto antes. O que nunca Uma Europa armada não cobraria as armas dos
vimos foi um político às seis da manhã a secar na soldados, espera-se. Embora um ministro das Finanças
estação de comboios do Cacém ou da Amadora (com mais afoito e da espécie dos falcões nos pudesse pedir
exclusão do sábio de Massamá). o sacrifício. Já fornecemos as nossas mulheres para as
É para a mordomia no transporte que também serve fábricas de munições, teríamos de descontar a arma no
a arte da política, para escapar da vida real, exceto soldo e na ração? Se a NATO ficar com um calvinista ao
de quatro em quatro anos, ou nas antecipadas. Aí, leme, nunca se sabe.
dia começa para esta gente da política com “uma o político viaja no meio do povo e o povo, com a A AD, ao contrário do PS, labora em intangíveis.
ação”. Estamos em campanha eleitoral e é altura de ter tradicional bonomia e entusiasmo de ver em carne e Não dá propinas nem borlas, acusa o líder do PS de
“uma ação” em vez de uma inação, que tem sido mais osso o político ao qual chama respeitosamente doutor, instabilidade emocional. Uma coisa perigosa e em
ou menos o estado das coisas aqui pelo jardim à beira- abraça-se a ele e empunha uma bandeira. Atrás do moda, a instabilidade emocional. Como a doença
mar plantado. Na Europa, discute-se dinheiro para a político rasteja uma pequena comitiva de militantes e mental, toda a gente tem uma. Com ele, Montenegro,
Defesa do continente baseado nesse sofisma da invasão quadros intermédios, destinados à cor local (eu sou o a estabilidade é um fator de estabilidade. O problema
da Europa pela Rússia, mas o que se discute é quanto deputado por este distrito, círculo, etc., e vou defender destas redundâncias é serem redundantes. A certa
dinheiro cada potência europeia espera ganhar com os vossos interesses) que demonstra um entusiasmo altura, Nuno Melo do CDS, o partido fénix, dizia que
uma nova indústria de Defesa e com a cópia do modelo superior pela nação, pelos “populares” e pelo futuro, “nós próprios, a certa altura, temos dificuldades em
industrial militar americano que tanta prosperidade claro. Nesta fase, o político solta o discurso e conversa ouvir-nos a nós próprios”. Nem mais.
e guerras perdidas trouxe aos nossos aliados do outro com as pessoas de coisas da vida, tratando-as como E algures, noutras bandas, sempre muito acompanhado
lado do Atlântico. Deverá a Europa endividar-se e ficar família. As pessoas contam histórias e agravos e soltam pela sua banda de descontentes e nostálgicos da força,
a Comissão Europeia com a obrigação de emissão de a amargura ou alegria, aproveitando os 12 segundos que André Ventura falava da sua “bandalheira”. À falta de
dívida e a distribuição das benesses e obrigações pelos lhe são concedidos pelo ilustre interlocutor antes de programa, o slogan da campanha e das ações do Chega.
países maiores e menores, uma coisa tipo vacinas da passar a outra. Outra ação. Nos 12 segundos seguintes, o É preciso acabar com a bandalheira. Ora, numa Europa
covid, ou deverão os Estados-membros armar-se cada político popular confraternizará com outros populares, distópica, militarista e armada, podemos perfeitamente
um por si, contribuindo com boa percentagem para resguardado pela guarda pretoriana dos correligionários ver Ventura como um magnífico guarda num campo de
uma indústria de armamento e para uma mobilização emocionados com a proximidade. prisioneiros de guerra. Um Schutzstaffel satisfaria não
da juventude? E assim, num cenário afetuoso, Pedro Nuno andou apenas os instintos punitivos da criatura, clamando
Houve mesmo quem sugerisse que os países pobres de comboio, imagem passada e repassada, e depois pela prisão perpétua e a castração dos pedófilos, dilatar-
do Sul e do Leste da Europa deveriam criar uma força foi a Coimbra prometer qualquer coisinha. O PS age lhos-ia. Um campo de prisioneiros de guerra, um bom
de trabalho exclusivamente dedicada ao fabrico de no campo das coisas tangíveis, lá vieram as propinas stalag cheio de detestáveis russos, daria a Ventura a
munições, aproveitando os baixos níveis salariais desta gratuitas. Estamos cheios de dinheiro e do excedente do margem de liberdade para exercer a natural crueldade.
mão de obra. Digamos assim, a nossa juventude, em Medina. Não seria o gulag ou o konzentrationslager, mas teria
vez de andar a gastar as solas nas ruas da cidade num Ora, o projeto europeu vai dar a estes jovens não algumas semelhanças que não desapontariam. A guerra
tuk-tuk ou a servir pratos nos restaurantes pseudo- a propina, mas a parada e a voz de comando do é tudo menos uma bandalheira. É uma limpeza.
Michelin, deveria ser encafuada numa fábrica de sargento. Com os jovens na vida militar poupa-se E, já agora, metiam-se dentro do dito recinto uns
armamento e posta a manipular chumbo e pólvora. O muito na Educação. E as mulheres devem também ser ciganos e uns migrantes de raças menores, processo
remanescente juvenil poderia ser usado como carne aproveitadas no fabrico de munições, em vez de sapatos usado com êxito noutras sociedades onde não abunda a
para canhão e treinado em quartéis. Vamos encher e têxteis, porque são a força de trabalho mais barata de compaixão nem se usam os direitos humanos.
pneus. Faria muito bem aos jovens e excedentários todas. É uma grande ideia que a Europa militarista nos Esta campanha eleitoral e ações são um bom exemplo
terem uma estrutura, uma educação espartana no reserva. Chama-se esforço de guerra. O que não nos dos futuros usos dos portugueses na nova Europa.
século XXI. Em vez de arrastarem o traseiro, beberem isenta de contribuir para o orçamento de Defesa. Periféricos, provincianos e ignorantes da política
cervejas à custa dos pais e comprarem telemóveis de Do outro lado do espectro, Luís Montenegro era internacional podemos ser, úteis seremos. Quanto mais
última geração. levantado em peso pelos populares enquanto fazia o ignorantes mais úteis.
Estes devaneios disciplinadores do serviço militar sinal da vitória. Assistia-se a uma imensa jubilação Não somos nós que mandamos. b
obrigatório são sempre propostos por dois tipos de naquele colo triunfal, quase fazia vir as lágrimas aos
belicosos de sofá e salão, os que nunca puseram os olhos. Montenegro, no fato do homem comum, um
pés (chatos) numa guerra e os que nunca puseram funcionário engravatado e que chega a horas, afável e
os pés (chatos) num quartel. Nunca tiveram de usar preocupado com o nosso bem-estar, aposta em fazer
a desculpa do pé chato para escaparem da guerra esquecer as severidades do Passos e os propósitos
colonial porque os soldados e comandantes da guerra ultramontanos da direita saudosa de referendos de
colonial lhes pouparam o esforço em Abril de 74. Se costumes e de milícias armadas para “defender o que
tivessem de ter ido à guerra ter-se-iam transformado é nosso”. Ora, este espírito das milícias, miliciano,
em pacifistas conscientes.
Enquanto o mundo aqui ao lado discute, com uma
poderia ser reaproveitado e reciclado no novo ethos
militar, colocando nas mãos dos amantes da caçadeira / CLARA
negligência apreciável, uma guerra nuclear com a
Rússia, em Portugal tudo são rosas. É um abençoado
uma metralhadora séria e enviando-os para as estepes
russas, onde poderiam dar largas ao amor às armas.
FERREIRA
país este. Os políticos andam em ação, não militar, de Há por aí muito agricultor zangado que daria um bom ALVES
campanha. Campanha eleitoral. Uma espreitadela nos soldado na frente, reforçando a infantaria da Europa
ecrãs de televisão traz-nos uns momentos saborosos orgulhosa e defendida. O mesmo para os
do contacto com o povo. polícias, em vez de levarem chouriços para a
Pedro Nuno Santos, em vez de se bater pela apregoada guerra, como fizeram na Bósnia (uma velha
ferrovia, andou de ferrovia. Meteu-se num comboio, mania nossa, a de promover a paz com

E 3
SUMÁRIO
EDIÇÃO 2680 | 8/MARÇO/2024

MNAA/COROAÇÃO DA VIRGEM
fisga +E Culturas Vícios

24
Domingos Sequeira
7 | Pizza
Quanto custa cada fatia,
e porque é que a guerra
na Ucrânia fez subir o preço
das pizzas
18 | Eleições legislativas
A ideia do país dividido ao
meio entre PS e PSD acabou.
O Chega veio baralhar as
contas e daqui para a frente
ninguém tem certezas sobre
47 | Sofia Coppola
Conversa sobre o biopic
de Priscilla Presley
50 | Sara Correia A fadista
tem na agenda concertos
71 | TV ao domingo
Quais as chances de haver
eleições, Óscares e futebol
no mesmo dia?
74 | Receita
O incerto destino de
10 | O Que Eu Andei como se vão encaixar as em Lisboa e no Porto Por João Rodrigues
uma obra chamada Para Aqui Chegar peças políticas em Portugal.
“Descida da Cruz” Um currículo visual Análise do novo país político 52 | Arco Madrid A 75 | Restaurantes
do satélite Aeros 43ª edição da feira tem as Por Fortunato da Câmara
trouxe ao de cima o seu Caraíbas como tema central
32 | Óscares
nome, certamente um 12 | Planetário No ano do fenómeno 76 | Vinhos
dos maiores da pintura O aluno de Gauguin ‘Barbenheimer’ — que uniu 54 | Livros “Maniac”, Por João Paulo Martins
Por João Pacheco o novo romance de Labatut
portuguesa “Barbie” e “Oppenheimer” 77 | Recomendações
na senda do sucesso —, só 58 | Cinema “Duna: Parte De “Boa Cama Boa Mesa”
16 | Ideias um dos filmes parece
A complacência da Europa Dois” é entretenimento total
Por José Tavares
destinado a triunfar nos sem coração 78 | Moda
Óscares. A cerimónia, em Por Gabriela Pinheiro
Los Angeles, é na noite de 60 | Televisão Em “Shogun”,
domingo, depois de por cá os portugueses lutam na 79 | Tecnologia
sabermos quem ganhou as Por Hugo Séneca
FICHA eleições. Jorge Leitão
arena samurai
TÉCNICA Ramos partilha o seu oráculo 62 | Música Kim Gordon 81 | Passatempos
fala sobre “The Collective” Por Marcos Cruz
Diretor
João Vieira Pereira 38 | Kukas
Entrevista à artista do design 66 | Teatro & Dança CNB
Diretor-Adjunto dança Balanchine, McNicol
Miguel Cadete e da joalharia, de 95 anos,
mcadete@impresa.pt que ainda gostaria de expor e Forsythe
Diretor de Arte em Serralves
Marco Grieco 68 | Exposições O Japão
de Albano Silva Pereira,
Editor no Palácio Pimenta
Ricardo Marques
rmarques@expresso.impresa.pt
Editor de Fotografia
João Carlos Santos
Coordenadores
Lia Pereira
lipereira@blitz.impresa.pt
Luís Guerra
CRÓNICAS
3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 14 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes
lguerra@blitz.impresa.pt

Coordenadores Gerais de Arte


Jaime Figueiredo (Infografia) 46 Os Cadernos e os Dias por Gonçalo M. Tavares | 70 Fraco Consolo por Pedro Mexia
Mário Henriques (Desenho) 80 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro | 82 Estranho Ofício por Ricardo Araújo Pereira
FOTOGRAFIA DA CAPA: JOÃO CARLOS SANTOS

E 4
ANTES DE TOMAR PARTIDO
INFORME-SE COM O EXPRESSO

SAÚDE
EDUCAÇÃO

CLIMA
HABITAÇÃO

expresso.pt

O EXPRESSO TOMOU VÁRIAS MEDIDAS


PARA QUE NADA LHE ESCAPE NESTAS ELEIÇÕES.
Fique informado com o seu jornal:
Mapas eleitorais Painel de especialistas Comparador de programas Fact-checking
Conversas e diretos Entrevistas Notas aos debates Sondagens Opinião
Análise às promessas Simulador de maiorias Jogo das legislativas

Não perca toda a atualidade política em


expresso.pt/legislativas
fisga
“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”

A conta faz-se à fatia


A PESAR CADA VEZ MAIS NA CARTEIRA DOS EUROPEUS (E DOS PORTUGUESES),
O AUMENTO DO PREÇO DAS PIZZAS E DAS QUICHES PRÉ-FEITAS ABRANDOU NO INÍCIO
DO ANO. CUSTO DOS INGREDIENTES AJUDA A EXPLICAR ESTA EVOLUÇÃO
TEXTO MARIA JOÃO BOURBON INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO

E 7
fisga

N
uma tigela, mistura-se a água, o fermento,
EVOLUÇÃO DA INFLAÇÃO DE PIZZAS O PREÇO DOS PRODUTOS
o sal e o azeite até que estes se dissolvam
completamente. Após adicionar a farinha,
E QUICHES PRÉ-FEITAS NA UE COZIDOS NO FORNO AUMENTOU
Em %, variação homóloga EXPONENCIALMENTE NO ESPAÇO
está na hora de meter as mãos na massa: amassa-
se, sova-se, leva-se as bordas ao centro até se COMUNITÁRIO EM 2022,
alcançar uma massa homogénea. Apesar de 20
fazer massa de pizza ser uma ciência — há-as
18,1 NA SEQUÊNCIA DA INVASÃO RUSSA
finas, grossas, macias ou estaladiças, com ou 15 DA UCRÂNIA, DE ONDE CHEGAVA
sem rebordo — e de este processo constituir UMA PARTE SIGNIFICATIVA
muitas vezes um espetáculo, mostrado à janela da 10
cozinha, para os clientes dos restaurantes, muitas DOS CEREAIS CONSUMIDOS
vezes a comodidade e o preço sobrepõem-se ao 5 NA UE E EM PORTUGAL
sabor e à arte. Em Portugal, em 2021, as pizzas 4,6
congeladas ou refrigeradas eram consumidas 0 2,2
em metade dos lares de Portugal Continental, 2022 2023 2024 de onde chegava uma parte significativa dos
mostrava o estudo TGI da Marktest. Ainda assim, cereais consumidos na UE e em Portugal. Isto veio
o preço das pizzas pré-feitas, nas quais estas se pressionar ainda mais o sector agroalimentar,
INFLAÇÃO DE ALGUNS DOS PRINCIPAIS
inserem, tem vindo a aumentar. que se debatia há meses com as consequências da
INGREDIENTES, JANEIRO DE 2024
O preço das pizzas e quiches pré-feitas na UE vai pandemia e da seca, recorda a Deco Proteste na
Em %, variação homóloga
pesar mais na carteira dos europeus. O seu preço sua página da internet.
médio era, em janeiro de 2024, 4,6% mais caro do “A limitação da oferta de matérias-primas e o
que no mesmo mês de 2023, conclui o Eurostat, 49,6 aumento dos custos de produção, nomeadamente
o gabinete de estatísticas da União Europeia (UE) dos fertilizantes e da energia, necessários à
que analisou de que forma a inflação tem afetado produção agroalimentar, refletiu-se, por isso,
o preço destes produtos. Ainda assim, a subida num incremento dos preços nos mercados
de preço no ano passado abrandou face à inflação 10,5 internacionais e, consequentemente, nos preços
6,6 QUEIJO
de 2023: em janeiro desse ano o aumento, em ao consumidor de produtos como a carne, os
comparação com o mês homólogo do ano anterior, AZEITE VEGETAIS PÃO -0,2 hortofrutícolas, os cereais de pequeno-almoço ou
E CEREAIS
tinha sido de 17,5%. o óleo vegetal em 2022”, lê-se no site da revista
Entre os países com um maior aumento no preço da defesa do consumidor. Concretamente, em
estão o Luxemburgo (10,8%), a Hungria e a Portugal, a farinha para bolos estava entre os cinco
TAXA DE INFLAÇÃO DE PIZZAS E QUICHES
Áustria. Estónia (0,7%), Portugal (1%) e Eslovénia produtos que mais tinham aumentado de preço
PRÉ-FEITAS NA UE, JANEIRO DE 2024
(1,1%) estão na outra ponta a tabela, sendo os desde o início da guerra até julho de 2022 (23%).
Em %, variação homóloga
países cujo preço destes produtos alimentares E, apesar de em 2023 a inflação destes produtos ter
menos aumentou. Só a Chéquia registou nesse mês aligeirado, os preços continuam mais elevados do
uma queda no preço das pizzas e das quiches pré- Luxemburgo 10,8 que anteriormente.
feiras: -4,3% em comparação com janeiro de 2023. Hungria 10,1 Outro exemplo: segundo o Eurostat, o preço do
Influenciados por fatores como o custo dos Áustria 8,4 azeite explodiu na UE na segunda metade de 2023
ingredientes, a localização, a concorrência e as Lituânia 7,3 — com aumentos de 37%, 44% e 50% em agosto,
preferências dos consumidores, os preços das Alemanha 6,9 setembro e outubro, respetivamente e face aos
pizzas inserem-se num contexto de aumento Polónia 6,2 meses homólogos de 2022. Já em janeiro deste ano
generalizado dos preços na economia — embora Finlândia 5,9 estava 50% acima do que o registado no mesmo
o ritmo da subida de preços na economia tenha França 5,5 mês de 2023 e era precisamente em Portugal que
abrandado em janeiro de 2024 (em janeiro Roménia 5,5 surgia o maior aumento de preço (69%), seguido
de 2024 era 3,1% na UE e 2,8% na zona euro, Bélgica 5,1 pela Grécia e Espanha. Roménia, Irlanda e Países
menos que os 10% e 8,6% do mesmo mês do ano Letónia 5,1 Baixos registaram as subidas mais moderadas no
anterior). No início deste ano, eram os serviços, UE-27 4,6 preço do azeite.
os produtos industriais não energéticos e os Itália 4,2 Tendo o preço da pizza aumentado em anos
produtos alimentares, bebidas alcoólicas e tabaco Croácia 3,9 anteriores, é pouco provável que este volte a descer.
que mais contribuíam para a taxa de inflação Países Baixos 3,7 Focado na estabilidade dos preços, o Banco Central
anual da zona euro. Dinamarca 3,2 Europeu não procura, contudo, provocar uma
Suécia 2,7 descida dos mesmos. O BCE tem como meta uma
O CUSTO DAS MATÉRIAS-PRIMAS Irlanda 1,9 taxa de inflação de 2% no médio prazo, porque
Os bens alimentares, em particular, comprovam Grécia 1,9 o seu objetivo é evitar períodos prolongados de
essa subida: o preço do cabaz alimentar aumentou Bulgária 1,6 inflação demasiado alta ou baixa — isto porque
quase oito euros no último ano, concluía há uma Chipre 1,3 um cenário de deflação ou de inflação muito
semana a Deco Proteste. E o azeite virgem extra, Espanha 1,2 reduzida pode ser tão negativo como o de uma
os cereais e os cereais integrais estão entre os dez Eslovénia 1,1 inflação elevada. Desta forma, os preços tenderão a
alimentos que mais contribuíram para esta subida. Portugal 1 continuar a subir.
Na verdade, muitos dos principais ingredientes Estónia 0,7 O Expresso tentou contactar a Sonae MC, a
deste prato de origem italiana — como a farinha, o -4,3 Chéquia Jerónimo Martins, a Associação Portuguesa de
FONTE: EUROSTAT
azeite, o tomate, o queijo — têm visto o seu preço Empresas de Distribuição (APED) e a Associação
aumentar no espaço europeu. dos Distribuidores dos Produtos Alimentares
Vejamos o caso da massa da pizza. O preço (ADIPA) para perceber como têm evoluído
dos produtos cozidos no forno aumentou os preços e a procura por esta categoria de
exponencialmente no espaço comunitário em produtos, mas não obteve resposta até ao fecho
2022, na sequência da invasão russa da Ucrânia, desta edição. b

E 8
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fisga
O QUE EU ANDEI PARA AQUI CHEGAR
UM CURRÍCULO VISUAL

Satélite Aeros
Trinta anos depois do lançamento do primeiro satélite nacional, Portugal regressa ao Espaço com um
nanossatélite que descolou esta semana de uma base da norte-americana SpaceX, de Elon Musk.
Destinado a estudar o oceano Atlântico e, em particular, a costa portuguesa, o seu sucesso pode ser mais
um passo na história espacial portuguesa. / MARIA JOÃO BOURBON

1972
Berço de Portugal
no Espaço
No mesmo ano em que decorre, em
Viena, a Conferência das Nações
Unidas sobre a “Utilização Pacífica
do Espaço Exterior Atmosférico”,
nascem as atividades portuguesas
para o espaço exterior.
1993 2024
O primeiro satélite Regresso ao Espaço
Em setembro, o PoSat-1, o Pela segunda vez, um satélite
primeiro satélite português, português é lançado para o
é lançado para o espaço, a Espaço. Chama-se Aeros, é um
partir da Guiana Francesa, a nanossatélite de 4,5 quilos e
bordo do voo 59 do foguetão seguiu a bordo de um foguetão
Ariane 4. Representando um Falcon 9, que descolou de uma
investimento de €5 milhões, base da empresa SpaceX, de
este microssatélite de 50 Elon Musk, nos Estados Unidos,
quilos é criado com o intuito de para estudar o oceano Atlântico,
durar sete anos. em especial a costa nacional.

2020
1995 Projeto Aeros
Transmissões Nasce o projeto Aeros,
militares a partir de um consórcio
português liderado pelo
Portugal começa a centro tecnológico
participar nas operações CEiiA e pela empresa
das Nações Unidas em Thales Edisoft. Com
Angola e, um ano depois, um investimento de
envia militares para a €2,78 milhões, combina
Bósnia-Herzegovina, para investimento público
participarem nas operações (do Fundo Europeu
de manutenção de paz. de Desenvolvimento
O PoSat-1 mostra-se útil Regional) e privado.
nestes dois países, sendo
utilizado pelos militares 2006
portugueses para a
transmissão de mensagens. Órbita descendente
Excedendo o tempo de vida, o
PoSat-1 está funcional e com 2019
comunicações regulares com a Portugal Space
Terra durante 13 anos. Em 2006
deixa de dar sinal e fica à deriva Dois anos depois da criação do AIR
numa órbita descendente, devendo Centre — Centro de Investigação
2000 desintegrar-se na atmosfera Internacional do Atlântico (rede de
terrestre perto de 2043. colaboração internacional para dar
Membro da ESA resposta a prioridades locais no oceano
Portugal faz-se membro de pleno direito Atlântico), é fundada pelo Governo
da Agência Espacial Europeia, tornando- português a Agência Espacial Portuguesa
se o 15º Estado-membro da ESA. Isto — Portugal Space. Com sede nos Açores,
impulsiona o desenvolvimento de projetos destina-se a fortalecer e a promover a
deste sector com as universidades. aposta do país no Espaço.

E 10
JUNTOS
CUIDAMOS MAIS
DO QUE DO SEU
SISTEMA IMUNITÁRIO*
COM ESTA PARCERIA, A CRUZ VERMELHA
CONSEGUIRÁ APOIAR AINDA MAIS FAMÍLIAS VULNERÁVEIS.
SAIBA MAIS EM: DANONE.PT/ACTIMELAJUDA

*Actimel contém as vitaminas D e B9, ferro e zinco, que contribuem para o normal funcionamento do sistema imunitário. Deverá ser consumido integrado numa alimentação e estilo de vida saudáveis.
fisga
PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS
POR JOÃO PACHECO

FLASHES PARIS — ESSEN

O aluno
de Gauguin

FRANÇOIS DELESTRE FINE ARTS


LONDRES
Porto, por volta de 1585. Quando o menino nasceu,
Esta obra do escultor, escritor e religioso recebeu um nome católico. A família de Gabriel era de
iorubá Mestre Didi faz parte em Londres da
cristãos-novos. E ser judeu na Península Ibérica era correr
exposição “Some May Work as Sym-
perigo de prisão, de tortura e de ser executado numa
bols” (Algumas Podem Funcionar como
Símbolos), com arte brasileira sobretudo
cerimónia pública, com o fogo da Inquisição. O rapaz do a pintura de Meyer De Haan, em parte porque conheceu
das décadas de 50, 60 e 70. Até 5 de maio, Porto partiu e converteu-se ao judaísmo. Ganhou então o o pintor Paul Gauguin. Nos anos seguintes e até à partida
no Raven Row, com obras de artistas como nome próprio Uriel, alinhado com a fé judaica. A história de Gauguin para o Taiti em 1891, passaram muito tempo
Abdias Nascimento, Heitor dos Prazeres e do portuense Uriel da Costa já inspirou vários artistas, juntos. Viveram na mesma hospedaria na Bretanha, em
Lygia Clark. E de Mestre Didi, que foi tam- incluindo a escritora Agustina Bessa-Luís. O pensador Le Pouldu. E Meyer De Haan foi aluno de Gauguin. De
bém personagem do escritor Jorge Amado, Uriel da Costa terá sido também influente para o filósofo de Haan serviu também de modelo para várias pinturas,
no livro “Dona Flor e Seus Dois Maridos”. origem portuguesa Spinoza. Em Amesterdão, Uriel teve um esculturas e desenhos feitos por Gauguin. Incluindo este
final de vida infeliz. Também em Amesterdão, mas já no desenho, que estará à venda em Paris na feira de arte
final do século XIX, o pintor Meyer De Haan dedicou oito Salon du Dessin, na François Delestre Fine Arts, de 20
PORTO
anos a pintar uma grande tela. O tema era um momento da a 25 de março. O retrato deste aluno e amigo do pintor
Os frescos criados por Júlio Pomar esti- vida de Uriel da Costa e, se tudo tivesse corrido bem, seria haveria de reaparecer na arte de Paul Gauguin. O exemplo
veram tapados por sete camadas de tinta
obra para consagrar aquele pintor de origem judaica. Mas mais famoso é um óleo que pode ser visto na Alemanha,
durante décadas, por ordens da ditadura
quando a pintura foi exposta em 1888, houve reações muito no Folkwang Museum, em Essen. Nessa pintura chamada
de inspiração fascista de António Oliveira
Salazar. Agora, merecem contemplação
críticas. A obra já não existe. E segundo o que se pode ver “Contes Barbares”, Gauguin pintou em 1902 duas
no Cinema Batalha, no Porto. Um bom numa reprodução, não seria caso para o autor ganhar mulheres do Taiti seminuas, sentadas, observadas por
momento é já a 24 de março, às 17h15. lugar de relevo na História da Arte. Só que no ano dessa um homem ocidental vestido, mas descalço. Esse homem
Numa sessão de cinema dedicada à exposição fatídica, Meyer De Haan partiu para França. tem a cara de Meyer De Haan, que já tinha morrido sete
Palestina, com três filmes que incluem Em Paris, partilhou casa na Rue Lepic com Theo van anos antes. Através da obra de Gauguin, Meyer De Haan
gastronomia, ficção científica e arqueo- Gogh, ocupando o quarto onde antes dormira o pintor ficou mesmo na História da Arte, apesar do insucesso da
logia. Pois, a História nunca parou. Vincent van Gogh. A mudança de cidade ajudou a alterar grande pintura sobre o portuense Uriel da Costa. b

NOVA IORQUE
PHOTO
MATON O poder da Harlem Renaissance
Martin Luther King Jr. foi assassinado em negritude, nos anos 20 e 30. A partir do
1968. No ano seguinte, houve polémica bairro de Harlem, com pensadores como
em Nova Iorque, quando o Metropolitan Alain Locke e W.E.B. Du Bois. E através da
Museum of Art inaugurou a exposição música, da pintura e de outras artes. Há
“Harlem on My Mind: Cultural Capital também espaço para Edvard Munch e
of Black America, 1900-1968” (Harlem Henri Matisse. E para um retrato de Aimé
na Minha Cabeça: Capital Cultural da Césaire, feito por Pablo Picasso. Cuidado,
América Negra). Num museu de arte, pode provocar urgência de ouvir jazz.
havia apenas texto e fotografias. A
JUAN TRUJILLO/METROPOLITAN MUSEUM OF ART

comunidade artística afro-americana


fez um protesto histórico, que se
SURESH KUMAR

espalhou. Agora, até 28 de julho, o Met


acerta contas com a exposição “The
Harlem Renaissance and Transatlantic
Modernism”, com artistas como
Agora e até 22 de setembro, o V&A South Kensington tem em Londres Archibald Motley, Jr. Estes blues são de
a exposição “Tropical Modernism: Architecture and Independence” 1929, numa das 17 pinturas de Motley
(Modernismo Tropical: Arquitetura e Independência). E por lá navega esta incluídas, com muitos artistas ligados
gaivota, fotografada por volta de 1960, com os arquitetos Le Corbusier e ao Harlem Renaissance. O movimento
Pierre Jeanneret junto à cidade indiana de Chandigarh. Pedalar é preciso. cultural marcou a consciência global da

E 12
O MITO LÓGICO

O METROSSEXUAL
NÃO MORREU

O
O HOMEM HIPERNARCÍSICO JÁ NÃO É UM ESTILO DE VIDA. É UMA IDEOLOGIA
termo “metrossexual” completa 30 aparência, mas desprovida de sustentação intelectual sem pudor — muito à
anos em 2024. Antes disso, havia maneira dos concorrentes de reality shows —, onde, justa ou injustamente,
homens que punham creminhos Cristiano Ronaldo foi coroado como rei. Da mesma forma que, nos anos
e perfuminhos, tratamentozinhos. 2000, David Beckham foi a figura dos metrossexuais (o domínio do futebol
Mas não tinham um nome atribuído. permitiu que a publicidade encontrasse modelos para as cuecas da Calvin
Em Portugal, o termo sempre Klein com corpos perfeitos sem alienar a clientela hétero).
foi empregue quase como uma Quanto aos “looksmaxxers” do TikTok, jovens que ensinam outros a
acusação. “És um metrossexual.” aprimorar a aparência, já fazem parte de uma ideologia do século XXI.
Não que isso colocasse em causa a Estamos numa rede social — e das mais efervescentes. Ali, o objetivo é
sua heterossexualidade. Mas criava- ajudar a “subir na escala de cotação masculina” para alcançar “maior
se uma suspeita acerca da sua valor” e obter aceitação numa cultura de validação no implacável
personalidade. Que tipo de homem mundo das redes. Por isso, esta explosão de “looksmaxxers” parece
usa cremes? Sim, foi há 30 anos. O estar a ganhar grande aceitação entre os “incels” — “os celibatários
termo terá sido cunhado em 1994 involuntários”, os mais autoexcluídos entre os homens —, que acreditam
por Mark Simpson, jornalista britânico, embora o protótipo já fosse ter o direito de se vingar nas mulheres porque estas preferem homens
reconhecido por muitos, nomeadamente através da figura do yuppie de atraentes em detrimento deles, os desfavorecidos. Falamos de propostas
Wall Street que prevalecia na cultura pop e que saltara do bestseller global como as famosas borrachas para morder e fortalecer a mandíbula ou um
“American Psycho”, de Bret Easton Ellis, de 1991, que é exatamente procedimento cirúrgico que se popularizou na América (e que já se realiza
sobre um yuppie psicopata serial killer — talvez uma redundância para em Espanha), que é o aumento ósseo do maxilar para obter uma aparência
o autor. No entanto, a ideia do “metrossexual” ficou eternizada no mais viril, além da rinoplastia ou dos transplantes capilares. Isso e toda
filme homónimo de 2000, na cena da “rotina matinal”, onde Patrick uma transformação corporal por meio da musculação, com tutoriais do
Bateman (Christian Bale), um banqueiro de investimento, se levanta e TikTok. O caminho para uma perfeição idealizada e inalcançável. Nunca se
caminha para o duche, enquanto ouvimos a sua voz interior: “Moro no menciona a interação no espaço social (conhecer/namorar alguém). Tudo
edifício American Gardens, na Rua 81 Oeste, décimo primeiro andar. O isto parte de uma cultura de misoginia e objetificação tanto de mulheres
meu nome é Patrick Bateman. Tenho 27 anos. Acredito na importância quanto de homens. Os yuppies, pelo menos, perseguiam o sucesso
de cuidar de mim próprio, numa dieta equilibrada e numa rotina de monetário e sexual.
exercício rigorosa. De manhã, se o meu rosto estiver um pouco inchado, O metrossexual — Patrick Bateman — não morreu. As redes sociais
aplico uma bolsa de gelo enquanto faço abdominais. Atualmente, consigo absorveram-no e multiplicaram-no por bits infinitos. Ele é a sopa
fazer 1000. Depois de remover a bolsa de gelo, uso uma loção de limpeza primordial das masculinidades de hoje, seja por árvores genealógicas
profunda dos poros. No duche, uso um gel de limpeza ativado por água, difíceis de traçar, seja por oposição ao próprio conceito. Anda por fóruns,
seguido de um esfoliante corporal de amêndoas e mel e, no rosto, um reddits, tiktoks, sob novas formas e atualizações, ou existirá por antítese a
esfoliante em gel.” E a descrição prossegue por mais alguns minutos. si próprio. “Uma espécie de abstração. Mas não existe um verdadeiro eu.
No livro, a narração é muito mais detalhada. Os produtos, os móveis, as Apenas uma entidade. Algo ilusório [...] talvez até possas intuir que os
cadeiras, o frigorífico, a arte: tudo tem marca ou autor. Enquanto remove nossos estilos de vida têm semelhanças [...] eu simplesmente não existo.”
a máscara de limpeza, conclui: “Existe um conceito de Patrick Bateman. P.S.: Na última crónica escrevi erradamente que o Gemini era da Microsoft e
Uma espécie de abstração. Mas não existe um verdadeiro eu. Apenas uma não da Google. O que prova que o texto ainda foi escrito por um humano. b
entidade. Algo ilusório. E ainda que consiga ocultar o meu olhar gélido, lpnunesxxx@gmail.com
e tu possas apertar a minha mão e sentir o contacto da carne, e talvez até
possas intuir que os nossos estilos de vida têm semelhanças, na verdade
eu simplesmente não existo.”
Há quem assegure que o metrossexual está morto. Não me parece.
Diluiu-se pelas diversas dezenas de géneros que hoje são listados nos
dicionários urbanos. Talvez quem esteja vivo seja a descendência de
Bateman, o macho sigma, o “lobo solitário”, sem empatia, hipernarcísico
(no filme, ele assassina sem-abrigo e acompanhantes, consideremos
isso o simbolismo de alguém que desdenha do “cesto dos deploráveis”).
Bateman fragmentou-se e fundiu-se numa série de masculinidades que
/ LUÍS
hoje têm outros nomes. Dei de caras com uma caricatura de Bateman PEDRO
no TikTok sob o nome e hashtag de “looksmaxxers” — influenciadores
e maximizadores de aparência, com legiões de seguidores ansiosos
NUNES
por aprender a cuidar da pele ou a melhorar o seu aspeto. Atualmente,
há ainda uma tipologia masculina que pode ser confundida com os
metrossexuais — observo-os nos ginásios, admirando-se ao espelho,
cabelo impecável; são uma evolução. Chamaram-lhes spornsexuais. Uma
fusão da estética porno, desportiva e metrossexual — uma obsessão pela

E 14
PODCASTS EXPRESSO

2ª A 2ª A 2ª FEIRA 2ª FEIRA 2ª FEIRA 2ª FEIRA 3ª FEIRA 3ª FEIRA 3ª FEIRA


SÁBADO SÁBADO semanal semanal semanal quinzenal semanal semanal semanal
diário diário

4ª FEIRA 4ª FEIRA 4ª FEIRA 4ª FEIRA 5ª FEIRA 5ª FEIRA 5ª FEIRA 6ª FEIRA 6ª FEIRA


semanal quinzenal semanal semanal semanal semanal semanal semanal semanal

SÉRIE SÉRIE SÉRIE SÉRIE JÁ ESPECIAL


COMPLETA COMPLETA COMPLETA COMPLETA DISPONÍVEL 50 ANOS

LIBERDADE PARA OUVIR

DISPONÍVEL EM EXPRESSO.PT/PODCASTS,
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IDEIAS

A EUROPA FEITA DE FORA?


