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Malaria cerebral e sindroma neurolégica pés-malaria Cerebral malaria and post-matarial neurologi- cal syndrome Maria do Rosario Sambo*, Augusta Borges**, Fernando Borges*** Resumo Das varias manifestagdes neurolégicas ¢ complicages da maliria, a mais comum e importante & a maliria cerebral (MC), devida ao Plasmodium falciparum. Faz-se uma abordagem da MC nas suas principais vertentes, alertando-se para a necessidade de se estabelecer uma definigao correcta da mesma. Tecem-se breves referencias 4 etiopatogénese, quadro clinico, diagnéstico, tratamento e prognéstico da MC. Faz-se referéncia 4 Sindroma Neurolégica Pés-maliria (SNPM), que define as perturbagdes neurolégicas que ocorrem apds a recuperagao da MC. Palavras chave: malaria cerebral, coma, Plasmodium falciparum, sindroma neurologica pés- maliria, quinino. Abstract The cerebral form of severe Plasmodium falciparum malaria is the commonnest and most important of the many neurological manifestations and complications of malaria. The purpose of this article is to review, in some detail, our knowledge of cerebral malaria. By definition, cerebral maleeia requires coma to persist for ac feast 30 minutes, after a generalized convulsion, to make the distinction from transient postictal coma (this doesn’t make sense as a definition ~ it only refers to cerebral malaria associated with convulsions). However, in clinical + Assistente Hospitalar de Newrotogia 1 Assistente Hospitalar de Medicina Interna 440” Assistente Hospitalar de Infecciologia Servico de Neurologia do Hospital de gas Moniz, Lisboa Departamento de Medicina da Muternidude Dr Alfredo du Costa, Lisboa Servico de Infecciologia do Hospital de Egas Monir, Litboa Reccbidl para publicagie «44.99 practice, any patient with asexual forms of P. falciparum in the peripheral blood and impaired consciousness, after exclusion of other aetiologies, should be urgently treated as “cerebral malaria”. Post-malarial neurological syndrome (PMNS), a self-limiting transient syndrome of median duration, can develop after severe falciparum malaria, PMNS has been strongly associated with mefloguine treatment, although this does not account for all cases, Key words: cerebral malaria, coma, Plasmodium falciparum, post-malacial neurological syndrome, quinine Introdugio ‘A makiria é uma das mais graves doengas infecciosas em todo o mundo, ado obstante os esforgos empreendidos ‘105 tiltimos anos para a redugao da morbimortalidade da doenga, A Organizagdo Mundial de Satide (OMS) estima em cer- cade 300 a 500 milhies de pessoas no mundo por ano, com makiria Embora a transmissdo da malria esteja timitada as dreas tropicais ¢ suberopicais, os paises industrializados e 20- ‘nas temperadas nao esti inteiramente livres do risco, pois, ainda que raramente, a maléria pode ser adquirida em re no endémicas pela picada do mosquito infectado (esp cie Anopheles) transportado a bordo de avides provenien- tes de dreas endémicas, por via congénita (mae infectada) ou por transfusdes de sangue. H4 ainda casos isolados de pequenas surtos em que o individuo infectado (prove ente de areas endémicas) funciona como reservat6rio da infecedo, que pode ser transmitida a outro por picada de tum mosquito vector-local! A makiria é frequentemente subdiagnosticada pelos nicos dos paises industrializados, ndo s6 pela experiéncia Timitada com a doenga mas também pelo grande leque € inespecificidade dos sintomas! E curioso notar que, em sireas endémicas. uma febre de qualquer origem é rotineiramente tratada como maliria, a0 ccontririo do que ocorre nos paises nio endémicos, em que ‘malaria é uma doenga rara e com alta probabilidade de ser subdiagnosticadat 0 Plasmodium falciparum & 0 mais virulento das 4 e pécies fumanas de plasmédios que causam ma do associado a complicagées potencialmente fatais desta doenca. A agravar este facto muito contribui a sua maior resisténcia aos fairmacos antipalidicos cis A malria cerebral (MC) € uma das complicagdes mais