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Diretrizes e recomendacbes para a formulagao de projetos pedagdgicos dos CIACs* José Mario Pires Azanha Todos dizem que a auténtica modernizacdo da escola fundamental brasileira consiste, basicamente, na criagdo de condigdes humanas e materiais para que o ensino seja ministrado em niveis adequados com a promogao social desejada da crianga. Contudo, a trivialidade dessa constatagZo tem con- duzido muitos a sugerir solugdes também triviais, ou melhor, simplistas. £ indiscutivel que € preciso remu- nerar melhor os professores, reformar os prédios esco- lares existentes e construir outros. Mas € muito discuti- vel que essas providéncias sejam suficientes para uma mudanga significativa no quadro atual da educagao bra- sileira de 12 grau. + Este texto foi preparado, em 1991, por solicitago do ministro da Educagao José Goldemberg, com 0 objetivo de estabelecer diretri- zes para 0 “projeto” dos Centros Integrados de Assisténcia 4 Criani (CIACS). A idéia desses centros, anterior & administragio Goldemberg, consistia basicamente numa promessa de instalagio de milhares de instituigoes escolares voltadas para a educacdo integral da crianca Nada mais. A solicitagao deste dexto consistiu num esforco do minis- tro Goldemberg em estabelecer coordenadas para algo que seria 0 principal. projeto arquitetdnico. O ministro. aprovou essas diretrizes pela Portaria n® 2.134, em 13 dezembro de 1991. 88 educagto: temas polémicos Accrise da educagao fundamental no Brasil ndo mais se resolvera por sugestées de medidas parciais que atinjam apenas aspectos dessa crise, por mais impor- tantes que sejam, como € 0 caso dos salarios aviltados ou dos altos indices de repeténcia e evasao. E preciso avangar um pouco mais na andlise e reconhecer que falhamos em algo mais profundo, isto é, na criagao de uma instituicdo educativa que seja efetivamente popu- lar na sua abrangéncia e democratica na sua organiza- cio e funcionamento. A atual escola brasileira de 1° grau j4 esgotou suas possibilidades educativas com o movimento expansio- nista de matricula das duas dltimas décadas. Tentou-se democratizar a educagao fundamental generalizando um modelo de escola que havia se mostrado titil a uma minoria social ou culturalmente privilegiada, j4 cons- ciente da importancia da educagao. Sem diivida que, a0 generalizar 0 modelo de escola que tinhamos, alguns resultados foram alcangados, mas, de outra parte, 0 mo- delo perdeu sua eficdcia ao alcangar camadas popula- cionais que nem mesmo valorizavam a educagio e, assim, a escola nao foi capaz de responder a exigéncias sociais € culturais emergentes. Ha décadas essa situagdo vem se agravando. Por isso, a crise se instalou. Hoje, essa crise alcanga no apenas os protagonis- tas da vida escolar mas toda a sociedade, perplexa e até mesmo assustada pelo fato de que a sua propria sobre- vivéncia est4 em risco, pois a instituig30 escolar publica de ensino fundamental ja nao é capaz nem mesmo de assegurar, com um minimo de eficiéncia, 0 ensino da lingua da unidade nacional. Este € 0 quadro dificil, ¢ até dramitico, da situagio educacional que temos de enfrentar. E para esse desa- fio nao ha nenhuma formula magica e salvadora. £ pre- ciso que se inicie um amplo esforgo de mobilizaga social. Os CIACs sio um esforco nesse sentido. Diretrizes e recomendagdes para os CIACs 8D Antes, porém, de examinar as possibilidades de acdo com que se pode contar, é necessario chamar a atengdo para um ponto muito importante sem cujo reco- nhecimento qualquer acao estar destinada a0 malogro. Trata-se do seguinte: a crise do sistema escolar brasile’ ro, pelos niveis que alcangou, nao € apenas uma ques- do técnica a exigir apenas solugdes técnicas. A crise escolar brasil bretudo, um problema politico- institucional. A