CHEGOU A HORA DE OS LÍDERES EUROPEUS — QUE ATÉ AQUI SE ESCONDERAM ATRÁS
DA INICIATIVA E HEROÍSMO DOS UCRANIANOS E DOS DÓLARES AMERICANOS — LEMBRAREM
AOS ELEITORES E CONSUMIDORES DA EUROPA FELIZ QUE O AMANHÃ NEM SEMPRE É O QUE
DESEJAMOS. ENTRE NÓS E O FUTURO PODEM ESTAR SACRIFÍCIOS INCOMENSURÁVEIS

TEXTO JOSÉ TAVARES PROFESSOR CATEDRÁTICO NA NOVA SBE, DOUTORADO EM ECONOMIA


PELA UNIVERSIDADE DE HARVARD, AUTOR DO ENSAIO “A EUROPA NÃO É UM PAÍS ESTRANGEIRO”

A
pós décadas de paz, um extenso período a que al- crises enquanto os eleitores europeus adotavam
guns apelidaram de Pax Europaea, a Europa viu-se Zelensky como o líder mais consciente dos valores
sobressaltada pelo conflito dos Balcãs e a desinte- do continente, da sua centralidade e transcendência.
gração da Jugoslávia, primeiro, e a partir de 2014,
com a invasão da Crimeia e do Leste da Ucrânia pela UM CONTINENTE ADORMECIDO
Rússia. Desde 2022 o continente assiste — o verbo A MEIO DE UMA DANÇA
assistir é injusto apenas em parte, a uma guerra en- Pax Europaea, o termo desde 1950 um exagero. A paz
tre dois estados que ameaça prolongar-se no tempo. na Europa foi feita “de fora”, efeito colateral do en-
Na Ucrânia se decidem os limites da Europa, talvez frentamento entre os Estados Unidos e a União So-
os geográficos, certamente os seus limites morais. viética, e o statu quo rigidamente corporizado pelo
Por morais entendemos aqui os limites do ânimo e muro que dividia a Europa Ocidental da Europa de
da vontade, ou não, de futuro europeu. Como che- Leste. Esses anos de chumbo foram, na geografia eu-
gámos aqui? E, aqui chegados, estamos cientes de ropeia, anos de “paz” construídos à custa do orça-
onde estamos e do que pode estar ainda diante de mento de defesa norte-americano, de um lado, e as
nós sob a roupagem da ameaça e do sacrifício? Nós, divisões soviéticas, do outro. Enquanto isso, a Euro-
que queremos tanto a paz, tememos agora que a paz pa ocidental crescia em consumo e joie de vivre, vi-
não nos queira a nós. It takes two... ciando-se nessa paz importada a preços de saldo, de
As prósperas e entretidas populações europeias que não era necessário sequer falar pois era parte da
foram naturalmente surpreendidas por esta guerra. paisagem do progresso e da felicidade de um futuro
Os cidadãos embebidos de riqueza e embebedados tomado como certo.
de prosperidade da Europa Ocidental receberam a Wladimir Kaminer, escritor russo emigrado em
notícia da invasão da Ucrânia com sincera estupe- Berlim, que se descreve a si mesmo como cidadão
fação. Uma força vinda não se sabe se do passado russo em casa, escritor alemão no trabalho, é uma
ou do futuro obrigou-nos outra vez a ponderar su- testemunha iluminada desta complacência europeia
jar as mãos e a considerar a possível inevitabilidade e alemã. No seu recente “Pequeno-Almoço à Beira
da guerra. Durante meses, talvez estes dois anos, re- do Apocalipse”, Kaminer exibe dotes extraordiná-
vimo-nos na resistência dos ucranianos anónimos, rios na observação dessa dança sonâmbula mas feliz
soldados e civis, e na extraordinária eloquência de que trouxe os habitantes da Alemanha e da Europa
um presidente que corporizou quase perfeitamente a Ocidental até hoje e até aqui.
vontade de afirmação e resistência. Apesar da sua pe-
riferia em relação aos costumeiros debates europeus, “A geração de 70+, os nascidos nos ditosos anos
ou até por causa dela, o presidente Zelensky tornou- de 1947-1952 — esses filhos muito protegidos da
-se o protótipo do Über Europeu, aquele líder que se [Guerra Fria,
eleva à altura da ocasião, comparado ao Churchill autênticas pombas da paz encarnadas em seres hu-
da “hora mais negra” da Grã-Bretanha. Entretanto, manos — tinha pena deles. Saíra-lhes a sorte grande
uma União Europeia entretecida na ressaca das dívi- [na lotaria da História,
das soberanas, perplexa com o fluxo de refugiados e tinham conseguido passar furtivamente por entre as
a saída do Reino Unido, ainda semiconvalescente da guerras mundiais, nasceram demasiado tarde para a
crise da covid, foi obrigada a relativizar muitas dessas [segunda,

E 16
FUTURO “Navios
Britânicos que
Bloqueiam Cádis
em 1797”, de
Thomas Butters-
worth, no National
Maritime Museum,
Greenwich, Londres
ROYAL MUSEUMS GREENWICH

já iam numa idade avançada quando chegou a liberdade da dança, da emancipação, da demo- apêndice Euro-asiático, seja pelas suas numerosas
[terceira, cracia liberal e, por fim, da sexualidade. Aos trei- aventuras, glórias e maldades ultramarinas. Quan-
e entre ambas divertiram-se bastante. nos de memória e ao ioga chegámos, quiçá!, ape- do a Europa se lembrava de si, era para organi-
Fizeram todo o percurso desde o Plano Marshall nas nos últimos cinco a dez anos. Apropriámo-nos zar novas matanças internas e ajustar uma vez o
até à longa marcha pelas instituições, do desejo de consumo e da certeza da liberdade jogo das suas fronteiras interiores. O fim da Guer-
e de caminho lutaram de forma corajosa depois de uma Europa que foi Ocidental antes de ra Fria — na sua versão clássica, a retirada mental
e até ao esgotamento nas barricadas da revolução nós e ainda o é mais que nós. E, no entanto... No dos Estados Unidos e a desvalorização do seu um-
[sexual, entanto também aqui chegámos, com determina- bigo europeu e, por fim, a viragem dos governan-
treinaram a sua resistência em clubes e discotecas, ção para enfiarmos a nossa cabeça na areia — ah, tes russos para um trágico ajuste de contas com a
participaram no rock n’roll e na reunificação, o sol, as praias!, protegidos pela nossa neste caso História, tudo isso expôs a vulnerabilidade da Eu-
em cruzeiros e aulas de tango, feliz condição de periferia, pela sombra auxilia- ropa, deixa-a cada vez mais à mercê de si mesma,
treino de memória e ioga para reformados.” dora da geografia de Espanha e pela certeza enga- dependente apenas da sua alma e da sua força. A
nadora de que a História – como a Europa, estará invasão da Ucrânia recolocou à mesa da História
(Tradução: Helena Araújo — Editora: Zigurate) sempre connosco e nos garante o futuro. Chegá- europeia a definição das suas fronteiras geográfi-
mos, portugueses, a esse lugar de adormecimento cas e éticas. Queremos acreditar que, mais tarde
É duro, mas está lá tudo: a guerra atrás das cos- em que cavalgamos as preocupações dos outros e ou mais cedo, provavelmente mais tarde, os limites
tas, a primeira e a segunda, a almofada financeira ponderamos ignorar o sacrifício pessoal e finan- morais da Europa reintegrarão uma Rússia redimi-
do Plano Marshall americano e o guarda-chuva da ceiro que uma guerra prolongada na Europa nos da. Por ora, os governantes europeus que até aqui
Guerra Fria, a dança e a revolução sexual e o rock pode ainda impor. se esconderam atrás da iniciativa e heroísmo dos
até desaguarem no ioga, no tango e nos jogos de ucranianos, e do financiamento norte-americano,
memória para entreter a idade da reforma. Depois ACORDAI? precisam absolutamente de lembrar aos eleitores
da carnificina da Segunda Guerra Mundial, estes A Europa sempre se alimentou de fronteiras di- e consumidores da Europa feliz que o futuro nem
europeus que abraçaram o capitalismo e cons- fusas, seja pela sua condição geográfica de quase sempre é o que desejamos e entre nós e o futuro
truíram “o modelo social europeu”, que testemu- podem estar sacrifícios incomensuráveis.
nharam a União Europeia a alargar o seu âmbito Como bem coloca Kaminer, “2022 [ano da in-
das alegrias fáceis do comércio para o simbolismo
e o sonho da cidadania europeia, a estes cidadãos Os dirigentes vasão da Ucrânia pela Rússia] foi o ano do Tigre da
Água. A autoconfiança, o aventureirismo e o gos-
da Europa saiu-lhes, sem disso ganharem cons-
ciência, “a sorte grande na lotaria da História.” O europeus to pelo risco estavam na ordem do dia, e não eram
propriamente os atributos com que o Ocidente
máximo de suposto realismo que se permitiram
estes privilegiados do destino foi ensaiar a melo- arrastaram mais brilhava”. Surpreendidos, os dirigentes eu-
ropeus arrastaram por demasiado tempo a cau-
dia morredoira e desistente de um better red than
dead, publicitando a lógica preguiçosa do nada por demasiado da da sua complacência. Ainda Kaminer: “Espe-
ra aí, pensariam eles. O próximo vai ser o ano do
valer a pena. Coelho.” O coelho da Páscoa? O coelhinho bran-
Nós, portugueses, fomos diferentes, fomos mais
tarde. Pobres, ensimesmados, trabalhadores ru-
tempo a co? Bugs Bunny, o coelhinho da Duracell? Desejo
muito estar enganado, mas a esta Europa o ano do
rais emigrados para França ou mobilizados para
a Guerra do Ultramar, só nos anos 70 e depois
cauda da sua coelho pode não chegar. b

do 25 de Abril nos entregámos decididamente à complacência e@expresso.impresa.pt

E 17
ARTE MÓNICA DAMAS

TEXTO
ÂNGELA SILVA

E 18
BEM-VINDO
AO PAÍS
TRIPOLAR
A ideia do país dividido ao meio entre PS
e PSD acabou. O Chega veio baralhar
as contas e daqui para a frente ninguém tem
certezas sobre como se vão encaixar
as peças políticas em Portugal

E 19
D
aqui a 10 ou 20 anos, se alguém se lembrar de re-
visitar o filme das eleições antecipadas mais es-
trambólicas do pós-25 de Abril (caiu uma maio-
ria absoluta após uma investigação judicial a um
primeiro-ministro, de que nada se soube até ao
dia do voto), encontrará um dado muito chama-
tivo: um senhor chamado Cavaco Silva que aos 84
anos e já pós-reformado de uma carreira inigualá-
vel, com duas décadas acumuladas de poder exe-
cutivo e presidencial, resolveu colar-se ao elenco
da peça estrambólica disposto a sucessivas entra-
das em palco. E a razão para o ter feito é simples.
O seu partido de sempre e um dos partidos-chave
PS, os dois maiores, ao voto útil, por outro as con-
geminações sobre o que garante mais estabilidade
política, num quadro em que tudo cheira a instável
e nada ficará como dantes.
“O voto em partidos de protesto extremistas
apenas contribui para a nomeação do líder do PS
para primeiro-ministro”, foi o último grito de aler-
ta de Cavaco, desta vez num artigo no “Correio da
Manhã” (quando se quer chegar ao povão faz-se
assim). Mas o maior papão para Cavaco e para o
PSD não é Pedro Nuno Santos. O que os apavora
não é só a hipótese de os socialistas ganharem es-
tas eleições, coisa que as sondagens mostram não
do regime democrático, o PSD, histórico agregador ser o mais provável mas não ser impossível e que,
do centro-direita, foi atingido pelo anticiclone das a acontecer, lançará os ‘laranjinhas’ em profunda
direitas radicais e 2024 ficará para a História como crise interna. O mais dramático para o PSD é saber
o ano em que o Portugal político tremeu. De bipo- que, desta vez, se correr mal, a crise será mais exis-
lar, o sistema cheirou o risco da tripolaridade. Uma tencial do que todas as outras, porque para o PSD
doença que não augura nem melhor diagnóstico, perder é preciso o partido de Ventura galgar para
nem melhor terapia, nem vida mais funcional. Ca- lá dos 15% e isso significaria o Chega consolidar-se
vaco foi uma espécie de último moicano em defesa como terceiro pilar de um xadrez em que à duali-
do seu povo (há outro neste enredo, chama-se Luís dade esquerda-direita se sobreporia a tripolaridade
Montenegro). Porque percebeu que há algo de trá- esquerda-direita-forças antissistema. Neste qua-
gico no voto do próximo domingo. dro, a direita moderada deixava de, só por si, con-
Não há memória de umas eleições assim. Uma seguir chegar ao poder de forma sustentada. E isso
coisa foi ver o Chega eleger um deputado em 2019, explica o drama que nos últimos dois anos assolou
outra foi vê-lo crescer para 12 deputados em 2022, a vida do adversário clássico do PS, até Luís Mon-
mas o que as sondagens mostram poder estar aí, é tenegro ter tido o arrojo de arriscar pôr uma cerca
uma revolução, que passaria por ter no Parlamento entre si e Ventura. Talvez seja a derradeira hipóte-
uma bancada do partido de André Ventura com 30, se de o PSD manter o Chega afastado do poder. Por
40 ou mais deputados. Não é o delírio previsto por quanto tempo, ninguém sabe.
alguns que já admitiam um Chega a ultrapassar o Sabemos que no PSD (agora AD, em coligação
PSD (a acontecer, não estamos lá). Mas que há algo com o CDS e com um PPM liderado por um fadista
de novo que pode prejudicar todos mas que preju- que anda escondido) há quem considere a estratégia
dica sobretudo a direita clássica é inquestionável de Montenegro um erro condenado a falhar, como
e, talvez por isso, também não há memória de uma falhou na maioria dos países europeus, já que a cerca
campanha eleitoral como esta. O circuito da carne sanitária só resiste na Alemanha, enquanto pela Eu-
assada, as almoçaradas-comícios a cheirar a suor, ropa fora a direita moderada acabou por ir perdendo
as bancas de promessas a granel, os artistas convi- eleições após teimar na exclusão da direita radical.
dados e o campeonato dos carismas já não chegam Em Espanha, o Vox não chegou ao poder por um fio,
para ter certezas sobre o que isto vai dar. Os inde- mas já está em vários governos locais; a AfD já está
cisos, em vez de diminuírem, há poucos dias ainda em segundo lugar na Alemanha; em França, a Frente
cresciam — a última sondagem do ICS/ISCTE para Nacional de Marine Le Pen lidera as sondagens para
o Expresso e a SIC colocava-os com 18%, acima do as eleições europeias e para as presidenciais; e de-
Chega, o terceiro partido, apesar de este registar pois de Itália, viu-se recentemente na Suécia e na
uma queda —, e ninguém sabe quanto ainda va- Holanda os radicais pularem a cerca e ultrapassarem
lem, por um lado o desesperado apelo do PSD e do o centro-direita em eleições legislativas.

E 20
Se é verdade que o líder da AD ficará como um
quase herói na defesa da autonomia do seu parti-
ousada de que não terá alergias em dialogar no
Parlamento com “a direita democrática”. Mari-
A ausência
do, que está cercado como nunca esteve, também é
verdade que a sua estratégia de “não é não” a acor-
ana Mortágua, do BE, pasmou. Mas Marcelo Re-
belo de Sousa, que anda calado há semanas mas
de soluções
dos com Ventura corre riscos e será escrutinada no
próximo domingo. É aí que estamos, à espera para
não pensa noutra coisa, já tinha avisado: o Chega
não é um problema exclusivo do PSD e é bom que
maioritárias
ver. Com uma certeza: a de que a coisa é de tal for-
ma séria que acabou por contaminar não só a cam-
a esquerda comece a pensar nisso. Aparentemen-
te, já começou. num xadrez
panha da direita moderada como a do próprio PS,
que perante o dilema de empurrar o Luís para os A CHARADA DO PROFESSOR MARCELO mais
braços do André ou ajudá-lo a combater os extre-
mismos parou para pensar.
“Há um momento em que a normalização do que
surgiu para dividir a direita clássica atinge o cen- pulverizado
Grande parte da troca de bolas na campanha
eleitoral foi uma charada sobre cenários de gover-
tro, depois atinge o centro-esquerda e depois a pró-
pria esquerda”, avisou Marcelo no podcast “Expres- do que nunca
nabilidade, com o PSD a ensaiar fórmulas para ga-
rantir estabilidade mesmo se ganhar sem maioria
so da Manhã”, a 5 de janeiro, quando usou o exem-
plo dos Países Baixos, onde uma coligação de vários dará nova vida
e o PS a exercitar doridas espargatas antes de se
render à evidência de que, do mal o menos, en-
partidos a jogar à defesa conseguiu resistir à direita
antissistema, mas resistiu pouco tempo porque nas a algumas das
tre ver o velho PPD refém do bolsonarista Ven-
tura, mais vale, se Montenegro ganhar, garantir-
eleições seguintes foi essa direita que ganhou. A
perda, a prazo, toca a todos, avisou o Presidente da regras mais
-lhe que os socialistas, mesmo pedronunistas sem
melhor para oferecer, o deixam governar. O elei-
República, certamente motivado em ajudar o seu
partido de sempre, que é quem mais está exposto democráticas
tor comum não terá percebido metade das teori-
as sobre ‘quem deixa governar quem’ que invadiu
à nova ameaça, mas também consciente de que o
alerta tem um fundo de crua realidade. de sempre:
sem dó nem piedade os 30 debates da campanha,
mas o que de novo está em jogo nestas eleições é
Ele anda a avisar desde 2018, quando o primei-
ro-ministro ainda achava esta conversa uma es- dialogar,
de tal forma estrutural que até Rui Tavares, o lí-
der do Livre, veio agitar a esquerda com a garantia
pécie de “pintura abstrata”. Mas basta ter segui-
do as sondagens dos últimos meses para perceber negociar e ir
como o avanço do partido do contra atinge todos:
se o PS caiu 13 pontos desde a maioria absoluta de encontrando
2022, se a esquerda à sua esquerda continuou ma-
gra, se o PSD não deu um salto de gigante e se só o caminhos
Chega disparou, é porque Ventura, além de ir bus-
car novos votantes, também entra no centro e na
esquerda. E o PCP que o diga. O ‘venturismo’ surge
a trepar em Beja, em Setúbal, em Évora, no Algar-
ve... E se a grande ameaça é para o PSD, que arris-
ca ser relegado para terceira força em alguns desses
distritos, os comunistas também são penalizados e
nem o PS tem garantias de resistir à ofensiva.
Voltemos a Marcelo: “Pode-se aguentar uma dé-
cada... mas o cansaço com os partidos tradicionais
é tão patente” que se em França e Itália já se fala de

E 21
Pedro Nuno uma reforma constitucional, num mundo aberto não
há vacinas infalíveis. “Pode-se aguentar uma déca-
e se o PS perder e não tiver à esquerda uma maioria
que lhe permita replicar a jogada de António Cos-
Santos e Rui da...” quer dizer que há um Presidente da República
convencido de que é uma questão de tempo. Mas se
ta em 2015, o seu líder já disse que viabilizará um
Governo minoritário da AD. Montenegro nunca lhe
Tavares já a afirmação da onda populista em Portugal foi estilo
‘Pepe rápido’, também ficou claro na longuíssima
prometeu reciprocidade porque fazê-lo seria dar
votos de bandeja a Ventura, mas foi largando frases

começaram campanha eleitoral que hoje chega ao fim que houve


uma coligação negativa de todos contra Ventura que
para contrariar a ideia do impasse. E impasse seria
o que ele teria para dar, já que se recusa a montar

a trabalhar o pôs a ficcionar fraudes eleitorais, a confundir pis-


tolas com escapes de motos e a acabar onde come-
uma ‘geringonça’ com o Chega, que lhe permitisse
servir ao Presidente da República uma alternativa de

cenários çou, a defender a pena de morte. Bom sinal não será.


A esquerda percebeu e após ter começado por
poder. “O país não vai ficar ingovernável. Não vai”,
disse Montenegro ao “Comissão Política”, no festi-

alternativos colar a AD de Montenegro ao Chega, insinuando


que mais tarde ou mais cedo cairiam nos braços um
val de podcasts do Expresso. E no debate com André
Ventura, quando este o desafiou a dizer que se per-

ao que no fundo do outro, percebeu que há escolhas que é penoso


não fazer e, perante a clara estratégia da cerca as-
der viabilizará um Governo socialista minoritário, o
líder da AD já tinha respondido: “Isso não falo con-

mais temem sumida pelo líder do PSD, acabaram todos a atirar


contra o mesmo alvo nos debates: “Já nem a AD se
sigo. Isso falarei com o PS.”
Não é líquido que o PSD lhe dê campo para, per-

— contribuir quer sentar consigo”, disse Mortágua a Ventura. E o


líder do Chega acusou o toque, arriscou pouca rua,
dendo, decidir o que quer que seja, mas no Palácio
de Belém a estratégia está traçada: se uma derrota

para a direita perdeu química nos media e acabou a ver coisas.


Normalmente acontece-lhe quando o calor aperta.
no domingo deixasse o líder da direita moderada
em xeque internamente, o facto de haver eleições

radical singrar Mas a prova dos nove é só no domingo e o car-


toonista António brindou-nos há duas semanas
europeias em junho e congresso do PSD em julho,
acabaria sempre por remeter o combate para o ve-
com um cartoon genial nas páginas do Expresso, rão e, antes disso, o Presidente teria de dar posse
onde se via um professor Marcelo de giz em pu- ao Governo do partido mais votado, que neste ce-
nho em frente a um quadro negro cheio de contas nário seria o PS.
de somar, subtrair, multiplicar e dividir, chavetas, Continuando a fazer traços na ardósia de Mar-
equações e pontos de interrogação, uma autênti- celo inspirados pelo cartoonista António, ainda ha-
ca dor de cabeça. E pode não ser caso para menos. via a hipótese de o Chega apresentar uma moção
Só dois cenários garantiriam a relativa paz dos de rejeição ao Governo de Pedro Nuno Santos e aí
anjos na próxima segunda-feira: o primeiro seria o a equação passaria a ser outra: o que faria o PSD?
PS ganhar e somado ao BE, Livre, PCP e PAN con- Chumbar um Governo sem ter uma solução al-
seguirem uma maioria absoluta que as sondagens ternativa é visto por antecipação em Belém como
dizem ser praticamente impossível, mas que todos “uma irresponsabilidade”. Ou seja, o Presidente
eles, com alguma hesitação do PAN e algum orgu- espera que, em caso de vitória, Pedro Nuno gover-
lho do PCP, se exibiram prontos a assinar, quase ne, ainda que sem ter garantias de que uma coliga-
com coro de igreja e juras de comunhão de bens; o ção negativa de direita não o derrube mais à fren-
segundo cenário idílico, do ponto de vista funcio- te. Mas isso teria de ser até ao verão de 2025, por-
nal, seria a AD e a IL juntas e sem o Chega se bas- que depois, a seis meses de se despedir de Belém,
tarem a si próprias, coisa que parece igualmente Marcelo deixará de ter o poder de acionar a bomba
improvável. Até dia 10, com tantos indecisos, pelo atómica. Ganhando a AD — e é este o cenário mais
menos confessos mas sabe-se lá se autênticos, es- credível para quem espreita das janelas do palácio
tará tudo em aberto, com uma dinâmica favorá- cor de rosa — também não é líquido que a viabi-
vel para a AD, mas com o PS a dar luta até ao fim lização prometida por Pedro Nuno Santos a Luís
e mais animado desde que António Costa foi a um Montenegro seja eterna.
megacomício no Porto mostrar como se joga à bola. O líder do PS foi claro: uma coisa é não inviabilizar
Certezas, há duas. A primeira é que — ganhe um Governo, outra é garantir aprovar-lhe os Orça-
quem ganhar e com a ausência de soluções maio- mentos. Mas Marcelo não acha impossível que, neste
ritárias num xadrez mais pulverizado do que nunca caso, o Orçamento para 2025 consiga passar. Basta-
e com menos soluções à vista, dada a existência de ria o Chega não alinhar numa eventual coligação ne-
um partido que funciona como um abcesso a blo- gativa com as esquerdas (que lhe seria politicamente
quear o trânsito — vai ser preciso voltar a um ve- prejudicial) para um eventual Governo minoritário da
lho normal que a moda das maiorias absolutas, das AD avançar para um segundo ano de vida. A partir
coligações pós-eleitorais e dos acordos parlamen- do verão de 2025, Marcelo já nada poderá fazer, mas
tares ou de Governo fizeram esquecer. É simples e deixaria a sua família política no Governo e respira-
traduz-se em algumas das regras mais democráti- ria fundo. Quem viesse a seguir que gerisse as novas
cas de sempre: dialogar, negociar e ir encontran- encarnações da direita radical à portuguesa.
do caminhos. A cabeça de Luís Montenegro fervilha com a
A segunda certeza é mais fraturante: se a AD ideia de imitar Cavaco Silva e poder fazer ao Che-
perder para o PS, a estratégia de Montenegro cai ga de Ventura o que Cavaco fez ao PRD de Rama-
por terra, a cerca sanitária será posta em causa lho Eanes em 1985: deixá-los deitar abaixo o seu
dentro do PSD e o Chega ganhará caixa de ar para, Governo, ir a eleições vitimizando-se e tentar, aí,
se quiser (não é líquido que não prefira continuar recuperar eleitorado que votou Ventura, invocan-
a engordar na maratona de protesto), poder então do a sua responsabilidade. Em 85 foi assim que o
começar a jogar numa progressiva normalização, PSD cavaquista conseguiu a primeira maioria abso-
aproximando-se dos partidos de poder. luta, mas não é líquido que Ventura queira cair na
Pedro Nuno Santos e Rui Tavares já começaram a esparrela de imitar Eanes. Há quem vá sussurran-
trabalhar cenários alternativos ao que no fundo mais do planos B para o Chega, desde logo esperar pelas
temem — contribuir para a direita radical singrar —, autárquicas do outono de 2025 para o partido criar

E 22
a nível local uma rede, aproveitando descontentes e deixou para outros os temas que sabia falarem ao
do PSD (o recente caso Maló nas listas de deputados eleitorado do partido que fugiu para o Chega, seja
foi um flop, mas quem sabe se não sairão melhores a imigração ou o mundo rural (o aborto foi mesmo
rifas?). O poder local seria uma oportunidade para um tiro no guião) mas, ainda que ganhe no domin-
o partido mostrar que veio para ficar, que também go, se não conseguir valer mais do que o dobro do
teria lugares para distribuir e para, assim, mais pela Chega, o PSD ficará mais dependente e menos livre
afirmação do que pelo protesto, ir trabalhando para do que se remeter Ventura para um terceiro lugar
que as linhas vermelhas dos outros partidos se fos- de dimensão claramente inferior. Quanto a Pedro
se progressivamente dissipando. Nuno Santos, que escolheu assumir-se como líder
Paralelamente, no Parlamento, se trocasse uma do bloco das esquerdas, também só conseguirá
política de bota abaixo puro e duro pela disponibi- preservar campo aberto para crescer ao centro se
lidade para ir viabilizando iniciativas, ora à direi- impedir que os dois partidos à sua esquerda, que
ta, ora ao centro, ora mesmo à esquerda (já nesta António Costa foi tão eficaz a secar, não recuperem
legislatura, a bancada de Ventura viabilizou legis- visivelmente da ressaca de 2015.
lação socialista), o Chega poderia ser o anti-PRD e Domingo à noite se verá se teremos um país di-
garantir que mais do que um fenómeno passageiro vidido em dois blocos mais simétricos do que as
teria vindo para ficar. sondagens foram sinalizando, um à esquerda outro
à direita. Se sairá um país dividido em três: esquer-
O PSD COMO “A NOVA CHARNEIRA” da, direita moderada e direita radical. Ou se, ines-
Para o PSD, ver o Chega consolidar-se no sistema peradamente, um dos blocos conseguirá afirmar-se
e contribuir com a sua soma de deputados à direita para lá do expectável. Há uma semana, quando foi
para uma maioria deste lado do espectro político, votar por antecipação, Marcelo Rebelo de Sousa pu-
exige ponderar realinhamentos e saídas. “Se não xou como é costume pela “maturidade” dos eleitores
houvesse o Chega, a AD ganhava tranquilamente”, e espicaçou-os para irem votar, esperançado numa
resumia no passado domingo, na SIC, o comenta- solução o mais clara possível. Mas nem quatro meses
dor Luís Marques Mendes, na sua última previsão de aquecimento eleitoral (tudo isto começou a 7 de
antes do voto. Mas “se não houvesse Chega” é um novembro, quando Costa se demitiu), nem 30 deba-
sonho de uma noite de verão e já há quem comece tes na TV e nas rádios nem duas semanas de campa-
a explorar saídas de emergência para o PSD. nha nas ruas impediram que se chegue às eleições
“Num país maioritariamente à direita (se há com mais dúvidas do que certezas.
tendência que persiste em todos os estudos de opi- Quem acha que o PS, após nove anos no poder
nião é esta, e o partido de Ventura é contribuinte lí- e uma maioria absoluta desbaratada, merece uma
quido para esta soma), o papel central passa a estar cura de oposição, estará disposto a escolher uma
no centro-direita”, escrevia há dias no Expresso o AD que, sem se aliar ao Chega, ficará minoritária e
colunista Henrique Raposo, que reconhecia na li- coxa no Governo? Quem prefere que o PS continue
nha seguida por Luís Montenegro a vantagem de mas não sente em Pedro Nuno a força de António
colocar o PSD e a AD como “a nova charneira” do Costa, deixa-se seduzir por uma ‘geringonça’ 2.0
regime, dando a estes partidos “uma centralidade (mais uma expressão de Paulo Portas que colou) ou,
que foi historicamente do PS”. pelo contrário, perde o sono só de imaginar Mariana
A tese assenta em factos. Se saímos do século Mortágua sentada à mesa oval do conselho de mi-
XX com o país maioritariamente à esquerda, mas nistros? E quem quer que o PCP não morra, quanto
com o PS a funcionar como charneira entre o cen- mais não seja porque os protestos inorgânicos recla-
tro moderado e as esquerdas mais radicais — nos mam sindicalismo organizado, deixa-se levar pelo
anos 70, ainda era o socialista Mário Soares quem voto útil no PS ou põe a cruz no simpático Raimun-
gritava ao PCP “não passará” — a aproximação do do? A IL de Rui Rocha será útil para engrossar uma
PS ao PCP e o efeito devastador que a ‘geringonça’ maioria da ‘direita boa’ contra a ‘direita má’, ou a
de 2015 teve no partido comunista, que viu muito perceção de que sociais-democratas e liberais não
voto de protesto fugir para o Chega, poderá libertar falam a mesma língua retirará sex appeal a esta du-

A cabeça de Luís para o PSD o estatuto de nova charneira. Sobretudo


se se confirmar com Pedro Nuno Santos uma es-
pla? E o Livre, que é de esquerda mas jura estar dis-
posto a falar com a direita, merece ser alimentado

Montenegro querdização do PS, que tenderá a assumir-se como


líder de um bloco à esquerda.
ou dispersar votos à esquerda é perder?
Não sabemos quanto ainda pesa na cabeça dos

fervilha com a Num país sociologicamente maioritário à di-


reita, o PSD que Rui Rio sempre disse ser de centro
indecisos o valor da estabilidade em futuras solu-
ções de governo. Mas uma coisa esta campanha

ideia de imitar e “não de direita”, que Francisco Pinto Balsemão,


militante número um, insiste ter de se manter fiel
eleitoral conseguiu: depois de anos viciados em
maiorias, as tais que antes tinham peçonha e eram

Cavaco Silva à matriz social-democrata, que Pedro Passos Coe-


lho quis mais liberal mas que Montenegro voltou
sinal de claustrofobia e vícios instalados, mas que
após o consulado de António Costa passaram a ser

e poder fazer a puxar para o centro moderado, pode neste novo


xadrez ser uma espécie de porta ou “fronteira
veneradas como condição de sucesso contra a “bal-
búrdia”, são agora os próprios partidos que, em es-

ao Chega de central”. Henrique Raposo chama-lhe “a frontei-


ra central da nossa democracia”, a “sair do PS e a
tado de nova necessidade, se preparam para solu-
ções mais criativas. Adivinhe de quem é esta fra-

Ventura o que entrar no PSD/AD”.


Tudo isto tem um ‘se’ e como não há teorias sem
se: “Se não há acordo, faz-se como tem acontecido
no Parlamento. É ponto a ponto, é caso a caso, não
votos que as sustentem, tudo vai depender dos re- há outra hipótese.” O autor da máxima chama-se
Cavaco fez ao sultados de domingo. Não importa apenas quem
ganha e quem perde, importa a dimensão da vitória
André Ventura, falou numa entrevista ao Expresso
e aponta saídas de emergência, sem antecipar ca-
PRD de Ramalho e da derrota e a autonomia com que cada um dos
dois maiores partidos sairá do combate. Luís Mon-
tástrofes. Se ele o diz… b

Eanes em 1985 tenegro escolheu a moderação apostado em crescer avsilva@expresso.impresa.pt

E 23
PERFIL “Autorretrato”
de Domingos António
de Sequeira (1820-1924)
no Museu Nacional
de Arte Antiga

E 24
FOTOGRAFIAS LUÍSA OLIVEIRA/MNAA
Domingos
Sequeira
O pintor de quem se fala
O incerto destino de uma obra chamada
“Descida da Cruz” trouxe de volta o nome
e a história de uma das maiores figuras
da pintura portuguesa

TEXTO
LOURENÇO PEREIRA COUTINHO
HISTORIADOR

E 25
L
Nacional de Arte Antiga (MNAA) e autora de uma
tese de doutoramento sobre o pintor (“A obra gráfi-
ca de Domingos António de Sequeira no contexto da
produção europeia do seu tempo”), foi um grande
desenhador. Foi a liberdade proporcionada pelo de-
senho que permitiu expressar todo o seu potencial.

