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MM Vieira 2005 Com Páginas Assinaladas - Escola Do Trabalho
MM Vieira 2005 Com Páginas Assinaladas - Escola Do Trabalho
• da pág. 524 – A escola contra o trabalho até à pág. 528, final do primeiro parágrafo;
• da pág. 536 – O Trabalho Escolar até à pág. 540, final da primeira frase;
• da pág. 541 – Exercer o ofício de aluno – entre o trabalho e o lazer? até ao final do texto.
Vai encontrar marcações para cada uma destas partes nas margens do texto.
Ora, nesta aparente disputa pela tutela das crianças e dos jovens, a escola
portuguesa perdeu durante longas décadas.
Na verdade, os sucessivos retratos do processo de escolarização da
população portuguesa ao longo do tempo apontam1, inequivocamente, para
uma situação de persistente afastamento da generalidade das crianças e dos
jovens face à escola. Como se sabe, só em meados da década de 50 do
século XX a maioria das crianças em idade escolar se encontra, efectivamen-
te, a frequentar a escola primária. E ela é tanto mais contrastante quanto a
imposição estatal de uma obrigatoriedade escolar no nosso país — na pri-
meira metade do século XIX — é, comparativamente, bem mais precoce do
que noutros países europeus.
Para alguns autores, tal situação é fortemente tributária da acção do
Estado — ou das elites políticas que sucessivamente o protagonizaram —,
que não terá criado as condições necessárias — disponibilização de meios,
recursos físicos e humanos — para levar à prática o desígnio da generali-
zação escolar. Adicionalmente, alguns invocam ainda resistências de natureza
ideológica a uma escolarização de massas2, em determinados momentos da
nossa história política, para justificarem os baixos índices de escolaridade
genericamente atingidos pela população portuguesa.
Pela nossa parte, interessa-nos centrar o debate sobre a construção da
modernidade escolar no questionamento da aparente antinomia entre trabalho
e escola — e, com ele, envolver os próprios sujeitos a quem se destina a acção
escolar.
Dizíamos atrás que, na disputa pela tutela das crianças, o sistema escolar
português foi durante largas décadas ultrapassado. Do outro lado situavam-
-se as famílias e, sobretudo, o trabalho que as crianças e os jovens desem-
penhavam no seio doméstico. Numa sociedade que se manteve profunda-
mente agrária até muito tardiamente3, com uma maioria da população
1
Para só citar alguns autores, v. Candeias (2001), Grácio (1986), Ramos (1988), Sebastião
(1998) e Serrão (1981).
2
Tal constitui, nomeadamente, o argumento das análises de Maria Filomena Mónica
(1975) e de Rogério Fernandes (1981) sobre o processo de escolarização durante as primeiras
décadas do Estado Novo.
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É preciso, a este respeito, recordar que, ainda em 1960, o país contava com 43,6% da
sua população activa no sector primário. 521
Maria Manuel Vieira
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O facto de este fenómeno, transmutado recentemente em problema social, ter vindo
a ser, por isso mesmo, objecto de múltiplos confrontos públicos e de equívocos quanto ao
verdadeiro alcance que assume entre nós justificou uma clarificação técnica do conceito por
parte do Ministério da Educação, por forma a evitar manipulações numéricas decorrentes de
522 modalidades distintas de apuramento estatístico (www.min-edu.pt).
O lugar do trabalho escolar — entre o trabalho e o lazer?
5
As regiões abrangidas neste estudo foram o Vale do Ave, o Norte Interior, o Centro
Interior, a Grande Lisboa Sul, a Grande Lisboa Norte, o Baixo Alentejo e o Algarve. 523
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V., a este propósito, Barreto (2000), Grácio (2000), (INE, 2004), Machado e Costa
(1998) e Resende e Vieira (2003). O significativo salto geracional em matéria de escolarização
afere-se num estudo sobre diplomados do ensino secundário: mais de metade (55%) dos pais
dos diplomados do 12.º ano em 1995-1996 tinha, como habilitação máxima, quatro anos de
escolaridade (Pedro et al., 2001, p. 13). No ensino superior, e em 1997, essa habilitação é
detida por 45% dos pais dos estudantes (Vieira, 2001, p. 175).
7
De facto, se, em 1970, 30% da população empregada estava inserida no sector primário,
em 2001 essa percentagem reduzia-se a 5%. Simultaneamente, no mesmo período, os empregados
no sector terciário passaram de 39% para 60% do conjunto da população empregada (INE, 2004). 525
Maria Manuel Vieira
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Em 2001, a taxa líquida de escolarização no ensino secundário, ou seja, a percentagem
de alunos do grupo etário dos 15 aos 17 anos que se encontravam a frequentar o ensino
secundário, relativamente à população residente do mesmo grupo etário, ultrapassava já os
50% (53%) (Canavarro, 2004, p. 61).