visibilidade do carter politico da situa~ do se revela principalmente por dois fatos que muito contribuiram para a gestacio hist6rica da crise atual O primeiro desses fatos esta na tradicao de ausén- cia do governo central em matéria de ensino funda- mental que, desde o Ato Adicional de 1834, foi deixado 4s mios dos governos locais. Talvez, na ocasiao, ha mais de século e meio, essa fosse uma decisdo aconse- Ihavel, tendo-se em vista as dimensdes continentais do pais e as dificuldades de comunicagao. Mas a auséncia do governo central no assunto do ensino fundamental nunca foi uma concessio de autonomia de gestao as autoridades locais. Tratava-se de simples omissao de uma elite dirigente, obscurantista e escravista, e por isso mesmo desinteressada da educagao popular na nagdo que surgia. Esse desinteresse veio até os dias de hoje. Atualmente, mesmo o repasse obrigatorio de recursos para Estados e municipios ainda é, lamenta velmente, nio o fim da omissao, mas uma grande opor- tunidade para atendimento de clientelas eleitorais. © outro fato revelador do carater politico-institu- cional da crise escolar brasileira esta na situagao social do Brasil contemporaneo, conturbada, dentre outros fatores, pelo intenso movimento migrat6rio de grandes contingentes populacionais 4 busca de melhores con- digdes de vida e, também, pelo fendmeno correlato da explosio urbana. Nessas condicées, a escola fundamen- Educaséo: emas polémicos tal tera forgosamente de desempenhar, de modo cres- cente, fungées de socializac4o primaria e até mesmo de aculturagdo em face da situagao das familias mi- grantes, erradicadas de suas tradi¢des locais, sufocadas por jornadas extenuantes de trabalho ¢ inapetentes do ponto de vista escolar. Em face da gravidade desse quadro, a crise escolar brasileira exibe contornos nitidos de problema politi- co-institucional, a exigir de modo premente o esforco conjunto de todas as esferas responsaveis pela educa- cao do pais. A proposta dos CIACs, rompendo uma tradicdo de omissio da Unido em matéria de ensino fundamental, € um gesto de contribuigao para esse esforco necessario e inadiavel. Porém, trata-se, sobretudo, de um ato de po- litica educacional e no de simples propostas pedag gicas. Estas virao como um complemento indispensavel e deverao refletir a competéncia e a imaginacao das administragdes de ensino e dos grupos de educadores que, em todas as regides do pais, tém como dever e co- mo escolha a reflexdo sobre a educag4o nacional. Nem poderia ser de outro modo, pois o governo federal nao pode substituir uma omissao secular em matéria de ensino fundamental pela imposi¢do autoritaria de um modelo Unico de reforma da escola. Por isso, 0 propésito essencial desse ato politico é a convocagao da inteligéncia, da experiéncia e do espirito ptblico de cada governo estadual, de cada prefeitura dos grandes municipios, de cada universida- de publica e, até mesmo, de outras instituigdes habili- tadas, para que formulem propostas ousadas de uma nova escola ptiblica de ensino fundamental, afinadas com a motivacao desse gesto fundador. A conjugacao desses esforcos devera mudar a face do ensino funda- mental no Brasil. Diretrizes e recomendaghes para os CIMCs__________91. A iniciativa dos CIACs é, pois, um ato inédito na edu- cago brasileira, embora nao tenha pretensdes de ori- ginalidade. Como atuacao politico-institucional situa- se na mesma linha - por sua motivacdo — de outras poucas anteriores, dentre as quais sobreleva a dos CIEPS Porém, todas essas iniciativas, inclusive a dos CIACs, sao aparentadas com o “entusiasmo pela educacao” de Anisio Teixeira, porque todas incorporam a sua idéia de que “a escola popular para uma sociedade subde- senvolvida ¢ com acentuada estratificagdo social, lon- ge de poder ser mais simples, faz-se