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Que ensinar no Ensino Secundério? A propésito das Conferéncias de Claude Rebaud e Joaquim Azevedo. Comentério de Isabel P. Martins Departamento de Didactica e Tecnologia Educativa Universidade de Aveiro Comentar as intervengdes anteriores implica, necessariamente, definir um quadro de referéncias no qual tal possa ter lugar. Assim, considero que para responder a questo “O que ensinar no ensino secundério?” importa considerar e articular trés pontos de vista: a) 0 da aprendizagem dos alunos, b) odo desenvolvimento curricular, c) o da formaciio de professores. Sobre cada um deles procurei destacar alguns aspectos. A aprendizagem ‘A preocupagdo com “o que ensinar...” est directamente relacionada com “o que deve ser aprendido...”, 0 que desloca 0 centro da questo do curriculo e dos professores, para o dos alunos. Visto 0 problema deste modo, significa que tenhamos de nos preocupar com processos de aprendizagem, com dificuldades de aprendizagem, com o desenvolvimento da motivagdo e do gosto para aprender, e com os recursos de aprendizagem. Questdes como estas se parecem de carécter geral, isto 6, poderem ser colocadas em todos os nfveis de escolaridade, s4o de resposta particular em cada um deles. O problema da aprendizagem nfo se resolve por os alunos quererem ou mesmo se disporem a fazé-lo. O desenvolvimento de estratégias de estudo é fundamental isso é um assunto praticamente ausente das salas de aula do Ensino Secundério. Os recursos didécticos so outra érea a precisar de atengao especial. Nao porque escasseiem os manuais escolares; alidis, a abundancia a que se assiste prejudica e perturba o sistema pois tornando-se livre a sua oferta e na auséncia de mecanismos efectivos que assegurem a sua qualidade, pode, junto dos mais incautos, “fazer passar gato por lebre”. Falta um pensamento estruturado em torno destas questdes que oriente intervengées especificas. O desenvolvimento curricular O curriculo é, talvez, a drea de maior visibilidade publica de qualquer sistema de ensino. E fécil perceber, ou antes apercebermo-nos, do ntimero e tipo de cursos disponiveis, das disciplinas que os constituem (contetidos e cargas horérias) e, através disto, com relativa ligeireza, ajuizar sobre a adequagao de cada um para projectos de formacio posterior. No entanto, ser4 necessario analisar os objectivos, os contetidos ¢ as orientagdes dos programas de cada disciplina e dos conjuntos de disciplinas para que a resposta a essa preocupacio possa ser encontrada. Além disso, importa antes de mais, saber se a formagao de nivel secundério permite aos jovens que a completem adquirirem uma compreensio do mundo e um saber-ser pessoal ¢ social, indispensdvel para uma aprendizagem ao longo da vida. Neste dominio hé quem defenda que o ensino nao seja centrado em conceitos mas em problemas ou temas onde os conceitos assumam relevancia. ‘A formagio de professores ‘Trata-se, no meu entender, da dimensiio-chave de todos os sistemas de ensino formal. Qualquer projecto de formagao e educagiio formal ficaré irremediavelmente comprometido se os professores ndo compreenderem 0 que est4 em causa mudar se nao souberem ou nao tiverem meios para o fazer. As mudangas ao nivel do curriculo instituido sao relativamente faceis, mas as mudangas de mentalidades séio extremamente dificeis de concretizar. As novidades so, por vezes, até interessantes aos olhos dos professores mas a sua concretizagiio exige preparagao, investimento dos préprios e meios e estimulos que nem sempre existem. Nesta matéria penso que as instituigdes de formag&o de professores tém um longo caminho a percorrer. Os modelos de formagio de professores precisardo de contemplar, de forma intencional, problemas especificos da formagtio de alunos do Ensino Secundério, para além de ser necessdrio repensar as consequéncias da formagio monodisciplinar dos professores. Faltam modelos e pritticas de formaciio de professors que introduzam no sistema formadores com competéncias de