severas da malaria falciparum, especialmente comum en- tre as criangas, atingindo uma taxa de mortalidade de 10 a 40 5% ndo obstante a terapéutica (Dumas et al, 1986; Mo- lynex eta, 1989). Medicina Interna 170 Vol. 7, N. 3, 2000 Malaria Cerebral Definigao De acordo com a OMS, a MC define-se, estritamente, como coma no despertivel que permanega durante pelo ‘menos 30 minutos, excluindo-se 0 estado pos-critico (para 0 distinguir do coma pés-ictal transit6rio), perante con! magio de infeccao por Plasmodium falciparum e nao atri- bufvel a qualquer outra causa®*, Contudo, do ponto de vista prético, qualquer doente com makiria falciparum & com perturbagio do estado de consciéncia deve ser trata- do como MC™ Patogénese Nao obstante a evidéncia patolégica de citoaderéncia em cérebros de doentes falecidos com MC, os mecanis- ‘mos patogénicos responsiiveis pela MC ainda sio de: mhecidos** Uma abordagem atraente para a compreensio dos meca- nismos fisiopatoldgicos € 0 estudo dos defeitos dos e trocitos conhecidos como protectores contra a maliria s vera’. A resisténcia inata € diferente para as diversas es ies de plasmédios, podendo impedir a invasiio dos e trocitos pelo parasita ou controlar a qualidade e a quanti- dade da resposta imune especifica e nao especifica. S20 exemplos os individuos heterozigéticos com ae B-talassé- mia e com o trago de drepanocitose (Hb AS) que contraiem malaria falciparum com menor gravidade e mortalidade da doenga, Por exemplo, em criancas com Hb AS a protecgao contra a MC é superior a 90% mas 0 efeito sobre o grau de parasitemia é menos marcado*. Foram descritos casos de individuos com défice de glu- cose-6-fosfato-desidrogenase e protecgao contra a mali- ria, bem como situagdes de ovalocitose cursando com pa: rasitémias mais baixas Recentemente. também foi descrita a associagio entre 0 ‘grupo sanguineo 0 ¢ uma significativa resistencia & MC comparativamente aos grupos sanguineos A ou B. Contu- do, apesar destes mecanismos poderem ter alguma impor- Lncia na resisténcia & malaria, nao explicam completamen- te a auséncia de obstrugio microcirculatéria em individu- ‘os com eritrocitos aberrantes’ Os possiveis mecanismos para a MC contribuem, por um lado, para um efeito deletério na fungdo cerebral, com evidéncia anatomopatolégica minima de lesio tecidular e, por outro lado, permitem a répida reversibilidade com o tratamento, Contudo, cerca de 10a 12 % dos doentes que sobrevivem tém, aquando da alta hospitalar, anomalias neurolégicas. A obstrugdo microvascular que impede a troca de glucose e de oxigénio através dos capilares hipoglicemia, a acidose ldctica e a febre elevada contribu- em para as principais manifestagdes da MC, nomeadamen- te convulsdes € alteragZo do estado de consciéncia’, Nos doentes com MC, as citoquinas libertadas pelos leucéci- tos, células musculares lisas, microglia e endotélio vase lar activam 0 enzima dxido nitrico sintetase, aumentando os niveis plasmédticos de éxido nitrico™*”*, Este, com 0 seu efeito vasodilatador, melhoraria potencialmente a fun- do cerebral, Todavia, atravessando a microcirculagio € penetrando no parénquima cerebral, pode funcionar como ‘um potente inibidor da neurotransmissio”. Na MC o coma nao € devido ao aumento da pressao intracraniana™, Anatomia Patoldgica De um modo geral, os cérebros de doentes falecidos com MC evidenciam um ligeiro edema e miiltiplas hemorragias petequiais disseminadas pela substincia branca, Nao habituais hemorragias na substincia cinzenta, bem como grandes hemorragias ou enfartes, e niio existe evidéncia de herniagdo tentorial ou no forame magno. Quase toxios 08 capilares e vénulas encontram-se obstruidos por eritr- citos que contém formas maduras do parasita, Apesar da muito menor vascularizagao da substancia branca em rela do a cinzenta, este sequestro é mais evidente na substin- cia branca, Observa-se uma grande quantidade de pigmento intra e extra-eritrocitsrio, Na substincia branca, encontram- se aglomerados de células gliais rodeando focos hemorré gicos (granulomas de Durck), onde os vasos aparentam ter sido ocluidos por uma massa de células parasitadas com posterior rotura?. Ultra-estruturalmente, observam-se conglomerados de eritrécitos, estando os infectados aderentes & superficie do endotélio vascular através de ligagdes que se efectuam por saliéncias superficiais em forma de botdes. Ocasional- mente, encontram-se faixas de fibrina e é muito evidente auséncia de plaquetas ¢ de agregagdo leucocitiria, nao havendo portanto evidéncia de trombos nem de vasculi- te’, Por imunofluorescéneia podem observar-se antigén ‘08 maliricos na membrana basal endotelial**, Contudo. des- conhece-se 0 significado deste achado (reflectiré patolo- gia in vivo ou um artefacto pés-mortem?). Em alguns ca- 0s, hd apenas escassos ou nenhuns parasitas nos vasos cerebrais. Isto acontece quando a morte ocorreu virios dias apés o desaparecimento do parasita’ Quadro elinico ‘As manifestagdes clinicas da maldria dependem do esta- do imunitirio prévio do hospedeiro®. A maioria dos auto- res € undnime em afirmar que a maléria por Plasmodium falciparum é uma doenga marcadamente diferente quando se trata da populacio ndo imune e semi-imune, Em éreas de transmissio intensa de Plasmodium falciparum & comum 4 parasitémia assintomatica em adultos e a maliria severa aramente ocorre neste grupo etério, predominando nas _grdvidas e nos primeiros anos de vida (6 meses aos 3 anos), tornando-se progressivamente menos frequente com 0 au- Medicina Interna Vol. 7, N. 3, 2000 im mento da idade™. Na MC, emt doentes semi-imunes, 0 coma pode instalar- se de modo sibito, muitas vezes apés uma convulsio generalizada, Mais frequentemente surge de forma gradual, Precedido de sonoléncia, confusio, desorientagio, delirio ‘ov agitagdo. A hist6ria prodrémica é, geralmente, de varios, dias nos adultos, mas nas criangas pode ser de apenas 6 a 12 horas. E comum 0 relato de convulsdes™ A observacio geral 0 doente esti febril, taquicérdico, com boa perfusao periférica, hipotenso e nao despertivel. A hiperventilagdo mantida é um sinal de mau prognéstico, © pode ser devida a acidose metabélica, pneumonia ou edema pulmonar. Pode existir anemia que, em alguns ea- S08, sobretudo em criangas, é severa. A icterfcia, comum, nos adultos, & relativamente sara em criangas. A presenga de didtese hemorrigica € pouco habitual (inferior a 5%) e & tambéer um sinal de mau prognéstico. De um modo geral existe hepatomegalia e esplenomegalia ¢ nao hi adenome- galias nem rash cutaneo™. No exame neurol6gico predominam os sinais de encefa- lopatia simétrica, podendo ou nao estar presentes os se- guintes**: convulsdes generalizadas ou, por vezes, fo- cais. As crises convulsivas generalizadas repetidas asso- ciam-se 2 sequelas neurolégicas residuais; posturas de descorticagdo (flexdo dos bragos ¢ extensio das pernas) ‘ou, mais frequentemente, de descerebracdio (extensio dos, bragos e das pernas) ou ainda opistétonos: olhar geral- ‘mente normal ou divergente mas sem evidéncia de paresia dos miisculos extraoculares; pupilas habitualmente de ta manho médio e isorreactivas; papiledema muito raro, mani- festando-se em menos de 1% dos casos. Em 15% dos sos porlem observar-se hemorragias retinianas em chama de vela, por vezes com um centro palido, assemelhando-se asmanchas dé Roth, raramente afectando a mécula; aboli- Gio dos reflexos corneanos, que é um sinal de may prog- néstico: reflexos osteotendinosos. gue podem ser vivos ou fracos: os reflexos cutdago-abdominais estdo invaria velmente ausentes e as respostas plantares so extenso- ras ert aproximadamente metade dos doentes; t6nus nor- mal, aumentado ou diminufdo; alteragdes dos nervos era- niianos, bem como os sinais focais, incluindo as hemiplegi as", sio raras. Existe relato de um caso de MC com uma lestio isolada na protuberdncia", discutindo-se a possibi lidade de se tratar de mielindlise péntica. Auséncia de sinais de irritacao meningea. OLLCR € habitualmente normal, Contudo, nao é rara a hiperproteinorriquia podendo atingir os 200 