a mais complexa € a mais dificil das escolas” Muitas vezes, economistas ¢ cientistas sociais e até educadores proclamaram que as questdes de educacao sio residuais e derivadas e que, nessas condi¢ées, somente teriam solucgéo no ambito de uma reordena- Go global da sociedade. Mas a historia contempora- nea jé demonstrou que essa idéia é falsa e que a au- séncia de educagao basica, numa sociedade com ace- lerado processo de urbanizacao, é devastadora de pos- sibilidades individuais e sociais de uma vida pessoal digna e, até mesmo, de uma sustentével reordenacao da economia. No entanto, no Brasil de hoje, a maior parte das escolas ptblicas de ensino fundamental, pela sua ineficiéncia, estio muito proximas do vazio educa- tivo e por isso quase equivalem a auséncia de educa- 40. A iniciativa dos CIAGs precisa iniciar a reversdo desse quadro injusto. Os CIACs foram concebidos pelo obstinado propé- sito de fundar centros de exceléncia de educacao popular que tenham um efeito irradiador de novos padrées educacionais. Na hist6ria da educa¢ao brasi- leira, em alguns momentos, j4 se instalaram centros de exceléncia de ensino colegial e superior, mas em ne- 92 ee Beducagizo: temas polémicos nhum momento houve algo semelhante em matéria de educag’o basica na amplitude nacional visada pelos CIACs. Por essa mesma razao, os CIACs nao serao sim- ples e facilmente generalizaveis. Centros de excelén- cia, em qualquer 4rea, nao se destinam 4 generaliza- ¢ao, 0 seu propésito €, sobretudo, o de oferecer para- digmas e indicar caminhos possiveis. Esta é a fisiono- mia que se quer para os CIACs. A rede de escolas ptiblicas comuns nao mais é su- ficiente que 0 governo apenas ofereca os indispens4- veis recursos materiais e humanos regulares, € preciso também mostrar os rumos da renovagao educacional Diretrizes gerais ¢ recomendagées para a formulacao de projetos pedagégicos dos CIACs Introdugao A implantagao de CIACs tem que ser pensada como oportunidade de busca de padrdes de exceléncia em matéria de educacdo popular. Ao governo federal cabe a criacdo dessas oportunidades e nao a proposigao aca- bada de modelos estritamente técnicos de ago peda- gogica. Nesses termos, a a¢do federal fara a indicagao de diregdes e nao de caminhos especificos. Estes deve- rao ser buscados por governos estaduais, municipais, universidades pablicas e também por outras entidades, pablicas ou privadas, que estejam tecnicamente habili- tadas e que desejem colaborar na reformulagao da escola publica de ensino fundamental. Os projetos pedagogicos dos CIACs deverao, por- tanto, ser amplamente diferenciados para que, como experiéncias pedagégicas, se afeicoem a variedade das condigées sociais, culturais e econdmicas da vida bra- Diretrizes e recomendagoes para os CIACs «93 sileira, Contudo, a multiplicidade e a incentivada dife- renciagdo de projetos pedagogicos nado eximem o go- verno central do estabelecimento de diretrizes gerais que assegurem a unidade de propésitos das iniciativas. Com essa preocupacao foram formuladas as pre- sentes diretrizes gerais para a elaboragio de projetos. Diretrizes gerais I- Uma escola popular autenticamente democrati- ca deve oferecer oportunidades educativas que s6 es- cassa e eventualmente existem fora do ambiente esco- lar para amplas camadas da populagao ‘A maioria quase absoluta das criangas brasileiras provém de familias cujas condigées existenciais sio ex- tremamente precdrias. A escola nao pode pretender cor- rigir essas deficiéncias mas também nao pode, sob pena de inocuidade do processo de ensino, desconhecer a realidade socio-econdmico-cultural das comunidades em. que atua. Para isso, € preciso que a escola amplie os seus objetivos e tente ir além das rotinas tradicionais de ensi- no, incorporando atividades (como a leitura, por exem- plo) que fora da escola, no seu proprio ambiente fami- liar, a crianca nao tera oportunidade de praticar. Como exemplo dessa necessiria ampliacao de ob- jetivos, pode-se referir o que j4 € consenso em grandes circulos de educadores sobre o essencial numa educa- a0 publica democratica: 1) aquisicdo de conhecimento organizado, 2) desenvolvimento de habilidades intelectuais e de aprendizagem e 3) compreensao ampla de idéias ¢ valores. 