O (DES)INTERESSE NACIONAL
Em anos recentes, o artista voltou a ser notícia de-
pois da sua obra “Adoração dos Magos” (1828), ter
sido comprada por subscrição pública após campa-
nha bem-sucedida, estando agora no MNAA (2016).
Recentemente, em novembro de 2023, o mesmo
ramo de herdeiros do duque de Palmela, também
proprietário de “Adoração dos Magos”, pediu à en-
tretanto extinta Direção-Geral do Património Cul-
tural (DGPC) autorização para que a obra “Desci-
da da Cruz” (1827) saísse do país, isto com o fito de
uma possível venda através da galeria Colnaghi, de
Madrid. O diretor do MNAA, Joaquim Caetano, deu
parecer negativo e propôs que a pintura fosse con-
siderada de interesse nacional. Por sua vez, João
Carlos dos Santos, diretor-geral da extinta DGPC,
considerou que tal não era oportuno.
isboa, 15 de dezembro de 1808. Domingos António Esta última posição causou polémica no meio
de Sequeira, pintor régio sem exercer o ofício, pois a cultural nacional. Ao tempo em que escrevo estas
Corte partira para o Rio de Janeiro em novembro de linhas, a obra está exposta na Tefaf, em Maastricht,
1807, foi preso pela polícia quando saía de um jantar uma das mais importantes feiras mundiais de obras
na residência de um dos seus protetores, o marquês de arte (que abre este sábado, dia 9), onde deverá
de Marialva, que vivia para os lados de Belém. Motivo ser posta à venda pela referida galeria. Tanto “Des-
da prisão: Sequeira teria proferido injúrias contra o cida da Cruz”, quanto “Adoração dos Magos” foram
príncipe regente D. João e colaborado com o invasor pintadas em Roma e datam do período tardio de
francês. Ainda pior, e desta acusação não havia como Sequeira, inspirado pela estética romântica. Será
fugir, Sequeira aceitara uma encomenda do próprio que “Descida da Cruz” vai ser vendida pela galeria
general Junot, comandante do exército francês. a um particular? Ou a museus e monumentos de
Domingos Sequeira esteve preso no Limoeiro Portugal, empresa do Estado para o património na-
entre dezembro de 1808 e setembro de 1809. Foi a cional, virá a adquiri-la e colocá-la no MNAA junto
sua segunda reclusão, desta vez forçada. Anos an- a outras do pintor? Na impossibilidade de respon-
tes, entre 1798 e 1801, tinha-se recolhido de forma der já a estas perguntas, aqui ficam umas pincela-
voluntária na Cartuxa de Laveiras, em Caxias. Ao das sobre a vida de Domingos Sequeira e a sua im-
que parece, teve então uma crise existencial, tal- portância no panorama artístico nacional. Talvez
vez uma depressão profunda, motivada pela falta estas linhas despertem consciências.
de encomendas e, possivelmente, por um desgos- Qual foi então o percurso deste homem, marco
to amoroso. Não chegou a professar mas, enquanto incontornável da pintura portuguesa que nasceu no
esteve em reclusão, pintou temas religiosos de ins- tempo do marquês de Pombal, viveu em Roma, fa-
piração seiscentista, como o intenso São Bruno em lhou a partida para o Rio de Janeiro com a Corte por
oração (1799), reflexo de uma devoção mística a fa- estar no Porto, saiu de Portugal em 1824 para não
zer lembrar mestres como Velázquez e Caravaggio. mais voltar, e viveu os últimos anos em Roma, num
Por este introito, adivinha-se um artista de vida estado de alheamento mental e sem poder pintar?
atribulada. Aliás, tal foi comum a muitos contem-
porâneos, pois o seu tempo foi de profundas trans- ROMA, MECENAS E FRANCESES
formações: revolução francesa, invasões, liberalis- Domingos António do Espírito Santo nasceu em Be-
mo, contra revolução, guerra civil... Sequeira não lém, no ano de 1768. Na altura, aquela era uma zona
foi um revolucionário mas teve simpatias pelas movimentada, que recebera muitos lisboetas após o
ideias liberais. Na pintura, também não trouxe ru- terramoto. A família de Domingos Sequeira era mo-
turas. José-Augusto França (“A Arte em Portugal no desta. O pai foi um embarcado de nome António Es-
século XIX”) considerou mesmo que foi o último pírito Santo, e a mãe tinha sido batizada como Rosa
pintor de setecentos, “por fatalidade de formação”, Maria Lima. O pintor veio a adotar uma derivação
muito influenciada pelo neoclassicismo e pela sua do nome do seu padrinho, Domingos de Cerquei-
estada em Roma. ra Chaves, tendeiro de profissão. A inteligência que
Contudo, se Sequeira não foi um revolucionário, desde cedo demonstrou aconselhava a que pros-
simbolizou seguramente um ponto de viragem. Até seguisse os estudos. Como também revelava uma
ao seu tempo, a pintura portuguesa atravessara um grande aptidão para o desenho, acabou por matri-
deserto de séculos, com pouco de relevante des- cular-se na Aula Pública de Desenho, que funciona-
de os importantes séculos XV e XVI, sobretudo se va no Convento dos Caetanos, atual Conservatório
comparado com a qualidade de produção de outros Nacional, onde se manteve como aluno até 1781. É
pontos da Europa. Sequeira não terá sido um génio natural que a inscrição tenha sido incentivada por
como o seu contemporâneo Goya, mas foi um pin- um protetor, provavelmente o marquês de Marialva.
tor de grande talento. Sobretudo, e como sublinhou Foi seguramente por influência deste 4º marquês
Alexandra Gomes Markl, conservadora do Museu de Marialva, D. Pedro José de Alcântara de Meneses

E 26
A BELEZA COMPULSIVA
DE DOMINGOS SEQUEIRA
A vida de Domingos António de Sequeira (Belém, 1769-Roma, 1837) atravessa tempos
de mudança e de revolução e contrarrevolução que ultrapassaram a escala europeia,
tempos que a sua obra registou. Porém, a beleza convulsiva do seu trabalho é alcançada
na calma doce do exílio final na sua “cara e bela” Roma

De Belém, a sua terra, daí a Lisboa, e, depois, comummente aceite. Há neste caso um
a Roma, onde completou com destaque a paralelo com um artista seu contemporâ-
sua formação, regresso a Lisboa, longa esta- neo, o inglês Turner (1775-1851), que se terá
da em Portugal conseguindo cedo um lugar cruzado com Sequeira em Roma. Ambos
de pintor oficial, exílio voluntário depois da conquistaram idêntica liberdade para expe-
Vila-Francada, com regresso definitivo a rimentar depois de assumir o topo de uma
Roma. O percurso é simples, os acidentes é carreira académica.
que foram muitos e importantes. Athanasius Raczynski (1788-1874) — nobre
Domingos teve uma origem humilde com um polaco exilado que foi um dos mais lúcidos
percurso de sucesso quer na ascensão social comentadores da arte portuguesa — não
quer nos estudos artísticos, obtendo uma foge a comparar estes dois artistas, num re-
bolsa para os continuar em Roma em 1788. gisto fortemente crítico em relação a ambos,
Em sete anos passa de aluno a membro e pro- ao afirmar a propósito dos trabalhos finais de
FOTOGRAFIAS D.R.

fessor da Academia de São Lucas. O regresso Sequeira a “Ascensão” e o inacabado “Juízo


a Portugal não foi feliz, Sequeira sente na pele Final” de 1828 que elas lembram “demasiado
e na bolsa a enorme diferença no público e na algumas das produções bizarras e inexplicá-
aceitação dos artistas e, muito especialmen- veis do inglês Turner”, preferindo-lhes duas
te, na remuneração dos mesmos, daí que em composições anteriores, a “Descida da Cruz”
RELIGIÃO crise existencial tenha ingressado na Cartuxa e a “Adoração dos Magos”, ambas de 1828,
Regressado a Roma, de Laveiras entre 1799 e 1800/1. A crise opinião que Tomaso Minardi (1787-1871),
Sequeira assina termina com a sua nomeação em 1802 como colega de academia de Sequeira, também
“Ascensão” Primeiro Pintor da Câmara e da Corte, uma partilha. No entanto, Raczynski vai bem mais
(1828-30), em cima, situação de topo em qualquer carreira artís- longe no seu comentário, pois consegue
e “Juízo Final” (1830, tica. O que podia ser o percurso tranquilo de verbalizar o problema que a obra final de
inacabado), em
um pintor oficial foi perturbado por contínuas Sequeira lhe colocava ao afirmar que ele “ex-
baixo, de clara
mutações num momento em que a história prime coisas para a quais não há pincel nem
influência romântica,
tanto na composição do mundo atravessa Portugal: a guerra com a cor e para as quais não há modelos forneci-
como no dramatismo França napoleónica, as invasões francesas, a dos pela natureza real”.
e intensidade da luz partida da corte para o Brasil, a intervenção in- Estas quatro pinturas constituem a série
e cores. À esquerda, glesa, a revolução liberal, o regresso da família Palmela, do nome da família proprietária do
os desenhos real e o golpe de D. Miguel para restabelecer conjunto até há pouco, núcleo onde se pode
preparatórios o absolutismo. A partir da saída da família real, acompanhar uma evolução de um crescente
Sequeira permanece em Lisboa na situa- experimentalismo; assim, a “descida da Cruz”
ção ambígua de artista oficial de uma corte é uma composição luminista mais tradicio-
ausente. Sempre ligado ao poder dominante, nal, enquanto na “Adoração dos Magos” já
primeiro celebra Junot, o general francês não sabemos se a bola de luz que domina a
que ocupou Lisboa, celebra logo a seguir a composição está lá para iluminar ou para dis-
expulsão dos franceses, o que não lhe evita solver a massa dos assistentes, na “Ascensão”
uma estada na prisão acusado de colaboração encontramos o contraponto entre a figura
com o ocupante. Sai da prisão para trabalhar ascensional de precisão cristalina e o informe
longamente no desenho e na execução da das testemunhas, o “Juízo Final”, inconcluso, é
conhecida Baixela Wellington, uma oferta/ uma tentativa impossível de pretender meter
tributo de Portugal ao vencedor dos fran- todo o céu e toda a terra numa mesma ima-
ceses. Acolhe com entusiasmo a revolução gem onde a figuração e o caos se equilibram.
liberal de 1820, tendo trabalhado longamente A série Palmela não se fica pelas pinturas finais,
num retrato de grupo dos deputados à As- há obras próximas e notáveis também pelo
sembleia Constituinte deixando um notável contraponto entre o definido e o indefinido e
conjunto de desenhos. A Vila-Francada de o infinito, como numa “Coroação da Virgem”
D. Miguel foi o ponto final; liberal convicto, e sobretudo pela massa dos desenhos que a
Sequeira saiu de Portugal, com passagem por acompanham, preparam e vão inventando.
Paris, onde não se fixa apesar do êxito de uma No fim da vida, Sequeira diz o indizível e figura
medalha de oiro no Salon de 1826. o impossível, sobretudo através de obras que
testemunham a fidelidade de uma vida à fé
Enfim, a liberdade católica, desenha convulsivamente, pinta à
Roma 1826-1832/3. Acolhido como filho da beira da catástrofe, do vazio e do nada dizer,
terra, Sequeira encontra em Roma a paz de os dois desenhos de um Naufrágio onde nada
espírito, bem como o estatuto de decano se vê, são também testemunhos de uma
e conselheiro da Academia de São Lucas; sensibilidade rara que superava o ar do tempo
é esse estatuto que lhe dá uma liberdade para interrogar os homens futuros que, por
única, a de experimentar além do que era enquanto, somos nós. / JOSÉ LUÍS PORFÍRIO

E 27
Noronha Coutinho, que Sequeira obteve uma pen-
são régia que lhe permitiu estudar em Roma (1788).
Na cidade eterna, foi discípulo de mestres como An-
tónio Cavalucci (1752-1795) e tornou-se membro da
prestigiada Academia di San Luca.
Apesar do seu amor pelas artes, Domingos Se-
queira nunca perdeu o pragmatismo. Numa altu-
ra em que a profissão de pintor dependia sobretu-
do de protetores e mecenas, soube cair nas boas
graças dos embaixadores portugueses D. João de
Melo e Castro e, sobretudo, D. Alexandre de Sou-
sa e Holstein, pai do futuro primeiro duque de Pal-
mela. Também, Sequeira manteve correspondên-
cia e ligação com Pinto da Silva, o guarda-joias da
rainha, também seu protetor, a quem pretendeu
sensibilizar para a penúria da sua pensão. Então,
pintou alguns temas históricos, como “Milagre de
Ourique” (1793), obra que ainda não revelava todo
o seu potencial.
Foram justamente os motivos financeiros que
o fizeram regressar a Lisboa, em 1795. Então, Es-
panha tinha feito a paz com a França revolucioná-
ria. Portugal, ainda formalmente em guerra com os
franceses, viveu então o espectro de uma invasão.
Tal não aconteceu muito graças à ação de diploma-
tas notáveis, como António de Araújo e Azevedo,
futuro conde da Barca. Em 1795, Sequeira insta-
lou-se em Belém, com ideias de regressar a Roma.
Acolheu-se então à proteção de outro político de
nomeada, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro
conde de Linhares, que o contratou para dar aulas
de pintura à sua mulher, Gabriella Maria Asinari,
de origem italiana. Em 1795, Sequeira retratou este
casal numa composição de estética neoclássica, em
DESTINO “Descida da Cruz” (1827), em
que Gabriela foi representada a pintar Rodrigo, que
cima, é a pintura da série Palmela que está
a dar que falar; em baixo, a “Adoração surge em pose institucional.
dos Magos” (1828), obra comprada por Contudo, as encomendas ficaram muito aquém
subscrição pública após campanha do esperado. Regra geral, e como o guarda-joias da
bem-sucedida e que se encontra rainha tinha prevenido, as elites portuguesas não
no Museu Nacional de Arte Antiga. apostavam na pintura. Foi esta desmotivação que,
Ao centro, os desenhos preparatórios como já referido, levou Sequeira a entrar na Car-
tuxa de Laveiras, onde viveu em clausura e donde
foi resgatado por intervenção do próprio príncipe
regente D. João.
Domingos Sequeira foi então nomeado “primei-
ro pintor de Câmara da Corte”, com o desafogado
vencimento de dois contos anuais e direito ao uso
de sege. O príncipe regente pretendia que o pintor
participasse na decoração do Palácio da Ajuda, que
estava a ser erguido perto da Real Barraca, constru-
ção de madeira que serviu de residência à família
real depois do terramoto e até ao momento em que
ardeu, em 1794. Então, Domingos Sequeira pintou
um importante quadro histórico com notas estéti-
cas que preludiavam o romantismo: “D. Afonso V
Arma o Príncipe D. João Cavaleiro na Mesquita de
Arzila” (1802).

O CAVALO DE D. JOÃO VI
Até 1807, Sequeira viveu despreocupadamente
como primeiro pintor régio, estatuto que, sobre-
tudo após a morte de Vieira Portuense, em 1805,
nenhum outro estava em condições de ombrear.
Tornou-se mestre de pintura e desenho da prin-
cesa do Brasil, D. Carlota Joaquina, e das infantas
FOTOGRAFIAS D.R.

D. Maria Ana e D. Maria Benedita, irmãs da rainha


D. Maria I. Em 1803, pintou um excelente retrato do
príncipe regente (“D. João Passando Revista às Tro-
pas na Azambuja”), redimindo-se assim dos dois
outros, sofríveis, que executou em 1800 e 1802. Na

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obra de 1803, Sequeira contornou com engenho a do reino há quase 20 anos. Por esses anos, Domin- fim à experiência liberal vintista e restaurou o ab-
pouca atratividade estética do retratado, focando gos Sequeira pintou alguns dos seus melhores re- solutismo. Foi a Vila-Francada.
a composição no cavalo e colocando o regente de tratos, como o do futuro 1º conde de Farrobo, en-
perfil, ofuscado pela casaca escarlate. comenda de pai deste, o 1º barão de Quintela, um DE VOLTA A ROMA
A morte de Vieira Portuense, com quem man- importante negociante que, no ano anterior, tinha- Domingos Sequeira entendeu que era altura de vol-
teve uma rivalidade mais saudável do que as más -lhe encomendado outra obra relevante (“Lisboa tar a emigrar. Para tal, contou com um passapor-
línguas procuravam fazer crer, deixou-o sem com- Protegendo os seus Habitantes”, 1812). te obtido pelo então marquês de Palmela, filho de
petidor nacional à altura. Como retratista, apenas o O “Retrato do Conde de Farrobo” (1813), tal D. Alexandre de Sousa e Holstein, que fora embai-
italiano Domenico Pellegrini disputava consigo as como a obra é conhecida, é notável pela simplici- xador e seu protetor em Roma no então já longín-
encomendas da aristocracia e alta burguesia. Para- dade da composição, leveza do traço, suavidade da quo ano de 1788. Em Paris, Sequeira reencontrou o
doxalmente, a falta de Vieira Portuense obrigou Se- paleta de cores e, sobretudo, capacidade de capta- conde de Forbin, um pintor amador que havia co-
queira a afastar-se da Corte, pois teve de assumir a ção da psicologia do retratado. Estas característi- nhecido em Lisboa aquando da primeira invasão
direção da aula de desenho e pintura da Academia cas, são novamente evidenciadas na “Família do 1º francesa, altura em que aquele pertencia ao estado-
Real da Marinha e Comércio da cidade do Porto. Visconde de Santarém” e “Domingos e Mariana Be- -maior de Junot. Em 1824, o conde de Forbin, um
Este acaso foi decisivo para o seu futuro. Do- nedita Vitória de Sequeira”, ambos de 1816. dos muitos que transitaram do período napoleó-
mingos Sequeira estava no Porto quando a família Estes retratos foram pintados no mesmo ano nico para o tempo da “Restauração” (1814-1830),
real e a Corte embarcaram apressadamente para o em que D. João VI subiu ao trono. Em 1815, o novo era já diretor-geral de museus em França. Recebeu
Rio de Janeiro, em novembro de 1807. Tal como a rei já tinha elevado o Brasil a reino, equiparando- bem Sequeira e introduziu-o no meio artístico pa-
maioria dos portugueses, ele ficou em terra, conde- -o a Portugal (Reino Unido de Portugal Brasil e Al- risiense, então dominado pelos pintores românicos,
nado a acolher o invasor com a benevolência pedi- garves). Pouco antes, Napoleão foi definitivamen- como Delacroix.
da pelo regente D. João aquando da sua partida. Era te derrotado em Waterloo e o congresso de Viena Foi exatamente em 1824 que o regime francês
um pedido contraditório e impraticável. reordenou o mapa político da Europa sob o signo do da “Restauração” adquiriu um pendor mais con-
Durante a primeira metade de 1808, Portugal foi conservadorismo e legitimidade dinástica. O Por- servador, isto depois da morte do rei Luís XVIII
governado pelo general Junot, duque de Abrantes, tugal europeu continuava sob tutela britânica e, no (1814-1824) e da subida ao trono do seu irmão Car-
comandante do exército invasor, que tinha a aspi- Rio de Janeiro, D. João VI dava sinais cada vez mais los X (1824-1830). Domingos Sequeira decidiu en-
ração de se tornar rei de Portugal. A revolta contra evidentes de querer manter-se na parte americana tão deixar Paris e voltar para Roma, o grande amor
os franceses só chegou em junho, depois de ouvi- dos seus domínios. que deixara há mais de 30 anos. Aí, foi acolhido por
dos os ecos do início da revolta espanhola contra o Neste contexto, o depois chamado “vintismo” — um novo protetor, o então conde do Funchal, D.
mesmo invasor, o que aconteceu em maio. Primeiro que evoluiu de um pronunciamento militar no Por- Domingos de Sousa Coutinho, irmão de D. Rodrigo
graças às guerrilhas, depois com o apoio do exército to, em agosto de 1820 — pretendeu, antes do mais, de Sousa Coutinho. Datam desta fase as suas últi-
britânico, os portugueses derrotaram os franceses fazer o rei regressar ao Portugal europeu. Depois, o mas obras, como as já referidas “Descida da Cruz”
que, devido à benévola convenção de Sintra, assi- movimento evoluiu para uma revolução liberal, que (1827), “Adoração dos Magos” (1828) e, também,
nada em agosto de 1808, puderam sair do país com institucionalizou um sistema político assente no “Ascensão” (1828-30) e “Juízo Final” (1830), todas
boa parte do saque conseguido durante os meses protagonismo das Cortes e dos cidadãos. Domingos de temática religiosa e clara influência romântica,
de ocupação. Depois do terramoto de Lisboa e da Sequeira simpatizava de há muito com as ideias li- tanto na composição como no dramatismo e inten-
partida da família real para o Brasil, a destruição e berais. Assim, colaborou ativamente com os novos sidade da luz e cores.
saque do exército francês e, também, do exército tempos, trabalhando com entusiasmo num retrato Em 1833, enquanto a guerra civil decorria em
britânico, constituíram novo golpe no património do rei D. João VI para exibir na sala das cortes (1821) Portugal, Domingos Sequeira sofreu um ataque
artístico e cultural existente em Portugal. e numa “Alegoria à Constituição de 1822”, pinta- apoplético que deixou mazelas. Ficou mentalmen-
Como já notado, Sequeira foi preso após a der- da ainda em 1821, uma composição com elementos te condicionado e deixou de pintar. Tinha 65 anos.
rota dos franceses, acusado de ter colaborado com clássicos mas já com uma carga dramática própria Possivelmente, a sua condição não lhe permitiu
o invasor. Quando recuperou a liberdade, casou- da estética romântica. aperceber-se das muitas alterações políticas que
-se com Mariana Benedita Vitória Verde, irmã de As reviravoltas políticas em que a época foi fér- se deram em Portugal nos anos seguintes. Em maio
outro dos seus protetores, João Baptista Verde. Na til impediram a concretização do monumento em de 1834, os liberais venceram a guerra civil. Pouco
altura, Sequeira pintou uma curiosa composição, que trabalhava, previsto para o Rossio, bem como mais de dois anos depois, em setembro de 1836, o
onde João Baptista oferece a mão de Maria Benedita das telas destinadas às Cortes. Em maio de 1823, “vintismo”, progressista, impôs-se ao cartismo, li-
(“João Baptista Verde e Mariana Benedita”, 1809). um pronunciamento militar liderado pelo infante beral-conservador, dando assim início ao período
Não há notícias sobre a felicidade deste enlace, que D. Miguel, filho secundogénito de D. João VI, pôs “setembrista”. Então, Domingos Sequeira foi feito
terminou de forma repentina quando Mariana Be- comendador de Cristo e diretor honorário da Aca-
nedita morreu de parto do segundo filho do casal (a demia de Belas Artes, um mais que justo reconhe-
primogénita chamou-se Mariana Benedita como a
mãe, e o segundo foi batizado como Domingos, tal Em 1833, cimento das suas qualidades plásticas excecionais.
Quase por certo, também não teve consciência
como o pai, tendo morrido precocemente).
Sequeira, de desta homenagem. Morreu com 69 anos, em Roma,
tendo sido sepultado na Igreja de Santo António
A BAIXELA WELLINGTON
Nos anos seguintes, Sequeira tratou de redimir-se 65 anos, sofreu dos Portugueses. Como sintetizou Alexandra Go-
mes Markl, “Domingos Sequeira serviu-se do dese-
da acusação de colaboracionismo com os franceses.
Na altura, desenhou a baixela que foi oferecida ao um ataque nho como a melhor ferramenta de espírito, para dar
forma às coisas em que acreditava ou, na versão de
duque de Welington, comandante do exército luso-
-britânico que, em 1810, derrotou o exército napo- apoplético qualquer artista plástico, nas coisas ‘como as viu’”.
Acrescento que, sem Domingos Sequeira, o riquíssi-
leónico no Buçaco, expulsando-o definitivamente
de território português. O barão do Sobral, com raí- e ficou mo período em que viveu, de transição entre o neo-
classicismo e romantismo, seria infinitamente mais
zes na alta burguesia pombalina, encomendou-lhe
então uma “Alegoria às Virtudes do Príncipe Re- mentalmente pobre. Ele foi o principal pintor da sua geração e um
dos maiores pintores portugueses de sempre. Terá
gente” (1810) onde, curiosamente, o pintor voltou sido mais neoclássico do que romântico, mas um ne-
a pôr o príncipe regente, no fundo o homenageado,
em posição secundária.
condicionado, oclássico que também pintou a liberdade. Felizmen-
te, a sua obra, presente em vários museus nacionais,
Sequeira nunca o escreveu mas, pela forma
como o retratou, não é descabida a hipótese de que
deixando sobretudo no MNAA, perdurou para o comprovar. b

teria pouca consideração por D. João, então regente de pintar e@expresso.impresa.pt

E 30
Os Óscares
No ano do ‘Barbenheimer’ — que uniu “Barbie”
e “Oppenheimer” na senda do sucesso —, só
um dos filmes parece destinado a triunfar nos
Óscares. A cerimónia, em Los Angeles, é na noite
de domingo, evidentemente depois de sabermos
quem, por cá, ganhou as eleições

E 32
ESTATUETA Cillian
Murphy está
nomeado para
melhor ator pelo
filme “Oppenheimer”,
o grande favorito
dos Óscares

vão à guerra
TEXTO JORGE LEITÃO RAMOS
CRÍTICO DE CINEMA DO EXPRESSO

E 33
designação aglutinadora dos títulos de dois filmes “A Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer, duas
estreados em julho — “Barbie”, de Greta Gerwig, propostas diversamente surpreendentes, a em-
e “Oppenheimer”, de Christopher Nolan —, que purrar o cinema para diante. Acabaria por votar
pôs milhões de pessoas a correr de um para ou- neste último.
tro filme, cada um deles potenciando o sucesso do Tudo indica que, além de Melhor Filme, “Oppe-
parceiro e, juntos, levando os números do box offi- nheimer” vá garantir a Christopher Nolan o seu
ce para patamares de delírio. “Barbie” rendeu, in- primeiro Óscar enquanto realizador. Greta Gerwig
ternacionalmente, quase 1500 milhões de dólares; nem sequer foi nomeada. Nolan, vitoriado em to-
“Oppenheimer” ultrapassou os 950 milhões. Fo- das as premiações anteriores (Globos de Ouro,
ram, respetivamente, o primeiro e o terceiro filmes BAFTA e Guilda dos Realizadores), encontra aber-
mais vistos do ano. E, todavia, a sua programação ta uma autoestrada para o palco do Dolby Theatre.
em simultâneo não foi pensada em termos de mú- Justificadamente.
tua potenciação, mas, ao invés, de enfrentamento.
Quem, inicialmente, anunciou data de estreia foi OS QUE DÃO A CARA
“Oppenheimer”, distribuído pela Universal. Era o No capítulo dos intérpretes, o ano é particularmen-

A
primeiro filme de Christopher Nolan a não ser dis- te renhido. Não no campo dos atores, onde o irlan-
tribuído pela Warner desde 2002. Fora ali que No- dês, depois de conquistar uma quantidade de pré-
lan crescera no interior da indústria, em particular mios da crítica que dão para encher um armário
graças aos três filmes de Batman que realizou para dos grandes, ganhou o Globo de Ouro na categoria
a Warner. Mas, dadas as posições assumidas pela de Melhor Ator (drama), o BAFTA e o galardão da
companhia em 2020, na prática relegando a exi- Guilda dos Atores. É um pleno, unanimidade, não
bição em sala para segundo plano, posições a que há Óscar que lhe fuja. Mas no campo feminino tudo
Nolan se opôs publicamente com grande veemên- está em aberto. A concorrência é entre Lily Gladsto-
cia, o financiamento de “Oppenheimer” foi procu- ne (protagonista de “Assassinos da Lua das Flores”,
rado noutro lugar e negociado palmo a palmo (No- de Scorsese) e Emma Stone (que lidera o elenco de
lan exigiu, nomeadamente, uma janela mínima de “Pobres Criaturas”, de Lanthimos). Tudo as sepa-
100 dias de exclusividade em sala). Acabou por ser ra: “Assassinos da Lua das Flores” é um drama, es-
a Universal a assinar o compromisso. sencialmente masculino, de que a personagem de
Há quem considere que a decisão da Warner de Lily Gladstone, fechada, calada, sofrida, é a víti-
pôr “Barbie” nos cinemas exatamente na mesma ma; “Pobres Criaturas” é uma comédia visionária,
semana foi uma espécie de vingança. O longo bio- de que Bella Baxter (que Emma Stone interpreta
pic sobre o cientista de esquerda que liderou a cria- com uma impressiva inteligência física e mental)
ção da bomba atómica e, assim, decidiu a II Guerra é o exuberante motor turbo, a vedeta em todos os
Mundial poderia resistir à rósea e esfuziante comé- quadrantes. Lily Gladstone é de etnia índia — da
dia em torno da mais icónica boneca americana? A tribo Blackfeet —, nasceu e cresceu numa reserva
receção crítica inicial, muito favorável para qualquer do estado de Montana; Emma Stone é branca, loira,
deles, não ajudava à escolha. Foi então que o fenó- tipicamente WASP. Também quanto ao historial nos
meno ‘Barbenheimer’ eclodiu, numa avalanche que Óscares, o que as divide é abissal. Esta é a quarta
sugeria ao público que experimentasse ver os dois nomeação de Emma Stone: em 2017 levou para casa
filmes como se se tratasse de uma sessão popular a estatueta de Melhor Atriz com “La La Land: Melo-
inda se lembra, leitor, dos anos da pandemia? A double feature, primeiro um e logo o outro, de se- dia de Amor”. A atriz de Scorsese é estreante abso-
maior parte das pessoas confinada em casa, os ci- guida — e qual seria melhor ver primeiro? As redes luta. Mais: é a primeira nativa índia a ser nomeada
nemas fechados, as plataformas de streaming em sociais encarregaram-se de tornar a ideia planeta- nesta categoria. O que indicia a jornada de distin-
ebulição e galopante crescimento, os decisores dos riamente viral — e claro, a temporada dos prémios, ções no caminho para os prémios da Academia?
grandes distribuidores americanos de cabeça per- os Óscares em particular, não poderia ficar alheia. Nos Globos de Ouro, com a singular separação en-
dida? Ainda se lembra quando a Warner anunciou Quando as nomeações começaram a acontecer, am- tre drama e comédia, ganharam ambas, cada uma
— no final de 2020 — que 17 dos seus 21 filmes pre- bos os filmes se situaram em boas posições. Para os na sua categoria. Nos BAFTA britânicos triunfou
vistos para 2021 seriam estreados exclusivamente Globos de Ouro, “Barbie” teve nove nomeações, nos Emma Stone; Lily Gladstone nem estava nomea-
em streaming, nesse gesto declarando o que pare- BAFTA (atribuídos pela Academia Britânica) conse- da... ‘Vingou-se’ no prémio da Guilda dos Atores.
cia ser o mais devastador terramoto que a atividade guiu cinco e para os Óscares está com oito. “Oppe- A competição está tão taco a taco que as próprias
cinematográfica alguma vez sofrera? Depois, claro, nheimer” tem uma contagem mais impressionan- casas de apostas dão ambas favoritas com símiles
os executivos fizeram marcha atrás nessa decisão, te: Globos de Ouro — 8; BAFTA — 13; Óscares — 13. probabilidades (e as casas de apostas — “Show me
embora encurtando fortemente o tempo de exclu- Aliás, só um maremoto poderá fazer com que o tra- the money” — não brincam em serviço). Contra
sividade para as salas, norma que ainda perdura. balho de Christopher Nolan não venha a arrebatar o mim prevejo: o desempenho de Emma Stone é tão
Tempos loucos, idade negra, cujas sequelas se pro- Óscar mais apetecido da noite de domingo: Melhor extraordinário que não lhe dar o Óscar é clamoroso,
longaram pelos anos futuros e de que, deveras, não Filme. Ganhou nos Globos de Ouro, nos BAFTA e se eu votasse, nela votaria. Mas o peso que os filia-
recuperámos por completo. Todavia, 2023 viu, so- nos prémios da Guilda dos Produtores — tudo parece dos na Guilda dos Atores têm na Academia vai fa-
bretudo a partir do verão, o regresso às salas de ci- consumado. “Barbie”, aliás, vai sair da cerimónia de zer com que Lily Gladstone leve a estatueta dourada
nema das desaparecidas massas de público, regres- domingo à noite apenas com migalhas. para casa. Numa conjuntura onde o ‘politicamente
so muito potenciado por um daqueles fenómenos “Oppenheimer” merece? Não desmerece. É fil- correto’ é influente, o fator étnico conta.
que parecem engendrados por um genial gabinete me de uma solidez admirável, embora eu, se votas- No terreno dos atores secundários, as coisas
de marketing. Este, ao invés, nasceu de improviso, se, talvez ficasse indeciso entre outros contendores, são mais previsíveis. Comecemos pelo lado mas-
por acaso. Refiro-me, claro, ao ‘Barbenheimer’, como “Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos, ou culino, onde o trabalho de Robert Downey Jr. em

E 34
EXCELÊNCIA “Pobres Criaturas”
é uma comédia visionária onde
Emma Stone interpreta Bella
Baxter com uma impressiva
inteligência física e mental

“Oppenheimer” “Oppenheimer” parece consensual. Depois de anos


a fio a ser o Homem de Ferro nos filmes da Mar-
se fazer um gigante — “Mean Streets”, “O Padrinho
— Parte II”, “Taxi Driver”, “1900”, “O Caçador”, “O

parte com um vel, de que 2023 parece indiciar, finalmente, o de-


clínio, Robert Downey Jr., que há 30 anos se atre-
Touro Enraivecido” e por aí fora. Quanto ao campo
feminino, só me restaria pegar num cartaz e mani-

ímpeto que, veu a interpretar Charles Chaplin — e bem —, vai,


enfim, ganhar um Óscar. Está escrito nas estrelas:
festar-me em frente ao Dolby Theatre (já que atirar
baldes de tinta não me cai nos usos e costumes): é

quase de certeza, triunfou nos Globos de Ouro, nos BAFTA e na Gui-


lda dos Atores.
que o melhor desempenho que 2023 me ofereceu
no terreno das atrizes secundárias foi o de Penélope

o vai levar a No campo feminino, idem idem, aspas aspas,


para Da’Vine Joy Randolph, favorita pelo seu papel
Cruz no “Ferrari”, de Michael Mann, e nem sequer
foi nomeada para os Óscares — esteve na lista final

coletar seis ou em “Os Excluídos”, de Alexander Payne. Também


fez um pleno: ganhou Globos de Ouro, BAFTA, Gui-
da Guilda dos Atores, mas foi só.

OS QUE ESCREVEM
sete estatuetas lda dos Atores. O Óscar é dela.
Se eu votasse, iria contra a corrente. Para Melhor Difícil, difícil é prever quem vai ganhar nas duas

douradas, longe Ator Secundário poria a cruzinha no boletim de voto


em frente do nome de Robert De Niro. Eu sei, eu sei
categorias de Argumento, Original ou Adaptado. A
Writers Guild passou meses a organizar a prolon-
que o homem não precisa de ganhar mais nada. Tem gada greve que paralisou a produção e a conduzir
das 13 nomeações 80 anos, fez filmes indelevelmente inscritos na his-
tória do cinema, já tem dois Óscares. Mas temo-lo
duríssimas negociações com os patrões da indús-
tria, que pareciam indisponíveis para quaisquer
com que sai da visto tão perdido e cabotino em comédias de refugo
que encontrá-lo num papel nobre acorda vontade de
cedências significativas. Ao fim de vários meses,
acabaram por ter de aceitar as principais reivin-
grelha de partida aplauso, sobretudo em quem viu o miúdo crescer até dicações dos homens e mulheres que escrevem as

E 35
palavras que os atores dizem, no termo de um pro-
cesso que veio provar, outra vez, que os trabalha-
dores, quando se unem, têm uma força irresistível.
Aprontar galardões e festas não calhou nas priori-
dades da Guilda, de tal maneira que só há escassos
dias apresentou as nomeações, com a cerimónia
agendada para — imagine-se — 14 de abril.
A Associação de Imprensa Estrangeira de
Hollywood, que organiza os Globos de Ouro, não
tem as esquisitices da Academia e da Guilda e con-
cede um único prémio de argumento para filmes.
Este ano atribuiu-o a Justine Triet e Arthur Harari,
pelo francês “Anatomia de Uma Queda”, uma his-
tória labiríntica e em constante modo dubitativo
que faz a ossatura de uma obra perturbante e enig-
mática. Lembremos: trata-se de um dos mais pre-
miados filmes estreados no ano transato. Começou
com a Palma de Ouro, em Cannes, varreu imperial-
mente os Prémios do Cinema Europeu e os Césares
e está pentanomeado para os Óscares (nas catego-
rias de Melhor Filme, Realização, Atriz, Montagem
e Argumento). Em exibição nas salas, há que vê-lo.
“Anatomia de Uma Queda” foi também a escolha
britânica para o BAFTA de Argumento Original.
Surpresa: nem consta na lista dos nomeados pela
Guilda (“Air”, “Barbie”, “Os Excluídos”, “May De-
cember: Segredos de Um Escândalo” e “Vidas Pas-
sadas” é tudo o que lá se refere), o que revela que
os argumentistas americanos não estarão, este ano,
muito inclinados a votar em franceses.
Quanto à categoria de Argumento Adaptado, o
BAFTA coube a Cord Jefferson, que escreveu e reali-
zou “American Fiction”, uma primeira obra. É uma
comédia negra, ‘negra’ no duplo sentido de tratar
da negritude e dos estereótipos raciais e ‘negra’ por
lidar com a morte, o sofrimento e, sobretudo, a es-
tupidez humana. Sagaz e corrosiva, não chegou a
ser estreada nas salas portuguesas, todavia pode
ver-se em streaming na Prime Video. É uma das
nomeações da Guilda (sendo as restantes “Assas- RECEITA “Barbie”, com Margot Robbie no papel principal, rendeu, internacionalmente, quase 1500 milhões de dólares
sinos da Lua das Flores”, “Nyad”, “Oppenheimer”
e uma comédia dramática que não foi estreada em
Portugal, “Are You There, God? It’s Me, Margaret”). categoria onde os Estados assumem alguma interfe- em alemão, polaco e yiddish. Começou a sua carrei-
Entretanto, o que dizem as casas de apostas? rência, já que cada país só pode ter um candidato — ra internacional de sucesso com um dos principais
Dão como favoritos indiscutíveis os laureados com isto mesmo quando a escolha é assegurada por júris prémios do Festival de Cannes, mas, para o que aqui
os BAFTA. Não faço a menor ideia porquê. O certo independentes. Este ano foi muito falado o proces- nos interessa, lembremos que ganhou nos Globos de
é que parecem ser prognósticos firmes. so polaco, com a não indicação do multipremiado Ouro e nos BAFTA. Já agora, acrescente-se que é um
“Green Border — Zona de Exclusão”, de Agnieszka filme extraordinário, centrado na descrição da vida
OUTRAS LÍNGUAS, OUTROS MODOS Holland, sulfurosamente crítico do Governo de ex- de família de Rudolf Höss, comandante do complexo
Ao invés do que muita gente pensa, os Óscares não trema-direita pela sua política para os refugiados. de campos de extermínio de Auschwitz, numa vi-
são prémios para o cinema americano nem se- Em Portugal, o processo é encabeçado pela Acade- venda idílica, paredes meias com as câmaras de gás
quer para filmes em língua inglesa. Se assim fosse, mia Portuguesa de Cinema, e a sua atuação foi rece- e os fornos crematórios que Höss regia, aplicando
Bergman não poderia ter sido nove vezes nomeado bida pela comunidade de forma pacífica. Em 2023, à indústria da morte a competência germânica em
ou Fellini 12. Nem o coreano “Parasitas”, de Bong a escolha recaiu sobre “Mal Viver”, de João Canijo, engenharia e gestão. Essa mesma excecionalidade
Joon-ho, poderia ter ganho quatro estatuetas (en- e, como tem sido regra dos filmes portugueses, não foi reconhecida pela Academia de Artes e Ciências
tre as quais as de Melhor Filme e Melhor Realiza- teve possibilidades de se tornar visível na montra Cinematográficas ao ter nomeado a obra de Glazer
ção) em 2020. Contudo, de facto, a contabilidade de dos cinco finalistas, onde há representantes de Es- em cinco categorias: Melhor Filme do Ano, Melhor
prémios e de nomeações mostra uma esmagadora panha, Japão, Reino Unido, Alemanha e Itália. Um Realização, Melhor Som, Melhor Argumento Adap-
preponderância do cinema americano e do cinema distribuidor de peso é essencial para lá chegar, e tado e ainda Melhor Filme Internacional, prémio
em língua inglesa, em geral. Nesse contexto, a Aca- “Mal Viver” não teve distribuição americana. que, garantidamente, vencerá.
demia tem uma categoria reservada a filmes em lín- Favorito absoluto nesta categoria é “A Zona de E em relação aos desenhos animados, formato
gua não inglesa, que nos últimos anos assumiu a de- Interesse”, de Jonathan Glazer, filme que arvora a longo, categoria recente na história dos prémios da
signação de Melhor Filme Internacional. É a única bandeira britânica mas que é falado inteiramente Academia — só existe desde 2002 —, como estamos?