cariz interdisciplinar. Procurarei agora posicionar-me perante os conferencistas anteriores. O Ensino Secundério € uma charneira entre o Ensino Superior, que nalguns casos é visto como condicionando-o, e o Ensino Basico que hoje, e cada vez mais, é menos de cardcter terminal. Para além de saberes académicos especificos, o Ensino Secundério deve responder aos desafios sociais, isto 6, promover o desenvolvimento humano de um grupo de jovens muito heterogéneo, numa sociedade onde os meios de acesso & informagio e formagiio crescem de forma espantosa (Nota: crescerem os meios no significa crescer a formagao através desses meios, Eugénio Lisboa, 1998). Considero e defendo que ha competéncias de cidadania que devem ser desenvolvidas em particular no Ensino Secundério, mas de forma transversal, em todas as disciplinas, ¢ nao através de uma qualquer disciplina a criar, e deve haver uma maior articulagao entre o ensino formal e os meios de educagiio nao formal. Para isso é indispensavel que os professores os conhecam e saibam promover a respectiva articulagao. Permito-me discordar da posigdo de Claude Rebaud sobre a primazia da orientac&o do Ensino Secundério sobre que se faz. no Ensino Superior, Em Portu- gal, atrevo-me a dizer, que no Ensino Superior pouco se sabe do passado dos alunos, além de que “pouco sabem...”. J4 quanto ao Ensino Basico é relativamente fécil encontrar casos de professores que justificam a pertinéneia de determinados conceitos (por exemplo, em Ciéncias) pela relevancia que eles tero no Ensino Secundério. Defendeu Joaquim Azevedo que o ensino e formagio de nivel secundario deveria proporcionar uma base cultural comum, s6lida e alargada para preparar itinerérios de vida e de inserg&o s6cio-profissional imprevisiveis; mais adiante acrescenta que nessa base deverd existir uma s6lida cultura cientifica ¢ técnica, ideia alids corroborada por Claude Rebaud. Concordo inteiramente com o principio, mas desconheco como pensam que tal poderia ser levado a pratica. ‘A minha proposta vai no sentido de incluir na componente de formagiio geral comum a todos os cursos, uma disciplina de cultura cientifica e técnica. Nao se trata de uma disciplina de ciéncias no sentido tradicional, mas antes de uma disciplina sobre temas da actualidade de caracterfsticas pluridisciplinares e interdisciplinares, onde a dimensio cientifica é relevante. Defendeu Joaquim Azevedo que a fungdo do ensino e formagio de nivel secundério ndo deve fechar-se sobre si mesma ao assumir-se como uma fase de preparagao para o prosseguimento de estudos. Concordo com a critica mas apenas em parte. Com efeito, se hé profiss6es que tradicionalmente sao encaradas de rafz como , por exemplo, a medicina, o direito ou a engenharia, outras surgem numa fase mais tardia, muitas vezes por falta de alternativa as primeiras escolhas. Penso que o Ensino Secundario deveria chamar a si também a fungao de orientagdo e pré-preparacdlo para um leque variado de dreas profissioanis. Ora, sendo 08 professores a classe profissional mais numerosa na maior parte dos pafses (Relatério Mundial da Educag&éo 1998, UNESCO), deveria ser neste nivel de escolaridade que uma atengio especial a esta profissiio deveria ser proporcionada, Como motivar os alunos mais aptos para a escolha da docéncia, em qualquer um dos niveis de ensino, como actividade futura? E termino com uma reflexao na qual também me incluo como destinataria. Sabe-se que a investigagio educacional afecta pouco 0 que os professores fazem na sala de aula, mesmo quando estes conhecem os seus resultados. (Alias esta critica nao tem sido poupada de diversos quadrantes). Mas parece que essa mesma investigag&o afecta igualmente pouco 0 que fazem os formadores de professores, ainda que alguns deles sejam os proprios investigadores. tempo de tomarmos colectivamente consciéncia da situagdo e nos responsabilizarmos pessoalmente por cla. Eo Ensino Secundario é, inequivocamente, uma érea onde importa investir.

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