94 — Educagéo: temas polémicos As escolas ptiblicas de 12 grau, nas suas atuais con- digées de funcionamento, apenas precariamente po- dem tentar alcancar o primeiro desses objetivos. Essa deficiéncia escolar, quase sempre, € compensada pelo préprio ambiente familiar para as criangas de familias melhor situadas social e economicamente. Mas, para a grande maioria, € preciso que a aco escolar leve em conta essa auséncia de oportunidades ¢ se organize pa- ra crid-las Nessas condigdes, nenhuma proposta pedagégica de escola ptiblica que se pretenda democritica poder4 renunciar de antemao ao esforco de alcance dos obje- tivos 2 e 3. Mas, como condi¢ao de eficacia desse esforco, é indispensavel a ampliagao da jornada esco- lar, Sem essa ampliacao, o ensino de qualquer discipli- na fica mutilado nas suas possibilidades de desenvolvi- mento de habilidades intelectuais ¢ de habitos de tra- balho. Na situacdo atual, as escolas piiblicas enfrentam simultaneamente duas dificuldades: reduzida perma- néncia dos alunos e excessiva diversificac4o curricular. Por isso, a ampliaco da jornada escolar ~ que eli-~ minard a primeira dificuldade ~ ndo deve agravar a se- gunda. Convém que o curriculo do ensino fundamental seja simples para que possa efetivamente ser explorado na abrangéncia de suas oportunidades educativas. O importante é que, na ministragdo daquelas disciplinas que sao nucleares, 0 esforgo educativo vise a objetivos que usualmente sao descartados de plano na mera transmisséo de informagdes. Até mesmo o ensino de uma tnica disciplina, como € 0 da lingua portuguesa, por exemplo, pode oferecer oportunidades de alcance de todos os objetivos enumerados. Assim, também po- dera ocorrer com outros aspectos de uma proposta cur- ticular 20 mesmo tempo sObria no seu elenco discipli- nar e abrangente na sua preocupacao educativa. Nao se Diretrizes e recomendagdes para os CIACs _____ 95 trata de empobrecer o curriculo da escola fundamental, mas de evitar a mentira pedagégica atual em que nem mesmo ha professores habilitados para dar conta do amplo leque curricular oficialmente estabelecido. II- A modernizagdo da escola nao pode significar a sua descaracterizagao como instituigao ensinante. Os CIACs foram concebidos para um atendimento global da crianga. Nessas condig6es, sio uma institui- do que abrange outras dimensdes além da escolar. Mas, quanto a esta, € preciso nao descaracteriz4-la na sua fungdo principal que é a de ensinar. Nenhuma escola pode ser modernizada se nao tiver o ensino competentemente ministrado como sua preocupagio central e, conseqiientemente, a aprendi- zagem dos alunos como seu alvo principal. Isso signi- fica que 0 eixo de toda a organizagao escolar e do con- junto das atividades programadas tem de ser a relagio ensino-aprendizagem. Mas nao ha sobre essa relago ne- nhuma certeza estabelecida. Alias, a pedagogia tem muito poucas verdades num sentido cientifico do termo e, por isso mesmo, € campo fecundo para o florescimento de “novidades” salvado- ras. E preciso que as propostas educativas dos CIACs se resguardem de dar atengao excessiva a modismos que eventualmente poderao até mesmo produzir efeitos contrarios aos desejados. Intimeras pesquisas realiza- das nos Estados Unidos ja revelaram, por exemplo, que, no auge do progressivismo, a quase supressio da autoridade do professor (substituida pela autoridade