E 36
QUEM QUEM
VAI GANHAR DEVIA GANHAR

Bem. O ano foi diversificado: houve o novo cometi- MELHOR FILME MELHOR FILME
mento do velho mestre japonês Hayao Miyazaki, de “Oppenheimer” “A Zona de Interesse”
82 anos de idade, sempre ativo (“O Rapaz e a Gar-
ça”); provou-se que o Óscar que a Netflix conse-
MELHOR REALIZAÇÃO MELHOR REALIZAÇÃO
guiu no ano passado pode não ter sido uma vez sem
Christopher Nolan Christopher Nolan
exemplo (este ano tem “Nimona” entre os cinco fi-
“Oppenheimer” “Oppenheimer”
nalistas); viu-se uma produção hispano-francesa
chegar a Hollywood (“Robot Dreams”) — a mostrar
a pujança da indústria de animação de nuestros her- MELHOR ATOR MELHOR ATOR
manos; “Elemental” — sete anos de laboração, 200 Cillian Murphy Cillian Murphy
“Oppenheimer” “Oppenheimer”
milhões de dólares de orçamento — representa a
aliança da secular Disney com a dinâmica Pixar, que
já conheceu melhores dias; e a Marvel retornou em MELHOR ATRIZ MELHOR ATRIZ
parceria com a Sony, catapultando o seu Homem-A- Lily Gladstone Emma Stone
ranha para um novo Óscar, que “Homem-Aranha: “Assassinos da Lua das Flores” “Pobres Criaturas”
Através do Aranhaverso” provavelmente ganhará.
Senão, vejamos: o filme de Miyazaki venceu nos MELHOR ATOR SECUNDÁRIO MELHOR ATOR SECUNDÁRIO
Globos de Ouro e nos BAFTA; todavia, “Homem-A- Robert Downey Jr. Robert De Niro
ranha: Através do Aranhaverso” brilhou nos Prémios “Oppenheimer” “Assassinos da Lua das Flores”
Annie (ganhou sete, entre os quais o de Melhor Fil-
me), prestigiados galardões do campo da Animação, MELHOR ATRIZ SECUNDÁRIA MELHOR ATRIZ SECUNDÁRIA
considerados os mais representativos da comunida- Da’Vine Joy Randolph Penélope Cruz (nem sequer foi nomeada)
de. E é o eleito das casas de apostas. “Os Excluídos” “Ferrari”

CONTAS FEITAS MELHOR ARGUMENTO ORIGINAL MELHOR ARGUMENTO ORIGINAL


Algum filme vai arrasar a concorrência nos Óscares
Justine Triet e Arthur Harari Justine Triet e Arthur Harari
em 2024? Prevejo que sim. “Oppenheimer” parte “Anatomia de Uma Queda” “Anatomia de Uma Queda”
com um ímpeto que, quase de certeza, o vai levar
a coletar seis ou sete estatuetas douradas (tem for-
tes hipótese na Fotografia e na Música e Monta-
MELHOR ARGUMENTO ADAPTADO MELHOR ARGUMENTO ADAPTADO
Cord Jefferson Cord Jefferson
gem, por exemplo), ainda assim longe das triun-
“American Fiction” “American Fiction”
fais 13 nomeações com que sai da grelha de parti-
da. Nos antípodas, “Assassinos da Lua das Flores”
parece destinado a magra colheita, apesar das suas MELHOR FILME INTERNACIONAL MELHOR FILME INTERNACIONAL
10 nomeações. “A Zona de Interesse” “A Zona de Interesse”
Entretanto, é bom conferir que, num tempo em Jonathan Glazer Jonathan Glazer
que as guerras na Ucrânia e em Gaza fazem nascer
o medo de um conflito generalizado e lembram MELHOR LONGA-METRAGEM MELHOR LONGA-METRAGEM
extermínios, Hollywood vai premiar fortemen- DE ANIMAÇÃO DE ANIMAÇÃO
te ficções que nos compelem a retornar ao último “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” “O Rapaz e a Garça”
conflito mundial — “Oppenheimer”, “A Zona de
Interesse” —, apontando o dedo a preconceitos ét-
nicos — “American Fiction”, “Assassinos da Lua
das Flores” —, a estereótipos e intolerâncias de
género — “Barbie”, “Pobres Criaturas”, “Maestro”
—, ou mesmo às convenções ficcionais em ato de
transgressão — “Anatomia de Uma Queda”, “Vidas
Passadas”. A quem achar que a celebração anual da
Academia de Artes e Ciências Cinematográficas é só
feira de vaidades, vestidos na passadeira vermelha
e egos do tamanho do mundo nas primeiras filas
da plateia, convido, modestamente, que aceda aos
filmes, pelo menos aos que estão no primeiro pla-
no da montra. E não é muito difícil. “Anatomia de
Uma Queda”, “A Zona de Interesse”, “Os Excluí-
dos”, “Oppenheimer”, “Vidas Passadas” e “Po-
bres Criaturas” estão em sala; “Assassinos da Lua
das Flores” pode ser visto na Apple TV+; “Maes-
tro” encontra-se na Netflix; “American Fiction”
passa na Prime Video; “Barbie” exibe-se na HBO
Max. Vamos? b

e@expresso.impresa.pt

E 37
Entrevista
Kukas

Tenho um
desgosto
enorme
de não ser
eterna”
Seis décadas após a primeira exposição individual,
Kukas fala sobre a sua vida, conquistas, lutos
e processos e capacidades criativas que não
se esgotam com a idade. A artista do design
e da joalharia confessa que gostaria de morrer
a criar e de fazer uma exposição em Serralves

POR CATARINA NUNES JORNALISTA (TEXTO)


E TIAGO MIRANDA (FOTOGRAFIAS)

E 38
E 39
A
Sente que está a ter uma segunda maneira de ser. Fui sempre assim, nun-
vida? ca usei relógio. A minha noção do tem-
Só porque apareceu uma mecenas. Se a po é deixar fluir.
Filipa não tivesse aparecido, neste mo-
mento eu... (pausa) percebe? Isto agora Na última exposição, no Museu Na-
é absolutamente uma segunda vida que cional de Arte Contemporânea, fez 30
devo à Filipa. Mesmo as exposições e os e tal peças e teve de produzir com um
artigos no “Financial Times” e na “Va- prazo.
nity Fair” foi ela que organizou. É uma A Filipa tratou de tudo. Faço as peças
reencarnação não programada. O pro- nas calmas, sem horas certas nem mé-
gramado sai sempre ao contrário. Des- todo. Sou antimétodo. Não tenho dias
de os ponteiros do relógio — que são a para nada. Trabalho como vai aconte-
coisa mais redutora do mundo — a tudo cendo. Desde que me levanto até que
o resto, não gosto de uma vida progra- me deito tenho imagens na cabeça que
mada, sou antirregras. Deixo fluir, es- vou concretizando, mas não tenho nin-
os 95 anos, Kukas está de volta à ri- tou solta e deixo entrar a energia que guém a obrigar-me a nada, sou dona de
balta. Onze anos depois da última vem de fora, do Tejo ou do que for. Isto mim mesma.
exposição individual, em 2012, no para mim é fundamental.
MUDE (“Kukas — Uma Nuvem que Que imagens são essas que tem na
Desaba em Chuva”), reaparece em Passou a ter mais energia para tra- cabeça?
2023 com uma mostra no Museu Na- balhar desde que tem a Filipa como São um somatório de todo o conteú-
cional de Arte Contemporânea e ar- mecenas? do visual que vi ao longo da vida e de
tigos de fundo na imprensa inter- Porque tive uma motivação, mas antes repente, às vezes, surgem imagens da
nacional, no “Financial Times” e na até tinha mais energia do que tenho pintura, da arquitetura, da escultu-
“Vanity Fair”, que destacam a per- hoje, que já estou mais velha e desgas- ra, enfim, de tudo o que vi com tan-
sonalidade e o percurso desta artista tada fisicamente. Psicologicamente foi tos anos — com esta longevidade, já vi
singular na área do design e da joa- um enorme estímulo. muita coisa. Mas há duas grandes refe-
lharia. É uma figura mítica em Por- rências, a pintura e a arquitetura.
tugal e lá fora, desde os anos 1960, Como é que, com 95 anos, mantém a
devido às criações de joias geomé- criatividade e a disciplina de trabalho Como é que passa dessas imagens
tricas em grande escala, que rom- para concretizar tantos projetos? mentais para a materialização das
pem com o conceito de joalharia da A minha disciplina é não ter discipli- joias?
altura. Kukas (Maria da Conceição na. Não posso ter horas certas, tudo isso Tudo serve. Uma rolha, uma tampa,
de Moura Borges), porém, sente que para mim é um desgaste enorme. Não uma embalagem ou o fundo de uma
lhe falta fazer tudo o que gostaria e tenho uma rotina de trabalho, de todo, garrafa, pode ser tudo. Tenho o culto
em 2024 está a programar a partici- sou antirrotina. Gosto que a vida vá de não deitar nada fora sem antes olhar
pação no Salão do Móvel, em Milão, fluindo naturalmente, sem constran- para a forma. É uma cosa mentale, vejo
e na Art Basel, em Basileia. Os novos gimentos. Uma hora certa é um cons- a imagem surgir na estética do detrito e
projetos são impulsionados por Fili- trangimento. Está claro que por vezes a partir daí faço umas maquetes muito
pa Fortunato, arquiteta e proprietária tenho de ter horas certas, mas é um primárias, que depois passo ao ourives,
do hotel Casa Fortunato, em Alcácer esforço enorme que é contra a minha que trabalha para mim há 20 e tal anos
do Sal — de quem Kukas é madrinha
de casamento e amiga da avó —, que
surge como mecenas há cinco anos,
quando a artista atravessa dificulda-
des. Apesar de nunca ter parado de
criar (no seu apartamento, junto à
Costa do Castelo, em Lisboa), Kukas
fica sem meios financeiros para de-
senvolver o seu trabalho de forma
sustentada, devido ao prejuízo com
uma inundação, em 2002, na loja
que tinha na rua de São Bento des-
de 1998, sete anos depois do encer-
ramento do seu primeiro espaço, na
Estou dois, três meses sem
Praça das Flores. Com o apoio de Fi-
lipa Fortunato, em 2018, começa por
sair de casa, mas nunca me
criar cerca de 20 objetos, entre jar-
ras, manteigueiras, travessas e pra-
tos, para servirem na Casa Fortunato,
aborreço. Acordo, tomo o
em Lisboa, que funcionava também
como um ponto de venda. O projeto
Kukas by Casa Fortunato, entretanto,
meu café e a partir daí vou
é deslocado para um estúdio com loja
própria, na rua da Escola Politécnica. fazendo o que me apetece”
E 40
e que entende o meu gestual, nem pre- São as ideias que me sustentam. No uma privilegiada dos afetos da famí- Como é que supera as maleitas que vai
cisamos de falar. dia em que não tiver ideias, não estou lia e dos amigos, e isso sustenta-me. tendo?
cá a fazer nada — quer dizer, os afetos É a força anímica que me faz dar a
A sua criatividade mantém-se intac- são outra coisa. Isto tem um fim e vou Aparenta estar ótima de saúde. Ou volta por cima. Já tive cada uma que
ta. De que formas a idade lhe pesa? contrariadíssima. Sou contra epitáfios tem algum problema? nem queira saber, mas sobre isso não
A criatividade nunca morre, mor- e tudo o que é necrofilia, mas se tives- Já tive muitos problemas de saúde e vou falar. Já disse às minhas sobri-
re connosco. Não é uma coisa que se se um epitáfio — já tenho pensado — não tenho nada a sensação de estar nhas que no dia em que eu ‘esticar’,
ordene, é uma coisa que nos habita. punha assim “aqui jaz, contrariadíssi- ótima, sobretudo desde que tive uma não quero que digam a ninguém. Le-
ma, quem nunca se aborreceu”. porcaria, fui-me abaixo. Digo que es- vam o material para onde tiver de ir e
A idade não diminui nem afeta a tou viva porque não tomo remédios depois, pronto, o fuminho. Não quero
criatividade? Tem medo de morrer? e quando vou ao médico ele diz-me nada, nem que digam a ninguém. Só
Por enquanto ainda não afetou. No Não é medo, tenho um desgosto enor- “porque é que vem cá? Não faz nada dizem depois de terem despachado o
dia em que a afetar, é hora de entrar me de não ser eterna, isso é que eu do que lhe digo”. Ele tem razão, mas material.
em eutanásia, esta é a verdade. Como gostava. Mas é como o Vinicius diz não acredito nas drogas. A única dro-
não sou católica, sou 100% pela euta- sobre o amor, que seja eterno enquan- ga de que sou dependente é a cafeína, Recuando até ao início da sua car-
násia. As minhas sobrinhas já sabem. to dure. sem ela fico balhelhas, fui assim toda reira, em que foi pioneira numa nova
Vou ficar cá pateta e vegetativa? Não a vida. É só a mola de arranque, o café linguagem da joalharia. Foi natural ou
há direito, não mereço isso. Há algum segredo para a longevida- com leite matinal é imprescindível, se procurou-a como disrupção com o
de, principalmente para a longevida- não tomar fico com o corpo sem alma. que se fazia na época?
Entre fazer joias e estar pateta há um de ativa? Nunca na vida me droguei, felizmen- Fui sempre contra a joia ostensiva, do
meio termo, pode estar bem sem ter Acho que é o gosto pela vida e é tam- te — também era o que faltava —, mas novo-riquismo que isso representa-
ideias. bém o legado dos afetos. Tenho sido compreendo os drogados. va, contra a ideia de que quanto mais

E 41
brilhantes tivesse, melhor. Reagi con- Fiz várias decorações, mas isso não de linguagem rebuscada, sou contra. É como um arrepio, é difícil definir.
tra isto e na altura, em Portugal, de- interessa. Fiz o teto da boate do Ho- É o que eu sinto, gosto do depurado. Não é um dom, é uma sensibilida-
sign era uma palavra que ninguém tel Alvor, no Algarve, todo em vidro Quando consigo esse equilíbrio geo- de. Por exemplo, encontrei o arqui-
usava. Quem falou pela primeira vez como se fossem estalactites e estalag- métrico, de depuração da forma, é o teto Souto Moura uma vez e acho que
em design em Portugal, que eu saiba, mites numa gruta. Acho que destruí- que me satisfaz. Quanto mais chegar ele tem uma energia positiva e gosto
foi o Daciano da Costa, mas em Paris, ram isso tudo. Fiz tanta coisa. Na casa à abstração e comunicar uma forma, das obras dele. Há uns anos estava na
onde estive três anos, design já era dos avós da Filipa fiz uma lareira em melhor. É uma questão de rigor. Gos- Bertrand do Chiado a pedir um livro
uma palavra comum. cobre, aliás fiz várias lareiras, não foi to da linearidade, no fundo é o triunfo do Souto Moura e trazem-me um ca-
só essa. Quem fez o projeto da casa foi da linearidade. lhamaço enorme, que acabei por não
Não foi para Paris estudar design de o António Portas e o Teotónio Pereira, trazer porque não aguentava com o
joias, mas design de interiores e edu- que me convidaram para fazer a de- Estava habituada a trabalhar sozinha. peso. De repente, quando olho, esta-
cação pela arte, no Louvre, onde fica coração. Mas isso não me satisfaz da Como é trabalhar com a Filipa? va o Souto Moura ao meu lado. Ia-me
amiga de Marc Chagall. mesma maneira, o que eu gosto é des- Há um entendimento sem stresse, não dando uma coisa. É a pura verdade e
Amiga não posso dizer, conhecida. ta arte em trânsito da joia. A decoração tenho tensão e isso facilita-me. Su- ele não desmente.
Quer dizer, ele depois ofereceu-me um não é uma obra de arte, é uma coisa ponha que eu estava a fazer as coisas
livro autografado. Isso aconteceu por- secundária, um misto de coisas e ob- para uma pessoa tensa. Ela tem uma Costuma sair de casa? Como é o seu
que quando cheguei a Paris, a primeira jetos que se escolhem. Para mim não é energia positiva que flui. Dizemos o dia a dia?
coisa que pensei foi fazer educação pela uma realização ser decorador. É o meu que temos a dizer, mas nem a Filipa Saio muito pouco. Estou dois, três
arte, que acabei por não seguir. Pôr as ponto de vista, outros podem contes- me força nem eu a forço a ela, inde- meses sem sair de casa, mas nunca
crianças e desenhar como a Madalena tar. Nas joias é entre mim e quem as pendentemente da amizade. Já estou me aborreço. Acordo, tomo o meu
Cabral, de quem fui muito amiga, fa- usa, há a tal mediação. muito velha para viver em stresse. café e a partir daí vou fazendo o que
zia no Museu de Arte Antiga. O Cha- Nunca gostei de stresse, nem quero. me apetece. Não tenho horas para
gall posou como modelo para as crian- O anel que tem no dedo é uma pirâ- Quero é estar de bem com os outros e acordar, depende da hora a que me
ças da escola de educação pela arte do mide. Nas peças mais recentes está com a vida. Almada Negreiros, o mes- deito, antes da meia-noite é raro dei-
Louvre, quando eu estava lá. mais virada para as formas triangula- tre Almada que acho que era um gé- tar-me, sou noctívaga. Apanho sol na
res. Têm algum significado para si? nio, dizia: “Entre mim e a vida não há varanda, leio a “Veja” e o Expresso,
É na cerâmica que começa. Como é Estou virada para a geometria pura. mal entendidos.” Esta frase é o meu vejo livros de arte. A partir das 18h
que passa para as joias, nos anos 1960? As formas geométricas satisfazem- credo. A vida tem de fluir e quero é posso sair, mas saio pouquíssimo.
Fiz um anel que lembra este (apon- -me inteiramente, é à volta do que eu saúde mental. Preciso de uma canadiana, mas ando.
ta para o dedo com um anel com um ando sempre. Há um poema do Nuno Estou bem em casa, já moro aqui há
cristal em pirâmide) para a Maria Hele- Júdice, ‘Geometria Fixa’, que me dei- Tem arrependimentos? 60 anos, não preciso muito dos agen-
na Vieira da Silva... (pausa) Não, o meu xa com a lágrima no olho, que é jus- Tenho muito poucos arrependimen- tes exteriores.
primeiro anel foi este (aponta para ou- tamente sobre o círculo que procura tos hoje em dia. Tenho uma coi-
tro anel que tem em outro dedo), que o triângulo, o triângulo que não sei o sa muito instintiva — é uma mania E na televisão, o que é que vê?
fiz para os anos de uma das minhas três quê, um poema giríssimo. como outra qualquer — de achar que Há agora um rapazinho novo, o Sebas-
tias que me criaram, a mim e ao meu sinto a energia positiva e negativa. tião Bugalho, inteligentérrimo, fiquei
irmão. Este anel tem mais de 60 anos, Antes da fase geométrica teve outra É uma coisa que hoje em dia, en- deslumbrada mal o ouvi a raciocinar,
foi o início. Não se pode dizer que seja fase? tão, sinto extraordinariamente. Estas adorava conhecê-lo. A SIC apanhou-
um design abstrato, mas é totalmente Barroca nunca tive, sou antibarro- coisas são inatas, em criança já tinha -o e ainda bem. Há outro comentador
diferente do que fiz depois, evoluí para quismo. O barroco é um excesso e eu isto, na medida em que tive sempre que admiro, o Marques Mendes, que
a geometria, para a depuração da peça. sou contra o excesso. É como o excesso aquela coisa ‘este não, aquele não’. tem um pensamento isento.
O excesso de decoração, para mim, é
obsceno esteticamente. Quanto mais
linear e grande, melhor, miniaturas é
que não. Não há nada mais possidónio
do que miniaturas, é uma mania mi-
nha (risos).

É qualquer pessoa que tem estilo para


o tamanho e forma das suas joias?
É mais uma questão de atitude. Há uma
mediação entre a joia e a pessoa, isso é
claro, já os egípcios acreditavam nis-
so. Ancestralmente, é parte integran-
te do adorno. Isto acontece com tudo
Quando cair para o lado — vou
o que nos rodeia, não é por acaso que
escolhemos umas coisas e não outras. É
contrariadíssima, mas tem de
como os objetos para a casa, que come-
cei a fazer quase em simultâneo com as
joias, e que representam a parte funcio-
ser — gostava que fosse assim. É
nal ligada à estética.

Acabou por pôr em prática também o


uma morte gloriosa, morrer a
curso de Design de Interiores que fez
em Paris. criar, em vez de morrer pateta”
E 42
Interessa-se por política ou é filiada
em algum partido?
Era incapaz de ser partidária, não
pertenço a partido nenhum, nem
quero. É impensável eu pertencer a
um partido.

Faz tudo em casa e cuida de si ou tem


quem trate disso?
Por enquanto tenho uma empregada
que vem cá à segunda e à sexta, há
sete ou oito anos, mas não tenho cá
ninguém de noite. Ainda estou au-
tónoma. Ela vai às compras ao su-
permercado, as minhas sobrinhas,
que adoro e são como minhas filhas,
passam por cá. A mãe da Filipa, que
conheço desde miúda e agora tem 70
anos, às vezes vem-me buscar e te-
nho a Filipa e outras amigas.

Fala-se muito da solidão na terceira


idade. Sente-se sozinha?
De todo, nunca me aborreço nem sei
o que é aborrecimento, propriamente.
Desgostos sei o que são, já tive mui-
tos. Gosto imenso de conviver e te-
nho imensos amigos que me telefo-
nam com frequência. Se estiver bem
de saúde e souber que todos à minha
volta estão bem, eu estou bem.

Gosta de animais, mas não tem ne-


nhum em casa.
Um gato faz-me a maior falta, mas
marido não me faz falta nenhuma
(risos). Entretenho-me muito com
as plantas. Tenho um espargo há 60
anos, que plantei quando vim morar
aqui, e tem sobrevivido. É um amigo
vegetal. Adoro tudo o que seja plan-
tas e bicharada, também nasci numa
quinta em Penamacor, perto da Serra
da Estrela. A bicharada é para a gen-
te amar, fazer festinhas e companhia.

Que memórias tem da sua infância e


adolescência?
Memórias normais, com as minhas
três tias solteiras, irmãs do meu pai,
que foram três mães, mulheres mui-
to inteligentes que tive a sorte de ter.
A minha mãe morreu com 28 anos,
tinha eu uns quatro ou cinco anos, já
não me lembro bem. Às vezes os lu-
tos são esquisitos e a pessoa procu-
ra fugir das datas. O meu pai morreu
pouco depois da minha mãe. Já pas-
sei muito, mas também tive muita
coisa boa. Temos de dar a volta por
cima às nossas deficiências e viver
com elas, andar para a frente, tem de
ser. Se não, as pessoas ficam ao lado
da vida, não estou para isso, a vida é
curta. Fica sempre uma mágoa, mas

E 43
é uma mágoa abstrata, uma coisa que pertenci a nada, nem a uma associa- — tive um ataque de choro de emo- desenho para a pedra. Como desenho
não dói no quotidiano. Faz-se o luto, ção, fosse do que fosse. Tenho a causa ção estética. Ia com umas america- mal, faço uma maquete com o que ti-
a vida é feita de lutos também, lutos da justiça, isso tenho. nas e comecei logo a desenhar com ver à mão, uma rolha, uma embala-
interiores. uma caneta uma pulseira, que estava gem, a tal estética do detrito. Depois
Quando e como é que percebeu que a imaginar na parte superior do braço vou cortando ou dobrando. Às vezes
Qual é a origem do diminutivo era uma artista e que essa ia ser a sua de uma delas. É uma plenitude saber tenho de usar folhas de metal maleá-
Kukas? vida? que se pode realizar uma coisa que vel, que compro, mas não desperdiço
Tinha 10 ou 12 anos e um cãozinho Acho que nem percebi muito bem. se pensa, vê-la objetivamente e de- nada, vale tudo.
Serra da Estrela, lá na quinta onde Comecei a fazer coisas e as pessoas pois vê-la em quem a usa, como arte
nasci, partiu uma patinha quando que me rodeavam incentivaram-me. em trânsito. Pensa em como será a última joia que
uma porca saída do curral se atirou Ao princípio, as minhas tias contra- vai criar?
a ele. Peguei-lhe ao colo, dei-lhe riaram, mas depois financiaram a es- Trabalha com pedras preciosas? Sei lá. Eu própria não vou saber quan-
muitos beijinhos, e disse “coitadi- tada em Paris. Acharam, inicialmen- A maioria são não preciosas, não te- do vai ser a última. Se pensasse nis-
nho deste kukas”. Foi uma expres- te, que o melhor caminho era casar e nho dinheiro para investir em pe- so não tinha fim, fazia este mundo e
são minha que ficou. Antes disto, as ter filhos, mas eram suficientemente dras preciosas. Não dá para a minha o outro.
minhas tias chamavam-me Maria e evoluídas mentalmente para enten- mecenas investir em brilhantes, mas
há montes de gente que não sabe se- derem e colaborarem. também não é o brilhante nem o va- O que é que lhe falta fazer?
quer o meu nome. Maria da Concei- lor da pedra aplicada que me inte- Tudo. Quando estou a fazer uma coi-
ção, aliás, não é um nome que ache O processo criativo das suas peças ressa. O que me interessa é a beleza sa, a sensação que tenho é que me
bonito, os nomes e palavras em ‘ão’ diverte-a ou traz algum sofrimento? da pedra e até pode ser uma pedra falta fazer tudo o que gostaria de fa-
são todos feios. Está claro que é uma realização, não modesta, no sentido do valor ma- zer. O Picasso levantou-se de manhã,
é sofrimento nenhum. Isso do sofri- terial, mas ter um valor estético que começou a desenhar e caiu para o
Teve um percurso invulgar para a mento criativo é uma metafísica ba- eu goste. Turmalinas, por exemplo, lado. Quando cair para o lado — vou
maioria das mulheres da sua gera- rata, não acredito nisso. Quando es- são pedras bicolores de que gosto contrariadíssima, mas tem de ser —
ção, em que o normal era casar e ter tou à volta de uma pedra — tenho um imenso, passam dos verdes aos ver- gostava que fosse assim. É uma mor-
filhos. Entende-o como um percurso manancial de uma gaveta cheia de melhos. Não é preciso ser o brilhan- te gloriosa, morrer a criar, em vez de
feminista? pedras que não vou ter tempo para taço e os diamantes, mas se houver, morrer pateta. Há uma frase que diz
É verdade. Filhos não sei se gostaria utilizar todas, mas isso é outra con- tudo bem. “ó minha vida aquém da minha mor-
de ter tido, mas não me fazem falta. versa — ou um búzio, qualquer ele- te, tomara eu dar a esta o que lhe falta
Gosto dos meus sobrinhos como se mento decorativo, dou umas voltas, Algumas das suas peças começam e à outra o que lhe sobra”, julgo que é
fossem meus filhos. Não gosto nada manipulo e surge a forma, várias ima- pela pedra? de Álvaro de Campos, Fernando Pes-
da palavra feminista, porque nun- gens. Por exemplo, quando cheguei Eventualmente. Já têm partido da soa, mas não tenho a certeza.
ca fui de grupos só de mulheres. Sou à Casa da Cascata, do Frank Lloyd forma e da cor da pedra, vou brin-
mais individualista que outra coi- Wright nos Estados Unidos — estive cando com ela. É um mecanismo um O legado que vai deixar é importante
sa qualquer. Não sou filiável, nunca lá a fazer um estágio de ourivesaria bocado difícil de explicar. Parte do para si?
Faço lá ideia, aprés mois, le déluge,
como dizem os franceses. Os que cá
ficam, que se governem. O que quero
deixar é a saudade da minha família
e dos meus amigos que vão sentir a
minha falta, o legado dos afetos. Isto
sei que deixo, porque também tenho
sido muito gratificada pelos afetos ao
longo da vida, o que, instintivamen-
te, cria reciprocidade.

Está a preparar a participação no


Filhos não sei se gostaria de ter Salão do Móvel, em Milão, e na Art
Basel, em Basileia, em 2024.

tido, mas não me fazem falta. São projetos da Filipa, ainda não fa-
lámos bem sobre isso. Aquilo que
gostaria imenso de fazer agora era

Gosto dos meus sobrinhos uma exposição em Serralves, com


algumas coisas que já tenho e outras
novas. Adoro Serralves, a primeira
como se fossem meus filhos. vez que fui a Serralves lavei-me em
lágrimas, há ali uma emanação. É

Não gosto da palavra dos sítios que conheço em Portugal


onde sinto não só a harmonia arqui-
tetónica do Siza (Vieira)…. É difícil

feminista, porque nunca fui explicar. A energia positiva de um


lugar é uma coisa quase metafísica.
É porque sinto. b
de grupos só de mulheres” e@expresso.impresa.pt

E 44
OS CADERNOS E OS DIAS

A DEMOCRACIA
E A PRIVATIZAÇÃO DOS DEUSES

M
O MONOPÓLIO DOS NOMES, EIS UMA QUESTÃO CENTRAL. NESTE CASO,
AINDA É MAIS FORTE, POIS TRATA-SE DO MONOPÓLIO DO NOME DOS DEUSES

uitos se zangam com a 2.


democracia e por vezes Ainda uma notícia recente sobre um livreiro turco, Umit Nar, um
ameaçam afastar-se. livreiro de Izmir, cidade bem conhecida da costa da Turquia. Segundo
Deem-me um sistema parece, o livreiro está a ser processado “pela gigante de luxo francesa
mais rápido e eficaz, Hermès. Em causa está o facto de ter usado o nome do deus grego na
dizem, irritados. sua livraria”. A marca de luxo francesa diz que pode haver confusão
entre as duas “lojas” e meteu uma ação em tribunal.
1. O livreiro turco defende-se: “Se eu tivesse aberto uma loja de calçados
Lembrar, como faz o ou têxteis com o nome Hermes, seria compreensível.” Depois diz ainda:
viajante Erling Kagge, “A Hermès vende bolsas de pele luxuosas por milhares de euros, e eu
a tradição dos inuítes, vendo livros usados por 15 liras turcas, 45 cêntimos em euros.” Uma
“membros da nação diferença, sim, no essencial. Três mil euros, uma carteira; 45 cêntimos,
indígena esquimó que habitam as regiões árticas do Canadá, do Alasca um livro usado.
e da Gronelândia”. Nessa comunidade, quando alguém está muito No entanto, a verdade é que, em breve, Umit Nar irá a tribunal.
zangado, irritado, furioso com outra pessoa, com o seu companheiro
ou companheira, e não se consegue controlar, o que deve fazer é 3.
caminhar em linha reta, afastando-se da casa (muitas vezes, as casas Hermes, deus do comércio, das viagens, da fertilidade e etc. Hermético:
são os conhecidos iglôs), com uma pequena vara na mão. Deve, então, “Deriva do latim herméticus, talvez por influência do francês hermétique,
caminhar e caminhar, sem pausas, afastando-se o mais possível da que significa maneira usada pelos alquimistas para fechar recipientes.”
casa, para que a irritação e a zanga vão, a cada passada, diminuindo Os alquimistas fechavam os seus frascos de maneira que nenhuma gota
progressivamente de intensidade. Quando finalmente, depois de saísse. A palavra hermético também é, agora, “referente à alquimia
muitos metros, ou mesmo quilómetros, a irritação passa por completo, ou ciência da alquimia”. Hermeticamente fechados eram os segredos
a pessoa deve respirar fundo e espetar a vara na neve com o máximo de da alquimia. Fechar um segredo e um frasco com o mesmo empenho.
força para que ela fique ali, naquele ponto, e dali não saia. Depois, sim, Hermes, nome de deus, que fez então, depois, o seu percurso em
já sereno, pode regressar a casa. diferentes línguas.
Desta forma, os inuítes conseguem medir, com exatidão, a distância da
zanga. A intensidade da irritação e da zanga é medida em metros, pela 4.
distância que vai do ponto em que a vara foi espetada até à casa. Uma Voltemos, então, a Umit Nar, o livreiro turco em conflito com a marca
intensidade da irritação medida objetivamente, ao centímetro. de luxo Hermès, que afirmou ainda, na referida entrevista: “Hermes,
Podemos imaginar, assim, espalhadas pela neve, inúmeras varas, umas Zeus e o Pai Natal pertencem ao Património Cultural da Humanidade.
mais perto da aldeia, outras mais longe, como se fossem paus ligados Nenhuma empresa deveria poder monopolizar estes nomes.”
a uma qualquer agricultura estranha ou a um qualquer ritual. Essa O monopólio dos nomes, eis uma questão central. Neste caso, ainda é
paisagem de varas espetadas na neve revela uma espécie de cartografia mais forte, pois trata-se do monopólio do nome dos deuses.
das zangas da comunidade. Muitos paus espetados na neve, em O deus é meu, dizem alguns líderes, alguns povos e algumas empresas.
diferentes pontos, ou poucos, tornam visíveis a quantidade de conflitos Os tribunais irão decidir.
existentes na comunidade. E a distância em relação às casas mostra Quem tem dinheiro para comprar o nome de um deus?, eis também
a intensidade e a fúria dessas zangas. O interessante é que, depois do uma das questões contemporâneas. b
pau espetado na neve, que assinala o ponto onde a ira desapareceu
por completo, o homem ou a mulher regressam a casa. Um regresso
já calmo, com uma respiração serena e um passo talvez mais lento.
Quando reentram em casa, reencontram amorosamente a pessoa de
que se afastaram. Talvez um abraço seja o final utópico destas duas
caminhadas — uma de afastamento, a outra de regresso.
A caminhada, então, é vista aqui como uma forma de terapia muscular,
uma terapia feita de esforço e afastamento. Em vez de se deitar num
sofá — debaixo do sistema freudiano da cura pela imobilidade que fala
e recorda —, a pessoa momentaneamente perturbada levanta-se e / GONÇALO
caminha. “Caminhei em direção aos meus melhores pensamentos”,
escreveu Kierkegaard, um caminhante obsessivo da cidade de Copenhaga.
M. TAVARES
Podemos pensar nesta tradição inuíte como uma alegoria e na casa
como sendo a casa da democracia. Que cada um se zangue com ela
como fazem os inuítes, afastando-se em linha reta até que a zanga e
a ira se acalmem. Espetar uma vara no chão que assinale o limite da
sua caminhada, do seu afastamento, e depois, sim, regressar à casa da
democracia, com a serenidade recuperada.