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Referimo-nos neste texto, como se depreendeu já, à escola destinada à formação inicial
de crianças e jovens, e não a outras modalidades de escolarização/formação.
10
Tese mais deduzida do que verdadeiramente comprovada, como o trabalho de Lahire
(1995) vem demonstrar.
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A sociologia portuguesa já dispõe de um importante conjunto de informação pertinente
e reveladora a este respeito. Vários estudos monográficos (Pinto, 1998; Candeias, 2001;
Benavente et al., 1994; Abrantes, 2003; Seabra, 1999; Fonseca, 2001; Diogo, 2002; Silva,
1999) demonstram a expectativa positiva depositada pelos pais das classes populares na acção
da escola. Mesmo no caso extremo de agregados muito pobres, essa expectativa positiva não
526 deixa de existir (Ferreira e Guerra, 1998).
O lugar do trabalho escolar — entre o trabalho e o lazer?
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Para o caso inglês, em que os jovens podem iniciar alguns trabalhos a tempo parcial
aos 13 anos, v. Furlong e Cartmel (1997). Para uma perspectiva comparativa europeia, e em
particular para a situação da Holanda, Finlândia e, sobretudo, da Dinamarca, em que 41% dos
jovens entre os 15 e os 19 anos são estudantes trabalhadores, cf. Wolbers (2001). No que
se refere aos Estados Unidos da América, cf. McNeal (1997).
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Assim se explicariam as elevadas expectativas de permanência na escola, mesmo para
além do estritamente obrigatório (actualmente, o 9.º ano de escolaridade), por parte de muitos
adolescentes portugueses (cf., a título indicativo, Azevedo, 1992, Pais, 1998, Sebastião, 1996,
e Silva, 1999). 527
Maria Manuel Vieira
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Em Portugal, a definição etária de entrada na vida activa — e, portanto, no acesso
à identidade social de «trabalhador» ou «activo» — é actualmente coincidente com o limite
etário da escolaridade obrigatória — «até aos 15 anos no sistema educativo, caso não tenham
cumprido a escolaridade obrigatória antes» (Fialho, 2000, p. 56) —, o que não acontece
528 necessariamente noutros países.
O lugar do trabalho escolar — entre o trabalho e o lazer?
limites deste «potencial flagelo», remetendo para um futuro cada vez mais
distante a possibilidade legal de acesso à vida activa plena.
Por outro lado, a emergência deste «novo» problema social em Portugal
veio permitir uma convergência da condenação produzida a nível nacional
com as denúncias internacionais sobre a «intolerabilidade» do trabalho desen-
volvido por crianças — realizadas nomeadamente por diversas organizações
internacionais agindo em nome dos direitos das crianças (Manier, 2003;
Schlemmer, 2002) —, gerando-se as condições para uma amplificação da
condenação pública do mesmo. Legitimada pelos inúmeros relatórios, acções
públicas e denúncias produzidas por instituições a quem é reconhecida total
credibilidade — da ONU ao BIT, passando por diversas organizações não
governamentais —, a justeza dos julgamentos negativos do trabalho pratica-
do por menores em Portugal tem aí o seu mais eficaz efeito de prova.
A condenação absoluta do trabalho sai assim reafirmada de forma inequívo-
ca, sem questionamento.
Neste processo, num discurso reclamando uma legitimidade universal,
não raro se produzem generalizações questionáveis, confundindo-se trabalho
com exploração, menor com criança, dureza e frequência de trabalho muito
diversas. Assim é que, se a súbita «descoberta» do trabalho infantil em
Portugal, apresentado como vergonhosa prova do nosso suposto atraso no
contexto internacional, terá suscitado proporcional veemência de condenação
pública, independentemente do tipo de trabalho efectivamente exercido, a
verdade é que os diagnósticos aprofundados da sua situação revelam actual-
mente proporções bem mais residuais do que a crença faz supor e, quando
efectuado, não parece pôr maioritariamente em causa a frequência escolar.
Ou seja, não constitui trabalho realizado a tempo inteiro.
Mas não são só os discursos comuns, mais ou menos informados, que
geram uma condenação moral do trabalho no que às crianças diz respeito.
O próprio discurso científico pode conduzir a ambiguidades e simplificações
que facilitam a transformação desta questão em problema social.