dos proprios grupos de criangas) teve como resultado principal o desenvolvimento do conformismo ao invés da independéncia intelectual que se pretendia. Em face da inexisténcia de pedagogias cientifica- mente indiscutiveis ¢ assentadas, convém que as pro- 96 ducagtz: temas polémicos postas educativas dos CIACs acolham qualquer das inti- meras orientagdes pedagégicas possiveis, cujo limite sera apenas 0 do respeito humano e social 4 personali- dade em formagao da crianga Historicamente, a escola surgi para desempenhar fungées de integragao social e cultural que, pelo au- mento demografico e da complexidade social, nao mais podiam ser desempenhadas exclusivamente pela fami- lia e pela convivéncia social espontanea. Nas suas rai- zes, a escola €, pois, a institucionalizagao do necessario esforgo coletivo de transmissao cultural. A escola é, assim, uma instituigdo eminentemente ensinante e de atuagio limitada € temporaria. Por isso, ela nao pode deturpar-se nos seus objetivos institucio- nais € procurar assemelhar-se cada vez mais ao grupo de brinquedo e nem transformar-se num simples espa- co confinado de distragao e recreio. J Alain advertia que a sensatez educativa é compativel com as ameni- dades pedagdgicas desde que estas nao perturbem o que é fundamental na escola: ensinar e aprender. De outra parte, em face do carater temporario da vida escolar no conjunto da vida humana, é preciso que as escolas nao se proponham como uma alternati- va a vida mais ampla das criangas e nem mesmo como uma preparacao para a vida. E necessario que as esco- las se convengam de que a sua fungao é, como disse Hannah Arendt, “ensinar as criangas como o mundo é, no instrui-las na arte de viver” III ~ As propostas pedagogicas nao podem ser ela- boradas em abstrato, mas para atender a comunida- des concretas e especificas Esta diretriz €, na verdade, uma exig@ncia inarre- davel, pois uma das raizes da crise da escola brasileira est, justamente, na tentativa de expandir uma escola Diretrizes e recomendacées para os CIACS. IT que, em condigées sociais e culturais restritas, tinha dado bons resultados, mas que malogrou ao generali- zar-se para camadas da populacao nas quais nem mesmo a educag4o escolar tinha um valor social. Nessas condigdes, antes mesmo de se solicitar das co- munidades uma maior participacdo no esforgo educati- vo, € necessario que as propostas pedagégicas dos CIACs sejam amplas no sentido de integrarem agdes de satide, de alimentagao e de outros aspectos da vida das familias na comunidade, para atingir, assim, um novo e mais rico patamar de convivéncia humana. Para alcangar este objetivo, as propostas dos CIACs de- verao abrir-se também para um amplo aproveitamento de modernos recursos de comunicacao, particularmen- te da televisao. Cada proposta tera pois de levar em conta a situa- 40 sociocultural comunitaria de atuagao do CIAC. Isso ndo se discute. Mas o que é altamente discutivel é que essa preocupagao deva conduzir a uma expectativa irreal com relacao As possibilidades de participacao na elaboracdo de uma proposta pedagégica de pais e maes em condigdes, muitas vezes, subumanas de vida € trabalho. O democratico mote da “participacio popu- lar” tem levado, ocasionalmente, a glosas lirico-ideol6- gicas inconseqientes e demagégicas. A primeira con- dicdo de participagio comunitaria na educacao é a apreensao do valor social da educagao escolar. O tema da participagdo popular em niveis institu- cionais € central no esforco de construg’o de uma so- ciedade democritica. No Ambito da escola, ele nao po- de ser banalizado e confundir-se com a participacao em assembléias ocasionais e conselhos de escola, mui- tas vezes manipulados ou inoperantes. Assembléias de pais ¢ conselhos de escola so necessarios ¢ interessan- tes mas ndo devem esgotar o