E 46
Sozinha
contra
o tédio
Conversa com Sofia Coppola
sobre “Priscilla”, o biopic de
Priscilla Presley, menina-mulher
retratada com nitidez no filme
onde Elvis é apenas uma silhueta
TEXTO FRANCISCO FERREIRA

E 47
O
novo filme de Sofia Coppola é muito
coerente com a obra da cineasta
e impõe o seu espaço, insiste com
surpresa em ficar na memória, meses
após ter sido visto. A realizadora
americana volta a apresentar-nos
uma adolescente disposta a bater-
se pela sua identidade e pela sua
subjetividade. Defende-a com brio,
com estilo, em trabalho consistente.
Essa adolescente, que veremos ao
longo do filme tornar-se mulher,
vive numa base militar da Força
Aérea americana na Alemanha, por
causa da profissão do pai, militar de
carreira. Chama-se Priscilla Beaulieu
e aborrece-se de morte, aspeto
igualmente coerente nestas paragens
já que o tédio — e aquela sensação
de vazio que dá valor aos tempos
mortos — costuma ser uma estratégia
de sobrevivência das personagens
dos filmes de Sofia, todo um assunto
que a cineasta gosta de explorar
dramaticamente. Ora, enquanto se
aborrece, vai Priscilla conhecer um tal
de Elvis Presley, também ele militar,
mais velho que ela dez anos.
A miúda que começámos a ver no
início do filme torna-se noiva e, num
ápice, mulher do intérprete que fica
com a juventude americana a seus pés
naquela segunda metade dos anos 50.
Priscilla fantasia uma vida regalada e
festiva, bolha de felicidade com arco-
íris no horizonte. Na verdade, será
mantida à distância. A vida de sonho
é, afinal, uma sombra que a reduz a
esperar pela estrela em Graceland, a
célebre mansão de Elvis em Memphis,
Tennessee. Uma vida de bastidores
e cheia dos tais tempos mortos em
que, entre coisas, o tempo é gasto a
folhear revistas de mexericos sobre
as supostas infidelidades do marido.
Ora, Sofia Coppola vai criar uma
torção que inverte estas escalas, isto é,
arranca Priscilla Presley da ‘realidade
desfocada’ da sua existência de
mulher casada e trá-la para o
primeiro plano — na exata medida
em que Elvis, neste filme, é um tipo
um tanto patego, um ‘borrão’ de
personagem, quase uma silhueta que
passa ‘desfocada’ para nós e à qual
não ligamos patavina. Esta inversão
de méritos em que quem brilha é
ela não está nada mal, por mais que

E 48
se note no ecrã a desproporção de
alturas dos intérpretes: Cailee Spaeny,
“A sociedade tratava este repele (“mas eu não iria tão
longe...”, contrapôs a cineasta),
Cailee Spaeny, que interpreta que faz de Priscilla, tem 1,54 metros, as mulheres daquela passou por “querermos imaginá-
o papel de Priscilla, tem 25 anos.
Sofia Coppola queria encontrar
contra os 1,95 metros do ator com
quem ela contracena, Jacob Elordi.
geração como lo apenas como um ser humano
nos bastidores, entre amigos, na
uma atriz que pudesse ser
credível com a idade de 14 anos,
No final de novembro do ano um adorno. Mas intimidade da vida privada, sem
passado, num encontro por zoom, nos deixarmos influenciar pela
mas também à beira dos 30
Sofia Coppola contou ao Expresso Priscilla vai remar persona nem pelo peso enorme da
que este filme nasceu de uma
“espécie de cadeia de transmissão
contra a maré ao sua imagem pública”. Digamos que o
Elvis performer não entra neste filme.
em que mulheres inspiraram impor um divórcio Por ouro lado, acrescentou Sofia
Coppola que lhe deu “imenso gozo
outras mulheres”, e no caso que
aqui trazemos, “da influência
a um homem recriar com o departamento de arte
tremenda que Priscilla teve sobre poderoso” a nossa própria Graceland, tal como
mim. Comovi-me com a força Priscilla a descreveu nas páginas do
que ela teve para encontrar-se a si SOFIA COPPOLA seu livro. Foi um prazer materializar
própria naquelas circunstâncias, REALIZADORA certos detalhes: por exemplo, ela
a maneira como ela vincou a sua conta às tantas como ficou intimidada
identidade e, mais importante ainda, no instante em que viu o tamanho
a sua independência. Tudo isto extravagante da cama dele”.
está muito bem explicado no seu Sofia quis sobretudo ser verdadeira
livro autobiográfico, ‘Elvis and Me’ com a história de Priscilla, “com o
(publicado em 1985). Eu fico pasmada seja debutante, longe disso). Cailee é, ponto de vista dela e as coisas que
de pensar nas expectativas que a de facto, muito viva num mundo em fazia para chamar a atenção dele.
América projetava nas mulheres da que tudo parece postiço à sua volta, Foi isso que observámos em todo o
geração de Priscilla. Toca-me fundo levando o filme às costas. A graça material de arquivo que investigámos,
porque aquela é a geração da minha natural dela adequa-se à menina reportagens, home movies, etc.” Na
mãe. Não dá para acreditar como a divertida e inocente que se diverte nos noite de estreia do filme, no ano
sociedade as tratava. Como se fossem carrinhos de choque e que sonha de passado, em Veneza, Priscilla Presley
um adorno, um papel de parede, um olhos abertos na cadeira do liceu. Mas estava na fila dos convidados. E
bibelot perfeito que era suposto estar Cailee é também a mulher sensual desfez-se em lágrimas. “É evidente
sempre disponível para ficar bem na no dia do casamento da personagem, que ficámos felizes por ela ter sentido
fotografia. Mas Priscilla vai remar enigmática e entregue à melancolia que o filme estava próximo da sua
contra a maré, insurge-se contra as nas noites de solidão em Graceland. experiência de vida.”
normas. Desde logo pelo facto de Assimila por inteiro o cliché da Para que ninguém vá ao engano,
impor um divórcio a um homem mulher-modelo americana do início sobretudo os fãs de Elvis Presley,
poderoso. Naquele tempo, muito dos anos 60 para o pôr à prova em “Priscilla” não é um filme sobre
poucas mulheres se atreviam a tal seguida. E Sofia Coppola faz bom uso música. Mas é um filme cheio de
coisa”. da encarnação dessa imagem: a nível música, do princípio ao fim, com
“Priscilla” parece vacilar e navegar de cenografia e de guarda-roupa, uma ótima banda sonora, não
à superfície das coisas e dos departamentos preponderantes desta necessariamente síncrona com a
sentimentos que importam, a obra, “Priscilla” é um manual de gosto realidade histórica em foco (já se
audiência tarda a habituar-se ao seu refinado — nem se esperava menos sabe que Sofia Coppola capricha
ritmo, a adivinhar o caminho que de um filme realizado por alguém nesta matéria): arranca com ‘Baby,
Sofia Coppola quer dar ao filme, “que que trata por tu o mundo da moda. I Love You’ na versão dos Ramones,
tem muito que ver com o que eu Foi isso mesmo que aconteceu: Sofia passa por Burt Bacharach e Ray
sou hoje e com a perspetiva sobre as pediu ajuda ao amigo Valentino para a Charles, fecha com Dolly Parton.
mulheres que eu tenho hoje, como roupa de Elvis, os vestidos dela foram O ensemble, sejamos justos, é um
mulher, como mãe...”, acrescentou. “É desenhados pela Chanel. regalo. “A música e as canções que
um filme que jamais eu conseguiria A propósito da atriz, contou Sofia que Phoenix (aka Thomas Mars, marido e
ter feito há 25 anos quando me lancei “aquilo que mais me impressionou colaborador habitual da realizadora)
em ‘As Virgens Suicidas’ e me tornei nela foi o seu look, porque ela parece me ajudou a reunir são uma parte
realizadora. ‘Priscilla’ é o resultado do mesmo uma menina, com aquela importante da personalidade do
meu amadurecimento e da maneira sensibilidade que só as meninas têm. filme mas para mim o assunto é
como consigo olhar hoje para as E eu estava a lidar com o dilema de ter mais complexo, não se esgota aí.
minhas personagens.” de encontrar uma atriz que pudesse Encontrar aquelas canções fez-me
Outra coisa que se realça ao longo ser credível com a idade de 14 anos, pensar naquela era. E fez-me pensar
do visionamento de “Priscilla” é o mas também com 28. O casting foi sobre mim própria, na relação com a
modo como a heroína do título cresce feito durante a pandemia, à distância, minha família e o meu passado.” b
à nossa frente, de um plano a outro, o que só dificultou as coisas. Falei com
numa evolução ponderada e muito várias raparigas, Cailee não foi escolha
viva da personagem. O filme não única. Mas estou convencida de que
vai (nem pode) convencer todos por ela foi a melhor para o papel.”
inteiro, mas Cailee Spaeny é um tiro Já a ideia de retratar Elvis daquela PRISCILLA
na mouche deste casting e põe tudo a maneira, como um tipo sempre De Sofia Coppola
orbitar à sua volta. Joga a seu favor ter inseguro, stressado, a hesitar Com Cailee Spaeny, Jacob Elordi,
um rosto quase desconhecido para a constantemente, espécie de ‘corpo Ari Cohen (EUA)
maioria da audiência (embora ela não estranho’ ao próprio filme e que Drama biográfico / Classificação a definir

E 49
Feliz a cantar
Atua três noites no Coliseu de Lisboa e uma no do Porto.
Mas foi nas casas de fado que o sonho começou. Visitámos
as ‘capelinhas’ onde Sara Correia aprendeu tudo o que sabe
TEXTO LIA PEREIRA

F
já “abraçava o fado” — palavras fado, essa era a única forma de expri-
suas — num bairro que é olhado com mir o que tinha dentro de mim. Ago-
medo, ou desconfiança, por alguns ra é diferente: cresci, e faço terapia, o
lisboetas. Foi à porta do Clube Lisboa que também é importante.”
Amigos do Fado, que hoje funciona Prestar homenagem a Chelas, na
também como escola de fado, que canção do mesmo título, escrita por
foi bater, em busca de um palco à Carolina Deslandes, foi essencial para
altura dos seus sonhos. Tinha 9 anos Sara Correia, pelo agradecimento que
e muita vontade de “desabafar coisas sente dever ao bairro que a viu cres-
que não contava a ninguém”. Hoje, cer, e que ainda visita amiúde, para
evereiro está no fim e o sol brilha considera-se “muito menos tímida”, estar com o irmão e os avós. “Foi
sobre as ruas, sujas e esconsas, do e acredita que a maturidade a ajuda importante não só gravar a música
Bairro Alto. À porta da casa de fado a lidar com os sentimentos mais ‘Chelas’, mas fazer a apresentação
Café Luso, Sara Correia posa para a complexos. Na infância e juventude, do disco lá. Cantei mesmo ao lado
reportagem do Expresso, a meio de porém, foi o fado o seu confidente. do prédio onde cresci. E isso para as
um périplo pelos poisos de Lisboa “Quando o meu pai foi viver para o pessoas de lá foi um orgulho. Olha-
onde começou a cantar. A nossa jor- Brasil, eu tinha 10 anos e o meu ir- vam para mim e pensavam: ‘Olha,
nada arranca em Alfama, para onde mão 6. Foi uma altura muito difícil”, esta não se esquece de onde vem.’ Foi
foi viver mal teve autorização da mãe confessa. “O fado foi o meu aliado na o dia mais emotivo da minha vida”,
— tinha 17 anos — e traz-nos agora vida, e ajudava-me a desabafar. Hoje garante, recordando o nervosismo de
até ao Bairro Alto, onde chegou a can- sinto-me muito mais livre e ligada à cantar para a comunidade que a am-
tar 20 fados por noite, até perceber vida. Mas quando comecei a cantar parou. “Os meus pais são separados,
que estava a abusar dos seus limites. então tive muita ajuda dos vizinhos.
“Deus me perdoe, que eu não tinha Fazer aquilo foi agradecer, também,
saúde para aquilo!”, atira a fadista pelo facto de acreditarem em mim.”
de Chelas, falando alto e desem- O FAIA (BAIRRO ALTO) O estigma de vir de um bairro como
poeiradamente enquanto lhe tiram o Rua da Barroca, 54-56 Chelas já não pesa tanto, mas ainda
retrato. Do outro lado da rua, um guia Tel. 213 426 742 existe. “Querem sempre mudar as
partilha com um pequeno grupo de pessoas. Eu passei por muitas coisas
turistas a sua breve, e personalizada, TASCA DO CHICO dessas, e não está certo. Nós temos de
história do fado. “A Carminho é incrí-
(BAIRRO ALTO) nos limar, mas não [é justo] pensa- Brasil tem muito lugar mais bonito
vel”, diz-lhes, num inglês escorreito. Rua do Diário de Notícias, 39 rem que, porque sou do bairro, não que o Rio de Janeiro?”, interrompe o
Tel. 961 339 696
“Até cantou com os Coldplay...” Uma sou digna de certas coisas.” motorista que nos transporta por Lis-
série de fotos depois, Sara Correia Ainda que queira preservar ao má- boa, recomendando as paisagens do
CAFÉ LUSO (BAIRRO ALTO)
desce a rua e chama a atenção do ra- ximo a sua vida pessoal (“As pessoas Nordeste, região onde nasceu. Sara
Travessa da Queimada, 10
paz, que a reconhece e prontamente a têm de gostar de mim pelo que conhece bem os encantos do país
Tel. 21 342 2281
apresenta aos turistas. “É uma cantora canto”), Sara Correia faz questão de irmão, onde o pai voltou a casar e
nova de fado!”, resume, lançando CASA DE LINHARES mostrar a sua admiração pela mãe. trabalha como informático. “O meu
depois um piropo à ‘novata’, que (ALFAMA) “É o grande pilar da minha vida, e irmão também está a tirar engenha-
canta desde os nove anos: “Adoro a Beco dos Armazéns do Linho, 2 o único exemplo que sigo a 100%.” ria informática. É tudo muito ligado
sua música, ‘Chelas’!” Tel. 910 188 118 Mafalda, a sua mãe, era muito jovem à tecnologia, menos eu! Às vezes até
Lançado no ano passado, como quando Sara nasceu. “Estava quase tenho vergonha”, ri-se, dizendo ser
primeiro single do álbum “Liber- MESA DE FRADES a fazer 20: eu nasci a 27 de maio e a “uma alma antiga” e gostar das coi-
dade”, ‘Chelas’ tem um significa- (ALFAMA) minha mãe faz anos no dia de Santo sas “à moda antiga. Eu ainda tenho
do especial na carreira da fadista. Rua dos Remédios, 139 António, a 13 de junho. E foi uma Hotmail!”
Nascida naquele bairro de Lisboa Tel. 917 029 436 mãe guerreira: teve vários traba- À moda antiga foi, também, o seu
em 1993, estreou-se nos álbuns com lhos, como tratar de meninos com crescimento como fadista. Depois
um trabalho homónimo, em 2018, CLUBE LISBOA AMIGOS problemas e fazer coisas para vender, dos primeiros passos no clube de
fazendo-o seguir por “Do Coração”, DO FADO (CHELAS) e nunca desistiu.” Recentemente, a Chelas, a primeira casa de fado a que
em 2022, e “Liberdade”, no ano se- Rua Dr. José Espírito Santo, Lote 49 C fadista foi ao Brasil visitar o pai, que chamou sua foi o Jardim do Poço do
guinte. Bem antes de inscrever o seu Tel. 967 793 915 não via há cinco anos e trabalha no Bispo. “Tinha 11 anos e cantava ao
nome em capas de discos, porém, Rio de Janeiro. “Você sabe que no fim de semana”, recorda. “Depois

E 50
sou capaz de tudo o que quiser. Já não
tenho vergonha”, afiança. “Temos de
ser livres.”
“Liberdade” é, de resto, o título
do álbum que serve de âncora aos
concertos nos Coliseus (a 22 deste
mês, atuará no do Porto). O conceito
do espetáculo passa por juntar a sua
“vida toda numa só sala” e contará
com convidados e uma noção de
intimidade aprendida nas casas de
fado. “Costumo dizer que, nas casas
de fado, cantamos ao ouvido das
pessoas. Não quer dizer que, num
concerto, a entrega não seja a mesma,
mas é menos intimista”, explica. “Às
vezes, no fim, meto os músicos todos
à frente do palco e canto a capella,
sem microfone, e explico que é assim
nas casas de fado.”
Fã de música de outras eras, como a
do intemporal brasileiro Cartola (“São
puros, sem malabarismos. Acho isso
lindo”), Sara Correia promete apre-
sentar, nos Coliseus, um espetáculo
dinâmico e espontâneo. “Terá desde
canções a fados e baladas, como
‘Balada do Outono’, do grande Zeca
Afonso”, diz, referindo-se ao tema
que gravou em “Liberdade”. “Era essa
a ideia deste disco. Não me cansar
e estar sempre a ouvir coisas novas.
Como se estivesses no teu Spotify e
fosse sempre tudo diferente.”
Ao final da manhã chegámos a
Chelas, onde Sara tira fotos à porta do
Clube Lisboa Amigos do Fado, ainda
fechado, enquanto os vizinhos ace-
nam à janela dos prédios altos. Após a
Foi à porta do Clube Lisboa despedida, o motorista de TVDE olha
Amigos do Fado, no bairro lisboeta
para a esplanada da churrasqueira
de Chelas, que Sara Correia foi
onde almoçámos, exultando: “Você
RITA CARMO

bater, aos 9 anos, em busca de um


palco à altura dos seus sonhos conhece a minha amiga Sara?” Api-
tando repetidamente para chamar
a atenção da ‘vizinha’, apresenta-se
como “o pai da Jéssica, a Jéssica do
é que fui para Alfama. Comecei na “E também me ajudavam a escolher Ricardo” e explica como, em jovem,
“As casas de fado Casa de Linhares, cantava na Mesa o repertório. Eu era miúda e havia “quase namorou” com Joana Correia,
são as minhas de Frades, mas fui sempre fazendo coisas de que gostava muito, mas tia de Sara, também fadista, e como o
perninhas noutros sítios, como o Pá- que me proibiam de cantar, como ‘O destino da sua filha se cruzaria, mais
capelinhas. A tio de Alfama. Vinha ao Bairro Alto, Grito’”, exemplifica, risonha. “Uma tarde, com o do clã Correia. Os elo-
Celeste Rodrigues, cantar no Luso, na Tipoia, no Faia, no
Tasca do Chico e em casas que já não
miúda de 14 anos a chamar pela
morte não fazia muito sentido. Então
gios à voz e personalidade da mulher
que amanhã sobe ao palco do Coliseu
o Jorge Fernando estão abertas. Fazia tudo, entre Alfa- cantava coisas que tivessem mais a não cessam, e lembramo-nos do que
ma, o Bairro Alto e Chelas. As casas ver comigo, como ‘O Namorico da Sara nos dissera, minutos antes, so-
e a Cidália Moreira de fado são as minhas capelinhas, às Rita’ ou ‘Ai, Maria’.” bre um concerto que se prevê longo e
contavam-me quais fui buscar tudo o que preci- Com a nova notoriedade que ‘Chelas’ eclético: “Exige muito de mim, mas é
sava para fazer concertos”, afirma, e também a participação como jurada o que eu gosto de fazer. Eu sou muito
muitas coisas, elegendo a Casa de Linhares como no concurso televisivo “The Voice” feliz a cantar.” b
lipereira@blitz.impresa.pt
por isso digo ‘Deus a mais importante no seu percurso.
“Por ter a Celeste Rodrigues, o Jorge
lhe trouxeram (“Ajudou muito as
pessoas a associarem a voz ao nome,
deu-nos uma boca Fernando e a Cidália Moreira, foi a e à cara”), Sara Correia atua sábado,
que mais me marcou, em termos de domingo e segunda-feira no Coliseu
e dois ouvidos’” aprendizagem. Eles contavam-me de Lisboa. Na plateia estarão os oc-
SARA CORREIA FADISTA muitas coisas da sua vida. Vem daí togenários avós, grandes amantes de SARA CORREIA
aquela [expressão] que digo mui- fado; em palco, a segurança que os 30 Coliseu de Lisboa, sábado, 21h30, domingo,
to: ‘Deus deu-nos uma boca e dois anos lhe ofereceram. “Sinto que, mais 17h30, segunda-feira, 21h30; Coliseu do
ouvidos.’ Eu ouvia muito”, lembra. do que nunca, sou uma mulher. E que Porto, dia 22, 21h30

E 51
À
43ª edição, a Arco Madrid propõe
como tema central uma viagem às
Caraíbas que tem como título “A
Margem, a Maré, a Corrente: Um
Caribe Oceânico”. É um programa
de 19 galerias, comissariado por
Sara Hermann e Carla Acevedo-Ya-
tes. Nesta navegação pelos mares
do sul prossegue também, numa
sessão autónoma da sessão cen-
tral, o “Nunca lo Mismo”, espaço
exclusivamente dedicado a artistas e
galerias da América Latina, território
que, pelas suas ligações históricas
a Espanha, sempre foi privilegiado
dentro da feira.
Nestas geografias contam-se 38
galerias representantes de 13 países
da América do Sul, com destaque
para as presenças da Argentina,
Brasil e México, atualmente um dos
mercados mais fortes do mundo e
com um número de colecionado-
res crescente. Do Brasil, entre São
Paulo e Rio de Janeiro, serão oito as
galerias representadas — participam
não só nestas sessões comissariadas
como também no programa geral.
Numa apresentação feita à impren-
sa, Maribel López, diretora da Arco,
revelou que foram recusados cerca
de 200 pedidos de participação, re-
velando que espera “uma qualidade
excecional” entre os artistas que
irão participar. Assim, no espaço da
IFEMA, em Madrid, os dois pavi-
lhões centrais serão ocupados por
205 galerias, vindas de 36 países,
desenhando nesta diversidade um
mapa do mais atual pensamento
artístico que se pratica no mundo.
Do Caribe a
Portugal, como se verá adiante,
estará bem presente.
Para esta edição, a 43ª, prevê-se
uma afluência de 95 mil visitantes,
Portugal, o mundo
na Arco Madrid
reafirmando o lugar da Arco Madrid
enquanto um dos maiores e mais
importantes palcos internacionais
de arte contemporânea. É uma esti-
mativa superior ao número regista-
do no ano passado, 75 mil; antes da
pandemia, chegou a receber 100 mil
visitantes em 2018. A mais importante feira de arte da Península Ibérica regressa à capital
O LUGAR DOS PORTUGUESES espanhola, iluminando no seu lastro toda a cidade de festa. Este ano,
Por tradição e proximidade geo-
gráfica, as galerias portuguesas
com o mar do Caribe no centro e vários eventos alternativos
sempre privilegiaram as relações TEXTO ANA SOROMENHO

E 52
Nesta página: pintura a óleo sem título de João
Gabriel, representado pela Lehmann + Silva (à
esq.); e “Staircase”, de Isabel Cordovil, Galeria
Pedro Cera (à dir.). Na pág. anterior, “Western
Union: Small Boats”, do artista britânico Isaac
Julien, que integra a secção “A Margem, a
Maré, a Corrente: Um Caribe Oceânico”

desiguales” —, Rudi Brito, represen-


tado pela Balcony, e ainda Dayana
Lucas e João Gabriel da Lehmann +
Silva, no Porto.

ALÉM ARCO
Fora do espaço das galerias, muitas
outras acontecem na Arco Madrid,
como edição de livros de artistas,
encontros, conferências, workshops
e acontecimentos direcionados aos
colecionadores. Um exemplo são os
prémios atribuídos a instituições
que contribuem para a revitalização
deste mercado e a divulgação da
arte contemporânea, como é o caso
do escritório de advogados PLMJ, o
que resultam deste encontro anual
entre artistas colecionadores e ga-
“Apesar de os jovens se realiza a sessão “Opening”,
dedicada a galerias com menos de
escritório de advogados que possui
uma das mais importantes coleções
leristas, proporcionando negócios artistas estarem hoje sete anos de atividade, entrará a de arte contemporânea nacionais e
que se prolongam e movimentam o
mercado. Nesta consciência, os ga-
hiperconectados NO.NO, fundada em 2016. Jorge
Viegas reafirma a importância da
que será homenageado nesta edição
com o prémio “A” de Colecionismo,
leristas nacionais sempre fizeram o com os seus pares Arco Madrid junto dos artistas mais na categoria “Coleção Corporativa
esforço de participar, destacando- novos, que iniciam a partir daqui o Internacional 2024”.
-se como uma das presenças mais de todo o mundo, seu caminho da internacionaliza- Também em espaços satélites à
fortes e assíduas entre os países
representados. Indica Jorge Viegas,
a escala [da feira] ção. “As galerias portuguesas fazem
questão de renovar e apresentar
Arco, são várias as galerias emer-
gentes e as feiras de arte que se
presidente da Exhibitio — Associa- dá-lhes a nomes novos entre os seus consa- associam à data em que decorre
ção Lusa de Galeristas, responsável
pela 3+1. “Há uma aceitação por
possibilidade grados, pois é o primeiro grande
momento de projeção de artistas
a Arco Madrid, para se reafirma-
rem com programas satélites mais
parte dos colecionadores espanhóis de uma rodagem emergentes”, reflete. “Apesar de alternativos. A UVNT Art Fair, por
em relação aos portugueses, com
a aquisição de muitas obras de in loco que as hoje haver uma grande capacidade
de divulgação através das platafor-
exemplo, aproveitou a data para
celebrar a oitava edição no Matade-
artistas nacionais, representados
nas suas coleções. Acontece muito
plataformas visuais mas digitais e de os jovens artistas
estarem hiperconectados com os
ro de Madrid, um espaço com uma
área de mais de 165 quadrados e 48
graças à Arco Madrid, e uma das não permitem” seus pares de todo o mundo — o edifícios industriais, que foi o ma-
razões para a nossa visibilidade JORGE VIEGAS
que lhes permite serem agentes de tador de gado principal de Madrid,
entre os colecionadores espanhóis PRESIDENTE DA EXHIBITIO — si próprios —, a escala, onde a obra desativado e convertido em parque
tem precisamente a ver com a ASSOCIAÇÃO LUSA DE GALERISTAS pode ser vista por milhares de pes- artístico onde se apresentam cerca
experiência dos nossos galeristas, soas, sobretudo por colecionadores de 30 projetos multidisciplinares,
que sempre apostaram muito em e público especializado, dá-lhes a cujo radar aponta novas tendências.
Madrid, apresentando stands com possibilidade de uma rodagem in Também fora de portas, dentro do
grande qualidade”, sublinha, refe- loco que as plataformas visuais não tecido rural e industrial da Cara-
rindo como exemplo a Galeria Vera permitem.” banchel, que inclui uma série de pe-
Cortês, premiada na edição passa- Com um foco dirigido aos artistas quenos bairros em redor da capital,
da, pelo seu espaço de apresentação que irão pela primeira vez participar hoje denominado o “Soho madri-
de artistas. no programa geral das galerias, o leno” (onde se reúne uma série de
Das 171 galerias que fazem par- presidente da Exhibitio destaca no coletivos de músicos, arquitetos e
te do programa geral, serão 15 as seu portefólio o trabalho de Inês Bri- designers), promete uma agitação
portuguesas: 3+1 Arte Contem- tes, que teve uma obra recentemen- incendiária. b
porânea, Balcony, Bruno Múrias, te adquirida por Serralves, e pela asoromenho@expresso.impresa.pt
Carlos Carvalho, Cristina Guerra, primeira vez vai ser apresentada
Filomena Soares, Foco, Francisco fora de Portugal, indicando também
Fino, Madragoa, Miguel Nabinho, os nomes de Isabel Cordovil — “uma
Monitor, Pedro Cera, Vera Cor- artista já com alguma projeção”, que
tês, de Lisboa; Kubikgallery e a teve destaque em Madrid na recém- ARCO MADRID
Lehmann + Silva, do Porto. Fora -inaugurada Galeria Pedro Cera, IFEMA, Madrid, até domingo
do programa geral, no espaço onde com a exposição “Dos cosas tan ifema.es/arco

E 53
Li
vros
Coordenação Luciana Leiderfarb
lleiderfarb@expresso.impresa.pt

O âmago E
m “Um Terrível Verdor”
(Elsinore, 2020), Benjamín
Labatut reuniu quatro
textos de “ficção baseada em
factos reais”, nos quais penetra
corajosamente no pensamento,

das coisas
na obra ou nas circunstâncias
biográficas de vários cientistas
do século XX. Aproximamo-nos,
em breves vinhetas, de figuras
que aliam sempre o brilhantismo
intelectual a uma dimensão trágica:
Alan Turing, Fritz Haber ou Karl

QQQQQ
Benjamín Labatut, originalíssimo escritor Schwarzschild (astrónomo que
enviou para Einstein, das trincheiras
MANIAC chileno, volta a transformar figuras da ciência da I Guerra Mundial, a resolução das
equações da Teoria da Relatividade
Benjamín Labatut
Relógio D’Água, 2024,
— com as suas obsessões, crises e dilemas — Geral). O que o escritor chileno
trad. de José Miguel Silva, em assombrosas personagens literárias alcançou, ao escavar a fronteira
entre a literatura e a história da
329 págs., €22
Romance TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA ciência, foi uma espécie de reduto

E 54
pode de resto ser lido como um dos Para se aproximar O efeito da sobreposição de
momentos mais altos deste novo tantas vozes e perspetivas é quase
‘género’ híbrido, em que confluem deste génio que hipnótico. Perdemo-nos na extensão
igualmente o ensaio e a biografia,
a que talvez pudéssemos chamar
também era um dos feitos de Von Neumann e no seu
enigma (como é que ele pôde ser
verdadeira ficção científica. escroque, Labatut tantas coisas numa vida só?), mas
Em “Maniac”, o escritor chileno, sobretudo descobrimos uma figura
nascido em 1980, prossegue no recorre a uma que acaba por extravasar da sua
mesmo caminho de exploração estrutura que lembra existência concreta, histórica, para
literária, mas sem se limitar a se converter numa extraordinária
repetir uma fórmula que resultou. a secção central personagem literária, ao mesmo
Tal como o livro anterior, este
romance heterodoxo compõe-se
de “Os Detetives tempo épica e trágica. Muito do que
somos hoje, enquanto sociedade
de partes autónomas, com subtis Selvagens”, digitalizada, nasceu do seu impulso
vasos comunicantes que acabam para “transformar todas as áreas
por unir as três histórias principais. do também chileno do pensamento humano e agarrar
A primeira é uma espécie de
mergulho áspero nas grandes
Roberto Bolaño a ciência pelo pescoço, libertando
o poder da computação ilimitada”.
tensões que atravessaram a ciência Compreendê-lo, e às suas vastas
do século XX, representadas aqui áreas cinzentas, ajuda-nos
pela consciência atormentada do também a compreender as
físico austríaco Paul Ehrenfest ambiguidades profundas do mundo
(1880-1933), um teórico brilhante, hipertecnológico que ele ajudou a
amigo de Einstein, que mereceu o fundar.
respeito de Niels Bohr ou Paul Dirac, Numa súbita inflexão de rumo,
apesar de não ter feito grandes sobrenatural de ver o âmago das prenunciada pelo capítulo em
descobertas revolucionárias. coisas” e uma “cegueira moral que o físico Richard Feynman
Logo na primeira página ficamos quase infantil”, que o livro se joga Go em Los Alamos, durante
a conhecer o seu triste fim: aos 53 ocupa em larga medida. Complexo, uma pausa na azáfama do Projeto
anos deu um tiro na cabeça do filho poliédrico, contraditório, Von Manhattan (que criou a primeira
de 15 anos, que sofria de síndrome Neumann esteve na origem da bomba atómica), a parte final do
de Down, e matou-se de seguida. Ao computação moderna (criou nos livro transporta o leitor aos detalhes
participar na já referida Conferência anos 50 a estrutura de um dos de um acontecimento que teve, em
de Solvay, Ehrenfest sentiu que se primeiros grandes computadores, 2016, um impacto ainda maior na
cruzara uma “fronteira”, para lá o MANIAC, que dá título ao história da inteligência artificial do
da qual a irracionalidade e o caos romance e descreve bem a sua que a derrota de Kasparov diante
começavam a invadir as fundações personalidade), deu contributos de um supercomputador da IBM
da realidade, abrindo caminho a essenciais nas mais variadas áreas (Deep Blue). O Go, milenar jogo
“uma força obscura, inconsciente, científicas (teoria dos jogos, previsão chinês, é muito mais complexo
“Maniac”, o título, remete para um que estava lentamente a insinuar-se meteorológica, energia atómica, do que o xadrez e não pode ser
dos primeiros grandes na visão científica do mundo”. inteligência artificial, etc.) e carrega meramente conquistado pela força
computadores, criado nos anos 50 Ao mesmo tempo erguia-se o consigo uma aura de precursor bruta computacional. Quando
GETTY IMAGES

segundo a arquitetura espectro cada vez mais ameaçador (entreviu, por exemplo, o conceito os programadores do DeepMind
computacional de Johnny von do nazismo, um horizonte de terror de estruturas autorreplicantes, conseguiram vencer o melhor
Neumann, um génio maníaco que o levou a cair na espiral suicida. uma década antes da descoberta da jogador do mundo, o sul-coreano
No fundo, o que Labatut procura estrutura do ADN). Lee Sedol, com um lance de
em Ehrenfest é o mistério humano Para se aproximar deste colosso natureza quase divina, porque
improvável, um lugar de reflexão de alguém que foi devorado pelo que também era capaz das atitudes inalcançável à intuição humana,
livre sobre a natureza mais humana seu tempo e pela consciência de mais mesquinhas, deste génio que houve um limiar que se ultrapassou.
dos investigadores que tentaram, ao não conseguir atingir aquilo que também era um escroque, deste Labatut olha para esse momento
longo do último século, conhecer “buscava incansavelmente” — a egomaníaco com fragilidades como olhou para a vida de Von
o mundo através dos instrumentos saber, “o ponto crucial, o cerne da psicológicas, Labatut recorre a Neumann; ou seja, de todos os
da matemática e da experimentação questão”, algo que representasse uma estrutura que faz lembrar ângulos imagináveis. Quem ganha
laboratorial. uma verdadeira compreensão da a secção central do romance é o leitor, que pode deixar-se ir,
De certa maneira, Labatut criou natureza mais profunda das coisas, “Os Detetives Selvagens”, do deliciado, na corrente de 70 páginas
para si mesmo uma espécie de o que implicava “reconhecer também chileno Roberto Bolaño. de discurso apaixonante sobre um
género à parte, muito diferente conexões, significados e associações O retrato caleidoscópico de Von jogo de que ignoramos até as regras
de quase tudo o que vem sendo em todas as direções”. Neumann surge da confluência mais simples, mas que suspeitamos
publicado nos últimos anos. O Esse desígnio acabou por ser de depoimentos de quem viveu terá alguma relação com o próprio
quarto texto de “Um Terrível perseguido furiosamente, e trabalhou com ele: colegas, modus operandi literário do autor
Verdor” — sobre a trajetória genialmente, e por vezes professores, alunos, amigos, rivais, de “Maniac”. O que Lee Sedol diz
paralela de Werner Heisenberg e ignominiosamente, por Johnny a mulher, a filha... Cada um com do jogo — “começamos com o
Erwin Schrödinger, dois gigantes von Neumann (1903-1957), o o seu registo, ora mais coloquial, tabuleiro vazio, começamos com
intelectuais cujas reações opostas matemático judeu, de origem ora mais denso, mas quase sempre nada, depois adicionamos pedras
ao impacto da mecânica quântica húngara, considerado por muitos materializado em frases longas e pretas e brancas, e entre os dois
na física moderna culminaram num o ser humano mais inteligente do muito buriladas, com um fôlego jogadores criamos uma obra de arte”
célebre choque frontal, durante a século XX. E é sobre esta figura que faz por vezes lembrar o ímpeto — também podemos dizer deste
Conferência de Solvay, em 1927 — fascinante, com uma “capacidade majestoso de W. G. Sebald. magnífico livro de Labatut. b

E 55
QQQQ QQQQ

GONÇALO ROSA DA SILVA


PEQUENO-ALMOÇO O EVANGELHO
À BEIRA DO APOCALIPSE DO NOVO MUNDO
As crónicas londrinas de Wladimir Kaminer Maryse Condé
Helder Macedo são as mais Zigurate, 2024, trad. Helena Araújo, Porto Editora, 2024, trad. de Diogo Paiva,
vívidas de “Pretextos” 158 págs., €15,40 254 págs., €17,75
Crónicas Romance

A jogar agora Estas histórias recentes de Wladimir


Kaminer fazem pensar num género jor-
nalístico hoje largamente extinto, cujo
Finalista do Booker Internacional
2023, escrito em homenagem a José
Saramago, é o segundo romance em

P
oeta lírico culto e depurado, gente como Fernando Gil, Manuel de nome foi apropriado por textos que Portugal da autora guadalupense.
engenhoso metaficcionista Castro, Bartolomeu Cid dos Santos, nada têm a ver com ele: o da crónica. Considerada a mais importante voz das
autobiográfico, Helder Alberto de Lacerda, Luís de Sousa No seu melhor, ela é escrita por autores letras caribenhas, tem sido apontada
Macedo publicou ensaios notáveis Rebelo ou Paula Rego (neste caso de talento e explora momentos sociais como possível Nobel da Literatura. Em
que propõem um Cesário Verde com um elogio às suas “imagens de ou pessoais concretos, não meras opi- 2018 recebeu mesmo um Nobel alter-
“romântico” e “feroz”, e não histórias”, e uma desconfiança face niões, aliando inteligência, observação nativo, atribuído pela Nova Academia,
naturalista e anémico, ou um às “narrativas” que essas imagens e cultura a uma capacidade de olhar em protesto pela não atribuição do
Camões libidinoso em vez de poderiam formar). para as coisas na diagonal, escapando prémio nesse ano. Domingo de Páscoa.
neoplatónico. Mas nunca antes Já a vocação ensaística, ou ao óbvio e extraindo filosofia até de Um recém-nascido surge sobre a palha,
reunira em livro as suas crónicas polémica, manifesta-se no modo eventos banais. Alguma vivência fora entre os cascos de um burro, numa
de quase vinte anos no “Jornal como Helder Macedo contesta a do comum ajuda. É o que não falta a cabana no Jardim do Éden, um alfobre
de Letras”, textos elegantes e “neutralização da dissidência” Kaminer, um homem criado na URSS, de um casal que nunca conseguiu ter
divagantes, mordazes, mais dados à em Luiz Pacheco ou Cesariny, que numa das “experiências de liber- um filho. Um milagre, portanto, tão mais
curiosidade do que à nostalgia. a “mitificação” do sem dúvida dade” de Gorbatchov escapou para o natural por ser um bebé belo, mulato,
Tendo passado a infância e o começo extraordinário Herberto, ou o Ocidente. Os seus trâmites na Alema- de olhos verdes como o mar que rodeia
da adolescência em Moçambique, apagamento de António Pedro da nha já tinham alimentado “Russendisko”, o país. Nessa “terra rodeada de água”,
Helder Macedo frequentou em história do surrealismo português. um dos livros mais irónicos e divertidos num país recorrentemente invoca-
Lisboa o grupo heterodoxo do Café O tempo não tornou o cronista sobre emigração nas últimas déca- do, criticado, descrito em pinceladas
Gelo, vive há décadas em Londres, complacente e acrítico (“se tivesse das. Se o sabor que ficava desse livro largas, nunca nomeado, que na verdade
onde foi Camoens Professor of a idade que tenho não aguentaria”), era sobretudo positivo, o mesmo não nem é um país, mas “um departamento
Portuguese no King’s College, nem lhe diminuiu o gosto de podemos dizer de “Pequeno Almoço...”, ultramarino”, a figura messiânica de
e exerceu funções de Secretário estragar a festa, mesmo em ocasiões onde a amargura se acentua. Muito nele Pascal logo divide a população entre a
de Estado da Cultura no fugaz académicas, com inúmeras farpas parece de facto anunciar o apocalipse. curiosidade, os rumores de fazedor de
Governo Pintasilgo, experiências e impaciências. E talvez não seja Na sombra da guerra na Ucrânia, as milagres e a hostilidade. Se não é o filho
que usa como tema e motivo destes por acaso que conta um encontro histórias de refugiados coexistem com de Deus dos tempos modernos, será
textos. As crónicas londrinas são antigo com o tão moçambicano as eternas manhas e manipulações da certamente um desordeiro. A certeza,
as mais vívidas, com os vizinhos Benfica de Eusébio, quando alguns imprensa tabloide e as dificuldades em naquela “terra de oralidade” dada à
em Hampstead, os descasos membros da equipa reconhecem viver num mundo onde o deserto de Pu- mentira, é que desta vez o Criador não
universitários, a monarquia, o o ex-colega e lhe perguntam: “Ó tin e dos seus aliados parece impossível arriscou e enviou ao mundo um mesti-
Labour pós-Blair, os Proms, o Helder, e onde é que estás a jogar de resistir. Kaminer nota que, enquanto ço, para que nenhuma raça tome van-
desconchavo do Brexit, ou uma agora?” / PEDRO MEXIA a sua geração não tencionava regres- tagem. O Nobel português reescreveu
conversa com Tom Stoppard, sar ao país que deixara, os ucranianos o Evangelho, convocando episódios
dramaturgo britânico de origem Pedro Mexia escreve de acordo exilados querem voltar ao seu país bíblicos com ironia; Condé reinventa-o,
checa, em que este se mostra com a antiga ortografia destruído. Talvez esteja aí a necessária inspirada em Saramago e na trilogia de
intrigado com o facto de alguém esperança. Mas o autor lembra que se Coetzee, com humor, leveza e criati-
querer escrever numa língua que no início da guerra fria os apocalipses vidade. O júri do Booker Internacional
ninguém lê. tidos como possíveis eram poucos, “nos declarou que se retoma “a tradição do
Fascinantes também as evocações nossos dias, há muito mais por onde es- realismo mágico” — etiqueta erronea-
sem saudosismos. “A partir de certa colher”. Por ocasião dos ataques a uma mente aplicada. Mas mesmo sem ma-
idade morre-se muito”, escreve o central nuclear ucraniana, “a modali- ravilhoso, a prosa respira poesia, ironia,
cronista, e vários textos esboçam dade de autodestruição mais aceitável paródia, numa reinvenção atualizada
retratos de intelectuais e artistas seus era (para os berlinenses) o da alimenta- dos mitos bíblicos, aspirando a um pos-
amigos, entretanto desaparecidos, ção pouco saudável (...). Os restauran- sível evangelho de um novo mundo pois
dos tempos moçambicanos, ou do QQQQ tes, as hamburguerias e os Biergärten (e isto sim, é realismo mágico), neste
Gelo, ou de Londres, personagens PRETEXTOS estavam a transbordar”. E Tchaikovsky, local atópico sem nome, se respira um
canónicas, ou esquecidas, Helder Macedo o compositor da melodia fácil, era ao ar de princípio dos tempos. E talvez por
ou trágicas, radicalmente Caminho, 2024, 512 págs., €20,90 mesmo tempo um símbolo de agressão isso uma fé na mudança no coração dos
idiossincráticas e inconformistas, Crónicas e de resistência. / LUÍS M. FARIA homens. / PAULO NÓBREGA SERRA

E 56
A IRMÃ
E ainda...