Com efeito, a representação da escola que é feita pelo saber científico,
letrado, é fortemente escolocêntrica, já que dela justamente depende para se
formar e afirmar. Ao assumir como norma legítima e natural o padrão que é
o seu, algum discurso científico — mesmo o que se proclama crítico — e as
categorizações que produz (Resende, 1997) podem contribuir fortemente para
o processo de condenação ou exclusão — classificar implica hierarquizar —
de todos os que escapam aos seus argumentos. Nomeadamente, o argumento
da bondade exclusiva da escola para o desenvolvimento das crianças, que
justificaria a sua imposição universal.
Com efeito, a consolidação do conceito científico de «desenvolvimento»
— herdado da psicologia — passou a justificar, quer a legitimidade dessa
condição (Singly, 2000 e 2004a), quer a amplificação sucessiva, para idades 529
Maria Manuel Vieira
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Como acontece claramente na representação do trabalho subjacente ao discurso desta
mãe camponesa referindo-se à filha menor, captado por Graça Alves Pinto (1998): «A… foi
criada na miséria como eu, mas não está para trabalhar nas terras, quem a vir parece uma
professora, nunca anda suja… não presta para trabalhar, só está habituada à boa vida!»
(p. 84, itálico nosso). 531
Maria Manuel Vieira
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Como se lê em Fialho (2000, p. 108): «Confrontando as respostas dos menores e dos
responsáveis no sector agrícola, constata-se que apenas cerca de metade dos menores que
declaram exercer aí actividades económicas assim são considerados pelos responsáveis. Nos
restantes casos, ou os adultos consideram o trabalho económico declarado pelo menor uma
simples forma de ajuda doméstica ou o ignoram.»
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Como nos indica Sabine Erbès-Seguin (2004), «tal como a emergência da sociologia
traduziu uma reflexão sobre a transformação das relações sociais no século XIX, o nascimento
da sociologia do trabalho associa-se à generalização de um salariato que se manteve, inicial-
532 mente, minoritário» (p. 10).
O lugar do trabalho escolar — entre o trabalho e o lazer?
O TRABALHO ESCOLAR
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Esta é a perspectiva de Manuel Sarmento, que defende, como uma das condições para
a aceitabilidade do desempenho do trabalho infantil, em paralelo com a escola, a avaliação
criteriosa do «tipo de actividade realizada e o modo como ela contribui para alimentar a
curiosidade intelectual […]» ou, ao invés, conduz à promoção de «atitudes psitacitas, a
alienação […]» (2000, p. 41, itálico nosso), deduzindo-se estas como inaceitáveis. Algumas
delas não deixam, contudo, de estar presentes no trabalho escolar. 539
Maria Manuel Vieira
se trabalha com outro fim senão a nota (Barrère, s. d.) e sem que daí se
retire qualquer satisfação.
Este desígnio nem sempre está ao alcance económico de muitos pais, o que
compromete essas práticas — levando a processos de exclusão social de
certos grupos e sociabilidades — e simultaneamente denuncia — de forma
humilhante, para muitos jovens — os reais constrangimentos familiares.
Assim, pode colocar-se como hipótese que no quadro de sociedades de
modernidade tardia, como a portuguesa, em que os fortes contrastes entre
uma recente escolaridade generalizada e relativamente longa entre os jovens
e a existência de persistentes constrangimentos económicos entre muitos dos
agregados familiares de proveniência colocam problemas específicos à expe-
riência da condição juvenil, seja justamente a frequência da escola — como
espaço quotidiano de proximidade e comparação entre jovens, promotor de
aprendizagens sociais que extravasam em muito o estrito domínio da «pro-
dução» escolar — a induzir à entrada no mercado de trabalho muitos daque-
les que se vêem desapossados dos meios de consumo juvenis (Costa, 2000;
Ferrão et al., 2000; Pinto, 1998). Neste caso, e ao contrário do sentido de
subordinação ao colectivo outrora associado ao trabalho de menores — como
contributo para o orçamento familiar —, o trabalho remunerado desempe-
nhado por jovens não estudantes corresponderia a um desígnio puramente
autónomo de autofinanciamento da sua «condição juvenil» e dos consumos
a ela associados — ganhar dinheiro para si. A passagem pela escola seria,
neste caso, decisiva para a consolidação do processo de «individualização»
(Singly, 2004) ou «subjectivação» (Dubet e Martuccelli, 1996) — subjacente
ao sentido agora atribuído à entrada no mercado de trabalho.
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