esforgo participativo. Por 98 Rdtucagtzo: temas polémicos isso, convém que, com relagdo aos mecanismos da par- ticipacdo da comunidade no esforco educativo, a ima- ginagao € a competéncia pedagégicas busquem formas consistentes e eficazes para instaurar uma integragao escola-comunidade que é rara na tradigao brasileira O problema nao pode, pois, ser simplificado e na sua solugao no se pode desconhecer 0 fato de que fa- milia € escola sao instituiges diferentes, com fungdes sociais diferentes na educagao da crianga. Além disso, a instituigZo escolar pressupde uma competéncia pro- fissional especializada de que apenas, eventualmente, 0s pais s40 possuidores. Nesse quadro, a desejavel integracdo escola-comu- nidade nao pode ser confundida com o apagamento de limites entre 0 que é responsabilidade especifica da familia € 0 que é responsabilidade especifica da escola na acdo educativa. . O que as propostas dos CIACs devem incorporar preliminarmente sobre o tema da participagdo € que a preocupagao educativa deve também visar as familias das criancas, porque sem uma acio extensiva 4 comu- nidade hé grande risco de malogro da atuacao estrita- mente escolar. Mas nao se pode, a pretexto de incentivar a parti- cipagdo comunitaria em educagao, esperar que as fa- milias indiquem 0 contetido e os métodos de educagdo que pretendem para seus filhos. Nao se pode substitutir um continuo trabalho pe- dagégico pela indugao de contrafacdes de participacdo comunitéria. H4 miltiplas formas para induzir a uma participacao auténtica e uma delas, seguramente, é a de desenvolvimento da consciéncia social de que o direito 4 educag4o nao pode ser esbulhado por uma escola piblica de mé qualidade. Diretrizes e recomendagées para os CIACs _____99 IV ~ Os CIACs deverao organizar-se como expe- riéncias pedagogicas. Cada CIAC deve constituir-se como uma auténtica experiéncia educativa, organizando-se autonoma- mente para busca de seus préprios caminhos pedagé- gicos. Somente assim sera possivel que a instituicio enfrente 0 desafio de vir a ser um centro de excelén- cia em matéria de educacao popular e que, no con- junto dessas novas instituigdes, se instale uma visio educacional pluralista ¢ sensivel as variagdes cultu- rais locais e regionais. O carater experimental da organizagao dos CIACs envolve dois pontos na elabora¢ao das propostas: 1 - Articulagao com universidades locais e outras entidades interessadas na pesquisa educacional, como também empreendimento de esforgos no sentido de conhecimento e eventual aproveitamento de iniciativas de renovacdo do ensino j4 realizadas ou em curso, em estabelecimentos oficiais ou particulares. Essas provi- déncias sao essenciais para que as experiéncias peda- gogicas dos CIACs se iniciem sobre bases firmes e ga- rantidoras de apoio técnico permanente. 2 A atual ordenagao legal da educacao brasileira € excessivamente regulamentadora e impeditiva de ino- vacées educacionais mais amplas e profundas. £ 0 caso dos curriculos, por exemplo. Embora o discurso legal até mesmo recomende e estimule a autonomia das escolas, estas, em matéria curricular, estao atadas a tan- tas prescrigdes oficiais que se torna inviavel, na pratica, qualquer exercicio de inovagao. O resultado é que, num pais continental, as escolas de ensino fundamen- tal, pablicas ou particulares, esto presas a um curricu- lo oficial quase id@ntico para todas. Na verdade, um curriculo que exibe uma riqueza mentirosa, pois na 100 Educagdo: temas polémicos pratica o que ha é a improvisagdo, um mesmo profes- sor ministrando muitas disciplinas e, em alguns casos, a administragao do ensino sendo compelida a considerar como realizados estudos que nao o foram. Nesse quadro, é indispensavel que, no caso dos CIACs, seja buscada uma ordenago legal menos asfi- xiante. Essa possibilidade