mg/dl. Pode haver uma pleocitose muito discreta até 10 células/ml atin gindo ocasionalmente as 50, mas sempre linfocitos. A con- centragao do lactato eleva-se proporcionalmente com a. severidade da doenga € muitas vezes existe uma ligeira hipoglicosraquia em relagdo & glicémia. Quando se efectu- am punges lombares. em aproximadamente 80% das cri- ‘angas com MC registam-se pressdes moderadaimente ele- vadas, enquanto que nos adultos 80% das pressdes sio ormais® A TC-CE nio evidencia alteragdes*. Na literatura pes- uisada no encontrémos alusio a estudos por RMN, €x- Cepto num caso pontual"! Sindroma neurolégica pés-malaria (SNPM) Em alguns casos, apas um episédio de MC severa, fo- ram descritas virias perturbagdes neurol6gicas classifica- das como SNPM traduzindo anomalias autolimitadas do sistema nervoso que ocorrem num perfodo de dois meses aps recuperacio da MC™™3, As virias manifestagdes esttio bem documentadas durante ou ap6s 0 desapareci- mento da parasitémia e, em casos de ataxia cerebelosa, foram propostos mecanismos imunolégicos. A SNPM nunca foi previamente descrita como uma entidade distinta e ain da no foi dada uma definigio para 0 seu diagndstico. Levantam-se mesmo muitas dlividas sobre a sta existén- cia como uma entidade clinica distinta. A relagao entre 0 Uratamento com mefloquina e o desenvolvimento da SNPM, sugere uma forte implicagao etiolégica desta na maior par- te dos casos"#, Se houver outros firmacos disponiveis, no deverd usar-se mefloquina apés 9 cratamento de mali- ria grave como referido Srmaco. Na literatura revista a maior parte dos estudos foram efectuados em criangas!*, Nestes estudos 0 follow-up variou entre I e 6 meses € entre 9 a 27 meses apés a alta hospitalar. Ambos constataram a relagio entre a duraga0 do coma e a ocorréncia de sequelas, designadamente ce- gucira cortical, reversivel na maioria dos casos, ataxia e hemiplegia Apés a MC, emt aproximadamente 3% dos adultos e em 10% das criangas hd um défice neurol6gico persistente. O coma profundo e protongado, a anemia, a hipoglicemia e as convulsdes prolongadas em criangas associam-se mais frequentemente a sequelas neuroldgicas, consideradas raras por muitos autores, contrariando factos de observago em regides endémicas™. Em cerca de 60% dos casos hi hemiparesia com um he- midéfice sensitivo varidvel e, por vezes. hemianopsia? Podem ocorrer cegueira cortical, lesio cortical difusa, tre- mor e, ocasionalmente, lesdes dos nervos cranianos: Estu- dos efectuados seis meses apds a MC evidenciaram recu- peragdo completa do défice neurolégico em 50% dos ca- 0s, parcial em 25% e auséncia de recuperagdo nos restan- test Em casos raros, geralmente | a2 dias apés a recuperagao do estado de consciéncia, 0s doentes podem entrar de novo em coma. Nestas situagdes, pode haver hiperprotei- norraquia até 200 a 300 mg/l pleocitose linfocitéria. Apés arecuperagio poderd existir um défice neuroldgico residu- al. Podem ocorrer outros tipos de complicagdes. designa- damente psicose, encefalapatia, tremor e disfungao cere- Medicina Interna 172 Vol. 7, N.8, 2000 belosa’, A SNPM também pode verificar-se aps maliria nao com- plicada, diminuindo assim o mimero de casos previamente atribuidos & neurotoxicidade da mefloquina®"", Sao au- tolimitados, resolvendo alguns dias depois ou, por vezes, em | a2 semanas. A sindroma de ataxia cerebelosa, que ocorre 2 a 3 semanas apés um episédio de maléria nio complicada, parece ser relativamente comum no Sri Lanka, sendo também autolimitada, com recuperagdo em escas- sas semanas? Diagnéstico diferencial A historia geogréfica ¢ fundamental, devendo estar sem- pre inclufda na anamnese do doente. O diagnéstico dife- rencial & muitas vezes dificil de realizar, por mdltiplas ra- zes, salientando-se entre outras*: auséncia de clinica su- gestiva de maléria associagdo da maléria com outras do- engas. E importante excluir outr ‘mente a meningite bacteriana € a encefalite viral. Em zonas endémicas, a presenga de parasitémia pode ndo ser a causa da doenga, uma vez que a parasitémia assintomética € frequente!