Sung-Yoon Lee
Vogais, 2024,
304 págs.,
€19,95

GETTY IMAGES
Da autoria de um grande estudioso
da história e política coreana, um
livro que desvenda a personalidade
de Kim Yo-jong, a irmã e possível
UMA HISTÓRIA DAS sucessora do ditador Kim Jong-un,
MULHERES EM 101 OBJETOS analisando a sua relação com este
Annabelle Hirsch
no contexto da dinastia déspota de
Planeta, 2024, 432 págs., €21,90
que faz parte.
A proposta é, segundo a autora,
nascida em 1986 e a viver entre
Roma e Berlim, “guiar o leitor pelo SINAIS
passado como através de um cor-
DE FOGO
Jorge de Sena
redor, onde abro uma porta aqui ou
Guerra & Paz, 2024,
tiro um objeto da prateleira ali para
592 págs., €19,50
aclarar um aspeto ou contar uma
história”.
Obra póstuma, este romance surge
no âmbito da edição das obras
ROTEIROS de ensaio e de ficção do poeta
PROVINCIAIS português que a editora está a
João Paulo Borges
levar a cabo desde 2023. Sobre ele
Coelho
escreveu Eduardo Lourenço: “‘Sinais
Caminho, 2024,
360 págs., €17,90 de Fogo’ merece o título de ‘grande
livro’ mais ainda do que de ‘grande
São quatro novelas reunidas. “No romance’.”
fundo, era como se quisesse manter
o meu mapa de aldeias imaginárias

Podcast
a salvo da interferência das aldeias
Top Livros Semana 8
reais, deixando que o destino De 19/2 a 25/2
Ficção
concedesse a estas últimas uma
segunda oportunidade”, lemos. Semana
anterior

1 1 O Recluso
A ORDEM Freida McFadden
DO CAPITAL 2 3 A Criada
Clara E. Mattei Freida McFadden
Temas e Debates,
por Francisco Pinto Balsemão
3 2 Deus na Escuridão
2024, 480 págs., Valter Hugo Mãe
€24,90 Tudo Foi Como Tinha de Ser
4 5
Raul Minh’alma
“Uma história fascinante da ascen-
Bluey — O Meu Pai É Incrível
11 episódios | 11 temas
são das políticas de austeridade 5 - V.A.
no mundo do pós-Primeira Guerra As categorias consideradas para a elaboração deste top
foram: Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada
Mundial e do modo como facili-
taram o caminho para o fascismo
— juntamente com muitas das
Não ficção GEOPOLÍTICA | MEDICINA | ENSINO
políticas económicas atuais”, disse Semana
anterior MOBILIDADE E TURISMO | INDÚSTRIA E SUSTENTABILIDADE
Thomas Piketty sobre este livro.
1 1
Pai Rico Pai Pobre ARTE | MEDIA | ÉTICA | DIREITO | BANCA
Robert T. Kiyosaki
Hábitos Atómicos
RISCOS E AMEAÇAS À SEGURANÇA NACIONAL
DOM CASMURRO 2 2 James Clear
Machado de Assis
Códigos Tributários
Penguin Clássicos, 3 - V.A.
2024, 352 págs.,
4 - Pais Suficientemente Bons
€10,95 Pedro Strecht
As Causas do Atraso Português
5 3 Nuno Palma Já disponível
Publicada em 1899, trata-se de um
As categorias consideradas para a elaboração deste top
dos mais importantes romances do foram: Ciências; História e Política; Arte; Direito,

Exclusivo para subscritores Expresso em:


Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda
autor. “Se só me faltassem os outros,
vá; um homem consola-se mais Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal através

ou menos das pessoas que perde;


do estudo de um grupo estável de pontos de venda
pertencentes a dois canais de distribuição: hipermercados/
supermercados e livrarias/outros. Esta monitorização
expresso.pt/podcasts/ e em
mas falto eu mesmo, e esta lacuna é feita semanalmente, após a recolha da informação
eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda.
é tudo.” A cobertura estimada do painel GfK de livros é de 85%.

Com o apoio:
“Duna: Parte Dois” mantém
a espetacularidade cénica

Ci
do antecessor, mas os
grandes temas engolem o
herói

ne
ma
Coordenação Lia Pereira
lipereira@blitz.impresa.pt

“Duna: Parte Dois”,


um deserto levado à letra
Realizado por Denis
Villeneuve e com “G
uerra das Estrelas”, fosse possível adaptar uma obra que está destinado é maior do que
“Alien”, “O Exterminador clássica como esta, mas o realizador ele, mas nós, audiência, devíamos
Implacável”, “Star Trek”. canadiano mostrou bom serviço. exigir um pouco mais, depois do
Todas estas sagas pertencem a Três anos depois, a tão aguardada deslumbramento que cada cena
um elenco de luxo, um imaginário coletivo de ficção sequela, atrasada pela greve dos imprime nas nossas cabeças.
“Duna: Parte Dois” científica que, provavelmente, não
poderia ter existido sem “Duna”,
atores e guionistas nos Estados
Unidos da América, finalmente
Em “Duna: Parte Dois”, Atreides dá
corpo à profecia das Bene Gesserit,
é cinema épico em obra emblemática de Frank Herbert chegou aos cinemas em Portugal. irmandade feminina e religiosa
sobre um planeta deserto de Arrakis, As críticas internacionais, desde cheia de superpoderes que dita
toda a linha. Mas onde um herdeiro da nobreza real, a imprensa à aplicação de cinema que um profeta, com poderes de
Paul Atreides, embarca numa Letterbox, são quase consensuais: adivinhação, há de chegar. No fim
onde fica o coração viagem messiânica contra a família estamos perante o grande filme da primeira parte, a família de Paul
das personagens Harkonnens, vilões de cabeça de ficção científica do século. Um vê-se vítima de um golpe e acaba
rapada, com a ajuda da insurreição exagero que se compreende pela fora do trono. O nosso herdeiro
principais? dos rebeldes Fremen, pela conquista espera? deserta, derrota o guerreiro Jamis,
do planeta e de uma especiaria Sim, “Duna: Parte Dois” mantém dos Fremen, e começa a enamorar-
TEXTO JOSÉ PAIVA CAPUCHO capaz de prolongar o tempo de vida. a espetacularidade cénica como só se por Chani (Zendaya). Em quase
A história da luta deste império, um blockbuster de ficção científica três horas de filme, o que veremos
que foi originalmente adaptada em consegue fazer, tornando-a paira muito sobre batalhas épicas
1984 por David Lynch, regressou numa experiência de cinema, de — e elas são-no no sentido mais
com um novo fôlego quando som, de sensações sensoriais e puro da palavra — de um herdeiro
Denis Villeneuve (“Blade Runner de tensão, difíceis de bater nos tornado messias, com desejos de
2049”, “As Raptadas”, “O Homem tempos que correm, mas lida mal vingança pela morte do seu pai,
Duplicado”) pegou no livro e com a individualidade de cada que quer ir contra o seu próprio
criou um espetacular universo em personagem principal. Os grandes desígnio, mas que carrega nos
2021. Repleto de areia, conflitos e temas — fanatismo religioso, ombros o desespero de um povo, os
vermes gigantes, com atores como disputa de poder e colonialismo Fremen, que deseja o paraíso verde,
Timothée Chalamet e Zendaya, e — engolem o desenvolvimento com água e paz.
escrito em parceria com Jon Spaihts narrativo do próprio herói e de O fanatismo religioso é o grande
e Eric Roth. Não se acreditava que quem lhe é próximo. Aquilo para protagonista desta sequela. Se no

E 58
primeiro filme a caracterização

E ainda...
monumental deste universo
imperou, neste segundo, Villeneuve
demonstrou querer dedicar-se mais
às relações humanas, especialmente
entre Chani e Paul Atreides, num
romance jovem interrompido pela
profecia. Contudo, não passou de
uma boa intenção. Se podemos
delirar com os momentos em que A ÚLTIMA EVASÃO
Atreides aprende a dominar um
QQQ MEU NOME É GAL De Oliver Parker
verme gigante de areia, arrepiar-nos A SALA DE PROFESSORES De Dandara Ferreira e Lô Politi Em 2014, um antigo combatente da
(não foi o nosso caso) com o vilão De Ilker Çatak A biopic de Gal Costa, desa- Segunda Guerra Mundial foge do lar
psicopata Feyd-Rautha (Austin Com Leonie Benesch, Anne-Kathrin parecida em 2022, acompanha de idosos onde vive, em Inglaterra,
Butler) e a sua predileção por Gummich, Rafael Stachowiak (Alemanha) a transformação da anónima para assistir à celebração dos 70
esfaquear carne humana, ou ficar Drama M/14 Gracinha, como era conhecida anos do desembarque do Dia D na
de queixo caído com o confronto pelos mais próximos, num ícone Normandia, em França. Filme inspi-
entre as máquinas e os rebeldes, Rigoroso nos enquadramentos e sóbrio da música brasileira. A atriz Sophie rado num caso real, protagonizado
não nos convence nada a trajetória de tom, este quarto filme do alemão de Charlotte protagoniza um filme por Michael Caine.
da dupla de atores principais. Se origem turca Ilker Çatal conta também que se centra nos verdes anos de
era para frases feitas do messias com um desempenho austero, muito Gal, quando troca a sua Bahia pelo
em ascensão como “o meu coração exigente, da sua atriz principal, Leonie Rio de Janeiro.
está sempre contigo”, mais valia Benesch, em personagem que se des-
não ter explorado diálogo algum cobre ser muito mais complexa do que
neste gancho narrativo. Os milhões aquilo que se julga à partida. O ‘caso’ do
empregues na construção de “Duna: filme começa com um furto na sala de
Parte Dois” foram atirados para o professores de uma escola secundária
lixo no guião. alemã, acidentalmente gravado pela
Villeneuve, numa recente protagonista do filme, Carla Nowak, jo-
entrevista à “Variety”, disse que o vem professora na casa dos trintas. Tudo
cinema se deixou corromper pela indica que a autora do crime é uma em-
televisão. “Francamente, detesto pregada da secretaria cujo filho, criança CLANDESTINA
diálogo”, alegou. O realizador de 12 anos, é aluno de Carla. Mas estará CULPADO — INOCENTE De Maria Mire
canadiano diz que não se lembra a professora preparada para lidar com o
— MONSTRO Documentário sobre Margarida
De Hirokazu Kore-eda
de um filme por uma boa fala, mas dilema que a espera? A gravação vídeo Tengarrinha (1928-2023), profes-
sim “por causa de uma imagem do roubo sugere mais do que prova. A Uma mulher sente haver algo de er- sora, escritora, dirigente do Partido
forte”. Compreende-se o ponto acusada reage com violência à acusa- rado com o comportamento do filho. Comunista Português e antifascista
nesta sequela, tendo em conta a ção e envolve o aluno de 12 anos na ba- Ao perceber que a responsabilidade portuguesa. A realizadora descre-
pouca preocupação que o cineasta talha. Nisto, Carla começa a sentir que é de um professor, invade a escola. ve o filme como “uma premonição
teve em cuidar do mais básico o tapete lhe está a ser tirado dos pés e Vencedor do prémio de Melhor da trágica possibilidade de que a
que existe em cinema: os conflitos sem tapete fica também o espectador, Argumento em Cannes. História se está a repetir”.
internos das suas personagens. que tomou a sua ação como justa e
“Duna: Parte Dois” é cinema épico verdadeira. Só que aqui deparamo-nos
em toda a linha. Bem contra o mal. com uma série de questões em que a ESTRELAS DA SEMANA
Consequências do colonialismo e verdade (é o real assunto do filme) se
Jorge Vasco
da religião. torna assunto puramente especulativo Francisco
Leitão Baptista
Ferreira
Experiência de entretenimento e manipulável. A captura clandestina do Ramos Marques
total na sala com direito a baldes de vídeo, alguém lembra, pode ser consi- Anatomia de Uma Queda QQQ QQQ QQQ
pipocas em forma de verme. Mas derada ilegal. A professora, tocada pelo
Culpado — Inocente — Monstro QQ QQQ
numa space opera (telenovela do que lhe acontece, começa a dar sinais
espaço, em português) como esta, o de estar a perder a sanidade mental. Diálogos depois do Fim QQ QQQ
arco de cada um dos protagonistas Como se tal não bastasse, a emprega- Duna: Parte Dois Q QQQ
tem de nos agarrar tal como as da da secretaria acusada é de origem
Eu Capitão Q QQQQ
grandes cenas de ação. O que nos turca (a mesma que o cineasta) e tem
apaixona em sagas como “Guerra baixos rendimentos, trazendo para esta Os Excluídos QQQQ QQ
das Estrelas” é a sua ficção científica equação já de si bicuda a imigração e a A Irmandade da Sauna QQ
parecer-nos tão próxima. Por entre a estratificação social na maior potência Pobres Criaturas Q QQQQ
areia destas dunas, faltou coração. b económica da Europa. “A Sala de Pro-
fessores” é um filme de grande riqueza Priscilla QQQ QQQ
a nível sociológico. Ilker Çatak convi- Quatro Filhas QQ QQQ
da-nos a refletir sobre a maneira como A Sala de Professores QQQ QQ
as relações entre professores, alunos e
QQ encarregados de educação entraram
Soares É Fixe! QQ

DUNA: PARTE DOIS em mutação profunda na sociedade O Vento Assobiando nas Gruas QQ
De Denis Villeneuve contemporânea, abalando hierarquias Vidas Passadas QQQ QQQQ QQ
Com Timothée Chalamet, estabelecidas que se inclinaram ao
Yannick QQQ
Zendaya, Rebecca Ferguson (Canadá/EUA) absurdo e tremem agora que nem varas
Ficção científica M/12 verdes. / FRANCISCO FERREIRA DE b MÍNIMO A QQQQQ MÁXIMO EXPRESSO

E 59
E
utanásia. Aborto. Racismo. Não com séries como “Glória”, se abriu a (que falam inglês), protestantes e
há temas mais fraturantes na porta a desenhar projetos de ficção uma luta pelo lugar de governador
sociedade portuguesa. Falta que sejam um revisitar de um passado supremo do Japão a fazer lembrar o
um: o papel de Portugal na época dos mais distante para o comum dos melhor que existia em “Guerra dos
Descobrimentos. Uns gritam pela portugueses, talvez nos próximos Tronos”, icónica série que nos deixou
glória dos tempos em que metade tempos surja alguma série sem medo tantas vezes sem fôlego. Com uma
do mundo era gerido por nós, outros de retratar esse passado tão complexo. grande diferença para o título da
querem que a História seja contada Enquanto isso não acontece, eis que HBO: esta superprodução épica, que
de outra forma, destacando as chega “Shogun”, a maior aposta esteve anos em desenvolvimento,
atrocidades sangrentas cometidas, da FX até hoje, uma minissérie quis entregar uma ficção carregada
com escravatura, mortes e o poder de 10 episódios, escrita por Justin pela identidade japonesa. Os dois
da religião católica na discussão. A Marks e Rachel Kondo, que volta primeiros episódios estão disponíveis
verdade é que, no plano da ficção, à televisão, inspirada no livro de na Disney+ em Portugal.
Portugal não tem tido nem dinheiro James Clavell (de 1975), depois Vamos à história. Em 1600, os
Coordenação Lia Pereira nem grande vontade de retratar esse de ter sido adaptada nos anos 80 católicos portugueses andavam a
lipereira@blitz.impresa.pt período. Com a entrada de plataformas com sucesso. Religião e comércio, esconder do resto dos europeus o
de streaming como a Netflix, onde, samurais, católicos portugueses Japão, mantendo lucrativas trocas

Igreja Católica
Uma espécie
de “Guerra dos Tronos”,
mas com ênfase na
identidade japonesa

portuguesa
numa arena
samurai
“Shogun”, série épica dos anos 1600, coloca
católicos portugueses no meio de uma
luta pelo poder na arena dos samurais.
Numa nova adaptação à televisão,
esta megaprodução de 10 episódios
quis dedicar-se à identidade japonesa

KURT ISWARIENKO/FX
sem medo de ser brutal e sangrenta
TEXTO JOSÉ PAIVA CAPUCHO

E 60
O melhor de militar. Ao seu lado estará Toda
Mariko, misteriosa mulher cristã de
“Shogun” é que uma linhagem a chegar ao fim, que
inverte a lógica servirá de tradutora e de ponte entre
Toranaga e Blackthorne.
da “descoberta”. Filmado inteiramente no Canadá,
porque, segundo os autores, a
Nós, europeus, não covid-19 não permitiu viajar até
vamos só descobrir à Ásia, e com uma equipa bem
apetrechada de japoneses, o que salta
o que se passou à vista em “Shogun” é a sua latência,
naquele clima de que permite a John Blackthorne
ir lentamente descobrindo o
guerra civil, como desconhecido, pelas diferenças de
idioma, de rituais e da solenidade
se fôssemos samurai, onde a honra e a serenidade
exploradores sem imperam. Nesse encontro, a sua
vida será posta em causa. Enquanto
culpa no cartório esperamos pelos confrontos épicos
(que também vão chegar e em grande
escala), o capitão vê-se perante uma
comerciais. O navio “Erasmus”, realidade a que chega a apelidar de
com protestantes ingleses na loucura. Numa cena perto de um
tripulação, foi encalhar numa aldeia rochedo, Lord Izu decide arriscar
de pescadores perto de Osaca. A a vida para salvar um marinheiro
Holanda deu-lhes permissão para espanhol, depois de ter sido desafiado
explorar os mares e enfrentar por Blackthorne. A forte ondulação
qualquer tipo de inimigo — se anuncia a morte iminente, mas Izu
fosse católico, ainda melhor. Traz acaba salvo no limite. A surpresa
lá dentro, além de escorbuto, um do “bárbaro”, como apelidam os
dos protagonistas da nossa história, japoneses, é total. A fé e a honra de
o capitão inglês John Blackthorne, duas nações desconhecidas chocam.
que quer mandar para o inferno o E a melhor parte de “Shogun” é
catolicismo lusitano. Um grande que inverte mesmo a lógica da
marinheiro que irá descobrir uma “descoberta”, tão criticada aos olhos
cultura, para ele, nunca antes de hoje quando falámos do período
vista. De quase morto, passará para dos Descobrimentos. Nós, europeus,
estrangeiro influente do reino. não vamos só descobrir o que se
Em terra, e depois de Taiko, título passou naquele clima de guerra civil
que se dava ao governador supremo ao longo de 10 episódios, como se
do Japão, ter morrido, o Conselho dos fôssemos meros exploradores sem
Regentes debate quem é o próximo culpa no cartório. Iremos perceber,
na linha da sucessão. O herdeiro é através de um cuidado estético que vai
demasiado novo, pelo que têm de ser ao mais puro detalhe — das casas, dos
os homens adultos a tomar conta do fatos de guerra, da alimentação e de o
país. Só que todos querem ser shogun, japonês ser a língua principal por aqui
senhor da guerra supremo japonês. —, a dimensão deste conflito, sem
O clima de guerra civil sente-se no medo de matar personagens, de ser
ar. A Igreja Católica portuguesa, brutal e sangrento. De ser fiel àquela
onde padres jesuítas tentam de tudo época sem trair a sua ficção. “A minha
para travar Blackthorne, tal como o fé não poderia ser sincera se não
Mestre dos Sussurros, Lord Varys, em fosse testada”, diz Mariko a Toranaga,
“Guerra dos Tronos”, depois do primeiro encontro com
não quer perder Blackthorne. “Shogun” passa nesse
teste e no do algodão das grandes
séries de ficção histórica. Já fazia falta
nem território um projeto destes ao pequeno ecrã.
nem negócio ou Ainda por cima com um Joaquim de
poder e irá sorrateiramente Almeida no elenco. b
tentar travar a novidade
protestante. Yoshi Toranaga, um
dos regentes que lidera Tokugawa,
interpretado pelo grande Hiroyuki
Sanada (“Avengers”, “John Wick”, SHOGUN
ou “Royal Warriors”), é outro dos De Rachel Kondo e Justin Marks
nossos protagonistas e um dos Com Hiroyuki Sanada,
produtores da série. Está quase Cosmo Jarvis e Anna Sawai
sozinho na conquista do império Na Disney+, em streaming
Coordenação Luís Guerra
lguerra@blitz.impresa.pt

“The Collective” é o
segundo álbum a solo
da ex-Sonic Youth
Kim Gordon, de 70 anos

E 62
Juventude irónica
Kim Gordon, ex-Sonic Youth, criou uma banda sonora para a geração TikTok. Em
conversa com o Expresso, porém, veste uma camisola com o ano “1970” estampado
TEXTO RUI MIGUEL ABREU

“Houve um
É
com um sorriso algo malicioso enviar-me ideias, eu ia selecionando evocava nestas páginas. “Conheci
que Kim Gordon pontua a aquelas em que queria trabalhar, o Rick quando ele ainda andava
sua descrição do álbum que momento em acrescentava-lhes partes de na Universidade de Nova Iorque”,
acaba de editar, “The Collective”:
“Inspira-se num livro, ‘The Candy
Nova Iorque em guitarra, vozes, com algumas das
coisas a serem muito improvisadas.
diz-nos Kim. “Ele tinha uma banda
chamada Hose, muito influenciada
House’, que nos fala de um futuro que o hip-hop, Enviava tudo ao Justin, ele por uns tipos chamados Flipper. E
próximo”, explica, com a palavra dava-lhes uma forma mais definida, contou-me dos planos que tinha
“futuro” a espoletar a primeira o disco, o free jazz e depois eu acrescentava retoques para uma editora, das coisas que
breve gargalhada. “O livro fala de
uma invenção que nos permite
e o minimalismo finais. Aconteceu tudo de forma
mais ou menos intermitente ao
andava a gravar no seu dormitório.
Falava com tal entusiasmo de uma
aceder às memórias de outras se misturavam”, longo de seis meses”, explica Kim nova cena chamada hip-hop que
pessoas e sentir o que elas sentem,
mas para conseguir isso uma
diz Kim Gordon Gordon. O resultado é realmente
surpreendente, mas apenas
eu respondi apenas: ‘OK, Rick’”
[risos]. Pouco tempo depois, diz-nos
pessoa tem de carregar as suas no sentido em que escutar a ainda Kim Gordon, cruzou-se com
próprias experiências e memórias, imediatamente reconhecível voz de uns ainda adolescentes Beastie Boys
tornando-se, lá está, uma parte do ‘Kool Thing’ por cima de cadências — “ainda tocavam punk hardcore”
coletivo. Tem qualquer coisa de jovem utilizadora, por exemplo, arrancadas às entranhas de caixas — que fariam ‘Cookie Puss’ e
ficção científica.” A segunda dose de filma-se a si mesma a escutar de ritmos em vez de debitadas pelo mudaram o sentido do seu percurso.
riso chega com a menção do género ‘Bye Bye’ enquanto vai abanando pulso algo livre de Steve Shelley soa Gordon está simplesmente a
literário em que se poderá inscrever a cabeça em consonância com a ideia nova, já que o namoro com completar um amplo círculo. “The
o mencionado romance de Jennifer o pesado ritmo que a envolve. A a cena hip-hop é coisa que vem de Collective” é uma feliz tradução do
Egan, trabalho publicado em 2022 e legenda por cima do seu rosto, que longe: Kim não apenas referenciava mergulho na memória e, em faixas
amplamente aplaudido pela crítica exibe um irónico esgar que parece LL Cool J nesse single de “Goo”, como ‘Psychedelic Orgasm’, o
americana: “Ela sabe para onde vai misturar prazer e surpresa, reza: editado em 1990, como, três anos arranhar ferrugento das guitarras —
e os efeitos polifónicos que quer “Penso que Kim Gordon acaba de mais tarde, haveria de se juntar que parecem ter sido gravadas num
alcançar”, escreveu Dwight Garner curar o meu medo de envelhecer.” com os restantes companheiros cais abandonado do metro de Nova
no “The New York Times”. “E ela O vídeo soma quase 350 mil aos Cypress Hill num dos melhores Iorque — colam-se aos colossais
alcança tudo isso como se estivesse a visualizações... momentos da banda sonora do filme bombos graves que poderiam servir
escrever num tipo de MacBook que Apesar de terem encontrado uma “Noite Maldita”. Travis Scott. Nessas canções, Kim
só existirá daqui a uma década.” Kim tangencial sintonia com a urgência Apesar de temas como ‘I’m a Gordon comunica num código
Gordon, a um mês de comemorar grunge, que lhes valeu acesso aos Man’ soarem como se tivessem telegráfico, irónico, aparentemente
o seu 71º aniversário, parece palcos dos maiores festivais do sido produzidos por alguém decifrado por uma nova geração. A
igualmente ter acabado de chegar mundo e lhes permitiu furarem o como JPEGMAFIA, Kim Gordon lista de compras que desfia em ‘Bye
do futuro, apesar de ostentar uma top com álbuns que lançaram nos revela-nos que a sua paixão por Bye’ — “sleeping pills, sneakers,
camisola de lã tricotada com a data anos 90 do século passado, os Sonic hip-hop se manifesta, sobretudo, boots” — já inspirou vários vídeos
“1970” estampada: “Ah, é apenas Youth nunca descartaram a veia com a música de uma era mais em que adolescentes tentam replicar
uma camisola de uma designer experimental, a que Kim Gordon remota: “Não é como se eu estivesse todos os itens da lista: “Button
amiga, Bella Freud, foi ela que ma se agarrou quando lançou a sua de ouvidos colados ao que está a down, laptop/ hand cream, body
enviou. Achei graça, porque 1970 estreia a solo, “No Home Record”, dar na rádio”, garante. “Cardi B lotion/ Bella Freud.” Já deu para
foi o ano em que acabei o liceu... o oito anos depois da implosão do seu tem uma voz bem punk e letras perceber de onde veio a camisola. b
princípio da exploração em massa casamento com Thurston Moore. excelentes, também gosto de
dos jovens enquanto mercado.” Esse álbum, que se inspirava no algumas coisas mais underground,
É impossível não detetar a ironia no documentário “No Home Movie”, de mas a minha principal referência
discurso de uma veterana da cena Chantal Akerman, no entanto, não vem daquela gente dos anos 80 e 90,
rock alternativa que se inspira em faria prever o que “The Collective” pioneiros da alta de Nova Iorque que
literatura de ficção científica para agora oferece, para lá do carácter desciam até à baixa e se misturavam
escrever um novo e surpreendente abrasivo do material que ambos com gente muito diferente. Houve
conjunto de canções que partem reúnem e do facto de Kim Gordon um momento em Nova Iorque em
do mais moderno hip-hop e que, encontrar na arte que outras pessoas que o hip-hop, o disco, o free jazz e o
talvez por isso mesmo, parecem ter produzem um ponto de partida para minimalismo se misturavam.”
encontrado eco junto da geração as suas visões oblíquas. O cenário pintado por Gordon QQQQ
DANIELLE NEU

que comunica e partilha as suas “Disse ao Justin [Raisen, produtor] dessa Nova Iorque primordial não THE COLLECTIVE
experiências carregando-as em que gostava de ter mais batidas difere muito daquele que o produtor Kim Gordon
redes sociais como o TikTok. Uma neste disco, ele começou a Rick Rubin não há muito tempo Matador/Popstock

E 63
Diogo Piçarra recebeu o Expresso

RITA CARMO
no estúdio caseiro onde gravou
“Sentimental”, o novo álbum

A dança da melancolia
D
iogo Piçarra já não é o rapaz com letra triste”, assume, “o meu só uma fase” que abre o disco e lhe “Nalgumas canções, não todas,
que venceu o concurso de desafio é incorporar isso com a dá nome: “Hoje estou sentimental, houve essa análise social e essa
talentos “Ídolos”. Doze anos língua portuguesa. Pela minha forma mas não é de hoje, não é? Vivo análise pessoal, psicológica”,
volvidos, o músico algarvio afirma- de ver a eletrónica, não pode ser constantemente a reconstruir o assume Piçarra, “mas não gosto
se como um dos nomes de proa da uma letra qualquer, tem de ser algo jardim que eu próprio destruo. Estou de usar o clickbait de ‘este é o meu
pop portuguesa e, ao quarto álbum, mais abrangente, mais subjetivo. sempre a tentar sabotar-me.” Pelo álbum mais pessoal’. Hoje, abro
mostra ao mundo algumas das Se é para dançar ou para as pessoas caminho, outros amigos juntaram- o telefone e qualquer artista está
canções mais vulneráveis que tinha sentirem, não pode ser uma coisa tão se a alguns dos momentos mais com os olhos em lágrimas a falar do
guardadas em si. “SNTMNTL”, ou específica”. fortes de “Sentimental”: Jüra, uma próximo disco e do próximo single.
“Sentimental”, chega uns longos Apesar de ‘Monarquia’, muito bem- das novas vozes da pop nacional, Claro que vai ter visualizações e
cinco anos depois de “South Side sucedido dueto com o rapper Bispo surge em ‘sabesamar’, uma canção o clickbait todo ativo ali. Mas e no
Boy”, disco que viu a sua vida que editou em 2021, ter encontrado com “padrão de bateria mais afro, próximo disco? Vais fazer o mesmo
interrompida pela pandemia e que, o seu caminho até “Sentimental” dancehall” que surge como “metáfora ou vais jogar-te do prédio? Eu sinto
segundo o que o próprio disse em (“não fazia sentido deixá-la de de uma relação”; a cantora alemã/ que sou sempre terra a terra e não
conversa com o Expresso, foi mal fora por causa da pandemia”), foi espanhola Sofía Martín adoça gosto de usar essas armas. A música
compreendido. “Fui um bocadinho ‘Sorriso’, de 2022, canção dançável ‘Paraquedas’, que se equilibra entre tem de falar por si”. Na verdade,
mais obscuro, se calhar demasiado. sobre o sorriso-máscara que por o intimismo acústico da guitarra e sente-se em “Sentimental” um
Uma ou outra música foi ouvida vezes colocamos na cara, que uma batida drum and bass discreta; e Diogo Piçarra mais seguro e, ao
corretamente, outras nem tanto. abriu as portas deste novo álbum Pedro Abrunhosa numa assombrosa mesmo tempo, mais descontraído
Criei demasiadas expectativas e não e firmou “a melancolia como e apaixonada ‘Amor de Ferro’, que e livre para fazer aquilo que lhe
correu assim tão bem”, defende, temática abrangente”. “Nunca tinha deixaria os Coldplay a salivar. apetece. Embora o amor continue
acrescentando que abordou escrito nada assim e percebi que, a ser o combustível da sua música
“Sentimental” de outra forma, se calhar, era um bom ponto de (‘Há Sempre uma Música’ ou
“tentei não me levar muito a sério, partida para um disco”, diz Piçarra, ‘Teu’ mantêm a “essência mais
mas fui refinado na escolha dos sons, “a partir daí, começaram a surgir romântica” bem viva), o músico
das letras, das palavras, das canções”. mais músicas”. Entre elas, uma encontra em canções como
Todos os temas deste novo disco ‘Não Te Odeio’ que reflete sobre a ‘Sorriso’, ‘Não te Odeio’ ou
foram produzidos ou coproduzidos artificialidade de algumas relações ‘Sentimental’ não só uma forma
pelo próprio, tendo também gravado num “mundo cada fez mais fake” de encontrar o “desconforto” que
guitarra e baixo em vários deles, (“eu só me preocupava se gostam de QQQ diz ser necessário para manter viva
embora as eletrónicas desempenhem mim ou não, mas, agora, só quero SNTMNTL a sua veia criativa como também
um papel de protagonismo na maior saber quem está comigo ou não”) ou Diogo Piçarra novos caminhos que poderá explorar
parte. “Sempre adorei música alegre ‘Sentimental’, o desabafo de “não é Universal no futuro. / MÁRIO RUI VIEIRA

E 64
E ainda...
QQQ
ROOTING FOR LOVE
Laetitia Sadier LUÍS REPRESAS
Drag City Coliseu do Porto, quinta, 21h30;
Coliseu de Lisboa, dia 15, 21h30
Nos anos 90, Robert Christgau, Com as canções do novo álbum,
decano da crítica musical norte- “Miragem”, para apresentar, Luís
americana, despachava os Stereolab Represas regressa aos palcos dos
classificando-os como “Marxist Coliseus com um reportório, a solo
background music” e, numa e dos Trovante, que também passa
interrogação que deveria ser lida por sucessos como ‘Feiticeira’, ‘Per-
como um elogio, acrescentava: didamente’ ou ‘Timor’.
“So it isn’t just silly punk songs yet
other people want to fill the world
with silly Marxist songs, and what’s
wrong with that?” Era a altura na
qual a banda de Tim Gane e Laetitia
Sadier, socorrendo-se de todas as
referências a que podia deitar a mão
(avant-pop, eletrónica, pós-rock,
krautrock, lounge, minimalismo,
John Cage, bossa nova, chanson),
se entretinha a polvilhar de alusões
JOYCE DIDONATO
A atualidade
em Podcast
anarco-situacionistas o consomé
sonoro da dezena de álbuns que, Gulbenkian, Lisboa, segunda, 20h
entre 1992 e 2010, publicou. Exemplo A meio-soprano norte-americana
supremo destes exercícios de ironia Joyce DiDonato leva à Gulbenkian
assassina, ‘Ping Pong’ (1994): “It’s o projeto “Songplay”, com o qual se
Política, economia, cultura, sociedade
alright, ‘cause the historical pattern propõe fazer pontes entre ópera,
has shown/ How the economical jazz e tango, juntando composições e humor. Todos os dias pode aceder
cycle tends to revolve/ In a round de Astor Piazzolla, Duke Ellington ou à informação, comentário e opinião
of decades three stages stand out Giuseppe Giordani, entre outros.
in a loop/ A slump and war then mais relevante.
peel back to square one and back
for more/ There’s only millions that HÉLIO MORAIS
lose their jobs.” Agora, ao quinto CCB, Lisboa, sábado, 21h
álbum a solo (“Rooting For Love”), Três anos depois da primeira expe-
após a separação dos Stereolab riência a solo com o álbum “Murais”,
(2009), Laeticia desloca o seu centro Hélio Morais, baterista dos Linda
de gravidade para o terreno das Martini e PAUS, regressa agora em
personal politics e, aqui e ali, abeira- nome próprio com “Pisaduras”, disco
se perigosamente da vacuidade de canções íntimas que apresenta
new age: se em ‘Don’t Forget no pequeno auditório do CCB.
You’re Mine’ o quadro desenhado é
explícito (“Hey, don’t scream with
rage/ It’s vain, I’m not impressed/
Just exasperated again/ A good
slap is what you need/ A good slap
is what you want/ Take that, take
that/ Get up”), ‘The Inner Smile’,
em arranjo coral angélico, chega
a ser embaraçoso: “Smile at your SEONG-JIN CHO
spleen/ Inundated with light/ And Casa da Música, Porto, segunda, 21h
be serene/ Smile at your kidneys/ O pianista sul-coreano Seong-Jin
Lights escaping/ Color is blue/ Feel Cho, vencedor de prémios presti-
your organs smiling back at you.” Bem giados a nível mundial desde os 15
mais urgentes são as últimas palavras anos e nome destacado da reputada
de ‘Cloud 6’ — meia Laurie Anderson, Deutsche Grammophon, leva ao
meia Meredith Monk —, “I’m not Ciclo Piano da Casa da Música as
fucking around/ We’re halfway dead”. suas obras favoritas de Chopin, Liszt
/ JOÃO LISBOA e Ravel.
do trabalho de pernas, fragmentando