ja existe, pois a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educacao Nacional prevé, no seu artigo 64, que os “Conselhos de Educagao poderao autorizar experiéncias pedagégicas, com regimes di- versos dos prescritos na presente lei”. Em face dessa possibilidade, convém que as pro- postas dos CIACs sejam submetidas 4 andlise e decisdo dos Conselhos Estaduais de Educacao. Além de ser este 0 caminho legal para as experiéncias pedagégicas pretendidas, h4 ainda, nesse exame local das propos- tas, a inegavel vantagem do cardter descentralizado do ajuizamento técnico do assunto. Essa descentralizagdo, necessdria e interessante, ndo exonera 0 Ministério da Educagao nem o Conselho Federal de Educacao das responsabilidades que Ihes cabem com relacao aos CIACs, pois a eles fica reserva- da uma atuagao geral de orientagao, apoio € assistén- cia técnica. Recomendagées* Algumas das recomendagées dizem respeito dire- tamente as propostas pedagégicas, outras sao relativas * Estas “Recomendagdes” foram aprovadas em reunido realizada em Brasilia, em novembro de 1991. A lista dos participantes consta de folheto editado pela MEC, aps a publicagio da Portaria n? 2.134, de 13 de dezembro de 1991. [FacUCoADE bE EDUCACAO- USP] 37244 Diretrizes e recomendagées para os CIACs ____________ 101 a uma ago mais ampla dos Estados, municipios e do proprio governo federal. 1. Autonomia escolar: Possivelmente, a elaborago da proposta pedagégica de cada CIAC, para exame dos Conselhos Estaduais, far-se-4 antes que toda a equipe escolar esteja constituida. Nesse caso, recomenda-se que a proposta nao chegue a pormenores de organiza- cho e a especificagdes técnicas para cuja formulagao € indispensavel a participagdo de toda a equipe escolar, como garantia de uma auténtica autonomia pedagogica 2. Conbecimento das comunidades: A participagio comunitaria no pode ser construida pela simples valorizagio ideolégica. O seu ponto de partida deve ser 0 efetivo conhecimento da comunidade e das fami- lias, das suas condigdes de vida, dos seus problemas e de suas possibilidades de mobilizar-se em fungao de aspiragées € objetivos comuns. £ claro que esse co- nhecimento assumiré num primeiro momento a forma de um diagnéstico genérico, mas o importante é que as propostas pedagégicas prevejam mecanismos de permanente interag3o com a comunidade e as familias, possibilitando a atualizacao continua de informagdes relevantes para a atuagao educativa no sentido amplo visado pelos CIACs. 3. Jornada integral: & jornada integral de estudos é, no Brasil atual, um privilégio daquelas criangas ¢ jo- vens ja privilegiados. Trata-se agora de iniciar a sua extensio as camadas populares, tinicas a sofrerem a escola de quatro e cinco turnos. Contudo, € do conhe- cimento geral que, muitas vezes, as familias mais des- favorecidas pela situagdo econdmica nao podem pres- cindir do auxilio de suas criangas e jovens. Por isso, € necessario que o funcionamento em tempo integral woz ducagizo: termas polémicos dos CIACs nao se tranforme num impedimento de fre- qiéncia a escola. O periodo escolar serd integral, mas a sua programacao deveré ter flexibilidade para com- patibilizar-se com as condigées diferenciadas de vida dos alunos, permitindo que estes usufruam os benefi- cios da jornada integral nos limites das suas possibili- dades pessoais 4. Funcionamento noturno: Os CIACs representam um indispensdvel investimento social. Por isso, 0 custo desse investimento impée 0 seu mais completo apro- veitamento. Nesse sentido, 0 periodo noturno dos centros deve abrigar as mais diversas modalidades de educagao de jovens € adultos da comunidade. Essa atua¢do dos centros nao pode, porém, representar uma simples ocupac4o de um periodo ocioso de espaco, mas deve ser elemento de integracdo comunitaria e fornecedor