#4, As formas mais graves de ‘maldria cursam muitas vezes com gota espessa negativa, devido a variagao cfclica da parasitémia no sangue perifé- ricoM'*, o que implica a necessidade de se efectuarem pk quisas seriadas (de 12.em 12 horas, durante pelo menos 48 horas). Em caso de diivida deve-se tratar 0 doente como portador de malaria’ de coma, nomeada- Diagnéstico parasitolé; Esfregaco do sangue periférico E mais sensfvel para a identificagdo da espécie. Pode ser negativo se a parasitémia for baixa. Gora espessa A gota espessa é mais eficaz do que o esfregago de san- ‘ue na detecgao de uma baixa parasitémia’*, Muitos doen- tes com MC tém hiperparasitémia. Hé uma correlagdo entre a densidade da parasitémia e a severidade da doenga, nao sendo todavia verdade 0 inverso, particularmente em indi- iduos no imunes™. Outros exames s testes serolégicos tém interesse limitado no diag- nstico da maléria aguda. Testes mais recentes de imuno- diagndstico (imunocromatogréficos) para a deteccao qua- litativa do antigénio do Plasmodium falciparum (HRP-2) tém demonstrado utilidade no diagnéstico répido da malé- ria, com uma sensibilidade muito semelhante a dos exames microsc6picos, permitindo a deteccao precoce de parasi- témias baixas (10% parasitas/ml de sangue). Nos doentes com MC, para além da monitorizagao dos niveis de parasitémia (2 vezes por dia), devem ser vigiados (8 seguintes pardmetros laboratoriais: hemoglobina, he matécrito, coagulagao, dcido léctico, desidrogenase Lict ca, ureia, creatinina, aminotransferases, gasimetria e he- moculturas, se houver suspeita de septicemia associada*** ‘Tratamento ‘A abordagem terapéutica da MC deve ser equacionada de acordo com o envolvimento organico eo grau de di fungio metabélica. O doente com MC pode manifestar, entre outras, as seguintes perturbagdes: hipoglicemia, con- vulsdes, anemia grave, insuficiéncia renal aguda (IRA), ictericia, edema pulmonar, choque, acidose léctica e inte ‘Ges bacterianas (mais frequentemente por salmonela)?™ A base do tratamento assenta essencialmente nas se- guintes medidas gerais*s |. controlo da hidratagdo, por forma a evitar a desidrata- do que conduz. a hipovolemia, hipotensao e choque, po- dendo evoluir para IRA. 2. tratamento da IRA, devendo ser ponderada a necessi dade de dislise ou hemofiltragao. 3. correcgio da hipoglicemia com solutos glicosados aS ou 10%. 4. controlo das convulsdes, com benzodiazepinas por via intravenosa. 5. comreccdo da anemia, com transfusdo de concentrado de eritrécitos, se © hematécrito for menor do que 20%: perante coagulagio intravascular disseminada, adminis trar plasma fresco e crioprecipitados. Tratamento das infecgdes bacterianas Utiizando antibiéticos de amplo espectro de act quanto nio se obtiverem os resultados laboratoriais (he- moculturas com TSA) € no caso de haver agravamento inexplicével do quadro clinio. ‘Tratamento especifico da MC (Firmacos anti-maléri- os) Cloroquina, Infelizmente poucas so as areas onde 0 Plasmodium falciparum & cloroquino-senstvel, Nestas, a cloroquina pode ser administrada por via IM (2.5 mg base/ Kg / dose 6/6 horas) ou em perfusio lenta (10 mg base/Kg durante 8 horas e posteriormente 15 mg base/Kg de 24/24 horas, num total de 5 mg base/Kg)***" Alcaldides da cinchona (quinino e quinidina) Quinino. E 0 férmaco de escolha no tratamento da MC cloroquino-resistente, Deve ser prescrito em perfusio len- ta de solugio glicosada administrada durante quatro ho- ras, sendo a dose de impregnagio de 20 mg/kg seguida da dose de manutengio de 10 mg/kg de 8/8 h até a recupera- «0 da consciéncia, Posteriormente, o quinino devera ser dministrado pela Via oral de 8/8 horas até um total de 7 a 10 dias**™®_ Apesar de alguma controvérsia, um estudo efectuado na Repiiblica dos Camardes demonstrou que a dose de impregnagio do quinino encurtava a durago do Medicina Interna Vol.7..N. 3, 2000 173, ‘coma na MC de 13 para 7 horas", Os efeitos colaterais mais frequentes incluem o cinchonismo (néuseas, disforia, surdez