Um século partes do esqueleto de modos


invulgares, muita flexibilidade e
improvisação.

de ballet
“Workwithinwork” consta das peças
finais do seu tempo de aclamação,
em que dirigiu o Frankfurt Ballet
(entre 1984 a 2004). É nesse período
que cria a sua obra icónica, “In the
Balanchine, McNicol e Forsythe são Middle, Somewhat Elevated”, uma
encomenda de Nureyev, de 1987,
os três coreógrafos no novo programa para o Ballet da Ópera de Paris, que
da Companhia Nacional de Bailado depois remontou para o Frankfurt
Ballet. O título afirma o seu programa
Coordenação Cristina Margato TEXTO CLAUDIA GALHÓS das geometrias improváveis em que
cmargato@expresso.impresa.pt desafiou o corpo a expressar-se.
Em 1998, no ano da Expo’98, a CNB

P
ercorremos a dança clássica do Bach. “A única preparação possível faz história ao introduzir Forsythe
século XX e entramos no século para este bailado é um perfeito no repertório da companhia, com
XXI com três coreógrafos conhecimento da sua música, porque duas coreografias, “In the Middle”
no novo programa da Companhia não tem um tema importante além e “Artifact II”, e uma criação em
Nacional de Bailado: a reposição da partitura e dos bailarinos que o estreia absoluta de Anne Teresa de
de “Concerto Barocco”, de George interpretam”, escreveu Balanchine Keersmaeker, “The Lisbon Piece”.
Balanchine (de 1941); a estreia no no seu livro “História dos meus “Workwithinwork” é uma peça de
repertório da Companhia Nacional de Bailados”. O coreógrafo compôs a fim de ciclo para Forsythe. Uma
Bailado (CNB) de “Workwithinwork”, dança ao som do “Concerto para obra de despedida de exploração
de William Forsythe (1998); e a Dois Violinos em Ré menor” de da própria técnica do bailado como
estreia mundial de um novíssimo Bach, numa obra em três partes, tema, “simples e exigente, uma
nome britânico, Andrew McNicol, correspondendo a três movimentos resposta física aos ritmos complexos
com “Upstream”. São três gerações musicais: ‘Vivace’, ‘Largo ma non e pontiagudos, à velocidade do
que apresentam diferentes tanto’ e ‘Allegro’. No final surge uma zumbido dos mosquitos e às melodias
abordagens ao vocabulário do das mais reconhecíveis assinaturas atonais da música de Luciano Berio”,
bailado, com uma profunda relação de Balanchine, os ritmos rápidos com segundo o “The New York Times”.
com a música. A Orquestra Sinfónica os bailarinos lançados em “saltos Andrew McNicol representa uma
Portuguesa e Solistas da Orquestra de ligeiros, arredondando os braços e novíssima geração, que prossegue a
Câmara Portuguesa tocam ao vivo. sincopando os encontros”. pesquisa das possibilidades da dança
O ano de 1984, em que a CNB As três obras deste programa dentro dos códigos do bailado e
estreou “Concerto Barocco”, de partilham também uma abordagem que tem criado para companhias de
Balanchine, foi poderoso nas novas abstrata à dança. William Forsythe referência entre os Estados Unidos
peças que entraram no repertório reconheceu sempre que Balanchine e a Europa. “Upstream” é uma
da CNB, entre elas “A Mesa Verde” era uma das suas maiores inspirações, obra original para a CNB. Andrew
BALANCHINE, MCNICOL de Kurt Jooss. Entre abordagens mas foi longe no desafio da exploração trabalha muitas vezes a partir da
E FORSYTHE profundamente revolucionárias do vocabulário do bailado clássico, música. Neste caso, escolheu a
Da Companhia Nacional de Bailado da dança e da História do mundo, na velocidade, extensão espacial do composição de Peter Gregson e é
Teatro Nacional de São Carlos, “Concerto Barocco” destacava-se gesto, com os braços a dominarem através das qualidades sonoras e
Lisboa, até dia 24 pela sua inspiração musical em muito do movimento em detrimento rítmicas que lhe reconhece que fala
de um temperamento “na fluidez da
elevação e queda emocional”, em
que a natureza está muito presente.
“A secção que escolhi tem qualidades
líquidas e aquáticas”, diz ao Expresso.
“Pelo facto de estarmos em Lisboa, à
beira-rio, começou a sugerir-me um
mundo submerso, debaixo de água,
numa fluidez em que os bailarinos
se movem e interagem uns com os
outros.” Além da relação íntima com
a música e o vocabulário do bailado,
Andrew fala da importância da
partilha “de uma história no corpo”
com os bailarinos, que é atravessada
também por Balanchine e Forsythe.
É-lhe reconhecida uma dimensão
poética e humana no trabalho, que
Imagem de ensaio de aqui ressurge de um modo que move
HUGO DAVID

“Workwithinwork” de William e molda os bailarinos no espaço


Forsythe (1998), uma estreia e que define como “fisicalidade
no repertório da CNB emocional”. b

E 66
E ainda...

MACA DE NOIA
JORGE GONÇALVES

FUCK ME
De Marina Otero
CCB, Lisboa, dia 8
GIRAFAS “Fuck Me” é a terceira parte de uma
De Pau Miró trilogia de Marina Otero, sediada em
Teatro da Politécnica/Artistas Unidos, Madrid, sobre a passagem do tempo
Lisboa, até dia 30
e as marcas deixadas no corpo. Sete
intérpretes concretizam a imagina-
A peça passa-se num apartamento ção de Marina em palco. Como es-
modesto, num bairro popular de Bar- creve a artista, “emprestam o corpo
celona, durante os anos 50 do século deles à minha causa narcisista”.
XX. O Homem e a Mulher são um
casal, ele trabalha numa carpintaria,
ela é dona de casa. Existe o Irmão dela, ÔSS
que não fala desde que a mãe morreu De Marlene Monteiro Freitas /
numa explosão; há ainda um Hóspede Dançando com a Diferença
Teatro Rivoli, Porto, dias 8 e 9
e um Vendedor de máquinas de lavar.
O dinheiro é pouco, e a família mal “Ôss” é “osso” em crioulo. Nesta
pode comer decentemente. A Mulher peça de encontro entre a coreó-
gosta de ir ao cinema, por vezes até grafa Marlene Monteiro Freitas
vai duas vezes por semana; o irmão e a Dançando com a Diferença,
escreve num caderno, e olha para o “o osso é guardador de segredos
céu, de onde espera que o venham milenares, revelador de orientações
buscar; o Vendedor passa as tardes anatómicas, caixa estruturante de
com a Mulher, a quem tenta vender partes moles e frágeis”. É Marlene a
uma máquina; e o Hóspede, que diz compor o seu universo imaginário,
trabalhar numa fábrica, é uma drag onde tudo e todos são expressões
queen num clube noturno. O lugar de delicioso estranhamento.
central da Mulher, em “Girafas”, não
impede a vida de cada uma das perso-
nagens; o cinzentismo do ambiente e
o carácter opressivo da era franquista
não excluem uma espécie de onirismo
poético que parece pairar sobre as
personagens, as cenas, as ações. O
amor do Homem pela Mulher acaba
por ser um exercício de dominação
primário, elementar, de quem gostaria
CATI CARDOSO

de estar dentro da cabeça dela, para


saber tudo o que ela pensa, tudo o que
ela é, e que ele não consegue admitir,
na sua estreita faixa existencial e de
conhecimento. A violência do mundo
daquelas personagens nunca destrói, TAKE
contudo, a subtileza — o termo é do De São Castro e António M Cabrita /
Companhia Instável
encenador, Nuno Gonçalo Rodrigues
Teatro Aveirense, Aveiro, dia 8; Centro
— quer da narrativa dramática quer da
construção do espetáculo, que toma
as girafas como exemplo de um tipo de
Cultural Vila Flor, Guimarães, 27 de
abril; Teatro Municipal da Covilhã, ACOMPANHE A GRANDE
NOITE ELEITORAL
30 de novembro
comunicação que se faz subliminar-
mente, numa linguagem que parece “Take” é a nova criação de São Cas-
não existir, não se ver nem ouvir, mas tro e António M Cabrita, que marca
que é vital para a sobrevivência das es- os 25 anos da Companhia Instável,
pécies. Interpretação de Eduarda Ar- para a qual foi criada. Sobre a peça, QUEM VAI SER O PRÓXIMO PRIMEIRO-MINISTRO?
riaga, Gonçalo Norton, João Vicente, dizem os autores, que é uma estru-
Pedro Caeiro e Vicente Wallenstein. tura coreográfica “composta por Uma grande operação SIC e SIC Notícias, com
Cenografia e figurinos de Rita Lopes takes, combina realidade e ficção sondagens, resultados ao minuto e o comentário
Alves. Luz de Pedro Domigues, som de (...) criando diálogos entre o que se
André Pires. / JOÃO CARNEIRO ouve e o que se vê — ou não se vê”. na noite de todas as decisões.
O Japão de Albano
Albano Silva Pereira iniciou uma viagem de pesquisa dos temas da
sociedade japonesa e construiu uma coleção de objetos de desejo
TEXTO ANA SOROMENHO

É
sempre uma surpresa o motivo que o levou a escolhê- atlas íntimo e cujo fim é sempre o
atravessar os jardins do la para oferecer as suas visões projeto artístico. Este é o seu método
Palácio Pimenta, em direção fugazmente detalhadas de uma de aquisições enquanto colecionador
ao Pavilhão Branco. O edifício civilização ancestral e ritualista de valiosos objetos de desejo —
e@expresso.impresa.pt de dois pisos, recolhido entre na sua permanente relação com a sejam catos, pedras e meteoritos
árvores e magníficos pavões, manufatura de objetos. dos desertos do Arizona ou do Sara,
habitantes privilegiados deste Partindo de um primeiro impacto sejam artefactos do Japão — onde o
jardim, atravessado por grandes com cultura nipónica através do fascínio e a obstinação do “caçador”
fachadas de vidro. Não admira que cinema de Ozu e de Mizoguchi, se fundem no espaço conceptual e
este lugar, que absorve a paisagem Albano Silva Pereira iniciou ao longo ficcionado do artista.
exterior e projeta o seu interior na de quase duas décadas uma viagem Esta intenção é revelada logo no
paisagem, tenha sido escolhido de pesquisa e recolha, sobretudo de primeiro piso, onde se apresenta
por Albano Silva Pereira — artista permanente espanto, com alguns em autorretrato. No centro do
e curador responsável pela criação dos temas basilares e sagrados da espaço depurado, uma moto
dos Encontros de Fotografia de sociedade japonesa — como o são Honda, cujo mostrador mostra
Coimbra — para realizar a exposição o ritual do chá, ou do saquê — ou 78 mil quilómetros de estrada,
“Netsuke”. o mundo gráfico e misterioso da invoca o acidente que quase lhe
Formulada a partir da sua coleção escrita que o levou ao universo tirou a vida. Em redor do veículo,
No centro do espaço, de objetos da cultura japonesa e erótico e gráfico do chunga. A despojos do desastre. Bocados de
uma moto Honda do universo fotográfico que ela partir destas três orientações, foi plástico espalhados pelo chão,
invoca o acidente que lhe convoca, foi precisamente esta construindo uma coleção de objetos luvas e o casaco do motard, objetos
quase tirou a vida a osmose entre paisagens interiores raros, cuja vocação teve desde o que cremos perenes, afinal de
Albano Silva Pereira e exteriores que este espaço sugere início a intenção de desenhar um fragilidade extrema. Na parede, uma
sequência de fotografias registadas
depois do acidente revelam-no com
o rosto desfigurado e, na mesma
sala, um scroll com mais de dois
metros foi desenrolado dentro de
uma vitrina, mostrando preciosos
desenhos e caracteres descritivos da
anatomia de um cavalo, metáfora
e hino da vida, na força de um
corpo desenhado para a corrida. Há
também um altar com um pequeno
buda de bronze comprado em Paris
e um tríptico a preto e branco do
rosto de uma mulher — musa e
amiga, galerista em Tóquio. Ainda
nesta sala, o jogo de analogias
prossegue com a passagem de um
still de “Os Amantes Crucificados”,
de Mizoguchi, projetado dentro de
uma caixa negra, numa cena de
amor e morte, evocação indelével e
incontornável ao mestre no rito da
viagem.
Subimos então ao primeiro piso
para seguirmos o percurso intimo,
deambulatório, em torno de uma
cultura milenar, que permaneceu
através da repetição do gesto e
da forma, como são igualmente
os gestos rituais do sagrado e do
fétiche. Dos três eixos centrais
BRUNO LOPES

que orientaram as escolhas do


colecionador, encontramos as
mais variadas e preciosas taças e

E 68
restantes objetos que fazem parte amuletos esculpidos em madeira ALMADA E PESSOA:

E ainda...
dos rituais do chá e do saquê, assim macia ou marfim para servir de CONVERSA ENTRE
como páginas de livros e estampas proteção aos samurais, que os BIBLIOTECAS
de tecidos alusivos à arte da escrita transportavam numa pequena bolsa Casa Fernando Pessoa, Lisboa,
gravada, até à arte chunga, tão do cinto do quimono, tão na moda até 8 de setembro
determinante na representação do entre os colecionadores do final do
universo erótico erudito, popular século XIX, quando o Japão se abriu Lado a lado, as bibliotecas particula-
da cultura nipónica. Entre os ao Ocidente. res de Almada Negreiros e Fernando
desenhos cheios de detalhe e de Ao longo deste percurso, vamos Pessoa, com edições raras, manus-
cores vibrantes, vamos encontrando sendo guiados pelas fotografias de critos e dedicatórias personalizadas.
delicados pentes e ganchos de Albano Silva Pereira — uma rua de
gueixas, assim como dados de Tóquio à noite, uma série de jardins 25 DE ABRIL DE 1974,
jogo, espelhos, máscaras do teatro de pedra, uma casa de chá, uma
QUINTA-FEIRA
Alfredo Cunha
kabuki, fotografias de arquivos e imagem do Shinkansen, o comboio
Galeria Municipal Artur Bual,
de álbuns de família, ou falos de que atinge 300 quilómetros hora,
Amadora, até 23 de junho
fertilidade que já foram esculturas ou uma outra de uma delicada
que ocuparam templos. orquídea — e nesta coreografia 75 fotografias de Alfredo Cunha do
São mais de dois mil objetos contida entre artista e colecionador, 25 de Abril de 1974, com projeção
produzidos entre os séculos XVII e onde somos constantemente multimédia e música de Rodrigo
XIX, que compõem quatro ‘altares’ interpelados por viagens de mapas Leão, na Amadora, que se tornou
e cinco vitrinas horizontais, reais e ficcionados, é um mundo de cidade e município cinco anos após
concebidas pelo arquiteto André mistério e beleza que se atravessa. b a Revolução dos Cravos. À entrada NA CRATERA DO VULCÃO
Maranha, que se vão revelando, asoromenho@expresso.impresa.pt da galeria está, simbolicamente, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
Serralves (Casa do Cinema Manoel de
como num “atelier de curiosidades” a primeira chaimite que Alfredo
Oliveira), Porto, até dia 24
que, na sua composição tão diversa, Cunha registou no 25 de Abril. “Foi
nos prendem a atenção na emanação o dia mais feliz da minha vida e, Aproxima-se do término a primeira
secular de perfeição e delicadeza. nestes 50 anos, não há dia que não exposição dedicada a Jean-Marie
Talismãs que parecem estar à espera NETSUKE me lembre desse momento que Straub (1933-2022) e Danièle Hui-
de ativação num gesto do olhar e do Albano Silva Pereira representa o nascimento de uma llet (1936-2006) em Portugal, em
toque, como os pequenos netsukes, Palácio Pimenta (Pavilhão Branco), utopia e da nossa liberdade”, disse torno de uma obra desenvolvida ao
que se vão descobrindo aqui e ali, Lisboa, até dia 31 em janeiro ao Expresso. longo de mais de seis décadas.

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FRACO CONSOLO

A actriz Judith
Godrèche na
entrega dos
Césares

STEPHANE CARDINALE/GETTY IMAGES


CINE-FILHAS

N
ALGUNS TESTEMUNHOS MOSTRAM-SE TÃO PREOCUPADOS COM O ASSÉDIO,
A VISIBILIDADE E O ENVIESAMENTO COMO DISTANTES DO OFENDIDISMO CENSÓRIO

os últimos anos, o cinema francês discussão diferente. Trata-se do “olhar masculino” (o “male gaze”, definido
(e francófono) dirigido por por Laura Mulvey), ao qual se tem oposto um “female gaze”, até porque,
mulheres tem alcançado triunfos como sugere Axelle Ropert, o cinema feito por mulheres distingue-se do
como a escolha de “Jeanne cinema feito por homens não na mise èn scéne mas no point de vue.
Dielman” como o melhor filme O debate continua. Mas notei com satisfação que alguns testemunhos dados
de sempre na votação da “Sight aos “Cahiers” se mostram tão preocupados com o assédio, a visibilidade e
and Sound”; o sucesso comercial o enviesamento como distantes do ofendidismo censório. Diz a argentina
ou crítico de “Retrato da Rapariga Laura Citarella, autora do muito intrigante “Trenque Lauquen”: “O
em Chamas”, “Saint Omer”, sentimento de ofensa, enquanto método político, parece-me um lugar
“Anatomia de Uma Queda”; hermético, amplificado pelas redes sociais, que não permite o diálogo, a
as duas Palmas de Ouro quase reflexão ou a mudança. Tenho a impressão de que é uma espécie de vaidade.”
consecutivas a realizadoras; Mais reactiva, Catherine Breillat, como se espera dela, responde “Le sexe,
a adaptação de “O Consentimento” e de diversos livros feministas da c’est trouble, je suis desolé” (“Tenho pena, mas o sexo é perturbador”),
nobelizada Annie Ernaux; o estatuto canónico póstumo de Agnès Varda; o aproveitando para denunciar o neomacartismo e o novo moralismo. Por sua
estatuto quase canónico de Claire Denis. vez, Valentine Molinier declara com justeza: “A minha militância feminista
Mas, por causa do MeToo, também se tem perguntado se a cinefilia será não se inscreve num movimento de rejeição dos filmes, mas no olhar que
uma ideologia masculina. De tal modo que o último número dos “Cahiers tenho hoje sobre eles. Integrei algumas das novas chaves de leitura, que
du Cinéma” dedica a essa questão um dossiê de 80 páginas, com textos e misturo com outras, digamos mais clássicas, o que me permite ter esse
depoimentos de cineastas, cinéfilas e “ciné-filles”. O motivo imediato é um olhar crítico.” E contra os boicotes e um autorismo limitativo, Élisabeth
conjunto de casos da última década ou das últimas semanas. Um elenco não Lequeret acrescenta: “Se boicotamos os filmes com base no seu conteúdo
exaustivo inclui: as acusações a Abdellatif Kechiche pelos métodos usados ou no comportamento dos seus autores ou autoras, penalizamos também
em “A Vida de Adèle”; os processos judiciais contra os castings duvidosos todo o trabalho da equipa artística e técnica [...] — equipa que possivelmente
de Jean-Claude Brisseau; o prémio a Polanski nos Césares e o protesto também é vítima desses comportamentos. [...] O boicote parece-me ao
público de Céline Sciamma e Adèle Haenel; as revelações adicionais sobre mesmo tempo perigoso e difícil de aplicar na prática. Por outro lado, afirmar
o comportamento de ogre de Depardieu; acusações contra Philippe Garrel, que um filme, por causa do seu efeito ou do seu autor, é uma ameaça [...] é
o já falecido Alain Corneau, o protagonista de “Les Amandiers” ou um dos um grande clássico da censura.” No cinema, como em tudo, a justiça não tem
actores de “Anatomia de Uma Queda”; e, há dias, as acusações de abuso de ser inimiga da liberdade. b
e violação da actriz Judith Godrèche a Benoît Jacquot e Jacques Doillon, pedromexia@gmail.com
respeitantes a uma época em que ela tinha 14 e 15 anos e que a levaram a
discursar nos Césares e a testemunhar no Senado francês (“tout le monde le Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
savait”).
Já se disse que é como que um processo ao pós-Nova Vaga, à geração
de Jacquot, Garrel, Doillon; mas, para os “Cahiers”, bem pode ser um
processo aos seus fundadores, os homens da Nova Vaga, alguns dos quais,
sobretudo Godard, Truffaut, Malle e Rohmer, foram algumas vezes acusados
de “misoginia” ou “objectificação”. Mas talvez seja avisado separar
comportamentos ilícitos e querelas artísticas, sem prejuízo de se questionar
a visão “estetizante” das mulheres que obedecia a uma famosa e polémica
máxima de Truffaut: “O trabalho de um realizador consiste em fazer com que
mulheres bonitas façam coisas bonitas.”
Um dos textos dos “Cahiers” sobre os “Cahiers”, de Élodie Tamayo, lembra
aliás o historial da revista: “A mulher fantasmática é um page turner para
/ PEDRO
a cinefilia tradicional, um objecto iconográfico e discursivo de eleição. MEXIA
[...] A mulher no feminino singular, invariavelmente presa nas redes do
desejo ou do amor, é decomposta em pedaços anatómicos fetichizados,
ou essencializada num mistério totalizante.” Isto não é falso, mas é uma

E 70
vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”

Domingo é dia PETER DAZELEY/GETTY IMAGES

de santa TV
Muito provavelmente, o ponto mais alto do entretenimento caseiro
terá lugar no dia em que se realizam as mais disputadas eleições
legislativas dos últimos anos, a gala dos Óscares, e jogos de futebol
do Sporting e do Benfica. Prepare-se convenientemente!
TEXTO JOSÉ CASEIRO

E 71
E 72
C Filmes, atores e
inquenta e duas vezes por ano, domingo é em Lisboa quando começarem a ser conhecidos os
o dia do Senhor. Mas o próximo será com grandes vencedores dos Óscares (RTP). Os resis-
toda a certeza algo diferente. Vamos eleger efeitos especiais tentes poderão entreter-se a comparar os hollywo-
o senhor que se segue — e é de política que se fala
— mas teremos igualmente oportunidade de avaliar
são coisa que odescos vencedores do melhor filme, melhor ator,
melhores efeitos especiais, etc., com os desempe-
os melhores argumentos e os atores que mais bem raramente falha nhos políticos que viram antes em Portugal. Filmes,
representam segundo os cânones de Hollywood e atores e efeitos especiais são coisa que raramente fa-
São Bento. Tal como sucederá nos encontros que nas noites eleitorais. lha nas noites eleitorais.
opõem, na Luz, Benfica e Estoril Praia e, em Arou-
ca, o Sporting e a equipa da casa, os resultados vão
Nem isso, nem a Nem isso, nem a fome, dirão alguns. Tenha pre-
sente que com tanta gente em casa, de olhos postos
estar à vista de todos. E o melhor é que tudo isto será fome, dirão alguns na televisão, poucos serão aqueles com tempo para
transmitido em direto na televisão — a tal caixa que cozinhar. Entre bola, votos e filmes, é provável que
um dia mudou o mundo. os serviços de entregas acelerem de mala cheia, e al-
Sejamos honestos: a caixa já não é bem uma cai- gum atraso, um pouco por todo o país. O melhor é
xa — está cada vez mais parecida com uma folha de confirmados os resultados eleitorais (é a hora daque- prevenir e escolher bem cedo o que quer para jantar
papel, de tal modo que é até possível dobrá-la. O les gráficos cheios de cores e de mapas de Portugal) e (fala-se de pizzas e de quiches na página 7 desta re-
mundo também mudou muito — e nos últimos anos sucedendo os diretos das sedes de campanha, com o vista), a bebida com que vai brindar à vitória, seja ela
mais por culpa de outros ecrãs, ainda mais peque- ocasional discurso. Uma dica: encare ambos como o futebolística ou política. Ou, se for o caso, ao facto
nos. Contudo, há coisas que permanecem iguais. No ensaio derradeiro para os Óscares. Os comentadores de ter acertado numa qualquer categoria dos Ósca-
fim, há um vencedor e um vencido, e sempre algu- funcionam bem como aquelas mesas em que se sen- res (terceira remissão para a página 32).
mas vitórias morais. Na política ganha quem tem tam as estrelas; as sedes de campanha são, ao mesmo Acordaremos cansados na segunda, dia de tra-
mais votos, no futebol ganha quem tem mais go- tempo, a passadeira vermelha, com os fãs mais fiéis balho. Ensonados contemplaremos os resultados
los e no cinema ganha quem os distintos membros a espreitarem de perto os seus ídolos, e o palco onde das audiências, o que fica depois de todos os resul-
da Academia decidem que deve ganhar (a propósi- os vencedores agradecem. Na política, também se tados. Uma possível dor de cabeça, ainda que ligei-
to, dê um salto à página 32 para conhecer os favo- espera que na grande noite os vencidos digam qual- ra, a sensação de vista cansada, e algum incómodo
ritos). De qualquer modo, a viagem conta mais do quer coisa — e nisso parece-se mais com a flash in- físico serão sinais evidentes de que algo mudou. O
que o destino. terview do futebol do que com os prémios do cinema. futuro anunciado às 18h30 já estará feito passado. O
O caminho é longo, e a preparação indispensável. Cada canal de televisão tem a sua sondagem e o mundo será diferente, ainda que pareça exatamente
As hostilidades abrem às 18h, no Estádio Municipal seu painel de comentadores, e isso significa que o o mesmo. Em boa verdade, apenas a tal caixa per-
de Arouca, ali à Avenida da Liberdade, como convém total de televisões ligadas tende a ser um valor em manecerá igual, desligada e a olhar para cada um
em dia de eleições um mês antes dos 50 anos do 25 de permanente crescimento. É hora de fazer contas: de nós. Se calhar, poderemos vir a pensar, andamos
Abril (para ver na SportTV). O sétimo classificado da uma TV no jogo do Benfica (que também interessa a ver demasiada televisão. A ver se corrigimos isso
primeira Liga recebe o Sporting, líder do campeonato, aos sportinguistas), mais três mesmo à mão (uma amanhã. Hoje não. b
que, com um jogo a menos, leva um ponto de avanço para cada canal português), e outra para ir esprei-
sobre o segundo. Esse, o segundo, é o Benfica, que pe- tando as novidades que chegam de Los Angeles.
las 20h30 sobe ao relvado do Estádio da Luz (para ver Existem vários tamanhos, e algumas formas, e con-
na BTV) para defrontar o Estoril (15º), ainda a lamber vém escolhê-las tendo em conta as dimensões do TELEVISÕES
as feridas da pesada derrota — uma espécie de bomba espaço da sala, cozinha ou quarto. TV Samsung
atómica tipo Oppenheimer — sofrida no último fim É também por esta hora, perto das nove, nove e (Smart TV, UItra HD, 140 centímetros
de semana frente ao FC Porto, no Estádio do Dragão. meia da noite, que tudo pode começar a ser dema- e 55 polegadas)
Por essa altura, com encarnados e amarelos à siado. Em 2021, um estudo da Johns Hopkins Bloom- €1299
boca do túnel e prestes a entrar em campo, já convém berg School of Public Health deixou no ar a ideia de
estar em modo multiecrã. Meia hora antes, um pouco que o excesso de televisão pode levar a uma redução TV Sony Bravia
mais porque os telejornais das 20h tendem, em noite da matéria cinzenta que todos trazemos dentro da (Smart TV, Ultra HD, 109 centímetros
eleitoral, a começar uns dois minutos mais cedo, se- cabeça. Não vale a pena entrar em pânico, até porque e 43 polegadas)
rão conhecidas as primeiras projeções eleitorais — ou os efeitos, a acontecerem, só se manifestam a muito €727,37
seja, os resultados das sondagens realizadas à boca da longo prazo e um consumo excessivo e prolongado,
urna. Com tanta boca, é também por esta hora que ao longo de muitos anos, de matéria televisiva. TV Aiwa
se abrem as primeiras bocas — algumas de espanto Ainda assim, num fim de semana como este, po- (Led, 61 centímetros e 24 polegadas)
e alegria, outras de espanto, mas com tom de tris- derá dar-se o caso de se sentir um pouco como se ti- €143,99
teza. Os mais precavidos, que têm a lista dos filmes vesse decidido ir ao cinema ver todos os filmes em
mesmo à mão (basta subir dois parágrafos e encon- cartaz (algo que o autor destas linhas fez há uns anos,
trar a remissão para a página 32), podem divertir-se consumindo três filmes numa tarde, tendo concluí- APPS
a procurar eventuais “Pobres Criaturas”, a inevitá- do que, ao fim do terceiro, não se lembrava bem do Uber Eats; Glovo; Bolt Food
vel “Anatomia de Uma Queda” ou a imprescindível primeiro e misturava os outros dois). Muitos outros
“Zona de Interesse”. Barbies e Ferraris não haverá estudos reforçam a ideia de que convém fazer uma
muitos, mas nas conversas surgirá seguramente uma pausa — sair do sofá ou cadeirão, ir à janela apanhar RESTAURANTES COM ENTREGA
ou mais referências à bomba atómica, o Oppenhei- ar ou à rua dar um passeio. Dependendo da geogra- LISBOA
mer político (isto poderá ser visto como uma alusão fia, e da proximidade a hotéis e sedes de partido, tal- Don Vito (pizzas, 214 051 069);
EMILIJA MANEVSKA/GETTY IMAGES

à dissolução de um Parlamento com maioria absoluta vez consiga ouvir os ruidosos festejos da vitória ou A-100 (hambúrgueres, 211 396 288);
ocorrida em novembro). mesmo os mudos lamentos da derrota. Chiquinho (churrasqueira, 210 114 410)
Com sportinguistas e arouquenses mais descan- Tendo em conta eleições anteriores, pelas 23h30
sados com o resultado final — com o sublinhado em já será possível ter uma ideia do novo panorama po- PORTO
final mais do que em resultado — e com os adeptos do lítico em Portugal. Também já será possível dar por O Gaveto (tradicional portuguesa, 229 378 796);
Benfica e do Estoril à espera do apito inicial — nada fechadas as contas da jornada futebolística. Ao som Casa Guedes (petiscos, 222 002 674);
a dizer aqui — começa nas televisões o grande der- dos comentadores, políticos e de futebol, a realida- Nonna Vespa Pizzaria & Gelataria
by dos comentários. É um tipo diferente de jogo, que de muda-se para Los Angeles e o domingo vai esti- (italiana, 221 144 709)
vai mudando de sentido à medida em que vão sendo cando. Tanto que já será segunda-feira bem entrada

E 73
R ECE I TA
POR JOÃO RODRIGUES
(PROJECTO MATÉRIA)

PRODUTOS
& PRODUTORES
Abóbora
A abóbora é o fruto da aboboreira.
Habitualmente classificada como
um vegetal é, na verdade, uma fru-
ta da mesma família da melancia,
do melão e do chuchu, com origem
numa planta rasteira da família das
cucurbitáceas. As que consumi-
mos habitualmente têm um tama-
nho pequeno ou médio e podem
chegar os 30 kg, contudo é dos
frutos que podem atingir tamanhos
gigantes e formatos bizarros e já
foram encontradas abóboras com
mais de uma tonelada. Começou
por ser produzida na América do
Sul, mas atualmente existe esta
cultura em todo o mundo. Em
Portugal, é na região do Oeste
que se encontra mais de 70%
da produção nacional. Existem
muitas variedades de abóbora, dos
mais variados formatos, tama-
nhos e cores — laranja, vermelha,
amarela, verde ou azul. Costumam
ser classificadas como sendo de
inverno as que apresentam uma
casca mais grossa e são colhidas
quando o fruto está mais madu-
ro, sendo, por isso, mais doces,
como é o caso da abóbora-bolota,
butternut, abóbora-americana e
TIAGO MIRANDA

abóbora-banana; ou, de verão, de


casca mais fina, macia e comestí-
vel, colhidas numa fase mais inicial,
como é o caso da abóbora-menina,
abóbora-spaghetti e abóbora-mo-
ranga. Podem ser preparadas das

Gratinado de legumes mais variadas maneiras — cozidas,


assadas ou cruas, tanto em pratos
salgados como doces. As suas
Tempo de preparação 10 minutos | Tempo de confeção 40 minutos sementes são muito ricas e podem
ser consumidas cruas, cozidas ou
fritas. Já as flores, que também
são comestíveis, podem ser, por
INGREDIENTES e deixar reduzir em lume brando a Por cima de cada camada colocar exemplo, recheadas ou fritas.
2 curgetes / 1 abóbora-manteiga média / dois terços. um pouco de nata reduzida e queijo
4 batatas grandes / 2 batatas-doces Cortar os legumes em fatias de 2 mm em fios.
rabina grande / 2 beringelas / de espessura. A abóbora-manteiga Repetir o processo até ter o tabuleiro PROJECTO MATÉRIA
1 dl de azeite / 1 ramo de tomilho / pode ficar com a casca pois é tenra e completo com os legumes e terminar É um projeto sem fins lucrativos,
700 ml de natas / 2 dentes de alho / desenvolvido pelo chefe João
saborosa. Temperar todos os legumes com a nata. Pressionar os legumes
30 g de manteiga / 300 g de queijo Rodrigues, que pretende promover
em fios para gratinar / Sal q.b. / com sal e pimenta e um fio de azeite. para que fiquem bem juntos. Tapar
os produtores nacionais com boas
Pimenta q.b. / Azeite q.b. Untar um tabuleiro com um pouco com folha de alumínio e levar ao
práticas agrícolas e produção animal
de manteiga. No fundo, colocar um forno durante 45 minutos a 180°C. em respeito pela natureza e meio
Colocar as natas num tacho com os pouco de nata e começar a dispor os Quando faltarem 10 minutos para o ambiente, enquanto elementos
dois dentes de alho e um ramo de legumes. Pôr cada camada com uma tempo total, pôr bastante queijo por fundamentais da cultura portuguesa.
tomilho, temperar com sal e pimenta variedade de legumes diferente. cima e deixar gratinar. b Ler mais em projectomateria.pt

E 74
R ESTAU RAN T ES
POR FORTUNATO DA CÂMARA

Sabor radicado no futuro de pele tostada, com aneto fresco e lâ-


minas de alho frito.
Na parte dos pratos principais, a su-
ACEPIPE
A Ericeira ganhou mais um cantinho cheio de alma gestão do dia era “Tamboril com mo- Órfãos de
e bons sabores com a Petiscaria Âncora
lho marinière” (€18), com dois nacos
alvos húmidos do peixe, enriquecido
criatividade!?
com um molho de manteiga, chalo-
Num passado que nos reme-
tas e vinho branco, e umas belas bata- te para os séculos XIV e XV,
tas novas cozidas com pele e passadas onde a cozinha aristocrata
nas brasas, a trazerem um delicioso francesa dominava mesa e
sabor terroso ao prato, ainda valoriza- tendências, surgiram pratos
do com brócolos tenros (bimis) grelha- e receitas de homenagem a
dos. Em jeito de petisco, mas a ser um figuras da época. Algumas
prato completo, o “Pica-pau da vazia” delas perduram até hoje,
como as “Codornizes à
(€14) era um naco de carne rosada de
Mirepoix”, que nasceram na
qualidade, fatiada em registo estéti- cozinha do marechal Gas-
co, com um molho de cárneo acídulo ton-Pierre de Lévis-Mire-
e profundo a convocar o belíssimo pão poix, quando o seu cozinhei-

ANTÓNIO PEDRO FERREIRA


saloio para a contenda. No “Cachaço, ro usou cubinhos de cebola,
puré de raiz de aipo e couve” (€14), a cenoura e aipo, salteados
qualidade da carne, tenra e suculenta, em manteiga, como base
a denotar cocção apurada, foi nota vi- inicial de várias receitas. As
“Bouchées à la Reine”, mini
sível, com um puré convicto de maçã,
vol-au-vents de recheios
na boa consistência e na doçura conti- diversos, surgiram quando
da, a deixar a parte frutada aparecer. O a rainha Maria Leczinska,
puré vegetal fino elegante, e um quar- esposa de Luís XV, pediu