de informagées relevantes para o funcio- namento de cada CIAC como um todo. 5. Administragdo geral: £ essencial assegurar, na administracdo dos centros, que nao se perca de vista a amplitude de sua agao (ensino, satide, cultura, desen- volvimento comunitario etc.). Mas, nao obstante a am- plitude de atuagao dos centros, o propésito educativo, no seu sentido mais geral, é que deve conferir unidade ao conjunto de atividades das diferentes 4reas, para que a instituigdo seja de tempo integral num sentido emi- nentemente educacional e nao simplesmente assisten- cial. Em face dessas condigées ¢ da natureza inovado- ra do empreendimento pedagégico, convém que a administracao geral de cada centro seja confiada a educador experimentado, especialmente selecionado, capaz de promover a integracdo de todas as etapas do processo educativo desenvolvido pelos CIACs. O que, evidentemente, nao exclui a necessidade de que as pro- Diretrizes e recomendagées para os GIACs __________ 103 postas prevejam mecanismos institucionais (conselho diretor, por exemplo) que garantam a participacio de todos os segmentos envolvidos e da comunidade. 6. Constituigdo da equipe escolar: As responsabili- dades do corpo docente e técnico da nova experiéncia pedagégica recomendam a definigao de critérios espe- ciais de selegdo, que assegurem o recrutamento dos profissionais mais qualificados pela formacao e expe- riéncia e, também, fortemente motivados para partici- pacdo no empreendimento educativo que se propée. 7. Aperfeigoamento do magistério: A constituicao dos CIACs como experiéncias pedagégicas representa uma importante oportunidade para um trabalho per- manente de aperfeigoamento do pessoal docente. Por isso, 0 conjunto dos CIACs instalados em cada Estado, qualquer que seja a entidade mantenedora, deve ser articulado com os érgaos estaduais e municipais res- ponsaveis pelo aperfeigoamento do magistério, princi- palmente do pessoal docente. 8. Acompanbamento e avaliagdo: O Ministério da Educagao dever4 constituir Comité Assessor de alto nivel para acompanhamento e avaliagdo permanente dos CIACs em todo 0 territério nacional. Esse trabalho em nivel central, no entanto, precisa estar articulado com correspondentes comités estaduais e municipais (mas grandes cidades). Essa articulagao é essencial para assegurar a continuidade, a efetividade e a agili- dade dos mecanismos de manutengio previstos e 0 entrosamento das diversas esferas de atuagao (educa- 40, satide, cultura) dos CIACs. 9. Manutengdo e cooperagdo internacional: O Mi- nistério da Educagao tem plena consciéncia de que é preciso assegurar, por meio de convénios especificos 10 dtucagto: temas polémicos para cada situacdo, a constancia do fluxo de recursos financeiros necessdrios 4 implanta¢do e continuidade dos centros. Em face da diversidade das situagées, 0 convénio especifico com Estados, municipios e outras entidades € 0 instrumento adequado para defini¢io, em cada caso, das responsabilidades dos érgaos e das entidades participantes no empreendimento. Nos casos‘em que a proposta pedagégica seja con- siderada de alta relevancia como inovacao educativa, 0 MEC deve se dispor também a estudar a possibilidade de criar uma linha de apoio com recursos especiais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educagio. Convém, ainda, que 0 governo federal € os gover- nos estaduais, nas suas respectivas esferas de a¢ao, examinem a possibilidade de busca da coopera¢ao internacional na implantago e desenvolvimento das redes de CIACs. Nao apenas do ponto de vista de uma colaboragdo financeira, mas também quanto 4 colabo- racdo técnica de entidades especializadas nas diversas dimensdes de atuag’o dos CIACs. 4 [MP Azanha (Bertin Fontes | EDUCACAO;| TEMAS POLEMICOS|

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