tinitos), que desaparece com o fim do tratamento, cefaleias, alteragdes visuais (que podem ser permanentes) e hipoglicemia. Menos frequentemente, pode causar alte rages da condugdo cardiaca (taquicardia sinusal, bloqueio auriculo-ventricular, prolongamento do intervalo QT e do complexo QRS) ou morte stibita (se sobredosagem ou 6- lus intravenoso). febre biliosa hemoglobintrica e IRA. Pe- rante IRA deve-se dosear a quiningmia e acertar a dose de acordo com a clearance da creatinina. Nos doentes em didlise deve-se manter, nas primeiras 48 horas, a dose inici- al do quinino e, posteriormente, reduzir para metade a dose de manutengao™™. Associacdes. Usam-se apés a recuperagio da conscién- ciae sio varias: quinino com tetraciclinas (¢ mg/kg de 6/6 horas), quinino com clindamicina (10 mg/kg de 8/8 horas) ou corn doxiciclina (3mg/kg/dia, em toma tinica) durante 3 a7 dias. Qinghaosu - (artemisinina) Ainda no dispor Portugal. Derivados do ginghaosu (artemisinina):**"#19% Artesunato ~ ampolas de 60 mg: administrado por via IM ou IV dilufdo em 0,6ml de bicarbonato de sédio a 5% (2,4 mg/kg inicial, seguido de 1,2 mg/kg 12 e 24 horas de- pois: posteriormente, 1.2 mg/kg /dia /3 a 5 dias). Artemeter —ampolas de 80 mg. Dose inicial de 3,2 mg/kg, apenas por via IM, seguida de 1,6 mg/kg/dia/ 3 a 5 dias, Com este fiarmaco esta descrito um aumento do perfodo de coma na MC, para além de nao reduzir significativamente a morbilidade comparativamente ao quinino. Outros tratamentos ‘Tém sido experimentados outros tratamentos cujos b neficios ndo esto ainda bem documentados. Sio exem- plos a exsanguinotransfusio (se a parasitémia for superior a 15% ou entre 5 e 15% associada a outras manifestagdes de mau progndstico)**, a plasmaférese e quelantes do ferro (desferroxamina)***”™, Segundo um estudo efectua- doem 83 criangas zambianas com MC®, a terapéutica com sem quelantes do ferro combinada com o quinino pode acelerar a clearence da parasitémia, com recuperagao mais répida docoma, Esté comprovado 0 efeito delet Mc". Prognéstico Enumeram.-se seguidamente os indicadores de mau prog- néstico ( Warrell et al., 1982)-"; alteragées elinicas: coma prolongado e profundo; er ses convulsivas repetidas (superior a 3 em 24 horas): sin- droma de ificuldade respirat6ria; hemorragia macige;cho- que: alteragdes bioquimicas: insuficiéncia renal (creatinina sérica superior a 3 mg/dl); acidose (bicarbonato plasmati- co inferior a 15 mmol/l); ictericia (bilirrubina sérica total superior a 2,5 mg/dl); hiperlactatémia (lactato venoso su: periora 45 mg/dl); hipoglicémia (glicémia inferior a 40 mgy dl); niveis elevados de aminotransterases (valor 3 vezes superior ao normal). alteragaes hematolégicas: parasitémia superior a 500 000 parasitas‘mm ou a 10 000 trofozoitos e esquizontes/mm"; mais do que 5% de neutréfilos contendo pigmento malatico. dos corticdides na Conclusées Realga-se a necessidade de se efectuar, o mais precoce- mente possivel, o diagnéstico de MC. A grande diversids- de de sintomas pode fazer com que a doenga seja subdiag- nosticada, sobretudo mas areas ndo endémicas. A malaria cloroquino-resistente continua a sera preocu- pagdo dominante. O quinino & 0 farmaco de eleigao dispo- nivel em Portugal para o tratamento da MC. E importante tratar as alteragées relacionadas com o atin- gimento dos varios érgios € detectar precocemente os indicadores de mau progndstico. A SNPM inctai varias perturbagdes neuroldgicas e surge geralmente apés um episédio de MC. Bibliografia tlio P, Catan J. Win D. Malaria, the submerged disease. JAMA 1996: 275: 230.233 White N-J. Malaria. in: Manson's Tropical Diseases, 18" Edition Baillgre Tindall, 1984; 39-71 ‘World Health Organization, Severe and complicated malaria. 2 nth feds. Trans RS Tropical Med Hygiene 1986: 80 (suppl 21-65 4. David J. Wiler Plasmodium species (Malaria) in: Gerald L. Mandel MD. Principles and Practice of Infectious Diseases, a Willey Medical Publication, 1985:1514-1522, 5. 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