A
tendência natural é em breve, contar, e bom equilíbrio entre memo- to de couve-coração que depois de ser uma entrada prática que não
no eclodir consistente dos pri- rabilia e depuro estético, sem cansar. A escaldada foi às brasas, mas que podia sujasse as mãos. O marquês
meiros raios de sol primaveris, carta propõe diversos petiscos com o ter mais caramelização e notas de fumo de Bechamel inventou a
muitos partirem em busca das margens mar em destaque, e alguns pratos mais para se evidenciar. subversão de um molho sem
natas para ser aplicado num
atlânticas, junto à praia ou com vistas compostos a complementar uma oferta A lista de vinhos é curta e pouco
pregado ou em bacalhau
desabridas além-mar. Na Ericeira há de cariz elaborado e fora da caixa. abrangente de preços, ainda que a su- fresco, que faz o seu nome
sempre um movimento turístico, ora Veio uma bela “Salada de baca- gestão da casa seja aceitável e abordá- ser evocado até hoje. No
ligado ao surf ou a novos residentes es- lhau” (€6,50), sobressaindo logo o vel. O serviço é atento e eficiente, mas séc. XIX e início do séc. XX
trangeiros que se apaixonam pelo re- excelente grão de bico, avesso a ver- a ausência de telefone, havendo só as as homenagens ou vassala-
corte selvagem ao longo de praias e en- sões de lata (muito bem!) com a legu- mensagens de Instagram como meio gens (depende do contex-
seadas. A Ericeira não se explica, vai-se minosa de calibre pequeno, mas mui- de reserva é uma forma segregadora de to) à mesa prosseguiram,
e fica-se a sentir o que a natureza nos to saborosa, misturada com cubinhos clientes pouco compreensível na atua- introduzindo variações nos
pratos. Hoje parece difícil
proporcionar. Por estes dias encontrá- de pimento amarelo e finas meias luas lidade. A rever. A doçaria trouxe-nos aparecer um novo prato ou
mos mais um espaço recente. de cebola roxa, um pouco de maione- uma delicada e cremosa “Mousse de receita. Estarão os cozinhei-
Ao contemplar a Praia dos Pescado- se a ligar, e a pedra de toque a serem chocolate com praliné de avelã” (€6) ros órfãos de criatividade!?
res, postal obrigatório da vila, temos a os sames do bacalhau, que trouxeram com matéria de qualidade, e o crumble Idealizar um prato para
Capela da Sra. da Boa Viagem, de onde untuosidade e profundidade de sabor de avelã torrada em metade da genero- homenagear alguém está
se segue em direção ao forte. Escondi- ao conjunto. Depois o “Crudo de peixe sa porção a dar boa réplica ao chocola- datado e pode colidir com o
do numa ruela com o nome de Largo branco” (€11) técnica sul-americana te negro. Intenso, o “Pudim de pão com objetor de ‘egosciência’? O
ego talvez não permita dar
do Cruzeiro, surge a bela porta da Pe- aplicada a tiras finas de pampo mari- chantilly de funcho do mar” (€6) com
nomes a pratos numa era em
tiscaria Âncora, aberta em setembro de nado, firme e saboroso, coberto com uma fatia densa do pudim a ter um fio que são eles as estrelas. Dar
2023, com ares de pequena relíquia. A uma boa ligação de elementos num guloso de caramelo no topo, e ao lado a o próprio nome é complica-
imagem exterior impressiva prossegue molho cítrico de peixe, puré de ba- leveza de uma nuvem de frescura ani- do, quando meio mundo re-
portas dentro. Luz indireta em paredes tata-doce, cogumelos shimeji, milho sada nas natas batidas com o floral Cri- plica técnicas e estéticas de
rústicas enaltecidas com molduras tra- frito picado e cubinhos de malagueta. thmum maritimum. outros chegando via redes
balhadas, artes da pesca a fazerem de Bem pensado, o “Lingueirão de esca- Na Petiscaria Âncora o ambien- em poucas horas. Altera-se
cada mesa uma vitrina com algo para beche” (€6) com o miolo gordo e su- te parece imemorial, mas a cozinha é e abusa-se do nome das que
já existem. Vendem sempre!
culentos dos bivalves, bem depurados, viva e cativante, onde sabores locais
e num molho acídulo com tiras car- e do mundo estão bem ancorados em
nudas de pimento vermelho e cebola técnicas de hoje e com um olhar no fu-
PETISCARIA ÂNCORA roxa. A pesca nacional retoma a 1 de turo. Um bom poiso para se aportar e
Largo do Cruzeiro — Ericeira abril, mas veio um competente “Tor- apreciar outros sabores. b
Telefone: Não tem. ricado de sardinha” (€6) uma maio-
Reserva via mensagem Instagram nese da azeitonas sobre duas fatias de Desde 1976, a crítica gastronómica
Encerra à segunda-feira excelente pão saloio, na base, quatro do Expresso é feita a partir de visitas
(apenas jantares a partir das 17h). lombos do pescado (congelado!?), fir- anónimas, sendo pagas pelo jornal
mes e com gordura, bem arranjados, todas as refeições e deslocações

E 75
VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS

GETTY IMAGES
Sim ao arrefecimento global
E não aos erros do passado

H
á sempre alguém que nos diz que temos tolerável hoje. Em boa verdade, os consumido- Donzelinho, por exemplo) merecem ser con-
de seguir os exemplos dos nossos ante- res têm na cabeça a temperatura de 18° para os sumidos mais frescos do que os tintos mais
passados, aprender com os velhinhos, tintos, mas essa é uma temperatura bem abai- encorpados. Mesmo no caso dos brancos não
enfim, procurar reproduzir o que antigamente xo do que se pensa. Foi isso que comprovei existe uma temperatura única, sendo certo que
se fazia. No que se refere ao serviço dos vinhos quando, num curso de provas, pedi para que os Vinhos Verdes do ano e sem estágios (em
é bom que se faça tábua rasa do conhecimen- cada um escrevesse no papel a que temperatu- madeira ou inox) devem ser consumidos mais
to antigo. Devo confessar que pertenço àquele ra estava o tinto (que servi propositadamente frescos do que os outros mais gordos, fermen-
grupo de consumidores que, em tempos idos a 24°) e quase todos disseram que estava a 18°! tados ou estagiados em barrica, por exemplo.
(e não há tantas décadas como isso), coloca- Com o hábito chegamos à temperatura cer- Então falamos de 9 ou 10° para os mais leves e
va as garrafas de tinto bem perto da lareira ta num instante. Para refrescar vinhos temos jovens e 12 a 13° para os brancos mais encor-
para “chambrear”, conceito que nos chegou várias práticas, umas mais aconselháveis que pados. Os tintos, mesmo os mais estruturados,
via França (com sorte ainda foram os soldados outras. Sugiro vivamente que se provem os vi- ficam prejudicados por serem consumidos aci-
de Junot...) e que foi mal apreendido. Colocar nhos antes de os refrescar. Alguns problemas, ma dos 20°: a temperatura faz sobressair o lado
à temperatura da “chambre” era conveniente nomeadamente cheiro a rolha, são bem mais alcoólico do vinho que, assim, perde elegân-
(sobretudo nos países muito frios) porque os fáceis de detetar se o vinho não estiver muito cia e frescura. Ao invés, se bebido demasiado
vinhos estavam na cave, onde, literalmente, se frio. Após essa aprovação temos: o frigorífico, fresco (12 ou 13°), o tinto irá fazer sobressair os
morria de frio e eram trazidos para a sala com a manga de gelo, o balde de gelo e o congela- taninos, perdendo-se o lado da fruta. A regra
antecedência. Daqui até à lareira foi um pe- dor. No balde com cubos de gelo é obrigatório só pode mesmo ser: beber vinho à temperatu-
queno passo. Tal como aconteceu com outros colocar água; é dessa forma que o branco fica ra certa, conceito que, como se imagina, varia
hábitos, o de beber o vinho tinto mais fresco fresco mais depressa e, ainda mais rapidamen- conforme a estação do ano. O congelador é para
foi uma conquista importante e relativamente te, se se colocar umas boas colheradas de sal último recurso, apenas. Para quem não quer le-
recente. Conta-se a história que Fernando Ni- na água, agitando-a. Não há regras para bran- var estas ideias muito a peito, fique com a cer-
colau de Almeida, o pai do Barca Velha, gostava cos e tintos mas castas que geram tintos muito teza de que é nesta época, e talvez no outono,
dos tintos, sobretudo com alguma idade, bem abertos de cor e de baixa graduação (Bastardo, que os tintos se conseguem beber... à tempera-
acima dos 20° de temperatura, o que não seria Mourisco, Alvarelhão, Marufo, Malvasia Preta, tura ambiente! b

Carvalhido branco 2022 Ipiranga por António Braga Monte Branco tinto 2019
(OS PREÇOS FORAM INDICADOS PELOS PRODUTORES)

Região: Douro Primeira Edição Alvarinho Região: Reg. Alentejano


Produtor: Quinta do Carvalhido branco 2022 Produtor: Luís Louro
Castas: Viosinho e Rabigato Região: Vinho Verde Castas: Alicante Bouschet, Aragonez e
Enologia: Francisco Baptista Produtor: Terra Vinea Trincadeira
PVP: €14,50 Casta: Alvarinho Enologia: Luís Louro/Inês Capão
Projeto da família Drumond Borges, Enologia: António Braga PVP: €45
vinhas em Vila Flor. O portefólio PVP: €33 As vinhas, em Estremoz, contemplam 28 ha de
contempla também um rosé e um Este é um dos vinhos do novo projeto deste vinha própria e 18 alugados. No portefólio
tinto e uma gama superior — Quinta enólogo, ex-Sogrape. As uvas têm origem numa incluem-se as marcas Alento e Ca e Lu
do Carvalhido. Este é um branco quinta em Monção. O mosto fermentou em barrica (abreviaturas dos enólogos) e que correspondem
direto e franco, sem segredos mas usada de 500 litros. Fizeram-se 2335 garrafas. a experiências/gostos de cada um.
bem organizado. Dica: Excelente equilíbrio entre a fruta do aroma, o Dica: Austero, ainda fechado e com muitos anos
Dica: Boas notas de fruta e algum corpo e a acidez, resultando um branco que pela frente, com fruta negra e tons balsâmicos.
floral, a mostrar-se em bom equilíbrio. apetece beber já mas que o bom senso aconselha Após decantação revela-se bem cordato e
Saliente-se a frescura da boca que também a que se conservem algumas garrafas em apto para pratos de bom tempero, da caça ao
torna o vinho muito apetecível. cave. Futuro promissor. porco preto.

E 76
as nossas recomendações Saiba mais sobre estas e outras sugestões em
boacamaboamesa.expresso.pt

Alentejo Alojamentos
Central C’Alma D’Alentejo
Adega dos Ramalhos Rua dos Combatentes da Grande
Largo Major Roçadas, 2, Guerra, 23, Alandroal.
Alandroal. Tel. 268 449 490 Tel. 962 885 420
“Caldo de grão com carne de
porco preto”, servido no tarro em
cortiça e acompanhado por en-
chidos selecionados a dedo, é um
dos clássicos da casa. O mesmo
se aplica às carnes do montado,
que vão à grelha, para gáudio dos
apreciadores. Preço médio €20.
O edifício principal dispõe de
Adega 7160 três suítes, espalhadas pelo piso
Rua Cristóvão de Brito Pereira, 12, térreo, e sete quartos, divididos
Vila Viçosa. Tel. 964 102 438 pelo primeiro andar, um dos quais
tem mezzanine e está destinado
a famílias com crianças. A partir
de €70.

Montimerso
Herdade da Geralda, EN 256,
Monsaraz. Tel. 266 557 083
Alentejo Marmòris Hotel & Spa O Alqueva avista-se dos dois
Tudo é feito na hora. O queijo Largo Gago Coutinho, 11, Vila Viçosa. Tel. 268 887 010 apartamentos e das 11 suítes, das
alentejano de ovelha é sugestão O Stone Spa, com os seus tanques em mármore e as quatro salas de massagens e tratamento, é o espaço quais quatro têm uma peque-
a ter em conta, até porque é de mais diferenciador deste 5 estrelas. O convite ao lazer prolonga-se até à piscina, de água aquecida, aber- na piscina no respetivo terraço.
considerar a Tábua de enchidos de ta para o exterior, e à nova zona de relaxamento no topo do edifício. Os pequenos-almoços são servidos Contemple a envolvente mágica a
porco preto, composta por paio, no Narcissus Fernandesii, enquanto no restaurante Primavera, se servem pratos alentejanos. Saiba mais partir da piscina infinita, no topo da
paia e paio de toucinho, e a Tábua sobre este hotel na emissão desta semana do “Boa Cama Boa Mesa” na SIC Notícias. A partir de €160. propriedade. A partir de €220.
de presunto. Preço médio €20.

O Alpendre Afonso Adega Velha O Ermita Boa Vida


Bairro Serpa Pinto, 20-A, Rua de Pavia, 1, Mora. Rua Joaquim José Vasconcelos, Aldeia da Serra, Redondo.
Arraiolos. Tel. 266 419 024 Tel. 266 403 166 Mourão. Tel. 266 586 443 Tel. 266 989 160 Vidigueira Vinho 2024
Esta casa é um verdadeiro santuá- “Bacalhau à Afonso”, “Cabrito à A “Sopa de cação” e o “Ensopado Depois de um período de tran- Vidigueira
rio no que às migas alentejanas diz morense” e “Migas de espargos de borrego” são dos preferidos. sição, é de enaltecer a ementa Nos dias 29, 30 e 31 de março,
respeito, com destaque para as bravos”, a acompanhar mais de As “Migas com carne de alguidar” renovada. Some-se o menu de de- o evento pretende promover os
“Migas de bacalhau” ou as “Migas uma mão-cheia de pratos de car- igualmente irrepreensíveis nesta gustação, subordinado aos sabores vinhos da sub-região vitivinícola
com lagartos”. Acompanhe a ne, são especialidades a registar. casa, onde o cante e o vinho, servi- alentejanos. A carta de vinhos de Vidigueira, além de outros
refeição com um dos vinhos do “Perdiz à Dona Bia” é outro dos do em jarro, são estrelas. continua a selecionar as referên- produtos de excelência do con-
Alentejo. Preço médio €25. clássicos. Preço médio €25. Preço médio €20. cias locais. Preço médio €30. celho e a gastronomia tradicional.
PUB O programa desta iniciativa vai
integrar uma Semana Gastro-
nómica, showcookings, provas e
Dom Joaquim três boas razões para eleger harmonizações de vinhos, espetá-
Rua dos Penedos, 6, Évora. esta casa, seja ao almoço, culos musicais, exposição e venda
Tel. 266 731 105 seja ao jantar. Na cozinha está de produtos agroalimentares e
O que define o Dom Joaquim é Joaquim Almeida, proprietário artesanato.
a atenção dada aos detalhes na e cozinheiro dedicado às raízes
confeção de todos os pratos e da gastronomia alentejana.
XVI Feira do presunto
o serviço de excelência numa Das Sugestões do Chef é de
sala descontraída que convida os eleger o “Javali e veado com
e dos enchidos
clientes a degustar com calma castanhas”, uma ode à caça. de Barrancos
as suas escolhas gastronómi- Peça a carta de vinhos, com um Barrancos
cas. A carta de vinhos, onde se imenso Alentejo a explorar. O Decorrerá nos dias 12, 13 e 14 de
destacam as referências em nome “Torrão real de Évora” é para pôr abril no Parque de Feiras e Exposi-
próprio, é extremamente variada um ponto final na refeição. ções de Barrancos, e pretende ser
e permite encontrar o casamento Preço médio €35. um incremento para a economia
perfeito com a oferta gastronó- local e regional, com a apresen-
mica. Seja para complementar Bem nosso é sugerir os tação de variedades de presunto,
entradas, carne ou peixe. “Boche- melhores sabores do Alentejo. enchidos e outros produtos típicos
chas assadas com puré de maçã”, da região. O certame constitui um
“Borrego no forno” ou “Açorda de instrumento de apoio para as pe-
bacalhau com ovo escalfado” são
quenas e médias empresas, com
acesso a novos mercados.

E 77
M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO

Dicas & Regras

Ponto por ponto


A evolução tecnológica tem permitido
aumentar a criatividade e o resultado são peças
difíceis de reproduzir pela mão humana

N
inguém vai resistir ao charme Vasconcelos já criou uma instalação para
de um croché mais tecnológi- um desfile da prestigiada casa de moda.
co. A tradição continua a ser o A evolução tecnológica tem permitido
que era. Pelo menos quando falamos compensar em termos de criatividade
de croché e do impacto que ele tem em e o resultado são peças cuja genialida-
várias formas de expressão, sejam elas de seria difícil de reproduzir pela mão
moda, decoração ou arte — quem não humana. E é este cruzamento entre a
se lembra das maravilhosas obras fei- tecnologia e o artesanato que é explo-
tas com recurso a esta técnica milenar rado nesta estação, com looks elegantes
por Joana Vasconcelos? A versatilida- e repletos de glamour. O croché nun-
de é o seu maior trunfo. O que antes foi ca vai passar despercebido num visual,
associado aos naperons das nossas avós mas poucas são as vezes que é usado em
vai buscar força a uma certa nostalgia e look total (embora os conjuntos de top
transforma-se num ícone de estilo nas e calças largas sejam deliciosos). Mas
suas mais variadas manifestações, en- a liberdade é quase plena, na hora de o
tre biquínis em triângulo anos 70 e ca- combinar com outros tecidos e estilos.

FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES


sacos agora celebrados pelo fenómeno Vai bem com peças descontraídas, mas
‘Portuguese Girl’. também conjuga lindamente com algo
Muitas peças são hoje feitas de forma mais glamoroso e até em looks executi-
industrial, retirando-lhes autenticida- vos. Os blazers oversized, as camisas em
de, apesar de algumas marcas, como a seda e as calças em lantejoulas são al-
Dior, recorrerem várias vezes a artesãos guns bons exemplos de potenciais alia-
para as suas criações — a própria Joana dos do croché. b

Shopping MINIVESTIDO
EM CROCHÉ
FARM BUSTIER
€310 EM CROCHÉ
VESTIDO
COM CAIXA
COMPRIDO
Chloé
EM MALHA
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COM FLORES
EM CROCHÉ
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VESTIDO MALHA DE
SEM MANGAS PRATA
EM CROCHÉ Bottega
Balmain Veneta
€2290 €3500

E 78
T ECN O LOGIA
POR HUGO SÉNECA

Óculos para ver


o que não vê
A TCL está apostada em demonstrar
que os óculos não servem só para a
miopia. E a avaliar pela pequena euforia
gerada no Mobile World Congress, de
Barcelona, haverá mais gente que pensa
da mesma forma. Tudo por causa dos
óculos de realidade aumentada RayNeo
X2, que já podem ser encomendados a
partir de plataforma IndieGoGo. À pri-
meira vista, são apenas óculos com has-
tes mais grossas, mas quem os usa logo
percebe que dispõem de inteligência ar-
tificial, que faz traduções em tempo real

A inteligência de um bípede de conversas captadas nas imediações,


ou simplesmente fornece contextos e
pesquisas sobre objetos e cenários em
volta. Escolha de itinerários para chegar
Os humanoides da Figure AI vão passar a começar a um destino ou vídeos no mesmo plano
a usar a inteligência artificial da OpenAI dos olhos também figuram nas dife-
rentes possibilidades. Os RayNeo X2

F
contam com um processador Snapdra-
igure-01 precisou ‘apenas’ de 10 horas para aprender das contingências do dia a dia. Em paralelo com o eventual gon XR2, da Qualcomm, e prometem
a pôr cápsulas e tirar um café numa máquina enquan- uso doméstico, os humanoides poderão usar a inteligência 1500 nits de brilho nas lentes, que têm
to observava os humanos. Em breve, é possível que emprestada pela OpenAI para tarefas de âmbito profissio- também a função de ecrãs ao refletirem
aprenda a fazer o mesmo de forma mais rápida, seguindo nal em fábricas, retalho ou transporte e armazenamento de imagens ou textos que acrescentam
instruções faladas por um humano. Pelo menos é essa a ex- cargas, admite a Figure AI. Esta parceria surge em plena es- informação ao que se vê no mundo real.
pectativa que começa a ganhar forma com a parceria entre calada tecnológica das maiores marcas do sector. Há duas A atual versão tem 120 gramas, mas a
a fabricante de humanoides Figure AI e a produtora de in- semanas, a OpenAI surpreendeu ao demonstrar a platafor- TCL prevê que venha a lançar no futuro
teligência artificial (IA) OpenAI. As duas empresas anuncia- ma Sora, que permite produzir vídeos de um minuto a partir uma versão de 60 gramas. Não sendo
inéditos na sua categoria, os RayNeo X2
ram que os robôs bípedes da Figure AI vão usar os modelos das descrições textuais — mesmo quando são impossíveis.
assumem a ousadia de regressarem a um
de linguagem para passarem a extrair informação lógica do A DeepMind, da Google, também mostrou que não parou e segmento em que os Google Glass, que
discurso dos humanos. As duas empresas não escondem deu agora a conhecer o Genie, que produz videojogos a par- eram similares, falharam. Na IndieGoGo
que a parceria tem como prioridade desenvolver robôs que tir de imagens e textos fornecidos pelos humanos. E segura- podem ser encomendados por 648
possam ser úteis através da interpretação das necessidades e mente que as coisas não vão ficar por aqui. b dólares (€597,3).

O ANEL SAUDÁVEL ASFALTO VIRTUAL OS DADOS DA META CAMÕES COMO COPILOTO


O Galaxy Ring fez a primeira aparição Nos carros ‘a sério’, o primeiro Grande Prémio A Organização Europeia do Consumidor A Microsoft anunciou que adicionou mais 17
no Mobile World Congress de Barcelona de Fórmula 1 de 2024 foi ganho por Max (BEUC) acusou a Meta de uma grande idiomas à eloquência da ferramenta de
para dar embalo à categoria dos anéis Verstappen, mas a Electronic Arts está operação de recolha de dados em redes inteligência artificial generativa que dá pelo
inteligentes que monitorizam dados a dar a possibilidade de gerar uma realidade sociais, para apurar o estado emocional e a nome de Copilot. O assistente digital que ajuda
fisiológicos. Ainda que não haja muitos alternativa a partir das versões do “F1” orientação sexual dos internautas, sem o a escrever relatórios e textos a partir de dados
detalhes, tudo leva a crer que os de 2021, 2022 e 2023, com consentimento prévio. A BEUC, que reúne dispersos passa com esta atualização a
Galaxy Ring deverão funcionar na nova porta uma demonstração do novo “F1” de 2024, que várias entidades de defesa dos consumidores, dominar também com a versão europeia do
de acesso à plataforma Samsung Health, tem um período limitado. O “F1” de 2024 diz que há oito congéneres que vão recorrer português. Em paralelo com a veia de poliglota,
que está apta a recolher dados de estreia a 31 de maio e está disponível para aos tribunais. A Meta, que detém Facebook, foi ainda lançado Copilot for Finance,
monitorização cardíaca, qualidade do sono PlayStation 4 e 5, Xbox Series X|S, Instagram e WhatsApp, refuta a acusação e que pretende ajudar no dia a dia gestores,
e atividade física. Ainda não há data Xbox One e PC, e em EA App, garante ter respeitado o Regulamento Geral contabilistas e outras profissões
nem preço de lançamento. Epic Games Store e Steam. de Proteção de Dados. do mundo dos negócios.

E 79
DIÁRIO DE UM
PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO

A zanga e o perdão
Se calhar pensou que os psiquiatras
HIDRATAÇÃO só fazem perguntas banais e óbvias
PROFUNDA
A
o contrário do que se possa pensar, que com o tempo e a experiência já
sabemos tudo e todos os conceitos teóricos estão bem arrumados, não
O Bora Carrier é o creme mais é bem assim. Nesta área não podemos falar propriamente de avanços
espesso e rico de sempre da da ciência, ainda que existam, lentos, na compreensão e tratamento na doença
marca Drunk Elephant. A sua mental. Quando pensamos no funcionamento emocional e afetivo de cada um de
fórmula proporciona uma nós é bem mais difícil de generalizar e até de atribuir significados de normalidade
hidratação profunda, reafirmando e anormalidade às pessoas. O que conta é o seu sofrimento e a forma como
a pele, reduzindo a vermelhidão conseguem, ou não, atenuá-lo ou resolvê-lo.
e devolvendo à barreira cutânea Era uma mulher com cerca de 50 anos, uma primeira consulta, vinha da
o seu estado mais saudável. parte de uma amiga comum, mas nunca a tinha conhecido. Não sabia nada sobre
Disponível nas lojas Sephora. ela, quando a minha amiga me telefonou disse-lhe que não queria ter nenhuma
drunkelephant.com informação, como faço quase sempre, para não ser enviesado. “Desculpe, pode
achar que sou tonta, mas venho cá para conferir consigo se a forma como penso
ter resolvido um problema familiar é consistente e duradoura. Posso fazer-lhe um
resumo?” Disse-lhe, claro que pode, temos uma hora, tem muito tempo. Mas fiquei
logo a pensar, os problemas familiares e a sua resolução não dependem só de nós,
estão e ficam, na relação, o outro lado pode nunca os querer resolver.
“Não sei se tem filhos, são a melhor coisa do mundo, mas podem também ser
a pior. Se me puser a teorizar sobre o assunto, prefiro, de longe, um conflito com
o meu marido do que com os meus filhos. Com ele, se não resolvo e vejo que não
CELEBRAR há futuro, é complicado, mas cada um vai à sua vida. Felizmente nunca aconteceu
chegarmos a esse ponto. Com os filhos, façam o que fizerem, são meus filhos e
A MULHER nunca os largarei, ainda que o inverso já aconteceu, temporariamente. Tenho dois
filhos rapazes, sempre pensei que era mais fácil do que ter raparigas, brincava
Para assinalar o Dia da Mulher,
com as minhas amigas quando elas estavam embrulhadas em conflitos com as
a Eugénio Campos Jewels criou
meninas, até lhes dizia tratem-nas como gajos, resulta melhor. Até um dia, em que
dois colares únicos com duas
me calhou a mim.” Encostou-se para trás, respirou fundo e emocionou-se. “Numa
palavras que apesar de estarem
circunstância completamente ridícula, uma história de poder, ou não, ficar com
em destaque transmitem a sua
a minha neta, a filha dele, uma noite, fui acusada de tudo e mais alguma coisa.
mensagem de forma discreta
Como se tivesse destapado uma panela a ferver e apanhasse com os salpicos a
– Powerful e Bloom. Os colares
queimarem-me. Que eu era má mãe, que sempre tinha sido uma grande egoísta,
podem ser combinados ou
que só pensava em mim, enfim, um chorrilho de disparates, mas, o que é certo,
usados separadamente. 10%
é que me atingiram no meu âmago. Claro que nem sempre fui o que ele pensa
do seu valor reverte para a
ser uma boa mãe, devo ter cometido erros, os filhos, como se costuma dizer, não
Associação Portuguesa de Apoio
trazem livros de instruções. Mas foi tão inesperado que, por muito que tenha
à Vítima (APAV).
refletido, sozinha e com o meu marido, não consegui perceber de onde vinha tanta
eugeniocamposjewels.com raiva. Decidi, e acho que fiz bem, não envolver o irmão nisto.”
Deixei-a falar, só a interrompi para lhe perguntar se havia um passado de tensão
MOBILIDADE COM CONFIANÇA entre os dois. “De todo, sempre nos demos muito bem, até era o filho mais próximo.
Num primeiro momento atribuí culpas à minha nora, é um bocadinho complicada,
A Kinto, marca de soluções integradas de mobilidade, lançou uma mas depois disse para mim própria, ela não te fez mal nenhum, se ponho as culpas
campanha para assinalar o seu 30.º aniversário. Através de experiências nela, não consigo resolver isto com ele. Rapidamente desisti de argumentar, não ia
reais, a empresa do Grupo Toyota destaca a confiança que os seus longe, até porque ele, na prática, cortou comigo durante uns meses. Não ia lá a casa,
clientes depositam na marca, não apenas como uma empresa de não respondia às mensagens, só via a minha neta esporadicamente. Deixei correr
mobilidade mas como um parceiro de confiança. o tempo, mas nunca cortei o contacto digital.” Como é que lidou com a zanga,
kinto-mobility.pt perguntei? Se calhar pensou, estes psiquiatras só fazem perguntas banais e óbvias...
A resposta surpreendeu-me.
“Pode não acreditar, mas nunca senti zanga e é isto que venho confrontar
consigo. Devia ter sentido? Não sei bem como, o senhor deve saber explicar,
substituí — será a palavra exata — a zanga pelo perdão. Mas não no que será mais
habitual e compreensível, perdoar-lhe, depois de a zanga estar mais atenuada.
Quando, passados uns meses, ele foi lá a casa e conseguimos falar com muito
cuidado disse-lhe: não estou zangada contigo, mas não te perdoo o que me fizeste.”
E a relação ficou bem? Voltou ao que era antes? “Talvez até tenha ficado melhor,
senti que não precisava de lhe perdoar, precisava era de não me sentir zangada. É a
minha margem de segurança na relação. Acha que foi uma boa solução?” b
josemanuelgameiro@sapo.pt
PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ

Sudoku Fácil Palavras cruzadas nº 2506

5 2 3
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
8 6 3 4
5 7 1
6 4 7
2
4 2 7 6 5 9 1 8
3 8 4 3
9 8
4
6 3 5 2
9 1 7 5

Sudoku Médio 6
2 3 5
7
7 3 2
6 4 8
4 9 8
9
9 7 2 6
5 6 1 10
4 6
3 8 5 11
9 8 7
Horizontais Verticais Soluções nº 2505
1. A da República vai mudar de 1. Onde as temperaturas são muito HORIZONTAIS
Soluções configuração 2. O submarino do capitão baixas 2. Brinda-se a ela. O lobo 1. imobiliário 2. neutral
Fácil Médio Nemo. Romanos 3. A cabeça que solta-o 3. Onde se fala neerlandês 3. on; tr; hífen 4. com;
5 7 8 6 1 4 2 9 3 5 7 6 8 3 2 9 4 1
carrega com as culpas. O automóvel nas Caraíbas. Romanos 4. Abarca ébano 5. Erasmus; rs
2 9 4 7 5 3 1 8 6 1 4 2 9 7 5 6 8 3
desportivo que privilegia o conforto. tudo o que não foi dito. Amarrar para 6. Nascer; emir
1 6 3 8 9 2 5 4 7 3 8 9 6 1 4 2 5 7
6 4 5 2 8 7 3 1 9 4 9 1 3 6 8 5 7 2 Fica perto 4. Acrescentei. Move-se um britânico. Saúda a faena 5. Forma 7. dálmata 8. exótico;
diz 9. Simeão; doai
8 1 9 5 3 6 7 2 4 6 5 3 2 4 7 8 1 9 muito devagar 5. Gera lucros. Falava- a parede do coração 6. As pontas do
10. Laod; má; da
3 2 7 1 4 9 8 6 5 7 2 8 5 9 1 4 3 6 -se no Sul de França 6. Alternativa a barril. Cereal. Atravessa o Norte de
11. carroceiros
9 8 1 4 7 5 6 3 2 8 1 7 4 2 6 3 9 5
candeeiros. Instrumento musical de Itália 7. Embarcação. Vestes litúrgicas
4 5 2 3 6 1 9 7 8 2 3 4 7 5 9 1 6 8
sopro da antiga Grécia 7. Servir de 8. Não convém fazê-lo à castanha na VERTICAIS
7 3 6 9 2 8 4 5 1 9 6 5 1 8 3 7 2 4
intermediário. Deslocar-se 8. Meio boca. A agência europeia que explora 1. inocentes 2. menora;
dueto. Pequeno poema da Idade Média o Espaço 9. Regula a comunicação sila 3. ou; mas; Omar
(de trás para a frente). Tem tudo para ser social 10. Torna dependente 4. BTT; SS; teor 5.
9. Uma picadela pode provocá-lo. Vogal 11. Percorrer a pé irremediado 6. lá; buaco
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2504 7. ilhas; lo; me 8. in; em;
repetida. Rastejante mole 10. O metal
“O Tigre de Sharpe”, de Bernard Cornwell, dai 9. reformado
que o dinheiro é. Acaba com a Quaresma
para Narciso Ribeiros, da Apúlia; “O Novo Território 10. sitiado 11. orna; razias
Selvagem”, de Diane Cook, para José Ferreira, 11. Dispõe de muitos recursos
de Leiria; “A Bíblia das Crianças”, de Lydia Millet,
para Lucília Gomes, de Lisboa. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt

E 81
ESTRANHO OFÍCIO

QUERES QUE
TE FAÇA UM
DESENHO?

A
JOÃO FAZENDA
OS CARTOONISTAS NÃO RESPEITAM O VELHO ADÁGIO SEGUNDO O QUAL “NÃO SE
BRINCA COM COISAS SÉRIAS”. É QUASE SÓ NAS COISAS SÉRIAS QUE DETÊM O OLHAR
pergunta que fazemos, quase sempre campanha, e mostrava o antigo primeiro-ministro como Nosferatu, dentro
num tom sarcástico, quando o nosso de um caixão que na tampa tinha escritas as datas de início e fim do seu
interlocutor manifesta dificuldade governo. E foi assim que pudemos assistir aos argumentos do costume:
em compreender qualquer coisa,
parece presumir duas premissas, 1. O cartoon não tinha graça. Vários sábios, alguns dos quais nunca
digamos, problemáticas: primeiro, escreveram uma piada na vida, sabem o que tem e não tem graça, e
que um desenho é fácil de fazer; decretaram que o cartoon não tinha. Está decidido. Por uma daquelas
segundo, que um desenho é fácil coincidências incríveis, nenhum dos críticos concordava com a opinião
de interpretar. Num ponto, ao do autor sobre Passos Coelho. Mas via-se que estariam todos dispostos
menos, a pergunta acerta. Um a rir muito se o cartoon “tivesse graça”. Mais uma vez, nenhum dos
desenho é rápido e eficaz, ou seja, críticos foi também capaz de explicar que mal vem ao mundo se uma
ao contrário do que acontece com pessoa fizer uma piada sem graça.
um texto (especialmente, um texto longo) um desenho tem um impacto
instantâneo. Quando o desenho é um cartoon, todas essas características 2. O cartoon não era imparcial. Ao contrário do que costuma acontecer
se intensificam. É mais difícil de fazer, mais difícil de interpretar, e o com os cartoons, este manifestava um ponto de vista, o bandido. O que a
choque que provoca é mais intenso. RTP transmitiu dias depois, no mesmo espaço, curiosamente, também.
O grande cartoonista colombiano Ricardo Rendón propôs uma famosa Chamava-se “O Pedrinho”, e representava António Costa como Vito
definição: uma piada é um dardo revestido de mel. Como as melhores Corleone, apadrinhando Pedro Nuno Santos, que fazia as vezes de Michael
definições de humor, sublinha o seu carácter ambíguo. Por um lado, é um Corleone. E como é óbvio houve outro grupo de sábios, parecido com este
dardo; por outro, está revestido de mel. É, para usar outra formulação apenas no facto de se melindrar com desenhos, que achou que esse cartoon:
conhecida, uma transgressão benigna. Em alguns momentos da História,
no entanto, parece haver uma certa inclinação para a literalidade, que a) Não tinha graça.
tende a simplificar o que é complicado, e parte da definição é obliterada
ou esquecida. Este é, muito provavelmente, um desses momentos, b) Não era imparcial.
em que há uma clara tendência para entender a comédia como uma
agressão. É um dardo, apenas. Uma transgressão — sem mais. E das O tipo de gente que se deixa ofender gravemente por um desenho, seja
graves. Jorge de Burgos, o bibliotecário cego de “O Nome da Rosa”, porque ele toca num assunto que consideram sagrado, ou apenas porque
concordaria. De acordo com este entendimento, o riso é eticamente não compreendem certos aspectos evidentes do funcionamento da
suspeito. Agredir outro, seja ele quem for, é imoral — e agredi-lo linguagem humorística, apresenta um problema: é que, em princípio, não
conseguindo com isso provocar o riso é, além do mais, desprezível. Trata- adianta fazer-lhes um desenho. Ironicamente, essas pessoas parecem
se, muito simplesmente, de obter prazer com uma agressão. mesmo um desenho: o Calimero. b
Os cartoonistas são, por isso, e como é óbvio, particularmente pérfidos.
Quando alguém dispõe apenas de meia página e de um lápis para dizer Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia
qualquer coisa, é natural que recorra a algumas medidas drásticas para
se fazer ouvir. Essas medidas costumam incluir o exagero e a distorção —
e um objecto com essas características, se considerado literalmente, pode
dar origem a interpretações desastrosas. Além disso, como é costume
no humor, os cartoonistas não respeitam o velho adágio segundo o qual
“não se brinca com coisas sérias”. Pelo contrário, é quase só nas coisas
sérias que detêm o olhar.
Talvez por causa disso, há episódios bastante desagradáveis que se
sucedem. Esta semana aconteceu outra vez. Um número relativamente
vasto de pessoas voltou a ser barbaramente agredido por um desenho que
passou na RTP. O costume: curvas pérfidas e segmentos de recta malvados
perturbaram a paz de alguns inocentes. A estação pública está a emitir
um noticiário especial chamado “Diário de Campanha” que termina
com espaço intitulado “Cartoons da Campanha”. Não é propriamente a / RICARDO
coisa mais extraordinária do mundo, um jornal incluir um cartoon. E esse
cartoon transmitia a opinião do seu autor, o que também é relativamente
ARAÚJO
frequente. Esta opinião era sobre a entrada de Passos Coelho na PEREIRA

E 82
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Portugal a um consumidor final, de acordo com os Termos e Condições constantes no Passaporte de Serviço.
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